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FIBROSE CÍSTICA

 INTRODUÇÃO

-A Fibrose Cística (FC), também conhecida como mucoviscosidade, é


uma doença genética com padrão de hereditariedade autossômico
recessivo, caracterizada pela disfunção do gene Cystic Fibrosis
Transmembrane Conductance Regulator (CFTR), localizado no braço
longo do cromossomo 7, que codifica uma proteína reguladora de
condutância transmembrana de cloro. Essa proteína constitui-se em um
canal de cloretos na membrana apical das células epiteliais exócrinas,
regulando e participando do transporte de eletrólitos através das
membranas celulares.
-Trata-se de uma doença multissistêmica, caracterizada por doença
pulmonar progressiva, disfunção pancreática exócrina, doença
hepática, problemas na motilidade intestinal, infertilidade masculina e
concentração elevada de eletrólitos. É mais frequente em populações
descendentes de caucasianos.

 FISIOPATOLOGIA

-A fisiopatologia da FC gira em torno da mutação no gene CFTR,


explicando os defeitos celulares e as alterações nos diversos órgãos
envolvidos na doença. A proteína codificada pelo gene CFTR forma um
canal iônico permeável ao cloro, que realiza o transporte do íon cloro
através da membrana apical e o interior da célula, sendo regulado por
cAMP, ou seja, regulado por fosforilação.
-A CFTR é essencial ao transporte de íons através da membrana celular,
estando envolvida na regulação do fluxo de cloro (Cl), sódio (Na) e água.
Por meio da membrana apical das células epiteliais com aumento da
absorção celular de sódio, por diferença de gradiente eletroquímico,
resulta em secreção extracelular desidratada e viscosa que se associa
com obstrução luminal, destruição e cicatrização nos ductos exócrinos.
Existem 6 classes de mutações no gene CFTR, que correspondem a um
espectro de aproximadamente 2000 mutações, que se expressam de
formas diferentes.
-Classe I: ausência total de síntese de mRNA; Classe II: bloqueio do
processamento da CFTR no retículo endoplasmático e no complexo
golgiense, com a consequente degradação; Classe III: bloqueio na
regulação da proteína presente; Classe IV: condutância alterada,
reduzindo o fluxo de Cl-; Classe V: síntese da CFTR reduzida a partir
de falha no splicing; Classe VI: degradação precoce da proteína. As
classes de mutações I, II e III são associadas às manifestações graves da
FC (doença clássica), as classes IV, V e VI resultam em fenótipos de
menor gravidade. A mais comum é a F508, classe II.
-As mutações denominadas graves, em que a proteína CFTR funcional
está ausente, estão relacionadas principalmente com insuficiência
pancreática, início precoce dos sintomas, altos níveis de Cl- no suor e
infertilidade masculina. As mutações intermediárias, cujo efeito é mais
sutil na função da proteína ou permitem que uma pequena quantidade de
CFTR funcional seja produzida, são geralmente associadas com suficiência
pancreática, diagnóstico tardio, baixos níveis de Cl- no suor e dano
pulmonar intermediário.
-Nos pulmões, essas alterações levam a um ciclo vicioso de inflamação,
infecção bacteriana, destruição da arquitetura brônquica e surgimento
de bronquiectasias. Além dos pulmões, os defeitos na proteína CFTR
causam disfunções em numerosos órgãos, de modo primário ou secundário:
intestino, pâncreas, ossos, fígado, órgãos sexuais e glândulas com
muitas expressões fenotípicas ao longo da vida.
-Na glândula sudorípara, o canal CFTR evita sudorese extrema ao
recapturar Cl-. Contudo, na FC o cloro é elevado no suor, de modo que
o sódio também o acompanha, o que causa desidratação, deixando-o
salgado. Já na luz intestinal, o mecanismo é inverso, pois o canal
mutado impede a saída do cloro, o que atrai Na+ para a célula e
desidrata o bolo fecal.

 MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

-Deve-se suspeitar de FC nas crianças com história pessoal ou antecedente


familiar sugestivo (nível de cloro elevado e/ou óbitos por doença
respiratória crônica), íleo meconial, doença pulmonar crônica, diarreia
crônica, desnutrição, déficit de crescimento, distúrbios hidreletrolíticos
e isolamento de P. aeruginosa em secreções respiratórias. Com a piora
do quadro, os pacientes apresentam expectoração purulenta, frequência
respiratória aumentada, dificuldade respiratória, cianose periungueal,
baqueteamento digital acentuado e alterações da caixa torácica. Nessa
fase, queixam-se de falta de ar durante exercícios e fisioterapia e,
posteriormente, em repouso. Hemoptises recorrentes, impactações
mucoides brônquicas, ataletasias, empiema, enfisema progressivo,
pneumotórax e fibrose pulmonar estão entre as possíveis complicações.
Na presença de íleo meconial, a pesquisa para o diagnóstico de FC deve
obrigatoriamente ser considerada.
-As vias aéreas superiores são comprometidas em todos os pacientes, na
forma de pan-sinusite crônica, com reagudizações, otite média crônica
ou recorrente, anosmia, deficiências auditivas e rouquidão transitória.
-As manifestações digestivas costumam surgir precocemente, podendo
ocorrer mesmo na vida intrauterina (obstrução ileal, perfuração intestinal
e peritonite meconial). A principal manifestação digestiva da FC é a má
digestão intestinal causando má absorção de nutrientes. Entre múltiplos
fatores que contribuem à má digestão, está a deficiência de enzimas
pancreáticas, inicialmente secundária à obstrução dos dutos por secreção
espessa causada pela ausência ou disfunção da proteína CFTR e,
posteriormente, pela destruição progressiva do parênquima pancreático.
Casos de distensão abdominal, diarreia crônica, com perda de gordura
nas fezes, baixo ganho ou perda de peso e apetite voraz, má digestão e
má absorção intestinal devem ser consideradas.
-A secreção anormal de íons pelo epitélio das vias biliares leva ao
aumento da viscosidade e diminuição do fluxo biliar, predispondo à
obstrução dos canalículos biliares, reação inflamatória, fibrose biliar e
cirrose.
-Importante também mencionar a azoospermia obstrutiva e o atraso na
puberdade.

 DIAGNÓSTICO
-O algoritmo de triagem neonatal para FC no Brasil baseia-se na
quantificação dos níveis de Tripsina Imunorreativa (IRT) em duas
dosagens. A IRT é avaliada no sangue para identificação precoce de
secreção pancreática, provocado pela obstrução dos ductos no pâncreas.
O teste é realizado com amostras de sangue seco (Teste do Pezinho)
usando radioimunoensaio. A elevação de IRT logo após o nascimento não
dá o diagnóstico de FC, uma vez que é um teste muito sensível, mas
pouco específico, ou seja, outros fatores podem causar a sua elevação no
sangue periférico. A elevação transitória nos níveis de IRT pode ser
detectada em crianças normais, já crianças com FC apresentam elevações
persistentes de IRT, por isso a segunda dosagem é realizada. Falsos
negativos também podem ocorrer, estando presente em até 20% dos casos.
-Frente a duas dosagens positivas, faz-se o teste do suor à confirmação ou
a exclusão da fibrose cística. O teste do suor (TS) por meio da iontoforese
quantitativa pela pilocarpina é o teste padrão-ouro à confirmação do
diagnóstico de FC. O TS tem elevadas sensibilidade e especificidade,
baixo custo e não é invasivo.
-As anormalidades do transporte iônico no epitélio respiratório na FC estão
associadas com um padrão alterado na Diferença no Potencial Nasal
(DPN). Uma DPN aumentada, em associação com quadro clínico ou
história familiar positiva, fundamenta o diagnóstico de FC. É recomendado
que a DP nasal seja realizada pelo menos duas vezes em momentos
diferentes. Contudo, essa técnica só está disponível em centros altamente
especializados e requer uma padronização rigorosa. Além disso, há
também um complemento de 2 mutações na CFTR causadoras da FC,
principalmente em casos inconclusivos.
-Outros exames complementares são utilizados para avaliação diagnóstica
inicial, auxiliam na avaliação da gravidade da doença e para planejar
abordagens terapêuticas específicas. Incluem a avaliação da função
pancreática, avaliação funcional pulmonar, avaliação microbiológica
do escarro, avaliação dos seios da face e avaliação gênito-urinária
masculina (azoospermia obstrutiva).

 TRATAMENTO

-A despeito do grande avanço sobre o conhecimento da FC, o tratamento da


doença é baseado no tratamento sintomático e na correção das
disfunções orgânicas. O tratamento pré-sintomático ainda é o mais
indicado para pacientes com fibrose cística, e tem como objetivos adiar as
infecções pulmonares, bem como controlar as deficiências enzimáticas.
-O regime terapêutico padrão à doença pulmonar inclui:
antibioticoterapia, higiene das vias aéreas e exercício, agentes
mucolíticos, broncodilatadores, agentes anti-inflamatórios, suporte
nutricional e suplementação de O2. Embora seja uma doença
multissistêmica, o envolvimento pulmonar é a causa principal de
morbidade e mortalidade na FC. A tomografia computadorizada de
tórax é mais sensível e específica em detectar alterações iniciais que a
radiografia e a espirometria, mas expõe o paciente a doses maiores de
radiação. O Clearence mucociliar realizado por mucolídeos melhoram a
qualidade de vida dos pacientes ao tornar as secreções no pâncreas mais
fluidas. A azitromicina tem demonstrado efeitos anti-inflamatórios
eficazes, dado que modulam a inflamação e diminuem o escarro, os
neutrófilos e superóxidos, por exemplo. Em casos de falência hipoxêmica,
é recomendado o uso de O2.
-Terapia de Reposição Enzimática (TRE) é utilizada desde a descrição
da FC, com enzimas obtidas de pâncreas de porco ou boi. Deve ser
instituída tão logo seja feito o diagnóstico de FC e insuficiência
pancreática, independentemente da idade, mesmo em recém-nascidos.
-A intervenção nutricional deve iniciar-se no momento do diagnóstico e
inclui educação nutricional, orientação dietética, suplementação de
vitaminas e TRE. A orientação deve ser continuada, porque os ajustes na
TRE são frequentes, em razão das alterações da dieta, dos requerimentos
nutricionais com o crescimento e a idade ou com aparecimento de
complicações, como diabetes. Também é importante a suplementação de
sais, principalmente no verão, e das vitaminas A, D, E e K, em
apresentação hidrossolúvel, na condição de insuficiência pancreática.
-Pacientes costumam ser colonizados principalmente por H. influenzae, S.
aureus e P. aeruginosa, e alguns deles são colonizados por bactérias
multirresistentes, como S. aureus e B. cepacia. A infecção por bactérias
multirresistentes é um desafio em nível ambulatorial, em enfermarias e no
contato social entre pacientes e familiares, por isso a higiene é crucial no
controle de infecções.
-A fisioterapia respiratória envolve atividades físicas, prática regular
de esportes e mesmo condicionamento físico regulares que devem ser
introduzidos precocemente e mantidos de forma contínua.
-Ivacaftor é um medicamento modulador do canal CFTR, que o abre,
agindo em mutações classe III, enquanto que o Lumacaftor facilitaria o
processamento, agindo nas mutações classe II. Apesar do primeiro ser
eficiente, o segundo é duvidoso.

 SESSÃO DE OBSERVAÇÕES

-O diagnóstico normalmente é feito em crianças pequenas, até 2 anos de


idade e na maioria das vezes, mais precocemente que isso. Pode ser feito
depois, porém não é comum. Hoje em dia, no Brasil, existe a triagem
neonatal do teste do pezinho que cobre essa doença. Os pacientes
realmente costumam ser emagrecidos por conta da dificuldade em
absorver gordura que possuem. Por isso, é que precisam de dieta
hipercalórica, além de pancreatina e suplementação de vitaminas. O
quadro de obstrução intestinal é comum. Entre outras alterações, ocorre a
formação de muco no intestino, diminuindo seu esvaziamento, levando a
acúmulo de fezes e obstrução.
-Algumas complicações frequentes da Fibrose Cística são: diabetes
mellitus, acidose respiratória crônica e atraso puberal. O íleo meconial
é um sinal forte de que a FC precisa ser investigada, já que em 90% dos
casos esse é o diagnóstico. A infecção por pseudomonas, mesmo quando
assintomática, cursa com importante declínio da função pulmonar desses
pacientes, de modo que deve sempre ser tratada. Por isso realizamos a
coleta de exames a cada 3 meses nesses pacientes. Lembre-se que pacientes
infectados pela pseudomonas costumam apresentar baqueteamento
digital.
-Alteração na secreção de muco que fica retido nas vias aéreas,
propiciando a inflamação e surgimento de infecções. O componente
pancreático da fibrose cística é muito importante, já que dificulta a
absorção de gorduras e vitaminas lipossolúveis por não deixar o
pâncreas liberar suas secreções no intestino. É por isso que muitos
pacientes precisam fazer o uso de pancreatina, complementar vitaminas
lipossolúveis e usar de dieta hipercalórica.
-Queixas mais comuns da fibrose cística: infecções recorrentes das vias
aéreas, necessitando de antibioticoterapia; diarreia, atraso na passagem
meconial no momento do nascimento ou nos primeiros dias após ele e
histórico de obstrução intestinal.
-A FC é uma doença crônica que não tem cura, apenas tratamento. Hoje
em dia, com o tratamento disponível, a sobrevida aumentou bastante,
entretanto é necessário que os pacientes acompanhem a vida todo com uma
equipe de FC. Para fechar diagnóstico é preciso que o paciente possua os
testes positivos e sintomatologia da doença. A pancreatina e as vitaminas
lipossolúveis são medicações que podem compor o tratamento da FC, mas
não devem ser iniciadas antes de se encaminhar o paciente para avaliação
por uma equipe multidisciplinar especializada na doença. Isso acontece
porque alguns pacientes são compensados do ponto de vista pancreático.
-Por estar mais suscetível a infecções respiratórias, esses pacientes devem
sempre ser vacinados, inclusive para influenza anualmente. O teste do
suor possui sensibilidade e especificidade elevadas, entretanto, precisa
ter resultado >60mEq/mL para ser considerado positivo e <30mEq/mL
para ser negativos. Os valores no meio são considerados inconclusivos.
-Lembre-se que exame (Tripsina Imunorreativa) constitui apenas uma
triagem e não serve para diagnóstico. Seu resultado positivo faz com que
seja necessário encaminhar esse paciente para uma equipe
especializada em fibrose cística.

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