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DIREITO CIVIL VI:

DIREITOS REAIS

Stela Tannure Leal de Vasconcelos


Tópicos fundamentais
de propriedade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Definir os sujeitos da propriedade.


 Descrever o objeto da propriedade.
 Identificar as limitações e a função social da propriedade.

Introdução
A propriedade é um direito real complexo, que envolve o domínio sobre
as coisas que compõem o patrimônio de um sujeito. Contudo, essas
relações de domínio não autorizam o proprietário a realizar qualquer
ação com o objeto de sua propriedade.
Neste capítulo, você vai ler sobre as limitações às quais se sujeita o
direito de propriedade, assim como suas finalidades. Para tal, você vai
identificar os sujeitos relacionados ao direito de propriedade e realizar
uma descrição adequada de seu objeto.

1 Sujeitos da propriedade
A propriedade pode ser titularizada por pessoas naturais ou pessoas jurídicas,
de direito público ou privado, assim como por entes despersonalizados. Dessa
forma, não há questionamentos relevantes sobre quem pode ser proprietário,
pois as relações de domínio sobre coisas são essenciais para a dinamização
das relações sociais. Conforme Orlando Gomes (2012, p. 106):

A capacidade de ser proprietário não suscita problemas que demandem maior


indagação. Mas a capacidade para ser sujeito do direito de propriedade não se
confunde com a capacidade para adquiri-lo. A aquisição pressupõe um título,
cuja obtenção requer a capacidade de fato, que varia conforme a natureza do
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ato jurídico que lhe serve de causa. Diversas restrições levantam-se não só
quanto à própria faculdade de adquirir, mas, também, quanto à espécie do
fato jurídico que fundamenta o modo de aquisição. Certas pessoas não podem
adquirir bens de outras. A propriedade de determinados bens é defesa a certas
pessoas. Na realização de alguns negócios jurídicos, que se requerem como
titulos adquirendi da propriedade, exige-se capacidade especial ou legitimação.

Teresa recebe um bem imóvel como herança de seu pai. Contudo, este, em testa-
mento, gravou esse bem com uma cláusula de inalienabilidade. Dessa forma, Teresa
é proprietária do bem e pode exercer todas as faculdades inerentes a esse domínio,
mas não pode alienar o bem a terceiros. Quaisquer negócios jurídicos que ela tente
realizar para vender esse bem serão considerados nulos.

Assim, todos têm o potencial para ocupar a posição de sujeito ativo do direito
de propriedade; contudo, há restrições constitucionais que limitam a aquisição
da propriedade rural por estrangeiros, explicitadas no art. 190 da Constituição
Federal: “Art. 190 A lei regulará e limitará a aquisição ou arrendamento de
propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os
casos em que dependerão de autorização do Congresso Nacional” (BRASIL,
1988, documento on-line).
A intenção do constituinte, nessa situação, foi resguardar a propriedade
das terras rurais nacionais para que estas sejam exploradas, de preferência,
por brasileiros. A regulamentação desse dispositivo ocorre na Lei nº. 5.709,
de 7 de outubro de 1971, que limita a aquisição de propriedade rural por es-
trangeiros. Em seu art. 3º, o limite de área para pessoas naturais estrangeiras
fica estabelecido em até 50 módulos de exploração indefinida, seja essa área
contínua ou descontínua (BRASIL, 1971).
No tocante às pessoas jurídicas estrangeiras, o art. 5º autoriza aquisições
desde que os imóveis se destinem à implantação de projetos agrícolas, pecu-
ários, industriais ou de colonização, de acordo com os objetivos estatutários
das referidas pessoas jurídicas, condicionados à aprovação pelo Ministério
da Agricultura.
Seja o proprietário estrangeiro pessoa natural ou jurídica, a extensão da
área rural adquirida não pode ser superior a 25% da superfície do município
onde se situa o imóvel, conforme o art. 12 da mesma lei — a intenção do
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legislador parece ser evitar a concentração de domínio representativo em


pessoa estrangeira, o que poderia resultar em ingerências no exercício da
soberania local (RIZZARDO, 2016).
Nesse sentido, em caso de imóvel rural localizado em faixa de fronteira
(ou seja, faixa de território brasileiro distante até 150km da fronteira), a Lei
nº. 6.634, de 2 de maio de 1979, disciplina, no art. 2º, V, que são vedadas “[...]
transações com imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro,
do domínio, da posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel” (BRASIL,
1979, documento on-line), enquanto o inciso VI veda a “[...] participação,
a qualquer título, de estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, em pessoa
jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural” (BRASIL, 1979,
documento on-line).
A propriedade é classificada de acordo com o sujeito ativo — quem exerce
as relações de domínio — como propriedade privada (pessoa natural ou
pessoa jurídica de direito privado, assim como entes despersonalizados) ou
propriedade pública (pessoa jurídica de direito público). É possível que
mais de um sujeito seja titular da coisa, o que representa as circunstâncias de
condomínio ou copropriedade.

Os entes despersonalizados podem ser sujeitos ativos do direito de propriedade,


mesmo não se qualificando como pessoas jurídicas. O seu não enquadramento como
pessoa jurídica não afasta sua possibilidade de reunir patrimônio. Nesse sentido, o
espólio pode ser proprietário de bens e, inclusive, dispor desses bens, no melhor
interesse dos herdeiros.

O sujeito passivo da propriedade, a seu turno, corresponde à totalidade da


sociedade, que está sujeita a respeitar as relações alheias de domínio. Disso
deriva uma das características essenciais da propriedade: o absolutismo, que
significa dizer que o proprietário pode opor seu domínio em face de todos.
Nesse sentido, consiste “[...] o mesmo na coletividade que tem a obrigação pas-
siva universal, a qual recai sobre todos os membros da sociedade em respeitar
a propriedade alheia” (RIZZARDO, 2016, p. 176). O Quadro 1 apresenta os
sujeitos do direito de propriedade.
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Quadro 1. Sujeitos do direito de propriedade

 Pessoa natural
 Pessoa jurídica de direito público
Sujeito ativo
 Pessoa jurídica de direito privado
 Entes despersonalizados

Sujeito passivo  Coletividade não proprietária

2 Objeto da propriedade
O objeto da propriedade é tradicionalmente abrangente, de maneira a compre-
ender tudo aquilo que possa estabelecer uma relação jurídica amparada em
domínio. Dessa maneira, os bens móveis, imóveis e semoventes são facilmente
reconhecidos como coisas passíveis de assenhoramento. Contudo, Rizzardo
(2016, p. 173) aponta uma tentativa de identificação do objeto da propriedade
com o potencial de exploração econômica das coisas:

No entanto, deve-se partir, para estabelecer o objeto, de um critério de va-


loração ou estimação econômica. Tudo quanto for valorado economicamen-
te, ou que representa um bem de estimação econômica, constitui objeto da
propriedade. Pode-se ir mais adiante. Há certos bens que não se apreciam
basicamente pelo teor econômico. Sua importância reside no apreço artístico,
histórico, literário, afetivo, escultural e científico. Há, pois, uma mensuração
não econômica que predomina. A transformação em valor econômico não
é sempre fácil e não prepondera ante as outras qualidades que são inerentes
a tais bens. Neste campo, encontrava-se a propriedade literária, artística e
científica regulada pelos arts. 649 e seguintes do Código Civil de 1916 (nada
vindo previsto no Código de 2002). Presentemente, a regulamentação está
na Lei de Direitos Autorais, de nº 9.610, de 19.02.1998.

Entretanto, o conteúdo dos direitos autorais não está limitado aos seus
elementos econômicos — seus caracteres extrapatrimoniais são essenciais
para sua caracterização.

Bens corpóreos e incorpóreos


A propriedade foi concebida sob o prisma dos bens corpóreos, com represen-
tação no mundo físico — sejam esses bens móveis, imóveis ou semoventes.
Contudo, conforme a sociedade se torna mais complexa, outros bens passam
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a interessar os sujeitos para o estabelecimento de relações de domínio. Nesse


sentido, Rizzardo (2016, p. 174):

Não há dúvida de que a evolução dos tempos e das formas de subsistência foi
criando novos valores ou padrões econômicos. Atualmente, têm relevância
o fundo de comércio, a clientela, o nome comercial, as patentes de invenção,
as marcas industriais, os desenhos, os modelos fotográficos, inclusive os
espaços aéreos, em que as municipalidades firmam determinados critérios e
valores para conceder alvará de autorização para construções, a partir de certa
altura em zonas especiais das cidades. [...] Trata-se de propriedade imaterial
ou incorpórea, que alargou o conceito tradicional de propriedade, fundado
na divisão romana das coisas mancipi e nec mancipi.

Contudo, há divergências doutrinárias sobre a caracterização das relações de


domínio de bens incorpóreos como propriedade, havendo corrente doutrinária
que define o objeto da propriedade de maneira abrangente (considerando bens
corpóreos e incorpóreos) e corrente contraposta, que exclui os bens incorpóreos
dessa caracterização. Conforme esta última corrente, atualmente predominante
na doutrina, Tartuce (apud CHINELLATO, 2008; TARTUCE, 2020, p. 129).
expõe algumas considerações:

De toda sorte, anote-se que tal ideia sempre foi refutada por parte considerável
da doutrina nacional e estrangeira. Cite-se, no Brasil, Silmara Juny de Abreu
Chinellato, para quem a propriedade somente recairia sobre bens corpóreos.
Vejamos as suas lições: “a natureza jurídica híbrida, com predominância
de direitos da personalidade, do direito de autor como direito especial, suis
generis, terá como consequência não serem aplicáveis regras da propriedade
quando a ele se referirem, nas múltiplas considerações das relações jurídicas”
(p. 99). Entre os aspectos por ela destacados, demonstrando uma diferença
de tratamento dos direitos de autor, mencionem-se: “a) distinção entre corpo
mecânico e corpo místico, sendo apenas o primeiro suscetível de propriedade
e posse; b) aquisição da titularidade do direito de autor; c) prazo de duração
limitado para direitos patrimoniais e ilimitado para direitos morais; d) não
cabe usucapião quanto a nenhum dos direitos morais, aplicando-se, em tese
ao corpo mecânico; e) perda do direito patrimonial depois de certo prazo,
quando a obra cai em domínio público; f) inalienabilidade de direitos morais;
g) ubiquidade da criação intelectual; h) diferente tratamento no regime de
bens no casamento, entre a propriedade e o direito de autor.

Isso não significa dizer que as relações jurídicas estabelecidas em razão de bens
incorpóreos não tenham relevância para o Direito — ao contrário, estas merecem
atenção do Direito Empresarial (quanto à propriedade intelectual) e dos direitos
da personalidade (quanto aos aspectos extrapatrimoniais dos direitos autorais).
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Limites verticais e horizontais da propriedade


A propriedade de bens móveis possui limites físicos bem definidos pela natureza
da própria coisa: a mobilidade do bem permite que possamos identificar seus
limites visualmente, relacionando-os com a coisa em si.
Contudo, a definição dos limites do bem imóvel não é tão elementar. Ao
observar visualmente uma coisa imóvel, os limites físicos estabelecidos (como
cercas e muros) podem estar incorretos, por omissão, erro ou má-fé. Assim,
os limites da propriedade de imóveis são definidos em termos horizontais e
verticais por critérios jurídico-legislativos.
Dessa forma, os limites horizontais da propriedade imóvel são definidos
pelos dados registrais do imóvel. O registro do imóvel obedece ao princípio da
especialidade, de maneira que cada coisa imóvel é individualizada pelas suas
características de confrontamento no livro fundiário. O Quadro 2 apresenta
os limites horizontais da propriedade imóvel.

Quadro 2. Limites horizontais da propriedade imóvel

 Confrontação do terreno com terrenos vizinhos


Moradias
 Confrontação do terreno com logradouros
unifamiliares
públicos

Moradias  Identificação da unidade


multifamiliares  Identificação da fração ideal de área comum

Sobre os limites verticais da propriedade imóvel, o Código Civil indica, no


seu art. 1.229, que a propriedade do solo abrange o espaço aéreo e o subsolo
correspondentes, mas isso não representa um corte vertical sem limitações ao
direito de propriedade, mas sim uma extensão limitada no sentido da utilidade
e do interesse, conforme Tepedino, Monteiro Filho e Renteria (2020, p. 86–87):

A legislação brasileira, portanto, a fim de limitar o alcance vertical da proprie-


dade imóvel, recorre a critérios flexíveis — utilidade e interesse. O critério da
utilidade associa-se a aspecto econômico, por meio do qual se estabelece que
o domínio se finda a partir de altura e profundidade incompatíveis com a ca-
pacidade de exploração do proprietário. O interesse, por seu turno, diz respeito
a aspecto jurídico da limitação, vez que o proprietário terá legitimidade para
afastar eventual interferência de terceiro que esteja explorando atividade aérea
ou subterrânea apenas na hipótese de essa atividade afetar sua propriedade.
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Nesse mesmo sentido é a nota histórica de Caio Mario da Silva Pereira


(2019, p. 80):

O Código Civil de 1916, numa redação totalmente infeliz, porém corrigida


mais tarde (art. 526), e seguida, com ligeiras alterações, pelo Código Civil
de 2002 (art. 1.229), filiou-se à corrente germânica e instituiu a extensão
do direito de propriedade ao espaço aéreo e ao subsolo em toda altura e em
toda profundidade úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, opor-se
o proprietário a trabalhos que sejam empreendidos até onde não exista o
interesse de impedi-los. Conjugou assim a utilidade e o interesse. E deu o
rumo de seu pensamento que pode ser assim resumido em consonância com a
orientação de outros Códigos: o proprietário de um imóvel tem poderes mais
amplos do que o simples aproveitamento do solo. Projetam-se verticalmente
para cima e para baixo. Mas não chegam até as estrelas — usque ad sidera
— como queriam os juristas medievais, nem avançam até as profundidades
da terra — usque ad inferos. Até lá não chegam as razões de interesse do
titular, uma vez que o interesse, na acepção legal, não consiste na intenção
abstrata de guardar a potencialidade de um aproveitamento remoto ou mera-
mente teórico, porém revela-se na adoção de um critério utilitário: o dominus
põe o seu interesse onde chega a faculdade de lhe ser a coisa prestada. Um
proprietário vê projetada para o alto a titularidade de seu domínio, e pode
edificar o arranha-céu, levantar as antenas de captação das ondas hertzianas,
fazer outra construção. Pode impedir que por sobre o seu imóvel o vizinho
ou o poder público estenda linhas de transmissão, ou que lhe deitem sacadas
ou terraços. Tem um legítimo interesse na obstrução de tais procedimentos,
ou de outros. Mas não pode impedir que um avião passe sobre a sua casa,
como não tem interesse legítimo para embargar a perfuração de um túnel a
uma profundidade tal que não ponha em risco a sua segurança ou não lhe
causa dano. Em contraposição, tem direito a excluir tudo que interfira com
o aproveitamento da coisa, assim atual como futuro, se efetivamente ameaça
restringir a condição jurídica do proprietário.

3 Limitações ao direito de propriedade


e sua função social
O direito de propriedade não pode mais ser considerado um direito ilimitado
sobre a coisa: se a coletividade não proprietária precisa se submeter juridi-
camente à sua existência, também devemos considerar que essa coletividade
merece proteção quanto aos mecanismos de atuação do proprietário no exercício
de suas faculdades.
Assim, a propriedade passa a ser limitada de acordo com o tipo de impacto
que pode ocasionar para a coletividade, sob diversos aspectos jurídicos: os
direitos de vizinhança, descritos nos arts. 1.277 e seguintes do Código Civil,
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regulam comportamentos referentes a obrigações de fazer e não fazer que


ordenam a convivência entre vizinhos e consequentemente limitam o uso
potencial da propriedade (BRASIL, 2002).

Cláudia realiza uma reforma de ampliação em sua sala e abre uma grande janela para
circulação de ar. Todavia, essa janela se encontra a menos de 1,5m da janela do quarto
de sua vizinha Cleide. Assim, ao realizar essa reforma, Cláudia acaba ferindo dispositivo
de direito de vizinhança, de acordo com o art. 1.301 do Código Civil. Assim, Cleide pode
requerer judicialmente o fechamento dessa janela, na forma do art. 1.302 do Código Civil.

Outros ramos do Direito — como o Direito Administrativo, o Direito


Eleitoral e o Direito Militar — também apresentam uma série de limitações
ao direito de propriedade, como enuncia Venosa (2019, p. 187):

Destarte, são inúmeras as restrições de ordem administrativa. Protege-se


o patrimônio histórico, a fauna, a flora, o equilíbrio ecológico etc. Há leis
especiais que cuidam expressamente dessas questões, restrições direcionadas
à propriedade urbana e rural. Há restrições de ordem militar que dizem res-
peito à segurança nacional, disciplinando, por exemplo, a requisição de bens
particulares necessários às forças armadas nos casos de urgência e defesa
nacional. No Código Eleitoral, também se dispõe sobre o uso da propriedade
privada, quando se permite a requisição de bens para a realização de eleições.

Nesse sentido, as limitações à propriedade citadas resultam em uma trans-


formação essencial do instituto, que consagram uma preocupação coletiva:

De fato, a variedade e a relatividade da noção de propriedade, conquistas


inderrogáveis de processo evolutivo secular, corroboram a rejeição, há muito
intuitivamente proclamada, da propriedade como noção abstrata. Chega-se,
por este caminho, à configuração da noção pluralista do instituto, de acordo
com a disciplina jurídica que regula, no ordenamento positivo, cada estatuto
proprietário. A construção, fundamental para a compreensão das inúmeras
modalidades contemporâneas de propriedade, reflete, na realidade, a superação
da própria concepção tradicional de direito subjetivo, entendido como o poder
reconhecido pelo ordenamento ao sujeito para realização de interesse próprio,
finalizado em si mesmo. A atribuição de direito é acompanhada da imposição
de deveres e obrigações, cuja observância se erige como condição de tutela
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daquele direito. Com efeito, a categoria de direito subjetivo é substituída pela


de situação jurídica subjetiva complexa, composta de direitos e deveres, e
por meio da qual se realizam os interesses individual e coletivo, de modo a
concretizar, assim, a função da solidariedade constitucional (TEPEDINO;
MONTEIRO FILHO; RENTERIA, 2020, p. 96).

Histórico das limitações à propriedade


e Constituição Federal
As limitações sociais ao exercício da propriedade surgem como uma influência
da doutrina social católica e progressivamente são adotadas pelos ordenamentos
jurídicos de diversos países. As Encíclicas Papais são documentos essenciais
para a compreensão da evolução do conceito de função social da propriedade,
como mostra Rizzardo (2016, p. 168, grifo nosso):

Foi, entretanto, a doutrina social da Igreja católica que mais propugnou para
as finalidades sociais da propriedade, o que transparece em várias encíclicas
papais. Na encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, ensinava-se: “Os que
têm recebido de Deus maior abundância de bens, sejam corporais ou externos,
sejam internos ou espirituais, os receberam para que com eles atendam a sua
própria perfeição e, ao mesmo tempo, como ministros da Divina Providência,
ao proveito dos demais”. Na encíclica Mater et Magistra, o Papa João XXIII,
que praticamente revolucionou a doutrina social da Igreja, transmitiu as se-
guintes orientações: “[...] O direito à propriedade privada é intrinsecamente
inerente à função social”. Mais adiante: “[...] O sagrado Evangelho sanciona,
sem dúvida, o direito à propriedade privada dos bens, porém, ao mesmo
tempo, apresenta, com frequência, Jesus Cristo ordenando aos ricos que
transformem em bens espirituais os bens materiais que possuem, e os
deem aos necessitados”. Igualmente a encíclica Populorum Progressio, do
mesmo Papa, contém valiosos ensinamentos, no mesmo sentido: “Se alguém
tem bens deste mundo, e vendo um irmão em necessidade e não o atende,
como é possível que ele resida no amor de Deus?”.

Nesse sentido, observamos as inserções legais sobre a função social da


propriedade nas Constituições de Argentina, Alemanha, México, entre outros.
No Brasil, a Constituição Federal encerra, em seu art. 5º, XXIII, que “A pro-
priedade atenderá a sua função social” (BRASIL, 1988, documento on-line),
indicando, também no art. 170, III, que a ordem econômica observará, entre
outros princípios, a função social da propriedade.
O Texto Constitucional brasileiro também localiza a função social da
propriedade como elemento de conformação da propriedade urbana e rural
de maneira especificada. Quanto à propriedade urbana, os arts. 182 e 183
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apontam a utilização da propriedade no âmbito de políticas urbanas, identifi-


cando o cumprimento de sua função social com o atendimento às exigências
do plano diretor.
A propriedade rural passa por delineamento semelhante. Sobre os elementos
de política agrícola e fundiária estabelecidos nos arts. 184 e 185, Tepedino,
Monteiro Filho e Renteria (2020, p. 90) afirmam:

Ali estão previstas diversas disciplinas da propriedade, de acordo com sua


potencialidade econômica e levando-se em conta sua destinação. Assim, por
exemplo, são postas a salvo da desapropriação, para fins de reforma agrária,
a pequena e a média propriedade, quando o titular não possuir outra (CR, art.
185, I), bem como a propriedade produtiva (CR, art. 185, II); veda-se a penhora
da pequena propriedade familiar rural por débitos derivados da atividade
produtiva; e autoriza-se a criação de meios específicos de financiamento para
o desenvolvimento da propriedade familiar (CR, art. 5º, XXVI). No sentido de
ampliar ainda mais a proteção à pequena propriedade, a Constituição instituiu
a chamada usucapião especial, que se configura a partir da posse continuada
por cinco anos de imóvel rural, não superior a 50 hectares, tornado produtivo
pelo possuidor, ou, no caso de propriedade urbana destinada à habitação
familiar, não superior a 250 m 2 (CR, arts. 183 e 191).

O art. 186 da Constituição Federal descreve critérios de atendimento da


função social da propriedade rural:

Art. 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,


simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I — aproveitamento racional e adequado;
II — utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente;
III — observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV — exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalha-
dores (BRASIL, 1988, documento on-line).

Função social da propriedade


Diante da relevância que a ideia de função social da propriedade alcançou na
contemporaneidade, podemos dizer que ela passa a se confundir com o próprio
conceito de direito da propriedade, posto que não há mais como compreender
esse direito real sem sua conformação social.
Tópicos fundamentais de propriedade 11

O enunciado nº. 507 das Jornadas de Direito Civil aponta que:


Na aplicação do princípio da função social da propriedade imobiliária
rural, deve ser observada a cláusula aberta do § 1º do art. 1.228 do
Código Civil, que, em consonância com o disposto no art. 5º, inciso
XXIII, da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcio-
nalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do
trabalho (BRASIL, 2002, documento on-line).

A manifestação de função social passa a preponderar, portanto, nas concep-


ções que consideram o direito de propriedade como ilimitado e incondicionado.
Conforme Rizzardo (2016, p. 169), “Pode-se afirmar que a propriedade perde
o caráter egoístico originário”.
Gustavo Tepedino, por sua vez, indica que a consagração da função so-
cial da propriedade fez a propriedade ser considerada uma situação jurídica
complexa, não mais um mero direito subjetivo, pois sua valoração somente
pode ser tomada em circunstâncias concretas:

A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder ten-


dencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de
qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que,
até um certo ponto, o proprietário teria espaço livre para suas atividades
e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do con-
teúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses
extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurí-
dica de propriedade. Por outras palavras, no panorama constitucional, a
propriedade privada deixa de atender apenas aos interesses proprietários,
convertendo-se em instrumento para proteção da pessoa humana, de tal
sorte que o exercício do domínio há de respeitar e promover situações
jurídicas subjetivas existenciais e sociais por ele atingidas. Consequente-
mente, os poderes concedidos ao proprietário só adquirem legitimidade na
medida em que seu exercício concreto desempenhe função merecedora de
tutela. Daí decorre que, quando certa propriedade não cumpre sua função
social, não pode ser tutelada pelo ordenamento jurídico (TEPEDINO;
MONTEIRO FILHO; RENTERIA, 2020, p. 97).
12 Tópicos fundamentais de propriedade

Assim, os mesmos autores terminam por concluir que o direito de proprie-


dade passa a ser moldado pela função social da propriedade: “A função social
parece capaz de moldar o estatuto proprietário na sua essência, constituindo
o título justificativo, a causa de atribuição dos poderes do titular, ou seja,
o fator de legitimidade do exercício da própria liberdade, qualificando-a e
justificando a atuação do proprietário” (TEPEDINO; MONTEIRO FILHO;
RENTERIA, 2020, p. 97).

BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União,


Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 27 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº. 5.709, de 7 de outubro de 1971. Regula a aquisição de imóvel rural por
estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no
Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 out. 1971. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5709.htm. Acesso em: 27 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº. 6.634, de 2 de maio de 1979. Dispõe sobre a faixa de fronteira, altera o
decreto-lei nº. 1.135, de 3 de dezembro de 1970, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 3 maio 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/L6634.htm. Acesso em: 27 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial
da União, Brasília, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 10 abr. 2020.
GOMES, O. Direitos reais. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
PEREIRA, C. M. da S. P. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 27. ed. Rio
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RIZZARDO, A. Direitos das coisas. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
TARTUCE, F. Direito civil: direito das coisas. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 4 v.
TEPEDINO, G.; MONTEIRO FILHO, C. E. do R.; RENTERIA, P. Fundamentos do direito civil:
direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2020. 5 v.
VENOSA, S. de S. Direito civil: reais. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
Tópicos fundamentais de propriedade 13

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