Você está na página 1de 36

Capítulo I

DOS ACTOS DE COMÉRCIO

14. Actos objectiva e subjectivamente comerciais. - Diz o art. 2.°: "Serão


considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especial-
mente regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obri-
gações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente
civil, se o contrário do próprio acto não resultar".
Por esta disposição vemos que no espírito do legislador a matéria
comercial aparece distribuída por duas categorias: actos objectivamente
comerciais e actos subjectivos':',
A mesma arrumação aparece no Código italiano de 1882, cujos arti-
gos 3.° e 4.0 correspondem respectivamente à primeira e segunda parte
do artigo 2.° do nosso Código.
A primeira parte do artigo 2.° diz: "Serão considerados actos de
comércio aqueles que se acharem especialmente regulados neste
Código ...".
Diferente é o processo usado no Código italiano, cujo artigo 3.° esta-
belece: "A lei considera actos de comércio: 1.0 - a compra de géneros e
mercadorias para revenda; 2.° - As vendas de géneros; 3. As com- 0
-

pras de bens imóveis; 4.° - O reporte; 5.° - ..."; etc. Como vemos, o
legislador italiano usou o processo de indicar de forma explícita as acti-
vidades comerciais; é o método da enumeração descoberta, explícita,
patente.

II! Como se referiu já (supra, pág. 15, nota 2), o nosso legislador não seguiu, na delimita-
ção do direito comercial, nem a concepção objectiva pura nem, tão-somente, a concep-
ção subjectiva. Orientou-se antes por um sistema misto, nos termos do qual são actos
de comércio os que a lei enumera como tais e, além destes, os actos dos comerciantes
que tenham conexão com a sua actividade mercantil.
38 Liç_ões de Direito Comercial

o nosso legislador usou o método da enumeração implícita; o artigo


2.° limita-se a remeter para outras disposições do sistema; mas tudo se
passa, é evidente, como se as várias actividades comerciais fossem indi-
cadas logo no próprio artigo 2.°. São processos diferentes, mas que tra-
duzem no fundo a mesma atitude, ante o problema da delimitação da
matéria comercial.
Os actos indicados na primeira parte do art. o 2.° - como no artigo
3.° do Código italiano - são, pois, actos objectivamente comerciais, já
que a sua comercial idade reside neles próprios, não está na pessoa que
os pratica: é in re, objectiva.
Na segunda parte do artigo 2.0 estão referidos os actos subjectiva-
mente comerciais: estabelece-se aí uma presunção genérica de comer-
cialidade para os actos dos comerciantes; qualquer acto de índole patri-
monial se presume mercantil, contanto que tenha sido praticado por um
comerciante.
Esta classificação dos actos de comércio carece de valor científico;
efectivamente, nem a categoria dos actos de comércio objectivos nem a
dos actos subjectivos são categorias puras.
Assim, é de notar, relativamente à primeira categoria, que nem sempre
os actos objectivamente comerciais deixam de depender da qualidade de
comerciante do ou dos respectivos sujeitos. Se lermos, por exemplo, os
artigos 224.° e 366.° do Código Comercial, que se referem, respectiva-
mente, à conta em participação e ao transporte, verificaremos que a
comercialidade desses contratos assenta, de certo modo, na qualidade de,
pelo menos, um dos sujeitos. "Dá-se conta em participação quando um
comerciante interessa uma ou mais pessoas ou sociedades nos seus ganhos
e perdas ... " - diz o art.° 224.°.Este contrato (a conta em participação) é,
sem d˙vida, um acto especialmente regulado no Código Comercial.
Cabe, portanto, na primeira parte do art. 2.°. E desde que revista, em
concreto, as características com que na lei comercial é definido (veja-se o
art. 224.°), ele é seguramente um acto de comércio objectivo. Ora uma
dessas características é precisamente a qualidade de comerciante de um
dos sujeitos da conta em participação. Importa, em suma, para que ela
seja comercial, que um dos sujeitos do acto seja comerciante.
Vê-se, assim, que a designação de actos de comércio objectivos não é
rigorosa, porque há actos que, cabendo embora na primeira parte do art.
2.°, só são comerciais quando um dos sujeitos for comerciante. Não é
inteiramente exacto dizer-se que a comercialidade dos actos da 1.a parte
do art. 2.° depende apenas de circunstâncias de ordem objectiva: há con-
dições subjectivas da comercial idade objectiva dos actos de comércio.
ai Dos actos de comércio 39

'O Relativamente à 2.. categoria - actos subjectivos - há que formular


;e uma consideração semelhante, porque nem todos os actos jurídicos pra-
i- ticados por comerciantes são actos de comércio. O facto de serem prati-
l- cados por comerciantes não é, só por si, suficiente para que tais actos
a sejam qualificados como comerciais, sendo necessário que, além desta
condição subjectiva, neles se verifique uma certa conformação objectiva,
o que se traduz nestas duas fórmulas: "não serem de natureza exclusiva-
já mente civil" e "se o contrário do próprio acto não resultar" - como se
te vê da 2. a parte do art. 2. o. Mais tarde fixaremos o significado destas
expressões. Por agora o que importa é reter que há condições objectivas da
i- comercialidade subjectiva dos actos de comércio (II.

r- Em resumo, não existe uma categoria pura de actos de comércio subjecti-


l- vos, porque há condições objectivas sem a verificação das quais não
n pode falar-se de um acto subjectivamente comercial. E do mesmo modo
não há uma categoria pura de actos de comércio objectivos, porque há con-
dições subjectivas de que depende a comercialidade objectiva dos actos
a de comércio.
Por ˙ltimo, não está excluído que a razão que decide da comercialidade dos
actos dos comerciantes (2.a parte do art. 2. O) seja a mesma que decide da
e comercialidade de certos actos objectivos. A razão da comercialidade dos
IS actos dos comerciantes é, com efeito, a sua conexão com o comércio. E esta
i- mesma razão não estará na base de algumas das disposições que consi-
a deram mercantis certas actividades de carácter económico?
As razões expostas confirmam que o valor teórico deste critério de
rI classificação é deveras duvidoso. Claro está que não podemos deixar de
IS manter esta nomenclatura, já que a lei a usa, mas não dando ao critério
mais que um valor puramente formal. E chamaremos, assim, actos
objectivos aos que devem a sua comercialidade ao facto de se ajustarem
n em concreto a um dos tipos de actividade descritos na lei mercantil, e
o actos subjectivos àqueles que devem a sua comercialidade, essencial-
a mente, à qualidade de comerciante do sujeito que os pratica.
n
a 15. Actos comerciais por natureza (absolutos) e actos comerciais por conexão
ou acessoriedade. - Mais importante que a anterior é, sem d˙vida, a clas-
é sificação que distingue entre actos de comércio por natureza (absolutos) -
t. isto é, actos que devem a comercialidade à sua própria natureza intrín-
é seca - e actos de comércio por conexão ou acessoriedade, isto é, actos que
oe
1-
lU Vide o que sobre o assunto se escreveu supra no n." 4.
40 Liç_õesde Direito Comercial

devem considerar-se comerciais em consequência da sua relação de


conexão ou acessoriedade quer com um acto de comércio fundamental,
quer com a exploração de uma empresa mercantil ou com o comércio
em geral. Destes ˙ltimos costuma dizer-se que são actos de comércio
pela chamada teoria do acessório. A classificação tem um valor teórico
muito superior ao da que referimos há pouco.
Agora, já se procura indagar a razão das coisas; agora, já se pergunta
porque é que o legislador considerou certos actos como comerciais.
Os arts. 231. (sobre o mandato) e 397. (sobre o penhor), por exem-
0 0

plo, mostram-nos actos de comércio objectivos que devem a sua comer-


cialidade ao facto de manterem conexão com actividades mercantis.
Diz o primeiro: "Dá-se mandato comercial quando alguma pessoa se
encarrega de praticar um ou mais actos de comércio por mandato de
outrem". Assim, quando uma pessoa é por outra encarregada de prati-
car actos de comércio, o mandato é comercial. Logo, a lei considera o
mandato como comercial quando ele se apresenta como acessório dum
acto de comércio. A sua natureza comercial resulta da comercialidade
dos actos para que foi conferido.
O que se diz do mandato, podia dizer-se do penhor, do empréstimo,
do depósito, etc. (dr. arts. 397. ,394. e 403. do Código Comercial).
0 0 0

Porque a lei, em muitos casos, considera comerciais certos actos jurí-


dicos em virtude da sua relação de acessoriedade ou conexão com actos
de comércio ou com o comércio em geral, pretendeu-se generalizar e
dizer que todos os actos conexos com a actividade mercantil serão actos
comerciais, mesmo que praticados por não comerciantes. É o que afirma
a chamada "teoria do acessório", que daqui a pouco explanaremos.
Tem-se contestado o valor da classificação de que agora tratamos.
Não se nega que, percorrendo a lei mercantil, se nos deparam numero-
sos exemplos de actos que o legislador considerou comerciais em razão
da conexão que mantêm com o comércio. Mas isso não basta - diz-se
- para dar interesse à classificação de que se está falando. A classifica-
ção só teria interesse se fosse de admitir a chamada teoria do acessório,
ou, por outras palavras, se tivessem razão aqueles autores para quem
todos os actos conexos com a actividade mercantil, praticados em
desenvolvimento dela, podem ser e devem ser considerados comerciais.
Assim parece discorrer o Prof. PINTO COELHO 01.

uI Cfr. Lições de direito comercial, 3.'ed., I, págs. 61 e segs.


ial
Dos actos de comércio 41

ie
Mas não é bem assim. É inegável que uma vez rejeitada - como
11,
parece se deve rejeitar - a doutrina do acessório, a classificação de que
io
vimos falando perde o melhor do seu interesse prático. Mas não todo.
io
Aquela doutrina continua a interessar, designadamente para a questão
:0
de saber quem é comerciante à face do nosso direito. Veremos daqui a
pouco que, segundo a doutrina adoptada, é comerciante quem exerce
ta
profissionalmente o comércio, ou seja, quem pratica actos de comércio abso-
lutos, actos que sejam mercantis por sua natureza. Pelo menos, é esta a
1-
opinião de muitos. Ora, sendo assim, logo por aqui se vê que tem inte-
r-
resse a classificação em análise.
;e
16. Actos bilateralmente comerciais e actos unilateralmente comerciais ou
te
mistos. - Actos há que têm qualidade mercantil em relação às duas par-
i-
tes, e outros que são comerciais só em relação a um dos sujeitos, confor-
o
me os requisitos de comercialidade se verifiquem em relação a ambos
n
ou apenas a um. Os primeiros são actos bilateralmente comerciais; os
e
segundos são actos unilateralmente comerciais ou mistos.
Fácil se torna compreender que possa haver actos de comércio ape-
),
nas em relação a uma das partes. Um negócio bilateral pode sempre
decompor-se, ao menos abstractamente, em duas operações distintas.
í-
Imaginemos o caso típico da compra e venda. Este contrato pode, abs-
s
tractamente, decompor-se em duas operações: uma compra e uma
e
venda. É claro que é impossível conceber uma compra sem uma venda,
s
mas, abstractamente, é possível separá-las, correspondendo à compra o
a
preço, e à venda a coisa.
O vendedor pode ter adquirido a coisa para revender, e neste caso a
'.
venda diz-se comercial. O comprador pode tê-la comprado para seu
consumo, e nessa hipótese fez uma compra não comercial. É o que resul-
)
ta claro dos arts. 463.°, n.? 1.0, e 464.°, n." 1.0, respectivamente. Diz o pri-
e
meiro: "São consideradas comerciais:

1.0 ~ As compras de coisas móveis para revender, em bruto ou traba-


lhadas ... ;
2.° - As compras, para revenda, de fundos p˙blicos ... ;
3.° - As vendas de coisas móveis ... ".

E o art. 464. "Não são consideradas comerciais:


0
:

1.° - As compras de quaisquer coisas móveis destinadas a uso ou


consumo do comprador ou de sua família;
Li!;_õesde Direito Comercial
42

2.0 _ As vendas que o proprietário ou explorador rural faça dos pro-


dutos de propriedade sua ... ;
3.0 _ As compras que os artistas, industriais ... fizeram de objectos
para transformarem ... e as vendas de tais objectos... ".

Um indivíduo compra um automóvel para seu uso: não faz uma


compra comercial; depois vende-o: a venda também não é comercial,
porque ele vendeu uma coisa que adquirira para seu uso e não para
revender. Mas se ele comprou o carro a uma agência de automóveis,
que - ocioso é dizê-lo - o comprara para revender, a venda que a
agência fez é comercial, conquanto o não seja a compra.
Por aqui nos podemos aperceber de que actos há em que a comercia-
lidade se verifica duma só parte. Estamos, como dissemos, em face de
actos unilateralmente comerciais ou mistos.
Põe-se agora o problema de saber qual o regime jurídico destes actos,
que são comerciais apenas em relação a uma das partes. Será o regime
da lei civil? Será o da lei comercial? Ou será simultaneamente o de uma
e de outra? Responde o art. 99. do Código Comercial: "Embora o acto
0

seja mercantil só em relação a uma das partes, será regulado pelas dis-
posições da lei comercial quanto a todos os contratantes salvas as que
I

só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercan-


til..." .
Estão, pois, os actos mistos sujeitos à lei comercial quanto a ambos os
contratantes, embora só em relação a um deles se verifiquem os pressu-
postos da comercialidade.
Mas o artigo transcrito logo acrescenta que se exceptuam as disposi-
ções da lei comercial "que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por
cujo respeito o acto é mercantil". Quer dizer: na lei comercial existem
disposições que apenas devem aplicar-se àquele ou àqueles contratantes
0
por atenção a quem o acto é mercantil. Uma delas é o art. 100. : "Nas
obrigações comerciais, os co-obrigados são solidários, salvo estipulação
contrária" .
Suponha-se que dois comerciantes compram a dois agricultores 10
moios de trigo. A compra é comercial e a venda civil, porque feita pelos
agricultores de trigo da sua lavra (veja-se o art. 464.°,n.? 2, cit.). Serão os
agricultores devedores solidários quanto à entrega do trigo? Segura-
mente não, porque a norma do art. 100. é só aplicável àquele ou àque-
0

les em relação a quem o acto for mercantil: no caso posto, aos dois
comerciantes compradores. De resto, a solução seria a mesma se os com-
pradores não fossem comerciantes mas a compra tivesse por fim a
al Dos actos de comércio 43

)- revenda. Esta doutrina resulta do § ˙nico do art. 100.°: "Esta disposição


não é extensiva aos não comerciantes quanto aos contratos que, em rela-
IS ção a estes, não constituírem actos comerciais" .

17. O artigo 2. do Código Comercial. Interpretação da 1.· parte do artigo. O


0

a problema da analogia em direito comercial. - Vamos agora entrar na análise


I, da primeira norma delimitadora do direito mercantil português, que é o
'a art. 2. o do Código Comercial.
5, Este artigo decompõe-se em duas partes: a 1." dispõe que "serão con-
a siderados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmen-
te regulados neste Código"; na 2.a parte diz-se que, além destes, serão
1- considerados actos de comércio "todos os contratos e obrigações dos
e comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o con-
trário do próprio acto não resultar".
5, Vejamos qual o sentido a atribuir àquela primeira regra.
te Entre os actos que, como hipóteses típicas, se encontram regulados
a no Código, podemos distinguir: de um lado, aqueles que, enquanto tais,
o têm ao mesmo tempo regulamentação na lei civil e na lei comercial
,- (mandato, empréstimo, penhor, etc.); de outro lado, os que só se acham
te previstos na lei comercial (a conta em participação, o reporte, etc.).
l- Quando é que de um certo acto podemos dizer que é um acto objecti-
vamente comercial, por força da I: parte do art. 2.O?Evidentemente, há-
)s -de tratar-se de um acto que, em concreto, re˙na aqueles requisitos com
1- que na lei comercial aparece definido.
Não basta, portanto, que se trate apenas de uma compra e venda ou
i- de um empréstimo, já que qualquer destes actos encontra regulamenta-
)r ção tanto na lei comercial como na lei civil. É forçoso, para serem actos
n de comércio, que esses negócios se apresentem, em concreto, revestidos
?S daqueles caracteres que a lei comercial fixa em abstracto - daqueles
lS caracteres, por outras palavras de que a lei mercantil torna dependente
I

o a sua comercialidade.
É este o sentido que deve atribuir-se aos termos " ... especialmente
o regulados neste Código ... ".
)S Mas a dificuldade maior não é esta. Outro problema, e bastante mais
0
)S difícil, se levanta na interpretação da I." norma do art. 2. porventura
:

1- só os actos especialmente regulados no Código deverão considerar-se


comerciais? Ou - ao contrário - haverá outros actos que por apresen-
is tarem natureza semelhante devam, por isso, qualificar-se também de
l- comerciais? Autorizará o art. 2. a qualificação dos actos de comércio
0

a por analogia?
44 Liç_õesde Direito Comercial

Por exemplo: empregando o recurso à analogia considerar-se-ia


comercial a compra de imóveis para locação; tal acto não está previsto
no Código Comercial, mas estão previstos os actos que consistem na
compra de móveis para revender ou para lhes alugar o uso, e na compra
de imóveis para revender (nos1. e 4. do art. 463. Não será lícito apli-
0 0 0
).

car essas disposições por analogia ao caso da compra de imóveis para


locação?
É este o problema da analogia em direito comercial.
Já nos referimos, em tese geral, a esta questão e queremos aqui reafir-
mar a nossa posição de há pouco: o problema há-de pôr-se e solucionar-
-se diante dos dados da lei mercantil positiva. Não é, ao invés, como se
pode pretender e já se tem pretendido, um problema que em razões de
pura lógica formal ache logo a sua resposta.
Poderá discorrer-se: a analogia está excluída por uma invencível bar-
reira lógica. Falar em analogia supõe, com efeito, a existência de um
caso omisso - a analogia é um processo de preencher lacunas. Falar em
analogia no momento da qualificação dos actos de comércio pressupõe
pensar que possa haver nesta matéria um caso omisso - uma determi-
nada relação da vida privada que não esteja qualificada nem como
comercial nem como civil. Mas pensar isto é pensar um absurdo. Ou
uma relação está expressamente qualificada como comercial - e é
comercial - ou não está - e será civil.
Ganhará o argumento mais poder sugestivo se em jeito de silogismo
se expuser assim:
- As relações jurídico-privadas ou são comerciais ou civis.
- Ora não são comerciais as relações jurídico-privadas não expressa-
mente qualificadas como tais na lei comercial;
- Logo, essas relações são civis - e falta, portanto, o primeiro pres-
suposto para que se possa pensar em recorrer à analogia: a existência de
uma lacuna.
A petição de princípio que vicia este raciocínio é, porém, uma coisa
que salta aos olhos. A premissa menor já pressupõe assente a conclusão:
só depois de sabermos que são civis as relações privadas que as leis
mercantis não qualificam expressamente como comerciais - só depois
disso é que poderemos fundadamente dizer que elas não são comer-
ciais. Antes disso, fala-se no ar: é puramente gratuita a afirmação de que
não são comerciais as relações não expressamente qualificadas como
tais nas leis mercantis. Pode ser que isto seja verdade - mas é preciso
demonstrá-lo. Pode ser que isto seja verdade - mas só a interpretação
da lei o permitirá estabelecer. O que importa, pois, é colher na lei o ver-
ai Dos actos de comércio 45

a dadeiro sentido e alcance, conforme as regras da boa hermenêutica jurí-


o dica.
a
a 18. O problema da analogia; continuação. - Vejamos, pois, como resol-
i- ver o problema equacionado, como problema de interpretação. Enca-
a remos, antes de tudo, a letra da lei.
Se lermos a disposição do art. 2. parece que a possibilidade do
0
,

recurso à analogia está excluída, pois o artigo diz claramente que, além
'-
dos actos especialmente regulados no Código, (só) se consideram "os
contratos e obrigações dos comerciantes (. ..)".
Em face disto, a conclusão seria a de que não é possível a qualificação
por analogia dos actos de comércio.
Mas a questão é precisamente a de saber se actos de comércio são só
(além dos actos dos comerciantes) os especialmente regulados no
Código, ou se, além destes - e afora os actos subjectivos - haverá
outros.
Por isso o argumento exposto atrás envolve nitidamente uma petição
de princípio: dá-se por demonstrado o que justamente importa demons-
trar. Não há actos de comércio qualificados como tais por analogia por-
que ... além dos actos especialmente regulados no Código, só se conside-
ram comerciais os actos subjectivos. O vício do raciocínio é patente. Sim,
de facto, além dos actos especialmente regulados no Código, só se
podem considerar os actos subjectivos ... se não houver actos de comér-
cio qualificados como tais por analogia. Mas não haverá realmente tais
actos? Este é que é o problema sobre que recai a controvérsia.
Também já se pretendeu que seríamos levados a uma contradição se,
em face do art. 2.°, quiséssemos admitir o recurso à analogia. Assim
parece discorrer MÁRIO DE FIGUEIREDO.
"Já se viu que a aplicação por analogia duma disposição supõe que se
está em presença dum caso omisso. Ora bem. O art. 2.° diz que são actos
de comércio os especialmente regulados no Código. Se assim é, é uma
contradição nos termos dizer que se podem qualificar certos actos como
sendo de comércio, por analogia: isso seria o mesmo que dizer que está
especialmente regulado no Código um acto que, por definição, é um
caso omisso, isto é, um caso que não está regulado no Código. Por defi-
nição, a analogia pressupõe um caso omisso; mas se o art. 2.o diz que
são actos de comércio os regulados no Código, não podemos qualificar
actos da vida real como actos de comércio por analogia, porque isso
equivale a dizer que estão especialmente regulados no Código actos
que, de facto, por ponto de partida, o não estão.
46 Liç_ões de Direito Comercial

Afigura-se mais flagrante a seguinte forma de esquematizar o racio-


cínio:
"Aplicar a um caso omisso, por analogia, uma determinada dispo-
sição, é supor que o caso omisso logra o mesmo tratamento jurídico por
justificação idêntica à dos casos que ela especialmente prevê. Os casos
omissos - casos da vida real não previstos na lei - seriam qualificados
0
comerciais, por analogia, pela mesma razão por que o são os que o art. 2.
especialmente abrange: por estarem especialmente regulados no
Código" (1).
Este é, porém, um daqueles argumentos "demasiadamente lógicos",
formais, cuja aptidão demonstrativa é diminuta. O que importa ao
nosso tema é conhecer a razão pela qual certos actos foram especial-
mente previstos no Código e são, por isso, comerciais. Ora essa razão só
pode ser a de que os mesmos actos põem em jogo interesses a que o
legislador só pode capazmente prover pela sujeição a um complexo de
regras dominadas por certos princípios diferentes dos do direito civil -
o direito comercial. Os falados "casos análogos", a esta luz, não serão,
portanto, casos também especialmente regulados no Código, mas casos onde
joguem e se defrontem interesses da mesma índole - interesses para cuja efi-
caz protecção o referido complexo de normas se revelar instrumento
igualmente apropriado.
A letra da lei não exclui, portanto, que se possa recorrer à analo-
gia. Pelo contrário, dir-se-ia até que ela nos pretende sugerir a utiliza-
ção desse expediente, ao dizer: "Serão considerados actos de comér-
cio ... ", O emprego desta fórmula mais parece denotar que o legisla-
dor outro escopo não visou senão o de fornecer alguns exemplos de
actos mercantis. E seríamos assim levados a concluir que, além dos
actos especialmente regulados no Código, há outros actos de comér-
cio: todos aqueles que puderem ser incluídos num certo conceito de
acto comercial, de que teria partido o legislador. Parece, porém - e
nada mais.
Nada mais, senão a conclusão de que a letra da lei não nos coloca, só
por si, em posição de podermos resolver o problema. Qualquer das
interpretações se pode conciliar com ela e há que recorrer, por isso, a
outros elementos - de entre todos aqueles que a teoria de interpretação
das leis considera utilizáveis.

l1l ln Direito comercial (lições publicadas por AFONSO QUEIRÓ, ALBINO VAZ e JOÃO
MIRANDA), pág. 42.
Dos actos de comércio 47

Sendo assim, a questão continua de pé: será admitido o recurso à


analogia na qualificação dos actos de comércio?

19. Continuação. - Para além da referida - e refutada -, outras


razões se divisam que aconselham a interpretar o art. 2.0 do nosso Có-
digo por forma a ficar excluída a possibilidade do recurso à analogia na
qualificação dos actos de comércio.
Vejamos essas razões.
1) Razão histórica. Dos trabalhos preparatórios do Código Comercial
resulta que foi propósito do legislador excluir a possibilidade de tal
recurso. Com efeito, uma das fontes no nosso art. 2. foi a preceito cor-
0

respondente do Código Comercial espanhol, em que se fala expressa-


mente de "actos de natureza análoga" (1'. Se este preceito foi uma das
fontes do art. 2.° e se houve o cuidado de nele não transcrever essa pas-
sagem, parece significar isto que o legislador português quis excluir o
recurso à analogia na qualificação dos actos de comércio.
2) Argumento da certeza jurídica. Sendo o regime da lei comercial bas-
tante diferente do da lei civil, a possibilidade da qualificação por analo-
gia dos actos de comércio haveria de ser fonte de um estado de incerteza
jurídica sobremaneira inconveniente. De resto, o mal seria agravado
pelo facto de a qualidade de comerciante depender da prática de actos
de comércio. Se fosse admitido o recurso à analogia, as d˙vidas quanto
à natureza de certas actividades incidiriam também sobre a qualidade
de comerciantes dos sujeitos dessas actividades. Ora os comerciantes
estão por lei sujeitos a determinados deveres, os constantes do art. 18.°
do Código: "Os comerciantes são especialmente obrigados: 1.0, a adop-
tar uma firma, 2. a ter escrituração mercantil; 3.°, a fazer inscrever no
0
;

registo comercial os actos a ele sujeitos; 4.0, a dar balanço e a prestar


contas". Estão sujeitos ainda ao instituto da falência, que difere bastante
do da insolvência civil. Por outro lado, gozam de particulares facilida-
des no que respeita à prova das obrigações mercantis. Enfim, para os
actos dos comerciantes existe, como sabemos, uma presunção genérica
de comercialidade (art. 2. 2: parte); e, assim, a d˙vida sobre a natureza
0
,

civil ou comercial de determinados actos redundaria em d˙vida sobre a

III Recorrendo à analogia, tem a jurisprudência espanhola qualificado como "actos de


comércio" a emissão e subscrição de acções, a locação e o trespasse de estabelecimento
comercial, o aluguer de cofres-fortes pelos bancos, o contrato de conta-corrente, etc.;
dr. GARRIGUES, Curso cii., t. I, págs. 121 e sego
48 Liç_õesde Direito Comercial

qualidade de comerciante do sujeito que os pratica e, por fim, em d˙vi-


da sobre a comercialidade de certos negócios realizados por esse mesmo
indivíduo.

20. Posição adoptada. - Qual será então a melhor solução do proble-


ma, a mais oportuna, a mais razoável?
Há certamente muitas situações e relações não reguladas no Código
às quais se ajusta, com tanta razão como às que nele se encontram pre-
vistas, o regime da lei mercantil. A solução que admite o recurso à ana-
logia seria porventura mais justa, mas, em contrapartida, traria consigo
um forte estado de incerteza quanto à natureza jurídica de muitas rela-
ções. E entende-se que no espírito do legislador do Código Comercial o
valor da certeza do direito tenha prevalecido (1).
No entanto, esta doutrina - a que condena a utilização do argumen-
to de analogia na delimitação da matéria mercantil - não pode aceitar-
-se sem importantes limitações.
Começaremos por dizer que tal orientação, ainda dominante entre
nós'", não tem em alguns países um acolhimento tão firme. Assim, em
França, onde levanta idêntico problema, a doutrina e a jurisprudência

II) Acerca do problema da analogia em direito comercial, defendeu ROCCO (v. Princípios
de direito comercial, págs. 162 e segs.) uma doutrina cujas linhas fundamentais são as
seguintes: A analogia é admissível em direito comercial porque a enumeração da
norma delimitadora é meramente exemplificativa. Há um conceito unitário de acto de
comércio subjacente a todas as formas de actividade mercantil consideradas na lei: o
acto de comércio como acto de mediação nas trocas, de interposição entre a oferta e a pro-
cura. Assim: na compra de mercadorias e imóveis para revenda ou locação, nas opera-
ções bancárias (mediação entre a oferta e a procura de dinheiro), nas empresas mer-
cantis (mediação entre a oferta e a procura de trabalho, pois, segundo a lei italiana, a
empresa mercantil implica o recrutamento, a remuneração e a direcção de trabalho
alheio, não coincidindo com a noção económica de empresa), finalmente, na ind˙stria
de seguros (mediação entre a oferta e a procura de riscos). É claro que este conceito só
se refere aos actos de comércio absolutos ou por natureza, pois dos actos de comércio
por conexão ou acessoriedade, existentes ao lado daqueles, não pode extrair-se, como
é lógico, nenhum conceito unitário de acto mercantil.
A doutrina de ROCCO não gozou, sequer em Itália, de acolhimento que justifique
maiores explanações. Perante a nossa lei, o conceito de que parte revela-se incapaz de
explicar todas as actividades consideradas comerciais (cfr., v.g., art. 230.° do Cód.
Com.).
<21 Em sentido contrário pronunciaram-se BARBOSA DE MAGALHÃES, Lições de direito
comercial (coligidas por ADELINO DA PALMA CARLOS), págs. 86-87 e 92-93, e
CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código comercial, I, págs. 13-14.
Dos actos de comércio 49

mais recentes tendem para a admissibilidade da analogia na qualifica-


ção das relações jurídico-mercantis. Em defesa desta tese escreve, por
exemplo, RIPERT 0), que "os autores do Código de comércio enumera-
ram sem grande ordem um certo n˙mero de actos e de empresas. Eles
inspiraram-se nos usos e práticas da sua época. É preciso fazer hoje o
que eles fizeram em 1807 e procurar na economia contemporânea a lista
das profissões comerciais" Do mesmo modo, entendia-se na Itália, na
(2).

vigência do Código de Comércio de 1882,que era lícito recorrer à analo-


gia na qualificação dos actos de comércio 13).
Sem ir tão longe, algum avanço pode no entanto conseguir-se em tal
sentido. Não será lícito recorrer ao argumento de analogia para conside-
rar comerciais tipos de actividade económica que o legislador entendeu
preferível não subtrair ao direito civil. Mas pensamos que não deverá
haver relutância em alargar os tipos legais de actos de comércio, de
maneira a neles incluir formas novas de actividade económica, ou for-
mas de actividade que, já conhecidas ao tempo da promulgação do
Código, vieram posteriormente a assumir novos aspectos, ou a desen-
volver-se em moldes diferentes. Em regra, a via da interpretação exten-
siva permitirá fundamentar as soluções desejadas. Mas quando esse
expediente não bastar, deverá recorrer-se à própria analogia, atribuindo
aos juízos de valor subjacentes à norma todo o seu possível alcance, em
face das novas realidades da vida económico-social.
5
As considerações expostas revestem-se de particular interesse no
campo das empresas, sector onde a técnica moderna fez surgir várias
formas de actividade ainda inexistentes ou de diminuto relevo no
˙ltimo quartel do século passado. No art. 230.o do nosso Código vêm
enumeradas as empresas que o legislador considerou comerciais. E,
segundo a posição mais rígida exposta acima, esta enumeração deve-
ria considerar-se taxativa. Mas ninguém duvidará, por exemplo, do
carácter comercial de uma empresa de transportes aéreos; e, com efei-

10 RIPERT-ROBLOT, ob. e t. cits., n." 146. No mesmo sentido, dr. por ex. LACOUR-BOU-
TERON, Précis de droit comrnercial, 3.' ed., I, n." 25, J. ESCARRA, Manuel de droit com-
mercial, 1947, n." 87, HAMEL-LAGARDE, Traité de droit commercial, I, n.? 145.
ur Já na Bélgica a orientação seguida é a de que a enumeração dos actos de comércio feita
pela lei é limitativa, mas que não devem interpretar-se restritivamente os termos
legais; dr. LOUIS FRÉDÉRICQ, Principes de droit commercial belge, 1928, t. I, pág. 26, e
Précis de droit commercial, 1970, pág. 25.
!.lI Cfr., por todos, VIVANTE, Trattato di diritto commerciale, 5: ed., vol. I, págs. 114 e seg.;
BOLLAFIO, II Codice di commercio comenta to, 4.' ed., vol. I, págs. 84 e segs.
50 Liç_ões de Direito Comercial

to, é evidente que a referência do n.? 7.0 do artigo aos transportes


"por terra" não obedeceu a qualquer intenção limitativa: tudo se
passa como se o legislador tivesse aludido a todos e quaisquer trans-
portes, fosse qual fosse a via utilizada. De igual modo se deverá
admitir a comercialidade de uma empresa produtora de discos ou de
filmes cinematográficos, em face do disposto no n.? 5. do mesmo 0

preceito (II.

Por interpretação extensiva ou por analogia se poderão ainda consi-


derar comerciais, em face do disposto no n.? 2. do citado artigo, todas
0

aquelas empresas que se proponham fornecer bens ou serviços, ou uma


e outra coisa conjuntamente, mediante preços fixados antecipadamente
por uma autoridade p˙blica (tarifa) ou até pelas próprias empresas,
quando estas os não alterem ami˙de e antes os estabeleçam para perío-
dos de tempo de considerável duração. Nos termos daquele n.? 2. con- 0
,

sideram-se comerciais as empresas que tenham por objecto "fornecer,


em épocas diferentes, géneros, quer a particulares, quer ao Estado, me-
diante preço convencionado" A consideração que impressionou o
(2).

legislador e o levou a qualificar de comerciais estas empresas foi a de


haver aqui um certo risco, originado pelo facto de interceder sempre um
período de tempo mais ou menos longo entre o momento da fixação do
preço e o dos m˙ltiplos actos sucessivos de fornecimento (3'. Ora sendo
este o espírito da disposição, convém interpretar o seu preceito em ter-
mos de nele se abrangerem, além das empresas de fornecimento de
géneros, todas aquelas outras cuja actividade económica se desenvolva
dentro do condicionalismo referido Nestes termos, dever-se-ão consi-
(4).

derar comerciais: as empresas hoteleiras (cujo objecto é o fornecimento


de bens e serviços, sendo, no entanto, este ˙ltimo aspecto o que pre-
domina na sua actividade; trata-se, por outro lado, de empresas que se
obrigam a fornecer aqueles bens ou serviços por preços antecipada-
mente fixados e que valem para todo um período de tempo e para qual-

II) No segundo caso, quando não também no primeiro, parece-nos seguro que nem
sequer há que falar de interpretação extensiva.
UI Tal será o caso, por exemplo, de empresas que proponham fornecer, nestas condições,
medicamentos ou víveres a um hospital, artigos escolares a um estabelecimento de
ensino, etc. Embora não forneçam propriamente géneros, mas bens de outra natureza,
devem assimilar-se a estas as empresas de fornecimento de água, de gás, de electrici-
dade, etc. No mesmo sentido, RIPERT-ROBLOT, ob. e vo/. ciis., n.? 155.
III Cfr., neste sentido, VIVANTE, ob. e vai. ciis.. n." 68.

lO' Cfr., neste sentido, VAN RYN, cii., I, n." 43.


~l Dos actos de comércio 51

s quer pessoa que se apresente a solicitá-los); as agências de viagens 0),


e empresas de publicidade, de informações comerciais, de gestão de
:- bens (21, etc.
á
e 21. Interpretação da I: parte do artigo 2.0 do Código Comercial. - Para
o completar a interpretação da 1.a parte do artigo 2. necessário é ainda0
,

fixar o sentido da expressão "actos que se acharem especialmente regu-


i- lados neste Código". Pela letra da lei, só os actos regulados no Código
.s Comercial seriam objectivamente comerciais. Este critério, contudo, seria
a puramente formal e, desde logo, excluiria da comercial idade objectiva
e todos os actos que posteriormente foram regulados em legislação
s comercial avulsa. Ora os actos regulados no Código são comerciais ape-
)- nas porque os particulares interesses do comércio neles reflectidos recla-
l- maram um regime especial. O que o legislador quis com a expressão
r, referida foi, por conseguinte, dizer que a especial disciplina do acto tem
,- de ser de natureza mercantil e não de outra; que são actos de comércio
o todos os que se acharem especialmente regulados na lei em atenção a
.e necessidades ou interesses da vida comercial. Não importa, para que
n um acto seja objectivamente mercantil, que o diploma legal que o regula
o tenha sido classificado pelo legislador de diploma "comercial". As mais
o
r-
le (ti As actividades próprias das agências de viagens foram regulamentadas de modo siste-
mático pelo Decreto-Lei n." 41 248, de 31 de Agosto de 1957. O art. 1.0 deste diploma
define as agências de viagens através do exercício de certas actividades que enumera e
i- o art. 2.° dispõe que "a exploração comercial das actividades abrangidas pelo art. 1.0
:0 fica reservada às agências de viagens ... ", Como se vê, foi a própria lei que qualificou a
actividade destas empresas como mercantil.
;e Recentemente, verificou-se nova intervenção legislativa neste domínio. Foi publicado o
Dec.-Lei n.? 478/72, de 28 de Novembro, que revogou a legislação anterior. Das suas
l-
disposições convém salientar o art. 15.°, n." 1, alínea a), o qual impõe às agências de
I- viagens e de turismo que se constituam sob a forma de sociedade comercial, tendo por
objecto exclusivamente a exploração das actividades próprias de tais agências. De acor-
do com o que se diz no texto, deve entender-se que estas sociedades estão sujeitas a
todas as disposições da legislação mercantil, sem excepção das relativas à falência e
m semelhantes; são, pois, sociedades comerciais plenas.
a, O Dec.-Lei n." 271/72, de 2 de Agosto, veio regulamentar a actividade das sociedades
es, cujo objecto seja a gestão de uma carteira de títulos (acções e obrigações), exceptuadas
je as sociedades gestoras de fundos de investimentos mobiliários ou imobiliários.
:a, Aquelas sociedades, classificadas no art.° 1.0 em sociedades de controle, sociedades de
cí- investimento e sociedades de aplicação de capitais, só podem constituir-se sob a
forma de sociedade anónima; exceptuam-se as sociedades de controle com menos de
dez sócios, que podem adoptar a forma de sociedades por quotas (art. 6.° do referido
Decreto). Considere-se aqui reproduzida a observação final da quota anterior.
52 Liç_õesde Direito Comercial

das vezes, os diplomas legais não trazem em si o distintivo da sua


natureza; depois, o que realmente interessa é que o regime traçado
pela disposição em causa vá destinado a satisfazer necessidades do
comércio, a resolver problemas específicos deste sector da vida econó-
mica.
Este entendimento substancial das coisas, que vai à "razão de ser"
delas e não fica em considerações puramente formais, permite-nos
resolver directamente, entre outros, o problema de saber se o arrenda-
mento para fins comerciais é um acto de comércio objectivo. Que o é,
mostram-no as normas dos artigos 1112.0 a 1118.0 do Cód. Civil, sob o
título "disposições especiais dos arrendamentos para comércio ou
ind˙stria": em todas elas acha-se o arrendamento especialmente regu-
lado em atenção às necessidades ou interesses mercantis '",
Assim, por ex., é permitida a transmissão por acto inter-vivos da posi-
ção do arrendatário, sem dependência de autorização do senhorio, em
caso de trespasse do estabelecimento (art. 1118.0, n.? 1, do Cód. Civ.).
Permite esta disposição, como vemos, que o titular de um estabeleci-
mento comercial o trespasse, cedendo conjuntamente o direito ao arren-
damento do prédio onde o dito estabelecimento esteja instalado; por
esta forma, o comerciante pode desvincular-se da gestão do seu estabe-
lecimento sem ter que o desmembrar, liquidando-o: pode transmiti-lo a
outrem, como um todo, mantendo íntegro o valor económico do negó-
cio, conservando a organização, fazendo aproveitar ao adquirente a sua
capacidade lucrativa, o seu aviamento (v. infra). Se não fora a permissão
do referido art. 1118.0, este interesse tão sério do titular do estabeleci-
mento só poderia obter satisfação com anuência, dada por escrito, do
senhorio do prédio.
Idênticas considerações são cabidas a propósito da norma do art.
1085.°, n.? 1, do Cód. Civ., que dispõe: "Não é havido como arrenda-
mento de prédio urbano ou r˙stico o contrato pelo qual alguém trans-

(I) Para o direito anterior, contido essencialmente no Dec. n.? 5411, de 17 de Abril de
1919, e na Lei n.? 2030, de 22 de Junho de 1948, vide Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 55.°, pág. 414, e ano 56.°, pág. 424; BARBOSADE MAGALHÃES, in
Gazeta da Relação de Lisboa, anos 37.°, 42.° e 44.°, respectivamente págs. 161, 110 e segs.
e 141; PINTO LOURElRO, Tratado da locação, vol. 3.°, n.? 293, e vol. 1.0, n.? 58, que
vêem o problema principalmente através da norma do art. 59.0 do Decreto n.? 5411, a
qual dava competência aos tribunais comerciais para conhecerem das acções emer-
gentes do arrendamento de estabelecimentos comerciais. Cfr. J. G. PINTO COELHO,
Lições de dir. comerc., I, pág. 57 e segs.
ial Dos actos de comércio 53

la creve temporária e onerosamente para outrem, juntamente com a frui-


lo ção do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou indus-
lo trial nele instalado." Esta norma, sem equivalente na legislação anterior,
ó- foi ditada pelo intento de proteger o interesse do dono da empresa, que
tenha cedido temporariamente a um terceiro a sua exploração, em rea-
r" ver o estabelecimento findo o prazo estipulado (1).
)s Nem a regulamentação mercantil de um acto precisa, obviamente, de
a- ser exaustiva para que este assuma a natureza de acto objectivamente
é, comercial. Quando não, a muitos dos actos previstos no Código
o Comercial não caberia essa natureza. Basta, como diz o artigo 2.0, que o
iu acto se ache especialmente regulado na lei comercial, isto é, que a lei o
u- regule especialmente em algum ou alguns dos seus aspectos por atenção ao
seu carácter ou índole mercantil (tomadas estas expressões no mais lato
si- sentido).
m Pelas mesmas razões apontadas, e tendo em atenção o regime esta-
.). belecido nos artigos 89.0 al. k), do Código do Notariado, 118.0, 135.0 e
.i- 157.0 do Código da Propriedade Industrial, e sobretudo 1118.0 do
n- Cód. Civ., é de julgar objectivamente mercantil o trespasse de estabe-
Jr lecimento comercial. O mesmo se diga da locação: Cód. Civ., art.
e- 1085. 0
(2).

a Diga-se, por ˙ltimo, que deverão ainda considerar-se actos objectivos


ó- de comércio os factos ilícitos referidos na lei mercantil, sendo portanto
la comerciais as obrigações de indemnização de perdas e danos deles
io decorrentes (vide, entre outros, os arts. 28.0 e 665.° do Cód. Com. e o art.
.i- 227. do Cód. da Propriedade Industrial).
0

lo

rt.
1Il Cfr. os arts. 1095.° e 1093.°. Para mais detalhes, v. infra.
a- Dentro da mesma ordem de ideias se podia afirmar que a norma do art. 2214.° do
s- Cód. Civ. de Seabra, relativa ao usufruto sobre estabelecimento fabril, era uma norma
sobre matéria e de natureza comercial. Com efeito, apesar de localizada no Cód. Civ.,
ela provia sobre o emprego das marcas, modelos, firma comercial, etc., pelo usufru-
tuário de um estabelecimento fabril em outro do mesmo género que viesse a abrir: era,
de portanto, uma regra de índole substancialmente comercial. Claro que o usufruto de
de estabelecimento continua a poder admitir-se actualmente, apesar de o novo Código
in não conter uma disposição correspondente ao citado art. 2214.°. A omissão significa
~s. apenas que o legislador do Cód. Civ. quis devolver ao legislador comercial a regula-
ue mentação desta matéria (dr. os nossos Estudos Jurídicos, vol. II, pág. 268, nota 2); neste
,a sentido, ORLANDO DE CARVALHO, ob. cit., pág. 582, nota 254.
er- (li Em igual sentido quanto aos dois casos se manifestam a doutrina e a jurisprudência
O, francesas; dr. RIPERT-ROBLOT, ob. e uol, ciis., n= 329 e 557. V. também, em sentido
não inteiramente coincidente, HAMEL-LAGARDE, ob. cii., n= 1031 e 1104.
54 Liç_ões de Direito Comercial

Contudo, esta qualificação não é unanimemente aceite entre nós.


Contra ela escreve, por exemplo, PINTO COELHO (II que "a lei comer-
cial em muitos casos limita-se a criar o delito, a considerar certo facto
como um delito que determina a aplicação de determinada penalidade,
mas não se estabelece verdadeiramente um regime jurídico especial
para a obrigação que dele possa emergir, designadamente para a obriga-
ção de responsabilidade civil".
Permitimo-nos, no entanto, pôr em d˙vida que seja esta a melhor
interpretação da lei. Com efeito, se os referidos factos ilícitos são em si
mesmos comerciais - e são-no porque se acham especialmente previs-
tos e definidos na legislação mercantil: aí definidos como factos ilícitos
por atenção à sua natureza de "factos do comércio" (vejam-se, p. ex.,
os arts. 28.0 do Cód. Com. e 212.0 do c.P.I.) - essa qualidade estende-
-se em princípio também às obrigações que deles emergem. É certo
que o legislador não criou para tais obrigações, dentro do próprio
âmbito do direito mercantil, um regime especial; mas nada permite
concluir que lhes sejam inaplicáveis, p. ex., as diposições gerais da lei
relativas à responsabilidade dos bens do casal pelas dívidas comer-
ciais dos cônjuges.

22. Actos de comércio pela teoria ou princípio do acessório. - Já nos refe-


rimos, várias vezes, a actos de comércio por conexão ou acessoriedade.
Falta formular a sua teoria em termos gerais.
A doutrina francesa elaborou a teoria do acessório a partir de duas
disposições do Code de commerce; o art. 631. n." 1. e o art. 632. parte
0
,
0
,
0
,

final A primeira estabelece que os tribunais de comércio têm compe-


(2).

tência para conhecer das questões suscitadas nos negócios entre comer-
ciantes, negociantes e banqueiros (;1). A segunda diz que a lei reputa
actos de comércio todos os negócios entre comerciantes, negociantes e
banqueiros (4'.
Face a estas normas, a doutrina definiu os actos de comércio relativos
como aqueles que são praticados por um comerciante no exercício do

III Lições cii., 3.' ed., pág. 70.


a, Cfr., por todos, HAMEL-LAGARDE, ob. cii., vol. I, n""175 e segs.
1>' Art. 631. - "Les tribunaux de commerce connaitront: 1.0 des contestations relatives
0

aux engagements et transactions entre négociants, marchands et banquiers".


'" Art. 632.° - "La loi répute actes de commerce: (... ) Toutes obligations entre négo-
ciants, marchands et banquíers."
ai Dos actos de comércio 55

s. seu comércio (pour les besoins de son commerce) e que não estejam compre-
r- endidos na categoria dos actos absolutos. Assim, por ex., a compra de
:0 camiões efectuada por um comerciante para o transporte das mercado-
e, rias que compra e vende, ou a de carvão para utilizar no aquecimento
li dos seus "ateliers".
}-
Mas logo se observou que a razão de ser da comercialidade dos actos
relativos (ou acessórios) não se encontrava na qualidade de comerciante
)r do agente, mas antes na sua conexão com o exercício do comércio; a
si qualidade de comerciante do agente só daria apoio a uma presunção
,- neste sentido, mas com admissibilidade de prova em contrário. Como
)s escrevem HAMEL e LAGARDE, "é a natureza comercial da actividade
.., principal que justifica o carácter comercial do acto acessório; e é preciso
sublinhar que o acto relativo só adquire carácter comercial se está
o conexionado com o comércio do comerciante. Os actos praticados pelo
o comerciante com vista à satisfação das suas necessidades particulares
:e não são comerciais: assim, p. ex., a compra de carvão para gastos de
ei casa (1)".
r- Podemos dizer que a teoria do acessório, com o alcance acabado de
referir, foi acolhida na 2. a parte do art. 2.0 do nosso Código. Como
veremos em seguida, daí se deduz que são comerciais todos os actos
,-
praticados pelo comerciante em conexão com o seu comércio.
Mas a doutrina francesa foi mais longe e considerou também co-
merciais os actos acessórios dos actos de comércio objectivos, ainda
LS que não praticados por comerciantes Esta solução apoia-se no art.
(2).

.e 91. do Code de commerce, que considera comercial não apenas o


0

,-
penhor constituído por um comerciante, mas também aquele que é
r- constituído por um não comerciante por causa de um acto de comér-
a cio.
e Semelhante mente, dizia BARBOSA DE MAGALHÃES {3l: Supo-
nhamos que um não comerciante pratica um acto de comércio isolado:
IS compra fazendas para revender; em seguida, arrenda um armazém para
o as guardar, aluga carroças para o seu transporte, contrata um empre-

Ob. e uol. cits., pág. 203.


(II

O)Contra, todavia, J. ESCARRA, ob. cii., n." 127.


cnV. Lições ciis., págs. 110 e segs. A referida doutrina foi introduzida entre nós por
5
ALVES DE SÁ e seguida entre outros, por CUNHA GONÇALVES (Comentário ao
I

Código Comercial, vol. I, págs. 12 e segs.), ADRIANO ANTERO (Comentário ao Código


Comercial, vol. I, págs. 29 e segs.) e o já citado BARBOSA DE MAGALHÃES. Na Itália
defendeu-a, entre outros, BOLAFFIO, ob. e uol, cits.. págs. 92 e segs.
56 Liç_õesde Direito Comercial

gado, etc. Estes actos devem ser considerados comerciais, em virtude da


teoria do acessório, porque conexos, dependentes daquele acto de
comércio principal.
Nestes termos, os actos subjectivos seriam apenas uma espécie dos
actos comerciais pela teoria do acessório.
Todos os actos annexis et connexis, quer com o exercício de uma
actividade mercantil profissional, quer com um acto de comércio abso-
luto, seriam comerciais, só que no primeiro caso existe presunção legal a
favor da sua pertinência ao exercício do comércio e, por isso, da sua
natureza mercantil: aliás, a aludida relação de pertinência teria de
provar-se directamente.
Em abono da teoria do acessório poderia aduzir-se que o seu funda-
mento é lógico e razoável: se os actos dos comerciantes revestem a
natureza de comerciais por uma razão objectiva - a sua conexão com o
comércio -, não implicando aquela realidade do sujeito senão uma
presunção desta relação de conexidade, seria lógico admitir a valia da
mesma razão para todos os actos em geral, ainda os praticados pelos
não comerciantes, embora (está bem de ver) sem a aludida presunção.
Contudo, analisando melhor o conte˙do da teoria em causa,
verificamos que a razoabilidade do seu fundamento é puramente apa-
rente. Com efeito, sendo um acto praticado por um comerciante, a sua
comercialidade (subjectiva) resulta da conexão em que se encontra com
o exercício profissional do comércio; mas se o mesmo acto for praticado
por um não comerciante, a referida conexão só poderá estabelecer-se
com um acto comercial (objectivo) isolado. Não pode dizer-se, por
conseguinte, que o carácter dos actos acessórios seja o mesmo, inde-
pendentemente de ser ou não quem os pratica um comerciante. A dife-
rença entre as duas hipóteses é profunda. Na primeira, o acto está inte-
grado numa actividade mercantil habitual, pertence ao exercício do co-
mércio organizado; é razoável, por isso, que a lei lhe tenha atribuído a
natureza comercial. Na segunda, os actos acessórios estão apenas na ór-
bita de um outro que foi praticado esporadicamente; é muito compre-
ensível que a lei não assimile esta hipótese àquela, que não estabeleça
para estes actos o mesmo regime que instituiu para o primeiros; que os
não considere, em suma, mercantis.
E depois, pela teoria em exame vêm a desdobrar-se os actos de co-
mércio objectivos em duas categorias: os especialmente regulados no
Código e os acessórios destes, o que estaria, como diz PINTO COELHO,
"em contradição aberta com o critério claramente revelado, não só pelo
autor do projecto do Código, como também por todos quantos tomaram
Dos actos de comércio 57

a parte da discussão parlamentar, apoiando a proposta ministerial que


e vingou". É certo que o legislador definiu determinados actos como
comerciais atendendo à sua conexão com o comércio ou com actos
s objectivamente comerciais. Assim, considerou comercial o mandato,
quando dirigido à prática de actos comerciais (art. 231.0); o penhor,
a quando garante uma obrigação mercantil (art. 379.°); o empréstimo,
,- sendo a coisa cedida destinada a uma operação mercantil (art. 349. a 0);

a fiança, sendo comercial a obrigação afiançada (art. 101.°); o depósito,


a quando os géneros e mercadorias se destinem a qualquer acto de
e comércio (art. 409.°). Ou seja: o legislador reconheceu a acessoriedade
como factor relevante num certo domínio de casos.
Outra é, porém, a questão de saber se a mesma razão de aces-
3. soriedade ou conexão deve valer, como causa do mesmo efeito, quanto
) aos actos situados fora deste domínio. Ora isto é entrar manifes-
l tamente no campo da analogia. A resposta positiva àquela pergunta
a implicaria uma tomada de posição genérica a favor da admissibilidade
5 do recurso à analogia na qualificação dos actos de comércio; posição
esta que, considerada nos termos de grande latitude que ficam apon-
tados, é inconciliável com a doutrina que acima sustentamos Diga- (II.

-se ainda que contra a teoria do acessório depõem as considerações


1 que alinhámos noutro lugar (n." 5) contra a concepção do direito mer-
1 cantil como direito regulamentador dos actos de comércio (concepção
objectiva).

23. Interpretação da 2: parte do art. 2.°. - Além dos actos "espe-


cialmente regulados no Código", entendida esta expressão no sentido
que foi oportunamente definido, são comerciais, por igual, "todos os
contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza
exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar". É a vez,
agora, de intentarmos descobrir o sentido desta fórmula.
A este propósito, há que dizer, antes de tudo, o seguinte. A despeito
de todas as divergências, ninguém discorda de que o fundamento da
nossa norma reside na presunção de que os actos dos comerciantes estão
conexos, em regra, com a sua actividade mercantil. Presunção que per-
feitamente se justifica para a generalidade dos casos. A experiência ensi-

UI No mesmo sentido, FERNANDO OLA VO, ob. cii., pág. 102 e sego No entanto, não está
excluído que as restrições ao princípio da inadmissibilidade da analogia, apontada
acima, possam operar mesmo no campo dos actos acessórios.
58 Liç_ões de Direito Comercial

na que a actividade mercantil do comerciante é uma actividade absor-


vente. O comerciante é alguém que vive do comércio e para o comércio.
Assim, perfeitamente se entende que os actos que ele pratica, contanto
que de carácter patrimonial, se presumam comerciais.
Esta ideia facilitará a tarefa interpretativa a que vamos agora meter
ombros. Os actos dos comerciantes "que não forem de natureza exclusi-
vamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar" - no fim de
contas, que actos são?

a) Doutrina de VEIGA BEIRÃO.

Para o autor do Projecto do Código, seriam actos subjectivamente


comerciais os actos dos comerciantes que não tenham a sua regula-
mentação exclusiva na lei civil, se deles próprios não resultar que são o
contrário de um acto de comércio nos termos e por força da 1." parte do
artigo.
A fórmula "actos que não forem de natureza exclusivamente civil"
seria, pois, equivalente a estoutra: "actos que não estiverem exclusiva-
mente regulados na lei civil". Não serão, portanto, de natureza exclusi-
vamente civil, para o efeito do nosso artigo: 1) os actos que só venham
regulados na lei comercial; 2) os actos que tenham regulamentação tanto
na lei civil como na lei comercial. São de natureza exclusivamente civil
os actos que só vêm regulados na lei civil.
É esta, aliás - digamo-lo desde já -, a opinião dominante na nossa
doutrina (GUILHERME MOREIRA, PINTO COELHO); e ao apreciar-
mos daqui a pouco a interpretação que estes autores propõem para o
art. 2. teremos ensejo de lançar luz sobre as razões em que ela assenta
0
,

e as críticas que lhe podem ser dirigidas.


Mas é necessário ainda "que do próprio acto não resulte o contrário".
O contrário de quê? O contrário, diz VEIGA BEIRÃO, de um acto de
comércio tal como vem definido na lei comercial - o contrário, isto é,
de um acto de comércio objectivo, com os requisitos de que a lei mer-
cantil torna dependente a sua comercialidade.
Isto tudo se torna claro através de exemplos.
Imaginemos uma compra de um objecto feita por um comerciante.
Não se trata, é evidente, de um acto de "natureza exclusivamente civil",
certo como é a compra e venda encontrar-se regulada na lei civil e na lei
comercial. A compra pode ser, portanto, acto de comércio. Mas só o será
se dela não resultar que é o contrário de um acto comercial propria-
mente dito.
Dos actos de comércio 59

Ora bem. Segundo a lei mercantil, a comercialização da compra


'. depende de ser ela uma compra para revenda - de sorte que uma com-
)
pra efectuada por certo comerciante só poderá dizer-se comercial se dela
não resultar que não é uma compra para revenda. Não é preciso que
r dela resulte tratar-se de uma compra para revenda. Basta que não resul-
te ser uma compra para revenda. Aliás, naquele primeiro caso (no caso
e de do próprio acto resultar que é uma compra para revenda), estaremos
em face de um acto de comércio por força da 1.a parte do artigo - de
um acto que será comercial por estar especialmente regulado no Código,
e não por ser praticado por um comerciante. Mas se resultar "do próprio
acto" que a compra não foi feita para revenda, fica excluída a sua co-
e mercialidade. Nestes termos, se o comerciante comprador não esclarecer
de modo expresso o vendedor de que quer a coisa para seu uso, nem
o isso ressaltar das circunstâncias adjacentes - a compra será ainda
D comercial.
A interpretação que VEIGA BEIRÃO deu à fórmula "se o contrário
" do próprio acto não resultar" tem sido objecto de várias críticas. Iremos
,- aqui referir duas delas - a primeira das quais, aliás, se pode desde já
,- dizer que não acerta no alvo.
n É a crítica que à interpretação agora em exame foi dirigida por GUI-
D LHERME MOREIRA e PINTO COELHO. Vejamos o que diz, a este res-
iI peito, este ˙ltimo autor: "A consequência necessária de semelhante
interpretação dada às palavras finais do art. 2. da referência da expres-
0
,

a são "o contrário" aos actos de comércio nos termos da primeira parte do
'-
artigo, seria que teríamos apenas uma categoria de actos de comércio: os
D regulados especialmente no código; doutrina que, por forma conclu-
a dente, já demonstrámos ser inteiramente indefensável.
"Essa demonstração é, pois, de per si, a condenação formal da inter-
pretação que deixamos referida. Admitida ela, ficaria ininteligível a dis-
e posição do art. 2. que declararia então comerciais todos os actos espe-
0
,

;
-, cialmente regulados no código, e além deles os contratos e obrigações
'-
dos comerciantes quando não fossem o contrário de um acto especial-
mente regulado no código; diria, assim, que eram comerciais os actos de
comerciantes que já o fossem! E se é certo que não pode pôr-se em d˙vi-
~. da a verdade de tal afirmação (O seria contudo de notar o absurdo, neste
,
, caso, da expressão além deles'w.
~i
á
L- II> PINTO COELHO - Direito comercial português, I, pág. 82. No mesmo sentido, dr. Lições
ciis., I, pág. 47, e GUILHERME MOREIRA, Dos actos de comércio, págs. 122 e segs.
60 Liç_õesde Direito Comercial

Por palavras diferentes: a 2: parte do art. 2.° seria, à luz da inter-


pretação de VEIGA BEIRÃO, perfeitamente in˙til. Pois retomemos o
nosso exemplo da compra feita por um comerciante. Uma de duas, dir-
-se-á: ou dela resulta que se trata de uma compra para revenda (e o acto
será comercial objectivamente, por força da I: parte do artigo) ou dela
resulta que não se trata de uma compra para revenda (e então a compra
não será, para VEIGA BEIRÃO, comercial). Tertium non datur. De qual-
quer modo, nunca poderia uma compra considerar-se comercial por
força da 2: parte do artigo.
Mas o defeito deste raciocínio alcança-se logo sem grande esforço.
Não é rigoroso, com efeito, dizer-se: uma de duas; a mais das duas pos-
sibilidades atrás aludidas, há uma terceira sobre que se fez sombra: a
hipótese de "do próprio acto" não resultar coisa nenhuma - nem que se
trata, nem que não se trata de uma compra para revenda.
E nem esta é uma possibilidade remota, teórica: ao invés, é isto o que
sucede em muitos casos - em todos os casos de compras realizadas por
comerciantes sem indicação do destino dos objectos comprados.
Vê-se, portanto, que a interpretação de VEIGA BEIRÃO não inutili-
zaria a 2: parte do art. 2. continuaria a haver actos de comércio que só
0
:

o seriam por força da 2: parte do artigo - tais, por exemplo, as com-


pras feitas por comerciantes de que não resulte não serem compras para
revenda.
Mais séria é já uma segunda crítica que à doutrina de VEIGA BEI-
RÃo correntemente é feita.
Diz PINTO COELHO: "Assim, como escreve o Dr. Guilherme
Moreira no seu livro Actos de Comércio, suponhamos que um comer-
ciante compra livros para a sua escrituração mercantil, que o director
de uma empresa manufactureira adquire máquinas para o exercício da
sua ind˙stria, e o de uma empresa ferroviária os meios para o trans-
porte de pessoas e mercadorias. Se no acto da compra nada declaram
quanto ao fim do acto, ou o destino dos objectos comprados, segundo
a doutrina que criticamos, os actos referidos são comerciais, pois deles
não resulta que são o contrário de um acto de comércio propriamente
dito, que a compra não é para revenda; se, porém, revelam o destino
dos objectos comprados, isto é, se dão a conhecer que se destinam ao
exercício do seu comércio, ou da sua ind˙stria, então, porque já não
apresentam nem têm possibilidade de apresentar as características que
o Código exige para que sejam comerciais objectivamente, porque
resulta do acto que a compra não é para revenda, os referidos actos
serão considerados como civis. E, todavia, o legislador tê-los-ia decla-
II Dos actos de comércio 61

'- rado comerciais, na primeira hipótese, baseado na presunção de que se


o realizasse a segunda.
r- "Quer dizer, os actos referidos deixariam de se considerar comerciais
o precisamente quando se verifica aquela circunstância que, quando ape-
a nas presumida, atribuía aos mesmos actos carácter comercial" !I11
a
l- b) Doutrina de GUILHERME MOREIRA e de PINTO COELHO.
ir
Actos subjectivamente comerciais serão os actos dos comerciantes
). que não tiverem a sua regulamentação exclusiva na lei civil, se deles
,- próprios não resultar serem estranhos à actividade mercantil de quem
a neles outorgou.
ie O entendimento que GUILHERME MOREIRA e PINTO COELHO
dão à fórmula "actos que não forem de natureza exclusivamente civil"
te coincide por inteiro, como atrás já notámos, com o que lhe foi dado
)r por VEIGA BEIRÃO. Não são "de natureza exclusivamente civil" os
actos que não têm a sua regulamentação exclusiva na lei civil - ou
i- por outra, os actos só ou também previstos e regulados na lei comer-
;ó cial. "O nosso legislador, nesta segunda parte do artigo 2. o - escreve
1- PINTO COELHO - inspirando-se no artigo 4.0 do Código Comercial
'a italiano, introduziu contudo certas alterações no texto deste preceito
legal. Dizendo-se no artigo 4.0 do Código italiano que se consideram
I- actos de comércio além dos indicados no artigo anterior os outros con-
tratos e obrigações dos comerciantes, se não forem de natureza essen-
le cialmente civil, etc., declara-se no nosso serem comerciais os contratos e
r- obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente
)r civil, etc.
la "Emprega-se, pois, a expressão 'de natureza exclusivamente civil',
5- enquanto no Código italiano se diz 'de natureza essencialmente civil'; e
m é esta a mais importante diferença na redacção dos dois artigos.
lo "Foi intencionalmente que o nosso legislador estabeleceu esta dife-
rença. Tendo o autor da proposta sido acusado durante a discussão
te parlamentar de ter mal traduzido a expressão correspondente do
lO Código italiano, declarou, respondendo à acusação, o Snr. VICENTE
lO MONTEIRO, relator da comissão de legislação da Câmara dos Depu-
10 tados, que muito de propósito se substituíra a palavra essencialmente
le do Código italiano pela palavra exclusivamente, e isso para evitar as
le
)s
a- U1 PINTO COELHO, Lições cits., págs. 50 e sego
62 Liç_õesde Direito Comercial

d˙vidas e dificuldades de interpretação a que havia dado origem no


referido código; era esta a razão da substituição que se apelidava de
má tradução'!'. É que a expressão 'de natureza essencialmente civil'
implicava uma indagação que se prendia com a própria natureza do
acto, e era difícil ver se um acto por sua natureza excluía inteiramente
a natureza comercial, ou a possibilidade de pertencer à actividade
mercantil" .
"As palavras 'de natureza exclusivamente civil' não significam, pois,
o mesmo que 'de natureza essencialmente civil'; não são equivalentes as
fórmulas empregadas nos dois artigos em confronto" .
"É este o elemento negativo da orientação adoptada pelo nosso legis-
lador. Mas qual o elemento positivo? Isto é: se a fórmula empregada
pelo legislador português não é equivalente à usada pelo legislador ita-
liano, qual é então o seu significado?"
"Resulta ele claramente da passagem do relatório do autor do pro-
jecto em que este explica e desenvolve o sistema seguido na determina-
ção dos actos de comércio, passagem essa que deve tomar-se como base
0
da interpretação do preceito do art. 2. ".

"Nessa passagem se lê: 'Trata-se de um acto regulado especialmente


no código de comércio?' É comercial qualquer que seja a qualidade da
pessoa que nele intervém.
'Não se acha o acto regulado especialmente no código de comércio, e
foi praticado por um simples cidadão? Não é comercial. Foi praticado
por um comerciante? Se tal acto se acha exclusivamente regulado no código
civil, será civil'.
'Se se acha regulado nele e no comercial, e do próprio acto não resul-
ta que seja o contrário de um acto mercantil, o acto será comercial. Se
dele, porém, resulta não ser comercial, terá a natureza que lhe corres-
pender?".
"Vê-se assim que a expressão 'que não forem de natureza exclusiva-
mente civil' 'significa' se não forem exclusivamente regulados no Có-
digo Civil"<ll.

til Apêndice ao Código Comercial português, 21 edição, Imp. da Univ., pág. 159.
111Apêndice cit., pág. 19.
rn PINTO COELHO, Lições cit., págs. 38-40. Se bem a entendemos, é fundamentalmente a
mesma a posição do FERNANDO OLA VO, embora nela se divise uma certa nuance
(ob. cit., págs. 85 e segs.).
'ial Dos actos de comércio 63

10 E qual o alcance que à outra fórmula "se o contrário do próprio acto


:le não resultar" dão GUILHERME MOREIRA e PINTO COELHO?
il' Excluída a interpretação de VEIGA BEIRÃO- escreve PINTO COE-
lo LHO - "sendo certo que a expressão de que se trata foi literalmente
0
te reproduzida no art. 4. do Código Comercial italiano, que, como já vi-
:le mos, foi a fonte directa da disposição da segunda parte do art. 2. pare-
0,

ce naturalmente indicado procurar a significação que na jurisprudência


is, italiana é atribuída às palavras correspondentes do referido artigo: se il
as contrario non risulti dali 'aito stesso.
"Ora entre os escritores italianos é, pode dizer-se, unanimemente
is- aceite a doutrina ensinada por MANARA, notável jurisconsulto italiano
:la que especialmente se ocupou dos actos de comércio.
:a- "O brilhante escritor deduz com segurança dos trabalhos prepara-
tórios do código italiano que esta expressão - se ii contrario non risulti
'0- dali 'atto stesso - se refere precisamente à ideia da pertinência do acto
ao exercício do comércio. Quer dizer: os actos dos comerciantes, que
se não forem de natureza exclusivamente civil, isto é, que pertencerem a
uma categoria jurídica que tem regulamentação no código comercial,
rte serão comerciais, se deles não resultar que não têm relação com o exer-
:la cício do comércio do comerciante que os pratica.
"E esta doutrina é, de facto, perfeitamente justificada, aceitável e
,e razoável. Impõe-se ao nosso espírito depois de conhecermos a ori-
:lo entação do legislador português. É, na verdade, o significado lógico
go da expressão, desde que se atenda ao fundamento da comerciali-
dade dos actos dos comerciantes segundo o autor da proposta mi-
ll- nisterial.
Se "Porque é que no nosso Código os actos dos comerciantes são
?s- considerados actos de comércio? Di-lo o autor da proposta no seu
relatório: A justificação de semelhante disposição está na presunção
I

'a- de que os actos praticados pelos comerciantes são-no, em regra, no


ó- exercício do seu comércio'; e se é esta presunção que leva o legisla-
dor a declarar estes actos comerciais, é natural que ele queira excluir
esta comercialidade quando se verifique que a presunção se não
confirma, isto é, quando se verifique que o acto não tem relação -
ou pertinência, como dizia MANARA - com o exercício do comér-
cio" (1).

ea
'Ice
III PINTO COELHO, Lições cit., págs. 47-48.
64 Liç_õesde Direito Comercial

Para PINTO COELHO, em suma, a expressão "o contrário" deve


referir-se ao que se diz no princípio do artigo: "Serão considerados actos
de comércio ... ". Os actos dos comerciantes serão, portanto, comerciais
se "do próprio acto" não resultar o contrário - isto é, não resultar ...
que eles não são comerciais, que não têm natureza ou causa comercial.
Esta parece ser a interpretação natural do artigo.
Pois bem. Quando é que se pode então dizer de um acto de um
comerciante que esse acto não tem natureza ou causa comercial? É este
o problema que cumpre dilucidar. Ora, se os actos dos comerciantes se
consideram, em princípio, comerciais, por se presumir que têm conexão
efectiva com o comércio dos seus agentes, a resposta àquela pergunta é
muito simples e não pode ser senão esta: um acto de um comerciante
não tem natureza ou causa comercial quando dele próprio resulte que
não tem qualquer ligação ou pertinência - ou que não tem qualquer
ligação relevante - com o comércio de quem o praticou.
Para PINTO COELHO, portanto, e em resumo, os actos dos comer-
ciantes, que não estiverem exclusivamente regulados na lei civil, só
não serão comerciais quando deles próprios ou das circunstâncias
concomitantes sobressair que são estranhos ao comércio dos seus
agentes. Os actos de que se trata serão comerciais, por outras pala-
vras, sempre que deles não resulte serem estranhos ao comércio dos seus
autores.

c) Doutrina de BARBOSA DE MAGALHÃES.

São actos de comércio subjectivos os actos dos comerciantes que não


tiverem uma tal natureza que se oponha à sua comercialização, desde
que deles próprios não resulte serem estranhos ao comércio dos seus
autores.
Não se afasta BARBOSADE MAGALHÃES, quanto à interpretação
da fórmula "se o contrário do próprio acto não resultar", da opinião que
acaba de ser exposta. Onde aquele primeiro autor sustenta uma opinião
diferente - diferente da opinião comum, que é a de VEIGA BEIRÃO,
G. MOREIRA, PINTO COELHO e MÁRIO DE FIGUEIREDO- é quan-
to ao entendimento das expressões "actos de natureza exclusivamente
civil".
Para BARBOSADE MAGALHÃES, um acto só tem "natureza exclu-
sivamente civil" quando for essencialmente civil - quando for um acto
por essência civil e só civil. O facto de um negócio jurídico ter regula-
mentação apenas na lei civil não é motivo bastante para dizermos que
Dos actos de comércio 65

ve ele tem natureza exclusivamente civil. Há negócios (ou matérias, como p.


.os ex., a responsabilidade extracontratual) que, embora só regulados na lei
:tis civil, não têm uma natureza exclusiva ou essencialmente civiL Alguns
deles podem ser praticados em conexão com o comércio dos seus auto-
aI. res. Podem, em suma, ser comercializados.
De harmonia com a opinião exposta, só podem considerar-se de
trn natureza exclusivamente civil aqueles actos que, pelos seus caracteres
ste constantes e essenciais, não puderem, de nenhum modo, ser comerciali-
se zados. Ora, já se disse, um acto regulado apenas na lei civil pode não ter,
ão neste sentido, natureza exclusivamente civil. Assim, p. ex., a gestão de
lé negócios e (segundo B. de MAGALHÃES) a própria doação: é o caso
lte das liberalidades feitas pelo comerciante com um fim interessado (esco-
ue po reclamístico ou semelhante). São actos que, conquanto liberalidades,
ler têm ligação bem evidente com o comércio do doador.
Isto basta para mostrar que alguns actos regulados apenas na lei civil
er- podem ser praticados em conexão com o comércio.
só Os argumentos em que BARBOSADE MAGALHÃES se funda para
ias sustentar a sua doutrina são, em resumo, estes:
·us 1) Não poderia afirmar-se, em face dos trabalhos preparatórios,
la- que à fórmula do artigo 2.0 "actos de natureza exclusivamente civil"
-us tivesse querido atribuir-se o alcance pretendido pela doutrina tradi-
cional - "actos exclusivamente regulados na lei civil". Não seria lí-
quido, pelo menos, que se lhe tivesse querido atribuir um tal sentido.
Por isso, o principal argumento da doutrina tradicional- o argumento
histórico - nada valeria ou valeria muito pouco.
tão 2) Em segundo lugar - dizia ainda BARBOSADE MAGALHÃES -
Ide esta interpretação é a mais conforme à letra da lei: porque a lei fala em actos
rus de natureza exclusivamente civil; ora um acto exclusivamente regulado na
lei civil pode, como já foi dito, não ter uma natureza tal que se oponha à
;ão sua comercialização. De contrário, teríamos de entender que o legislador
[ue se exprimiu mal, e bastante mal, até, pois não há d˙vida de que ele se refe-
ião riu à natureza do acto e não à do diploma onde se encontra previsto.
.0, 3) Depois, a doutrina tradicional é uma doutrina francamente desar-
ln- mónica com a evolução do direito mercantil e com as próprias necessi-
nte dades sociais. Ainda que a "teoria do acessório" seja porventura de
rejeitar, há toda a razão para pôr os actos acessórios do comércio, quan-
-lu- do praticados por comerciantes, dentro da esfera de aplicação do direito
cto mercantiL Admitir a "teoria do acessório" é bem outra coisa - é consi-
tla- derar os actos acessórios do comércio, ainda que não sejam praticados
lue por comerciantes, como mercantis.
66 Li!;_õesde Direito Comercial

4) Por fim, a vantagem da doutrina de BARBOSADE MAGALHÃES


sobre a interpretação tradicional revelar-se-ia em que esta assenta num
critério puramente formal e extrínseco, ao passo que a outra lança mão
de um critério substancial, que atende à natureza própria e intrínseca, à
essência do acto ou negócio jurídico.
Por algumas ou por todas as razões esboçadas, deveremos, pois,
segundo BARBOSA DE MAGALHÃES, interpretar o artigo 2. à seme- 0

lhança da interpretação que em Itália era dada ao texto do artigo 4.0 do


antigo código de comércio. É certo que aí se falava em actos de natureza
essencialmente civiL Mas no fundo é o mesmo. Não se mostra, até hoje
ninguém mostrou, de modo positivo, que o legislador, substituindo
essencialmente por exclusivamente, tenha querido sancionar (e tenha efec-
tivamente sancionado) outra doutrina. E porque essa doutrina, a mais
de não achar na letra da lei apoio bastante, também do ponto de vista
da razoabilidade se não avantaja à oposta - devemos pura e simples-
mente rejeitá-Iam.

d) Solução adoptada:

I) Apoia-se, no que toca à fórmula "se o contrário do próprio acto


não resultar", o entendimento que lhe é dado pela doutrina comum -
notando-se o alcance que à expressão "próprio acto" deve ser atri-
buído.
II) Prefere-se, quanto à expressão "actos de natureza exclusivamente
civil", o entendimento proposto por BARBOSADE MAGALHÃES.

Que solução adoptar, ao cabo e ao resto?


I)
Em primeiro lugar, que interpretação deverá ser afinal a da fórmula
"se o contrário do próprio acto não resultar"?
Relembremos o exemplo que há pouco utilizámos. Um comerciante
compra livros para a sua escrituração mercantil. Ou uma balança. Ou
um armário para expor os seus artigos no estabelecimento.
Havemos de admitir a doutrina de VEIGA BEIRÃO, segundo a qual
a compra que figurámos não é considerada comercial, apesar de ser
evidente que o comerciante comprou o objecto por causa do seu comér-
cio?

.., V. BARBOSA DE MAGALHÃES, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa, I, págs. 309 e segs. (maxime págs. 330 e segs.).
Dos actos de comércio 67

~ES Temos como certo que a boa interpretação é aqui a defendida pela
um generosidade dos nossos comercialistas. Na verdade, se dissermos que a
não presunção que está na base da 2: parte do art. 2.c consiste em conside-
a, à rar-se, genericamente, que os actos dos comerciantes têm, em princípio,
conexão com o seu comércio, aquela conclusão impõe-se com força lógi-
Jis, ca inegável. Se a razão da lei reside naquela presunção, e esta presunção
ne- há-de ser meramente relativa, compreende-se a exclusão da comerciali-
do dade quando se apure que o acto não tem qualquer ligação relevante
eza com o comércio do seu autor. Mas já não se compreende igual solução
loje quando dos termos e circunstâncias do contrato apenas resulte que ele é
ido o contrário de um acto de comércio tal como a lei o define, tendo, não
'ec- obstante isso, manifesta relação com a actividade mercantil de quem o
iais praticou.
tsta Há franco ilogismo, na verdade, na doutrina de VEIGA BEIRÃO.Se o
les- comerciante comprador declara ao vendedor que compra a mercadoria,
não para revender, mas para um fim nitidamente conexo com o exercí-
cio do seu comércio, não se compreende que o acto não seja comercial.
Pois não é certo que os actos dos comerciantes se consideram comerciais
por se presumir que têm conexão com o respectivo comércio? Como se
cto compreenderia então que eles deixassem de ser comerciais justamente
quando a presunção se converte em certeza? Resulta do acto que ele está
tri- efectivamente conectado com a actividade mercantil do seu autor.
Resulta do próprio acto que essa conexão presumida existe, como cone-
nte xão efectiva, no caso concreto. No entanto, depois de tudo conve-
nientemente averiguado, o negócio jurídico não seria comercial!
Vejamos agora qual o alcance da expressão "próprio acto" da ˙ltima
parte do artigo 2.°. Tem-se entendido, e bem, que é necessário atender
ula não só ao acto em si, isto é, ao conte˙do formal das declarações nego-
ciais que o constituem, mas também às circunstâncias concomitantes.
nte Não, porém, a todas: tão-somente àquelas que forem conhecidas do
Ju outro contra ente, ou que este tivesse obrigação de conhecer. Para saber-
mos, pois, se determinado acto praticado por um comerciante deve ser
lal considerado comercial, temos de nos colocar no ponto de vista do decla-
,er ratário, e de atender, portanto, àquele conjunto de circunstâncias que
ér- este conhecia ou que, razoavelmente, deveria conhecer. Devemos colo-
car-nos, em suma, no ponto de vista de um declaratário normalmente
diligente. Na verdade, há que não iludir as legítimas expectativas da
outra parte - que pode não ter quaisquer motivos para duvidar de que
~de o acto em que intervém tem conexão com a actividade mercantil do
comerciante. Por conseguinte, só as circunstâncias que tiverem sido
68 Liç_õesde Direito Comercial

conhecidas do outro contraente, ou que este razoavelmente devia co-


nhecer, podem ser tomadas em conta para a qualificação do acto.
Como se vê, trata-se de um solução paralela à que adoptámos na
interpretação dos negócios jurídicos em geral - "doutrina da impres-
são do destinatário" '", E compreende-se. Num caso e noutro, os interes-
ses em jogo são da mesma ordem: os interesses gerais da contratação e
os interesses legítimos do declaratário.

II) E quanto à fórmula: "não ser o acto de natureza exclusivamente


civil"?
Agora as hesitações surgem entre a adopção da doutrina do autor do
projecto e a de BARBOSADE MAGALHÃES.
Antes de mais, deve reconhecer-se que o respeito pela vontade histó-
rica do legislador nos levaria a optar, sem grandes d˙vidas, pela primei-
ra. Com efeito, "natureza exclusivamente civil" e "natureza essencial-
mente civil" são fórmulas que em si mesmas coincidem, que valem
objectivamente a mesma coisa, pesadas as palavras letra por letra; mas
uma coisa é certa: é que o legislador quis, substituindo essencialmente por
exclusivamente, que ao artigo fosse dado um entendimento diferente do
suscitado pelo art. 4.° do Código italiano (21.
É bem verdade que o legislador quis dizer, mas não disse: as fórmu-
las valem literalmente o mesmo; mas sempre é certo que o legislador
quis dizer - e isto será, para um subjectivista radical em matéria de
interpretação, coisa de não pouca valia.
E há uma razão que favorece esta doutrina: a da certeza jurídica.
Ter-se-ão evitado d˙vidas e questões restringindo-se a atribuição da
comercialidade pelo princípio do acessório a um n˙mero bem defi-
nido de actos dos comerciantes: os que estão previstos na lei comer-
cial.
É certo. Embora seja também verdade que não parece ser de molde a
originar grandes d˙vidas a enumeração dos actos cuja natureza exclua
toda a referência ao comércio. Além daqueles por que se constituem,
modificam ou extinguem relações de família, dos actos pertencentes à
esfera do direito sucessório e de todos os negócios de natureza estrita-
mente extrapatrimonial, poucos mais terão uma natureza tal que torne
legítima a d˙vida sobre se podem ou não "ser comercializados". Mas

ui Doutrina acolhida no n.? 1 do artigo 236.° do Cód. Civ.


'li Veja-se o passo das Lições do Prof. PINTO COELHO (págs. 38 e 39) cito acima (pág. 61).
'ial Dos actos de comércio 69

'0- haveria sempre um problema, fácil ou difícil, que importaria solucionar


- e que não se põe na doutrina de PINTO COELHO. Não se põe, ou,
na por outra, se se põe, encontra logo uma resposta pronta e clara.
$- Por outro lado, há razões sérias em favor da doutrina de BARBO-
~s- SA DE MAGALHÃES. Desde logo, ela não é contrariada, antes de
'e algum modo sugerida, pela letra da lei; depois, ela é ainda a que está
mais de harmonia com a razão do preceito. Que é a interpretação mais
próxima da letra da lei, vê-se da simples leitura do texto: na verdade,
te aí se fala de actos "que não forem de natureza exclusivamente civil"
- e vimos já que um acto só regulado na lei civil pode não ser de
lo natureza exclusivamente civil. Que é a interpretação mais de harmo-
nia com a razão do preceito, deduz-se da seguinte consideração: os
ó- actos dos comerciantes consideram-se comerciais pela presunção de
que têm conexão efectiva com a actividade mercantil dos seus agen-
ll- tes. Se assim é, compreende-se bem que fiquem desde logo excluídos
m aqueles casos que, pela sua própria natureza, não possam ter qual-
lS quer conexão relevante com o exercício do comércio. É esta uma limi-
)r tação que representa apenas um desenvolvimento lógico do ponto de
lo partida do nosso raciocínio.
Vejamos agora se existe uma relação de necessidade lógica entre as
1- seguintes duas proposições, em que se desdobra a doutrina de J. G.
)r PINTO COELHO: Í os actos dos comerciantes presumem-se aces-
." -

te sórios do seu comércio e por isso se consideram comerciais; 2: - não


são comerciais os actos dos comerciantes que não corresponderem a
:lo um dos tipos previstos na lei comercial. Salta aos olhos que aquela
a relação de necessidade lógica falta aqui. A doutrina de PINTO COE-
i- LHO pode ser exacta; mas não porque represente a interpretação mais
r- natural do preceito do art. 2. 0

Depois, a doutrina de BARBOSADE MAGALHÃES é a que melhor


a satisfaz os interesses da vida mercantil. Com a acentuação progressiva,
a nos tempos de hoje, do direito comercial como um direito centrado na
i, empresa como organização, seria um contra-senso não considerar como
à comerciais os actos realizados no seio da empresa, no exercício do
l- comércio e para o exercício do comércio - como aconteceria, na doutri-
e na de PINTO COELHO, com relação a todos aqueles actos não previstos
s na lei comercial.
Quem tiver d˙vidas em considerar como objectivamente mercantis
os negócios jurídicos que têm por objecto o estabelecimento, e apenas
por esse facto, encontrará, na maioria das vezes, o caminho seguro da
).
sua comercialidade na segunda parte do artigo 2. assim entendido. É
0
,
70 Li!;_õesde Direito Comercial

certo que, pelo que diz respeito ao trespassem, ao mesmo resultado se


poderá chegar através da própria doutrina tradicional, sempre que o tres-
passe consista na transmissão do estabelecimento por compra e venda,
pois, como é sabido, a compra e venda está regulada no Código
Comercial'", Outro tanto se não diga na hipótese de o trespasse de um
estabelecimento se efectuar por troca - desde que, com PINTO COE-
LHO, se exclua a possibilidade de qualificar os negócios atípicos (e a
troca, em face do Cód. Civ. de 1966, é justamente um negócio atípico'"
como actos subjectivamente comerciais". Entretanto, em bom rigor, pare-
ce não haver qualquer obstáculo a uma tal qualificação. Efectivamente,
não estando os negócios atípicos, por definição, previstos nem na lei
comercial nem na civil, não pode a seu respeito dizer-se que se trata de
"actos de natureza exclusivamente civil", ou seja - no entendimento tra-
dicional desta expressão -, de actos exclusivamente regulados na lei
civil. Por outro lado, dado um negócio não tipificado legalmente, falta
toda a base para poder conjecturar-se que o legislador comercial conside-
rou o mesmo negócio como estranho ao comércio: é muito natural que ele
não tenha tomado, pura e simplesmente, conhecimento do caso.
Diga-se, por ˙ltimo, que na interpretação tradicional do art. 2.°(5)tam-
bém não se consideram em regra'" subjectivamente mercantis as obriga-

II> Quanto à locação de estabelecimento, em face da norma do art. 1085.°do actual Cód. Civ,
não nos parece que a sua comercialidade objectiva seja de molde a provocar d˙vidas.
m O mesmo se diga de outros casos de trespasse, como a entrada para uma sociedade
comercial, quando o objecto daquela seja a propriedade do estabelecimento ou empre-
sa, ou a adjudicação do estabelecimento a um dos ex-sócios em caso de liquidação da
sociedade.
III PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. II, págs. 179 e seg.;

GALV ÃO TELES, Contratos Civis, sep. do BoI. Min. Just. 83, págs. 33 e segs.
W Segundo aquele autor (Lições cii., pág. 60), o que interessa para a categoria dos actos

subjectivamente comerciais "não é o estarem regulados, embora exclusivamente, no


Código Civil; é o elemento negativo - não terem regulamentação no Código
Comercial, porque é isso que mostra que eles nunca podem ter natureza comercial, não
podem nunca relacionar-se com o exercício do comércio; é isso que revela em suma que
o legislador não considerou possível que tais actos revestissem aspecto mercantil, pois
se considerasse essa possibilidade tê-los-ia regulado na lei comercial. Pouco importa,
por conseguinte, que esses actos, não tendo regulamentação na lei comercial (porque
nada têm que ver com a actividade mercantil), também a não tenham no Código Civil".
A natureza comercial de um contrato inominado (o de agência, representação comer-
cial ou distribuição) foi admitida pelo ac. do S.T.J., de 7-3-1969 (BM], 185 p. 296).
G' PINTO COELHO, Lições cit., págs. 70-71.

Exceptue-se a posição de FERNANDO OLA VO, ob. cit., págs. 82 e segs., e, ultimamen-
te, na jurisprudência; dr. os acs. do S.T.J. de 30-5-1958 (BoI. Min. Just. 77, pág. 441, e
Dos actos de comércio 71

se ções originadas em factos ilícitos extracontratuais imputados aos comer-


'es- ciantes e conexionados com o exercício da sua actividade (tal será o caso,
da, por exemplo, da obrigação de indemnizar terceiros pelos prejuízos
go decorrentes do próprio funcionamento da empresa, da obrigação de
1m indemnizar as pessoas lesadas por um acidente de viação originado pelo
)E- comerciante no exercício do seu comércio, etc.). Parece-nos, porém, que a
solução mais justa nesses casos será conceder ao prejudicado as vanta-
gens resultantes da aplicação do regime geral da lei sobre a responsabili-
,re- dade dos bens do casal pelas dívidas comerciais do cônjuge comerciante
ite, [Cód. Com., art. 15.0, e Cód. Civ., art. 1691.°, n." 1, alínea d)]. E nem se
lei diga que a solução é menos justa quando olhadas as coisas da perspec-
de tiva do devedor. Não é assim. O devedor (da indemnização) é um comer-
ra- ciante que praticou o facto (ou a quem, de toda a maneira, o facto é legal-
lei mente imputado) no exercício do seu comércio - e que deve encarar as
dta respectivas consequências como a concretização de um risco que é ine-
:ie- rente, pela própria força das coisas, a essa actividade. Se ele for casado,
ele em regime de comunhão, essas consequências, por imperativo dos textos
legais acima citados, repercutir-se-ão com particular intensidade na esfe-
m- ra patrimonial do casaL Mas nem isso é chocante, porque, sendo o co-
~a- mércio exercido no interesse da família, recolhendo o casal os benefícios
dessa actividade, não deixa de ser equitativo que também ele haja de
suportar os prejuízos que daí eventualmente derivem UI. A solidariedade,
.iv., que a lei cria entre os cônjuges quando um deles é comerciante, deve
abranger todos os riscos que o exercício dessa actividade comporta.
ide Por tudo o exposto, é para a doutrina de BARBOSA DE MAGA-
ire-
da LHÃES que nos inclinamos quanto à interpretação da 2.. parte do art. 2.0
e mais concretamente da fórmula "actos de natureza exclusivamente
eg.; civil": o desfavor da incerteza que anda ligado à sua aplicação é bem
compensado pelo amplo e adequado entendimento das realidades da
'tos
no
vida que se permite com a mesma doutrina.
igo
'1ão
iue Rev. Leg. [ur. 91.°, pág. 370) e de 11-4-1962 (BoI. cito 116, pág. 316, e Rev. Trib. 80.°, pág.
lois
205). Cfr. todavia, o ac. do S.T.J. de 11-4-1962 (BoI. cito 116, pág. 308), do qual certos
rta,
passos reflectem uma concepção oposta.
iue 111 Pode considerar-se dominante a doutrina que sustenta a comercial idade dos factos
"ii" .
ler- ilícitos praticados em conexão com o exercício do comércio. Cfr, entre muitos outros,
os seguintes autores: VIVANTE, cit., S.' ed. n.? 88; RIPERT-ROBLOT, ob. e ool. ciis., n=
315 e segs., onde se informa ser no mesmo sentido a orientação da jurisprudência
en- francesa mais recente; VAN RYN, cit., n." 73; BARBOSA DE MAGALHÃES, Lições cii.,
l, e
págs. 96 e segs., e FERNANDO OLA VO, loco cito
A. FERRER CORREIA
Professor Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra

'"
LIÇOES DE DIREITO
COMERCIAL

~print

VolumeI -1973
VolumeII -1968
VolumeIII-1975

~
1994

\.'

Você também pode gostar