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Crime de sonegação fiscal

Fábio Bittencourt da Rosa

Sumário
1. A espécie do tipo. 2. O elemento subjetivo.
3. O resultado. 4. Dolo específico e tentativa. 5.
Concurso aparente de leis. 6. O crime como fato
gerador. 7. Questões incidentes. 8. Conclusão.

1. A espécie do tipo
Se o Direito emerge da necessidade de
regulação das relações sociais com vista à
harmonia e ao progresso, o Direito Penal jus-
tifica-se diante da intervenção do Estado
destinada a evitar o grande dano.
Baseia-se o Direito Penal moderno no
conceito de culpa.
Portanto, o endereço da norma penal é,
única e exclusivamente, o ser humano,
capaz de imputação moral já que dotado de
livre arbítrio.
Sendo assim, o Direito Penal regulamenta
comportamentos do homem; sempre uma ação
ou omissão de que possa decorrer um dano,
ou pelo menos um perigo de dano, a alguém.
O tipo penal, então, é descrição de
conduta.
Ora, a ação é representada pelo verbo na
oração, em vista do que o verbo constituirá
o núcleo do tipo penal.
No furto, por exemplo, o núcleo é subtrair.
Ocorre, porém, que determinadas condu-
tas criminosas podem concretizar-se por di-
versas formas. O legislador, então, fica em
dificuldade porque, não abrangida a situa-
Fábio Bittencourt da Rosa é Juiz do Tribunal ção fática pelo tipo, inexistirá a subsunção
Regional Federal da 4ª Região. e, pois, impossível a punição.
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Surge a necessidade de se prever mais O crime de sonegação fiscal, como pre-
de um núcleo para evitar-se que a ação dele- visto nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de
téria permaneça fora do âmbito de incidên- 27-12-90, caracateriza-se por um tipo penal
cia da regra penal. múltiplo na última espécie examinada.
O exemplo típico é o tráfico de entorpe- Define-se o delito pela ação de suprimir
centes. O artigo 12 da Lei nº 6.368/76 prevê ou reduzir tributo por meio de uma variada
18 núcleos. Dificilmente alguma pessoa que gama de comportamentos: omitir informação,
esteja ligada fisicamente a substâncias fraudar a fiscalização, elaborar documento
tóxicas possa ficar de fora da eficácia da falso, etc.
definição legal de tráfico, como se viu. Logicamente, para dizer-se consumado
Em regra, o tipo múltiplo, que contém o crime, é preciso que todos os elementos do
vários núcleos, distribui os mesmos no caput, conjuntamente com algum daqueles
próprio artigo de lei, como o exemplo definidos nos incisos dos citados artigos,
mencionado. estejam presentes.
Pode ocorrer, entretanto, que se disci-
plinem formas equiparadas. O estelionato, 2. O elemento subjetivo
exemplificativamente, é constituído por
fraude destinada a obter proveito próprio No artigo 18, parágrafo único, do Código
ou de outrem com prejuízo alheio. Entre- Penal brasileiro, vem previsto o princípio
tanto, as seis hipóteses do § 2º do artigo 121 da excepcionalidade da culpa: salvo os casos
do Código Penal brasileiro se referem a expressos em lei, ninguém pode ser punido por
comportamentos próprios, que se presumem fato previsto como crime, senão quando o pratica
fraudulentos, equiparando-se ao estelionato. dolosamente.
Realizado o tipo de uma forma equipa- Os artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 não
rada, o autor responderá pelo crime com a prevêem forma culposa. Logo, são puníveis
pena ao mesmo cominada. Não é o que acon- apenas quando praticados com dolo.
tece com as qualificadoras. Atente-se para Poderia o crime de sonegação fiscal ser
que o artigo 2º da Lei nº 8.137/90, que exami- consumado com dolo eventual?
naremos neste trabalho, descreve formas Sabe-se que tal espécie de dolo acontece
equiparadas de sonegação fiscal. quando o autor orienta sua vontade numa
Uma terceira espécie de multiplicidade direção (resultado criminoso ou não) mas,
no núcleo do tipo penal pode verificar-se diante da previsão da conseqüência dessa
quando há um núcleo fundamental, que vem sua ação, anui quanto à ocorrência da
complementado por núcleos diversificados. mesma (resultado criminoso).
Podemos citar como exemplos os artigos Se o indivíduo quer uma ação lícita
175, 260, 273 e 284 do Código Penal brasi- (caçar), porém prevê a possibilidade de
leiro. Veja-se a redação do último: causar dano criminoso, e assume o risco de
“Art. 284. Exercer o curandeirismo: fazê-lo, age com dolo eventual. Do mesmo
I – prescrevendo, ministrando ou modo, se quer matar alguém, e prevê a
aplicando, habitualmente, qualquer probabilidade de matar também outra
substância; pessoa, anuindo quanto ao segundo resul-
II – usando gestos, palavras ou tado, que não deseja diretamente.
qualquer outro meio; Penso que é possível a consumação do
III – fazendo diagnósticos.” crime de sonegação fiscal com o chamado
O núcleo fundamental é exercer e os com- dolo indireto, pelo menos em alguns dos
plementares prescrevendo, usando, fazendo. incisos dos dispositivos já referidos.
Esse tipo prevê a consumação de um fato Examinemos algumas hipóteses dos
delituoso por meio de múltiplas práticas. artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90.
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No inciso I do artigo 1º, se o empresário produção do resultado, sofre uma
omite informação acabando por suprimir segunda e nova modificação. Opera o
tributo, pratica o delito. Se a omissão resultado, portanto, como fato natural,
derivou de dúvida sobre a obrigatoriedade na esfera da realidade“1.
de fazê-lo, mas houve assunção do risco de Essa modificação se realiza pela afetação
afetar o erário, punível o crime com dolo do bem jurídico tutelado pela norma, seja
eventual. pelo dano propriamente dito seja pelo perigo
No inciso IV do artigo 1º, parece haver de dano que o mesmo sofre.
expressa previsão do dolo eventual. Se o O resultado perigo é excepcional no
agente elabora documento que não sabe que crime de sonegação fiscal. A regra é a
é falso, mas deve saber que o é, responde pelo exigência de supressão ou redução do
crime. Essa expressão é utilizada na legis- tributo com real prejuízo ao erário. A ação
lação penal para evidenciar a existência de delituosa sonega do estado a receita tribu-
dolo indireto. Como exemplo, podem ser tária devida. Deixa de haver o aporte finan-
citados os artigos 130 e 180, § 1º, do Código ceiro para fazer frente às despesas orçamen-
Penal brasileiro. tárias. O dano é real.
No inciso V do artigo 1º, se o comerciante, Todas as hipóteses do artigo 1º contem-
por exemplo, deixa de emitir nota fiscal por plam resultado de dano. As ações somente
simples desleixo, assumindo o risco das são puníveis se tiver decorrido supressão ou
conseqüências de seu ato, e redução de redução de tributo.
tributo decorre, a imputação será por dolo Assim, se foi inserido elemento inexato
indireto. Isso, evidentemente, se não tiver em livro exigido pela lei fiscal, mas disso
acontecido a exigência da autoridade ainda não resultou supressão ou redução
prevista no parágrafo único desse artigo 1º. de tributo, não poderá falar-se em crime
No inciso IV do artigo 2º, do mesmo consumado. É que ainda não estarão
modo. Se, por descaso ou mesmo por incom- preenchidos todos os elementos da definição
petência administrativa, se deixar de aplicar legal. Terá sido realizado o núcleo do
incentivo fiscal, havendo redução de tributo, complemento, porém não do núcleo prin-
haverá o crime atribuível a título de dolo cipal do tipo.
eventual. No inciso I do artigo 2º, o resultado
Nas outras hipóteses dos artigos em poderá ser o perigo. Feita a declaração falsa
comentário, inexiste certeza a respeito da com o fim de eximir-se do pagamento do
punição com dolo indireto. tributo, estará subsumido o tipo, mesmo que
Em alguns, parece clara a impossibili- dano inocorra, ou seja, que não tenha o
dade. Por exemplo, o inciso II do artigo 1º. agente logrado eximir-se da tributação. No
Fraudar envolve um conceito de má-fé, caso, o erário terá corrido perigo em sua
intenção de ludibriar, de falsear a verdade. integridade.
Isso é incompatível com vontade indireta
para a prática do resultado, ou seja, anuên- 4. Dolo específico e tentativa
cia. Ninguém deseja algo lícito e assume o
A expressão dolo específico é equívoca. Pa-
risco de fraudar, porque para consegui-lo
rece contrapor-se a dolo genérico, que cons-
está implícito na finalidade da ação o
titui expressão pouco técnica.
resultado criminoso.
Tais palavras significam, em verdade, o
que se chama elemento subjetivo do tipo.
3. O resultado Luis Jiménez de Asua alertava que
Segundo Everardo da Cunha Luna, “essa distinção de dolo genérico e dolo
“a ação representa uma modificação específico é insustentável, havendo
do mundo exterior, o qual, com a desaparecido a tese do dolus generalis,
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que surge como conseqüência da intenção de vingar-se dos sócios da socie-
doutrina formada em torno ao corpo dade que administra. Descoberto o fato, se
do delito”2. dano ainda não resultou ao erário, terá o
A Lei nº 4.729, de 14-7-1965, em seu mesmo corrido perigo, destacando-se no
artigo 1º prevê a tipificação do crime de caso o crime tentado. Acaso, após a saída
sonegação fiscal. O dispositivo contempla, do gerente, o documento for utilizado, com
em cinco incisos, condutas que constituem a completa ignorância dos sucessores sobre
o referido crime. o vício do ato, e a supressão do tributo se
Se examinarmos esses tipos, constata- evidenciar, o gerente responderá pelo crime
remos nos quatro primeiros incisos as consumado de sonegação fiscal.
expressões com a intenção de (incisos I e II), Todavia, a interpretação é diversa quanto
com o propósito de (inciso III) e com o objetivo ao artigo 2º da Lei nº 8.137/90. É que tal
de (inciso IV). regra não constitui tipo múltiplo, porém
Tais expressões indicam a existência de forma equiparada. Cada inciso contém uma
elemento subjetivo do tipo. Quer dizer, a descrição completa. Assim, deixar de
declaração falsa, a inserção de elementos aplicar incentivo fiscal (inciso IV) é crime,
inexatos, a alteração de faturas ou a emissão mesmo que não resulte redução ou supres-
de documentos graciosos não caracterizam são de tributo, e ainda que o ato não tenha
crime se no dolo do tipo não estiver contida sido praticado com tal finalidade.
a específica intenção de eximir-se ou No inciso I do citado artigo 2º, existe um
exonerar-se do pagamento do tributo, de elemento subjetivo do tipo, porque a decla-
fraudar a Fazenda Pública ou de obter ração falsa é praticada para eximir-se de
dedução de tributos. pagamento de tributo. Não comprovada essa
No inciso V do artigo em referência, não intenção especial, será atípica a conduta.
existe o denominado dolo específico. Entretanto, essa é a única hipótese de dolo
Ocorre que a Lei nº 8.137, de 27-12-1990, específico prevista no referido artigo 2º.
em seus artigos 1º e 2º, definiu os crimes Consoante já se observou, é possível a
contra a ordem tributária, com revogação tentativa de sonegação fiscal.
implícita do artigo 1º da Lei nº 4.729/65. Todos os comportamentos do artigo 1º
O artigo 1º da Lei nº 8.137/90 é um tipo da Lei nº 8.137/90 indicam a existência de
múltiplo, conforme já examinamos. Em crime material em que o resultado é um dano
nenhum dos seus incisos descreve elemento ao erário, porque se reduz ou suprime o
subjetivo do tipo. Logo, exemplificativa- pagamento de tributo.
mente, omitir informação à autoridade Se a conduta estiver direcionada para o
fazendária, com decorrente redução de resultado e for apta a obter o mesmo, se dano
tributo, subsume a figura típica, sem se inocorrer, pelo menos perigo terá corrido a
indagar se houve intenção especial de integridade da receita tributária e, em tal
reduzir tributo. O comportamento se insere hipótese, será punível a tentativa.
no dolo do tipo. E, assim, se o sonegador Entretanto, os casos dos incisos do artigo
age com dolo eventual, ou seja, omitindo a 2º da Lei nº 8.137/90 merecem análise
informação sem intenção de reduzir tributo, acurada.
mas tal comportamento for capaz de colocar No inciso I, prevê-se o perigo como
em risco o erário, tentativa de sonegação fiscal resultado. Feita a declaração falsa com o fim
será punível. Acaso aconteça a redução do de eximir-se do pagamento do tributo,
tributo, estará consumado o delito. mesmo que essa declaração ainda não tenha
Pode ocorrer que determinado gerente surtido efeito, já terá se consumado o delito.
resolva praticar uma das condutas descritas Logicamente, a falsidade deverá conter
no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 com a potencialidade lesiva ao erário. Se for
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grosseira, incapaz de enganar, constituirá Penal), supõe a existência de crime de mera
meio inidôneo e o crime será impossível, conduta, que não admite tentativa, como na
afetando a tipicidade. espécie do inciso II antes comentada.
Penso que é inaceitável falar-se em No entanto, sob as formas de pagar ou
tentativa nos crimes de perigo, porque receber, o delito admitirá a tentativa. Se o
exatamente o que fundamenta a punibili- pagamento ou o recebimento foi impedido,
dade do crime tentado é a periclitação do quando a situação viabilizava sua realiza-
bem jurídico tutelado, quando se inicia a ção, terá corrido perigo o erário, justifican-
fase de execução. Ora, perigo de existir perigo do-se a apenação.
constitui situação estranha à regulação penal, No inciso IV, o primeiro núcleo deixar de
porque seria próprio das contravenções, que aplicar é, da mesma forma que o inciso II, um
não admitem tentativa. crime omissivo impróprio. Há um momento
O inciso II trata do chamado crime determinado para a aplicação. A omissão
omissivo impróprio, lesão a dever gerado consumará o crime que, desse modo, é
pela lei. Parece evidente que o resultado será formal e não admite a forma tentada.
o dano, em virtude da falta de aporte aos Porém, o outro núcleo, que é aplicar em
cofres do tesouro. Não basta omitir o desacordo, oportuniza o crime tentado.
recolhimento, é preciso que tenha havido Por fim, o inciso V admite a tentativa, já
desconto ou cobrança. Isto é, houve dispo- que o chamado caixa dois opera efeito dele-
nibilidade dos valores pelo empresário e, no tério contra a Fazenda na medida em que
tempo devido, omitiu-se o recolhimento. há movimento contábil paralelo, frustrando
É muito difícil a prova da inexistência a fiscalização. Se o ato flagrado é de
da disponibilidade do dinheiro pelo empre- confecção do programa, estamos diante de
sário, que acaba respondendo pela conduta fase meramente preparatória, porque ainda
delituosa. A jurisprudência tem aceito que não há perigo de frustração das atividades
a decretação da falência contemporanea- fiscalizadoras. Todavia, se o programa está
mente ao fato imputado da omissão é sendo instalado para operar, terá sido
indicador da carência de disponibilidade. iniciada a execução e, portanto, viável a
E, não havendo o que recolher, obviamente tentativa se a cadeia causal for interrompida
impossível punir-se a omissão, porque ela por circunstância alheia à vontade do agente.
não pode existir.
A omissão de recolhimento de tributos
caracteriza crime formal. Na data aprazada, 5. Concurso aparente de leis
deixando-se de recolher o tributo, estará Os primeiros quatro incisos do artigo 1º
consumado o crime. Acaso, no dia anterior, da Lei nº 8.137/90, bem como o inciso I do
tenha o empresário manifestado a vontade seu artigo 2º, prevêem a prática de falsida-
de não recolher, mas no dia imediato esse des como elementos dos tipos.
recolhimento tenha sido feito, a conduta será Tem-se falado que seria impunível o
extrapenal. Todavia, recolhidos os valores falsum, porque constituiria meio para a
no dia posterior, o crime estará consumado, prática da sonegação fiscal. Dessa maneira,
podendo falar-se em arrependimento que, ficaria subsumido no crime-fim.
eventualmente, poderá constituir causa de Cogita-se da aplicação do mesmo prin-
extinção de punibilidade, como se dá cípio assimilado na Súmula 17 do Superior
na atualidade no direito brasileiro. Tribunal de Justiça, segundo a qual, quando
Por certo, será impossível a tentativa no o falso se exaure no estelionato, sem mais
caso do inciso II em referência. potencialidade lesiva, é por este absorvido.
No inciso III, há três núcleos. O primeiro, Há, sem dúvida, um engano no princípio
caracterizado pelo verbo exigir, do mesmo aplicável em matéria de solução do conflito
modo que a concussão (artigo 316 do Código aparente de leis penais.
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Na subsidiariedade ou na consunção, o O fato criminoso não pode realizar a
conflito decorre de condutas que subsumem hipótese de incidência, mas o produto do
tipos diversos. E não é esse o caso da sone- crime, como sinal de riqueza, seguramente,
gação fiscal. será tributado.
No crime objeto deste estudo, a falsidade O problema pode ter relevância no que
constitui elemento do tipo. Exatamente por diz respeito à competência para julgamento
isso caracteriza-se como um crime complexo. de determinado crime. Exemplificando: se a
Sabe-se que o crime complexo se identi- sonegação fosse de imposto da competência
fica pela reunião de duas ou mais condutas federal e a ação final não atraísse o exercício
típicas, formando crime especial, ou de da jurisdição da Justiça Federal, como
uma conduta típica acrescida de outros solucionar o problema?
elementos. Como se afirmou, não é possível exigir-
O roubo é furto com violência. O rapto é se respeito à lei fiscal por parte do criminoso
seqüestro com fim libidinoso. Crimes ao praticar a ação delituosa. Não incide IPI
complexos por natureza. sobre o refino de cocaína, nem ICMS por sua
Ora, ditas descrições típicas são espe- venda, ou ITR pelo seu plantio. Tributável é
ciais, como se disse. a renda obtida com a ação delituosa, porque
Então, o princípio a ser aplicado é o da a relevância se dá ao fato econômico.
especialidade. O artigo 3º do Código Tributário Nacio-
Acaso a falsidade reduza tributo (incisos nal menciona que tributo é a prestação
I a IV do artigo 1º) ou tenha por propósito pecuniária que não constitua sanção de ato
eximir-se de seu pagamento (inciso I do ilícito.
artigo 2º), constituirá mero elemento do O que se deve entender, na hipótese, é
crime complexo. E, nesse caso, a norma que o tributo não é a conseqüência direta do
especial derroga a geral. ato ilícito, mas da repercussão econômica
Isso, logicamente, se analisarmos a que ele produz.
falsidade sob o ponto de vista da potencia- Se um indivíduo mata alguém, tal fato
lidade lesiva quanto ao fisco. Porque poderia não gera obrigação tributária, porque a
ocorrer hipótese de concurso formal ou mesma não pode derivar de sanção de ato
material. Por exemplo, se o gerente utilizar ilícito. Todavia, se recebe dinheiro para
o documento falso para reduzir tributo e, matar, o fato econômico ligado ao crime tem
com o mesmo ato, puder realizar seu desejo repercussão no âmbito tributário, já que apli-
de fraudar a sociedade com vantagem cável o artigo 118 do mesmo CTN, segundo
patrimonial. Nessa hipótese, haverá o o qual não importa para a caracterização
concurso formal impróprio entre sonegação do fato imponível a validade jurídica dos atos
fiscal e estelionato.
efetivamente praticados pelos contribuintes.
Incorreto, portanto, é afirmar-se que nunca
6. O crime como fato gerador o crime pode constituir fato gerador de
Questão interessante é saber se o ato tributo.
criminoso pode constituir-se em fato impo- Imagine-se a hipótese de um comerciante
nível e, pois, caracterizar sonegação fiscal. que, falsamente, contrata com alguém a
O mercenário que recebe a paga para a entrega de mercadorias embaladas e, na
prática do crime, e deixa de passar recibo, realidade, nas mesmas, acondiciona cocaína,
comete o crime de sonegação fiscal? E o para disfarçar o tráfico. Se referido comer-
indivíduo que planta maconha e cadastra ciante pagou o ICMS sobre as operações e,
falsamente a plantação para efeito de depois de descoberta a trama e transitada
imposto territorial rural, também incide nas em julgado a sentença condenatória pelo
penas do referido delito? tráfico de entorpecentes, vem a juízo pedir
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repetição do indébito do imposto sob o Penso que o citado parágrafo único
argumento de que o crime não constitui fato caracteriza uma prejudicial. O que preten-
gerador de tributo. Quid juris? A ação será deu o legislador foi evitar que se desse
improcedente porque o pagamento terá sido andamento a processos penais com base em
devido, eis que o objeto da tributação não é acusações falsas. Logo, impõe-se que, antes
o tráfico mas a repercussão econômica que de iniciar o processo, oportunize-se ao
ele gerou em cada operação de circulação acusado provar que não existiu o compor-
da mercadoria. tamento típico.
Isso quer dizer que, eventualmente não
7. Questões incidentes tomada a providência, se o réu comparece
ao processo e confessa a omissão, nulidade
A lei tipificadora, como já se viu, em seu
alguma haverá.
primeiro artigo, trata de incriminar a
Outro problema é o relativo ao diferimento
redução de tributo ou de contribuição social.
da satisfação da obrigação tributária. Pode-
Como se vê, o legislador foi coerente com
se entender que houve redução de tributo?
a especificação das espécies tributárias feita
Entendo que sim, porque os acessórios
pela Constituição Federal, em seu artigo 145.
A discussão em torno da natureza destas como juros não serão pagos.
pouco interessa. A lei foi rigorosa em Ademais, o tributo visa a garantir o
acompanhar o sistema constitucional. custeio do estado. Se não for pago na data
E o empréstimo compulsório poderia certa, o prejuízo à receita será presumido.
acarretar o crime? Obviamente não, exata- Outra questão de conteúdo prático pode
mente pelo motivo antes exposto. O artigo ser examinada.
148 da Magna Carta prevê a criação de Suponhamos que o contribuinte impug-
empréstimos compulsórios, mas não lhe na um lançamento, cujo conteúdo poderia
atribui expressamente a natureza de tributo. ensejar a aplicação da Lei nº 8.137/90. Ao
Desse modo, atípica a conduta que final do processo fiscal, conclui a autori-
viabiliza a supressão ou redução do paga- dade que não houve supressão nem redu-
mento de empréstimo compulsório, porque ção de tributo.
inaplicável a Lei nº 8.137/90. Poderia o juiz receber denúncia pelo
Atente-se para que, no artigo segundo, a mesmo fato, considerado pelo Ministério
lei também se refere apenas a tributo e Público como típico?
contribuição social. Em princípio, parece que a denúncia
Outra questão é saber se o parágrafo haveria de ser rejeitada.
único do artigo primeiro constitui condição Há uma presunção de legitimidade no
de procedibilidade ou prejudicial. ato administrativo. Assim, sob o ponto de
A primeira tem natureza processual. A vista fiscal, haveria ausência do fumus boni
instauração da lide penal depende de um juris para a instauração da ação penal com
esclarecimento ou de manifestação de o recebimento da denúncia.
vontade, como nas ações penais públicas Obviamente, tal não ocorreria se a
condicionadas. Já a prejudicial afeta um dos decisão derivasse de erro crasso do julgador
elementos do tipo e, pois, diz respeito à administrativo, ou restasse provado que fora
própria existência do mesmo. Como admitir- tomada em virtude de ato de corrupção.
se um crime contra o estado de filiação se ain- Nessas hipóteses, fundamentada a
da não se sabe que o acusado é pai da vítima? denúncia, haveria de ser recebida.
O crime do inciso V do artigo primeiro é Ressalte-se que a peça inicial da acusa-
omissão na emissão de nota fiscal ou outro ção teria que atacar o julgamento adminis-
documento, ou seu fornecimento em desa- trativo para quebrar a presunção de legiti-
cordo com a lei. midade.
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8. Conclusão contribuição num serviço público efetivo?
Quem deixaria de incriminar com indigna-
A fragilização do estado moderno pelo
ção o sujeito que, com sua ação fradulenta,
avanço das idéias neoliberais, que se
quebrasse a harmonia de uma administra-
difundem através dos meios de comunica-
ção competente?
ção, tem causado modificações profundas
nas estruturas da comunidade. Todos esses elementos são considerados
no momento da decisão política, na criação
Uma delas, certamente, diz respeito à
da norma tributária, no instante em que o
crescente descrença na instituição do estado,
que é visto como adversário ao invés de contribuinte tem de se sujeitar à imposição,
aliado. O estado está ausente na educação e ou naquele em que o julgador deve aplicar a
saúde, no subsídio, na boa prestação de lei dirimindo a lide fiscal ou penal.
serviço, etc. Por outro lado, desenvolve uma A criminalização deve corresponder a
voracidade tributária, avançando no bolso um sentimento da população. Nesse sentido
dos contribuintes para compensar seus a lição de Sebastian Soler, citado por Alberto
balanços deficitários mercê de políticas Rodrigues de Souza, em seu artigo A
corruptas ou protecionistas. A Seguridade Militância Filosófica e Jurídica de Sebastian Soler
Social também motiva uma tributação (Rev. de Dir. Penal da Fac. Cândido Mendes,
exagerada sem uma resposta à altura na pres- vol. 4, p. 81):
tação de serviços de saúde, ou na manutenção “A lei que deve estribar toda sua
de um sistema previdenciário justo, que eficácia no poder de sanção está
previna o infortúnio dos trabalhadores. perdida, porque o objeto perseguido,
É isso que se difunde por meio da ao sancioná-la, não é o de castigar sua
imprensa. É o quadro que se pinta aos violação, mas o de provocar seu
olhos do povo, causando uma modificação cumprimento, o qual só se alcança
cultural no que diz respeito com o sistema através de uma vontade de acata-
institucional. mento, em si mesma incoercível; quem
Se isso é verdadeiro ou não, o tema obedece a lei fá-lo tão voluntariamente
desborda da motivação deste trabalho. como quem a desacata e menospreza.”
O importante, todavia, é que o fenômeno Tema ligado ao antecedente diz respeito
inaugura uma nova postura na relação à crescente criminalização em matéria de
tributária. Por que pagar tributo para um crimes tributários.
estado que gasta mal, que não cumpre suas A ausência do estado se consubstancia
finalidades? Por que contribuir para a pela omissão no serviço público, às vezes
Seguridade Social se os hospitais não aten- em atividades essenciais, quer pela inexis-
dem a contento e os benefícios previdenciá- tência de servidores, quer pelo pagamento
rios são insuficientes para uma vida digna? de remunerações incompatíveis com a
No Brasil forma-se, cada vez mais, a importância dos cargos, atraindo mão-de-
convicção de que o tributo, além de um obra menos qualificada.
gravame, é um mal, como se fosse uma Daí resulta uma deficiência, por exemplo,
sanção, que se paga sem contraprestação de nos serviços de fiscalização.
qualquer benefício. E, diante disso, as Então, como não se consegue fiscalizar
práticas de elisão são festejadas, e as de os contribuintes, institui-se um tipo penal
evasão já não sensibilizam negativamente a que ameaça a atividade do contribuinte que
consciência do cidadão. foge à tributação. Quer dizer, o crime não
Obviamente, a situação afeta em muito a deriva de uma norma necessária, realizando
criação, a aplicação e a execução de um um valor que merece ser alçado à condição
sistema tributário justo. de tipo criminal. Mas, por utilidade do
Quem não pagaria tributo com satisfação estado incompetente, serve para coagir os
se pudesse identificar a resposta de sua contribuintes faltosos.
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O exemplo típico dessa regulação inade- fraudulenta do contribuinte para lograr a
quada é o crime de omissão de recolhimento vigilância da fiscalização. Porque, nessa
de tributos, ou de contribuições previden- hipótese, poderá o estado ter o melhor
ciárias, que ofende o princípio da subsidia- sistema fiscal que, ainda assim, sofrerá o
riedade em matéria penal. dano. A ilusão do fisco haverá de inspirar o
No comportamento do contribuinte que, legislador penal nessa área.
na data aprazada, deixa de recolher ao Creio que esse é o critério limitador da
erário os tributos recolhidos de alguém, não legitimidade na criação de regras criminali-
existe fraude contra o fisco. Basta o fiscal zantes em matéria tributária.
comparecer à empresa e constatará o fato. Atente-se para que o desaparecimento
Logo, não é necessária a intervenção do do estado tutelar, com o enxugamento da
direito penal, que deve ser a ultima ratio. O administração, não pode ser substituído
direito penal está sendo usado como função pelo direito penal tutelar; já que esta não é
reguladora, quando não o é por natureza. A sua função.
norma deriva de uma realidade, não a
engendra (ubi societas, ibi jus). Só nos
sistemas ditatoriais, em que a vontade do Notas
soberano se impõe, é que o direito é utilizado
para desviar os caminhos das opções
1
LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura jurídica
do crime. Ed. Universidade Federal de Pernambuco.
culturais de um povo. Recife, 1968.
Em matéria fiscal, a criminosidade do 2
ASUA, Luiz Jiménez de . Tratado de Derecho
comportamento há de estar ligada à decisão Penal. Tomo I. Ed. Losada S/A. Buenos Aires, 1964.

Referências bibliográficas conforme original.


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