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construtivismo-dialogam
Publicado em NOVA ESCOLA 20 de Setembro | 2022

Perspectiva piagetiana

A BNCC e o construtivismo
dialogam?
A Base não fala sobre como ensinar, mas é possível
interpretá-la e trabalhar com as competências e as
habilidades considerando a perspectiva piagetiana
Beatriz Vichessi

Ilustração: Luli Tolentino


Especialistas são claros e diretos ao responder a essa questão: não existe uma
só linha da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que fale sobre
construtivismo. Ela não assume nenhuma metodologia, não trata do “como”
ensinar. Cabe às redes de ensino e às escolas selecionarem e utilizarem
metodologias e estratégias didático-pedagógicas para alcançar o objetivo final: a
aprendizagem e o desenvolvimento integral de todas as crianças e
adolescentes.
Em resumo, o documento diz “o que” tem de ser contemplado durante toda a
Educação Básica. Por isso, não há como cravar que a BNCC é construtivista. Mas
agora vamos entender se há margem para trabalhar com essa perspectiva de
ensino de forma alinhada ao documento.

O que é o construtivismo?
Definir o que é o construtivismo de forma segura, clara e compreensível é difícil,
apesar de esse ser um termo fortemente usado em Educação. “Construtivismo
não é um método de ensino, é uma forma de ler e interpretar o mundo”, diz
Lino de Macedo, docente emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (USP) e autor do artigo O construtivismo e sua função educacional.
O biólogo suíço Jean Piaget dedicou sua vida para estudar o processo de
aquisição de conhecimento pelo ser humano com crianças de quatro a 12 anos
– e não buscou desenvolver uma metodologia de ensino. “A preocupação dele
esteve focada na observação da qualidade do desempenho das crianças frente
a uma ação proposta”, explica Lino. Piaget é um dos estudiosos que inspirou o
construtivismo, ao lado de Lev Vygotsky e Henri Wallon.
“O construtivismo é uma teoria de aprendizagem que considera o sujeito como
um ser ativo no processo de construção do conhecimento, por meio de
experiências e interações com o objeto do conhecimento e na relação e
interação com outros sujeitos. Para isso, ele precisa vivenciar situações
significativas, colocando em jogo tudo o que sabe para construir um novo saber.
Ou seja, nessa concepção, o conhecimento é construído e não transferido”,
explica Sidecleia dos Anjos, formadora do Time de Formadores da NOVA
ESCOLA e consultora pedagógica desta reportagem.
Evidentemente, as palavras de Piaget também são importantes para
compreender o termo: “No construtivismo o conhecimento só pode ter o
estatuto da correspondência, da equivalência, e não da identidade”. Isso quer
dizer que, na perspectiva construtivista, por exemplo, podemos entender que a
criança já sabe escrever desde o primeiro dia que se propõe a fazer isso, ainda
que esse saber tenha muitos aperfeiçoamentos a serem conquistados para ser
considerado a escrita convencional.
Dizer que o sujeito constrói o seu próprio conhecimento a partir das interações
não significa que os alunos aprendem sozinhos e, por isso, o professor deve
deixá-los soltos para aprenderem o que quiserem e como quiserem. Essa é uma
percepção enraizada no imaginário de muitas pessoas que ainda não
compreenderam o conceito da teoria construtivista.
Pelo contrário, é essencial que o professor construtivista expresse muita
competência ao ensinar e avalie os estudantes constantemente, pois, na
construção da aprendizagem, a mediação de um sujeito mais experiente é
fundamental. É necessário que o docente identifique o que o aluno já consegue
realizar, o que já sabe, e trace bons caminhos e boas intervenções para que ele
alcance um nível superior de conhecimento. O papel do professor no
construtivismo é essencial para o sucesso da construção de uma aprendizagem
sólida.
O que marca mais profundamente a diferença entre o educador com perfil
construtivista e aquele mais conteudista, tradicional, é que o primeiro entende
e aceita o erro como parte do processo de construção da aprendizagem. No
que diz respeito à rotina em sala de aula, ele não trabalha transmitindo
conteúdos para depois cobrar a turma nem espera respostas que repitam as
mesmas palavras utilizadas na aula ou encontradas no livro didático. “O
educador construtivista discute com as crianças, faz perguntas inteligentes,
apresenta situações-problemas, ajuda a turma a formular hipóteses, sistematiza
a aprendizagem e o tempo todo avalia o percurso, as conquistas da turma”, diz
Lino. Nesta reportagem, saiba mais sobre mitos e verdades a respeito do
construtivismo.

É possível encontrar abordagem construtivista na


BNCC?
Para os especialistas consultados pela NOVA ESCOLA, é possível enxergar
trechos da BNCC que dialogam com a perspectiva construtivista. Tudo depende
de quem lê o documento e da concepção de ensino e aprendizagem adotada.
A complexidade dessa pergunta pode ser entendida ao analisar os trechos
relacionados à alfabetização. A Base dá ênfase ao uso de textos reais, que
circulam na sociedade, inseridos nas práticas sociais – aspecto que faz coro com
a perspectiva construtivista, tal como consta nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN). No entanto, é essencial olhar para outros pontos antes de
afirmar que o documento privilegia essa abordagem. Enquanto os PCN
assumiram claramente a perspectiva construtivista, a BNCC tem um conjunto de
habilidades focadas no desenvolvimento da consciência fonológica também, o
que aponta, por sua vez, para atividades específicas para pensar o sistema de
escrita.
“São habilidades que também dialogam com o construtivismo, desde que
desenvolvidas em atividades que fazem os alunos investigarem o sistema de
escrita”, explica Maria José da Nóbrega, mestre em Filologia e Língua
Portuguesa e assessora pedagógica. Dentre essas habilidades, estão as que
trabalham com listas de palavras para a turma pensar sobre a ortografia – por
exemplo, sobre o uso do R e do RR.
A crítica de muitos especialistas construtivistas sobre o trabalho com a
consciência fonológica é que o aluno “sai” do texto para explorar palavras fora
dele, soltas. No entanto, de acordo com Maria José, essas situações são
legítimas. “Você parte do texto, sai dele para fazer uma investigação focada em
algum tema que tenha significado para as crianças, e volta ao texto para seguir
com os estudos”, explica. Essas saídas, inclusive, segundo ela, às vezes são
inevitáveis porque os textos trabalhados em sala nem sempre reúnem o que o
professor precisa discutir com os estudantes. “Não faz sentido forçar uma
situação, usar um texto irreal, sem uso social, daqueles criados pela escola, para
trabalhar a questão que se quer estudar”, explica Maria José.
Ao olhar para o documento de forma integral, de acordo com Lino, ele revela
que as competências elencadas têm valor para a vida toda e não só para
alcançar a etapa seguinte da escolaridade. “Ele dialoga com o construtivismo
quando propõe competências e habilidades que tem a ver com algo muito
maior que a vida escolar”, diz o especialista.
O documento também valoriza propostas que motivam e engajam os alunos nas
aprendizagens. “Isso combina com o espírito construtivista”, afirma Lino. Piaget
criava situações-problemas visando conhecer o que a criança pensava sobre
determinado assunto e a deixava explorar, se colocar. A mesma crítica positiva
vale para o fato de o documento propor que o educador seja um bom promotor
de rodas de conversa e de debates, a fim de estimular os estudantes a
pesquisar, estudar e buscar o conhecimento.
Em todo o texto, nota-se que a BNCC, tal como a perspectiva construtivista,
também valoriza muito a formação docente e a centralidade do aluno.
Desmancha-se a ideia de que o professor sabe tudo e o aluno não. “Está claro
que os estudantes sabem muitas coisas e o professor não sabe tudo, está
sempre em aperfeiçoamento, pesquisando”, destaca Lino.
Priscila Mello Almeida, professora da EMEB Professor Milton Soares de
Camargo, em Tietê (SP), conta que trabalhar dessa maneira ainda não é algo
trivial para grande parte dos educadores. “A forma de planejar muda, a gestão
da sala de aula é outra também. Há quem tenha medo de perder o controle da
turma porque o aluno fica no centro de tudo”, fala a docente.

Trabalhar com habilidades é ser construtivista?


Uma das grandes novidades da BNCC é a proposta de desenvolvimento de
habilidades e competências pelos alunos – sem focar nos conteúdos que devem
estar contemplados a cada ano. “Algo muito novo ainda na educação brasileira,
que requer investimento em formação docente e olhar atento para
proporcionar experiências de aprendizagem potentes para os alunos
alcançarem as habilidades, são as ações realizadas pelos estudantes que os
fazem chegar até elas”, diz Sidecleia Anjos, formadora do Instituto Chapada de
Educação e Pesquisa (Icep) e membro do Time de Formadores da NOVA
ESCOLA.
Mas, se fizermos uma leitura mais conservadora do documento, é possível ler a
BNCC e trabalhar centrando-se em conteúdos. Por exemplo, ao explorar cada
habilidade como uma etapa a ser vencida e deixada para trás, como se ela fosse
o suficiente, o famoso jeito “lição dada, lição aprendida”.
Em contraposição, na perspectiva construtivista, é preciso trabalhar as
habilidades de forma conjunta, de modo que umas estejam atreladas às outras.
“Pressupõe-se a ideia de as competências serem desenvolvidas
progressivamente, ao longo dos anos, com várias propostas pedagógicas para
conjuntos de habilidades”, afirma Maria Alice Junqueira de Almeida,
coordenadora de programas e projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Mais que uma somatória de
aprendizagens, nessa progressão, o esperado é que saberes sejam entrelaçados
e complementares.
No momento atual, quando as redes estão voltadas para a recomposição das
aprendizagens, vale chamar a atenção para as habilidades que estão sendo
chamadas prioritárias. “O trabalho com elas, somente, não basta. É apenas para
este momento emergencial”, explica Maria Alice. Essa priorização curricular, que
elencou as aprendizagens essenciais, está relacionada com a flexibilização
curricular e o currículo contínuo sancionado durante a pandemia.

E os campos de experiência da Educação Infantil?


Para o trabalho com bebês e crianças, a BNCC propõe cinco campos de
experiências, nos quais os pequenos podem aprender e se desenvolver. Em
uma primeira leitura, a ideia de “experiência” dialoga diretamente com o
construtivismo. No entanto, Lino explica que simplesmente proporcionar
experiências não basta para desenvolver um trabalho à luz do construtivismo.
O educador pode convidar a turma a experimentar mas ficar restrito à
experiência, como se ela se bastasse por si. “Se considerarmos as ideias de
Piaget, não pode ser assim. Ele tem de ir além com as crianças, fazer a leitura da
experiência”, explica Lino. Em outras palavras, isso quer dizer recuperar, digerir,
discutir e interpretar a experiência. No texto de Piaget, tem a ver com abstração.
Na prática, isso quer dizer que, ao propor experiências com água, a escola não
pode ficar restrita às propostas de sentir e de observar. As crianças precisam
ser convidadas a entender mais sobre aquele elemento. Por exemplo, que o
gelo se transforma em líquido com o passar do tempo e que a água evapora se
exposta ao calor. É assim que os pequenos passam a desenvolver
aprendizagens a partir das experiências e brincadeiras propostas pelo
professor.
Consultoria pedagógica: Sidecleia dos Anjos, formadora do Time de Formadores
da NOVA ESCOLA.

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