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História da matematização
da natureza
MILTON VARGAS
A
FILOSOFIA GREGA instituiu uma forma de des-velamento da realidade que
se chamou épisteme theoretike; em outras palavras, uma sabedoria basea-
da em forma de pensar radicalmente nova denominada teoria. Esse foi o
mais rico legado da civilização grega clássica à humanidade. A visão teórica da
natureza como physis, eterna porém localmente sujeita ao processo de geração e
corrupção, deu origem às ciências gregas da natureza. Com o cristianismo, tal
forma de pensar entrou em crise: se o mundo fora criado por Deus, por Ele
poderia ser destruído invalidando as leis da natureza.
Acontece porém que o cristianismo não foi fundado por filósofos, mas por
homens simples e crédulos. Assim, quando se tornou necessário consubstanciar
a fé cristã num corpo de doutrinas coerentemente elaborado, os padres da Igreja
passaram a reinterpretar os princípios da épisteme theoretike em termos de um
Deus único, eterno, perfeito e verdadeiro, governando uma natureza precária.
Tal fato foi possível talvez justamente porque os filósofos gregos estavam já do-
minados – como muito bem o demonstrou Werner Jaeger (1) – pela crença em
uma divindade única, permanente e coerente (to theon). Foi essa crença que
tornou possível a compreensão da physis como algo inteligível. Conseqüente-
mente, as filosofias de Platão e de Aristóteles prestaram-se à reinterpretação cris-
tã monoteísta da teoria grega sem deformá-la radicalmente.
Em suma, o pensamento teórico consiste em ver que por detrás das apa-
rências cambiantes do mundo há uma realidade idêntica a si mesma, não-contra-
ditória e verdadeira, ou falsa, não admitindo meio termo entre a verdade e a
falsidade. É o que nos ensina o poema de Parmênides. Essa nova forma de pen-
sar, inventada por gregos no século VI antes de Cristo, foi transferida ao mundo
ocidental moderno, através da Idade Média, justamente pela Teologia – a teoria
de Deus – baseada na re-interpretação dos princípios da épisteme theoretike. É
verdade que com a derrocada do mundo antigo os homens perderam o interesse
pela natureza, provavelmente devido à crença em seu caráter precário, por acre-
ditarem que estaria sujeita a ser destruída a qualquer momento pela vontade de
Deus. Com o correr do tempo, e com a própria Teologia como reinterpretação
da teoria grega, foi ressurgindo o interesse pela criação divina que era a natureza
e, assim, a partir do final da Idade Média, as ciências da natureza.
Note-se que com o espetacular desenvolvimento da teoria de Deus durante
a Idade Média há um não menos espetacular aperfeiçoamento da Lógica Clás-
Notas
2 Platon. Timée. Critias. Paris, Societé d’Edition “Les Belles Lettres”, 1970.
5 Pierre Duhen. Sozeinta fainomena: Essai sur la notion de theorie physique de Platon
à Galiléi. Annales de Philosophie Crétiene (ser. 4) 79/156-1908. Tradução brasileira
de Roberto de Andrade. Cadernos de História e Filosofia da Ciência - Supl. 1,
Campinas, Unicamp, 1984.
9 Galileu Galilei. Duas novas ciências. Museu Astronomia, Instituto Italiano de Cul-
tura. São Paulo, Ed. Nova Stella, 1988.
10 I. Newton. Mathematical principles of natural philosophy. Chicago, Britannica Great
Books, v. 34, 1978.
11 J.L. Lagrange. Mecanique analytique. Paris, Mattet-Bachelier, gendre et successur
de Bachelier, 1853.
12 P.S. Laplace. Oeuvres completes de Laplace. Paris, Gauthier-Villars, 1884.
13 Id. ibid.
16 S. Carnot. Reflexions on the motive power of fire, and other papers on the second law of
termodynamic by E.Clayperon and R. Clausius. New York, Dover Public. Inc., 1962.
17 Ludwig Boltzmann. Sobre da inevitabilidad del atomismo en las ciencias de la
naturaleza. In: Ensaios de mecanica y termodinamica. Madrid, Alianza Editorial,
1986.
26 S.R. Elliot. Physics of amorphous materials. Longman Scientific and Technical. New
York, John Willey & Sons, 1984.
27 Robert Boyle. The sceptical chymist. In: Breakthroughs in chemistry. New York and
Toronto, New American Library, 1967.
28 Mendeleyev. Grouping of the elements and the periodic law. In: Breakthroughs in
chemistry. New York and Toronto, New American Library, 1967.
RESUMO – O processo pelo qual os fenômenos da natureza vêm sendo expressos por
equações matemáticas tornou-se essencial para a ciência e a tecnologia do mundo atual,
não só para compreendê-los mas também para prevê-los, controlá-los e modificá-los
segundo a conveniência humana. Esse processo teve origem ao surgir na Grécia, no VI
século antes de Cristo, um tipo de pensamento radicalmente novo que veio a se chamar
teoria. Entretanto, somente se estabelece totalmente quando aparece a ciência moderna,
no século XVII da nossa era, com as palavras de Galileu: “o livro da natureza está escrito
em caracteres matemáticos”. Desde então, a matemática deixa de ser tão somente a
técnica de contar, de medir figuras, ou a maneira de contemplar as harmonias do univer-
so, para tornar-se uma forma de analisar os fenômenos naturais quantificados. Os mate-
máticos contemporâneos da Revolução Francesa desenvolveram essa análise por meio de
equações diferenciais, cujas resoluções iriam resolver problemas não só científicos mas
também de engenharia. Disso resultou uma matematização da natureza que vai desde a
geometrização do espaço, por Einstein, até a descoberta dos transistores pelas teorias
matemáticas da física dos materiais. Contudo, a solução dessas equações diferenciais,
dentro dos limites determinados pelas circunstâncias em que o fenômeno natural se dá,
apresenta uma série de dificuldades que impede o ideal de resolver matematicamente
qualquer problema científico ou tecnológico. Somente depois da Segunda Guerra Mun-
dial, a computação eletrônica e as técnicas de simulação matemáticas possibilitadas pelo
cálculo automático tornaram possível a solução de tais equações, já agora expressas em
simbologia extremamente abstrata. Com elas tornou-se possível não só conhecer
detalhadamente os estranhos fenômenos que se passam entre as galáxias do universo,
como resolver problemas técnicos que afetam a vida diária da humanidade. Uma tal
dominância da matematização da natureza no mundo moderno vem transformando ra-
dicalmente a vida humana, tanto do ponto de vista biológico quanto do social e do
econômico. Mas, além disso, veio trazer problemas filosóficos que desafiam as doutrinas
idealistas e as realistas.