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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2020.0000766812

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº


1016345-54.2019.8.26.0003, da Comarca de São Paulo, em que é apelante/apelado
GOL LINHAS AÉREAS INTELIGENTES S.A, é apelado/apelante ABDALLAH
KHALED NETO e Apelado DELTA AIRLINES INC.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 11ª Câmara de Direito


Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Negaram
provimento ao recurso das rés e deram parcial provimento ao recurso do autor.
V.U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores GILBERTO DOS


SANTOS (Presidente) e GIL COELHO.

São Paulo, 21 de setembro de 2020.

MARCO FÁBIO MORSELLO


Relator
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003


Apelante/Apelada: Gol Linhas Aéreas S.A. e Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A
Apelado/Apelante: Abdallah Khaled Neto
Juiz: André Rodrigues Menk
Comarca: São Paulo 5ª Vara Cível do Foro Regional III - Jabaquara
Voto nº 2479

APELAÇÃO TRANSPORTE AÉREO


INTERNACIONAL EXTRAVIO DE BAGAGEM
DESPACHADA Sentença de parcial procedência,
condenando-se as rés, solidariamente, ao pagamento de 750
DES, correspondente a R$ 4.795,35, a título de danos
materiais Irresignação da ré, requerendo a improcedência
dos pedidos Relação jurídica que implica incidência das
disposições normativas do Código Civil, do Código de
Defesa do Consumidor e da Convenção de Montreal
Extravio de bagagem e violação de mala são fatos
incontroversos nos autos Alegação de culpa exclusiva de
terceiro, ausência de responsabilidade e de nexo causal
Insubsistência – Ilegitimidade passiva Inadmissibilidade
Cooperação entre as companhias aéreas-fornecedoras,
caracterizando a responsabilidade solidária prevista no art.
7º, parágrafo único, do CDC Julgados do E. TJSP
Responsabilidade da Companhia Aérea apelante
caracterizada Não comprovação de qualquer causa
excludente, ínsita à sua responsabilidade objetiva DANOS
MORAIS Convenção de Montreal que não elide a
indenização por danos morais compensatórios, cuja força
normativa promana do art. 5º, inc. V e X, da CF Danos
morais compensatórios que não se confundem com os
punitive damages, contemplados no sistema da common
law, de modo que a preocupação manifestada em sede de
trabalhos preparatórios para a redação das normas da
Convenção não se justifica em relação à caracterização dos
danos extrapatrimoniais compensatórios em nosso país
Ressalva em relação aos danos morais compensatórios que é
consentânea com a tese fixada pelo STF no julgamento dos
RE 636.331/RJ e ARE 766.619/SP Inexistência de
limitação nesta seara Circunstâncias do caso concreto que
denotam abalo extrapatrimonial, que desbordam do mero
dissabor Bagagem extraviada que foi encontrada violada
Fixação dos danos morais no montante de R$3.000,00
Razoabilidade, proporcionalidade e subprincípio da
proibição do excesso DANOS MATERIAIS Art. 22.2 da
Convenção de Montreal que traz à baila um patamar limite
indenizável de 1.131 DES na seara dos danos materiais, de
modo que a responsabilidade do transportador é limitada e
não tarifada, devendo ser comprovado o dano sofrido e sua
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extensão Caso dos autos em que se comprovou a violação


da bagagem e furto dos pertences do autor Não
impugnação do quantum fixado em sentença de danos
materiais (750 DES, correspondente a R$ 4.795,35)
Sentença parcialmente reformada Recurso do autor
provido e recurso das rés desprovido Majoração dos
honorários advocatícios devido pelas rés ao autor.

Trata-se de sentença (fls. 276/281), cujo relatório se adota, que, em


sede de ação de indenização por danos morais e materiais ajuizada por Abdallah
Khaled Neto em face de Gol Linhas Aéreas S.A., Gol Linhas Aéreas Inteligentes
S.A. e Delta Airlines Inc., julgou parcialmente procedentes os pedidos para condenar
as rés, solidariamente, ao pagamento de indenização por danos materiais no montante
de R$ 4.795,35, com correção monetária pela tabela prática do TJSP e juros
moratórios de 1% ao mês a contar da data de citação. Em virtude da sucumbência,
foram opostos embargos de declaração (fls. 283/284), os quais foram acolhidos (fl.
285) para condenar as partes ao pagamento equitativo das custas e despesas
processuais, bem como de honorários advocatícios, no montante de 15% do valor da
condenação.
Irresignadas, recorrem as rés Gol Linhas Aéreas S.A. e Gol Linhas
Aéreas Inteligentes S.A. (fls. 292/300), aduzindo, em síntese, que o extravio da
bagagem do autor ocorreu no voo do corréu Delta Airlines Inc., no trecho Atlanta
Rio de Janeiro, motivo pelo que não pode ser responsabilizada por conduta de outra
empresa, notadamente por haver quebra do nexo causal que pudesse ensejar sua
responsabilização civil. Ademais, verbera o descabimento de danos morais por não
ter sido responsável pela bagagem e, consequentemente, pelo extravio. Acrescenta
que as notas fiscais estão em idioma estrangeiro e não foram traduzidas, o que viola o
art. 192, do CPC. Destaca que não houve comprovação dos danos materiais.

Por fim, propugna pelo julgamento improcedente dos pedidos


autorais.
O recurso é tempestivo e preparado (fls. 323/324 e 371).
Outrossim, recorre o autor (fls.327/340), aduzindo que a relação entre
as partes presume obrigação de resultado, em que a companhia aérea se obriga a
efetuar o transporte no tempo e modo conveniados e a restituir as bagagens ao final
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do trajeto. Contudo, como houve extravio da bagagem por uma semana e violação do
dever de depósito, argumenta que há nexo causal entre a conduta das rés e o dano
moral sofrido apto a ensejar a condenação da ré ao pagamento de indenização, no
montante de R$ 25.000,00. Por fim, propugna pela redução dos honorários
advocatícios fixados na sentença, eis que a falta de complexidade na demanda torna
irrazoável o valor fixado.
O recurso é tempestivo e preparado (fls. 341 e 371).
As partes apresentaram contrarrazões (fls. 344/354, 355/361 e
362/366).
Não houve oposição ao julgamento virtual.
É o relatório.
Narra o autor que realizou uma viagem no final de 2017 para a cidade
de Atlanta, nos Estados Unidos, adquirindo as passagens de ida e volta pela
companhia aérea Delta Airlines Inc., ora corré. Ao retornar ao Brasil, em 05.12.2017,
houve uma alteração na escala, sendo que o voo partiu de Atlanta para Rio de
Janeiro, trecho operado pela ré Delta Airlines Inc. (fl. 32), com conexão em voo para
o aeroporto de Congonhas em São Paulo, operado pela ré Gol Linhas Aéreas (fl. 31).
Sucede que sua bagagem não foi devolvida ao final do trajeto, motivo pelo que o
autor registrou uma reclamação (nº GIGDL35200 fl. 42).
Ressalta, ademais, que sua mala só foi encontrada uma semana depois,
totalmente violada e com pertences furtados (fls. 43/54). Por tais razões, propugnou
pela condenação da ré ao pagamento de indenização por danos materiais e morais.
Na contestação (fls. 66/81), a ré Gol Linhas Aéreas aduziu culpa
exclusiva de terceiro, eis que o extravio da mala teria se dado no trecho operado pela
corré Delta Airlines Inc. Também, observa que não há nexo causal entre sua conduta
e o prejuízo suportado pelo autor, o que exclui sua responsabilidade de indenizar. Por
conta disso, argumentou ser incabível sua condenação no pagamento de indenizações
por danos morais e materiais.
Por sua vez, a corré Delta Airlines aduziu, em sede de contestação (fls.
167/184), que apenas houve delonga para a entrega da bagagem para o autor, tempo
não superior do que o prazo estipulado pela Agência Nacional de Aviação Civil, que
é de 21 dias. Ademais, asseverou que os danos morais não podem ser presumidos,

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tampouco denotam caráter punitivo. Além disso, ressaltou a aplicabilidade das


convenções internacionais, conforme o entendimento do STF exarado no RE nº
636331.
Após a r. sentença (fls. 276/281) condenar as rés, solidariamente, ao
pagamento de indenização por danos materiais no montante de R$ 4.795,35, com
correção monetária e juros moratórios de 1% ao mês; e afastar a condenação por
danos morais, a corré Delta Airlines Inc. efetuou o pagamento de sua condenação
imposta nos autos, juntando comprovante (fls. 287/289).
Não obstante, o autor apresentou razões de apelação (fls. 327/340)
irresignado com a não condenação das rés ao pagamento de indenização por danos
morais. Por sua vez, a ré Gol Linhas aéreas interpôs recurso (fls. 292/300)
propugnando pelo afastamento de sua condenação, notadamente pelos fatos terem
sido de responsabilidade da corré Delta Airlines Inc.
Tecidas tais considerações, cumpre registrar que a ré Gol Linhas
Aéreas atuou na cadeia de serviços e deve ser responsabilizada em conjunto com a
corré Delta Airlines.
Com efeito, no retorno ao Brasil, o autor efetuou viagem de Atlanta ao
Rio de Janeiro, em voo operado pela corré Delta, e, posteriormente, dirigiu-se a São
Paulo, mediante voo operado pela corré Gol.
Destarte, verifica-se a cooperação entre as fornecedoras,
caracterizando a responsabilidade solidária entre si, nos termos do art. 7º, parágrafo
único, do CDC, não havendo qualquer fato que a exclua.
Nesse sentido, inclusive, posiciona-se a jurisprudência deste Egrégio
Tribunal:
“Legitimação para a causa. Transporte aéreo internacional.
Compartilhamento de voo entre companhias aéreas, parceiras no
transporte de passageiros. Companhias aéreas que são responsáveis
solidárias perante os passageiros consumidores. Art. 7º, parágrafo
único, do CDC. Legitimidade passiva da ré confirmada. Prestação de
serviço. Transporte aéreo internacional. Hipótese em que o voo de
retorno da autora ao Brasil, originalmente marcado para as 16h30m
do dia 4.1.2018, foi cancelado por duas vezes, a primeira vez por
problemas mecânicos na aeronave, com o seu efetivo embarque
somente às 5h do dia 7.1.2018. Autora que demorou mais de sessenta
horas para chegar ao seu destino final. Existência de problema

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técnico na primeira aeronave, não evidenciado pela ré, que


caracterizou fortuito interno, não excludente de responsabilidade. Ré
que não contrariou a dinâmica dos fatos noticiados na inicial, os
quais ficaram incontroversos. Inviável isentar-se a ré da
responsabilidade pelo evento danoso. Transporte aéreo internacional.
Dano moral. Inaplicabilidade das Convenções de Varsóvia e
Montreal - Atraso significativo de sessenta horas para a chegada da
autora ao destino final. Situação que representou fato passível de
indenização em verba de dano moral. Dever de indenizar da ré
reconhecido. Dano moral "Quantum". Valor da indenização que deve
ser estabelecido com base em critério de prudência e razoabilidade,
levando-se em conta a sua natureza penal e compensatória, assim
como as peculiaridades do caso concreto. Atraso de sessenta horas
que, ainda que significativo, não resultou em outros desdobramentos
danosos. Autora que não comprovou que efetuou gastos extras e não
programados por mais dois dias de viagem, não tendo formulado
pedido de reembolso. Mantido o valor indenizatório de R$ 9.000,00,
correspondente, aproximadamente, a duas vezes o valor da passagem
de ida e volta da autora do Brasil para Nova Iorque (R$ 4.790,53).
Apelo da ré e apelo da autora desprovidos.” (Apelação Cível
1008301-80.2018.8.26.0003; Relator (a): José Marcos Marrone;
Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional III -
Jabaquara - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/11/2019; Data de
Registro: 05/11/2019)

Dessa forma, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva.


Destarte, cumpre determinar a legislação aplicável ao caso em testilha.
Com efeito, o conflito de interesses versa acerca de relação de
consumo, denotando, a autora e a ré, todas as características contidas,
respectivamente, nos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor.
Doutra banda, o conflito de interesses se coaduna com a existência de
contrato de transporte aéreo internacional, de modo que também incide a Convenção
de Montreal, tratado internacional internalizado no ordenamento pátrio por meio do
Decreto nº 5.910, de 27 de setembro de 2006, conforme preconiza seu art. 1º, nos
seguintes termos:
Artigo 1 Âmbito de Aplicação
1. A presente Convenção se aplica a todo transporte internacional de
pessoas, bagagem ou carga, efetuado em aeronaves, mediante
remuneração. Aplica-se igualmente ao transporte gratuito efetuado
em aeronaves, por uma empresa de transporte aéreo.
2. Para os fins da presente Convenção, a expressão transporte
internacional significa todo transporte em que, conforme o estipulado

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pelas partes, o ponto de partida e o ponto de destino, haja ou não


interrupção no transporte, ou transbordo, estão situados, seja no
território de dois Estados Partes, seja no território de um só Estado
Parte, havendo escala prevista no território de qualquer outro
Estado, ainda que este não seja um Estado Parte. O transporte entre
dois pontos dentro do território de um só Estado Parte, sem uma
escala acordada no território de outro, não se considerará transporte
internacional, para fins da presente Convenção.

Ademais, o Código Civil, no Capítulo XIV, do Título VI, do Livro III,


contempla, outrossim, normas gerais acerca do transporte de pessoas e coisas.
Sobreleva anotar, por oportuno, que o Brasil, país de destino da
viagem, também signatário da Convenção de Montreal (cf. http://www.icao.int/ - site
da Organização Internacional da Aviação Civil, acesso em 31/07/2020).
Verifica-se, pois, que os três diplomas legais são aplicáveis ao caso
em comento.
Emerge como fato incontroverso que o autor adquiriu passagem com a
corré Delta Airlines planejando seu retorno ao Brasil com o trecho Atlanta Rio de
Janeiro São Paulo. Sucede que, ao final da viagem, sua bagagem não foi
encontrada, de modo que o autor ficou sem seus pertences por sete dias, quando sua
mala foi encontrada violada e com o furto de seus pertences (fls. 43/54), motivo pelo
qual o autor registrou uma reclamação (nº GIGDL35200 fl. 42).
Não obstante, o juízo a quo não reconheceu a incidência de danos
morais aplicáveis ao caso. Neste ponto, o recurso do autor comporta provimento.
Sobreleva anotar, por oportuno, que, no que tange aos danos morais
compensatórios configurados em razão de falha na prestação do serviço de transporte
aéreo internacional, não há qualquer exclusão ou limitação ao dever de indenizar.
De fato, em sede de trabalhos preparatórios de elaboração da
Convenção de Montreal, na seara dos danos ressarcíveis, subsistiram amplos debates,
suscitadores de controvérsias interpretativas, nos sistemas da common law e romano-
germânico. Isso porque, havia o temor de se incluir expressamente a figura do dano
moral, máxime tendo em vista a natureza dos punitive damages, previstos naquele
sistema, com ampla aplicação pelas Cortes dos Estados Unidos da América. (Nesse
sentido, Paul S. Dempsey e Michael Milde, International Air Carrier Liability: The
Montreal Convention of 1999, pp. 120-123; pp. 204-212, McGill University- Centre

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for Research in Air and Space Law, Montreal, 2005).


Referida lacuna normativa, embora necessária para a elaboração de
um diploma legal uniforme com ampla adesão por vários países, não excluiu a
indenização por danos morais, mormente em face do art. 29 da Convenção de
Montreal, o qual autoriza expressamente as indenizações de caráter compensatório.
Nesse ponto, cumpre obtemperar que, no ordenamento pátrio, a
reparação de danos extrapatrimoniais denota natureza primordialmente
compensatória, estando, pois, em conformidade com o tratado internacional. Nesse
sentido, preconiza, com acuidade, Felipe Peixoto Braga Netto, Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald:
“Qualquer avaliação ou preço que se estipule como resposta do
Estado à ofensa de um bem intrínseco à pessoa humana será
meramente uma compensação ou uma satisfação. Ensina
FERNANDO NORONHA que indenizar é apagar o dano, o que só se
consegue fazer, através da reposição do patrimônio na situação em
que estava antes, enquanto compensar é dar algo que contrabalança
o mal causado, mas sem poder apagar este.” (Novo tratado de
responsabilidade civil. 4ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.
379).

Ademais, como é cediço, o conceito de dano extrapatrimonial está


atrelado aos direitos da personalidade, que, com o advento da Constituição de 1988,
foram elevados a uma posição supraestatal, tendo em vista que a atual Carta colocou
o homem no vértice do ordenamento jurídico, na mesma trilha das demais
Constituições no mundo (Nesse sentido: SCHREIBER, Anderson. Novos
paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos, 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2015, p. 206).
No mesmo sentido, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa
afirma que “no centro e no curso da problemática juscivilística da personalidade,
determinando-a e inflectindo-a, está o Homem ou, porventura mais do que isso, cada
homem concreto com a própria e dinâmica personalidade, confluindo aí, e muitas
vezes antinomicamente, desígnios de ordenação social, veiculadas através da
estrutura jurídica”. (O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995, p.
13).
Com efeito, a dignidade da pessoa humana está inserida na

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Constituição Federal como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º,


inc. III), assumindo posição de destaque. Acerca da dignidade da pessoa humana,
Ingo Wolfgang Sarlet elucida que:
“Cuidando-se a dignidade e aqui tomamos emprestadas as
expressivas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha do que se
poderia denominar de “coração do patrimônio jurídico-moral da
pessoa humana”, é imprescindível que se outorgue ao princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, em todas as suas
manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade possível,
em suma, que se guarde e proteja com todo o zelo e carinho este
coração de toda sorte de moléstias e agressões, evitando ao máximo o
recurso a cirurgias invasivas, e, quando estas se fizerem inadiáveis,
que tenham por escopo viabilizar que este coração (ético jurídico)
efetivamente esteja (ou, pelo menos, que venha a estar) a bater para
todas as pessoas com a mesma intensidade.” (Dignidade da Pessoa
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 6
ed. rev., atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.
148).

Nessa esteira, Sérgio Cavalieri Filho conclui que o dano moral em


sentido estrito é a lesão ao direito geral de personalidade. E foi, com fulcro nessa
premissa, que a Constituição inseriu em seu art. 5º, inc. V e X, a plena reparação do
dano moral. “Este é, pois, o novo enfoque constitucional pelo qual deve ser
examinado o dano moral: Qualquer agressão à dignidade pessoal lesiona a honra,
constitui dano moral e é por isso indenizável.” (Programa de responsabilidade civil.
10ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 88-89).
O dano moral não envolve, pois, apenas o sofrimento, a tristeza e a
dor experimentados pela vítima, mesmo porque pode haver dano moral sem que se
verifiquem esses efeitos. O dano consiste na violação a um bem ou atributo da
personalidade. Nesse sentido, Anderson Schreiber esclarece que o sentimento da
vítima face ao evento danoso deve apenas servir como meio para se quantificar o
dano e, consequentemente, arbitrar o valor da indenização (op. cit., p. 206).
Portanto, a mencionada lacuna no tratado internacional é naturalmente
preenchida em nosso ordenamento pela função iluminante e força normativa do art.
5º, incisos V e X, da Constituição Federal, depreendendo-se que o dano moral
comporta reparação autônoma, como, aliás, todas as demais figuras extrapatrimoniais
correlacionadas com função compensatória em favor da vítima, excluídos os punitive

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damages como adrede elucidado.


Estabelecido que a Convenção de Montreal não exclui a indenização
por danos morais compensatórios, verifica-se, outrossim, que inexiste qualquer
limitação nesta seara em nosso ordenamento jurídico1.
Com efeito, no julgamento do RE 172.720/RJ, de relatoria do Ministro
Marco Aurélio, a Suprema Corte decidiu rejeitar a indenização limitada prevista na
Convenção de Varsóvia (substituída pela Convenção de Montreal), consoante se
extrai do julgado abaixo transcrito:
“INDENIZAÇÃO DANO MORAL EXTRAVIO DE MALA EM
VIAGEM AÉREA CONVENÇÃO DE VARSÓVIA OBSERVAÇÃO
MITIGADA CONSTITUIÇÃO FEDERAL SUPREMACIA. O fato de a
Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada
por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais.
Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de
constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do
extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República
incisos V e X do art. 5º, no que se sobrepõe a tratados e convenções
ratificados pelo Brasil.”

Referido entendimento foi reafirmado no julgamento do RE


636.331/RJ, de modo que a limitação imposta pelo tratado abrange tão somente o
dano material, pois não há qualquer referência a dano moral. Nesse sentido, a
Ministra Rosa Weber, em seu voto, foi categórica:
“[...] a Convenção de Varsóvia não cuidou dos danos morais, não
cabendo, nessa perspectiva, estender a estes a aplicação dos limites
indenizatórios estabelecidos no mencionado pacto internacional.”

Posteriormente, no informativo jurisprudencial nº 866 do Supremo


Tribunal Federal, constou o seguinte trecho de suma importância, plenamente
aplicável a hipóteses desse jaez:
“Ademais, frisou que as disposições previstas nos aludidos acordos
internacionais incidem exclusivamente nos contratos de transporte
aéreo internacional de pessoas, bagagens ou carga. Assim, não
1 Acerca da limitação da indenização por danos morais, o Supremo Tribunal Federal já teve a
oportunidade de se manifestar. A Lei de Imprensa, por exemplo, julgada não recepcionada na ADPF
130, limitava a determinados números de salários mínimos a responsabilidade civil do jornalista
profissional e da empresa que explora os meios de informação ou divulgação. No entanto, entendeu-
se que, após a Constituição Federal de 1988, não mais prevalece nenhum limite, tabela ou tarifa
prefixados a serem observados pelo juiz. No mesmo sentido, firmou-se o entendimento do Superior
Tribunal de Justiça com a súmula nº 218: “A indenização por dano moral não está sujeita à
tarifação prevista na Lei de Imprensa”.
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alcançam o transporte nacional de pessoas, que está excluído da


abrangência do art. 22 da Convenção de Varsóvia. Por fim,
esclareceu que limitação indenizatória abarca apenas a reparação
por danos materiais, e não morais”

No caso em testilha, o dano moral ficou delineado, tendo em vista o


constrangimento e perturbação psíquica intensa decorrente da ausência de seus
pertences com o fim da viagem, causando preocupações e angústia na busca pelo
paradeiro da bagagem. Sobreleva acrescentar, por oportuno, que houve violação do
interior da mala, com o furto de diversos pertences (fls. 43/54). Ademais, referido
dano não é afastado pela devolução das malas, que apenas ocorreu posteriormente.
Tecidas essas considerações, passo à análise da quantificação da verba
reparatória a título de danos morais, a qual exige uma atividade parcimoniosa do
magistrado, uma vez que inexiste, e nem deveria existir, uma tarifação prevista em
lei para os abalos internos sofridos por determinado indivíduo. Devem ser levados
em consideração, portanto, algumas balizas impostas pela melhor doutrina.
São elas, por exemplo, o sopesamento da conduta das partes, a
intensidade e duração do dano, bem como o denominado “valor desestímulo”,
destinado a dissuadir o ofensor de igual prática no futuro, no âmbito do princípio da
prevenção (Nesse sentido, Le Tourneau e Cadiet, Droit de la responsabilité, Paris,
Dalloz, 1998). Nesse sentido, é valiosa a lição de Caio Mário da Silva Pereira:
“A vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho
patrimonial efetivo (...) deve receber uma soma que lhe compense a
dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo Juiz, atendendo às
circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a
situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em
fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva”.
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1993, p. 60 apud STOCO, Rui. Tratado de
responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7 ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 1684)

In casu, em razão do extravio da bagagem, o autor permaneceu sem


seus pertences por sete dias, causando constrangimento para a resolução do problem.
Além disso, a companhia aérea não comprovou ter prestado qualquer assistência
material à autora, que deriva da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Em casos de extravio definitivo de bagagem, tem sido fixada a quantia

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de R$10.000,00 a título de danos morais ao consumidor:


“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS
VOO INTERNACIONAL E EXTRAVIO DE BAGAGEM Procedência
parcial Pretensão de reforma. Autor teve suas bagagens extraviadas
durante viagem internacional, fato que caracteriza falha na prestação
de serviços e enseja indenização por danos morais. Não há como
negar que os acontecimentos descritos no feito, bem como sua
repercussão, trouxeram abalo psíquico, atingindo a tranquilidade do
autor, discrepando, por conseguinte, do que se pode qualificar de
mero aborrecimento. Inegável a ocorrência do dano moral
Indenização por dano moral que foi bem fixada no valor de R$
10.000,00, adequado para reparar a vítima pelos dissabores sofridos,
sem que isso implique em enriquecimento sem causa. Danos materiais
que ficaram evidenciados com o extravio e não localização da
bagagem do autor. Indenização que deve ser fixada consoante
critérios objetivos da Convenção de Montreal, nos termos do RE
6366331/ RJ 1.000 Direitos Especiais de Saques, consoante art. 22,
alínea 2 da Convenção Sentença parcialmente reformada. Recurso
parcialmente provido.” (TJ/SP. Apelação
1024997-36.2014.8.26.0100. Rel. Walter Fonseca. 11ª Câmara de
Direito Privado. Julgamento: 09/08/2018)

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - Atraso no voo e


extravio de bagagem - Sentença de procedência - Recurso da parte
autora Danos morais caracterizados Majoração do valor da
indenização Recurso provido. (...) No caso em exame, sopesando os
fatos narrados e em atenção aos princípios da proporcionalidade e
razoabilidade e, tendo em vista a reprovabilidade da conduta ilícita,
intensidade e duração do sofrimento experimentado pelo autor, bem
como a capacidade econômica da requerida causadora do dano,
mostra-se razoável majorar a indenização para o valor pretendido, no
patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais).” (TJ/SP. Apelação 1045630-
92.2019.8.26.0100. Rel. Spencer Almeida Ferreira. 38ª Câmara de
Direito Privado. Julgamento: 06/11/2019)

“APELAÇÃO - AÇÃO ORDINÁRIA - Pretensão ao pagamento de


indenização por danos morais - Sentença de procedência em parte -
Pleito de reforma da sentença - Cabimento em parte - Demanda que,
apesar de versar sobre transporte aéreo internacional, tem por pedido
recursal somente a majoração da indenização por danos morais, de
maneira que o CDC deve prevalecer sobre as Convenções de
Varsóvia e Montreal Apelante que foi privada de seus bens, tendo em
vista o extravio de sua bagagem, nunca encontrada pela apelada
Indenização que deve ser majorada para a quantia de R$ 10.000,00
(dez mil reais), montante razoável e proporcional à condição
econômica das partes e aos dissabores enfrentados pela apelante

Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003 -Voto nº 2479 12


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Sentença reformada em parte APELAÇÃO provida em parte, para


majorar a indenização por danos morais, no valor supra.” (TJ/SP.
Apelação 1088314-66.2018.8.26.0100. Rel. Kleber Leyser de Aquino.
15ª Câmara de Direito Privado. Julgamento: 30/07/2019)

Assim, sopesando referidas circunstâncias, tendo em vista que, no


caso vertente, a bagagem foi localizada e devolvida ao autor com violação de seus
pertences após a viagem de turismo, em cotejo com os princípios da razoabilidade,
proporcionalidade e subprincípio da proibição de excesso, fixo o quantum de
R$3.000,00 a título de danos morais. Tal montante revela-se suficiente, sem,
contudo, representar enriquecimento sem causa.
No que concerne à condenação em danos materiais, que foi objeto da
irresignação da companhia aérea Gol Linhas Aéreas (fls. 292/300), melhor sorte não
assiste à ré.
Com efeito, conforme já consignado, a ré atuou na cadeia de serviços
prestado ao autor em sistema de complementariedade com a corré Delta Airlines Inc.,
uma vez que realizou o final do trecho da viagem (Rio de Janeiro São Paulo).
Ademais, em que pese a argumentação da ré de que houve culpa exclusiva de terceiro
e ausência de nexo causal, não há qualquer elemento no conjunto probatório apto a
corroborar com seu argumento.
De fato, o artigo 192, parágrafo único, do Código de Processo Civil,
estabelece que “o documento redigido em língua estrangeira somente poderá ser
juntado aos autos quando acompanhado de versão para a língua portuguesa tramitada
por via diplomática ou pela autoridade central, ou firmada por tradutor
juramentado”.
Contudo, referida norma deve ser interpretada à luz do princípio da
instrumentalidade das formas, verificando-se, no caso concreto, se há prejuízo à
defesa da parte contrária ou ao processo.
Nesse sentido, há remansosa jurisprudência:
AÇÃO DE COBRANÇA SOBREESTADIA DE CONTÊINER
SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA APELAÇÃO DA RÉ
- Alegação de que alguns documentos são ilegíveis Documentos
desnecessários para o deslinde da controvérsia.
- Alegação de falta de tradução dos “invoices” (notas fiscais)
Desnecessidade Não demonstração de prejuízo à apelante-
Possibilidade de cobrança das taxas de sobreestadia Documentos

Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003 -Voto nº 2479 13


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suficientes para a comprovação das alegações da autora Crédito que


não depende de forma escrita Legitimidade que decorre dos usos e
costumes Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Recurso
não provido. (TJSP, Apelação nº 1018259-96.2017.8.26.0562, Rel.
Marino Neto, 11ª Câmara de Direito Privado, j. 01/08/2019).

Ação de cobrança. Devolução de contêiner. Sobreestadia. Sentença de


procedência. Apelação. Preliminar de inépcia afastada. Princípio da
instrumentalidade. A ausência de tradução do documento em inglês
não gera nulidade se quem a alega não comprova um prejuízo
['pas de nullité sans grief']. Afastada a preliminar de falta de
documentos indispensáveis. Conjunto probatório. Conhecimento
marítimos. Termo de compromisso com previsão de taxas e prazos.
Instrumento firmado após a descarga dos contêineres aplicável ao
caso, em razão de disposição expressa. Datas de devolução não
impugnadas e informadas nas faturas e documentos relativos ao
desembarque. Sobreestadia. Cobrança da 'demurrage' que decorre dos
usos e costumes. Direito consuetudinário marítimo que deve ser
observado. Responsabilidade da consignatária sobre a carga. Ausência
de elementos que poderiam afastar sua responsabilidade ou justificar a
demora na devolução do container. 'Free time'. Prática ínsita
aos contratos dessa natureza. Previsão na proposta apresentada e nas
faturas emitidas. Diárias que devem ser descontadas do total devido.
Sentença reformada em parte. Honorários majorados. Recurso
parcialmente provido. (TJSP, Apelação nº
1011717-28.2018.8.26.0562, Rel. Virgilio de Oliveira Junior, 21ª
Câmara de Direito Privado, j. 07/12/2018).

APELAÇÃO Ação monitória Importação de mercadorias


Procedência do pedido monitório, em virtude da rejeição dos
embargos opostos Pleito de reforma Impossibilidade Alegação de
ausência de documento essencial Afastamento - Tradução
juramentada que se revelou desnecessária na hipótese Ausência de
demonstração de eventual prejuízo para compreensão do conteúdo da
avença e do valor exigido Preliminar afastada Importação de
mercadorias Nota fiscal e conhecimento de transporte juntados aos
autos Prova escrita hábil à propositura de ação monitória
Precedentes Negócio jurídico refutado em sede de embargos
monitórios Ofício expedido ao Delegado da Receita Federal
Apelante que providenciou o desembaraço aduaneiro Nota fiscal de
importação em nome da apelante Ausência de impugnação quanto ao
documento apresentado pela Receita Federal Título corretamente
constituído Recurso improvido.
(TJSP, Apelação nº 1016031-81.2014.8.26.0004, Rel. Claudia Grieco
Tabosa Pessoa, 19ª Câmara de Direito Privado, 29/08/2018).

No caso em testilha, verifica-se que não houve qualquer prejuízo à


Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003 -Voto nº 2479 14
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parte ré, que exerceu seu direito de ampla defesa,


apresentando contestação extensa, que abordou todos os pontos da exordial.
Nesse contexto, verifico que os objetos subtraídos (perfume e fone de
ouvido) estão mencionados nas notas fiscais de fl. 34.
Malgrado a corré Gol tenha alegado a ausência de tradução, não houve
impugnação específica quanto à compra e à subtração dos objetos. Igualmente, as
requeridas não contestam as avarias e as características das malas do requerente, nem
a estimativa de prejuízo apresentada.
Sobreleva acrescentar que não houve pedido recursal de redução do
montante indenizatório arbitrado pelo magistrado a quo (750 DES), com base nas
peculiaridades da demanda, respeitando-se o limite constante no art. 22.2 da
Convenção de Montreal, incorporada no país por meio do Decreto 5.910/2006.
Vejamos:
Art. 22. Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem
e da Carga (...) 2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do
transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se
limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos
que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a
bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega
desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se
for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma
soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este
valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino
(destaques nossos).

A despeito da redação do artigo acima transcrito, os limites da


responsabilidade das transportadoras aéreas ao abrigo da Convenção de Montreal
foram objeto de revisão, nos anos 2009 e 2014, pela Organização da Aviação Civil
Internacional (OACI), em função de fator que corresponde à taxa acumulada de
inflação desde a data da entrada em vigor da Convenção de Montreal. Nesse sentido,
dispõe seu artigo 24:
Art. 24. Revisão dos Limites 1. Sem que isto afete as disposições do
artigo 25 da presente Convenção, e sujeito ao estabelecido no número
2 seguinte, os limites de responsabilidade prescritos no artigos 21, 22,
e 23 serão revisados pelo depositário, a cada cinco anos, devendo
efetuar-se a primeira revisão ao final do quinto ano seguinte à data
de entrada em vigor da presente Convenção ou, se a Convenção não

Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003 -Voto nº 2479 15


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entrar em vigor dentro dos cinco anos seguintes à data em que foi
aberta à assinatura, dentro do primeiro ano de sua entrada em vigor,
com relação a um índice de inflação que corresponda à taxa de
inflação acumulada desde a revisão anterior ou, na primeira vez,
desde a data da entrada em vigor da Convenção. A medida da taxa de
inflação que deverá ser utilizada para determinar o índice de inflação
será a média ponderada das taxas anuais de aumento ou de
diminuição do índice de preços ao consumidor dos Estados cujas
moedas formam o Direito Especial de Saque Mencionado no nº 1 do
artigo 23 (destaques nossos).

Sobreleva mencionar, por oportuno, que este fator de revisão dos


limites previsto no artigo 24 da Convenção de Montreal é denominado
internacionalmente de “escalator clause”, consoante escólio de Michael Milde e Paul
S. Dempsey:
“The concluding article of the Warsaw Convention provided the right
of any contracting State to convene a new Conference for improving
it. While the Warsaw Convention vested the authority for the
convening of a diplomatic conference in the French government, this
task was effectively taken over by ICAO after the establishment of the
ICAO Legal Committee in 1947. At the 1999 Diplomatic Conference
this provision was referred to as the “escalator clause.” (MILDE,
Michael, DEMPSEY, Paul S., International Air Carrier Liability: The
Montreal Convention of 1999, p. 200-201, Mc Gill University, Centre
for Research in Air & Space Law, 1ª ed., 2005)

Por efeito de tal revisão, no concernente ao transporte de bagagem, na


hipótese de atraso na sua entrega, avaria ou perda, a responsabilidade da
transportadora restou limitada a 1.131 direitos especiais de saque por passageiro
(disponível em <http://www.icao.int/> - site da Organização Internacional da
Aviação Civil, acesso em 15/07/2019), posto que o limite máximo da
responsabilidade pela bagagem registrada, estabelecido na Convenção de Montreal,
passou a ser de 1.131 DES.
Acerca do tema, insta consignar a existência de recurso extraordinário
com repercussão geral julgado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, no sentido
justamente de limitar o valor da indenização por dano material paga ao passageiro
por extravio de bagagem em voo internacional, cuja ementa se transcreve, por
oportuno:
“Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Extravio de

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bagagem. Dano material. Limitação. Antinomia. Convenção de


Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. 3. Julgamento de mérito.
É aplicável o limite indenizatório estabelecido na Convenção e
Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em
relação às condenações por dano material decorrente de extravio de
bagagem, em voos internacionais. 5. Repercussão geral. Tema 210.
Fixação da tese: "Nos termos do art. 178 da Constituição da
República, as normas e os tratados internacionais limitadores da
responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros,
especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm
prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor". 6.
Caso concreto. Acórdão que aplicou o Código de Defesa do
Consumidor. Indenização superior ao limite previsto no art. 22 da
Convenção de Varsóvia, com as modificações efetuadas pelos acordos
internacionais posteriores. Decisão recorrida reformada, para
reduzir o valor da condenação por danos materiais, limitando-o ao
patamar estabelecido na legislação internacional. 7. Recurso a que se
dá provimento.” (STF. RE 636331, Rel. Min. Gilmar Mendes,
Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017)

No tocante ao referido julgado, sobreleva esclarecer a diferença entre


responsabilidade tarifada e responsabilidade limitada. A primeira presume o dano e
já o quantifica; a segunda, por sua vez, não presume o dano, que deve ser provado,
funcionando o limite legal fixado somente como um quantum máximo (in
MARQUES, Cláudia Lima. A responsabilidade do transportador aéreo pelo fato do
serviço e o Código de Defesa do Consumidor a antinomia entre norma do CDC e de
leis especiais. Revista de direito do consumidor, São Paulo, v. 3, p/ 155-197, set./dez.
1992, p. 173).
A Convenção de Montreal, mantendo o disposto na Convenção de
Varsóvia, traz apenas um limite máximo de indenização, de modo que a
responsabilidade do transportador é limitada, devendo ser comprovado o dano
sofrido e sua extensão.
Por fim, resta prejudicada a irresignação do autor quanto à fixação da
verba honorária na sentença, haja vista o provimento de seu recurso e integral
procedência de seus pedidos (Súmula 326 do STJ).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso das rés e dou parcial
provimento ao recurso do autor, para manter a condenação ao pagamento por danos
materiais, nos termos da sentença, bem como para condenar as rés, solidariamente,
ao pagamento de indenização por danos morais no montante de R$3.000,00,
Apelação Cível nº 1016345-54.2019.8.26.0003 -Voto nº 2479 17
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acrescido de correção monetária pela Tabela Prática deste E. Tribunal desde a data do
acórdão (Súmula nº 362 do STJ) e juros moratórios de 1% ao mês a partir da citação.
Em virtude da sucumbência, as requeridas arcarão com o pagamento das despesas
processuais. À luz do desprovimento do recurso da corré Gol, condeno esta ao
pagamento dos honorários advocatícios, no montante de 17% do valor da
condenação, considerando a verba honorária recursal (art. 85, §11º, do CPC). Por seu
turno, mantenho a condenação da corré Delta ao pagamento dos honorários
advocatícios, no montante de 15% do valor da condenação.

MARCO FÁBIO MORSELLO


Relator

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