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Problema 2 – Quando a dipirona sódica vira inimiga

Sonia, 22 anos, moradora da cidade de São Paulo, operadora de telemarketing, procura


pela quarta vez em uma semana o Pronto Atendimento com queixa de dor de cabeça,
referindo que as dores vêm precedidas de alteração visual, que são holocranianas,
pulsáteis, associadas a náuseas, fotofobia e fonofobia.
Anteriormente diagnosticada com cefaleia, foi medicada com Dipirona Sódica e
dispensada com orientações. Como trabalha em duas empresas diferentes não conseguiu
tempo para uma consulta com o especialista. Tentava associar seu quadro ao da irmã mais
velha que sofria de enxaqueca.
Mais uma vez medicada com Dipirona Sódica e dispensada foi para casa acreditando que
no dia seguinte seria tudo diferente.
Acordou de madrugada com uma dor de cabeça insuportável, pediu ao seu marido que a
acompanhasse ao hospital novamente. Agora além da dor de cabeça apresentava febre,
prostração, náuseas e vômitos.
Dando entrada no pronto socorro, prontamente medicada com Dipirona Sódica,
apresentou quadro de confusão mental que logo foi associado ao medicamento. Deixada
em observação apresentou os seguintes resultados de exames:
Hemograma: hemoglobina 12,3; hematócrito 36,2; leucócitos 22.100 (com 4% de
bastões); plaquetas 150.000; PCR 14mg/dl; VHS 22 mm.
Com 5 horas de observação apresentou ao exame físico Sinal de Kernig e Brudzinski
positivos o que levou o clínico de plantão à indicação de punção liquórica. Logo na
punção verificou tratar-se de um líquido turvo. Enviando o material para análise
identificou-se: glicose de 30mg/dl; relação glicose LCR/soro 0,2; proteína de 108mg/dl;
e leucócitos 1800/m3 com predomínio de neutrófilos. O material foi encaminhado para
cultura. Internada no isolamento foi iniciado uso de Penicilina Cristalina
500.000UI/Kg/dia de 4 em 4 horas e notificada a vigilância epidemiológica.
Em virtude da paciente apresentar dois episódios de crise convulsivas, hipoacusia, ptose
palpebral, e petéquias a equipe médica de plantão encaminha a paciente aos cuidados da
UTI, considerando um agravamento da condição clínica. Foi submetida à Tomografia
Computadorizada de Crânio que não apresentou qualquer alteração evidente.
Após 48 horas da punção a equipe é informada do resultado da cultura do líquido
cefalorraquidiano: Neisseria meningitidis
Após dois meses de internação hospitalar, Sonia recebe alta em bom estado geral, porém
apresentando perda da audição.
Palavras-chave: dor de cabeça, holocraniana, náuseas, vômitos, febre, confusão mental,
sinal de Kernig e Brudzinski, líquido turvo, hipoacusia, petéquias.
Manifestações clínicas e tratamento das meningites bacterianas
Definição: meningites bacterianas são processos agudos que acometem as leptomeninges
(pia-aracnoide) provocando pleocitose no líquido cefalorraquidiano com evidência de um
patógeno bacteriano.
Patogênese:
- Colonização de nasofaringe;
- Passagem pela mucosa e penetração na corrente sanguínea;
- Multiplicação intravascular e invasão da barreira hemato-liquórica (BHL);
- Inflamação no espaço subaracnóide;
- Lesão neuronal e em células do aparelho auditivo.
Direta: propagação de um processo infeccioso adjacente às meninges, como mastoidites,
tromboflebites de seios cavernosos. Fraturas de ossos da base do crânio.
Fisiopatologia da Meningite
A transmissão e o acesso ao sistema nervoso central
A transmissão da maioria das etiologias ocorre através do contato com secreções
respiratórias no portador do agente patogênico. As meningites virais (especificamente
causadas por enterovírus) geralmente são transmitidas por via fecal-oral.
A invasão à barreira hematoencefálica nas meningites bacterianas ocorre através de três
mecanismos:
Por acesso direto, ou seja, nos casos de fraturas cranianas, defeitos congênitos do tubo
neural e iatrogênica (por meio de punção liquórica inadequada)
Acesso por contiguidade, devido infecções próximas às meninges: otites médias,
mastoidites ou sinusites.
E por fim a via hematogênica, em que ultrapassa a barreira hematoencefálica por
ligação com receptores endoteliais, lesão endotelial ou em áreas susceptíveis, como o
plexo coroide.
Nas meningites virais, a invasão ao sistema nervoso central ocorre por via hematogênica,
no caso dos enterovírus, ou por via neuronal, no caso do HSV.
Meningites virais são representadas principalmente pelos enterovírus. Nesse grupo estão
incluídas as 3 cepas do poliovírus, 28 cepas de echovírus, 23 cepas do vírus coxsackie A,
6 do vírus coxsackie B e 5 outros enterovírus.
Meningites bacterianas na infância:
Etiologia: principais agentes (~95%)
- Neisseria meningitidis
- Streptococcus pneumoniae
- Haemophilus influenzae b
Período neonatal: E. coli, Enterobacter sp., Krebsiella sp., Streptococcus agalactie (EGB),
Listeria monocytogenes.
Portadores de DVP, Pós-operatório de SNC: Staphylococcus aureus, Pseudomonas sp.
Fatores de risco para o desenvolvimento de meningite neonatal:
Prematuridade, colonização retovaginal materna com EGB, ruptura prematura de
membranas, ruptura prolongada de membranas >18 horas, monitoramento fetal invasivo,
baixo peso ao nascer (1500g), internação prolongada e presença de dispositivos externos
(shunts, cateteres). EGB e E coli são os principais agentes.
Transmissão e estado de portador
O estado de portador é um pré-requisito para a doença meningocócica. O portador
assintomático (pode ter longa duração) – nasofaringe (<1% - 30%), sendo mais prevalente
em adolescentes e adultos jovens.
Quadro clínico:
Tríade clássica de febre, rigidez de nuca e alteração mental (p. ex. letargia, confusão,
irritabilidade)
No período neonatal: semelhante a uma sepse, hipotermia ou hipertermia, letargia,
abaulamento de fontanela, icterícia, irritabilidade, apneia, irregularidade respiratória,
convulsões.
Lactentes > de 1 mês: febre, vômitos, gemência (sinal de alerta mesmo quando abaixa a
febre), irritabilidade, abaulamento de fontanela, convulsões.
Crianças maiores: semelhante ao adulto. Febre, vômitos, cefaleia e sinais de irritação
meníngea (rigidez de nuca, Kernig, Laségue, Brudzinski).
Doença meningocócica
- Cápsula de polissacarídeo (12 sorogrupos) A, B, C, Y, X e W...
- Taxas de letalidade de 5 a 20%. Maiores taxas de letalidade em adolescentes, adultos e
idosos;
Síndromes clínicas associadas: Bacteriemia (37,5%) – meningococcemia; Meningite
(50%); Pneumonia (9%); Conjuntivite artrite, pericardite, uretrite.
Diagnósticos diferenciais: Doença de Kawasaki com linfadenopatia cervical, otite média
e mastoidite, faringite ou amigdalite, abcesso retrofaríngeo, Subluxação atlantoaxial
(síndrome de Grisel), pneumonia de lobo superior, meningite viral, síndrome de Sandyfer,
Síndrome de Guillan-Barré, trauma e tumor cerebral.
Diagnóstico:
- Citológico
- Bioquímico (proteínas, glicose, cloretos)
- Bacterioscópio
- CIE, látex
- Cultura
- PCR
- Coleta de líquor (LCR)
Critérios de normalidade na interpretação do líquor
Se atentar à idade, pois no período neonatal a interpretação é diferente das outras faixas
etárias.

Meningite bacteriana: leucocitose com predomínio de neutrófilos (única),


proteinorraquia aumentada (pleocitose de proteínas) – o aumento significativo do
número de proteínas é indicativo de infecção; glicorraquia diminuída, devido o
consumo de glicose pelas bactérias. As Neisserias são organismos oxidase-positivos
que produzem ácido a partir da oxidação.
Meningite viral: geralmente cursa com leucócitos baixos e a glicose permanece normal.
Meningite tuberculosa: proteinorraquia aumentada, com predomínio de linfócitos,
glicorraquia muito diminuída, leucócitos abaixo de 1000.
Meningite fúngica: proteinorraquia aumentada, leucócitos abaixo de 100, glicorraquia
normal ou baixa.
Marcadores inflamatórios e biomarcadores
Auxiliam o diagnóstico, mas não são preditivos absolutos.
- PCR com valores acima de 80 mg/dL
- Procalcitonina – valores acima de 2 tem elevada sensibilidade (>99%) e especificidade
(63%) para detecção de MB.
- Lactato no LCR – um corte de 54mg/dL teve sensibilidade de 90%, especificidade de
100%, valor preditivo positivo de 100% e valor preditivo negativo de 96% para MB.
A acurácia diagnostica do lactato no LCR é melhor do que a da contagem de glóbulos
brancos no LCR, concentração de glicose e nível de proteína em pacientes que não
receberam terapia antimicrobiana prévia.
Métodos “não cultura”:
- Antígeno no LCR (imunocromatográfico): antígeno do pneumococo (Binax)
- Painel molecular “Film Array” Meningitidis/encephalitis (ME) – rastreamento de
agentes etiológicos.
- Sequenciamento metagenômico.
Atenção à coleta de amostras para diagnóstico!
Hemoculturas colhidas idealmente antes da infusão do antibiótico. Látex no sangue;
pesquisa de DGN em raspado de lesão petequial de pele.
Coleta do LCR – ATENÇÃO! – NÃO tentar colher o LCR em crianças com alteração
hemodinâmica, PIC aumentada ou CIVD.
Iatrogenia na assistência: coleta precipitada do líquor, uma criança chocada no PS, a hora
que você coleta o líquor neste caso, você muitas vezes restringe o paciente, provocando
hipoventilação, piora da acidose e hipoxia, e contribui para etiopatogênese da
sepse/choque, gerando piora clínica e possivelmente óbito.
Qual a relevância de uma criança que está chocada no PS, do resultado do líquor naquele
momento no manejo terapêutico? NENHUMA, a conduta neste momento não depende
do resultado do líquor, pode perfeitamente entrar com antibióticos, drogas vasoativas,
volume, e colher o líquor em um momento mais oportuno. Deve-se colher a hemocultura
antes de infundir o antibiótico.
Tratamento empírico
0<2 meses: Ampicilina + Cefalosporina IIIo (Cefotaxime)
Maior ou igual a 2 meses: Vancomicina + Cefalosporina IIIo (Ceftriaxone)
A vancomicina não pode ser usada como monoterapia por não ter uma penetração
liquórica ideal, deve ser associada a um beta lactâmico.
Associar vancomicina nos locais com prevalência de cepas de Pneumococos resistentes
às cefalosporinas acima de 1%.
Duração de tratamento
Microrganismo Duração da terapia (dias)
Neisseria meningitidis 5-7
Streptococcus pneumoniae 10-14
Haemophilus influenzae b 7-10
Streptococcus agalactiae 14-21
Bacilos gram negativos 21
Listeria monocytogenes 21
Staphylococcus aureus 21
Guia sugestivo de tratamento – tempo médio da terapêutica.
Quando colher líquor de controle?
Quando houver ausência de reposta adequada após 48 – 72 horas de antibioticoterapia
apropriada.
Lactentes menores de 3 meses.
Pacientes com meningite por bacilos Gram-negativos.
Infecções causadas por pneumococos resistentes ao antibióticos beta lactâmicos.
Atenção: os valores de LCR com neutrófilos > 30%, glicose <20mg/dL, ou relação LCR-
glicose no sangue <20% geram preocupação e, nessas circunstâncias, o exame do LCR,
bem como a neuroimagem, podem ajudar a determinar uma duração ideal da
antibioticoterapia para prevenir a recaída.
Neuroimagem
A realização de neuroimagem pode ser indicada para avaliar complicações com empiema
subdural, abcesso cerebral, trombose vascular cerebral ou hidrocefalia.
As indicações para neuroimagem incluem sinais neurológicos focais, obnubilação
prolongada, aumento do perímetro encefálico, convulsões que ocorrem >72 horas após o
início do tratamento, culturas persistentemente positivas do LCR ou neutrofilia
persistente do LCR apesar da antibioticoterapia apropriada.
A realização de imagem é justificada em crianças que apresentam meningite recorrente
para avaliar a possibilidade de fistulas.
Uso da dexametasona nas meningites
Tem sido utilizada principalmente como uma forma de diminuir sequelas auditivas e deve
ser iniciada idealmente antes da primeira dose de antibiótico para prevenir a cascata
inflamatória que é desencadeada quando o antibiótico faz a lise da parede da bactéria.
Antibióticos + Bactéria → lise da parede celular → produtos inflamatórios ativam células
endoteliais a produzirem as citoquinas (TNF alfa, Interleucina 1 beta e PAF):
- Alteração da barreira hemato-liquórica.
- Edema cerebral vasogênico e citotóxico.
- Aumento da pressão intracraniana.
A dexametasona é um potente inibidor do TNF e IL
Recomendação de uso: meningite por H. influenzae b em lactentes > de 6 semanas e
crianças.
Dose de 0,15mg/kg/dose de 6/6 horas por 2 dias. Pelo menos 15’ antes da primeira dose
de antibiótico.
Indicações da quimioprofilaxia da DM.
Todos os contactantes íntimos, domiciliares. Contatos de creches e escolas maternais nos
últimos 7 dias. Exposição direta as secreções do caso índice por beijos, uso de escovas
dentarias ou utensílios de alimentação nos últimos 7 dias.
Médicos e paramédicos que realizaram manobras de RCP
Epidemiologia
Membrana celular meningocócica
Sobrevivência microbiana na corrente sanguínea e invasão do sistema nervoso
central
Interações hospedeiro-patógeno e ativação imunológica na meningite bacteriana.

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