Você está na página 1de 53

Unidade Curricular Medicina I

e Especialidades Médicas
(Regente: Prof. Doutor F. Castro Poças)

Como interpretar o ECG … (no adulto)


Elaborado por Prof. Dr. Aníbal Albuquerque
Coordenador do Módulo de Cardiologia
Objectivos do ECG-12 derivações

No final do semestre o aluno deverá saber:


1º Contextualização clinica do ECG
2º “Leitura” do ECG propriamente dita – saber identificar:
- Frequência cardíaca
- Ritmo sinusal
- Bloqueios AV – 1º,2º e 3ºgrau
- Fibrilhação Auricular
- Extrassistoles ventriculares e supraventriculares
- Bloqueio de ramo esquerdo
- Bloqueio de ramo direito
- Desvio esquerdo do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal
- Supra e infradesnivelamentos do segmento ST
- Ondas T invertidas (em derivações onde não deveriam ser…)
- Intervalo QT corrigido
ECG

• O electrocardiograma (ECG) é o registo da actividade eléctrica do coração, à superfície


do corpo. Essa actividade eléctrica pode ser captada, amplificada e apresentada sob a
forma de um registo (em papel / ficheiro informático) ou em “display” contínuo num
ecrã de um monitor (no doente crítico, por exemplo).
• A apresentação clássica do ECG consiste no registo de 12 derivações.
• E é com base nesse registo clássico de 12 derivações que incidirá a análise sistematizada
que aqui se propõe.
• O ECG é essencial para o diagnóstico de arritmias e perturbações da condução, mas não
das doenças que lhes dão origem; o ECG, isoladamente, “não serve” para fazer
diagnósticos clínicos, exige sempre uma contextualização clínica.
• De facto, embora o ECG seja usado frequentemente, até para rastreio de doenças
cardiovasculares, é preciso ter em mente que um ECG normal pode constituir um “falso-
negativo” e, no extremo oposto, um ECG “anormal” pode corresponder a uma pessoa
perfeitamente saudável (ex. atletas).

• Assim, utilizaremos o layout mais frequentemente usado na actualidade para fazer a


análise do ECG nas 2 vertentes essenciais: análise do ritmo (para a qual basta 1
derivação, geralmente o DII) e análise morfológica (que exige o registo das 12
derivações clássicas).
ECG – contextualização clinica

Trata-se de uma senhora de 37 anos sem queixas, sem


factores de risco ou co-morbilidades relevantes do
ponto de vista CV, realizou ECG no âmbito de
avaliação pré-operatória de cirurgia não-cardíaca.
ECG - análise do ritmo

Análise do ritmo cardíaco (apresentam-se 2 derivações – DII e V1):


ECG – análise morfológica

Análise morfológica (12 derivações clássicas):


Análise sistematizada do ECG

9 Qual é a FC
9 Regular ou irregular (qual a irregularidade?)
. Análise do ritmo 9 Actividade auricular (ondas P em DII Æ sinusal)
9 Relação P-QRS; se 1:1 ver intervalo PR
9 QRS estreito ou largo

9 Onda P

• QRS estreito ou largo


• Eixo eléctrico médio no plano frontal e no plano horizontal
9 Complexo QRS • Ondas Q patológicas
. Análise morfológica • Critérios de voltagem de HVE

• Ponto J
9 Segmento ST • Morfologia do desnivelamento

• Morfologia
9 Onda T • Intervalo QT
Qual é a FC ?
Qual é a FC ?

A FC (frequência cardíaca) é a primeira coisa a observar, e geralmente é imediata.


1º Porque está assinalada na análise automática
2º Porque, se a velocidade do registo é de 25mm/seg, na tira de ritmo do ECG vamos
contar o numero de complexos QRS que existem em 10 segundos; logo, num minuto,
multiplicar por 6.
O ritmo é regular ?
O ritmo é regular ?

A observação da regularidade do ritmo (intervalos RR) faz-se a “olho nú” (e pode ser
percepcionada clinicamente pela palpação do pulso ou auscultação cardíaca…)

O ritmo pode ser irregular, sobretudo em 3 situações:

1º Intervalos RR todos diferentes (como na FA, exemplo notável…)


2º Tem complexos prematuros (largos Æ extrassístoles ventriculares; estreitos Æ
extrassístoles supraventriculares)
3º Arritmia sinusal, como se observa na arritmia respiratória fisiológica em que há
um ligeiro aumento da FC na inspiração, e uma diminuição na expiração por acção
vagal ao nível do nó sinusal.
Extrassistoles ventriculares (EVs)

2 EVs em 10 segundos…
Extrassistoles supraventriculares (ESVs)

3 ESVs em 10 segundos…
Existem ondas P ?
Existem ondas P ?

Tem ondas P ?

DIII DII
aVF

Ritmo sinusal Æ a onda P é sempre positiva em DII (a despolarização auricular


faz-se “de cima para baixo”, em direcção ao eléctrodo DII)
representada pelo vector a azul no diagrama
Qual a relação das ondas P com os complexos QRS ?

1:1
Intervalo PR (ou PQ)

± 5 mm
O QRS é estreito ou largo ?
O QRS é estreito ou largo ?

Se QRS estreito (≤ 120 ms) ou largo com morfologia de BRD Æ prosseguir para a
análise morfológica.

Se QRS largo (> 120 ms) “diagnosticar”:


- BRE
- Ritmo de pacemaker ventricular
a análise morfológica do ECG termina aqui
- Ritmo idioventricular
- Padrão de WPW
ECG – análise morfológica

A análise morfológica deve ser sistematizada e


sequencial: P Æ QRS Æ T, em todas as 12
derivações
Análise morfológica (12 derivações clássicas):
Análise morfológica

A análise morfológica deve ser sistematizada e


sequencial: P Æ QRS Æ T, em todas as 12
derivações

… é importante detectar a presença de


ondas P, mas vamos “esquecer” a
análise morfológica da onda P.
Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

QRS estreito ou BRD ?

Avaliar eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal


Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

Eixos ortogonais de Bailey

aVR aVL
-150º - 30º

+180º DI 0º

DIII DII
+ 120º + 60º
aVF
+ 90º
Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

Eixos ortogonais de Bailey – “quadrante” NORMAL

- 30º
aVR aVL
-150º

+180º DI 0º

+ 90º
DIII DII
+ 120º + 60º
aVF
+ 90º
Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

QRS estreito ou BRD ?

Avaliar eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

De uma forma “simples”:


1º Se QRS positivo em DI e DII Æ eixo normal
2º Se QRS positivo em DI e negativo em DII e aVF Æ desvio esquerdo do eixo
3º Se QRS negativo em DI e positivo em DII e aVF Æ desvio direito do eixo (a causa
mais frequente é o erro técnico por troca dos cabos nos membros superiores)
Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

QRS estreito ou BRD ?

Avaliar eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

Causas de desvio esquerdo do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal:


1º Ondas Q profundas em DII,DIII,aVF (num doente após enfarte inferior, por exemplo)
2º Hipertrofia ventricular esquerda
3º Se não tiver nenhum dos critérios anteriores Æ bloqueio fascicular anterior
(antigamente designado de hemibloqueio anterior esquerdo) Æ se eixo inferior a -45º.

Causas de desvio direito do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal:


1º Erro técnico, conforme já descrito…
2º Hipertrofia ventricular direita
3º Bloqueio fascicular posterior (raro)
Eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal

Para a avaliação do eixo no plano horizontal


Æ vamos “olhar” para as derivações
precordiais. Excluir o BRD !
Eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal

E definiremos rotação “horária” quando, “olhando” o


coração de baixo para cima, o eixo eléctrico médio do
QRS estiver para além do V4.
Rotação “anti-horária” (sentido contrário aos ponteiros
do relógio), quando ondas R > ondas S V1-V3.

Para a avaliação do eixo no plano horizontal


Æ vamos “olhar” para as derivações
precordiais. O eixo “normal” (onda R ± igual
onda S) é geralmente em V3-V4.
Eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal

V1 V2 V3 V4 V5 V6

A “evolução” normal dos complexos QRS reflecte a maior massa miocárdica do VE,
e justifica o aumento “progressivo” das ondas R, em relação à onda S, de V1-V2
(derivações “direitas”) até V5-V6 (derivações “esquerdas”) no coração normal.
Normalmente o eixo está em V3-V4 (onde a onda R é +/- igual à onda S).
Alterações morfológicas do QRS

Seguidamente vamos observar se há outras alterações morfológicas do QRS,


em todas as derivações, nomeadamente:
- Ondas Q patológicas
- Critérios de voltagem de hipertrofia ventricular esquerda (HVE)
Alterações morfológicas do QRS

Conceito de ondas Q “patológicas” (não é patognomónico de enfarte…):


- 1ª derivação negativa do QRS não precedida de onda R que:
Æ não tem onda R subsequente (complexo QS)
Æ se tiver onda R subsequente, a onda Q tem de ter uma amplitude
de pelo menos 1/3 da onda R subsequente e ter uma duração de
pelo menos 40ms.
Alterações morfológicas do QRS

Critérios ECG de hipertrofia ventricular esquerda (HVE)

1 - Critérios de voltagem (isoladamente só são válidos acima dos 40 anos)


ƒ Sokolow-Lyon: onda R em V5 ou V6 + onda S em V1 ≥ 35mm
ƒ onda R em V5 ou V6, isoladamente, ≥ 25mm.
ƒ Cornell: onda S em V3 + onda R em aVL > 28mm (homens) ou > 20mm (mulheres).
ƒ Cornell “modificado”: onda R aVL > 14mm (homens) ou 11mm (mulheres).
ƒ Onda R em DI + ondas S em DIII ≥ 25mm.

2 - Outros critérios para além dos critérios de voltagem


ƒ QRS alargado
ƒ desvio esquerdo do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal
ƒ alterações secundárias ST-T: mais tipicamente depressão ST com perfil descendente e
ondas T invertidas de ramos assimétricos, sobretudo em DI,aVL,V5-V6.
ƒ aumento da AE (se em ritmo sinusal)
Desnivelamentos do segmento ST

Começar pelo ponto J

ponto J linha de base


(fim do QRS) (segmento TP)
Desnivelamentos do segmento ST

A “quantificação” do desnivelamento faz-se 2mm após o ponto J

Quantificação do
infradesnivelamento ST

80 mseg. (2mm)
após o ponto J
Ponto J
Desnivelamentos do segmento ST

Morfologia do infradesnivelamento ST

Ascendente
o infradesnivelamento ST 80 ms (2mm) após o ponto J é
menor que no ponto J; 2 mm após o ponto J o segmento
ST pode mesmo já ser isoeléctrico Æ
pouco específico de isquemia

Horizontal

mais específico de isquemia


… mas, obviamente, o diagnóstico de isquemia
depende do contexto clinico

Descendente
Desnivelamentos do segmento ST

Supradesnivelamento ST
ƒ O supradesnivelamento ST observa-se em muitas situações de doença cardíaca (ex.:
mio-pericardite aguda), distúrbios hidro-electrolíticos (ex.: hipercaliemia), ou mesmo em
pessoas normais (ex.: atletas).
ƒ No contexto clinico de um Sindrome Coronário Agudo (SCA), define um SCA com
supradesnivelamento ST se:
- Supradesnivelamento ≥ 1mm ao nível de 2 ou mais derivações das extremidades
“concordantes”.
- Supradesnivelamento ≥ 2mm em 2 ou mais derivações precordiais “concordantes”.
- Pode existir infradesnivelamento ST associado, em derivações “contra-laterais”
(“imagem em espelho”).

Derivações “concordantes” no SCA


- DII, DIII, aVF – parede inferior (corresponde geralmente a obstrução trombótica da
artéria coronária direita – CD, mais raramente circunflexa – CX).
- V1-V4 – parede anterior (descendente anterior – DA).
- DI, aVL, V5-V6 – parede lateral (circunflexa – CX)
- V1, V2 com infradesnivelamento (“supradesnivelamento” da parede posterior) – o
enfarte posterior isolado é raro.
Supradesnivelamento ST - 1

Supradesnivelamento ST na parede inferior no contexto


de um SCA. Observa-se ainda discreto supra V5-V6
(“extensão” à parede lateral?) e infradesnivelamento
DI,aVL,V2-V3.
Supradesnivelamento ST - 2

Supradesnivelamento ST na parede anterior (V1-V4),


no contexto clinico de um SCA
Supradesnivelamento ST - 3

Supradesnivelamento ST na parede lateral (DI,aVL),


no contexto clinico de um SCA
Supradesnivelamento ST - 4

Supradesnivelamento ST na parede inferior (DII,DIII,aVF),


posterior (V1-V2) e lateral (V5-V6), no contexto de um SCA
Ondas T
Ondas T

ƒ O conceito vai ser: as ondas T são positivas em todas as derivações,


excepto aVR que “é tudo ao contrário”.
ƒ Todavia, as ondas T também podem ser invertidas (ou aplanadas)
sem significado patológico, isoladamente, em V1,DIII e aVL,
sobretudo se o complexo QRS também for predominantemente
negativo.
ƒ As ondas T podem ser de grande amplitude, sobretudo nas
derivações precordiais, em situações de isquemia do miocárdio,
hipercaliemia ou mesmo em adultos jovens normais e atletas.
Intervalo QT

QT corrigido para a FC:


Q
Fórmula de Bazett:
Intervalo QT

ƒ O intervalo QT “mede”, ao nível do ECG de superfície, a duração do potencial de acção


das células cardíacas; fármacos que prolongam a duração do potencial de acção,
aumentam o intervalo QT.
ƒ O intervalo QT avalia-se, no ECG, desde o início do complexo QRS até ao fim da onda T.
ƒ O intervalo QT tem de ser corrigido para
a frequência cardíaca (QTc).
ƒ A avaliação do QTc faz-se através da fórmula
de Bazett mas, na prática, usamos a análise
automática (ver quadro anterior).
Intervalo QT

ƒ A importância do QT longo deriva do facto de poder constituir um substrato para


arritmias ventriculares malignas. Também há situações de QT curto, mas são raras.
ƒ É importante ter em atenção que muitas situações de QT longo são iatrogénicas,
provocadas muitas vezes por fármacos cardíacos (anti-arrítmicos) e não-cardíacos
(anti-depressivos, procinéticos, antibióticos, antifúngicos, outros).
Em resumo…

9 Qual é a FC
9 Regular ou irregular (qual a irregularidade?)
. Análise do ritmo 9 Actividade auricular (ondas P em DII Æ sinusal)
9 Relação P-QRS; se 1:1 ver intervalo PR
9 QRS estreito ou largo

9 Onda P

• QRS estreito ou largo


• Eixo eléctrico médio no plano frontal e no plano horizontal
9 Complexo QRS • Ondas Q patológicas
. Análise morfológica • Critérios de voltagem de HVE

• Ponto J
9 Segmento ST • Morfologia do desnivelamento

• Morfologia
9 Onda T • Intervalo QT
Relatório final do ECG

Análise do ritmo:
- FC Æ 12 X 6 = 72bpm
- Ritmo regular
- Ondas P em DII Æ sim (ritmo sinusal)
- Relação P:QRS = 1:1
- Intervalo PR Æ 192ms (normal)
- QRS estreito (112ms)
Análise morfológica:
- Onda P – “não interessa” fazer a análise morfológica…
- Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal: normal (3º)
- Eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal normal (V4)
- Sem desnivelamentos significativos do ponto J / segmento ST
- Onda T invertida aVR e V1 (normal)
- Intervalo QTc Æ 413ms (normal)

CONCLUSÃO: ECG com ritmo sinusal, sem alterações da


condução e sem alterações morfológicas.
No fim …

Os 5 “diagnósticos” electrocardiográficos que nenhum aluno pode falhar:


1º Fibrilhação auricular
2º Bloqueio aurículo-ventricular completo
3º Bloqueio de ramo esquerdo
4º Supradesnivelamento ST
5º Intervalo QT longo
Fibrilhação auricular
Bloqueio aurículo-ventricular (BAV) completo
Bloqueio de ramo esquerdo (BRE)
Supradesnivelamento do segmento ST
QT longo

Você também pode gostar