Você está na página 1de 10

, ,

J Creatinina, Uréia e Acido Urico


Edmund J. Lamb, Ph.D., F.R.C.Path., e Christopher P. Price, Ph.D., F.R.C.Path.

OBJETIVOS a creatina é transportada no sangue para outros órgãos, tais como


1. Resumir a biossíntese da uréia, creatinina e ácido úrico. músculos e cérebro, onde é fosforilada para fosfocreatina, um
2. Determinar a função e a importância clínica da uréia, creatinina e composto de alta energia.
ácido úrico.
3. Discutir a utilidade clínica e as limitações da dosagem da uréia
HN, NH2 Creatinoqiúnase
como um marcador da função renal.
4. Resumir o transporte renal do ácido úrico e determinar seu papel
"'C,-
~
..
H3C,, 'CH2
na patogenia da gota e dos cálculos do trato urinário. ATP ADP
5. Enumerar os requerimentos de amostras, os métodos analíticos, os o-:::,t,oe
princípios e as interferências analíticas possíveis da uréia, Creatina Fosfocreatina
creatinina e ácido úrico.

PALAVRAS-CHAVE E DEFINIÇÕES
Gota: Um grupo de distúrbios do metabolismo de purina e
pirimidina.
Hiperuricemia: Excesso de ácido úrico ou uratos no sangue; é
um pré-requisito para o desenvolvimento da gota e pode
levar à doenca renal. /
Hipouricemia: Diminuiç1o da concentração de ácido úrico no Creatinina

sangue, às vezes devi~~ à deficiência de xantina oxidase, a


A interconversão de fosfocreatina e da creatina é uma carac-
enzima necessária para a conversão da hipoxantina em
terística particular dos processos metabólicos da contração mus-
xantina e da xantina em ácido úrico.
cular. Uma proporção de creatina livre (acredita-se que seja de
Reação de Jaffe: A reação da creatinina com o picrato alcalino
1% a 2% ao dia) converte-se espontânea e irreversivelmente para
para formar um composto colorido. Usada para medir a
creatinina. seu produto de excreção na forma de anidrido - a creatinina.
Logo, a quantidade total de creatinina produzida a cada d ia é
Taxa de Filtração Glomerular (GFR): Taxa em mililitros por
relativamente constante e é relativa à massa muscular. Com boa
minuto na qual pequenas substâncias como a creatinina e a
saúde, a concentracão de creatinina na corrente sanguínea é
uréia são filtradas através dos glomérulos renais. É uma
relativamente const~nte. Entretanto, dependendo da ingestão de
medida da quantidade de néfrons ativos.
carne do indivíduo, a dieta pode influenciar essa concentração.
Uréia: O principal metabólito nitrogenado do catabolismo
protéico no homem. A creatinina encontra-se presente em todos os fluidos e secreções
corporais, sendo filtrada livremente pelo glomérulo. Apesar de
não ser reabsorvida em quantidade relevante pelos túbulos renais,
há uma pequena secreção tubular, porém significativa. A produ-
cão de creatinina também diminui conforme o nível circulante
reatinina, a uréia e o ácido úrico são metabólitos nitro- dessa creatinina aumenta; foram propostos diversos mecanismos
enados não protéicos depurados do corpo através do rim para isso, incluindo ( 1) inibição da produção de creatinina, (2)
pós a filtração glomerular. As dosagens das concentra- reconversão da creatinina em creatina e (3) conversão para outros
ções plasmáticas e séricas desses metabólitos são usadas comu- metabólitos.
mente como indicadores da função renal e de outras condições.
Importância Clínica
CREATININA A creatinina é produzida endogenamente e liberada nos fluidos
A creatinina (MW 113 Da) é o anidrido cíclico da creatina que corporais numa taxa constante, e sua concentração plasmática é
é gerado como produto final da decomposição da fosfocreatina. mantida dentro de limites estreitos, predominantemente pela
Ela é excretada na urina; as dosagens da creatinina plasmática e filtração glomerular. Conseqüentemente, tanto a concentração
de sua depuração renal são usadas como indicadores diagnósticos plasmática da creatinina quanto a sua depuração renal ("clearance
da função renal (Capítulo 34). de creatinina") têm sido utilizadas como marcadores da taxa de
filtração glomerular (GFR). A aplicação e as limitações desses
Bioquímica e Fisiologia testes são debatidas no Capítulo 34.
A creatinina é sintetizada nos (1) rins, (2) fígado e (3) pâncreas
por duas reações mediadas enzimaticamente. Na primeira, a tran- Metodologia Analítica
samidação da arginina e da glicina forma o ácido guanidinoacé- A creatinina plasmática é medida comumente usando-se métodos
tico. Na segunda reação, a metilação do ácido guanidinoacético químicos ou enzimáticos. Outros métodos, incluindo a espectro-
ocorre com a S-adenosilmetionina como doador de metila. Então, metria de massa com diluição do isótopo, também têm sido
374 PARTE IV Analitos

utilizados.3 •7•9 A maioria dos laboratórios usa adaptações do não-linear; logo, é necessário um intervalo fixo de dois pontos
mesmo método para as medições tanto no plasma quanto na em vez de uma abordagem de múltiplos pontos de dados.
urina.
Concentração de Hidróxido
Métodos Químicos: a Reação de Jaffe A taxa de reação inicial é de pseudo-primeira ordem no que diz
A maioria dos métodos clínicos para a dosagem da creatinina respeito às concentrações de hidróxido acima de 0,5 mmol/L.
baseia-se em sua reação com o picrato alcalino. Como descrito Porém, a 500 mmol/L, há uma degradação elevada do complexo
pela primeira vez por Jaffe em 1886, a creatinina reage com o íon de Jaffe. Além disso, nas concentrações de hidróxido acima de 200
picrato num meio alcalino para resultar num complexo laranja- mmol/L, a absorvância do branco aumenta significativamente.
avermelhado.
Um problema analítico sério com a reação de Jaffe é a sua Comprimento de Onda
falta de especificidade para a creatinina. Por exemplo, relatou-se Embora a absorvância máxima da reação de Jaffe esteja entre 490
que muitos compostos produziram um cromógeno semelhante e 500 nm, melhores linearidades e redução dos brancos já foram
ao de Jaffe, incluindo (1) o ácido ascórbico, (2) os produtos que relatadas em outros comprimentos de onda, variando a escolha
substituem o sangue, (3) as cefalosporinas, (4) a glicose, (5) a de acordo com a concentração de hidróxido.
guanidina, (6) os corpos cetônicos, (7) a proteína e (8) o piruvato.
O grau de interferência desses componentes depende das condi- Temperatura
ções específicas da reação escolhida. O efeito das cetonas e ceto- A taxa de formação do complexo de Jaffe e a absortividade desse
ácidos provavelmente é de grande importância clínica, embora complexo dependem da temperatura, sendo observadas diferen-
este efeito seja muito dependente do método. Assim, os relatórios ças mensuráveis até mesmo entre 25ºC e 37ºC. Conseqüente,
da interferência do acetoacetato variam de um aumento despre- mente, o controle de temperatura é um componente importante
zível a um aumento de 3,5 mg/dL (310 µmol/L) na concentração da reprodutibilidade do ensaio.
de creatinina aparente numa concentração de acetoacetato de
8 mmol/L. A bilirrubina é um interferente negativo na reação Métodos Enzimáticos
de Jaffe. A adição de íons de tamponamento, tais como borato Enzimas de várias vias metabólicas foram investigadas para a
e fosfato, junto com surfactante, tem sido utilizada para minimi- dosagem enzimática da creatinina. Todos os métodos envolvem
zar os efeitos d esta interferência. Além disso, adicionou-se ferri- urna abordagem de múltiplas etapas, levando a um equilíbrio
cianeto - método de O'Leary - para oxidar a bilirrubina em fotométrico (Figura 21-1). Existem basicamente três abordagens,
biliverdina, reduzindo portanto a sua interferência. Os cromóge- descritas a seguir.
nos não-creatinina geralmente não contribuem para a concentra-
cão urinária medida da creatinina.
Creatininase
' O maior sucesso em termos de uso comum e especificidade
A creatininase (EC 3.5.2.10; creatinina amidoidrolase) catalisa a
veio a partir do uso da abordagem dosagem cinética em combi- conversão da creatinin~em creatina. Então, a creatina é detec-
nação com a escolha cuidadosa das concentrações de reagente.
tada com urna série de retlções mediadas por enzima envolvendo
Em geral, os métodos manuais têm sido tradicionalmente
a creatinoquinase, a pirudto quinase e a lactato desidrogenase,
métodos de equilíbrio, com a espera de 10 a 15 minutos para o
com o monitoramento da diminuição da absorvância a 340 nm
desenvolvimento da cor em temperatura ambiente. Os ensaios (Figura 21-1, A). O início da reação com a creatininase viabiliza
cinéticos foram desenvolvidos para proporcionar análises mais a remoção da creatina endógena e do piruvato numa reação de
específicas, rápidas e automatizadas. Os estudos iniciais das inter- pré-incubação. A cinética da reação é an aliticamente problemá-
ferências nos métodos cinéticos identificaram dois tipos de cro- tica, sendo necessária urna incubação de 30 minutos para permi-
mógenos não-creatinina. Num grupo, a taxa de formação de tir que a reacão alcance o equilíbrio. Essa lacuna foi preenchida
adutos é muito rápida e ocorre nos primeiros 20 s após a mistura por uma ab~rdagem ! cinética, porém com urna redução subse-
do reagente e da amostra. O acetoacetato é um exemplo desse qüente na capacidade do método em detectar a creatinina. Con-
tipo de interferente. No segundo grupo, a taxa de formação de
seqüentemente, esta abordagem não é amplamente utilizada.
adutos não é significativa até que se atinjam 80 a 100 s após a
mistura (p. ex., proteína). A "janela" entre 20 e 80 s, portanto,
Creatininase e Creatinase
fo i um período no qual o sinal da taxa observada poderia ser
Uma abordagem alternativa tem sido o uso da creatinase (EC
atribuído predominantemente à reação creatinina-picrato. A
3.5.3.3; creatina amidoidrolase), que resulta em sarcosina e uréia,
melhoria da especificidade nos ensaios cinéticos foi alcançada
sendo a primeira medida em etapas posteriores mediadas por
selecionando-se os tempos das medições de taxa de 20 a 80 s após
enzima usando a sarcosina oxidase (EC 1.5.3.1). Isto produz (1)
o início da reação (mistura). A abordagem foi implementada em
glicina, (2) formaldeído e (3) peróxido de hidrogênio (Figura 21-1, B),
vários instrumentos automatizados, e agora os ensaios cinéticos
sendo este último detectado e medido através de vários métodos.
são amplamente utilizados para medir as concentrações de crea-
Contudo, deve-se ter cuidado quanto às interferências (p. ex.,
tinina nos fluidos corporais.
pela bilirrubina) na seqüência final da reação. Esse problema tem
Existe literatura bem abrangente a respeito da escolha das
sido minimizado pela adição de ferricianeto de potássio (com
concentrações de reagente, do intervalo de leitura, da escolha do
sucesso limitado) ou bilirrubina oxidase. A interferência poten-
comprimento de onda e da temperatura da reação.
cial causada pelo ácido ascórbico foi vencida pela inclusão de
ascorbato oxidase (L-ascorbato: oxigênio oxidorredutase, EC
1.10.3.3). A influência da creatinina endógena intermediária e
Concentração de Picrato da uréia tem sido minimizada adicionando-se urna etapa de pré-
A reação de Jaffe é de pseudo-primeira ordem no que diz respeito incubação e depois iniciando a reação com a creatinin ase. Este
ao picrato de até 30 mmol/L, com a maioria dos métodos empre- sistema foi incorporado à plataforma de testes rápidos do paciente
gando uma concentração entre 3 e 16 mmol/L. Nas concentra- (point-ofcare) com um dispositivo de teste usando detecção pola-
ções acima de 6 mmol/L, a taxa de evolução da cor torna-se rográfica. Um sistema de detecção alternativo envolve a dosagem
Creatinina, Uréia e Ácido Úrico CAPÍTULO 21 375

creatininase
A creatinina + H20 creatina

creatinoquinase
creatina + ATP fosfocreatina + ADP

piruvato quinase
ADP + fosfoenolpiruvato piruvato + ATP

lactato desidrogenase
piruvato + NADH + H+ lactato + NAD+

creatininase
B creatinina + H20 creatina

creatinase
sarcosina + uréia

sarcosina oxidase
formaldeído + glicina + H20 2

peroxidase
indicador (reduzido)+ H20 2 indicador (oxidado) + 2H 20

ou
formaldeído

e focmaldeldo +to•+ H,O


desidrogenase

creatinina
HCOOH + NADH + W

desaminase
D creatinina + H20 \ N-metilidantoína + NH3

L-metilidantoinase
N-metilidantoína + ATP + H20 carbamoilsarcosina + ADP + Pi
L-carbamoi/sarcosina
aminoidro/ase
carbamoilsarcosina + H2 0 sarcosina + C02 + NH3

sarcosina oxidase
H20 + glicina + HCHO

peroxidase
indicador (reduzido) + H202 indicador (oxidado) + 2 H20

Figura 21-1 Determinação da creatinina usando-se diversos métodos enzimáticos. Leia o texto para obter
mais detalhes.

da redução do dinucleotídeo adenina nicotinamida (NAD) pelo uma camada semipermeável e opticamente opaca para reagir com
formaldeído na presença de formaldeído desidrogenase (Figura o azul de bromofen ol para elevar a absorvância em 600 nm. Uma
21-1, C). segunda película multicamada sem a enzima foi utilizada para
quantificar a amônia endógena, viabilizando a correção do
Creatinina Desaminase branco. Um método posterior de lâmina única utilizou a seqüên-
A creatinina desaminase (EC 3.5.4.21; creatmma iminoidro- cia de reação creatininase-creatinase. Relatou-se que os metabóli-
lase) catalisa a conversão da creatinina em N-metilidantoína e tos da lidocaína interferem nesse método. Esse sistema creatinina
amônia. Os primeiros métodos concentravam-se na detecção desaminase descrito também foi utilizado e adaptado para o uso
da amônia usando a glutamato desidrogenase ou a reação de como um d ispositivo de teste point-ofcare (Figura 21-1, D). Em
Berthelot. Uma abordagem alternativa envolve a enzima N-meti- todos os casos a cor produzida na película é quantificada pela
lidantoina amidoidrolase (Figura 21-1, D). espectrofotometria de reflectância. Também foi descrito um
sistema de química seca no qual foi utilizada uma abordagem não
Sistemas de Química Seca enzimática baseada na reação com o ácido 3,5-dinitrobenzóico.
Vários métodos de reagente seco multicamada foram descritos
para a dosagem da creatinina usando reações mediadas por Outros Métodos
enzima. Uma abordagem inicial de "duas lâminas" empregava a Foi descrito um método defin itivo que emprega a espectrometria
creatinina desaminase, com a amônia difundindo-se através de de massa com diluição de isótopo (ID-MS).9 Um método para a
376 PARTE IV Analitos

creatinina que tende a ser uma referência e é ligado a este método mulheres (de 11 a 20 mg/kg/dia, 97 a 177 µmoVkg/ dia). A
definitivo usa a cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC) excreção da creatinina diminui com a idade. Tipicamente, para
de troca iônica isocrática com a detecção do ultravioleta (UV) em um homem de 70 kg, a excreção da creatinina diminuirá de
234 nm.1 aproximadamente 1.640 para 1.030 mg/dia (14,5 a 9,1 mmoV
dia) com a progressão da idade dos 30 aos 80 anos. Acredita-se
Considerações sobre Qualidade com os Métodos que a dosagem da excreção urinária da creatin ina seja um indi-
de Creatinina cador útil da totalidade de uma coleta cronometrada da urina.
Como foi debatido anteriormente, os diferentes métodos para
testar a creatinina plasmática têm graus de acuidade e imprecisão URÉIA
variados. Com o advento da análise cinética automatizada, dentro O catabolismo das proteínas e aminoácidos resulta na formação
do laboratório, por dia, espera-se uma imprecisão média de apro- da uréia, a qual é eliminada do corpo predominantemente pelos
ximadamente 3,0% nas concentrações patológicas, com desem- r ins.
penho reduzido dentro do intervalo de referência. Isto ainda está

l
Protcina
fora dos padrões de desempenho desejados, definidos em termos
de variação biológica.
Proteólise, principalmente enzimática
A estimativa da GFR baseada na concentração de creatinina
plasmática irá variar claramente dependendo da precisão e do
A111inoácidos
ajuste da dosagem da creatinina. 2 Quanto mais um método supe-
restimar a creatinina "real", maior será a subestimação da GFR
e vice-versa. Como resultado da reação com cromógenos não-
creatinina, considerou-se que normalmente os métodos finais de
l
Transaminação e desamina.ão oxidativa

l
Amônia
Jaffe superestimam a concentração real de creatinina plasmática
em aproximadamente 20% nas concentrações fisiológicas. Con-
Síntese enzimática no "ciclo da uréia"
seqüentemente, os métodos cinéticos, enzimáticos e cromatográ-
ficos produzem medições de creatinina aproximadamente 20%
Uréia
mais baixas do que os métodos de Jaffe iniciais. Porém, uma vez
que isso pode resultar na superestimativa da GFR, alguns fabri-
cantes de reagentes e instrumentos calibraram seus ensaios para
produzir resultados de creatinina plasmática mais elevados. Bioquímica e Fisiologia
Como conseqüência, os métodos de creatinina disponíveis A uréia (CO[NH2h) é o principal produto metabólico nitroge-
comercialmente podem demonstrar um ajuste positivo, compa- n ado do catabolismo protéico em humanos, contribuindo para
rados com os métodos de ID-MS, particularmente nas concentra- mais de 75% do nitrogênio n ão protéico eventualmente excre-
ções dentro dos intervalos de referência. Inversamente, alguns tado. A biossíntese da uréia a partir da amônia derivada do
fabricantes manipularam seus testes para ajustar a saída do anali- nitrogên io de aminoácido é feita exclusivamente pelas enzimas
sador para a interferência do cromógeno não-creatinina (os cha- '- epáticas do ciclo da uréia. Durante o processo de catabolismo
mados ensaios compensados). Na prática atual os coeficientes de da roteína, o nitrogênio de aminoácido é convertido para uréia
variação (CVs) interlaboratoriais <3% são atingíveis dentro de no fi · ado pela acão das chamadas enzimas do ciclo da uréia
(Figurà ·21-2). ,
grupos de métodos. Contudo, o consenso global interlaboratorial
através dos métodos é bem mais fraco, e é comum a variação de Mais de 90% da uréia é excretada através dos rins, e as perdas
0,2 a 0,4 mg/dL (18 a 36 µmoVL) entre os laboratórios. Além através do trato gastrointestinal e da pele contribuem para a
disso, o consenso interlaboratorial e dentro do próprio laborató- maior parte da fração menor remanescente. C onseqüentemente,
rio se deteriora conforme a concentração de creatinina plasmá- a doença renal é assqciada ao acúmulo de uréia no sangue. Um
tica se aproxima do intervalo de referência: a relação exponencial aumento na concentração de uréia plasmática caracteriza o estado
entre a creatinina plasmática e a GFR significa que a imprecisão urêmico (azotêmico). A uréia não é reabsorvida ativamente e nem
nas baixas concentrações de creatinina contribui para um erro secretada pelos túbulos, mas sim filtrada livremente pelos glo-
maior na estimativa da GFR do que nas concentrações de crea- mérulos. Num rim normal, de 40% a 70% da uréia altamente
tinina mais elevadas. Obviamente, a padronização da dosagem difusível move-se passivelm ente para fora do túbulo renal e para
da creatinina é crucial, e estão em andamento as tentativas de dentro do interstício, para, finalmente, reentrar n o plasma. A
preparar um padrão internacional a ser utilizado na calibração retrodifusão da uréia também depende da taxa d.e fluxo da urina,
dos testes de creatinina plasmática. 2 com pouca entrada no interstício nos estados de alto fluxo
(p. ex., gravidez) e vice-versa. Conseqüentemente, a depuração da
Intervalos de Referência uréia subestima geralmente a GFR. Na ESDR, a diuresc osmótica
Os intervalos de referência para a creatinina plasmática depen- nos néfrons funcionais remanescentes limita a retrodifusão da
dem do método. Tipicamente, os intervalos de referência para a uréia de modo que a dep uração da mesma aproxima-se da depu-
creatinina plasmática, medidos pelos métodos de Jaffe, são de 0,9 ração da inulina (considerado o método de referência para avaliar
a 1,3 mg/dL (80 a 115 µmol/L) nos homens e de 0,6 a 1,1 mg/ a GFR).
dL (53 a 97 µmoVL) nas mulheres, embora se devam aplicar
intervalos de referência significativamente menores quando se Importância Clínica
utilizam métodos específicos e mais precisos, tal como o ID-MS. A dosagem da uréia sanguínea e plasmática tem sido u tilizada há
As concentrações de creatinina plasmática nos pacientes com muitos anos como um indicador da função renal. Todavia, hoje
insuficiência renal terminal não tratada (ESRD) podem ultrapas- é geralmente aceito que a dosagem da creatinina proporciona
sar 11 mg/dL (l.000 µmol/L) . informações melhores a esse respeito. Porém , a dosagem da uréia
A excrecão urinária da creatinina é mais elevada nos homens plasmática e urinária ainda pode fornecer informações clínicas
(de 14 a 26 mg/kg/dia, 124 a 230 µmol/kg/dia) do que nas úteis em determinadas circunstâncias, e a dosagem da uréia nos
Creatinina, Uréia e Ácido Úrico CAPÍTULO 21 377

elevada com concentrações normais de creatinina originando pro-


porções elevadas pode ser vista com qualquer dos estados pré-

f
2ATP renais descritos anteriormente. As taxas elevadas associadas às
* SI Fuma rato concentrações de creatinina elevadas podem indicar a obstrução
pós-renal ou a azotemia pré-renal superpostas na doença renal.
- 2ADP +P, Uréia A depuração da uréia é um indicador inferior da GFR, já que
a sua taxa de produção depende de vár ios fatores não renais,
Fosfato
de carbamoil
incluindo a d ieta e a atividade das enzimas do ciclo da uréia.
AR Uma dieta rica em proteína provoca aumentos significativos na
excreção da uréia urinária. Além disso, a quantidade variável de
Ornitina Arginina retrodifusão influenciará ambas as concentrações de uréia plas-
mática e urinária. A dosagem da uréia urinária ocupa pouco
espaço no diagnóstico e na con duta clínicos. Entretanto, ela
proporciona um índice grosseiro do equilíbrio global de nitrogê-
nio e pode ser utilizada como um guia para a reposição nos
OTC AL pacientes que estejam recebendo alimentação parenteral. Numa
d ieta protéica média, a excreção urinária expressa como nitrogê-
nio uréico é de 12 a 20 g/dia.

Metodologia Analítica
C itrulina Argininossuccinam
Ambos os métodos químico e enzimático são usados para quan-
i tificar a uréia nos líquidos corporais. 8

Métodos Químicos
A maior parte dos métodos químicos para a uréia baseia-se n a reação
de Fearon, em que o diacetil se condensa com a uréia para formar
ATP AMP+P, o cromógeno diazina, o qual absorve fortemente a 540 nm.

Figura 21-2 A via do ciclo da uréia. CPS 1, Carbamoil fosfato H2N H3c___c°""º d±l H3C, N
\ e""'
sintetase I; *N-acetilglutamato como efetor alostérico positivo; OTC,
ornitina transcarbamilase; AAS, argininossuccinato sintetase; AL, H2l'Í
C= O +
! ""-o --------
H3C_.... Calor
H3C/ ""N
e,,._ ;'c= o +
1 2H20

argininossuccinato liase; AR, arginase; ADP, d ifosfato de adenosina; Uréia Diacetila Diazína
AMP, monofosfato de adenosina; ATP, trifosfato de adenosina; Pi,
fosfato inorgânico.
Como a diacetila é instável, normalmente é gerada no sistema
de reação da diacetilmonoxima e do ácido. Embora amplamente
utilizado no passado, esse método tem sido substituído pelas
abordagens enzimáticas.
líquidos da diálise é amplamente utilizada na avaliação da ade-
quação da terapia de substituição renal. Vários fatores extra- Métodos Enzimáticos
renais influenciam na concentração de uréia circulante, limi- Os métodos enzimáticos para a dosagem da uréia baseiam-se
tando sua validade como um teste da função renal. Por exemplo, na hidrólise preliminar da uréia com a urease (uréia amidoidro-
a concentração de uréia p lasmática eleva-se com (1) uma d ieta lase, EC 3.5.l.5; cuja principal fonte é o feijão) para gerar amônia,
rica em proteína, (2) catabolismo protéico elevado, (3) reabsorção a qual é então quantificada. Esta abordagem tem sido utilizada
das proteínas sanguíneas após a hemorragia gastrointestinal, (4) nos sistemas (1) fotométrico de equilíbrio, (2) fotométrico ciné-
tratamento com cortisol ou seus análogos sintéticos, (5) desidra- tico, (3) condutimétrico e (4) de química seca.
tação, e com (6) a perfusão reduzida dos rins (p. ex., insuficiência Urease
cardíaca). Nessas siluações µré-n::nab, a 1,;uncentraçãu J e creati- H2N\
nina plasmática pode estar normal. Nas condições pós-renais C=O + 2H20
obstrutivas (p. ex., malignidade, nefrolitiase e prostatismo), as H2l'Í
concentrações tanto da creatinina plasmática quanto da uréia Uréia
serão elevadas, embora nessas situações haja quase sempre um
As abordagens espectrofotométricas para a quantificação da
aumento maior na uréia plasmática do que na creatinina devido
amônia incluem a reação de Berthelot e o ensaio enzimático com
à retrodifusão elevada. Essas considerações originam a u tilidade
glutamato desidrogenase [L-glutamato-NAD(p) oxirredutase
clínica principal da uréia plasmática, a qual reside na dosagem
(desaminante), EC 1.4.1.3]. Esta última abordagem tem sido
em conjunto com a da creatinina plasmática e no cálculo subse-
qüente da proporção de nitrogênio uréico/creatinina. Essa pro- aceita como método de referência e adaptada para muitas plata-
formas analíticas.
porção tem sido usada como um d iscriminador grosseiro entre a
azotemia pré-renal e pós-renal. Por exemplo, para um indivíduo (±) Gluramato desidrogenase
norm al em dieta normal, o intervalo de referência para a propor- NH4 + 2-0xoglucarato - --/----:=~- ~=----• Glutamaro + H 2 0
ção está entre 12 e 20 mg uréia/mg de creatinina (49 a 81 mol NADH NAD<±l
de uréia/mol de creatinina). As proporções significativamente +H<±l
mais baixas denotam normalmente (1) a necrose tubular aguda,
(2) a baixa ingestão de proteína, (3) a inanição ou (4) a doença Nos ensaios de plasma, o sistema de reação contém urease,
hepática aguda (síntese de uréia dimin uída). A uréia plasmática de modo que a adição de amostra contendo uréia inicia a reação.
378 PARTE IV Analitos

Uma diminuição na absorvância resultante da reação da gluta- ximadamente 400 mg. As fontes de dieta contribuem para outros
mato desidrogenase é monitorada a 340 nm. Num outro exemplo 300 mg. Nos homens que consomem uma dieta sem purina, a
de sistema de teste enzimático para a uréia, a amônia produzida reserva corporal total de urato intercambiável é estimada em
a partir dessa uréia pela urease reage com o glutamato e o trifos- 1.200 mg. Nas mulheres, é estimada em 600 mg. Por outro lado,
fato de adenosina (ATP) na presença da glutamina sintetase (EC os pacientes com artrite gotosa e deposição tecidual de urato
6.3.1.2). Então, o difosfato de adenosina (ADP) produzido nesta podem ter reservas de urato de até 18.000 a 30.000 mg. A super-
segunda reação enzimática é quantificado numa terceira e quarta produção de ácido úrico pode resultar da síntese elevada dos
etapas usando piruvato quinase (EC 2. 7.1.40) e piruvato oxidase precursores da purina.
(EC 1.2.3.3), respectivamente, gerando, assim, peróxido. Na O transporte renal do ácido úrico é complexo e envolve
etapa final, o peróxido reage com o fenol e a 4-aminofenazona, quatro etapas seqüenciais: (1) filtração glomerular de todo o
catalisado pela peroxidase de raiz-forte (doador: hidrogênio-peró- ácido úrico no plasma capilar que adentra o glomérulo; (2) rea-
xido oxirredutase; EC 1.11.1. 7), resultando num corante quinona- bsorção no túbulo contorcido proximal de aproximadamente
monoamina, que é quantificado espectrofotometricamente. 98% a 100% do ácido úrico filtrado; (3) secreção subseqüente
Foram descritos métodos para a dosagem da uréia usando do ácido úrico dentro do lúmen na porção distal do túbulo
sistemas de q uímica seca e utilizando a abordagem da urease, proximal; e (4) reabsorção posterior no túbulo distal. A excreção
assim como vários métodos de detecção. Numa abordagem, uma urinária líquida do ácido úrico é de 6% a 12% da quantidade
membrana semipermeável separa o primeiro estágio da reação filtrada.
envolvendo a urease, e a amônia é detectada usando-se uma
reação de indicador do pH simples. A uréia também tem sido Importância Clínica
medida usando-se um método condutimétrico no qual uma Até hoje foram reconhecidos mais de 20 distúrbios herdados do
amostra e um reagente contendo urease são incubados numa metabolismo da purina originando tanto a hiperuricemia quanto
célula de condutividade, sendo monitorada a taxa de variação a hipouricemia. A maioria deles é muito rara, e o diagnóstico
dessa condutividade a medida em que a uréia é convertida em demanda o apoio de um laboratório especializado em purina. Os
uma forma iônica. Numa abordagem potenciométrica, é empre- sintomas que devem gerar suspeitas incluem (1) insuficiência
gado um eletrodo seletivo em relação ao íon amônio e a urease renal ou cálculos numa criança ou adulto jovem, (2) "pedrinhas"
é imobilizada numa membrana: o princípio tem sido aplicado na fralda de um bebê, (3) problemas neurológicos inexplicáveis
em alguns dispositivos point-ofcare. num bebê, criança ou adolescente e (4) a presença de gota num
A especificidade de todos os métodos geralmente é aceitável, homem ou mulher com menos de 30 anos de idade.6
particularmente no caso do procedimento da urease-glutamato
desidrogenase; entretanto, deve-se esperar a interferência da Hiperuricemia
amônia endógena quando o protocolo empregar a amostra para A hiperuricemia é definida mais comumente pelas concentra-
iniciar a reação. Isto pode ser relevante nas amostras antigas, em ções de ácido úrico plasmático acima de 7,0 mg/dL (0,42 mmol/L)
algumas urinas e em determinados distúrbios metabólicos. Tipi-
camente, os CVs dentro do prazo de menos de 3,0%, com valores
médios abaixo de 4,0%, são alcançados no intervalo de concen-
tração de 14 a 20 mg/dL (5,0 a 7,0 mmoVL). Dada a elevada QUADRO 21 - 1 1 Causas da Hiperuricemia
variação biológica intrínseca da uréia plasmática, isso se encontra
bem dentro dos padrões de desempenho analítico desejados. FORMAÇÃO ELEVADA
Primária
Intervalos de Referência
O intervalo de referência para o nitrogênio uréico plasmático nos
adultos saudáveis é de 6 a 20 mg/dL (2,1 a 7,1 mmoVL expresso
como uréia). Nos adultos com mais de 60 anos de idade, o inter-
valo de referência é de 8 a 23 mg/dL (2,9 a 8,2 mmol/L). As
Idiopática
Distúrbios metabólicos herdados

Secundária
Ingestão excessiva de purina
)
Rodízio elevado de ácido nucléico (p. ex., leucemia, mieloma, radioterapia,
concentrações plasmáticas tendem a ser ligeiramente mais baixas quimioterapia e trauma)
nas crianças e durante a gravidez, sendo ligeiramente mais eleva- Psoríase
das nos homens do que nas mulheres. As concentrações de uréia Metabolismo de ATP alterado
plasmática num paciente com ESRD não tratada alcançam tipi- Hipoxia tecidual
camente 108 a 135 mg/dL (40 a 50 mmol/L). Pré-eclâmpsia
Álcool
ÁCIDO ÚRICO
EXCREÇÃO REDUZIDA
O ácido úrico é um composto nitrogenado (C5 H 4N 40 3/ 2,6,8,
Primária
triidroxipurina) presente como o principal composto nitroge- Idiopática
nado do excremento dos répteis e pássaros. Ele é encontrado em
pequenas quantidades n a urina dos mamíferos, e seus sais Secundária
ocorrem nas articulações na gota. Doença renal aguda ou crônica
Reabsorção renal elevada
Bioquímica e Fisiologia Secreção reduzida
Em humanos, o ácido úrico é o produto principal do catabolismo Envenenamento com chumbo
de nucleosídeos purínicos, adenosina e guanosina (Figura 21-3). Pré-eclâmpsia
As purinas do catabolismo do ácido nucléico da dieta são conver- Ácidos orgânicos (p.ex., lactato e acetoacetato)
tidas diretamente em ácido úrico. O volume principal de purinas Salicilato (baixas doses)
excretado como ácido úrico surge da degradação dos ácidos nucléi- Diuréticos de tiazida
cos endógenos. A taxa de síntese diária do ácido úrico é de apro, Trissarnia do 21 (síndrome de Down)
Creatinina, Uréia e Ácido Úrico CAPÍTULO 21 379

Síntese das purinas Ri bose-5-fosfato

ATP1 PRPP Sintetase

AMP

Fosforribosilpirofosfato (PRPP)

Glutamina *
PRPP-amidotransferase
Glutamato
PP;
5-fosforribosilamina

(Etapas subseq7 ntes)


l!\ (múltiplas etapas
subseqüentes da
biossíntese da purina)
,Monofosfato de inosina (IMP)

Monofosfa,o ~ ~ Monofo~fato de
de adenosina guanosma
(AMP) (GMP)
Catabo/ismo das purínas

AMP IMP GMP


Purina 5'-nucleotídase
~P;
Adenos;na ~ P;

i
P,

Adenosina lnosina Guanosina


)
NH
3
desamínase
P,
Purina
V P;

t
nucleosídeo
fosfori/ase
Ribose-1-P Ribose-1-P

Hipoxantina Guanina
02
Guanase
X antina
NH3

(}, i
Xantina

Xanüna ox;dase

Acido úrico

Vias alternativas da purina

Hipoxantina Guanina Adenina

PRPP~
HGPRT*
PP;
IMP
t
GMP
PRPP
HGPRT*
PP;
t
AMP
PRPP
APffft
PP;

• Hipoxantina-guanina fosforribosil transferase.


t Adenina fosforribosil transferase.

Figura 21 -3 Metabolismo das purinas. A, síntese; B, catabolismo e C, vias alternativas.


380 PARTE IV Analitos

nos homens ou acima de 6,0 mg/dL (0,36 mmol/L) n as mulhe- (gota grave ligada ao X) apresenta-se na adolescência ou no início
res. As causas principais da hiperuricemia estão resumidas no da idade adulta como (1) gota incipiente, (2) insuficiência renal ou
Quadro 21-1. A hiperuricemia assintomática é detectada fre- (3) nefrolitíase. Sabe-se que ocorrem concentrações elevadas de
qüentemente através da triagem bioquímica. O acompanha- PRPP intracelular com o conseqüente aumento das concentrações
mento de longo prazo dos pacientes com hiperuricemia assinto- de ácido úrico, resultantes de mutacões na PRPP sintetase (EC
mática é empreendido porque muitos deles correm o risco de 2. 7.6.1) (superatividade de PRPP sintet~se), o que também é herdado
apresentar doença renal que pode se desenvolver como resul- como um traço recessivo ligado ao X. Também foi reconhecida uma
tado dessa hiperuricemia e da hiperuricuria; poucos desses nefropatia hiperuricêmica juven il familiar autossômica dominante.
pacientes chegam a desenvolver a síndrome clínica da gota. A deficiência de glicose-0.fosfatase também leva à hiperuricemia
A dosagem do ácido úrico plasmático é usada predominan, como resultado da superprodução e da suhexc:reçiío cfo :\ciclo
temente na investigação da gota, ou como resultado de uma úrico.
hiperuricemia primária ou causada por outras condições ou A gota secundária resulta da hiperuricemia atribuível a diversas
tratamentos que originam hiperuricemias secundárias. Também causas identificáveis. A retenção renal do ácido úrico pode ocorrer na
é utilizada no diagnóstico e monitoramento da hipertensão doença ren al aguda ou crônica de qualquer tipo ou como conseqüên-
induzida pela gravidez (toxemia pré-eclâmptica). cia da administração de medicamentos: os diuréticos, em particular,
Gota estão implicados nesta última instância. A acidemia orgânica - causada
A gota ocorre quando o urato monossódico se prec1p1ta dos pela elevação do ácido acetoacético na cetoacidose d iabética ou pela
líquidos corporais supersaturados. Os depósitos de urato são acidose láctica - pode interferir na secreção tubular do urato. A rota-
responsáveis pelos sinais e sintomas clínicos. A artrite gotosa tividade elevada do ácido nucléico e o conseqüente aumento no
pode estar associada aos cristais de urato no líquido da articu- catabolismo das purinas podem ser encontrados na proliferação rápida
lação e a depósitos de cristais (tofos) no tecido que circunda a das células tumorais e na destruição ampla dessas células na terapia
articulação. Os depósitos também podem ocorrer em outro com certos agentes quimioterápicos.
tecido mole. Em qualquer lugar que ocorram, eles despertam O tratamento de uma cr ise aguda de gota envolve geralmente
uma resposta inflamatória intensa consistindo em leucócitos o uso de medicamentos antiinflamatórios não esteroidais
polimorfonucleares e macrófagos. A articulação do dedão do pé (NSAIDs). Os pacientes devem ser aconselhados a evitar (1) ali-
(primeira metatarsofalângica) é o sítio clássico da gota. A gota é mentos que tenham um conteúdo de purina elevado (p. ex.,
uma condicão caracterizada por crises ocasionais e longos perí- fígado, rins, carne vermelha e sardinhas) e (2) medicamen tos que
odos de re~issão. É importante aferir que a concentração plas- afetem a excreção do urato (diuréticos de tiazida e salicilatos). As
mática de ácido úrico é quase sempre normal durante uma crise intervenções farmacológicas específicas incluem o uso de medi-
aguda. A doença renal associada à hiperuricemia pode tomar camentos uricosúricos (p. ex., probenecid e sulfinpirazona) que
Uma ou mais formas: (1) nefropatia gotosa com deposição de melhoram a excreção renal do ácido úrico bloqueando os con-
urato no parênquima renal, (2) deposição intratubular aguda de dutores nas células tubulares que modulam a reabsorção ou o
cristais de urato e (3) nefrolitíase de urato. alopurinol inibidor de xantina oxidase. Nesse contexto, a dosagem
A gota é classificada como primária ou secundária. A gota pri- da excreção urinária de ácido úrico é um auxílio na seleção do
mária está associada à h iperuricemia "essencial" que tem uma base tratamento apropriado. Os pacientes que excretam menos de 600
poligênica. Em mais de 99% dos casos, a causa é incerta, porém mg/dia (3,6 mmol/dia) de ácido úrico são candidatos ao trata-
deve-se provavelmente a uma combinação de ( 1) superprodução mento com medicamentos uricosúricos, os quais são contra-indi-
metabólica de purinas [25% dos pacientes apresentam elevação da cados aos pacientes com cálculos de urato ou insuficiência renal.
atividade de fosforribosilpirofosfato [PRPP]-amidotransferase (E.C. Por outro lado, os pacientes que excretam mais de 600 mg/dia
2.4.2.14)], (2) excreção renal reduzida (80% dos pacientes exibem (3,6 mmol/dia) são candidatos ao tratamento com alopurinol.
secreção tubular renal do ácido úrico diminuída) e (3) ingestão As NSAIDs azapropazona e ácido tiaprofênico possuem um
alimentar elevada. Muito raramente a gota primária é atribuível a e,
efeito uricosúrico portanto, têm sua importância no controle
defeitos enzimáticos herdados nas vias do metabolismo da purina. de longo prazo e agudo da gota. ~
A síndrome de Lesch-Nyhan caracteriza-se pela deficiência completa de Cerca de um em cada cinco pacientes m gota clínica também
hipoxantina-guanina-fosforribosil transferase (HGPRT, EC 2.4.2.8), tem cálculos de ácido úrico no trato urin ·o. Embora o ácido
a enzima principal da via alternativa da purina (Figura 21-3). Este úrico plasmático e urinário deva ser medido'em formadores de
distúrbio genético ligado ao X manifesta-se clinicamente por (1) cálculo, muitos desses formadores de cálculo de ácido úrico não
retardamento mental, (2) movimentos musculares anormais e (3) demonstram hiperuricuria ou hiperuricemia. Entretanto, isso
problemas comportamentais (automutilação e agressividade pato- pode refletir o uso de intervalos de referên cia derivados numa
lógica). Nas primeiras semanas de vida, os pacientes podem apre- sociedade ocidentalizada e rica em purina. A causa da formação
sentar sintomas de cristalúria, insuficiência renal aguda e gota. de cálculos de ácido úrico também envolve a passagem de uma
Estão presentes a hiperuricemia, hiperuricuria e atividades bem urina persistentemente ácida com perda de maré alcalina pós-
reduzidas de HGPRT nos eritrócitos, fibroblastos e outras células. prandial. O ácido úrico não associado (pK. = 5,57) é relativamente
As concentrações intracelulares de PRPP e as taxas de síntese da insolúvel. Acima do pH 5,57 ele existe predominantemente como
purina são elevadas. Os sintomas neurológicos desta síndrome seu íon urato mais solúvel e, com um pH 7 ,O, é acima de 10 vezes
podem estar relacionados com a disponib ilidade de purinas para mais solúvel. Assim, nos pacientes com pH urinário persistente-
o cérebro em desenvolvimento, o qual possui capacidade limitada mente abaixo de 6,0, as concentrações urinárias normais de ácido
para novas sínteses de purina. Ele conta, portanto, com as vias úrico produzirão supersaturação. Com isso, a dosagem do pH
alternativas de purina para abastecê-lo com a maior parte dos urinário no decorrer do dia é freqüentemente útil. Os cálculos d e
nucleotídeos purina que lhe são necessários. A tecnologia de DNA ácido úrico puro contribuem para aproximadamente 8% de todos
tem sido aplicada ao diagnóstico pré-natal no primeiro trimestre os cálculos do trato urinário e, diferente de muitos cálculos que
usando-se material de biópsia coriônica. Os ensaios de HGPRT contêm cálcio, são radiotransparentes. O alopurinol é o esteio do
nos fibroblastos sob cultura obtidos pela amniocentese podem ser tratamento dos cálculos de ácido úrico. A hiperuricuria também
usados no segundo trimestre. A deficiência parcial de HGPRT é um fator de risco na formação do cálculo de cálcio . Conseqüen-
Creatinina, Uréia e Ácido Úrico CAPÍTULO 21 381

temente, as tentativas de aumentar o pH urinário com sais de Os métodos de uricase tornaram-se viáveis e populares como
álcali potássio podem ser contraproducentes como resultado da resultado da disponibilidade de preparações de alta qualidade e
formação elevada e cálculo de cálcio. baixo custo da enzima bacteriana. A precipitação preliminar da
proteína não é necessária. Geralmente, apenas a guanina, a
Toxemia Pré-eclâmptica xantina e outros poucos análogos estruturais do ácido úrico agem
Essa condicão está associada à concentracão crescente de ácido como substratos alternativos e, então, apenas em concentrações
úrico plas~ático, causada provavelment~ pela quebra tecidual improváveis nos líquidos biológicos.
uteroplacentária e pela perfusão renal reduzida. A dosagem do A reação é observada no modo cinético ou n o modo de
urato plasmático tem sido utilizada como um indicador d a gra- equilíbrio. A diminuição da absorvância como urato é convertida
vidade da pré-eclâmpsia. Observou-se que as concentrações acima e medida com um espectrofotômetro a 293 nm. Isto forma a base
de 6,? mg/dL (0,36 mmol/L\ em 32 semanas de gestação estão de um procedimento de referên cia proposto, mas requer um
associadas a uma alta taxa de mortalidade perinatal.5 espectrofotômetro de alta qualidade com um a passagem de banda
\ estreita, o qual raramente se encontra incluído nos analisadores
Hipouricemia \ automatizados. A maioria dos ensaios enzimáticos do ácido úrico
A hipouricemia é definida como ~t'na condição na qual as con- plasmático envolve um sistema de peroxidase pareado com um
centrações plasmáticas de urato são menores do que 2,0 mg/dL dentre vários aceptores de oxigênio para produzir um cromó-
(0,12 mmol/L). É muito menos comum do que a hiperuricemia. geno. Por exemplo, um método mede o peróxido de hidrogênio
Pode ser secundária a qualquer uma de várias condições. Alguns com o auxílio de uma peroxidase da raiz-forte e um aceptor de
exemplos são a (1) doença hepatocelular grave com síntese de oxigênio para resultar num cromógeno no espectro visível. Os
purina ou atividade de xantina oxidase reduzidas e (2) defeitos na aceptores de oxigênio que têm sido utilizados com esse propósito
reabsorcão tubular renal do ácido úrico. A reabsorcão defeituosa incluem (1) 4-aminofenazona e um fe nol substituído, (2) 3-metil-
pode se~ congênita, como na síndrome generalizada de Fanconi, 1-benzotiazolina hidrazona (MBTH), 2,2'-azinodil-(3-etil-benzotia-
ou adquirida. O defeito de reabsorção pode ser adquirido aguda- zolina)-6-sulfonato (ABTS) e (3) o-dianisidina.
mente, devido à injeção de meio de contraste radiopaco, ou cro- Embora tenham sido descritas muitas combinações de aceptor
nicamente, devido à exposição a agentes tóxicos. O tratamento de oxigênio e fenol, a escolha deve ser guiada pela minimização
exagerado da hiperuricemia com alopurinol ou medicamentos da interferência e pela absorvância suficien te p ara assegurar boa
uricosúricos e a quimioterapia do câncer com 6-mercaptopurina precisão. O uso de um fenol substituído resultando num produto
ou azatioprina (inibidores ·da síntese de novo de purina) também de alta absorção ajuda a reduzir a interferência potencial ao
podem causar hipouricemia. Muito raramente, pode ocorrer diminu ir a demanda de volume da amostra. Os interferentes
hipouricemia resultante de um defeito metabólico herdado. A principais a serem minimizados são o ácido ascórbico e a bilirru-
hipouricemia combinada com xantinuria é encontrada raramente bina. Por exemplo, alguns métodos usam a ascorbato oxidase para
e sugere uma deficiência de xantina oxidase, ou isoladamente ou eliminar o ácido ascórbico. O uso de aminofenazona com um
fazendo parte de uma deficiência do co-fator de molibdênio com- fenol substituído ou a adição de ferrocianeto tem sido feito para
binado (deficiência de sulfito oxidase/xantina oxidase). minimizar a interferência da bilirrubina. Demonstrou-se também
que os metabólitos desconhecidos no plasma dos pacientes com
Metodologia Analítica insuficiência renal, que supostamente são compostos fenólicos,
As técnicas comuns para a dosagem do ácido úrico nos líquidos interferirão ao competirem com o fenol reagente, gerando uma
corporais incluem (1) o ácido fosfotúngs tico (PTA), (2) a uricase baixa recuperação do urato. Tem sido empregado um derivado
e (3) os métodos baseados em HPLC. 4 fenólico para minimizar essa interferência, gerando assim um
produto altamen te absorvente e reduzindo o volume da amostra.
Também foram descritos os dispositivos que usam uricase numa
Métodos de Ácido Fosfotúngstico
Esses métodos baseiam-se no desenvolvimento de um cromógeno forma de reagente seco para medir o ácido úrico. Por exemplo,
de reação azul (azul de tungstênio) à medida que o PTA é redu- um sistema de película multicamada emprega a uricase e a pero-
zido pelo urato num meio alcalino. A absorvância do cromógeno xidase separadas por uma membrana semipermeável a partir de
um corante que é oxidado para formar um produto colorido. Um
na mistura da reação é medida em compr imentos de onda de
sistema de matriz de celulose emprega uricase, peroxidase e
650 a 700 nm. Os métodos PTA estão sujeitos a muitas interfe-
MBTH como aceptor de oxigênio. Além d isso, esse método
rências, e os esforços para m odificá-los têm sido pouco eficazes
na melhoria de sua especificidade. precisa apenas de uma amostra de plasma diluído que ajuda a
reduzir as interferências. O ácido ascórbico, entretanto, é um
interferente significativo. Um terceiro sistema incorpora a sepa-
Métodos de Uricase
ração do plasma das células vermelhas e a uricase, a peroxidase
Os métodos de uricase são mais específicos do que as abordagens
e o fenol substituído para medir o ácido úrico. Os três sistemas
PTA. A uricase [(urato:oxigênio) oxirredutase; EC 1.7.3.3; prin-
empregam um sistema de medidor de reflectância para facilitar
cipais fontes: Aspergiltus flavus, Candida utilis, Bacillus fastidiosus e
a quantificação exata e precisa da variação de cor.
fígado suíno] é usada como etapa única ou inicial para oxidar o
ácido úrico. A uricase age n o ácido úrico para produzir alantoína,
peróxido de hidrogênio e dióxido de carbono. Métodos de HPLC
Os métodos de HPLC que usam colu nas de troca iônica ou de
fase invertida têm sido usados para separar e quantificar o ácido
Uricase úrico. O efluente da coluna é monitorado a 293 nm para detec-
tar o ácido úrico em eluição. Os métodos de HPLC são específi-
cos e mais rápidos; as fases móveis são simples, e o tempo de
retenção do ácido úrico é menor do que 6 minutos. Graças a
esses muitos atributos, a HPLC tem sido utilizada para desenvol-
Urato Alantoina ver métodos de referência para medir o ácido úrico. Um método
382 PARTE IV Analitos

definitivo proposto para o ensaio do ácido úrico no plasma usa A excreção pode diminuir de 20% a 25% numa dieta sem purina
ID-MS. para menos de 400 mg/dia.

Intervalos de Referência REFERÊNCIAS


Usando-se um método enzimático, relatou-se que o intervalo
1. Ambrose RT, Ketchum DF, Smith JW. Creatiníne determined by "high
de referência para o ácido úrico estava na faixa de 3,5 a 7 ,2 mg/
performance" liquid chromatography. Clin Chem 1983;29:256-9.
dL (0,208 a 0,428 mmol/L) para os homens e de 2,6 a 6,0
2. Myers GL, Miller WG, Coresh J, Fleming J, Greenberg N, et al.
mg/dL (0,155 a 0,357 mmol/L) para as mulheres. A concentra- Recornmendations for improving serum creatinine measurement: A
ção de ácido úrico plasmático aumenta gradualmente com a report from the laboratory working group of the National Kidney
idade, crescendo cerca de 10% entre os 20 e os 60 anos de Disease Education Program. Clin Chem 2006;52:5-18.
idade. Há um aumento entre as mulheres após a menopausa, 3. Perrone RD, Madias NE, Levey AS. Serum creatinine as an index of renal
alcançando concentrações similares às dos homens. Durante a function: New insights into old concepts. Clin Chem 1992;38: 1933-53.
gravidez, as concentrações de ácido úrico plasmático caem durante 4. Price CP, James DR. Analytical reviews in clinica! bíochemistry: The
o primeiro semestre e até 24 semanas de gestação, quando as measurernent of urate. Ann Clin Biochern 1988;25:484-98.
concentrações começam a aumentar e, eventualmente, ultrapassar 5. Redman CWG, Beilin LJ, Bonnar J, Wilkinson RH. Plasma urate
os níveis fora da gravidez. Usando um ensaio enzimático, os measurements in predicting fetal death in hypertensive pregnancy.
intervalos de referência em 32, 36 e 38 semanas de gestação foram Lancet 1976;1: 1370-3.
relatados como 1,9 a 5,5 mg/dL (0,110 a 0,322 mmol/L), 2,0 a 6. Sirnmonds HA. Purine and pyrimidine disorders. ln: Holton JB, ed.
5,8 mg/dL (0,120 a 0,344 mmol/L) e 2,7 a 6,5 mg/dL (0,157 a The inherited metabolic diseases. Churchill Livingstone 1994:
0,381 mmol/L), respectivamente. 297-350.
Uma abordagem alternativa à interpretação das concentrações 7. Spencer K. Analytical reviews in clinicai biochemistry: the estimation of
de ácido úrico plasmático é a de considerar o grau de hiperurice- creatinine. Ann Clin Biochem 1986;23:l-25.
mia em relação ao risco de desenvolvimento da gota; os homens 8. Taylor AJ, Vadgarna P. Analytical reviews in clinicai biochemistry: the
com concentrações de ácido úrico plasmático acima de 9,0 mg/dL estimation of urea. Ann Clin Biochem 1992;29:245-64.
9. Welch MJ, Cohen A, Hertz HS, Ng KJ, Schaffer R, Van der Lijn P.
(0,540 mmol/L) têm uma probabilidade 150 vezes maior de
Determination of serum creatinine by isotope dilution mass
possuir artrite gotosa coexistente do que os homens com concen-
spectrometry as a candidate definitive method. Anal Chem
trações de ácido úrico abaixo de 6,0 mg/dL (0,360 mmol/L).
1986;58:1681-5.
A excreção urinária de ácido úrico nos indivíduos sob dieta
contendo purinas é de 250 a 750 mg/dia (1,5 a 4,5 mmol/dia).

Você também pode gostar