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2º ano, Turma A

Patrícia Carneiro da Silva

DIREITO ADMINISTRATIVO I
Professor Doutor Paulo Otero

SECÇÃO 1 – PRESSUPOSTOS DE ESTUDO DO DIREITO ADMINISTRATIVO


§ 1 – Administrar, Administração e Direito
Administrar
A palavra administrar engloba em si três ideias-chave:
o Acção – implica sempre agir;
o Rumo – implica um agir que é sempre direccionado a um fim;
o Subordinação – implica um agir, direccionado a um fim, que não goza nunca de
autonomia primária na definição dos meios através dos quais age
Num outro sentido, dizemos que administrar representa uma acção sempre inserida
numa organização, que visa satisfazer um determinado fim relacionado com a
prossecução de um determinado interesse.
Administrar implica sempre a gestão de recursos, pelo que compreende:
o Planear – fixar um plano no qual se integram propósitos, fins ou objectivos
adequados;
o Organizar – dispor os meios existentes da maneira mais adequada possível à
prossecução do interesse em causa;
o Conformar – intervir sobre a realidade existente, o que envolve dirigir e
coordenar;
o Controlar – fiscalizar o que foi feito;
o Informar – comunicar a informação que é condição de sucesso das decisões
tomadas.
Podemos dizer que o agir administrativo é, sobretudo, delegado – acima de quem o
pratica está o verdadeiro titular do interesses cuja gestão é levada a cabo. É, por isso,
também um agir subordinado – subordinado à vontade desse mesmo titular. Dessa
subordinação resulta a responsabilidade – a responsabilidade de quem gere perante o
titular do interesse.

Administração Privada x Administração Pública


Administração pode tanto referir-se ao exercício de uma actividade – administrar –
como aquele que exerce a acção – a estrutura decisória que exerce a actividade
administrativa.
A Administração pode ser privada – administração de interesses privados – ou pública
– administração de interesses públicos. Através da administração privada gerem-se
recursos tendentes à satisfação de interesses privados; através da administração
pública prosseguem-se interesses públicos, identificando-se estes com fins baseados
num título jurídico1 do poder público, com o objectivo de satisfazer necessidades
colectivas (noção de bem comum).

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Este título jurídico pode ser, p.e., a Constituição, legislação ordinária, decisões judiciais, (...)

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O facto de a Administração Pública prosseguir interesses públicos não significa que estes
não possam também ser prosseguidos por entidades privadas. Nesses casos, estamos
perante o exercício privado de funções públicas (p.e. tribunais arbitrais). Pode ainda
verificar-se a existência de entidades privadas, que prosseguem interesses privados,
mas que são importantes o suficiente para que lhes seja reconhecido interesse público
(p.e. bombeiros voluntários). Esse interesse público é-lhes reconhecido pela ordem
jurídica.
Cabe, então, verificar o que realmente distingue a Administração privada da
Administração pública:
o Diferentes critérios teleológicos de actuação – a Administração Pública apenas
prossegue interesses públicos;
o Existência tendencial de dois ordenamentos distintos de regulação – a
Administração Privada rege-se com base no Direito Privado, enquanto que a
Administração Pública se rege, em regra, com base no Direito Administrativo;
o Sujeição a diferentes princípios jurídicos fundamentais – a Administração
Privada, regendo-se pelo Direito Privado, tem por base o princípio de liberdade,
ao passo que a Administração Pública se associa ao princípio de competência ou
legalidade;
o Resolução de litígios feita por via de regra, em tribunais distintos – a
Administração Privada submete-se ao agir dos tribunais comuns, enquanto a
Administração Pública se submete aos tribunais administrativos e fiscais.
o Desvalores jurídicos da actuação distintos – as accões da Administração Privada
estão, regra geral, sujeitas ao desvalor nulidade, ao contrário do agir
administrativo que, regra geral, está sujeito à mera anulabilidade.

Flexibilidade das fronteiras


As fronteiras que separam a Administração privada da Administração Pública são
flexíveis. Esta realidade tem por base a possível existência de interesses migratórios de
necessidades colectivas – interesses que num momento são considerados interesses
públicos e, noutro, interesses privados (e vice-versa).
o Interesse privado torna-se interesse público – colectivização ou publicização.
Esta implica um alargamento da esfera pública de intervenção;
o Interesse público torna-se interesse privado – privatização ou reprivatização.
Podemos estar perante uma integral privatização ou apenas perante uma
delegação da gestão a entidades privadas, não havendo aqui transferência de
titularidade.
Estes interesses migratórios estão geralmente relacionados com questões políticas e
ideológicas. Pode ainda verificar-se a satisfação concorrencial de certos interesses, por
entidades públicas e por entidades privadas. São os casos, p.e. da saúde e da educação.
Como solução para evitar a migração de interesses podem ser criadas zonas de reserva
de iniciativa económica privada de exclusão da esfera pública (ideologia liberal), bem
como alargar as zonas de reserva da Administração Pública (ideologia colectivizadora).

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Direito Administrativo x Direito da Administração Pública


Aparece no início do século XIII, no Direito Português, uma crescente preocupação em
regular os poderes e os termos de exercício de funções administrativas2. É nesta fase
que nasce em Portugal o Direito regulador da Administração Pública. O Direito
Administrativo nasce como sendo um direito estatutário, sendo que podemos dizer que
“o Direito Administrativo é tão velho quanto a existência do Estado”. Esta disciplina do
Direito encontrava-se, no entanto, subordinada ao ordenamento comum, tendo
sempre o Rei a última palavra.
Só no século XIX, como resultado da Revolução Francesa e consequente introdução do
princípio da separação de poderes, começa a ser desenvolvido um ordenamento
jurídico específico para regular a actividade administrativa – surge o Direito
Administrativo propriamente dito. Este vem reforçar os poderes da Administração
Pública, pondo-a numa situação de supremacia em relação aos particulares. Cria-se,
então, um direito tido como especial que existe em favor da Administração e que tem
origem jurisprudencial.
O contínuo aumento das limitações jurídicas impostas à Administração Pública fez com
que, nos anos 90, esta regressasse ao Direito Privado, numa tentativa de lhes tentar
fugir. Gerou-se, assim, uma Administração Pública fora do Direito Administrativo. Para
tentar combater esta questão, começou a limitar-se a actuação da Administração
Pública ao abrigo do Direito Privado, publicizando-a. Tal tem por base o facto de o
Direito Privado utilizado pela Administração Pública não o poder ser da mesma maneira
que é utilizado pelos particulares. É, sim, um Direito Privado Administrativizado, que
pode ter diferentes graus de administrativização. Cabe referir a existência de uma
reserva constitucional regulação da Administração Pública, que impede uma
privatização integral da Administração Pública e, assim, o desaparecimento do Direito
Administrativo. O aumento das limitações à Administração Pública é directamente
proporcional ao aumento das garantias dos cidadãos.
Com tudo isto e, sabendo que o Direito Administrativo não é o único Direito regulador
da Administração Pública, cabe perguntar: devemos falar em Direito Administrativo ou
em Direito da Administração Pública? Conclui-se que o silêncio da lei significa que é o
Direito Administrativo que rege a Administração Pública. Desta maneira, o Direito
Administrativo torna-se elemento identitário da Administração Pública de cada país.

Identidade da Administração Pública


Por a Administração Pública não ser apenas regulada pelo Direito Administrativo e por
este não ser exclusivamente dedicado à Administração Pública, não podemos falar na
regulação da Administração Pública como matriz identitária do Direito Administrativo.
Podemos, assim, falar de cinco traços fundamentais do Direito Administrativo
o Atribuição de poderes de autoridade à Administração;
o Atribuição de posições de vantagem aos cidadãos perante a Administração;
o Sujeição de poderes de autoridade à legalidade e ao controlo judicial (“A
Administração está prisioneira da lei”)

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Nesta altura estruturas integrantes da Administração régia

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o Posição de reforço que, em Portugal, o Governo tem na Administração;


o Influência francesa no Direito Administrativo português, hoje em dia temperada
com o Direito da União Europeia e o Direito alemão.

SECÇÃO 2 – PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS DO DISCURSO


JUSADMINISTRATIVO
§ 4 – Vocabulário da Administração Pública
Terminologia funcional
O vocabulário da Administração Pública tem por base três conceitos centrais:
o Interesse público – fim último (dimensão teleológica) do agir administrativo;
o Vinculação – dever de respeitar parâmetros normativos de conduta;
o Responsabilidade – a Administração é uma actividade delegada, pelo que se
exige a necessidade de prestar contas/controlar os resultados.

Interesse público
O interesse público está relacionado com o conceito de bem-comum, o qual se associa,
na Doutrina, à figura de São Tomás de Aquino – “o governante está sujeito ao bem-
comum, ao interesse público”. Representa, este, as necessidades colectivas que gozam
de projecção política. É o interesse comum a todos, não resultando assim da junção de
todos os interesses individuais ou da maioria dos interesses individuais coincidentes,
podendo colidir com os interesses individuais dos cidadãos3.
O conceito de interesse público tem em si uma dimensão social da dignidade humana,
pois que a prossecução do bem-comum não pode ser ilimitada – tem de se equilibrar
com base no princípio da proporcionalidade. Disso resulta que não há prossecução
legítima do bem-comum que envolva a violação da dignidade humana, impondo-se a
garantia de espaço para o desenvolvimento integral da personalidade e o respeito
pelos direitos fundamentais (art 18º, nº 1 CRP).
A prossecução do bem-comum aparece como critério de actuação dos governantes,
estando condicionado pela legalidade e pela ética (art 266º, nº1 CRP). A definição de
interesse público está, apesar disso, sujeita a questões ideológicas4. O interesse público
é o fundamento, o critério e o limite do agir da Administração, estando a sua definição
sempre relacionada com um título jurídico do poder público.
Ao prosseguir o interesse público, a Administração Pública está sempre sujeita à
necessidade de prosseguir o melhor interesse público – escolhendo os melhores meios
e os meios mais adequados. O interesse público tem ainda de ter em conta o princípio
de equidade intergecional – não é legítimo que as gerações presentes prejudiquem as
gerações futuras através, p.e., do esgotar dos recursos. Há hoje em dia várias

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Exemplo dos impostos – pagar impostos identifica-se com o bem-comum, mesmo sendo contra os
interesses individuais dos cidadãos
4
Caso TAP, Governo de Passos Coelho/Governo António Costa

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configurações de interesse público, sendo que pode haver conflitualidade no que é a


definição de interesse público5:
o Interesse público de base territorial – necessidades da população de
determinada área do território (Administração das Regiões Autónomas, das
Autarquias locais, etc.);
o Interesse público de base associativa – necessidades colectivas expressas por
associações (Ordem dos Advogados, Ordem dos Economistas, etc.)
o Interesse público transnacional – necessidades existem na sociedade
internacional
o Interesse público institucional – necessidades são protagonizadas por
instituições (Universidade de Lisboa, p.e.)
Concluímos, com tudo isto, que o conceito de interesse público é um conceito vago e
indeterminado.

Vinculação
A vinculação pressupõe que a Administração Pública se encontra subordinada a
parâmetros normativos de conduta, ou seja, a um conjunto de regras e princípios a
que deve obedecer. Está, portanto, vinculada ao princípio da juridicidade. Esta ideia de
vinculação da Administração Pública à legalidade remonta à Grécia Antiga, estando
depois presente na Idade Média, quando Marsílio de Pádua recupera o pensamento
aristotélicas de que é nas leis que se encontra o melhor governo. Na Grã-Bretanha surge
também cedo a ideia de submissão do poder ao Direito – rule of law – como
consequência da Revolução Gloriosa. Com o Iluminismo e com o Liberalismo, esta
subordinação é positivada em termos jurídicos. Durante o século XX, finalmente,
conclui-se que a vinculação da Administração Pública não lhe é só um limite, mas
também fundamento da acção - a lei é o fundamento, o critério e o limite do agir
administrativo.
Existem diferentes níveis de vinculação à juridicidade:
o Vinculação absoluta ou rígida – diz respeito a normas que são regras jurídicas,
aplicando-se assim a medida do “tudo ou nada”;
o Vinculação relativa ou flexível – diz respeito a normas que são princípios
jurídicos, existindo assim a necessidade de ponderação.
Existe, apesar de tudo isso, uma discricionariedade administrativa6 – possibilidade de a
Administração escolher uma solução entre as várias possíveis, dentro dos parâmetros
da normatividade. Há, portanto, um espaço de liberdade de decisão, mas sempre
condicionado pela normatividade. A Administração encontra-se sujeita ao princípio da
boa administração, pois que esta só pode prosseguir o interesse público com base

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Há que ter em conta que a definição de interesse público não está exclusivamente entregue ao Estado,
pelo que há, hoje em dia, várias maneiras de o prosseguir.
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Prof. Rogério Soares – “a discricionariedade da Administração é como um cão aprisionado a uma
corrente – ele pode ir até onde a corrente permite, mas não se pode dizer que seja livre”

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naquilo que é a melhor forma possível de o fazer. Está, assim, sujeita ao princípio da
eficiência.
A vinculação da Administração permite que sejam feitos dois juízos:
o Juízo de legalidade – visa avaliar a conformidade do agir administrativo com a
juridicidade;
o Juízo de mérito – visa avaliar a eficiência e a conveniência da conduta, utilizando
para isso critérios extrajurídicos. A falta de mérito leva a uma ilegalidade
indirecta, uma vez que é violado o princípio da boa administração.
O desrespeito pela vinculação da Administração pode levar a:
o Irregularidade – “manifestação da inversão do princípio da invalidade
decorrente do exercício de uma actividade administrativa contra legem”;
o Invalidade – pode ser originária/própria7 ou derivada/consequente/reflexa8
 Inconstitucionalidade – desrespeito pela CRP;
 Ilegalidade – desrespeito pela juridicidade ordinária;
 Ilicitude – a conduta administrativa é intencionalmente contrária à
juridicidade.
Nem toda a ilegalidade leva à ilicitude, mas toda a ilicitude envolve a violação da
juridicidade. Pode, no entanto, haver ilegalidade por simples erro – falsa percepção da
realidade. Se, no entanto, a Administração persiste em manter a ilegalidade da sua
acção, o erro converte-se em ilicitude (a menos que o decisor continue em erro ou haja
uma norma lega expressa que imponha a conduta levada a cabo). O desvalor jurídico
geralmente aplicado à violação de normas de Direito Administrativo é a anulabilidade.
Ao agir contrário a normas de Direito Administrativo aplica-se, geralmente, a nulidade.
A melhor garantia de que a Administração respeita a lei é o controlo pelos tribunais. O
principal problema deste factor é o facto de ser a própria Administração a controlar a
força passível de ser aplicada em caso de desrespeito da Administração pela decisão
dos tribunais.
A administração pode estar vinculada a normas não-jurídicas, estando também
vinculada à factualidade (usos, precedente administrativo).

Responsabilidade
A responsabilidade da Administração prende-se com a necessidade de esta prestar
contas pelas suas acções (responsabilidade por acção) ou omissões (responsabilidade
por omissão).
o Garante da subordinação da Administração ao Direito e à ética;
o Necessidade de responder perante o titular dos interesses a serem
administrados;
o Princípio republicano – modelo de subordinação às leis;
o Princípio democrático – a Administração é legitimada por uma maioria política.

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A conduta administrativa é inválida, apesar de a norma que a fundamenta ser válida.
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A conduta administrativa é válida, mas aplica uma norma que é invalida

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Esta exigência de responsabilidade remonta, também ela, à Grécia Antiga. A


responsabilidade pode ser política, contenciosa, civil (pode ser de natureza pessoal ou
institucional), criminal, disciplinar, financeira, internacional, etc. Pode, para além disso,
efectivar-se em diferentes cenários:
o Responsabilidade intra-administrativa – perante a própria Administração
Pública;
o Responsabilidade política concentrada – perante órgãos políticos;
o Responsabilidade judicial – perante os tribunais;
o Responsabilidade política difusa – perante o eleitorado ou a opinião pública.

§ 5 – Vocabulário do administrado
Terminologia relacional
O vocabulário da Administração Pública – interesse público, vinculaçao e
responsabilidade – não deixa de ter efeitos junto dos particulares:
o Interesse público – a Administração Pública está ao serviço da satisfação das
necessidades dos particulares (noção de bem comum);
o Vinculação – cria uma zona de liberdade aos particulares, sendo passível de
servir de fonte de posições jurídicas dos particulares;
o Responsabilidade – reforça a posição política dos administrados como sujeitos
activos perante a Administraçao, sendo que em caso de danos gerados por
conduta administrativa, serve de fonte à responsabilidade civil do Estado.
São cada vez mais as vezes em que as normas de Direito Administrativo, não se limitando
a imposições à Administração, carregam posições jurídicas subjectivas dos
administrados – subjectivação das normas administrativas. Através destas, os mesmos
preceitos podem ser interpretados no sentido de deles serem retiradas posições de
vantagem dos particulares perante a Administraçao Pública – teoria da norma de
protecção – podendo levar-nos a:
o Posições jurídicas de defesa – fixam barreiras ao agir administrativo;
o Posições jurídicas de protecção – conferem aos particulares poder de exigir
determinadas acções positivas por parte da Administração.
O vocabulário associado à relação dos particulares para com a Administração Pública
assenta em três conceitos-chave:
o Relação jurídico-administrativa – vínculo entre a Administração Pública e os
particulares;
o Pretensão – conteúdo de um pedido formulado pelo particular à/contra a
Administração;
o Garantia – posições jurídicas de vantagem que o particular tem face à
Administração Pública.

Relação jurídico-administrativa
A relação entre particulares e a Administração Pública pode ser de três tipos distintos:
o Relações gerais de poder – baseiam-se numa norma e traduzem uma situação
em que se encontram todas as pessoas no território de determinado Estado,

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dado que estas estão sujeitas à respectiva ordem jurídica. Há quatro diferentes
tipos:
 Relações gerais de poder alicerçadas à Constituição;
 Relações gerais de poder baseadas em acto legislativo;
 Relações gerais de poder com origem num regulamento administrativo;
 Relações gerais de poder resultantes de um contracto normativo
(contractos que envolvem a Administração e afectam terceiros).
o Relações especiais de poder9 – dá-se a aplicação a particulares de normas
distintas às que seriam geralmente aplicáveis aos cidadãos;
o Relações jurídico-administrativas stricto sensu – verificam-se entre a
Administração e uma ou várias pessoas determinada(s), pressupondo sempre a
determinação dos sujeitos.
Cabe referir que nem todas as relações de Direito Administrativo, ao contrário do que
alguns autores defendem, são jurídico-administrativas. Para fundamentar a sua
posição, o Professor Paulo Otero diz-nos que:
o Nem sempre a realidade administrativa pode equivaler a uma relação jurídica:
 Há situações que não envolvem qualquer relação jurídica;
 Há situações que atribuem posições jurídicas sem que isso signifique a
existência de um sujeito activo, ou seja, sem que se estabeleça uma
relação jurídica;
 Nem sequer todas as situações obrigacionais implicam relações jurídicas
o Nem todas as situações jurídicas que envolvem particulares e a Administração
Pública levam a verdadeiras relações jurídico-administrativas em sentido
técnico:
 Existem vínculos que se verificam entre sujeitos indeterminados ou
indetermináveis;
 Existem situações que dizem respeito a direitos de soberania sobre
coisas, não havendo assim relações entre pessoas.
o A relação jurídica enquanto explicação do Direito Administrativo tem sido
abandonada pelo Direito Comum, mostrando-se desaconselhável:
 Dogmaticamente – relação jurídico-administrativa não abrange todo o
universo administrativo, limitando-se às situações jurídicas relativas de
objecto limitado;
 Cientificamente – insusceptível de conceptualizar todos os fenómenos
de forma satisfatória;
 Pedagogicamente – envolve uma divisão da matéria em volta de quatro
elementos (objecto, sujeito, facto e garantia).
Todas as relações jurídicas são compostas por situações jurídicas, sendo que a sua
concretização envolve procedimento administrativo.
Estruturalmente, as relações jurídico-administrativas podem ser simples – compostas
por um único elemento – ou complexas – pluralidade de elementos.

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P.e. a partir do momento em que um particular se inscreve na FDL passa a estar sujeito a uma regulação
especial, que não vincula todos os particulares (regulamentos de avaliação, p.e.)

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Sendo as relações administrativas, por natureza, plurissubjectivas, estas podem


configurar-se de seguinte maneira:
o Relações envolvendo pluralidade de partes que prosseguem interesses distintos:
 Pluralidade bipolar ou bilateral – apenas estão envolvidos dois núcleos
de interesses;
 Pluralidade multilateral ou multipolar – há mais de duas partes na
defesa de vários núcleos de interesses.
o Relações que envolvem uma pluralidade autónoma de pessoas integrantes de
uma parte, sendo que todas elas prosseguem o mesmo interesse;
o Relações que envolvem a contitularidade de situações jurídicas entre várias
pessoas que constituem uma única parte.
Nem todas as relações jurídicas têm por base o exercício de poderes de autoridade por
parte da Administração Pública junto dos particulares. Podem verificar-se, assim, três
situações:
o Relações que envolvem o exercício de poderes de autoridade;
o Relações que envolvem uma relação de paridade entre a Administração Pública
e os particulares;
o Relações que envolvem a subordinação da Administração Pública face aos
particulares.
As relações jurídicas que envolvem a Administração Pública podem relacionar-se com a
ordem jurídica da seguinte maneira:
o Existem relações jurídicas baseadas num título válido – aqueles que permitem
aos sujeitos ir às últimas consequências na reivindicação do conteúdo. Pode ter
por base um acto unilateral (acto administrativo) ou bilateral (contracto
administrativo);
o Existem relações jurídicas baseadas num título inválido – aquelas que podem a
qualquer momento ser postas em causa. A invalidade pode levar à anulabilidade
ou à nulidade/inexistência;
o Existem relações jurídicas que não têm por base qualquer título.
No que toca à sua projecção temporal, as relações jurídico-administrativas podem ser
instantâneas ou continuadas.

Pretensão
Representa um acto de vontade através do qual se solicita ou exige qualquer coisa,
neste caso, à Administração Pública. A pretensão envolve sempre a exigência de uma
prestação. Essa pode ser:
o De facere – exige-se a prática de uma acção ou de uma omissão;
o De dare – exige-se a entrega de uma coisa;
o De pati – exige-se o tolerar a conduta de um particular.
No que toca ao objecto da pretensão:
o Pretensão primária – visa obter uma primeira decisão sobre determinada
matéria;
o Pretensão secundária – visa obter uma reapreciação de determinada decisão
previamente tomada.

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A pretensão formulada nunca significa uma decisão favorável, apesar de essa


expectativa estar sempre presente. Está também envolvido o direito a obter uma
resposta sobre o pedido formulado – princípio da decisão.
As pretensões envolvem uma vertente:
o Processual – pretende-se que a Administração aprecie o que foi pedido, sendo
que a lei pode para isso criar exigências para que a Administração Pública tenha
total conhecimento das circunstâncias. Está aqui presente uma decisão não
sobre a questão material, mas sim sobre a questão processual (Direito adjectivo);
o Material – pretende-se que a Administração se pronuncie acerca de uma
regulação material (Direito substantivo). Pode estar a Administração perante:
 Norma impositória – decisor encontra-se sujeito a decidir
favoravelmente a pretensão;
 Norma proibitiva – decisor está vinculado a decidir desfavoravelmente a
pretensão formulada;
 Norma permissiva – decisor tem o poder discricionário de decidir
favorável ou desfavoravelmente a pretensão formulada.
As pretensões podem ser:
o Dirigidas à Administração Pública
o Dirigidas aos tribunais contra a Administração
Exigem o princípio da separação de poderes e o princípio da legitimidade democrática
que só se vá a tribunal ante uma recusa expressa ou tácita da Administração Pública,
pois que a Administração é o destinatário precedente e preferencial das pretensões dos
particulares. Excepciona-se a situação em que a Administração já prejudicou antes os
interesses ou os direitos legalmente protegidos dos particulares. A partir do momento
em que o tribunal intervém, termina o poder de decisão da Administração. Há,
portanto, uma preclusão da competência decisória da Administração.
Aos tribunais associa-se o princípio do dispositivo – regra tendencial de
correspondência entre o requerido e o pronunciado; à Administração Pública associa-
se o princípio do inquisitório – a decisão final pode englobar uma coisa diferente ou
mais ampla do que o que foi pedido. Se a decisão favorável resultar da actividade do
tribunal, esta mostra-se irrevogável. Se, por contrário, esta decisão advir da
Administração Pública, então esta pode ser posta em causa a qualquer momento.
As pretensões traduzem a expressão de direitos fundamentais, pois que o simples
formular de uma pretensão mostra-se o exercício de um direito subjectivo. As
pretensões contra a Administração Pública levam sempre a acções, providências
cautelares ou recursos de decisões judiciais. Estas não visam apenas a defesa dos
interesses dos particulares, mas também o proteger da juridicidade, sendo sempre
passíveis de recurso para outros tribunais – princípio do duplo grau de jurisdição.

Garantias
As garantias representam posições jurídicas de vantagem que o particular tem face à
Administração.
As garantias podem ter por objecto não só a protecção dos interesses dos particulares,
mas também a defesa da legalidade perante acções/omissões da Administração
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Pública. Estas podem assumir uma postura preventiva – evitar a adopção de uma
conduta ilegal ou inconveniente – bem como uma postura repressiva – apagar os efeitos
dessa conduta, agora já consumada.
As garantias fazem dos particulares protagonistas perante a Administração, mas não os
torna “polícias” do agir administrativo – os particulares não são obrigados a denunciar
a ilegalidade ou inconveniência deste agir. É garantido a todos os particulares o direito
à não-autoincriminação10. O Professor Paulo Otero refere-se a esse direito como sendo
um direito fundamental.
Quanto à sua tipologia, as garantias podem ser:
o Garantias políticas – advêm do texto constitucional, expressando uma dimensão
política de controlo administrativo:
 Direito de sufrágio – permite a legitimação dos titulares das principais
estruturas decisórias da Administração;
 Direito de participação na vida política – permite aos cidadãos
intervirem na vida política, podendo exigir ser esclarecidos e informados;
 Iniciativa popular – confere aos cidadãos a possibilidade de desencadear
junto da Administração Pública iniciativas legislativas e de referendo;
 Direito de petição – faculdade de dirigir pedidos a todas as estruturas
políticas;
 Direito de resistência – possibilidade de não acatar ordens que ofendem
os direitos, as liberdades e as garantias dos particulares.
o Garantias administrativas ou graciosas11 - meios que estão ao dispor dos
particulares para controlar ou fiscalizar a conduta da Administração Pública:
 Garantias petitórias –
 Garantias impugnatórias – pressupõem uma prévia decisão da
Administração, permitindo colocá-la em causa através da solicitação da
sua modificação (pretensão secundária);
 Queixa do Provedor de Justiça – queixa que pode ter por objecto uma
acção ou omissão da Administração Pública e que vincula o Provedor de
Justiça a averiguar a situação.
o Garantias judiciais – podem efectivar-se em tribunais administrativos e judiciais,
bem como em tribunais arbitrais:
 Acções que visam a resolução definitiva do litígio
 Acções que visam uma tutela provisória ou cautelar
 Acções relacionadas com a execução de sentença
o Garantias internacionais e europeias – advêm do facto de a Administração ter
também a seu cargo a prossecução de interesses transnacionais, estando
Portugal inserido numa estrutura supranacional. São principais fontes de
garantias internacionais a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia:

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Fifth Amendment – EUA – ninguém pode ser obrigado ou coagido a contar algo que pode ser prejudicial
para si mesmo – direito ao silêncio
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Têm por base um acto de vontade soberana

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 Garantias substantivas
 Garantias procedimentais – garantia de um processo equitativo, como
previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
 Garantias contenciosas – permitem aos particulares aceder ao Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, ao Tribunal de Justiça da UE e aos
tribunais do Estado;
 Garantias administrativas – garantia de um direito de petição junto das
instituições internacionais, bem como a criação de um Provedor de
Justiça Europeu;
 Garantias políticas – expressão da cidadania europeia, p.e. direito de
participação na vida democrática da UE.

SECÇÃO 3 – PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DO DIREITO


ADMINISTRATIVO NO SÉCULO XXI
§ 6 – Revolução Administrativa
Desmoronar das grandes certezas administrativas
A História mostra-nos que continua a ser no Estado que reside a melhor garantia de
liberdade. Essa liberdade encontra-se em constante equilíbrio com a autoridade, sendo
essa a base da regulação jurídica da Administração Pública – é necessário limitar a
liberdade individual pela autoridade ao serviço do bem comum o suficiente para que se
garanta a liberdade de todos, a prossecução do interesse público e para que a própria
autoridade seja legitimada. Esta é a essência constitucional do Direito Administrativo.
Nas últimas décadas, no entanto, houve uma modificação no binómio
liberdade/autoridade, o que despoletou uma verdadeira revolução administrativa: a
Administração Pública deixou de ser serva da lei, passando a ser serva de interesses
(nem sempre públicos) e ficando assim subordinada a partidos políticos ou grupos de
interesses. Deu-se uma debilitação na vinculação da Administração Publícia à
juridicidade, baseada na maior utilização de conceitos indeterminados (que levam a um
sistema mais aberto e ao maior destaque da Administração enquanto intérprete dos
enunciados) e na maior importância dada aos princípios em detrimento das regras.
Desaparece a ideia de que a lei é a expressão da vontade geral e que essa atinge o seu
expoente máximo no Parlamento. Esta crise da representação política parlamentar leva
à crise da legitimação democrática da lei e, em conjunto, estas levam ao reforço do
poder do governo – este ganha uma maior legitimidade democrática, tornando-se as
eleições parlamentares autênticas “eleições para Primeiro-Ministro”. O Governo torna-
se, assim, o órgão de topo da Administração Pública.
Diz o Professor Paulo Otero que se assiste hoje a uma desvalorização do papel do
Estado:
o A internacionalização, europeização e globalização do Estado leva a que este
seja, por vezes, controlado por um ordenamento supranacional que lhe retira
poder decisório – gera-se uma Administração Pública aberta, internacionalizada
e europeizada;

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o O Estado fragmenta-se de forma interna, devido a uma crescente


conflitualidade intra-administrativa: verifica-se que há hoje várias
Administrações Públicas dentro do território do Estado, bem como o
desenvolvimento de uma pluralidade de micro ordenamentos jurídico-
administrativos;
o É reduzida a esfera de poderes de autoridade do Estado, perdendo este parte
da sua força e agindo agora quase como se de um particular se tratasse.
Todos estes factores levaram a que, no início do século XXI, a limitação do agir
administrativo se tenha tornado uma questão recorrente, dado o cenário de
desagregação financeira e funcional do Estado.

Roptura do modelo transnacional – principais momentos


É já neste século XXI que se dá a verdadeira revolução administrativa.
Existem três momentos marcantes para a revolução administrativa em análise. O
primeiro dele é o ataque terrorista que atingiu os Estados Unidos a 11 de Setembro de
2001. Este ataque veio valorizar as ideias de Hobbes quanto à necessidade de valorizar
a segurança: a liberdade é posta para segundo plano, sendo a segurança uma obsessão
tanto política como administrativa. Vive-se agora segundo o princípio “tudo pela
segurança, nada pela segurança”. Para além disso, o combate ao terrorismo traz uma
inversão da presunção da inocência, sendo agora este combate uma verdadeira “razão
de Estado”.
O segundo momento-chave da revolução administrativa foi a crise financeira que teve
início em 2008 e cujos efeitos ainda hoje nos são presentes. Esta crise levou a um
repensar da noção de bem comum e do papel do Estado, sendo que o domínio de uma
concepção neoliberal pode levar a que tenhamos uma Administração Pública inimiga
dos direitos sociais, dado os seus custos financeiros.
Por fim, temos o agravamento da situação de perda de soberania por parte do Estado,
com os casos de programas de ajuda financeira internacional, em que a decisão política
central deixa de ser do Estado, passando a ser de estruturas que lhe são externas. Isto
leva a que as decisões basilares sejam apenas executadas pela Administração Pública,
enquanto as decisões em si mesmas são tomadas por alguém sem legitimidade
democrática para tal. A revolução administrativa é, no limite, a origem da crise do
Estado administrativo e este processo de revolução da Administração está ainda em
curso.

Processo de revolução administrativa em curso


O 11 de Setembro levou a que vivêssemos com uma constante postura preventiva para
com um qualquer “inimigo”, num suposto estado de risco constante. Esta realidade
confere à Administração Pública um papel central no combate ao terrorismo e à
criminalidade organizada. A democracia chega inclusive a ser posta em causa, dado o
extremo a que se leva a prossecução da segurança e sendo cada vez mais necessário
reafirmar a ideia de que os fins nem sempre justificam os meios e de que nem todas as
maneiras de obter segurança são admissíveis. A crise financeira de 2008, por sua vez,
trouxe um retrocesso do Estado social, o que leva à necessidade de repensar as áreas
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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

de actuação administrativa. Os vários cortes financeiros levam a uma roptura


constitucional, sendo o essencial cada vez mais definido fora das instâncias
constitucionais e, até, das instâncias nacionais.
A natureza compromissória da Constituição leva a que qualquer questão administrativa
rapidamente se torne numa questão constitucional, causando uma conflitualidade na
acção administrativa. A Administração, com isto, passou a ser constantemente
questionada acerca do seu agir. A crescente informatização da Administração leva ao
aumento do risco e do perigo da intervenção administrativa na vida privada dos
particulares, estando constantemente em causa o equilíbrio entre a publicidade e o
interesse à confidencialidade.

Sustentabilidade – condicionante ou pressuposto da revolução?


Existem vários modelos de intervenção administrativa:
o Administração conservadora – postura em que o presente surge condicionado
pelo passado, sendo a reforma das instituições feita com base num princípio de
continuidade ou referência às gerações passadas;
o Administração predadora – postura em que o presente consome o futuro,
utilizando de forma egoísta os recursos presentes, à custa de recursos
económicos futuros. Há uma total indiferença perante das gerações que estão
por vir;
o Administração sustentável – postura em que há uma preocupação com as
gerações futuras, sendo que as gerações presentes consomem sem hipotecar o
futuro das gerações futuras.
A ideia de desenvolvimento sustentável não trata só de uma dimensão ambiental,
envolvendo sim uma pluralidade de vertentes que contribuem para o processo
revolucionário que esta em curso:
o Domínio ecológico – implica um aproveitamento racional dos recursos naturais;
o Domínio social – impede o abuso do modelo do Estado social, o que leva a que
a realização dos direitos sociais das gerações presentes nunca possa deixar de
produzir projecção intergeracional;
o Domínio económico-financeiro – implica uma ponderação dentro do que é a
estabilidade de preços, emprego, crescimento económico e equilíbrio de contas
externas (...). Implica um princípio de equidade intergeracional.
o Domínio demográfico – coloca-se ao nível do excesso mundial de população e
ao nível do envelhecimento populacional europeu.
A sustentabilidade é, ela própria, um pressuposto da Constituição, uma vez que esta
não pode ficar indiferente perante a necessidade de salvaguardar o futuro das gerações
que estão por vir. Tudo isto exige, necessariamente, um reajustamento do papel do
Estado e do modo de satisfação das necessidades colectivas por parte da
Administração Pública. É preciso manter um constante equilíbrio entre a
sustentabilidade e a solidariedade, sem deixar de garantir uma existência condigna e a
verificação do princípio da dignidade humana.
Há que ter em conta uma certa inaptidão da democracia no que toca a esta necessidade
de sustentabilidade, pois que “a democracia custa a adaptar-se a problemas

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

intemporais”: os governos têm curta duração, enquanto a responsabilidade política


resultante da sustentabilidade só se pode efectuar a longo prazo. Para além disso, os
interesses das gerações futuras não têm representação política, sendo essa exclusiva
das gerações presentes.

Revolução em estado de emergência financeira permanente?


Enquanto os factores referentes à crise de segurança levam a que se fale de um estado
de emergência permanente, a verdade é que a crise financeira que atravessamos nos
aponta para um estado de emergência económico-financeiro. Este conceito foi
primeiramente referido pelo Tribunal Constitucional, representando uma “conjuntura
de absoluta excepcionalidade, do ponto de vista de gestão financeira dos recursos
públicos”. Não é, apesar disso, uma realidade reconhecida pela Lei Fundamental. Situa-
se, ainda assim, num intermédio entre os estados de excepção e o estado de
necessidade administrativo, sendo a expressão de uma legalidade alternativa, não
positivada. Este estado de emergência torna ou pode tornar lícito aquilo que a ordem
jurídico-positiva teria, normalmente, como ilícito, mostrando-nos que a Constituição
não passa, por vezes, de um papel que sucumbe perante a “Constituição real”.
A constante necessidade de evitar uma situação de bancarrota influencia certas
medidas decisórias e a sua conformidade com a Constituição:
o A necessidade de evitar um dano superior ao que resulta do incumprimento das
normas jurídicas positivadas, leva a que, em nome de um interesse público de
excepcional relevo, se crie uma normatividade que se legitima na sua própria
excepcionalidade;
o Apesar de se manter o respeito pela dignidade humana e pelos parâmetros de
proporcionalidade, igualdade, universalidade e justiça, há uma flexibilização da
rigidez da Constituição, sendo esta desvalorizada – crise da Constituição;
o Esta necessidade surge como uma verdadeira “válvula de segurança”, gerando
uma legalidade alternativa que se esconde por detrás de todos os
ordenamentos jurídicos.
Este estado de emergência económico-financeiro é agravado pela sua permanência,
mostrando-se passível de levar à mais violenta revolução administrativa junto dos
cidadãos. Gera-se a necessidade de:
o Adoptar medidas de retrocesso social, diminuindo o nível de bem-estar já
alcançado;
o Ponderar a redução de remunerações resultantes da prestação de trabalhos
públicos;
o Repensar montantes a pagar pelo Estado no âmbito de indemnizações
contractuais, havendo uma redistribuição do risco;
o Entrar num cenário de carga fiscal expropriativa;
o Produzir um asfixiamento dos serviços públicos, havendo uma concentração de
poder decisório no Ministro das Finanças.
Tem-se como mais grave o facto de este estado ser constante, dado que após passar o
momento em que se tenta evitar a bancarrota, passa a tentar-se evitar uma nova

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

situação de eminência de bancarrota, pelo que a revolução administrativa levará a uma


revolução constitucional.
O principal desafio metodológico prende-se, hoje, com o facto de a crise constitucional
e a crise do Estado serem também a crise do Direito Administrativo – o Direito
Constitucional muda, mas não pode o Direito Administrativo deixar também de
mudar.

§ 7 – Imperialismo administrativo
Conceito e ilustração
A verdade é que nada escapa à influência ou ao propósito de influência do Direito
Administrativo – nem mesmo a Constituição. Tal acontece porque a efectividade da
Constituição apenas ocorre através a Administração Pública:
o É através dos meios financeiros proporcionados à Administração Pública que o
modelo de Estado de bem-estar se torna eficaz;
o A materialização dos direitos fundamentais envolve o conferir à Administração
um protagonismo que a torna a condicionante do sucesso ou fracasso da ordem
constitucional.
O cerne da reforma do Estado, então, concretiza-se a nível administrativo.

Imperialismo e terminologia administratia


O Direito Administrativo e o Direito Privado são sectores do ordenamento jurídico,
integrantes do mesmo sistema jurídico. Deve, assim, existir uma certa uniformidade
terminológica. No entanto, essa muitas vezes não passa de um desejo – a diversidade
terminológica é desde logo visível quando um termo jurídico expressa realidades
distintas em Direito Administrativo e em outros ramos da ciência jurídica.
A diversidade terminológica, a pouca sedimentação e a plasticidade de certos conceitos
em Direito Administrativo têm levado a que se verifique uma intervenção legislativa
que multiplica definições de conceitos administrativos. A articulação entre conceitos
legais e doutrinas tem especial importância quando tais conceitos têm uma natureza
pré-constitucional, sendo tomados como pressuposto por normas constitucionais, p.e.,
conceito de “regulamento” ou “acto administrativo”.
A questão terminológica tem ainda maior importância quando temos em consideração
um contexto administrativo globalizado, internacionalizado e europeizado:
o Uma mesma realidade judicial pode desempenhar diferentes funções,
consoante o contexto;
o A necessidade de articulação entre a terminologia interna e “externa” relativas
à mesma realidade, leva ao impedimento, sempre que possível, de dualidade
terminológica.
Adiciona-se a tudo isto o passar do tempo, que leva à desactualização, modificação e
substituição de conceitos, p.e.:
o Desactualização do conceito “administrado”, relativamente ao termo
“particular”;

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Modificação da expressão legal “recurso contencioso” para “acção


administrativa de impugnação”;
o Substituição do conceito “legislação” por “regulação”.

Imperialismo e identidade cultural administrativa


O imperialismo administrativo tem sempre de ser articulado com a preocupação da
defesa da identidade cultural do Estado, pois que o sistema administrativo constitui um
elemento identitário do sistema jurídico de cada Estado, integrando o património
cultural da nação.
Aparecendo o sistema administrativo como realidade pré-constitucional, integra
elementos consuetudinários e legais que servem de pressuposto a normas
constitucionais, mostrando que nem tudo o que é fundamental se encontra explanado
na Constituição.
O primeiro factor de identidade cultural administrativa é a língua, enquanto forma de
expressão e elemento de unidade comunicacional de ideias, tradições e sentimentos de
um povo. Isto implica que:
A língua é o primeiro elemento da cidadania de um povo, bem como um elemento
aglutinador de diferentes cidadanias;
O uso da língua portuguesa pode levar à proibição, a nível constitucional, de certas
condutas:
o Publicação no jornal oficial de actos jurídicos nacionais em língua estrangeira ou,
se estrangeira, sem tradução;
o Realização de reuniões de órgãos colegiais públicos em língua estrangeira;
o Direcção ou correspondência dos particulares para com entidades públicas em
língua estrangeira;
o Atribuição de relevância jurídica decisória a documentos obrigatoriamente
fornecidos em língua estrangeira;
o Leccionação de aulas em estabelecimentos públicos em língua estrangeira;
o Uso, por parte de titulares de órgãos públicos nacionais, de língua estrangeira
em cerimónias realizadas em território nacional.
O segundo factor de identidade cultural administrativa prende-se com a defesa dos
traços identificativos do sistema administrativo, o que significa, por exemplo:
o Que o Direito existe ao serviço da justiça e não a justiça ao serviço da legalidade
jurídico-positiva;
o O estatuto do Direito Administrativo como ordenamento jurídico a favor da
Administração Pública;
o A consagração legal de um espaço de discricionariedade decisória a favor da
Administração Pública;
o A consagração de uma Administração Pública que assume uma feição prestadora
de bens e serviços que visem atingir o bem-estar social;
o A prevalência do ordenamento jurídico do Estado face aos entes públicos
infraestaduais;
o A centralidade do Governo como órgão superior da Administração Pública;

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Que Lisboa é a capital política e administrativa, sendo sede da Administração


central do Estado;
o A submissão da Administração Pública ao poder dos tribunais
A defesa da identidade cultural administrativa de um país é também tarefa dos tribunais
e da doutrina.
O recurso ao direito estrangeiro não pode nunca conduzir a uma colonização científica
– um país que não sabe preservar a sua identidade cultural é um país que não merece o
respeito internacional.

PARTE 1 – FUNDAMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


CAPÍTULO 1º - BASES JURÍDICAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
SECÇÃO 1 – INSTRUMENTOS CONCEPTUAIS DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
§ 8 – Administração Pública – ideias nucleares
Polissemia do conceito de Administração Pública
O conceito de Administração Pública mostra ser polissémico, sendo dele possível
extrair três sentidos:
o Administração Pública como actividade (a);
o Administração Pública como organização (b);
o Administração Pública como poder ou autoridade (c).
(a) Primeiro que tudo, a Administração Pública é uma acção humana, que se traduz na
gestão de recursos com o objectivo de satisfazer necessidades colectivas, de modo a
prosseguir o interesse público. Os interesses públicos geridos pela Adminstração têm
como titulares a colectividade.
A actividade levada a cabo pela Administração Pública é, juridicamente, a função
administrativa. A actividade administrativa encontra-se subordinada à vontade do
titular da soberania, o que leva a uma prevalência da vontade constituinte e da
vontade legislativa sobre a Administração Pública – esta encontra-se vinculada a
respeitar a Constituição. Esta subordinação leva não só a que o agir administrativo seja
legitimada pela vontade geral, mas também a que o povo se torne, para além de
legislador, destinatário das prescrições da lei e da actividade administrativa. A
obediência da Administração Pública à lei pressupõe a existência de mecanismos de
controlo dessas exigências de conformidade.
(b) De seguida, a Administração Pública aparece como a protagonista da actividade
administrativa – aparece como administrador – sendo agora analisada num sentido
subjectivo ou orgânico. Esta pode abranger:
o Estruturas decisórias de matriz pública – exercício público de funções públicas,
que pode ou não envolver o exercício de poderes de autoridade;
o Estruturas decisórias de matriz privada – podem ser criadas por entidades
públicas, originando uma Administração Pública sob forma jurídica privada;
podem ser de raiz privada, exercendo apesar disso funções públicas. Há, neste
caso, um exercício privado de funções administrativas.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

(c) A Administração Pública goza de meios de autoridade que lhe permitem definir
unilateralmente o Direito aplicável às situações concretas – autotutela declarativa –
bem como recorrer à força para impor a sua vontade – autotutela executiva.

Plasticidade das necessidades a cargo da Administração Pública


A flexibilidade da fronteira que separa as necessidades colectivas satisfeitas pela
Administração Pública e as que estão sujeitas a formas de administração privada gera
alguns efeitos na Administração Pública:
o Crescente dependência política da Administração Pública – a noção de bem
comum é influenciada pelo decisor político;
o Possibilidade de a Constituição se tornar uma fonte reveladora de um conceito
material de função administrativa;
o Aumento do espaço de necessidades colectivas a cargo da Administração
Pública;
o Aumento das necessidades colectivas a cargo da Administração, que desloca o
centro decisório de um órgão parlamentar para um órgão governativo;
o Repensar das tarefas a cargo da função administrativa
Cabe referir que necessidades relacionadas com a defesa nacional, a segurança do
Estado e a administração interna, a administração da justiça e a administração eleitoral
não pode nunca deixar de ser satisfeitas pela Administração Pública.

Multiplicidade de tarefas da Administração Pública


A Administração Pública tem como principais tarefas:
o Recolha e tratamento de informação – a informação tem cada vez mais um
papel central, sendo hoje em dia sinónimo de poder efectivo de decisão. A
informação predetermina o resultado decisório das estruturas administrativas e,
no caso da Administração Pública, esta revela um claro papel de vantagem face
ao parlamento e aos tribunais. Essa vantagem é ainda ampliada pela reserva
constitucional de iniciativa legislativa da proposta de lei do orçamento do
Estado.
o Previsão e antecipação de riscos – nas últimas décadas, assistimos a uma
evolução da “sociedade técnica de massas” para uma “sociedade de risco”, na
qual a Administração Pública se mostra permeável à prevenção e minimização
dos riscos públicos. A sociedade moderna vive constantemente preocupada com
áreas como a segurança, o ambiente ou, em geral, com a sustentabilidade.
Desta maneira, cabe à Administração prevenir os riscos tanto das gerações
presentes como das gerações futuras, o que faz através da informação e da
influência na conduta dos cidadãos. Esta função implica o trabalho com
previsões e hipóteses, sem que haja realidades factuais certas.
o Regulação ordenadora – a Administração Pública tem uma tarefa decisória, que
se baseia em situações da vida social e se traduz na regulação dessas situações
(regulação primária) ou de anteriores decisões jurídicas que versam sobre tais
situações (regulação secundária). A Administração resolve situações concretas

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

através da aplicação de critérios de decisão, elabora normas e prepara decisões


do poder político, do poder legislativo e até do poder judicial.
o Execução de anteriores decisões – de acordo com uma visão clássica, a
Administração Pública configurava-se como expressão executiva da vontade do
legislador. Importa, no entanto, ter presente que hoje a Administração pode
executar directamente a Constituição, actos de Direito Internacional ou da UE,
bem como do poder político e do poder judicial (para além da execução da lei).
Esta realidade confere à Administração Pública um papel activo no processo
interpretativo, na concretização de conceitos indeterminados e até na
integração de lacunas. Esta actividade pode não só ser feita através da
emanação de actos jurídicos, mas também através da prestação de bens e
serviços tendentes à satisfação das necessidades colectivas.
o Controlo da actuação – a Administração Pública fiscaliza a sua própria conduta,
a conduta de privados que exercem funções pública e ainda da conduta de
particulares que, sem exercerem funções públicas, desenvolvem actividades do
sector privado ou do sector cooperativo e social com utilidade pública.

Função administrativa e Administração Pública


A função administrativa é criada e moldada pela Lei Fundamental, encontrando nela
uma legitimação de autoridade paralela à função legislativa e à função judicial.
Existe uma chamada reserva de administração – é um espaço próprio e exclusivo de
intervenção da Administração, excluindo-se o legislador e os tribunais. A jurisprudência
do Tribunal Constitucional confere ao poder legislativo a possibilidade de planificar e
racionalizar a actividade administrativa, definindo a partir daí o espaço que fica à
liberdade de critério dos órgãos ou agentes administrativos. Apesar disso, o princípio da
separação de poderes não pode deixar de limitar também a AR face ao Governo. O
poder legislativo tem de respeitar um espaço de intervenção autónoma da
Administração Pública.
O exercício da função administrativa é associado, por força do princípio da separação
de poderes, à Administração Pública. No entanto, isso não exclui a possibilidade de,
atendendo ao princípio da subsidiariedade, haver exercício privado de funções
públicas. Para além disso, a Administração Pública não se associa apenas à actividade
administrativa, mas também ao exercício da função técnica e política.
A plasticidade das necessidades colectivas a cargo da Administração Pública leva ao
surgimento de dois fenómenos:
o Diferentes níveis ou graus de intervenção decisória das várias funções jurídicas
do Estado – uma mesma matéria pode ser objecto de uma primeira intervenção,
de natureza legislativa, seguida de uma intervenção administrativa e, em caso de
litígio, uma intervenção judicial;
o Alargamento das fronteiras entre administrar, legislar e julgar – temos matérias
reservadas à esfera do poder legislativo (reserva de lei), à esfera do poder
administrativo (reserva de administração) e à esfera do poder judicial (reserva
de tribunais). Para além dessas, temos as chamadas “zonas cinzentas” de
fronteira entre administrar e legislar ou administrar e julgar.
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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

A fronteira entre a função administrativa e a função política nem sempre é clara, pois
que existem matérias de natureza política que envolvem o exercício de uma actividade
administrativa, tal como existem matérias de natureza administrativa que ensolvem
opções políticas.
Cabe então perceber como se pode definir a função administrativa. Diz o Professor
Paulo Otero que esta se pode definir com recurso a quatro principais traços:
o É função administrativa tudo o que, revestindo natureza pública, não seja nem
legislar, nem julgar, nem fazer política soberana. Significa isto que a função
administrativa assume uma formulação residual;
o As necessidades colectivas cuja satisfação é entregue à Administração Pública
têm sempre, como fundamento, um acto jurídico-público, visando a prossecução
do bem-estar. Nesta ideia de bem-estar inclui-se todo o que permite dignificar a
pessoa humana (justiça, segurança e liberdade);
o A função administrativa implica a realização de cinco tarefas fundamentais:
ordenação da vida social, garantia da ordem e segurança pública, realização de
prestações sociais, obtenção de recursos financeiros e gestão de meios humanos
e materiais;
o A função administrativa implica sempre uma acção prática, não se aceitando um
Estado que não desenvolva diariamente esta actividade.

Função administrativa e poder administrativo


É através do poder administrativo que ficamos a saber quais são os meios que a
Administração Pública utiliza para alcançar os objectivos que definem a função
administrativa – o poder administrativo está, por isso, ao serviço da função
administrativa. A Administração Pública goza de uma autoridade decisória
constitucionalmente fundada e legitimada de forma paralela à AR (poder legislativo)
ou aos Tribunais (poder judicial). Dito isto, o princípio da separação de poderes reserva
ao poder administrativo um espaço de intervenção decisória.
A subordinação da Administração Pública à lei não é suficiente para fazer do poder
administrativo a vertente executiva da vontade política da lei, dado que a Constituição
não exclui que o poder administrativo possa ir para lá da lei – exercício da função
administrativa praeter legem. Para além disso, as opções políticas expressas na lei são
condicionadas pela intervenção técnica e procedimental da Administração na
preparação dos diplomas legislativos, o que faz com que antes de estar o poder
administrativo subordinado à lei, está este subordinado à Administração Pública.
O facto de as decisões dos tribunais prevalecerem sobre as decisões administrativas,
não pode levar a que haja uma dupla administração pelo poder judicial – a margem
deixada à Administração Pública e que lhe permite a realização de juízos de mérito está
imune a uma intervenção judicial cassatória ou substitutiva. Há, portanto, um espaço
autónomo de decisão do poder administrativo.
Esta autonomia do poder administrativo manifesta-se através de três vertentes:
o Os actos produzidos pelo poder administrativo não dependem, para produzir
efeitos, de intervenção judicial. Para além disso, a invalidade desses actos não

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

impede a sua eficácia obrigatória e o dever de obediência por parte dos


destinatários;
o Os meios de acção do poder administrativo conseguem produzir efeitos sem
depender dos seus destinatários;
o O poder administrativo tem uma esfera discricionária de decisão exclusiva, que
lhe permite escolher o melhores meios e soluções para a prossecução do
interesse público.
O poder administrativo consegue servir-se da colaboração, cooperação e da
concertação no seu relacionamento com terceiros, mostrando ter por base uma
filosofia de consenso.

Normas de competência e organização interna do poder


administrativo
As normas de competência são aquelas que definem o alcance, o sentido e os limites
do poder administrativo, não só nas suas relações com os restantes poderes, mas
também na sua organização interna. É através destas que se definem os termos nos
quais se prossegue o interesse público e se estabelecem as condições para a tomada
de decisões que habilitam.
Seguindo a perspectiva de Kelsen, a norma que habilita o funcionamento de outra
norma é uma norma superior. Desta maneira, as normas de competência são normas
superiores – são superiores a todas as decisões que resultam do poder que elas
conferem.
Existem três tipos de normas de competência:
o Normas que conferem competência – regras ou princípios que atribuem
poderes de intervenção e decisão à Administração Pública;
o Normas que disciplinam o exercício da competência – regras e princípios que
regulam a maneira como os poderes conferidos à Administração Pública se
expressam em termos práticos;
o Normas que regulam as normas de competência – são normas sobre normas,
pois que disciplinam as próprias normas de competência.

Normas que conferem competência


Podem dividir-se em quatro níveis configuradores:
o Normas de tarefas ou incumbências políticas – são normas que definem a
fronteira entre os poderes públicos e a esfera da sociedade civil, verificando-se
que o ultrapassar da Administração Pública para o hemisfério privado representa
uma violação da reserva de sociedade civil;
o Normas de divisão ou separação de funções – têm por base o princípio da
separação de poderes, sendo a sua violação equivalente a usurpação de poderes
(inconstitucionalidade orgânica).
o Normas de atribuições – são normas que distribuem os diferentes interesses
públicos pelas pessoas colectivas públicas que integram a Administração. A
violação destas normas conduz a incompetência absoluta.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Normas de competência stricto sensu – são normas de competência que se


integram numa pessoa colectiva, sendo que estas conferem competências aos
órgãos da pessoa colectiva. A sua violação leva a uma incompetência relativa.
Podem ser:
 Normas de competência potestativa – conferem poderes para a
Administração Pública introduzir, unilateral e automaticamente,
alterações na ordem jurídica;
 Normas de competência não potestativa – outorgam poderes cujas
alterações na ordem jurídica não dependem apenas da Administração
Pública, mas também a cooperação de outros sujeitos.

Normas que disciplinam o exercício da competência


Comportam cinco subtipos:
o Normas que fixam os princípios gerais a que obedece o exercício da
competência da Administração Pública
 Princípio da legalidade da competência – a competência das estruturas
administrativas resulta da CRP, da lei e de princípios gerais de Direito;
 Princípio da irrenunciabilidade da competência – os poderes conferidos
não podem ser renunciados;
 Princípio da inalienabilidade da competência – os poderes não podem
também ser objecto de negócio jurídico, não podendo assim ser
transferidos a terceiros;
 Princípio da inconsumibilidade da competência – poderes não
desaparecem após o seu exercício pelo respectivo titular;
 Princípio do respeito pela delimitação material (distribuição de poderes
em função das matérias), territorial (competência pode também ser
distribuída em função do território), hierárquica (existem normas que
definem o que pertence aos órgãos subalternos e aquilo que é a
intervenção dos superiores hierárquicos) e temporal (as normas que
estabelecem o momento temporal do exercício da competência estão
sujeitas a dois princípios: a competência exerce-se em relação ao
presente, excepto em caso de retroactividade; o exercício da
competência relativo a momentos futuros pode gerar incompetência em
razão do tempo).
o Normas que fixam pressupostos ao exercício das competências – são normas
que estabelecem requisitos na previsão da norma para que a competência possa
ser exercida. Não verificados esses pressupostos ou havendo uma violação do
mesmo, estamos perante uma decisão ferida de erro sobre os pressupostos ou
incompetência;
o Normas que determinam os fins do exercício da competência – fazem
corresponder a motivação determinante das decisões ao fim que levou a conferir
essa competência ao respectivo decisor. A sua violação conduz a desvio de
poder;

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Normas que estabelecem limites materiais ao exercício da competência – são


normas que impõem condições quanto ao objecto da decisão a adoptar no
âmbito da competência em causa. A sua violação leva a decisões feridas de
violação de lei;
o Normas que prescrevem o procedimento e a forma de exercício da
competência – são normas cuja violação leva a vício de forma.

Normas que regulam as normas de competência


São normas sobre a normação. Englobam:
o Normas que regulam a produção de normas de competência;
o Normas que disciplinam as relações entre as várias fontes reveladoras de noras
de competência;
o Normas que resolvem conflitos12 de normas de competência
o Normas que definem critérios de interpretação de normas de competência;
o Normas que incidem sobre a integração de lacunas de normas de competência.

Formas e meios da actividade administrativa


Ao exercer as suas funções, a Administração Pública recorre a formas jurídicas e a
formas não jurídicas de actividade.
As formas jurídicas seguem as seguintes ideias-base:
o A definição de situações jurídicas pode fazer-se através do Direito Público
(formas de actividade jurídica pública) ou através do Direito Privado (formas de
actividade jurídica privada). Pode ainda ser feita por acção ou por omissão
administrativa, de forma unilateral ou bilateral;
o Em Direito Público, a definição unilateral de situações jurídicas pode ser geral ou
abstrata, individual ou concreta;
o As situações jurídicas podem ter incidência substantiva, processual ou
procedimental;
o A invalidade da definição jurídica proveniente da Administração Pública não
impede a sua produção de efeitos;
As formas não jurídicas dizem-nos que várias são as tarefas administrativas que se
baseiam na transformação material da realidade – actos materiais – na definição de
linhas políticas do agir administrativo – actos políticos da Administração – ou ainda no
desenvolvimento de condutas informais, num agir praeter legem – actuação informal.
O exercício da actividade administrativa implica sempre a mobilização de meios, que
podem ser: meios humanos, meios materiais, meios organizativos e meios privados.
Durante os últimos anos, assistimos a acentuadas alterações na configuração dos meios
da actividade administrativa, o que se deve a factores como:
o Aproximação dos vínculos laborais públicos ao regime dos trabalhadores sujeitos
ao contracto individual de trabalho que vigora no Direito Privado, que levanta
questões de compatibilidade com a reserva constitucional de funções públicas;

12
Estes conflitos podem ser materiais, temporais ou espaciais.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Alienação do património imobiliário público, que pode revelar-se


comprometedora do cenário global de exercício da acção administrativa;
o Aumento das necessidades financeiras resultantes da satisfação de “níveis
demagógicos” de bem-estar social, o que põe em causa a sustentabilidade do
Estado, devido a défices orçamentais excessivos e ao endividamento;
o Recurso contractual a meios privados, o que leva a uma redução da intervenção
directa do Estado com um aumento excessivo dos custos financeiros;
o Privatização dos serviços públicos, levando a zonas de Administração Pública
mínima.
Assistimos a um modelo de Administração Pública “não oficial”, que tenta substituir a
Administração Pública oficial.

§ 9 – Tipologia da Administração Pública


Concluiu-se já que, nos dias de hoje, não existe apenas uma Administração Pública,
mas várias. Essa variedade pode confirmar-se através da tipologia, que nos mostra a
diversidade e complementaridade de configurações que a Administração pode assumir.

Direito regulador e tipos de Administração Pública


o Administração de Direito Público/Administração de Direito Privado – a
Administração de Direito Público é passível de exercer poderes de autoridade,
pautando o seu agir pela aplicação de normas de Direito Administrativo e/ou outros
ramos de Direito Público; a Administração de Direito Privado é disciplinada pelo
Direito Privado, não podendo exercer poderes de autoridade;
o Administração vinculada/Administraçao discricionária – a Administração vinculada
não goza de grande autonomia, encontrando-se sem margem criativa ou liberdade
de escolha de pressupostos, soluções ou efeitos; a Administração discricionária, por
contrário, goza de autonomia dentro dos limites da normatividade, sendo a vontade
administrativa meio para completar os espaços deixados abertos pela lei;
o Administração fundada na CRP/Administração fundada na legalidade – a
Administração fundada na Constituição é aquela que encontra a habilitação do seu
agir na própria Lei Fundamental, como acontece no art 18º, nº 1 CRP em relação à
vinculação administrativa à aplicabilidade directa de certas normas referentes a
direitos fundamentais; a Administração fundada na legalidade encontra no
ordenamento infraconstitucional o seu fundamento. Existem dois tipos de
Administração subordinada à lei:
 Administração fundada na legalidade externa – é disciplinada pela
normatividade que regula as relações entre os administrados e a
Administração Pública;
 Administração fundada na legalidade interna – associa-se a uma
normatividade criada e aplicada a nível intra-administrativo, podendo
assumir carácter contra legem em relação à legalidade externa (art 112º, nº
5 a contrario CRP)

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Administração de excepção/Administração de normalidade – a Administração de


excepção desenvolve a sua actividade em cenários de estado de sítio, de emergência
ou de necessidade administrativa, representando a prossecução de interesses em
circunstâncias extraordinárias; a Administração de normalidade não pressupõe
cenários extraordinários, representando a legalidade habitual.
o Administração formal/Administração informal – a Administração formal é
expressão do positivismo-legalista, na medida em que se move dentro do quadro
definido pela legalidade jurídico-positiva (a sua conduta tem um sentido secundo
legem); a Administração informal é a que se desenvolve à margem do estabelecido
pelas normas jurídicas, afastando-se da legalidade formal e agindo praeter legem
o Administração oficial/Administração não oficial – a Administração oficial tenta
aproximar-se ao modelo publicado no jornal oficial, sendo predominantemente
heteroconfigurada; a Administração não oficial funciona paralelamente, traduzindo
a permeabilidade administrativa a processos informais.

Estrutura do substracto organizativo e tipos de Administração


Pública
o Governo – figura máxima do poder executivo, representa o órgão máximo da
Administração Pública. Assume diversas responsabilidades políticas junto do
Parlamento e da opinião pública:
 Indirizzo político, que lhe permite manter a unidade de condução política do
Estado e o habilita a praticar actos de alta administração;
 Actos de alta administração do Governo, que envolvem sempre a
intervenção do Primeiro-Ministro e que podem ser envolver a deliberação do
Conselho de Ministros ou a intervenção posterior do Presidente da
República;
 Há que ter em conta que nem toda a actividade do Governo representa actos
de alta administração, sendo apesar disso o Governo o órgão de soberania
no exercício de qualquer competência.
o Administração territorial/Administração associativa/Administração institucional –
a Administração territorial visa dar expressão aos interesses de um agregado
populacional que existe num determinado território nacional (Administração do
Estado), regional (Administração das Regiões Autónomas) e local (Administração
autárquica); a Administração associativa procura satisfazer interesses públicos,
segundo a configuração conferida por lei (aqui se inserem as associações públicas);
a Administração institucional consubstancia-se numa instituição sem base territorial
ou associativa, que pode ser um serviço, um património, um estabelecimento ou
uma estrutura empresarial, a quem a ordem jurídica confere a prossecução de
interesses públicos específicos (institutos públicos);
o Administração central/Administração periférica – a Administração central diz-se
central quando se verifica a prossecução de interesses respeitantes a todo o

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

território nacional; a Administração periférica actua apenas numa zona delimitada


do território, podendo fazê-lo em termos internos13 ou externos14;
o Administração geral/Administração corporativa – a Administração geral prossegue
interesses comuns a toda a colectividade ou à maioria dos seus membros; a
Administração corporativa prossegue interesses públicos relativos a um grupo
específico de pessoas;
o Administração dependente/Administração independente – a Administração
dependente exerce a sua competência estando sujeita a vinculações intra-
administrativas; a Administração independente, as estruturas administrativas
exercem os seus poderes sem estarem sujeitas a mecanismos intra-administrativos,
estando apenas vinculados à legalidade externa;
o Administração do Estado/Administração infraestadual/Administração
supraestadual – a Administração do Estado prossegue os “altos interesses colectivos
e permanentes”. Sendo dotada de legitimidade democrática e responsável
politicamente, está encarregue de exercer funções de soberania; a Administração
infraestadual é responsável pela prossecução de interesses públicos resultantes dos
interesses gerais da colectividade a cargo do Estado, estando subordinada à vontade
constitucional ou legislativa do Estado e sujeita à vontade administrativa; a
Administração supraestadual é a que é passível de exercer funções de subordinação,
coordenação ou cooperação relativamente a cada Estado;
o Administração sob forma pública/Administração sob forma privada – a
Administração sob forma pública é a que se associa à prossecução de interesses
públicos por estruturas com personalidade jurídica de Direito Público; a
Administração sob forma privada é a que se associa à prossecução de interesses
públicos levada a cabo por entidades dotadas de personalidade jurídica de Direito
Privado.

Actividade desenvolvida e tipos de Administração Pública


o Administração substantiva/Administração processual – a Administração
substantiva é a que regula directamente situações jurídicas da vida social, definindo
posições jurídicas dos administradores perante a Administração ou vice-versa; a
Administração processual unifica a actividade desenvolvida pelas estruturas
administrativas e/ou seus mandatários como partes litigantes em processos
judiciais, implicando uma conduta processual expressa em dois momentos:
 Definição de uma estratégia processual;
 Prática de actos processuais
o Administração neutral/Administração intervencionista – a Administração neutral é
a que garante a liberdade, a segurança e a propriedade, abstendo-se da realidade
social e económica e não intervindo, assim, na procura do bem-estar social; a
Administração intervencionista associa-se a um Estado com preocupações sociais,

13
p.e comando distrital da PSP
14
p.e. embaixadas de Portugal no estrangeiro

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

implicando a sua intervenção na esfera económica e social para garantir a prestação


de serviços básicos à colectividade. Esta pode:
 Excluir qualquer concorrência de iniciativa privada – modelo de matriz
autoritária;
 Fazer-se em concorrência com a iniciativa económica privada, aplicando um
modelo de economia mista – contexto de dignificação das condições de vida
da pessoa humana.
o Administração produtora/Administração reguladora – a Administração produtor é
a Administração intervencionista do Estado social; a Administração reguladora é
aquela que o neoliberalismo veio revelar, visando esta disciplinar o funcionamento
dos mercados. Esta não deixa de ser intervencionista, apenas intervém de maneira
distinta:
 Define as condições de acesso e permanência no mercado;
 Corrige as deficiências do mercado;
 Arbitra os conflitos entre diferentes interesses dos agentes intervenientes no
mercado.
o Administração burocrática/Administração empresarial – a Administração
burocrática visa o desenvolvimento de uma actividade administrativa sem carácter
lucrativo, integrando o sector público da Administração; a Administração
empresarial produz bens ou presta serviços que coloca no mercado, inserindo-se no
sector público empresarial;
o Administração de sacrifícios/Administração de prestação – a Administração de
sacrifícios limita a liberdade e/ou a propriedade dos destinatários das suas decisões,
por via de actos impositivos ou obrigatórios; a Administração de prestação envolve
a produção de bens e a prestação de serviços para a satisfação das necessidades
sociais;
o Administração de ordenação/Administração de infraestruturas – a Administração
de ordenação mostra-se mais relevante após o 11 de Setembro dada a necessidade
de prever os riscos e o perigo, actuando através do condicionar da acção dos
particulares em nome da segurança; a Administração de infraestruturas desenvolve
uma actuação conformadora, recorrendo à planificação e alicerçada num programa
de políticas públicas no sector administrativo. A crise de 2008 veio diminuir a
Administração de infraestruturas;
o Administração de estratégica/Administração de transformação – a Administração
de estratégica desenvolve um indirizzo político do exercício da função
administrativa; a Administração de transformação é a que materializa o plano
idealizado pela Administração de estratégica;
o Administração visível/Administração invisível – a Administração visível é a que se
pauta pelos princípios de transparência e do arquivo aberto, tornando públicas as
regras definidoras da sua orgânica; a Administração invisível, por contrário, é a que
se mostra dominada pelo secretismo, tendo crescido após o 11 de Setembro;
o Administração militar/Administração civil – a Administração militar é a que se
encontra a cargo das forças armadas, tendo como principal missão a defesa nacional
contra ameaças externas e prosseguindo interesses como garantir a soberania do

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Estado, a independência nacional e assegurar a liberdade e a segurança da


população; a Administração civil é toda a restante Administração Pública.

Procedimento adoptado e tipos de Administração Pública


o Administração unilateral/Administração bilateral – a Administração unilateral não
aceita o concurso de vontades alheias na formação da decisão, sendo esta definida
independentemente do acordo de terceiros (podem ser soluções gerais e abstractas
– regulamentos; soluções individuais e concretas – actos administrativos; ou
posições jurídicas processuais – actos processuais da Administração Pública); a
Administração bilateral aceita a participação de terceiros, funcionando através de
contractos, pactos, convénios, acordos ou convenções entre a Adminstração e
particulares ou entre duas entidades administrativas;
o Administração impositiva/Administração concertada – a Administração impositiva
baseia-se na imposição unilateral de condutas, não havendo espaço à participação
dos cidadãos; a Administração concertada, por contrário, valoriza a participação dos
interessados na fase que antecede a tomada de decisões administrativas, havendo
a procura por um consenso;
o Administração de subordinação/Administração paritária – a Administração de
subordinação centra-se na ideia de sujeição, de onde o decisor tem o poder
unilateral de exigir certa conduta do administrado; a Administração paritária assenta
na ideia de paridade ou igualdade jurídica, em que o cidadão e o Estado se
encontram igualmente subordinados ao Direito;
o Administração executiva/Administração judiciária – a Administração executiva tem
a faculdade de, caso haja incumprimento, recorrer à execução coactiva sem a
necessidade de intervenção judicial; a Administração judiciária compreende as
situações envolvendo a Administração Pública em que a lei devolve para o poder
judicial a respetiva definição, o que acontece quando a Administração Pública não
goza de autotutela declarativa ou não possui privilégio de autotutela executiva;
o Administração electrónica/Administração tradicional – a Administração electrónica
faz do computador um meio de trabalho e justifica a impessoalidade pela eficiência;
a Adminstração tradicional continua a usar o papel como principal instrumento;
o Administração transparente/Administração opaca – a Administração transparente
revela abertura e a aproximação das estruturas administrativas à sociedade; a
Administração opaca assenta num modelo fechado e sigiloso, que impõe uma
distância de autoridade entre os seus titulares e os particulares, tidos como meros
súbditos.

Efeitos produzidos e tipos de Administração Pública


o Administração de assistência/Administração agressiva – a Administração de
assistência confere aos destinatários posições jurídicas activas, ampliando as já
existentes ou removendo restrições e limitações; a Administração agressiva, por
contrário, envolve sacrifícios ou efeitos desfavoráveis aos destinatários, revogando,
diminuindo ou amputando posições jurídicas activas;

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Administração constitutiva/Administração declarativa – a Administração


constitutiva exerce a sua função através da introdução de alterações na ordem
jurídica, independentemente de o seu sentido genérico ser favorável ou
desfavorável (na perspectiva do destinatário); a Administração declarativa introduz
alterações na ordem jurídica, limitando-se a comunicar o conhecimento de uma
realidade;
o Adminsitração decisória/Administração consultiva – a Administração decisória
desenvolve uma actividade com objectivo de resolver os problemas que lhe são
colocados; a Administração consultiva visa esclarecer, aconselhar e ajudar a tomada
de decisões normativas ou individuais;
o Administração preventiva/Administração repressiva – a Administração preventiva
age com o intuito de evitar a produção de certos eventos, combatendo as suas
causas ou reduzindo os riscos da sua ocorrência; a Administração repressiva age com
o objectivo de minorar, impedir a continuação ou eliminar os efeitos de algo que já
ocorreu;
o Administração interna/Administração externa – a Administração interna
desenvolve uma actividade cujos efeitos se esgotam dentro da própria
Administração, ou porque se produzem apenas dentro da pessoa jurídica que os
emitiu (Administração interna intrassubjectiva) ou porque se produzem em relação
a entidades integrantes da Administração pública diferentes daquela que os gerou
(Administração interna intersubjectiva); a Administração externa centra-se no
exercício de uma actividade geradora de efeitos com impacto na esfera jurídica dos
administrados;
o Administração nacional/Administração transnacional – a Administração nacional
actua sobre situações jurídicas dotadas de uma eficácia que fica pelo território
nacional, podendo prosseguir interesses públicos do Estado português
(Administração nacional de interesses nacionais) ou interesses públicos definidos
por entidades internacionais (Administração nacional de interesses internacionais);
a Administração transnacional actua sobre situações jurídico-administrativas que
atravessam fronteiras de um ou mais Estados. A Administração Pública portuguesa,
tal como as dos restantes estados, pode funcionar como Administração
transnacional.

§ 10 – Posições jurídicas dos particulares face à Adminstração


Quadro geral de referência
Se temos situações jurídicas que envolvem a Administração, então estamos perante
situações jurídico-administrativas. As posições jurídico-administrativas podem referir-
se a dois tipos de sujeitos: entidades integrantes da Administração Pública – posições
jurídicas da Administração Pública – ou particulares que se relacionam com a
Administração Pública – posições jurídicas dos administrados ou posições jurídicas
subjectivas dos particulares.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Sendo sempre uma norma jurídica o fundamento das posições jurídico-administrativas,


os administrados podem ser investidos nas suas posições através de duas vias:
o Por via directa das normas jurídicas, sem necessidade de intervenção de
qualquer outra estrutura decisória – situações jurídicas gerais de concretização
“ope legis”;
o Por via de normas de competência que habilitem a Administração Pública a
proceder à sua criação – situações jurídicas individuais de concretização
administrativa.
No que toca ao conteúdo das posições jurídicas, estas podem ser activas – situações de
vantagem (pressupõem poderes) – ou passivas – situações de desvantagem
(pressupõem deveres). Uma norma que constituía situações jurídicas activas pode, ao
mesmo tempo, constituir variadas situações jurídicas passivas e vice-versa.

Posições jurídicas activas


Estas não são uniformes, pois que nem todas as situações de vantagem têm a mesma
intensidade. Existem dois tipos de situações jurídicas activas:
o Direitos subjectivos (que conferem maior protecção jurídica ao administrado);
o Interesses legalmente protegidos – todas as posições jurídicas de vantagem que
não são direitos subjectivos. Destes deriva que a Administração é obriga a tomar
em consideração a posição de vantagem do administrado e que o administrado
pode recorrer a meios judiciais se não vir a sua pretensão satisfeita.
Estas posições jurídicas – quer direitos subjectivos quer interesses legalmente
protegidos – são sempre tidas como complexas, podendo dividir-se em duas posições
jurídicas activas “menores”: o poder – disponibilidade de meios para se alcançar
determinado fim – e a faculdade – conjunto de poderes unificado numa designação
comum.

Classificação de direitos subjectivos


Relativamente à estrutura da reação subjacente e da oponibilidade do direito, os
direitos subjectivos podem ser:
o Direitos absolutos – têm garantia erga omnes;
o Direitos relativos – têm garantia era singulum
Podemos ainda distinguir duas modalidades de direitos subjectivos:
o Direitos potestativos – direitos que conferem ao administrado a possibilidade
de alterar unilateralmente a esfera jurídica de outro, independentemente da
vontade do mesmo;
o Direitos comuns – não permitem ao seu titular essa alteração na ordem jurídica.
Uma outra classificação tem por base o objecto dos direitos:
o Direitos patrimoniais – aqueles que são passíveis de avaliação pecuniária;
o Direitos não patrimoniais – aqueles que não são passíveis de avaliação
pecuniária.
Com base na natureza do acto jurídico que cria e regula os direitos subjectivos, podemos
ter:
o Direitos privados – criados por actos jurídicos de Direito privado;
31
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Direitos públicos – criados por actos jurídicos de Direito público. Estes podem
impor uma acção a favor do particular à Administração Pública ou podem impor
à Administração uma conduta omissiva em relação ao particular.
Atendendo ao seu objecto no relacionamento com a conduta administrativa, temos:
o Direitos substantivos – particular goza à luz do Direito regulador da conduta
administrativa (traduzem-se em actos de satisfação das pretensões);
o Direitos procedimentais – são conferidos aos particulares no âmbito das
sucessivas fases de transmissão decisória do procedimento interno da AP;
o Direitos processuais – posições jurídicas tituladas por particulares e cujo
exercício é feito junto dos tribunais contra a Administração;
o Direitos fundamentais – direitos reconhecidos e garantidos pela Constituição:
 Direitos, liberdades e garantias;
 Direitos sociais.
o Direitos subjectivos stricto sensu – direitos provenientes de normas sem valor
constitucional;
o Direitos perfeitos – posições conferidas em sentido pleno;
o Direitos imperfeitos – posições enfraquecidas, sujeitas a intervenções
administrativas prevenientes.

Classificação dos interesses legalmente protegidos


Atentando à titularidade dos interesses legalmente protegidos, dividimo-los em:
o Interesses individuais – que podem emergir de actos que visam proteger
interesses de determinadas pessoas (interesses legítimos ou directamente
protegidos) ou de actos que só indirectamente visam a protecção de interesses
individuais (interesses reflexamente protegidos);
o Interesses difusos – são passíveis de satisfação colectiva através de bens
indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual.
Tendo em conta a dinâmica evolutiva da normatividade consagradora de interesses
legalmente protegidos, distinguimos:
o Normas que criam originariamente esses interesses;
o Normas que convertem interesses de facto em interesses legalmente
protegidos;
o Normas que protegem interesses que podem evoluir para interesses legalmente
protegidos;
o Normas que permite a conversão de direitos subjectivos em meros interesses
legalmente protegidos.
Relativamente ao objecto dos interesses legalmente protegidos:
o Interesses opositivos – surge diante de normas que conferem poderes à
Administração cujo exercício produz efeitos restritivos na esfera dos
particulares;
o Interesses pretensivos – resultam de normas que envolvem poderes através dos
quais o administrado recebe uma vantagem, determinado a existência de um
interesse em que o poder venha a ser exercido pela Administração.
Tendo em conta o fim subjacente à instituição normativa, separamos:

32
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Interesses de legalidade – conferem ao titular poder de exigir o cumprimento


pela Administração Pública da normatividade vinculativa;
o Interesses de mérito – envolvem a sintonia entre o interesse individual e o
interesse colectivo
Por fim, dividem-se os interesses legalmente protegidos com base na tutela que estes
recebem da ordem jurídica:
o Interesses perfeitos – têm tutela judicial;
o Interesses imperfeitos – não têm tutela judicial

Posições jurídicas passivas


Podem ser privadas – criadas e reguladas por actos jurídicos de Direito privado – ou
públicas – criadas e reguladas por actos de Direito público. Podem ser:
o Deveres – implicam a obrigação de realizar ou suportar determinada conduta,
dividindo-se em deveres fundamentais (resultam da Constituição) e deveres não
fundamentais (não resultam de normas constitucionais);
o Sujeições – vinculam alguém a suportar as alterações na sua esfera jurídica
resultantes do exercício de direitos potestativos. Podem ser situações gerais de
sujeição (vinculam a generalidade da população) ou situações especiais de
sujeição (vinculam um núcleo determinado de destinatários);
o Ónus – estabelecem um determinado encargo como meio para obter uma
posição e vantagem, em proveito do interesse próprio do sujeito. O seu
incumprimento não gera qualquer ilicitude, mas impede a obtenção de uma
vantagem.

§ 11 – Administração Pública Pré-Liberal


Preliminares
A existência de um poder político envolve sempre o surgir de uma estrutura
administrativa que prepare e execute as decisões que esse poder toma, funcionando
assim desd’o Antigo Egipto.
No Império Romano, verificou-se já a existência de uma Administração militar e de
uma Administração civil, tendo ainda surgido a Administração municipal. É neste
momento que se começa a assistir a um aumento da complexidade da Administração
Pública.
No que toca ao caso português, começando com a fundação da nacionalidade e
chegando até à Revolução Liberal de 1820, podemos identificar três tipos de
Administração:
o XII – XIV Administração medieval-corporativa
o XV – XVII Administração renascentista-barroca
o XVIII – XIX Administração iluminista-absolutista
Cumpre assinalar que cada um destes períodos herda coisas do período anterior.

33
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Administração medieval-corporativa
Desde cedo que se verifica em Portugal uma centralização do poder na figura do Rei,
cujo Direito mostra prevalecer. O Direito do Rei é o Direito do Estado, tendo sido D.
Afonso II o principal impulsionador da figura do Estado e, assim, da Administração
Pública estadual. A Administração régia era forçada a conviver com a Administração
senhorial, a Administração concelhia e ainda com a Administração eclesiástica, sendo
que cada uma delas reivindicava para si áreas que poderiam ser concorrenciais de
intervenção.
A Administração régia comportava dois níveis de estruturas decisórias:
o Estruturas e instâncias superiores – todos os servidores régios que tinham
contacto directo com o próprio Rei (aquilo que hoje temos como Administração
central do Estado);
o Estruturas e instâncias intermédias – todos os serviços que não tinham ligação
directa com o Rei, nem exerciam jurisdição de âmbito nacional (aquilo que hoje
temos como Administração periférica do Estado).
O objectivo de proteger interesses de certos grupos profissionais levou a uma
crescente corporativização da sociedade, havendo uma pluralidade de mesteres
organizados e reguladores do exercício de certas profissões. A Administração mostra-se
acentuadamente interventiva, tendo até uma feição dirigista, intervindo
essencialmente: no acesso à titularidade de bens de produção; na produção e circulação
de bens; nos preços e na qualidade de bens e serviços; na moeda e nas actividades
profissionais económicas. O Rei, apesar de estar acima da lei positiva, encontra-se
sempre subordinado à lei natural.
Com a Idade Média, faz-se a distinção entre lei e privilégio:
o Lei – expressão de generalidade e igualdade, que não pode ser usada para
beneficiar particulares;
o Privilégio – comando do poder com carácter individual e concreto
O Rei só pode agora lesar direitos validamente adquiridos se houver para isso justa
causa (uma causa de utilidade pública), fazendo surgir na esfera do lesado o direito a
ser indemnizado. A defesa da liberdade individual, a partir da segunda metade do
século XIII, passa a estar consagrada no ordenamento jurídico português, contrapondo-
se à arbitrariedade e à ilegalidade

Administração renascentista-barroca
Também aqui os governantes se encontram vinculados à prossecução do bem comum,
não podendo agir em benefício próprio. Esta Administração assenta nos princípios de
que o reino não existe para o monarca, mas o contrário; que os poderes do rei não são
direitos seus, mas sim direitos da comunidade e que o reino é um representante,
pertencendo o seu agir à pessoa de que faz parte.
Com a expansão portuguesa iniciada em 1415, dá-se uma alteração na Administração:
é agora necessário administrar novos territórios, o que leva à diversificação de
estruturas administrativas de âmbito nacional, metropolitano e colonial. A distância a
que se encontravam alguns destes territórios fez com que fosse atribuída a privados a

34
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

competência para o exercício de funções públicas de natureza administrativa. O rei


continua a ser o titular supremo da jurisdição, tendo em si todos os poderes.
Informalmente surge uma administração honorária, que leva à patrimonialização e
privatização dos ofícios públicos – a titularidade de um ofício público passa a ser uma
posição de vantagem, representando um direito real ou subjectivo, o que limita a
intervenção do rei sobre os ofícios públicos.
A justiça, que já na administração medieval-corporativa era tida como o fim último da
actuação do poder, continua a ser o foco principal. A sua prossecução, no entanto, faz-
se sem qualquer noção de separação de poderes, alargando-se as tarefas do Estado e
enraizando-se a ideia de que a Administração deve tomar postura activa na sociedade.
A chegada do século XVI traz consigo o nascer do princípio da legalidade da
competência dos ofícios públicos. A primeira metade deste século fica marcada pelo
aparecimento da expressão “razão de Estado” – esfera de intervenção do Estado,
dotada de uma força decisória prevalecente a quaisquer preocupações éticas, naturais
ou religiosas. O privilégio torna-se uma excepção, sendo passível de ser revogado em
caso de ilegalidade ou contrariedade com a utilidade pública. Ainda no século XVI gera-
se a teoria do “Estado de Direito, peninsular e renascentista”, que assenta:
o Na supremacia do Direito relativamente aos governantes;
o Na aceitação da existência de direitos básicos que limitam a esfera política;
o No princípio do que viria a ser o controlo da Administração por parte dos
tribunais.
A intervenção do monarca sobre situações jurídicas privadas é agora limitada,
vigorando o princípio de imodificabilidade dos direitos adquiridos. Nasce a chamada
teoria dos dois corpos do rei, em que a sua figura enquanto monarca é separada da sua
figura enquanto particular.

Administração iluminista-absolutista
Nesta, o poder do monarca encontra legitmação nele próprio, não lhe sendo impostos
quaisquer limites jurídico-positivos. Este absolutismo tem natureza teocrática,
remontando a Deus o fundamento do poder real. Vive-se uma monarquia pura, sem
que haja soberania popular.
Por consequência de uma tradição legislativa anterior e do pensamento de autores
como Bodin ou Hobbes, o Rei absoluto é superior à lei que ele próprio cria, não estando
assim a ela vinculado. Apesar de se consolidar uma política administrativa
centralizadora, não se consegue eliminar as estruturas administrativas locais de
natureza colonial ou municipal, continuando a patrimonialização dos ofícios públicos.
Essa patrimonialização é combatida através da legislação josefina – os ofícios de justiça
e fazenda são bens da coroa, criados e exercidos em função da sua utilidade pública e
não de qualquer interesse particular do seu titular, devendo ser pessoalmente servidos
pelos respectivos titulares.
Esta Administração baseia-se nas seguintes condições:
o O poder é fundado e legitimado tradicionalmente, não estando limitado por
normas jurídico-positivas;

35
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o A Administração é dominada por serviçais do rei, não sendo os funcionários


recrutados com base nas suas qualificações profissionais;
o Predomínio de uma concepção patrimonial de cargos públicos, não sendo
comum que o titular do cargo seja aquele que de facto exerce os poderes;
o Inexistência de salários fixos, podendo este não ser sequer pago em dinheiro;
o A Administração não está sujeita a regras legais específicas (arbitrariedade em
detrimento da discricionariedade).
A noção de política ganha um especial significado durante o Estado Absoluto: passa a
compreender medidas sobre a economia, a saúde, a alimentação, a educação, (...) – o
Estado prossegue a segurança, o bem-estar e a regulação económica. O mercantilismo
leva à criação de empresas pelo Estado, estando subjacente a figura do rei como um
pai, que age para proporcionar felicidade aos seus vassalos. Durante a segunda metade
do século XVIII, desenvolve-se uma concepção de monarca que prossegue o bem
comum através da Administração: o rei torna-se o decisor, arbitrariamente, daquilo que
convém ao bem público do Estado.
A concepção jurisdicionalista de poder levar ao exercício de tarefas jurisdicionais e
administrativas pelo mesmo órgão e à aplicação de regras procedimentais da actividade
jurisdicional ao exercício da actividade administrativa.
Em Portugal, está presente a ideia de que o rei deve sempre respeitar os contractos
onerosos celebrados com particulares.

§ 12 – Administração liberal
Inovações revolucionárias
A Revolução Liberal de 1820, a aprovação das bases da Constituição em 1821 e do texto
constituinte em 1822, levaram a uma revolução administrativa que se baseia em cinco
princípios jurídicos:
o Separação de poderes – mecanismo limitativo do poder, que leva à
impossibilidade de os tribunais tomarem decisões administrativas e de ser o
monarca a elaborar as leis e a resolver conflitos;
o Supremacia da lei – a lei é a vontade da sociedade e essa é expressa pelo
parlamento, estando-lhe a Administração subordinada;
o Igualdade de todos perante a lei – dá-se a abolição de todos os privilégios
baseados no nascimento, não sendo tidos em conta critérios arbitrários
relacionados com o destinatário;
o Tutela de direitos fundamentais dos cidadãos – verifica-se o reconhecimento e
a garantia de direitos fundamentais;
o Abstencionismo do Estado – a garantia de liberdade implica um Estado mínimo,
não intervencionista. O seu poder limita-se à garantia da segurança de pessoas
e bens e da justiça.
A concentração de poderes no Rei é afastada pela separação de poderes; a supremacia
da vontade do Rei passa a supremacia da lei; o sistema de privilégios é eliminado por
força da igualdade de todos perante a lei; a tutela de direitos fundamentais traz consigo

36
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

uma extensa redacção de direitos fundamentais dos cidadãos perante o poder; o


Estado intervencionista dá lugar ao Estado abstencionista.

Continuidades pré-revolucionárias
O liberalismo europeu oitocentista tem como bases filosóficas ideologias muito
anteriores:
o Ideologia britânica – sobreposição de instituições;
o Ideologia francesa – roturas institucionais, associadas a movimentos
revolucionários.
Em Portugal, por força das invasões francesas, o sistema administrativo esteve durante
todo o século XIX sob influência francesa. Isso levou à prevalência de modelos
centralizadores, valorizadores do papel administrativo, que acabam por ser ideias de
Antigo Regime adaptadas de maneira a passarem por conquistas revolucionárias: a
centralização administrativa, tal como a tutela administrativa, não são mais que
instituições do Antigo Regime. Surge, supostamente com base no princípio da
separação de poderes, a ideia de que julgar a Administração ainda é administrar e, por
isso, deve ser feito por parte da própria Administração e não dos tribunais – a
Administração consegue assim fugir ao controlo dos tribunais, que eram vistos como
entraves ao processo revolucionário. À autotutela declarativa da Administração, junta-
se uma autotutela executiva.
Verifica-se, na prática, que apesar de vigorar o princípio da separação de poderes, o
poder executivo nunca foi totalmente alheio à feitura das leis que regulavam o agir
administrativo.

Contraditória génese do Direito Administrativo revolucionário


A ideia de que deveria ser a própria Administração a julgar o seu agir levou a que a
Administração começasse a fugir ao Direito comum, por sentir que este não lhe garantia
suficiente mobilidade. A Administração começa assim a criar ela própria o seu
ordenamento jurídico, nascendo o Direito Administrativo. O Direito Administrativo
francês não é resultado da lei ou da vontade geral expressa pelo parlamento, mas sim
da própria actividade administrativa. Os últimos 200 anos têm, por causa disto, sido
assentes na luta contra esta tendência de fuga da Administração Pública ao Direito.

Mito revolucionário liberal


A revolução liberal conduz a um aumento do poder administrativo que se mostra mais
acentuado do que era na altura do Estado absoluto: as decisões administrativas são
julgadas pela própria Administração e verifica-se a aproximação entre o Estado liberal
e o Estado pré-liberal15.
Em Portugal:
o A separação de poderes levou à concentração no poder executivo da
competência para administrar e para julgar essa administração;

15
Renovação administrativa pré-liberal

37
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o A supremacia da lei baseia-se na expressão de uma vontade à qual o poder


executivo não era completamente alheio;
o A igualdade de todos perante a lei não impede o aparecimento do Direito
Administrativo;
o A tutela dos direitos fundamentais dos administrados era uma ilusão, dado o
afastamento dos tribunais do controlo da actividade administrativa;
o Em Portugal, o abstencionismo nunca foi completo.

Da legitimação administrativa tradicional à legitimação legal-


constitucional do aparelho administrativo
A grande inovação que a Revolução Liberal trouxe foi a rotura com todo o aparelho
administrativo fundado numa legitimação tradicional, que opera numa relegitimação
administrativa:
o O poder político é agora fundado na Constituição;
o A lei, expressão da vontade geral, é uma manifestação da razão mediatizada
pela actividade parlamentar
o A Administração existe para aplicar a lei, o que significa dar voz à razão e à
vontade geral;
o O poder legislativo é superior ao poder executivo.
Apesar de tudo, o aparelho administrativo liberal vai adquirindo traços de
racionalidade e legalidade:
o Funcionários das estruturas administrativas encontram-se organizados
hierarquicamente;
o O recrutamento e a selecção do pessoal da Administração Pública é feito com
base no princípio da igualdade de todos perante a lei;
o O funcionário insere-se numa carreira administrativa, remunerada e passível de
promoção;
o O funcionário não exerce os seus poderes como se tivesse um direito de
propriedade sobre eles – estes são poderes funcionais, repartidos entre os
diferentes órgãos.
o O funcionário exerce pessoalmente o seu cargo, não podendo declinar o
exercício da competência;
o A actividade jurídica desenvolve-se sob forma escrita, estando sujeito a
controlo judicial.

§ 13 – Administração Pós-Liberal
Administração do Estado intervencionista
A Constituição de 1933 vem trazer um modelo de Estado corporativo, com uma clara
postura intervencionista em termos económicos, sociais e culturais. Este modelo,
apesar de todas as diferenças em termos circunstanciais, foi continuado com a
Constituição de 1976, primeiro através da formulação socialista-marxista e, depois,
através do Estado de Direito democrático.

38
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

O Estado intervencionista tornou-se produtor de bens e serviços, dando possibilidade


aos particulares de reclamarem prestações públicas e novas pretensões – o
intervencionismo levou ao Estado solidarista. Este modelo de Administração Pública
assenta nas seguintes características:
o Ampliação das necessidades colectivas cuja satisfação está a cargo da
Administração;
o Subjectivação de tarefas fundamentais a cargo da Administração Pública;
o Transformação dos administrados em utentes de serviços e consumidores de
prestações sociais fornecidas pelo Estado, degradando o seu estatuto de
cidadãos;
o Crescimento de uma estrutura organizativa e funcional da Administração
Pública, que visa responder ao aumento de tarefas;
o Reforço do poder administrativo em relação aos restantes poderes do Estado;
o Criação de reservas de administração ou sectores de monopólio administrativo,
sendo estes espaços de intervenção exclusiva da Administração Pública;
o Protagonismo acrescido do executivo e da sua normatividade na regulação da
acção administrativa;
o Domínio da acção administrativas por burocratas, numa crescente
indiferenciação da vertente política;
o Aumento dos custos financeiros de funcionamento e de prestação de serviços e
bens pela Administração.

Administração do Estado Novo


A Administração do Estado Novo é a que resulta da Constituição de 1933, assentando
então nas seguintes ideias:
o Reforço da Administração do Estado, sendo do Estado o direito e a obrigação de
coordenar e regular superiormente a vida económica e social;
o Sujeição da actividade dos corpos administrativos das autarquias locais a
intervenção do Governo;
o Aperfeiçoamento da Administração ultramarina, primeiro à luz de uma
concepção imperial, depois de uma concepção política de assimilação e, por fim,
por propósitos autonómicos;
o Integração dos organismos corporativos no âmbito de uma Administração
corporativa;
o Reconhecimento da relevância administrativa de empresas de interesse
colectivo e das concessões
Vivíamos sob um modelo político que não dava aos administrados muitas garantias,
surgindo até a própria ideia de Estado de Direito democrático questionada nas palavras
de Marcello Caetano. A Administração é de índole autoritária, e fazia dos tribunais
instrumentos de garantia da fiscalização do cumprimento da legalidade pela própria
Administração. Disto resultava que a execução pela Administração das decisões dos
tribunais fosse o momento chave para a existência de um Estado de Direito.

39
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

A Administração do Estado de Direito democrático


A Constituição de 1976 vem instituir um Estado de Direito democrático, que assenta
em três realidades – Estado social, Estado de Direito material e Estado democrático. O
modelo administrativo que lhe subjaz tem as seguintes características:
o Administração organiza-se, funciona e relaciona-se de perto com a CRP – temos
uma Administração amiga da Constituição;
o Administração com preocupações sociais, observando-se a existência de uma
cláusula constitucional de bem-estar;
o Administração vinculada ao Direito, ideia a que se associa o princípio da
juridicidade;
o Administração politicamente democrática, em que as normas são expressão da
vontade geral e sendo os governantes legitimados perante a colectividade
A Administração Pública está sujeita a controlo político parlamentar e ao controlo
jurídico dos tribunais, sendo obrigada a efectivar as decisões por eles tomadas. Resulta
da CRP um modelo organizativo baseado na “unidade no pluralismo” – a unidade é
assegurada pela Administração do Estado e o pluralismo é assegurado pelas
Administrações infraestaduais:
o O Estado está vinculado a implementar um vasto elenco de tarefas
fundamentais e incumbências prioritárias no âmbito económico, social, cultural
e ambiental;
o O Governo goza do estatuto de órgão superior da Administração Pública e de
uma ampla competência administrativa e legislativa;
o A pluralidade de Administrações Públicas infraestaduais é garantida pela CRP
a vários níveis, p.e. com a criação de duas Regiões Autónomas ou com o
reconhecimento de um “poder local”, entregue às autarquias.

Pressupostos de uma Administração neoliberal?


Os antecedentes de uma concepção neoliberal de Administração Pública resumem-se
em:
o Crise do hiperintervencionismo do Estado – desd’os anos 70 do século XX que
se dá destaque ao mercado, em detrimento do Estado;
o Privatização de tarefas e serviços públicos – reduzindo a intervenção
administrativa do Estado, o que levou à desregulação de matérias por via pública
e gerou fenómenos de autorregulação, levando à intervenção de entidades
privadas na esfera da Administração Pública;
o Redução da função pública e reconfiguração do aparelho administrativo do
Estado – redimensionamento da Administração dependente do executivo,
levando à criação de autoridades administrativas independentes e que se
desenvolvem geralmente à margem da legitimidade democrática directa;
o Substituição dos clássicos instrumentos de coação e comando – preferindo-se
uma metodologia informal, própria de modelos de acção jurídico-privados;
o Introdução da temática da boa governação administrativa – exigências de
eficiência de gestão e controlo do modelo organizativo e do procedimento

40
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

decisório da Administração, que se reconduz à ideia de sistema de governo da


Administração Pública;
o Compulsão pela modificação e pela inovação – ainda que sem objectivos
definidos de bem comum, mas sim com a preocupação pelo destaque na
comunidade social.
O Estado, que reduz o seu papel de prestador de serviços e produtor de bens, assume
agora uma função reguladora, no âmbito da qual controla as prestações fornecidas
pelo sector privado, assegurando o acesso da população a um mínimo das mesmas.
Este, no entanto, não substitui totalmente o Estado social e de serviço público – há, pois,
uma convivência entre ambos.
Desd’os anos 80 do século XX que o Estado tem vindo a sofrer variadas alterações, das
quais se destacam a privatização de serviços e de interesses essenciais, a integração
supranacional de Estados no âmbito europeu (com desvalor para a soberania dos
mesmos), a internacionalização e globalização da economia levando os Estados a lutar
pelos mercados internacionais, (...).

SECÇÃO 3 – CONCEPÇÕES POLÍTICO-FILOSÓFICAS SOBRE A


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
§ 15 – Personalismo e Administração Pública
A prossecução do interesse público pode ser feita a com base em três concepções:
o Concepção de matriz totalitária – prevalência absoluta da prossecução do
interesse público, pondo em causa quaisquer posições jurídicas subjectivas;
o Concepção compromissória – harmonização entre a prossecução do interesse
público e o respeito pelos direitos dos administrados;
o Concepção personalista – prevalência absoluta do núcleo essencial da dignidade
da pessoa humana sobre qualquer prossecução do interesse público.

SECÇÃO 4 – CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


§ 16 – Constituição Administrativa
Conceito, função e tipologia
Qualquer texto constitucional contém disposições acerca da Administração Pública e
da sua relação com os cidadãos. Estas disposições constituem aquilo a que chamamos
Constituição Administrativa, que se torna a principal fonte de subordinação da
Administração ao princípio da constitucionalidade.
A Constituição Administrativa:
o Revela as bases estruturais do ordenamento que regula a Administração
Pública;
o Fundamenta as garantias dos cidadãos face à Administração Pública e os
mecanismos de fiscalização da actividade administrativa;
o Permite recortar um sector do Direito Administrativo a que chamamos Direito
Administrativo constitucionalizado. A constitucionalização da Administração
Pública leva-nos à subordinação da política e da Administração Pública ao Direito
(Constitucional).
41
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Toda a regulação da Administração Pública, incluindo a que provém do Direito


Internacional, tem de respeitar a Constituição Administrativa. Esta pode assumir uma
dimensão formal – escrita – falando-se assim em Constituição Administrativa oficial, à
que se opõe a Constituição Administrativa não oficial, que se baseia em normas não
escritas, que assumem carácter complementar.
No que toca à natureza do fundamento das suas normas, podemos ter dois tipos de
Constituição Administrativa:
o Constituição administrativa formal – engloba todos os preceitos da Constituição
política formal que dizem respeito à Administração Pública e às suas relações
com os cidadãos;
o Constituição administrativa material – inclui não só os preceitos constitucionais,
mas também fontes infraconstitucionais que ganhem natureza constitucional
devido à sua essencialidade estruturante. Não se esgota, por isso, na
Constituição formal.
Podemos ainda falar numa Constituição Administrativa transnacional, que existe
devido à relevância que o Direito Internacional tem no nosso ordenamento. A
Constituição Administrativa pode conflituar com esta Constituição Administrativa
transnacional.

Constituição administrativa e Constituição política


A Constituição administrativa formal integra-se na Constituição política, sendo assim
por ela condicionada – a Constituição política dita a Constituição administrativa.
Pode dizer-se que as mudanças constitucionais são sempre mais rápidas que as
mudanças administrativas, sabendo-se que a efectividade de muitas normas
constitucionais dependa da actuação da Administração Pública, assim como os grandes
problemas da Administração Pública são também problemas constitucionais. Temos, na
prática, uma Constituição refém da Administração Pública.
Interpretar a Constituição administrativa implica sempre olharmos para a Constituição
política e para a Constituição económica:
o Uma Constituição que imponha um regime autoritário leva a uma
Administração também ela autoritária; uma Constituição que consagre um
regime pluralista e democrático levará a uma Administração pluralista e
democrática;
o Uma Constituição que consagre poucos direitos fundamentais leva a uma
limitação dos direitos dos administrados; uma Constituição dita garantística,
favorece o reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos na sua
relação com a Administração;
o Uma Constituição económica de direcção central gera uma Administração
Pública de ampla dimensão material e organizativa; uma Constituição que fale
de uma economia de mercado, leva a uma Administração mais racionalizada
(subsidiariedade do Estado).
Na prática, a Constituição administrativa nem sempre goza de uma efectividade
reguladora da Administração Púbica. Sabemos ainda que o fundamento das normas

42
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

reguladoras da Administração Pública não tem de ser a Constituição formal, podendo


ser normas de Direito Internacional ou de Direito da UE.

Condicionantes políticas do modelo de Administração Pública


A dependência da Constituição administrativa formal face à Constituição política em
que se inclui, mostra-se através de quatro referências:
o Modelo político-constitucional do Estado – modelo pluralista/modelo não
pluralista – um modelo pluralista conduz à garantia dos direitos fundamentais, à
eleição dos principais titulares do poder político através do sufrágio universal em
eleições periódicas, ao reconhecimento da importância dos partidos políticos, à
hierarquização das normas jurídicas e ao controlo jurisdicional da actividade do
poder público. Por força dos arts 1º e 2º CRP, Portugal insere-se no âmbito de
um modelo de Estado pluralista;
o Forma de Estado – Estado unitário/Estado composto – um Estado unitário
conduz à simplificação das estruturas orgânicas administrativas; um Estado
composto duplica essas estruturas, sendo mais complexa. Portugal é um Estado
unitário descentralizado, sendo ainda membro da União Europeia. Isto faz com
que, na prática, a complexidade da Administração se aproxime mais do que seria
expectável num Estado composto
o Sistema económico – sistema de mercado/modelo de direcção central – com
uma economia de mercado, a Administração Pública é menor, pois que parte do
que seriam funções suas passam para a esfera de iniciativa privada; em sistemas
de direcção central, por contrário, o protagonismo do Estado leva a que a
Administração tenha de produzir mais bens e serviços, ficando-lhe entregue uma
actividade empresarial. Portugal está associado a uma economia mista, o que
leva a uma Administração maior do que a que normalmente se verifica em casos
de economia de mercado;
o Sistema político-governativo – sistema presidencial/sistema parlamentar – o
presidencialismo tende a concentrar sobre o Presidente o protagonismo político
da actividade administrativa, falando-se numa Administração do presidente; o
parlamentarismo dissolve essa responsabilidade individual, levando-nos a falar
de Administração do Governo. Em Portugal, o Professor Paulo Otero defende a
existência de um presidencialismo de primeiro-ministro, com uma diminuição da
responsabilidade parlamentar em caso de governos maioritários.

Conflitualidade administrativa constitucional


A natureza compromissória da Constituição de 1976 e a sua abertura interpretativa
levam a que se procure sempre encontrar na Constituição o fundamento da tutela e
garantia de bens, interesses e valores junto da Administração. Isto leva a que haja um
elevado risco de conflitualidade internormativa.
Dá-se por vezes o caso de o legislador remeter para a Administração Pública
ponderações de natureza constitucional, tornando-se a Administração a primeira
instância de resolução de conflitos constitucionais. Seguem-se-lhe os tribunais, como
segunda instância, dado que é inevitável que haja particulares insatisfeitos com as
43
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

decisões administrativas. Estas questões chegam por vezes ao Tribunal Constitucional,


pelo que este se tornou a última instância de resolução tais controvérsias. Falamos, por
isto, numa administrativização da jurisdição constitucional.

§ 17 – Ordem axiológica constitucional e Administração Pública


Princípios fundamentais conformadores do sistema político
O facto de a CRP adoptar um modelo de Estado de direitos humanos – baseado na
dignidade da pessoa humana – justifica todas as instituições, com o objectivo de
atingir uma sociedade mais justa e solidária. Assiste-se a uma concepção personalista
de Administração Pública, sendo que esta nunca deixa de estar subordinada ao
princípio da dignidade humana (art 1º CRP), ideia que subjaz à própria ideia do bem
comum. O princípio da dignidade da pessoa humana assenta na igualdade, na
fraternidade e na liberdade.
A Constituição administrativa leva à subordinação da Administração Pública a quatro
princípios fundamentais:
o Princípio da democracia humana;
o Princípio do Estado de Direito democrático;
o Princípio da soberania internacionalizada e europeizada;
o Princípio da unidade descentralizada.

Princípio da democracia humana


Assente na “trilogia democrática”: igualdade, liberdade e fraternidade. Implica um
modelo de sociedade política ao serviço da pessoa humana, o que envolve diversos
pressupostos:
o A liberdade, a justiça e a solidariedade são valores nucleares da actuação da
Administração;
o A Administração Pública é uma estrutura ao serviço da comunidade;
o Os direitos fundamentais decorrem da natureza humana, devendo sempre ser
respeitados, protegidos e implementados pela Administração Pública;
o A Administração está vinculada ao dever de eliminar todos os obstáculos à
efectividade da dignidade humana;
o Respeito pela inviolabilidade da vida humana, pelo livre desenvolvimento da
personalidade e por um postulado geral de solidariedade.
Baseia-se, no fundo, na ideia de que “o Estado e A Sociedade são por causa do Homem
e não o Homem por causa deles”.

Princípios do Estado de Direito democrático


Engloba, de acordo com o art 2º da Constituição, quatro vertentes:
o Princípio da separação de poderes – integra-se na CRP com a revisão de 1997,
vinculando o legislador a confiar na Administração Pública o núcleo da função
administrativa. Impõe uma reserva constitucional de Administração Pública, não
podendo por isso, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, os tribunais e o
legislador exercer esta função. Em sentido oposto, nunca pode a Administração

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

invadir o núcleo das demais competências, não podendo assim violar a reserva
de lei nem a reserva de jurisdição, sob pena de nulidade das decisões.
o Princípio pluralista – tem ainda por base a dignidade humana, expressando a
ideia de uma Administração não totalitária, aberta, reconhecendo e valorizando
as diferenças e a participação. A Administração Pública plural implica um modelo
de sociedade livre, tolerante e respeitador da diversidade; a existência de várias
Administrações, prosseguidoras de diferentes fins; uma pluralidade de
estruturas orgânicas dentro de cada Administração Pública; diversas formas de
legitimação democrática: por via das normas legislativas que a Administração
produz, por existirem órgãos administrativos cujos titulares são designados por
via de eleição ou por existirem mecanismos de participação dos interessados,
reforçando a democracia representativa.
o Princípio da juridicidade – implica a subordinação da Administração Pública a
toda a juridicidade, num plano heterovinculativo: a Administração está vinculada
ao Direito independentemente da sua vontade e mesmo contra sua vontade.
Esta vinculação determina que a violação de tais parâmetros de conduta leva a
uma actuação administrativa inválida, devendo sempre existir mecanismos de
controlo que garantam a reposição da juridicidade. Essa reposição assenta na
obrigatoriedade de a Administração respeitar a decisão judicial, sendo obrigada
por isso dar-lhe efectividade.
o Princípio do bem-estar – é o objectivo da actuação da Administração Pública,
impondo-se-lhe por base da cláusula constitucional de bem-estar ou de Estado
social. Os privados, subsidiariamente, também devem ser chamados a colaborar.
Juridicamente, a Administração desenvolve, em relação ao poder legislativo, um
papel subsidiário na implementação das imposições constitucionais de bem-
estar. A Administração goza de uma posição nuclear na satisfação concrecta e
efectiva de cláusulas de bem-estar, estando por esta via sujeita ao princípio da
eficiência e ao princípio da necessidade.

Princípio da soberania internacionalizada e europeizada


Assistimos hoje a uma internacionalização e europeização da Administração Pública
nacional. Esta manifesta-se a partir:
o Da cooperação internacional, que se torna um pressuposto para o êxito das
medidas propostas , envolvendo uma pluralidade de Estados;
o Inerente e progressiva sujeição da Administração Pública a normas de Direito
Internacional geral ou comum, a normas internacionais convencionais e ainda
a normas de Direito da União Europeia – alargam-se as fontes da juridicidade
vinculativa do agir administrativo nacional
o Transferência de matérias da esfera decisória nacional para o domínio
internacional, deixando o Estado de ter competência decisória primária em
vários aspectos nucleares;
o Necessidade de partilha e articulação entre a Administração nacional, as
Administrações de tais entidades e, ainda, as Administrações de outros Estados.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o O controlo da actuação da Administração nacional deixa de ser feito apenas


pelos tribunais nacionais, sendo também feito por entidades fiscalizadoras
externas ao Estado.
Tudo isto torna-se mais acentuado se o Estado estiver subordinado a um plano de ajuda
externa – “o autogoverno democrático foi substituído pelo heterogoverno dos
credores”.
Princípio da unidade descentralizada

§ 18– Princípios gerais da Administração Pública - introdução


Generalidades
A Constituição de 1976 compreende vários princípios gerais que se referem à
Administração Pública:
o Princípios gerais da Administração em sentido orgânico ou subjectivo – são os
princípios que regem a organização administrativa;
o Princípios gerais da Administração em sentido material ou substantivo – são os
princípios que regem a actividade administrativa.
Estes podem mostrar-se de forma expressa, implícita ou a partir da extracção de um
ou vários preceitos constitucionais. Estes princípios são, em primeira instância,
comandos constitucionais dirigidos ao legislador. Nos espaços de reserva
constitucional e de reserva legal de Administração, há sempre uma vinculação das
estruturas administrativas aos princípios organizativos e aos princípios do agir
administrativo. Estes podem servir de parâmetros normativos de fiscalização da
constitucionalidade das soluções legislativas e administrativas referentes à organização
e à actividade da Administração.

Princípios gerais da organização administrativa


A organização administrativa portuguesa pauta-se pelos seguintes princípios gerais:
o Princípio da subsidiariedade – tem subjacente o princípio de que tudo aquilo
que puder ser feito pelas estruturas mais próximas não o deverá ser pelas
estruturas mais distantes. A sua operatividade permite-lhe a definição de um
modelo de repartição de áreas de decisão, permitindo o reforço da intervenção
decisória das estruturas mais distantes ou de nível mais elevado.
o Princípio da descentralização – efectiva-se entre pessoas colectivas, dizendo-
nos que o exercício das funções do Estado deve estar repartido por uma
pluralidade de entidades, levando ao descongestionamento de poderes.
Exceptuando a função jurisdicional, todas as demais funções não são exercidas
exclusivamente pelo Estado, mas antes partilhadas entre ele e uma pluralidade
de outras pessoas colectivas. Leva-nos, assim, a uma divisão da função política,
legislativa e administrativa entre o Estado e diversas entidades;
o Princípio da desconcentração – efectiva-se entre órgãos de uma mesma pessoa
colectiva, baseando-se na repartição de poderes por entre os mesmos. Esta
desconcentração só pode, no entanto, começar após o fim dos poderes
resultantes da Constituição, o que dá ao Governo uma posição privilegiada: a

46
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

desconcentração da competência do Governo só começa quando acabam os


poderes que lhe foram conferidos pela CRP;
o Princípio da unidade – é o princípio limitador da descentralização e da
desconcentração, porque condiciona o pluralismo decorrente do fenómeno de
descongestionamento de poderes administrativos. Confere ao Governo a
possibilidade de exercer um poder de intervenção intra-administrativa sobre
quase todas as esferas decisórias do poder do Estado. Este princípio não é
exclusivo do Estado, podendo servir de modelo organizativo de qualquer
entidade pública e do seu relacionamento com outras entidades.
o Princípio da participação dos interessados na gestão da Administração – serve
como reforço da democraticidade do modelo organizativo da Administração
Pública, estando p.e patente na existência de alunos nos órgãos da faculdade
(ultrapassa por isso a mera eleição de titulares de órgãos). Este princípio permite
a criação de novas estruturas orgânicas aptas a conferir expressão participativa
aos interessados, a organização dos interesses em formas de autoadministração
de base territorial ou socioprofissional e a adaptação das estruturas orgânicas já
existentes a mecanismos de participação dos interessados. O princípio da
participação dos interessados na gestão da Administração implica
responsabilização, sendo a responsabilidade tanto maior quanto mais activa for
essa participação, estando presente no art 267º, nº1 CRP.
o Princípio da aproximação dos serviços às populações – a CRP, no seu artigo
267º, nº 1, exige que a Administração esteja estruturada de modo a que quem
decide esteja próximo dos problemas. Como limites a este princípio tem a
imparcialidade e a utilização da informática nas decisões administrativas.
o Princípio da desburocratização – está patente no art 267º, nº 1 CRP, implicando
a simplificação da Administraçao e do seu relacionamento com os particulares.
Comporta, diz o Professor, uma componente política, dizendo que o centro da
decisão se deve localizar em estruturas dotadas de legitimidade democrática e
não num aparelho de burocratas. Também nas palavras do Professor Paulo
Otero, este princípio “tem-se vindo a afirmar, mas ainda com árias onde não é
muito visível”.

Princípios gerais da actividade administrativa


Estes são princípios que devem reger o modo como a Administração Pública
desenvolve a sua função administrativa. O art 266º CRP comporta:
o Princípio da juridicidade – a Administração age com fundamento no direito
(independentemente da sua fonte), nunca o podendo violar. Disto resulta que o
silêncio da norma significa para a Administração uma proibição, ficando esta
vinculada a nada fazer. Este princípio, diz a Doutora Joana Loureiro, é uma
construção doutrinária;
o Princípio da prossecução do interesse público – a Administração Pública nunca
deixa de estar ao serviço da comunidade e dos seus interesses, não podendo
assim motivar-se por interesses privados. Esta visa a defesa, a garantia e a

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

promoção do bem comum, implicando sempre o respeito pela dignidade da


pessoa humana;
o Respeito pelas posições jurídicas activas dos cidadãos (pelos direitos ou
interesses dos particulares) – a Administração Pública deve sempre optar pela
solução que evite lesar ou que menor dano provoque aos seus direitos e
interesses. Em caso de ilegalidade da conduta, gera-se um sacrifício individual
em benefício da colectividade, que abre espaço a indemnização pelos danos
sofridos;
o Princípio da igualdade – implica que a Administração Pública trate todos com
base nos mesmos critérios. Esta igualdade tem de ser não só formal, mas
também material, decorrendo não só do art 266º, mas também do art 13º CRP.
Cabe salientar que esta não exclui uma desigualdade de tratamento, pois que
nada é mais injusto que tratar como igual aquilo que é desigual.
o Princípio da proporcionalidade – tem subjacente a ideia de justiça distributiva,
que remonta a Aristóteles. Este implica a proibição do excesso ou necessidade,
nunca legitimando a imposição de sacrifícios ou lesões pessoais ou patrimoniais,
exigindo a adequação das soluções às situações e ainda exigindo razoabilidade.
Há quem defenda, com base em jurisprudência do TC, uma quarta vertente deste
princípio: o princípio da protecção insuficiente, que requer um nível mais
exigente de protecção jurídica de certa realidade, defendendo que protecção
insuficiente leva à ilegalidade da decisão.
o Princípio da justiça – exige que seja dado a cada um aquilo que lhe é devido,
sendo este o fundamento, o critério e o limite do poder. Procura a equidade do
caso concreto, tendo implicações não só em termos materiais, mas também em
termos procedimentais, projectando-se sobre a maneira como se decide.
o Princípio da imparcialidade – a Administração deve assumir uma posição de
isenção em relação ao que decide e aos respectivos destinatários. Tem
subjacente a ideia de justiça, excluindo situações de favorecimento ou
desfavorecimento por conflito entre os interesses envolvidos. Este princípio
comporta: a neutralidade administrativa face a quaisquer interesses alheios ao
interesse público e a determinação de certos parâmetros racionais, objectivos,
lógicos e transparentes de decisão;
o Princípio da boa-fé – vincula não só a relação Administração-particulares, mas
também a relação particulares-Administração, exigindo-lhes exactidão. Este
princípio apela a uma dimensão ética, honesta e leal do agir administrativo,
comportando diversas manifestações vinculativas:
 Respeito pelas promessas feitas;
 Proibição de abuso de direito;
 Interdição de comportamentos contraditórios;
 Relevância da culpa in contrahendo.

§ 19– Princípios garantísticos face à Administração


Explicação prévia

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

A Administração Pública encontra-se subordinada a determinados princípios


fundamentais conformadores do sistema político. Estes princípios mostram ser
importantes garantias dos cidadãos perante a Administração Pública, resultando da
sua vinculação à juridicidade.
Estão na Constituição autonomizados um conjunto de princípios garantísticos, que
ampliam a vinculação da Administração Pública. Este conjunto de princípios pode ser
dividido em cinco principais categorias:
o Princípios operativos da unidade do sistema jurídico;
o Princípios de acesso à Administração Pública;
o Princípio do procedimento administrativo;
o Princípios de controlo da Administração Pública;
o Princípio de incidência intra-administrativa.

Princípios operativos da unidade do sistema jurídico


O sistema jurídico exige unidade, sendo certo que a Administração Pública se encontra
sempre vinculada ao Direito (princípio da juridicidade). Estes princípios operativos da
unidade do sistema jurídico dividem-se em:
o Princípio da supremacia da CRP – advém desde logo da rigidez que subjaz ao
processo de alteração da Lei Fundamental, exigindo este princípio a
conformidade de todos os actos administrativos à Constituição, bem como a
existência de um mecanismo jurisdicional de fiscalização da constitucionalidade
das normas jurídicas. Este princípio comporta em si três limites: em caso de
contradição entre a lei e a CRP, deve a Administração aplicar a lei; em caso de
ausência de lei, nem sempre a Administração poderá actuar directamente
fundada na CRP; em caso de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a
CRP habilita que actos inconstitucionais continuem a produzir efeitos ou que os
efeitos já reduzidos sejam ressalvados;
o Princípio da reserva de lei – cria um espaço de actuação exclusiva do poder
legislativo. São reserva de lei todas as matérias entregues à AR, ao Governo ou
às ALR. Fora destas, a reserva de lei só existe nos casos expressamente presentes
na CRP. A reserva de lei tem diferentes graus de intensidade, existindo sempre
espaços a favor da Administração Pública;
o Princípio da precedência de lei – implica que o agir administrativo se funde
sempre num prévio acto legislativo, sendo assim insuficiente a simples previsão
constitucional para que esse agir se mostre habilitado. Este princípio tem quatro
limites: normas constitucionais que habilitem o exercício de uma actividade
administrativa directamente fundada na CRP; as normas de DIP e de DUE que
podem servir imediatamente de fundamento do agir administrativo, as normas
consuetudinárias que servem de fundamento à actuação administrativa e a
possibilidade de a Administração ser chamada a integrar lacunas por recurso.
o Princípio da preferência de lei – a lei goza de uma força jurídica especial, sendo
que um acto de nível inferior nunca a pode contrariar sob pena de invalidade do
mesmo (força de lei formal negativa). Este princípio conhece limites: decorrentes
da prevalência das decisões judiciais, de uma inversão do princípio de invalidade

49
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

e da existência de habilitações jurídico-positivas de actuação administrativa


contra legem;
o Princípio da reserva de juiz – representa o conjunto de matérias que integram a
esfera de decisão exclusiva do poder judicial. Implica a delimitação de fronteiras
e o facto de a violação das mesmas levar a uma inconstitucionalidade orgânica;
o Princípio da prevalência das decisões judiciais – as decisões dos tribunais gozam
de primado face às decisões de quaisquer outras autoridades (art 205º, nº 2
CRP). Este princípio é apenas limitado pelas leis de revisão constitucional que
afectem as normas aplicadas pelas decisões judiciais (exige-se que estas tenham
um conteúdo mais favorável e incidam sobre matéria sancionatória).

Princípios de acesso à Administração Pública


O acesso de alguém à Administração Pública não pode ser visto como um privilégio,
uma graça ou uma honra, mas sim como um direito fundamental de todos. É um
princípio de natureza garantística que assume diversas vertentes:
o Princípio da universalidade de acesso prestacional aos serviços administrativos
– alguns destes serviços, como a segurança social ou o sistema nacional de
saúde, são imperativos constitucionais expressos. Não é exigido, no entanto, que
estes serviços administrativos implementem a sua actividade em exclusivo,
podendo assim haver iniciativa económica privada e iniciativa cooperativa. A
impossibilidade de criar uma reserva de acesso prestacional a estes serviços
advém da concepção personalista de Administração Pública. Tal não exclui a
possibilidade de se fixarem taxas de utilização que respeitem regras de justiça
social diferenciadora no seu pagamento;
o Princípio da liberdade de acesso à função pública e a cargos públicos
administrativos – o acesso à função pública encontra-se aberto a todos os
cidadãos, sendo um direito subjectivo que se consubstancia em três regras
fundamentais: igualdade, liberdade e regra de concurso.
o Princípio da liberdade de petição – confere aos administrados a faculdade de
formularem pedidos à Administração Pública. Há, por força do art 52º, nº 1 CRP,
diversas modalidades:
 Representação – implica uma chamada de atenção para a validade,
conveniência ou oportunidade do conteúdo de uma decisão
administrativa, retardando a sua execução;
 Queixa – denúncia de uma situação à Administração Pública, que apela a
uma investigação;
 Reclamação – impugnação de uma decisão administrativa junto do seu
próprio autor;
 Recurso – impugnação de uma decisão administrativa junto de
autoridades da Administração Pública superiores ao autor da decisão;
 Petição stricto sensu – pedido formulado a uma autoridade
administrativa no sentido de ser tomada determinada providência.
o Princípio do arquivo aberto – art 268º, nº 2 CRP, implica o acesso aos arquivos
e registos administrativos (salvaguardando as situações de segurança interna e

50
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

externa do Estado, o segredo de investigação criminal e a intimidade das


pessoas). É o direito de acesso à informação, servindo de reforço à transparência
das instituições públicas.

Princípios do procedimento administrativo


São princípios que garantem a legalidade do modo como se chega à decisão,
desdobrando-se estes em cinco vertentes:
o Princípio da decisão – obriga a Administração Pública a decidir as pretensões
que lhe sejam formuladas pelos cidadãos (art 52º, nº 1 CRP). Isto implica o dever
de analisar estas pretensões e de que a Administração se pronuncie sobre as
mesmas.
o Princípio da informação – releva do direito fundamental de os cidadãos serem
informados pela Administração sobre a acção estatal. Implica o direito de
esclarecimento sobre os actos praticados pelas entidades administrativas, o
direito à informação sobre a gestão dos assuntos públicos, o direito à publicidade
concursal, à informação sobre o andamento de processos em relação aos
interessados, a conhecer as decisões finais sobre os procedimentos, (…)
o Princípio da fundamentação – a Administração Pública está vinculada a
fundamentar as decisões que toma;
o Princípio da notificação – é conferido pela Constituição o direito a que todos os
cidadãos sejam notificados pela Administração dos actos que afectam direitos
ou interesses legalmente protegidos. Perante uma notificação insuficiente ou
ausente, o acto é inoponível ao interessado; perante a deficiência da notificação,
geram-se efeitos contenciosos ao nível das garantias dos particulares;
o Princípio da participação – é o direito reconhecido a cada cidadão de ter
intervenção na formação das decisões que lhes digam respeito, resultado do art
267º, nº 5 CRP.

Princípios de controlo da Administração Pública


São mecanismos de fiscalização da Administração Pública, que exercem esta função
garantística:
o Princípio da tutela jurisdicional efectiva – é uma manifestação do direito geral
de acesso aos tribunais, definindo que todas as dúvidas sobre a legalidade da
conduta da Administração são passíveis de avaliação judicial. Este princípio
encontra-se no art 268º, nº 4 CRP;
o Princípio da responsabilidade civil da Administração Pública - visa o ressarcir
de danos ou prejuízos gerados por condutas da Administração Pública na esfera
jurídica do cidadão. Cria-se assim a obrigação de indemnizar o lesado. Esta
responsabilidade civil pode ter origem num facto lícito, num facto ilícito ou no
risco.
o Princípio da intervenção moderadora do Provedor de Justiça – o Provedor de
Justiça é titular de um poder moderador que o torna habilitado a receber queixas
pela conduta da Administração Pública, permitindo-se assim a defesa de
posições jurídicas ou da legalidade.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Princípio da responsabilidade política da Administração Pública – efectiva-se


na responsabilidade do órgão executivo perante a AR e no controlo que a opinião
pública exerce (através da comunicação social, p.e.)
o Princípio do controlo administrativo – a Administração Pública é a primeira
instância de controlo da sua mesma conduta: cada órgão tem o dever de
fiscalizar a legalidade o mérito da sua conduta (princípio do autocontrolo
administrativo) e existem órgãos administrativos cuja posição de supremacia
permite que exerçam poderes intra-administrativos de controlo ou fiscalização
sobre a actuação da Administração Pública (princípio de heterocontrolo
administrativo)
o Princípio do respeito pelos mecanismos internacionais e europeus de garantia
– implica a vinculação a respeitar normas definidoras das garantias dos cidadãos
no seu relacionamento com a Administração, a vinculação às decisões das
instâncias internacionais e europeias que controlam o cumprimento do Estado e
a vinculação a dar execução às decisões judiciais do TIDH ou do TJUE.

Princípios de incidência intra-administrativa


As garantias dos cidadãos são completadas com a institucionalização de mecanismos
garantísticos de certas instituições administrativas face à liberdade do legislador.
Estabelecem-se assim um conjunto de garantias de incidência intra-administrativa. Estes
princípios garantísticos asseguram-se através do reconhecimento de direitos
fundamentais e da criação de garantias institucionais.
o Princípio do reconhecimento da titularidade de direitos fundamentais pelas
entidades públicas – não se pode negar a titularidade de direitos fundamentais16
por entidades públicas, oponíveis ao Estado e a outras entidades.
o Princípios da salvaguarda da garantia institucionais de natureza
administrativas – passa pela criação de garantias institucionais de natureza
administrativa. Falamos, p.e., da autonomia regional e da autonomia local.
o Princípio da configuração de certos poderes administrativos como direitos
fundamentais – a Constituição configura como direitos fundamentais poderes
que reconhece a entidades públicas (como o previsto no art 76º, nº 2 CRP
relativamente a autonomia universitária).

CAPÍTULO 2º - IDENTIDADE ESTRUTURANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


SECÇÃO 1 – TRAÇOS MATERIAIS DA ADMINISTRAÇAÕ PÚBLICA
CONTEMPORÂNEA
§ 20 – Personalização: AP personalizada
Génese histórica da personalização
A ideia moderna de personalidade jurídica aplicada a estruturas públicas resulta do
pensamento de Hobbes, que definiu o Estado como uma pessoa que tem como titular
o soberano (seja ele monarca ou uma assembleia). Resulta da Administração

16
P.e. direito de propriedade privada ou direito à impugnação de actos administrativos lesivos da sua
esfera jurídica

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

renascentista-barroca e da teoria dos dois corpos do rei a raiz da personalização ao nível


do Direito público. Mais tarde, a doutrina acaba por criar ao lado do Estado uma pessoa
colectiva de Direito privado – o fisco.
Em Portugal, foi no século XIX que surgiu a ideia de personalidade ligada à
Administração Pública.

Personalidade pública e subordinação ao Direito


É a Rocha Saraiva que se deve a ideia de que a teoria da personalidade jurídica plicada
ao Estado submete o poder político ao Direito. Esta construção permite:
o Delimitação de áreas de interesses públicos cuja prossecução é colocada a cargo
de cada entidade;
o Criação de uma esfera própria de actuação e de imputação de efeitos;
o Existência de normas jurídicas habilitadoras e reguladoras da acção de cada
entidade;
o Sujeição a obrigações decorrentes de posições jurídicas activas
Esta subordinação pode ser feita perante o Direito público ou perante o Direito
privado. Tal fez com que, ao lado da Administração Pública sob forma pública, tenha
nascido uma Administração Pública sob forma privada, o que levanta grandes
problemas de articulação aplicativa entre estes dois ramos.
A existência de interesses públicos transnacionais cuja prossecução se encontra a cargo
do estado faz com que os actos produzidos por entidades públicas estrangeiras possam
produzir efeitos em Portugal. É necessário reter o art 33º CC, que determina que as
pessoas colectivas privadas estrangeiras podem desenvolver uma actividade com
relevância administrativa e parcialmente regulada por Direito estrangeiro.

Personalização e pluralismo intra-administrativo


A personalização da Administraçao revela um pluralismo intra-administrativo: a cada
entidade pública deve corresponder a prossecução de fins de interesse público
próprios, evitando-se que duas entidades desenvolvam interesses sobrepostos. As
atribuições a cargo destas entidades podem levar ao reconhecimento de uma
capacidade jurídica de Direito público e de Direito privado, podendo a prossecução dos
interesses ser levada a cabo por entidades “satélite” de Direito privado – Administração
Pública sob forma privada.
A natureza híbrida de algumas entidades integrantes da Administração leva a que possa
haver uma dualidade de mecanismos judiciais de fiscalização: tribunais administrativos
e respectiva lei processual / tribunais judiciais e Código de Processo Civil. Tal questão
levanta também problemas ao nível de responsabilidade civil, pois que sendo cada
pessoa colectiva um centro de imputação de efeitos jurídicos, é o seu património que
responde pelos danos causados pela respectiva conduta. Isto faz com que se crie um
processo de desresponsabilização patrimonial de entidades públicas, acabando por
ocorrer a criação de entidades “satélites” para fugir a esta responsabilidade – fala-se em
desvio de poder e consequente invalidade do acto de criação.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

§ 21 – Complexificação: Administração gestora de conflitos


Multilateralidade administrativa
O desenvolvimento da actividade administrativa foi, originalmente, construído de
forma simples: há uma actividade que relaciona uma entidade administrativa com
outros sujeitos determinados, criando-se posições jurídicas dentro de uma relação
bipolar com efeitos inter partes; há uma outra actividade que relaciona uma entidade
administrativa com uma pluralidade indeterminada de sujeitos, situados numa relação
geral ou especial de poder, criando posições jurídicas com eficácia erga omnes.
Ao longo do tempo, foi surgindo uma pluralidade conflitual de interesses distintos, que
determinou uma Administração multilateral e gestora de conflitos. Complexificaram-
se as relações dentro da própria Administração e entre esta e os cidadãos. Neste
segundo plano gerou-se uma progressiva conflitualidade entre diferentes interesses
privados. Geram-se relações jurídicas poligonais, que podem ser:
o Relações poligonais substantivas
o Relações poligonais procedimentais
o Relações poligonais processuais
A multilateralidade administrativa expressa a diversidade de interesses públicos.

Complexificação administrativa e relações intersubjectivas


A pluralidade de pessoas colectivas integrantes da Administração Pública faz com que
haja uma diversidade de relações internas: temos relações internas de natureza
intersubjetiva, que envolvem duas ou mais pessoas colectivas. Estas relações podem
gerar conflitualidade entre diferentes pessoas colectivas. Os conflitos em causa podem
ser positivos ou negativos de atribuições. Para resolver esses conflitos, foram
instaurados mecanismos de intervenção unificadora destes interesses. A juridificação
do relacionamento intersubjetivo na Administração Pública leva a que certos poderes
sejam reconhecidos como direitos sobre outras pessoas colectivas.
Gerou-se uma complexificação crescente, gerada por relações intersubjetivas externas
(Administração da EU, Administração dos vários Estados estrangeiros no âmbito de
relações administrativas, entre outras).

Complexificação administrativa e relações intrassubjectivas


Verifica-se hoje que, dentro de cada entidade pública administrativa, se desenvolveram
relações jurídicas dotadas de natureza intrassubjectiva. Estas dividem-se em três tipos:
o Relações interorgânicas – são relações que se estabelecem entre diferentes
órgãos de uma mesma pessoa colectiva integrante da Administração Pública.
Estas relações exigem a necessidade de normas de competência, através das
quais se define o espaço de actuação de cada órgão e se possibilita a
coordenação da acção. Existem ainda relações interorgânicas de supremacia,
que envolvem o exercício de poderes de direcção entre diferentes órgãos da
mesma pessoa colectiva. Chega inclusive a ser possível o surgimento de normas
que permitam a certos órgãos desencadear acções judiciais contra actos
praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Relações intraorgânicas – englobam situações jurídicas que ocorrem no interior


de um órgão de uma mesma pessoa colectiva. Estas relações mostram-se de
forma mais clara nos órgãos colegiais da Administração Pública.
o Relações laborais – os órgãos das pessoas colectivas carecem de titulares para
que se possa expressar a sua vontade. Estes titulares vão exercer esta função a
nível profissional, passando a ser trabalhadores da Administração Pública. Estas
relações laborais envolvem os indivíduos que integram as diversas estruturas
administrativas. Lato sensu, são as relações laborais referentes à função pública.

Complexificação e conflitualidade jurídico-privada


A relação dos particulares com a Administração Pública também revela
conflitualidade. Em primeira linha, falamos em conflitos entre a configuração do
interesse público prosseguido pela AP e os interesses privados entre si conciliáveis e
unificados. Estes próprios interesses privados também podem ter, em si mesmos,
conflitos – interesses privados entre si inconciliáveis e autónomos. Podem ser conflitos
no âmbito da actuação administrativa geral e abstracta ou no âmbito da actuação
administrativa individual e concreta, onde se verifica uma relação administrativa
multipolar ou poligonal.
No último caso, estamos perante um “triângulo jurídico” composto pela administração
decisória, o destinatário da decisão e um ou mais terceiros. Esta relação trilateral
assume várias particularidades:
Deparamo-nos com conflitos entre interesses privados que podem assumir duas
configurações:
o Interesses privados heterogéneos em colisão
o Interesses privados homogéneos em colisão
Estes conflitos entre cidadãos implicam sempre a Administração Pública como
mediadora, podendo essa função desempenhar-se através de interesses multipolares
de neutralização (visam neutralizar uma anterior decisão administrativa lesiva dos seus
interesses) ou interesses multipolares de constituição (visam a emissão de uma decisão
administrativa que satisfaça os seus interesses). Se ainda na fase preparatória da decisão
se verificar a existência de um contrainteressado privado, então a Adminsitração deverá
fazer o possível para harmonizar ou ponderar a sua situação. Se, por contrário, esse
contrainteressado apenas se revelar após a decisão, então tal pode vir a viciar a decisão.
Esta ponderação de interesses é normalmente controlada a nível judicial.
A complexificação aqui explanada pode assumir maior intensidade se falarmos em
interesses de tutela constitucional. Pode ainda acontecer que questionem decisões
internas junto de instâncias internacionais.

§ 22 – Ponderação: Administração Pública de balanceamento


Pressupostos – normatividade e conflitualidade
A ponderação é um método que estabelece um enunciado racional de preferência,
afastando a radicalidade de um “tudo ou nada”. Esta faz-se através do contrapesar do
peso relativo de realidades jurídicas conflituais. Também é chamado de ponderação o

55
2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

resultado que advém da aplicação desse método. Esta técnica tornou-se, ao longo do
tempo, uma técnica decisória comum às diversas áreas do ordenamento, pelo que
também a Administração a utiliza.
A expansão de um sistema constitucional principalista levou à substituição de um
“Direito de regras” por um “Direito de princípios”. Os princípios, estabelecendo
orientações gerais, necessitam sempre de concretização. Para além disso, podem dois
princípios conflituantes ser ambos aplicados, se feita uma ponderação acerca da
medida de aplicação de cada um deles. A esta realidade associam-se conceitos vagos e
indeterminados, cláusulas gerais e enumerações exemplificativas e poderes
discricionários de decisão.
Esta metodologia ponderativa leva à existência de uma margem de livre decisão, que
assenta em várias causas: a conflitualidade decorrente da natureza compromissória da
CRP e da sua abertura interpretativa faz com que a Administração Pública recorra à
ponderação para solucionar estes conflitos; também a natureza poligonal das relações
jurídico-administrativas que se estabelecem existem ponderação por parte da AP, que
é chamada a resolver estes conflitos. Pretende atingir-se a paz jurídica.

Objecto da ponderação – bens, interesses e valores


A ponderação tem por objecto o balanceamento de bens, interesses e valores:
o Ponderação de bens – podemos definir bem como “tudo o que permite ao
homem alcançar um fim”, pelo que este conceito se mostra consideravelmente
amplo. É certo que a protecção jurídica confere aos diferentes bens não é toda
igual: destacam-se desde logo os bens protegidos pela Constituição e, dentro
destes, podemos distinguir os que são protegidos de forma expressa e os que o
são de forma implícita.
o Ponderação de interesses – o interesse é tido como a “relação entre um sujeito
e um determinado bem”, sendo que podemos distinguir entre interesses que a
ordem jurídica configura como direitos subjectivos – falamos em direitos
fundamentais – e interesses que a ordem jurídica, apesar de proteger, não
reconduz a direitos subjectivos – falamos em interesses tutelados
constitucionalmente. Podemos ter conflitos entre o interesse público e
interesses jurídicos privados e podemos ter conflitos entre interesses públicos
protagonizados por diferentes entidades da Adminstração Pública.
o Ponderação de valores – os valores são critérios de avaliação de bens ou de
condutas, através dos quais se faz uma avaliação axiológica de bondade,
superioridade ou quantificação. Estes podem ou não ter consagração
constitucional, sendo passíveis de ordenação hierárquica.
Cabe salientar a importância do princípio da dignidade humana. O seu núcleo é
indisponível, pelo que prevalece sempre numa ponderação face ao interesse público.
Esta pode apenas ser limitada se em conflito estiver uma pretensão também ela assente
na dignidade humana de outro cidadão, definindo-se que ambos têm de ser protegidos
de igual maneira.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Cenários de ponderação e separação de poderes


A ponderação administrativa pode ocorrer em dois cenários distintos:
o Podemos estar perante uma ponderação abstracta, em que se alcança uma
fórmula normativa que permite a resolução de conflitos de bens, interesses e
valores. Esta é geralmente feita por via regulamentar e nunca pode levar a uma
aplicação subsuntiva aos casos concretos;
o Podemos estar perante uma ponderação no caso concreto, em que se decide
qual o bem, interesse ou valor que, naquele caso, deve prevalecer.
Há uma preferência pela ponderação feita pela lei. Existem, inclusive, casos de colisão
entre bens, interesses e valores cuja ponderação a Constituição reservou para si. Nos
restantes casos de colisão, há uma exigência de reserva de lei que exclui a ponderação
feita por parte da Administração Pública. Relativamente à ponderação concretca (ou
ad hoc), verifica-se que quase toda a actividade da Administração Pública passa, hoje
em dia, por ela. Cabe dizer que a atribuição de discricionariedade à Administração
reforça o apelo à ponderação.
Os tribunais assumem uma função repressiva, acessória e a posteriori. Estes controlam
o procedimento de ponderação e o respectivo resultado. Invalidada judicialmente uma
ponderação, o tribunal pode predeterminar a ponderação administrativa. Não poderá
nunca substituir aquela que foi invalidada por uma sua.

Fases procedimentais da ponderação


A ponderação é um processo racional, que obedece assim a fases de um determinado
processo – o processo ponderativo:
o Identificação das realidades em colisão – pode nesta fase contar-se com a
participação dos interessados, na ajuda na identificação dos interesses que
temos de ter em conta. A errada identificação destes interesses conduzirá à
invalidade da ponderação;
o Atribuição do peso a cada uma das realidades em conflito – cabe proceder à
definição da importância de cada bem, interesse e valor que está em causa. Esta
fase é marcada por uma argumentação racional, que permite comparar e avaliar
cada uma das realidades em colisão. Este é sempre um procedimento aberto;
o Decisão sobre a prevalência entre as realidades em colisão – é a fase do
processo na qual o decisor já está preparado para resolver o conflito. Se
estiverem em causa bens, interesses e valores tidos como de igual importância,
então pode obter-se a sua concordância, conferindo a ambos operatividade
(nada impede, ainda assim, que o decisor opte pela predominância de um em
detrimento do outro). Se houver bens, interesses e valores tidos como
hierarquicamente superiores em detrimento dos restantes, então dá-se a
prevalência desses mesmos, tendo sempre em conta o princípio da
proporcionalidade e as circunstâncias concretas.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Efeitos de ponderação administrativa


Há autores que defendem que a ponderação aumenta o risco de incerteza e
insegurança do agir administrativo face aos cidadãos, dado que torna as suas decisões
imprevisíveis. Outros, dizem que a ponderação gera uma redução o papel garantístico
da lei, desvalorizando-se a sua força normativa. Há ainda autores que falam da ideia de
a ponderação redefinir o papel do princípio da separação de poderes, debilitando o
papel do legislador e dando prevalência à Administração Pública.
Não existem, apesar de tudo isso, dúvidas de que uma Administração Pública de
balanceamento implica um sistema predominantemente aberto. Confere-se, a partir
daqui, protagonismo à Administração na realização do Direito. A protecção dos
cidadãos é agora exclusiva dos tribunais, não tendo a lei um papel nessa função. Por
fim, este modelo alimenta os conflitos socais e jurídicos, pois que quem fica descontente
com a ponderação feita pela Administração vai provavelmente abrir litígio judicial.

§ 23 – Especialização: Administração Pública técnico-científica


Valorização das estruturas tecno-burocráticas
As tarefas a cargo do Estado exigem uma Administração Pública especializada. Esta
especialização leva a um deslocar do centro decisório para as estruturas tecno-
burocratas, debilitando a legitimação política da decisão administrativa. As exigências
de tecnicidade limitam ou condicionam a dimensão político-democrática da decisão
administrativa. São estas estruturas compostas por técnicos, sem legitimidade político-
democrática, que possuem as soluções possíveis – são elas que podem tomar a decisão.

Num diferente contexto de especialização da actividade administrativa, verifica-se a


necessidade de utilizar a ciência e a técnica para a tomada de certo tipo de decisões,
estando isso relacionado com o facto de os juristas não se mostrarem os mais
qualificados para as tomar. Estas decisões não estão sujeitas às regras da democracia,
pois que o avanço da ciência não depende de decisões obtidas através de eleições e
votações.
Esta especialização associa-se essencialmente à Administração educativa, à
Administração da saúde, à Administração económico-financeira e à Administração do
ambiente.

O poder técnico-científico
A subordinação da política à técnica e à ciência traduz a existência de uma
Administração alicerçada num poder técnico-científico. Estas transformaram-se em
fontes legitimadoras das instituições e das operações políticas. A política converte-se
num simples processo de resolução de questões técnicas.
A existência de decisões administrativas fundadas em critérios técnico-científicos
mostra-se passível de expressar três diferentes realidades organizativas: há decisões
preparadas por estruturas administrativas, ficando a resolução final remetida para um
órgão dotado de legitimidade político-democrática; há decisões que são imediatamente
adoptadas por órgãos exclusivamente compostos por titulares dotados de um saber

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

técnico-científico e há, por fim, decisões administrativas que se encontram sujeitas à


intervenção participativa de órgãos consultivos compostos por peritos técnico-
científicos.
Este poder técnico-científico é imune à fiscalização política e só muito
circunscritamente controlável pelos tribunais. É na intervenção do legislador que reside
o principal mecanismo de conformação político-democrática do poder técnico-científico
da Adminstração Pública.

Instrumentos técnico-científicos de poder


Existem três principais instrumentos de afirmação das decisões administrativas com
uma elevada componente técnico-científica:
o Reserva de formulação da normatividade – faz-se apelo a critérios extrajurídicos
que são depois acolhidos por normas jurídicas e que passam, assim, a ter um
valor vinculativo para o agir administrativo. Esta realidade é uma fonte de poder
para os responsáveis por tais áreas, podendo significar: uma reserva de decisão
sobre a aprovação de critérios normativos, significando isso uma total
capacidade de fixação de normatividade técnico-científica; uma simples
capacidade par apresentar uma proposta, exigindo-se a um outro órgão a
decisão final. Em qualquer dos casos, exige-se uma norma jurídica habilitante
(fonte de validade da competência e da legitimação democrática deste poder.
o Monopólio interpretativo e aplicativo da normatividade – só os especialistas
dos respectivos ramos são competentes para interpretar e aplicar os conceitos
técnico-científicos utilizados nas normas. Fixada a norma, não existe qualquer
liberdade de escolha – é imperativa a utilização dos parâmetros normativos
fixados. Também aqui o poder destes técnicos é insusceptível de controlo
judicial, salvo em caso de um erro suficientemente grave.
o Exclusivo de decisão concreta avaliativa – há uma reserva total a favor dos
técnicos e cientistas.

§ 24 – Privatização: uma Administração Pública privatizada


Polissemia do conceito
A privatização da Administração Pública tem gerado uma verdadeira crise de
identidade institucional: esta aparece cada vez mais aliada a uma política privatizadora,
que se funda num contexto de racionalização financeira do Estado e de necessidade de
equilibrar as conas públicas.
Privatizar é tornar privado algo que antes não o era, é remeter para o Direito Privado.
Esta política privatizadora reforça o papel das entidades integrantes do sector privado
ou do seu Direito na respectiva actuação sobre certas áreas, matérias ou bens até
então de intervenção pública. Apesar de tudo, o Estado nunca fica desvinculado da sua
responsabilidade institucional como garante, regulador e polícia das realidades
jurídicas privatizadas.
O conceito de privatização engloba vários sentidos:

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

PRIVATIZAÇÃO DA REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA DA SOCIEDADE


Associa-se a uma manifestação do princípio da subsidiariedade do Estado. É um
processo através do qual uma entidade pública reduz a sua intervenção reguladora,
transferindo essa função para uma sociedade civil, que passa a poder criar normas
jurídicas reguladoras da respectiva actividade. Gera-se um fenómeno de desregulação
– a privatização dá-se através do desaparecimento da regulação pública – ou de
autorregulação – não só desaparece a regulação pública como é criada uma nova pelos
respectivos interessados. Esta autorregulação pode ser: privada independente de
qualquer intervenção pública; privada objecto de uma intervenção pública; proveniente
de entidades públicas infraestaduais.

PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO REGULADOR DA ADMINISTRAÇÃO


Dá-se uma verdadeira fuga para o Direito privado, passando a ser este aquele que
regula as relações laborais intra-administrativas. Os últimos anos têm sido marcados
pela consciencialização de que é necessário impor limites a este fenómeno, chegando-
se até a observar um retorno ao Direito público. Este Direito privado aplicado pela
Administração Pública, cabe referir, é sempre um Direito privado como que
administrativizado.

PRIVATIZAÇÃO DAS FORMAS ORGANIZATIVAS DA ADMINISTRAÇÃO


Existem cada vez mais pessoas colectivas de Direito privado que são criadas por
entidades de Direito público e instrumentalizadas à prossecução de fins
primariamente públicos – há uma privatização das formas organizativas da
Administração Pública. Esta privatização pode envolver a criação ex novo de pessoas
colectivas de Direito privado por entidades públicas ou pode simplesmente
compreender a conversão de formas de organização das antigas entidades públicas.
Fala-se, no segundo caso, numa mera privatização formal, associada ao surgimento de
pessoas colectivas em cascata, cujo progenitor comum é uma pessoa colectiva pública.
Este processo de privatização faz com que a Administração se aproveite de formas
organizativas típicas de Direito privado – Direito Comercial – para criar novas entidades
e confiar-lhes tarefas que as instrumentaliza aos fins de interesse público subjacentes à
entidade pública que está na sua génese. Há uma Administração indirecta privada, que
leva a uma verdadeira revolução organizativa: o exercício de sectores da actividade
administrativa é confiado a entidades de tipo societário que tornam impossível
esconder que o exercício da actividade administrativa não é dominado exclusivamente
por entidades públicas. Para além disso, o próprio conceito de personalidade jurídica
de Direito público se encontra desvalorizado, sendo que nem todas as pessoas
colectivas públicas exercem poderes de autoridade. Deixou de haver uma total
subordinação ao Direito Administrativo, pois que as pessoas colectivas privadas estão
sujeitas ao Direito Privado. O próprio Direito Privado foi afectado por esta
transferência, falando-se na proliferação de sociedades legais (criadas por lei), cujo
regime derroga o Código das Sociedades Comerciais.
Esta privatização não significa, no entanto, uma transferência do bem de produção das
entidades para o sector privado – este continua a integrar a esfera pública.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO OU EXPLORAÇÃO DE TAREFAS ADMINISTRATIVAS


Este modelo de privatização traduz-se na possibilidade de conferir a pessoas privadas
a gestão ou exploração de tarefas administrativas concretas ou de serviços
administrativos na sua globalidade. Verifica-se, neste caso, o contrário do que acontece
na privatização de formas organizativas da Administração Pública – aqui há uma
transferência para entidades privadas de funções que até à altura estava a cargo de
entidades públicas. Na privatização das formas de organização da Administração, nada
se transfere para fora do sector público.
Esta privatização comporta uma elevada precariedade por existir sempre uma pessoa
colectiva pública que mantém a responsabilidade pelo seu funcionamento nas mãos
de entidades privadas. Os últimos anos são marcados pela limitação desta privatização,
que se continuar de forma ilimitada levará à limitação do espaço material de actividade
da Administração e acabará por reduzir o campo de operatividade do Direito
Administrativo.

PRIVATIZAÇÃO DO ACESSO A UMA ACTIVIDADE ECONÓMICA


Verifica-se, nestes casos, a abertura à iniciativa económica privada de um ou mais
sectores básicos da economia até então abrangidos por um regime de monopólio do
sector público. Esta privatização vem reduzir o peso da intervenção pública no acesso a
estes sectores de actividade económica, revelando uma postura limitativa da
intervenção do Estado e mais associado a uma economia de mercado baseada na livre
concorrência.

PRIVATIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL DE EMPRESAS PÚBLICAS


Está em causa a abertura a entidades privadas do capital social de sociedades cuja
titularidade do capital pertence na totalidade ou em parte a entidades públicas. Esta
privatização do capital social pode envolver duas hipóteses:
o Simples privatização de uma parte do minoritária do capital, continuando assim
a entidade pública a deter a maioria do respectivo;
o Privatização da maioria ou da totalidade do capital social, passando o controlo
da sociedade a estar a cargo da entidade privada – há um verdadeiro fenómeno
de privatização.

Esta privatização exige que o adquirente do capital não seja uma sociedade de capitais
públicos ou de capitais mistos maioritariamente titulados por entidades públicas, pois
que nesse caso apenas teríamos uma transferência de capitais entre entidades
integrantes do sector público – seria uma falsa privatização. Se aquisição do capital
aberto à privatização for feita por entidades públicas sujeitas a gestão privada,
assistimos à simples transferência de bens do sector público sob forma privada para o
sector privado publicizado – há uma privatização debilitada ou enfraquecida.

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Patrícia Carneiro da Silva

PRIVATIZAÇÃO DOS CRITÉRIOS SUBSTANTEIVOS DE DECISÃO ADMINISTRATIVA


Pode dizer-se que “apesar de o corpo da entidade se integrar na Adminstração Pública,
a sua alma se encontra no sector privado”. A prossecução do interesse público por
entidades integrantes da Adminstração, sujeitas ao Direito público, passa a ficar
condicionada pela força dos instrumentos do mercado. Esta privatização implica
sempre a precedência de lei, sob pena de invalidade da privatização.

PRIVATIZAÇÃO DO CONTROLO DA ADMINISTRAÇÃO


Implica:
o Privatização das entidades encarregues do controlo – implica o recurso a
empresas privadas para exercerem serviços de auditoria, consultadoria e
avaliação das estruturas do sector público empresarial, administrativo e até do
Tribunal de Contas.
o Privatização dos mecanismos de controlo – apela a uma utilização de novos
critérios fiscalizadores, havendo uma aproximação aos mecanismos de controlo
da gestão das empresas do sector privado. O Estado é um agente económico que
actua em mercado e que, por isso, está sujeito ao escrutínio público. Exige-se
uma actuação óptima, vinculada ao princípio da boa administração.
O controlo das decisões administrativas pode levar a três principais soluções: utilização
da metodologia de controlo das empresas privadas, transformação das prestações
administrativas em produtos e dos administrados em clientes e, por fim, a definição de
objectivos das políticas públicas a implementar pela Administração Pública.
A privatização do controlo da Administração nunca se mostra politicamente neutra.

§ 25 – Informatização: Administração Pública electrónica


Transformação da Administração
O crescente desenvolvimento tecnológico levou à transformação das modernas
sociedades. Cresce a utilização de computadores, a democratização do computador
pessoal, a conexão à internet e a utilização das redes sociais. Há uma desmaterialização
da informação e uma simplificação da linguagem escrita, que introduz inevitáveis efeitos
na Administração Pública. Criam-se novos mecanismos e institutos jurídicos, havendo
uma informatização da Administração Pública.
As principais manifestações desta informatização relacionam-se, em primeira linha,
com um “computador-arquivo”, que passa a ser um “computador-funcionário”. A
armazenagem, gestão e utilização de informação é feita por computadores, sendo o
acesso dos cidadãos à Administração feito pelos cidadãos por via da internet e estando
nela publicitados os boletins oficiais de legislação. Também são muitas as vezes que as
decisões administrativas são comunicadas via e-mail. A presença física é substituída
por videoconferência.
Temos agora uma Administração aberta 24 horas por dia, rapidez no acesso à
informação, supressão das distâncias territoriais, uniformidade na decisão
administrativa e a redução significativa dos custos.

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Riscos e desvantagens
A informatização da Administração traz desvantagens: os cidadãos deixam de
encontrar um rosto para o seu contacto com a Administração, gera-se uma desconfiança
geral dos cidadãos perante tecnologias que não dominam, à qual se associa o facto de
nem todos terem acesso aos mesmos meios tecnológicos. A redução de custos, na
realidade, é apenas aparente: é exigido um elevado investimento em equipamentos
tecnológicos.
Assinala-se ainda um problema de compatibilidade de programas, que dificulta a
comunicação: no interior das várias Administrações, entre a Administração nacional e a
da UE ou dos restantes Estados-membros e entre todas estas e os cidadãos. É essencial
a estandardização de equipamentos e aplicações informáticas, o que exige cooperação
interadministrativa.
Os riscos de uma Administração informatizada englobam o facto de haver muitos
dados, quer privados quer públicos, serem passíveis de acesso público.

Vinculação da informatização administrativa - limites


Há uma progressiva afirmação do direito de todos os cidadãos à autodeterminação
informacional – art 35º, nº 1 CRP. Este garante o seu estatuto como cidadãos e não
como mero objecto de informações. Engloba em si um conjunto de direitos:
o Direito de acesso a todos os dados informatizados que lhes sejam respeitantes;
o Direito a exigir a retificação e actualização dos dados;
o Direito a conhecer a finalidade a que se destinem os dados informatizados;
o Direito ao esclarecimento acerca da natureza da recolha dos dados;
o Direito a consentir a recolha de certos dados pessoais para efeitos específicos;
o Direito à salvaguarda da confidencialidade dos dados pessoais.
É inválida a actuação administrativa fundada em dados informacionais recolhidos de
forma ilícita ou ilegal.

SECÇÃO 2 – DESTERRITORIALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


§ 26 – Administração descentrada do Estado
Globalização administrativa
A Administração Pública foi desde sempre tida como uma realidade territorial,
expressão de um poder do Estado. No entanto, este modelo de Administração fechada
e territorializada não se coaduna com as exigências da vida contemporânea. Estas
envolvem a abertura das fronteiras e dos espaços económicos, o desenvolvimento do
comércio internacional e a aceleração do movimento de circulação de pessoas. O
crescente processo de mundialização faz com que o Estado se mostre incapaz de
garantir por si só a segurança e a satisfação das necessidades colectivas. Geram-se
mecanismos de cooperação, que envolvem a troca de informações e a coordenação de
procedimentos. Este fenómeno de internacionalização também afecta a Administração
Pública.
A Administração Pública nacional é obrigada a aplicar e reconhecer actos jurídicos
estrangeiros. Há uma irreversível quebra do princípio da territorialidade, prosseguindo

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

a Administração nacional, também, interesses transnacionais. Há um reforço do


pluralismo da Administração Pública e um acentuar do protagonismo do Governo, por
força do aumento da negociação de convenções internacionais reguladoras de
interesses transnacionais. Estes interesses transnacionais passam pela tutela e garantia
dos direitos humanos, pela dimensão independente das economias, pela tentativa de
fazer face a problemas comuns no domínio da segurança e da defesa. Passam também
pelas necessidades de tráfego de pessoas e de mercadorias. Tudo isto levou à criação
de um espaço jurídico global.
A Administração Pública territorializada é incompatível com a concepção personalista
de Administração: se o eixo da via administrativa se encontra na pessoa humana, não
pode o Estado ser a centralidade dessa Administração. Para além disso, são as pessoas
que marcam os pressupostos da actividade administrativa, não o território. A crescente
desterritorialização da actividade administrativa leva à criação de um Direito
Administrativo Internacional.

Espaços administrativos comuns


A mudança da Constituição implica a mudança da Administração. Os espaços
administrativos comuns, envolvendo as administrações de vários Estados, são zonas de
convergência de exercício partilhado da função administrativa – há uma comunhão de
interesses transnacionais. Estes espaços levam à existência de administrações públicas
pluriestaduais, à abertura das administrações ao exterior, à proximidade de
administrações públicas e dos respectivos ordenamentos reguladores, bem como ao
desenvolvimento de uma interculturalidade administrativa.
Verifica-se uma erosão do Estado e uma inevitável internacionalização da
Administração Pública.

Erosão do Estado
Temos, hoje, um Estado mais débil e limitado em termos materiais e internacionais.
Para esta, encontram-se diversas explicações:
o Desenvolvimento de normas de Direito Internacional, por força de mais
convenções internacionais, limitando a liberdade do legislador;
o Redução das matérias integrantes do domínio reservado aos Estados;
o Perda consentida de soberania a favor de estruturas supranacionais;
o Autonomia de certas instituições internacionais face aos Estados que as criaram;
o Proliferação de interesses públicos transnacionais;
o Desregulação, que gera uma renúncia do Estado ao exercício de uma actividade
de ordenação da vida económica e social;
o Subsidiariedade da regulação do Estado;
o Privatização e tecnicidade;
o Sujeição do Estado a um regime de protetorado internacional;
o Concepções políticas e económicas neoliberais;
A ideia de que estamos perante um cenário de morte do Estado é, diz o Professor,
exagerada.

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Patrícia Carneiro da Silva

§ 27 – Administração Pública sem Estado


Administração Pública e organizações internacionais
Desde o século XIX que os Estados compreendem que existem matérias de natureza
administrativa relativamente às quais não podia haver uma regulação unilateral por
cada um deles – dessa realidade surgem as uniões administrativas internacionais e o
Direito Internacional Administrativo. Estas uniões eram coligações internacionais de
uma pluralidade de Administrações nacionais.
No século XX, dá-se o aprofundamento das estruturas internacionais encarregues da
gestão e prossecução de interesses públicos transnacionais, começando a surgir as
organizações internacionais. As suas estruturas administrativas obedecem a
determinados factores:
o Está sujeita ao controlo dos órgãos constitucionais da organização;
o Os funcionários desempenham as suas funções com independência face ao
governo a que pertencem;
o São titulares de um poder de auto-organização interna, que não carece de
positivação;
o Não possuem receitas próprias.

Administração Pública e União Europeia


A União Europeia, inicialmente constituída por três organizações internacionais de
natureza supranacional, configura-se como uma associação de Estados atípica. Os
Estados europeus delegaram a favor da UE matérias que até então estavam
exclusivamente nas mãos do Estado. Isto podia ser feito através da entrega exclusiva à
UE desses poderes, através da partilha entre os Estados-membros e a UE ou ainda
através de atribuições de coordenação, apoio ou complemente entre a UE e os Estados-
membros. Para além disso, permitiram a criação de diversas estruturas subjectivas e
orgânicas, levando a um crescente processo de burocratização, ao qual se associa uma
verdadeira função pública da União Europeia.
A União Europeia transformou-se numa comunidade administrativa, tendo expressão
numa Administração Pública sem Estado que se sobrepõe às Administrações dos
Estados-membros. Verifica-se uma influência recíproca entre a Administração da União
Europeia e as várias administrações dos Estados-membros, que se funda em três
momentos evolutivos:
o Influência da organização e funcionamento das Administrações Públicas dos
Estados;
o Desenvolvimento autónomo da Administração Pública comunitária;
o Influência da Administração da União Europeia e do seu ordenamento junto dos
Estados-membros.
A UE representa um encontro de diferentes culturas administrativas.

Europeização das administrações públicas nacionais


A influência da Administração Pública da União Europeia sobre as Administrações
Públicas nacionais de cada Estado-membro encontra diferentes ilustrações:

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2º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Execução administrativa do Direito da UE, transformando-se as administrações


dos Estados-membros em Administração indirecta da União;
o Necessidade de articulação directa entre as Administrações dos diferentes
Estados;
o Transferência de poderes decisórios para a esfera da UE, o que implica:
 Reduzir as atribuições decisórias exclusivas dos Estados-membros;
 Precludir parte da liberdade decisória dos Estados-membros, sendo
limitada a margem de discricionariedade de cada um
 Exigência, por parte do Direito da UE, de respeito pelo quadro vinculativo
da própria União;
 Função paramétrica dos actos administrativos, no âmbito da actuação
administrativa dos Estados-membros;
 Harmonia entre a legislação dos Estados-membros, o que leva à eficácia
transnacional de actos administrativos e à redução das diferenças
processuais entre estas Administrações Públicas.
Chega já a falar-se numa federação administrativa europeia.

Administração Pública por organizações não-governamentais


As organizações não-governamentais são pessoas colectivas sem fins lucrativos,
criadas por iniciativa privada ou público-privada, possuidoras de personalidade jurídica
privada – são pessoas colectivas de Direito privado que prosseguem propósitos
transnacionais.
A relação entre as organizações não-governamentais e a Administração Pública
resume-se ao problema de tentar aqui recortar um fenómeno de Administração sem
Estado: as organizações não-governamentais traduzem uma forma de privatização das
relações internacionais – são sujeitos privados que agem em termos transnacionais.
As organizações internacionais encontram-se investidas de uma missão de interesse
público, o que leva a dois inevitáveis efeitos: elas acabam capturadas pelos interesses
públicos transnacionais que prosseguem e intensificam-se os laços de colaboração entre
as organizações não-governamentais e as administrações públicas do Estados e/ou das
organizações internacionais.
Falamos de uma forma de administração sem Estado que tem a particularidade de ser
desenvolvida por entidades privadas de âmbito internacional.

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