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PROCESSOS DE AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

A avaliação psicológica1, até por ser uma área de exclusividade na


actividade do psicólogo, não está isenta de problemas e dificuldades.
Naturalmente que para se estar consciente de todas essas implicações
importa, em primeiro lugar, compreender os seus contornos e contex-
tos de aplicação.
Deixando de fora algumas situações particulares, poder-se-á afir-
mar que qualquer processo na área da psicologia deverá iniciar-se pela
obtenção de um consentimento livre e esclarecido. A avaliação psico-
lógica não se constitui numa dessas excepções. Trata-se de avaliar
dimensões que muitas vezes escapam à consciência dos sujeitos, como
por exemplo alguns traços de personalidade, pelo que a obtenção do
consentimento apresenta contornos específicos.
Algumas das dificuldades mais comuns estão relacionadas com a
forma de devolução de resultados bem como com o tipo de resultados
que se devem fornecer ao sujeito.

1 Simões (1994) entende que o conceito de avaliação psicológica é preferível ao de


psicodiagnóstico já que corresponderá a um conceito mais global e diferenciador em
relação ao modelo médico, a partir da noção de diagnóstico e tratamento psiquiátri-
co. Por esse mesmo motivo não são utilizadas nesta obra termos como “tratamento”,
mas sim “intervenção”. Ainda assim, e por questões práticas, as expressões “avaliação
psicológica”, “exame psicológico” e “psicodiagnóstico” serão utilizadas como sinóni-
mos, deixando de fora outras, como “diagnóstico”, por encaminharem directamente
para o modelo médico.

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8.1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA AVALIAÇÃO


Se existe uma prática comum a quase todas as diferentes áreas da
psicologia é a avaliação psicológica, com ou sem recurso a instrumen-
tos específicos (Bersoff, 1999; Marques, 1998). A relação, paradigma
da intervenção em psicologia, pressupõe uma compreensão do sujeito,
só possível através de uma avaliação que, nas palavras de Eduardo Sá
(1996, p. 151), “fica saudavelmente aquém daquilo que foi sendo
tomado como paradigma da avaliação dinâmica: a descoberta da
verdade”. De facto, uma das questões que, por princípio, se assume
como preponderante na avaliação com recurso a testes psicológicos é
que estes últimos devem ser utilizados como “meios auxiliares de
diagnóstico”. Não se podem nunca substituir à relação entre o profis-
sional e o cliente, dado que, para além das suas evidentes limitações,
que serão discutidas em seguida, poderão distorcer o verdadeiro
objectivo da psicologia: compreender o indivíduo para o ajudar ou,
pelo menos, para potenciar a sua autonomia. Por maior qualidade que
a prova psicológica tenha, nunca prescinde de uma correcta interpre-
tação do psicólogo (Pryor, 1989), pelo que este último deve ser sempre
melhor do que a prova que utiliza (Simões & Almeida, 1998). O psi-
cólogo deve, pois, preocupar-se em ser tão competente na avaliação
como em qualquer outra área da intervenção psicológica, sendo que
isso implica o domínio de competências específicas ao nível da apli-
cação dos instrumentos e da interpretação dos resultados (Knapp &
VandeCreek, 2006). Na prática, levar a cabo um processo de avaliação
psicológica implica, em primeiro lugar, a capacidade para escolher os
instrumentos apropriados ao sujeito e às questões pretendidas;
em segundo lugar, conhecimento e experiência ao nível da aplicação
e cotação dos instrumentos seleccionados; e, finalmente, competência
para interpretar e integrar os resultados de uma forma útil e com-
preensiva. Como refere Simões (1994), o psicólogo será ele próprio
um “instrumento de avaliação”.
É evidente que, por outro lado, deve o profissional basear as suas
conclusões nos resultados da avaliação, estando atento à influência

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que as suas ideias prévias sobre o sujeito possam ter. No fundo, pode
afirmar-se que os resultados objectivos da avaliação deverão servir
para confirmar ou infirmar as hipóteses que se colocaram na sequên-
cia da impressão construída sobre a pessoa durante o processo de
entrevista. Se os dados que foram obtidos acompanharem a opinião
construída, então os resultados estarão sustentados. Caso contrário o
profissional deverá ponderar outras hipóteses do funcionamento do
sujeito e analisar mais de perto as condições em que foi realizada a
avaliação, ponderando a utilização de outros instrumentos a fim de
obter um maior número de dados que facilitem a construção de um
psicodiagnóstico concordante.

8.1.1. Os instrumentos de avaliação psicológica


Os testes psicológicos são, evidentemente, de grande utilidade em
psicologia, pois representam aplicações sistemáticas de alguns princí-
pios relativamente simples para a medição de atributos pessoais tidos
como importantes na descrição e compreensão do comportamento
individual (Murphy & Davidshofer, 1998). Contudo, se o comporta-
mento das pessoas é tão díspar, será lícito afirmar que as variáveis que
o condicionam também o serão. Desta forma, pode afirmar-se que
existirão um sem número de instrumentos de avaliação psicológica
que pretendem aceder a diferentes características da pessoa humana2.
Apesar desta diversidade, existem características comuns que permi-
tem agrupá-los a todos na categoria de testes psicológicos, distin-
guindo-os de uma série de outros instrumentos de suposta avaliação,
mas que carecem de suporte científico.
Segundo Murphy e Davidshofer (1998), os testes psicológicos
possuem três características que os definem: (1) requerem um com-
portamento por parte do sujeito avaliado, ou seja, num teste psicoló-

2 De facto, existem diferentes tipos de instrumentos de avaliação psicológica, que


vão desde a avaliação de traços de personalidade à avaliação cognitiva, passando pela
avaliação neuropsicológica, pela avaliação do desempenho escolar, entre outros. Para
uma mais correcta exploração deste tema consultar Murphy & Davidshofer (1998)
e Cunha, Freitas & Raymundo (1993).

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gico, o sujeito encontra-se sempre a realizar uma qualquer acção; (2)


a amostra do comportamento é sempre obtida sob condições estan-
dardizadas; (3) existem regras estabelecidas para a cotação e/ou para
a obtenção de informação quantitativa correspondente ao comporta-
mento. Mediante estes pressupostos, os testes psicológicos podem
ainda dividir-se em três categorias gerais: (1) testes em que o sujeito
desempenha uma tarefa específica que lhe é solicitada; (2) testes que
envolvem observações do comportamento do sujeito em contextos
particulares; (3) testes em que o sujeito descreve, autonomamente,
atitudes, sentimentos, crenças, interesses ou gostos.
Esta variedade de instrumentos, a ser aplicada nos mais diversos
contextos, suscita implicações éticas complexas. Questões como a
privacidade dos dados obtidos, os conflitos de interesse entre, por
exemplo, uma entidade empregadora e um empregado avaliado, bem
como questões de competência na aplicação e sobretudo na interpre-
tação dos testes são alguns dos exemplos disso mesmo.

8.2. O CONSENTIMENTO INFORMADO NA AVALIAÇÃO


PSICOLÓGICA
A natureza essencial dos procedimentos utilizados na avaliação
psicológica é a sua objectividade e o seu carácter científico. No entanto,
não deve ser esquecido que o objecto avaliado é uma pessoa, pelo que
deve ser dado espaço à sua expressão como tal (Marques, 1998).
Os procedimentos e regras estabelecidos serão, seguramente, sentidos
de forma diferente por cada pessoa, pelo que uma inflexibilidade na
forma como decorre o processo poderá ter resultados paradoxais.
A ênfase da avaliação psicológica deve ser colocada na interpretação
realizada pelo psicólogo, tendo em consideração os resultados mas
também todo um outro conjunto de dados obtidos através da relação
construída e das observações efectuadas, o que diminui a objectivi-
dade do processo. Logo, se os dados em colecção não são totalmente
objectivos os resultados da avaliação não poderão ser inquestionáveis

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e absolutos. Daqui decorre a importância acrescida da obtenção do


consentimento informado na avaliação psicológica.
Torna-se prioritário discutir todas as limitações inerentes a um
processo deste tipo, incluindo as questões relacionadas com a priva-
cidade (American Psychological Association [APA], 2002). Pretende-se,
deste modo, evitar que as pessoas possam ficar desiludidas ou mesmo
revoltadas com os resultados de avaliações que muitas vezes não pro-
curaram e lhes foram propostas ou mesmo impostas. Alguns exemplos
paradigmáticos dizem respeito a processos de orientação vocacional,
cujos resultados podem ser interpretados pelos sujeitos como verda-
des quase absolutas, condicionando-os nas suas escolhas académicas
ou profissionais, das quais mais tarde se poderão vir a arrepender. Não
é aceitável que um psicólogo deixe passar uma imagem de que os
resultados de uma qualquer avaliação psicológica são absolutamente
determinantes e inquestionáveis ou, pelo contrário, que não têm
nenhum tipo de valor. As limitações da avaliação em psicologia devem
ser discutidas e esclarecidas antes do início do processo e devem ser
deixadas bem claras aquando da entrega dos resultados.
Acresce que quanto maior é a participação activa da pessoa no seu
processo de avaliação mais congruentes parecem ser os resultados
(Knapp & VandeCreek, 2006). Por isso mesmo, quando o processo é
solicitado por uma terceira pessoa, incluindo os processos legais,
o consentimento informado deve ser obtido de igual modo, devendo
ser discutidas as razões para a avaliação, a utilização dos resultados e
as suas possíveis consequências, qual a informação pretendida e a
quem será revelada (APA, 2002).
Não se trata de o profissional não assumir as responsabilidades
pelo seu trabalho, mas tão só limitar as possibilidades de a pessoa fazer
opções baseadas em respostas quase miraculosas e promessas de feli-
cidade garantida. A psicologia serve para promover o auto-conheci-
mento da pessoa e não para lhe fornecer uma identidade artificial
baseada em facetas escondidas e misteriosas da sua personalidade,
descobertas magicamente pelo psicólogo. Como afirma Weiner

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(1989), o profissional deve ter cuidado para não se deixar influenciar


e dominar pela necessidade em afirmar as suas opiniões e a sua capa-
cidade técnica, tirando conclusões que não possam ser justificadas e
documentadas.

8.2.1. Limitações dos instrumentos utilizados


A legitimidade da informação produzida na avaliação psicológica
transporta para uma outra problemática relevante existente em Por-
tugal. Num país de pouco mais de dez milhões de habitantes, os estu-
dos psicométricos com vista à adaptação dos testes psicológicos são
difíceis de levar a cabo, dado que exigem muitos recursos e tornam-se
pouco rentáveis. Desta forma, existe a tentação de utilizar instrumen-
tos de avaliação psicológica que não estão adaptados, estandardizados
e aferidos para a população portuguesa, o que retira legitimidade ao
processo (Simões & Almeida, 1998) e torna muito complexa a obten-
ção de um consentimento realmente informado. Tal prática não pode,
nem deve, merecer aceitação por parte do profissional de psicologia.

8.2.1.1. Restrições ao uso das provas. Outro problema que contribui


decisivamente para a realidade descrita é o acesso facilitado aos testes
psicológicos, o que diminui a rentabilidade da aferição dos mesmos.
Se por um lado as empresas que se dedicam à comercialização destas
provas exigem, normalmente, que a pessoa que os adquire ateste sobre
a sua formação em psicologia, a verdade é que o empréstimo e a repro-
dução destes materiais catalisam o exercício irresponsável da avaliação
psicológica por pessoas não qualificadas.
Se poderá ser possível sensibilizar os psicólogos ou mesmo regular
o acesso às provas mediante critérios de competência na sua utilização,
mais difícil parece ser o controlo do seu uso por outros profissionais.
A competência na avaliação psicológica implica um conhecimento
criterioso por parte do profissional das funções psicológicas que o
teste pretende aceder, das conclusões diagnósticas que podem ser
inferidas, bem como do seu grau de fiabilidade e do tipo de compor-

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tamentos que pode predizer (Weiner, 1989). Implica ainda conheci-


mentos e prática na aplicação e cotação do mesmo, que devem ser
rigorosas (Knapp & VandeCreek, 2006).
Terão razão Simões e Almeida (1998) quando afirmam que a uti-
lização de provas psicológicas por pessoas sem formação e treino em
psicologia, ao que se pode acrescentar sem competências específicas
na interpretação de determinados instrumentos, contribui para uma
depreciação das mesmas, podendo prejudicar seriamente as pessoas
e as instituições envolvidas. A avaliação psicológica deve estar restrin-
gida aos especialistas de psicologia, sendo responsabilidade do psicó-
logo evitar o seu uso por parte daqueles que não têm competências
específicas na selecção, administração e interpretação dos instrumen-
tos. Do mesmo modo, os psicólogos terão igualmente a responsabili-
dade de evitar a divulgação e consequente banalização dos testes
psicológicos junto do público.
Também por isso deve existir um grande cuidado por parte dos
psicólogos a quem é solicitada a revisão de um processo de avaliação
levado a cabo por um colega. Exemplos disso mesmo são os processos
de custódia parental (Knapp & VandeCreek, 2006). O profissional tem
que estar ciente das suas limitações pelo facto de não ter avaliado
directamente, neste caso, a criança. Se os testes psicológicos são “meios
complementares de diagnóstico”, então a sua simples interpretação
directa será sempre redutora. Disso deve dar conta o profissional como
forma de tornar claras as limitações deste exercício, tentando limitar
a sua acção a comentários sobre a relação entre os resultados do teste
e a sua interpretação, apontando os erros de cotação ou de interpre-
tação que, na sua opinião, possam existir (Knapp & VandeCreek,
2006).

8.2.1.2. Validade e fiabilidade. O desenvolvimento de instrumentos


de avaliação psicológica é, como já foi referido, uma tarefa árdua e,
por isso, dispendiosa. Por vezes, são precisos anos para se conseguirem
os dados suficientes que sustentem a sua utilidade profissional (Knapp

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& VandeCreek, 2006). Deve ser produzida documentação suficiente


que descreva os propósitos do instrumento, metodologias de admi-
nistração, regras de notação e cotação e dados psicométricos que
sustentem a validade e fiabilidade dos resultados no teste. Qualquer
documento, referenciado como teste, que não disponha deste tipo de
informação, no fundo um manual, carece de utilidade profissional.
Então, para além da sua não utilização por parte dos psicólogos, será
necessária uma referência à inutilidade científica desse instrumento
nomeadamente quando este surge em canais de divulgação como a
internet, sugerindo a sua relação com um instrumento de avaliação
psicológica.
Outra questão sensível refere-se à antiguidade dos instrumentos.
Como é sabido, a sociedade evolui e as pessoas transformam-se, pelo
que os testes vão perdendo validade e especificidade ao longo do
tempo. Então, há que ter algum cuidado na aplicação de versões anti-
gas procurando as mais actuais ou então outros instrumentos equiva-
lentes. O aperfeiçoamento de cada instrumento constitui-se como
uma exigência e pode contribuir decisivamente para o progresso da
investigação em avaliação psicológica (Simões, 2005). Será difícil
definir a longevidade de um instrumento, mas o bom senso poderá
ajudar. Será desejável a utilização das versões mais recentes uma vez
que estas são normalmente mais específicas e refinadas quanto à sua
validade (Knapp & VandeCreek, 2006).

8.3. A DEVOLUÇÃO DOS RESULTADOS


Tal como para qualquer outro tipo de informação de saúde,
os resultados da avaliação psicológica são propriedade do sujeito
avaliado e, por isso mesmo, devem ser entregues na forma de um
relatório escrito, onde devem constar os resultados objectivos e a
interpretação dos mesmos, acrescido de um prognóstico e de um
conjunto de sugestões no sentido da promoção do bem-estar da pes-
soa. Como bem referem Simões e Almeida (2004), o relatório psico-

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lógico deve ser uma consequência incontornável de um processo de


avaliação psicológica. A entrega desde relatório deverá ser mediada
pela respectiva discussão em conjunto entre o psicólogo e o cliente
como forma de promover a compreensão do mesmo. Ainda assim,
o relatório deve ser escrito recorrendo a uma linguagem cuidada no
sentido de diminuir a possibilidade de interpretações erróneas.
De acordo com a Lei de Protecção de Dados Pessoais (2005), a pes-
soa é considerada proprietária dos meios complementares de diagnós-
tico que tenha realizado, pelo que os resultados do processo de
avaliação psicológica deverão ser, do mesmo modo, propriedade do
sujeito avaliado3. Por isso mesmo, a APA, no seu código de 2002,
introduziu a obrigação de o psicólogo fornecer ao seu cliente os valo-
res da avaliação, mediante um pedido escrito. Nestes dados incluem-
-se os resultados brutos e estandardizados, as respostas às questões ou
estímulos dos testes bem como as notas obtidas pelo profissional,
correspondentes ao comportamento do cliente durante a avaliação.
O Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses defende,
de uma forma mais simples, no artigo 4.8. “Comunicação dos resul-
tados”, que o cliente tem direito de acesso aos resultados da avaliação
bem como à informação adicional relevante para a sua interpretação.
Em ambos os códigos é defendido que os materiais do instrumento de
avaliação, como sejam os manuais, protocolos e questões ou estímulos
dos testes, não devem estar acessíveis aos clientes, por forma a limitar
a sua utilização abusiva.
Tal como já foi feita referência no capítulo anterior, o ideal seria
conversar com a pessoa sobre a sua necessidade em ter acesso aos
resultados objectivos dos testes aplicados. Claro que o psicólogo não
poderá recusar-se ou mesmo dificultar a entrega desses resultados,
mas deve enfatizar o facto de os resultados só terem utilidade se inter-
pretados por um profissional de psicologia.

3 Este assunto já foi debatido no capítulo 7.4 – “Os registos e os resultados das ava-
liações”.

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Na verdade, e nos casos em que os clientes desejam uma segunda


opinião, seria mais positivo se os resultados fossem entregues direc-
tamente a outro psicólogo, ainda que seja de admitir que esta hipótese
se encontra sustentada numa perspectiva mais paternalista sobre o
cliente do que no respeito pela sua autonomia. Disso mesmo dá conta
o Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses no artigo
4.11. “Relações profissionais”, ao defender essa prática no sentido de
evitar interpretações incorrectas por parte do cliente e de assegurar a
segurança e a integridade dos materiais de avaliação.
Existem, contudo, algumas excepções à obrigação da devolução
dos resultados que podem ser consideradas, nomeadamente no con-
texto de processos judiciais ou em sede de avaliações solicitadas por
entidades externas à pessoa, como empresas ou outro tipo de institui-
ções. Ainda assim, e nestes casos, a responsabilidade do psicólogo para
com o sujeito avaliado não diminui (Knapp & VandeCreek, 2006).
Nestes casos, e sempre que possível, o psicólogo deve partilhar o resul-
tado da avaliação, sendo que deverá, sem excepções, discutir no início
do processo as condições do mesmo, nomeadamente as questões de
privacidade e as questões relacionadas com os objectivos da avaliação.

8.3.1. Os testes informatizados


Outra questão pertinente está relacionada com os programas infor-
máticos destinados à cotação e mesmo à interpretação dos instrumen-
tos. Se, por um lado, estes programas poupam tempo e esforço, por
outro, não devem servir para desresponsabilizar o psicólogo. Todavia,
Bersoff e Hofer (1991) defendem que nos casos em que a interpretação
é baseada em dados empíricos e não num julgamento clínico, e desde
que não existam motivos para acreditar que os dados são inválidos,
será melhor aceitar a interpretação informática sem alterações. Claro
que em termos objectivos o computador poderá suplantar determina-
dos tipos de interpretações humanas (Matarazzo, 1986). Contudo, esta
argumentação pode ir no sentido de justificar a possibilidade de os
testes poderem ser utilizados por pessoas sem formação em psicologia.

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No entanto, tal deve ser evitado. Se a base do trabalho em psicologia


assenta na premissa de que a pessoa é um ser único, sendo a relação a
única forma razoável de poder aceder à sua compreensão individual,
não parece aceitável uma avaliação que não comporte esta dimensão
(Russ, 2001), pelo que o psicólogo será sempre o primeiro responsável
pelo processo.
Aliás, Matarazzo (1986) defende que se o mesmo instrumento,
aplicado fora do contexto de um processo de avaliação psicológica, for
interpretado por diferentes profissionais as conclusões tiradas serão,
com grande probabilidade, diferentes, ainda que plausíveis, o que
evidencia mais ainda a importância da relação no processo e as limi-
tações dos resultados dos testes, quando não considerados no contexto
de um protocolo de avaliação psicológica. Desta forma fica claro que
os dados emanados das interpretações realizadas por computador não
devem ser utilizados como um produto final, mas sim como mais um
conjunto de resultados destinado à interpretação do psicólogo, com
vista à elaboração do relatório de avaliação (Creek & VandeCreek,
2006; Walker & Myrick, 1985).

8.3.2. A comunicação da informação


A forma como os resultados são transmitidos à pessoa deve ser
objecto de cuidados especiais. Em primeiro lugar, tal como no pro-
cesso de obtenção do consentimento informado, deve existir uma
atenção especial em relação ao tipo de linguagem utilizada, que deve
ser adaptada às características do cliente. Ainda, deve ser tido em
consideração que as informações comunicadas não são neutras para
a pessoa dado que comportam consequências emocionais para o
indivíduo (Simões & Almeida, 1998). Logo, a utilização de “rótulos”
psicopatológicos deve ser limitada, de forma a evitar estigmatizar a
pessoa, ou mesmo, para não se correr o risco de apresentar um quadro
inalterável que poderá contribuir para eternizar o problema vivido.
Claro que o diagnóstico facilita a comunicação com outros profis-
sionais, sobretudo com os médicos, podendo mesmo tornar-se fun-

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damental em contextos médico-legais. Desta forma, e nestes casos,


deve tentar-se o princípio aristotélico da temperança e optar-se por
um meio-termo, precisando o alcance, os limites e o grau de incerteza
dos dados comunicados (Simões & Almeida, 1998).
Todas estas questões evidenciam as grandes dificuldades existentes
para uma aplicação eticamente adequada da avaliação psicológica. Não
parece estranho que assim seja. Trata-se de avaliar características que,
muitas vezes, não são observáveis nem pelo próprio, pelo que é sempre
difícil aferir com segurança se será melhor para a pessoa conhecê-las
ou não. Claro que o conceito de pessoa discutido no início desta obra
aponta para a liberdade como a sua característica central, pelo que,
em teoria, a pessoa lidará sempre melhor com a informação do que
com a falta dela. No entanto, a complexidade do funcionamento
humano, nomeadamente do papel das emoções e da razão no processo
decisório, abre portas a muitas dúvidas. Mais, fica claro que é muito
difícil, senão impossível, a avaliação psicológica proporcionar certezas,
sendo que quaisquer que sejam os resultados são baseados em dúvidas,
o que aumenta a complexidade da discussão ética. Contudo, são ine-
gáveis as suas vantagens e a sua utilidade para as pessoas. Logo, e em
conclusão, pode afirmar-se que os psicólogos têm uma responsabili-
dade acrescida, tendo em consideração este desajustamento.
Mais do que nunca, nesta área da psicologia, a competência
assume-se como um princípio fundamental, com vista a atenuar esta
discrepância.

8.4. SUMÁRIO
Î A avaliação psicológica é uma actividade profissional comum
a praticamente todas as áreas da psicologia. Contudo, esta é
baseada, em parte, na subjectividade da interpretação reali-
zada pelo profissional, pelo que isso deve ser tido em conside-
ração como uma limitação da mesma.

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Î Os resultados objectivos da aplicação dos instrumentos de


avaliação psicológica deverão servir para confirmar ou infir-
mar as hipóteses que se colocaram na sequência da impressão
construída sobre a pessoa durante o processo de entrevista.
Î A importância da obtenção do consentimento informado na
avaliação psicológica decorre do facto de os resultados da
mesma não serem inquestionáveis e absolutos.
Î As limitações da avaliação em psicologia devem ser discutidas
e esclarecidas antes do início do processo, assim como devem
ser deixadas bem claras na entrega dos resultados.
Î A psicologia serve para promover o auto-conhecimento da
pessoa e não para lhe fornecer uma identidade artificial
baseada em facetas escondidas e misteriosas da sua persona-
lidade, descobertas magicamente pelo psicólogo.
Î A avaliação psicológica deve estar restringida aos especialistas
de psicologia, sendo responsabilidade do psicólogo evitar o
seu uso por parte daqueles que não têm competências especí-
ficas para tal.
Î A reavaliação de um processo levado a cabo por um colega
deve limitar-se a comentários sobre a relação entre os resulta-
dos do teste e a sua interpretação, apontando os erros de
cotação ou de interpretação que possam existir.
Î Qualquer documento, referenciado como teste, que não dis-
ponha de um manual devidamente organizado carece de uti-
lidade profissional.
Î O psicólogo está obrigado, se solicitado para tal, a fornecer ao
seu cliente os dados da avaliação, incluindo os resultados
brutos e estandardizados, as respostas às questões ou estímu-
los dos testes bem como as notas correspondentes ao compor-
tamento do cliente durante o processo.
Î Os materiais do instrumento de avaliação, como sejam
manuais, protocolos e questões ou estímulos dos testes, não
devem ser disponibilizados aos clientes.

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Î O psicólogo deve enfatizar que os dados da avaliação só terão


utilidade se interpretados por um profissional de psicologia.
Î Os dados resultantes das interpretações realizadas por com-
putador não devem ser utilizados como um produto final, mas
sim como mais um recurso com vista à elaboração do relatório
de avaliação.
Î Na apresentação dos resultados deve existir o cuidado neces-
sário para evitar a construção de rótulos estigmatizantes para
a pessoa.

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