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I ns t it ut o

C lin ic a H*ica n i!‘


Ri„.UJ. ÍCÍ)
a N D a m e N to

subva rsos
■PPP^A.:
G L Ó R IA M ARO N E P A U L A BORSOI (ORG.)

U R G Ê N C IA SEM EM E R G Ê N C IA ?

2a e d iç ã o

Rio de J a n e ir o
S u b v e rs o s
2012
C o p y rig h t © S u b v e rs o s e I n s titu to de C lín ic a P sic a n a lític a do R io
de J a n e iro
D ire ito s d e s ta e d iç ã o re s e rv a d o s à E d ito r a S u b v e rso s, 2012

P r e pa r a ç ã o t e x t u a l e r e v isã o
S u b v e rso s

C a p a e p r o je t o g r á f ic o
S u b v e rso s

SUBVERSOS L IV R A R IA E E D IT O R A
E n d e re ç o p a r a c o r re s p o n d ê n c ia :
R u a M a ria E u g ê n ia , 285 - c a s a l, a p to . 201
22261-080 - R io d e J a n e ir o , RJ
te l.: 21 9664 2506
s u b v e rs o s @ s u b v e rs o s .c o m .b r
h ttp ://w w w .s u b v e r s o s .c o m .b r
h ttp ://b lo g d a s u b v e rs o s .w o rd p re s s .c o m /
s u b v e rs o s e d ito ra @ g m a il.c o m

^M354u
2. ed.

M aron, G lória; Borsoi, Paula (O rganizadoras).


U rgência sem em ergência / G lória M aron, Paula
Borsoi. - 2 ed.
rev. - Rio de Janeiro: Subversos, 2012. (A ndam ento)
144 p.; 14 X 21 cm

ISBN 978-85-62062-03-2 (broch.)


1. Psicanálise. 2. U rgência psiquiátrica. 3. U rgência
subjetiva. 4. Saúde m ental. I. M aron, Glória. II. Borsoi,
Paula. III.
Título
CDU 613.86
CDD 150. 195
E x p e d i e n t e - 2008 '

Instituto de Clínica Psic&nalííiea do Rio de Janeiro


(ICP-RJ)

D ir e t o r ia
Romildo do Règo B airos (D iretor Geral)
A nam aria da C osta L am bert
Fernando C outinho
M aria do Rosário C ollíer do Rêgo Barros

C onselho
A na Lucia Lutterbach H olck
Fernando C outinho
G loria M aron
H eloísa Caldas
M anoel Barros da M otta
M arcus A ndré V ieira
M aria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Paula Borsoi

A n d a m e n t o - 2008 A n d a m e n t o - 2012

E d it o r E d it o r
M arcus A ndré Vieira Romildo do Rêgo Barros

E d it o r a s c o n v id a d a s
Glória M aron
Paula Borsoi
N o ta p a ra a s e g u n d a e d iç ã o
Marcus André Vieira 9

A p re s e n ta ç ã o
U rg ên cia, u m n o v o te m p o
Romildo do Rêgo Barros 11

I n tr o d u ç ã o
U rg ê n c ia sem e m e rg ê n c ia ?
Glória Maron 14

O C o ló q m o
A b e rtu ra
Paula Borsoi 31

P a r te í
1. A u rg ê n c ia g e n e ra liz a d a : to d a u rg ê n c ia é u rg ê n c ia
p siq u iá tric a ?
Fernando Sobhie Diaz 36
Marcelo Piquet 40
Edm ar Oliveira 42
C o m e n tário s:
Marcus André Vieira e Hailton Martinelli 49
D eb ate 57

2. A u rg ê n c ia su b jetiv a
Romildo do Rêgo Barros 65
C o m e n tário s:
Dimas Soares Gonçalves e Fernando Ramos 71
D eb ate 77
3. O lu g a r d a u rg ê n c ia n a re d e
Andréa da Luz Carvalho 89
A n a Cláudia Jordão 93
Ricardo Lugon 98
Comentários:
A nam aria Lambert e A driano Aguiar 101
D ebate 104

4. P a ra o n d e e n c a m in h a r: a p o sta n d o n a tra n s fe rê n c ia
K elly Batalha Siqueira 107
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros 110
Viviane Tinoco Martins 113
Comentários:
Rogério Rodrigues e Marcus José M artins 118
D ebate 121

Encerramento
Hugo Fagundes - 123

Anexo
O c o n tin e n te do p r e s e n te
Romildo do Rêgo Barros 127

Parte II
O C am p o F re u d ia n o e a u rg ê n c ia su b jetiv a:
u m a p ro p o s ta de tra b a lh o
P a u sa : u m a p o r ta p a r a a su b je tiv id a d e h o je
Ricardo Seldes 131
P a r a co n clu ir: A n d a m e n to d e u m e n c o n tro
Marcus A.ndré Vieira 136
Mm. ■
N o ta p a r a a s e g u n d a e d iç ã o

Crise, pressa, intervenção, term os-chave n a prática


com as urgências no cam po da saúde m ental que p arecem
se colocar em contradição com a noção de u rg ên cia sub­
jetiva. D e fato, como p e n sa r a urg ên cia do ponto de v ista
do sujeito se ela parece in c lu ir um a dissolução do “si m es­
m o”? Com o deixar correr o tem po apropriado a cada u m
quando um perigo maior, e v en tu alm en te a m orte, traz um
im perativo de ação que p a re c e o m esm o a todos? E mais,
quando a crise esgota as possibilidades de ação in trín seca
e parece exigir a intervenção externa?
O desafio foi lançado pelas organizadoras do evento
“urgências subjetivas” do N úcleo de Psicanálise e Saúde
M ental do ICP, a cargo, n a época, de P aula Borsói e G lória
M aron. Ele co n to u com a particip ação dos m ais variados
interlocutores, todos decididos a en fren tar a u rg ên cia a
p a rtir de seu ângulo clínico: n u n ca fazendo o en cam in h a­
m ento adm inistrativo se so b rep o r ao subjetivo, o u a de­
m anda do m eio apagar a daquele que vive a crise. Em
sum a, n u n c a preferindo o objeto ao sujeito em sua m íni­
m a definição p o r Lacan, a d e alguém que, apesar de desde
sem pre constituído a p a rtir do discurso do O utro, produz-
se, neste discurso, como ru p tu ra e núcleo im pronunciável
de um a histó ria singular.
O volum e que segue é a reedição da publicação que
transcrevia, um pouco m a is tarde, aquele m om ento. Ela
buscava tra z er a um pú b lico m aio r o valo r de aco n teci­
m ento que o en co n tro h a v ia tido p a ra os envolvidos. Ao
que tudo indica, a ap o sta fo i bem sucedida. R apidam ente
esgotada, a publicação te m sido freq u en tem en te citada
e a ela re c o rre m m uitos, to rn a n d o -a referên cia em a s­
su n to tão difícil. P or esta razão , a coleção A ndam ento,
n a fig u ra de seu editor, R om ildo do Rêgo B arros, decidiu
reim prim i-la.
Com o seria de se esperar, os atores daquele evento
se deslocaram em suas tra je tó ria s e posições. D ecidim os,
po rém n ad a modificar, nem m esm o as credenciais in stitu ­
cionais, que situam o a u to r à época do evento, m as que es­
tão hoje, em m uitos casos, desatualizadas. O leitor recebe
o volum e tal e qual foi publicado, com correções apenas
de form a.
A postam os assim, m ais u m a vez, q ue aquele en co n ­
tro m em orável possa ser reeditado n a leitura. P arece-nos
o m elh o r m odo de m an ter-n o s à altu ra de um m om ento
em que a urgência foi abordada como crise que, ap esar
dos riscos envolvidos, pode às vezes valer com o aco n te­
cim ento, m arco zero, p o n to de p a rtid a p a ra novas n a rra ­
tivas.

M a rc u s A n d r é V ieira

0
APRESENTAÇÃO

U r g ê n c ia , um novo t e m p o
R o m ild o d o R êgo B a rro s1

A psicanálise quase sem p re foi vista, neste seu século


e pouco de história, como u m tra tam en to para patologias
crônicas. É o seu lado clássico. Os casos agudos n e m sem ­
p re m ereceram a atenção dos psicanalistas, com algum as
exceções im portantes, com o podem os ler nos trab alh o s
sobre as neuroses de g u erra, sobretudo no final e logo
após a Prim eira G rande G uerra.
De onde vem então o interesse atu al pela urgência,
que é ju stam en te o que p o d e existir de m ais agudo, d e mais
inesperado, de m enos repetitivo, de único? Como p o d e a
urgência interessar aos analistas, se não se m anifesta nela
n en h u m passado, n en h u m a história, m as, pelo contrário,
é vivida pelo sujeito como u m lim ite do que pode co n tar
ou assum ir p a ra si? Como p o d e in teressar aos p sican alis­
tas um sofrim ento que in d ic a ju stam en te um a ru p tu ra na
continuidade da vida?
N ão podem os nos c o n te n ta r com dizer que o nosso
interesse se deve sim plesm ente ao au m en to das d em an ­
das que nos são feitas, ou p e n s a r que atu alm en te existem
m ais acontecim entos trau m ático s do que em outras épo­
cas. Talvez devam os pensar a lé m desses fatores — q u e de
fato contam —, que está oco rren d o um a m u d an ça n a pró-

1. P sicanalista m em bro da Escola B rasileira de P sicanálise (EBP) e da


A ssociação M undial de Psicanálise (AM P); D iretor d o Instituto de Clí­
nica P sican alítica do Rio de Janeiro (ICP-RJ).
p ria experiência do tem po, de tal m aneira que a assunção
p o r parte do sujeito de um lugar estável no m undo está
passando p o r um a dificuldade.
Esta p reo cu p ação n ão é exclusiva da psicanálise.
A idéia de que a v iv ên cia do te m p o está sofrendo u m a
m odificação tem ocupado ig u alm en te m uitos sociólo­
gos, h isto riad o res, filósofos, etc., e todos, ou quase todos,
atribuem a m udança a u m a r u p tu ra de paradigm a, à que­
b ra de u m a re ferên cia universal, que vai do declínio do
pai à falên cia das “m e ta n a rra tiv a s” de que falava Jean -
François L yotard, da crise da tra n sc e n d ê n c ia religiosa ou
política à vacilação n a estabilidade da fam ília, das novas
dificuldades nas relações en tre os sexos às ru p tu ra s n a
sucessão d as gerações.
As novas experiências clínicas e institucionais em
curso na n o ssa com unidade, que se dedicam ao estudo
e ao acolhim ento das urgências subjetivas, bem como as
ofertas de atendim ento com tem po lim itado, que se espa­
lham pelo Cam po Freudiano, tê m com o pano de fundo,
não um a m o d a ou um a ten tativ a de estar up to date, m as
um a sensibilidade p ara as transform ações n a própria ex­
periência do tempo.
A u rg ên cia é o sintom a p rin cip al dessas tran sfo rm a­
ções, que im p õ em um a m udança n a s m aneiras de viver as
dim ensões do passado, do p resen te e do futuro.
É com preensível que a psicanálise se ten h a dedicado
ao longo prazo, ou seja, ao tem po secundário em que os
sintom as se p restam à produção de sentido: é que o tra ta ­
m ento psicanalítico, por.si m esm o, co n stitu i p a ra o sujeito
um a experiência aguda, em oposição ao crônico da sua
história. É u m a experiência que visa, em últim a instância,
conduzir o sujeito a responder pelo que lhe escapa, o que
vai bem além da seriação dos fatos que m arcaram os en-
contíos en tre ele e o O utro, e que deram um a direção ao
seu desejo.
A interpretação, p o r exem plo, que é o m odo de in ­
tervenção característico do psicanalista, é ju stam en te a
irrupção de algo que rom pe com a repetição, e que deve
em princípio trazer algo de novo. Por isso Freud exigia
dela um efeito de surpresa. Jacques-A lain Miller, p or sua
vez, definiu certa vez a su rp re sa com o u m tempo “[...] que
diz respeito a u m m om ento não hom ogêneo em relação ao
restan te do tem po”.2
A cada in te rp re ta ç ã o e x p erim en ta-se a hetero g e-
n eidade te m p o ra l da su rp resa. Se não h á surpresa, não
há in te rp re ta çã o , e, se n ã o h á in terp retação , não h á an á­
lise. A ssim com o o passado que co n ta em psicanálise é o
terá sido, que n o fundo é um a suposição, assim tam bém
o fu tu ro que se abre com cada in te rp re ta çã o é na verdade
um a precip itação . A su rp re sa da interpretação, em vez
de co n stitu ir u m acréscim o p a ra a h istó ria do sujeito, é
um enu n ciad o que de c e rta m an eira o religa à exteriori-
dade do traum a.
O N úcleo de Pesquisa em Psicose e Saúde M ental do
Instituto de C línica PsicanalítiCa do Rio de Janeiro, que
organizou o seu prim eiro C olóquio em torno das ques­
tões suscitadas pelas novas form as de urgência, traz-nos
um a contribuição im portante, ao a b rir u m a discussão que
se to rn o u indispensável. A o m esm o tem po, dá prossegui­
m ento a um certo estilo d e publicações que tem caracte­
rizado o ICP, m arcado p elo esforço de trazer a público os
próprios conteúdos das discussões, além de artigos teó­
ricos, o que exige do leito r que p articip e um pouco mais
diretam ente, com o se o evento que deu origem a este livro
ainda estivesse acontecendo.

2. MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-Rio, 2000, p.


55.
IN T R O D U Ç Ã O

U r g ê n c ia sem e m e r g ê n c ia ?
G ló ria M a ro n 1

N ada há de criado que não


apareça na urgência, e nada
na urgência que não gere
su a superação na fa la .12

P s ic a n á l is e e s a ú d e m e n t a l
“U rgência sem em ergência?” é u m a questão que in ­
teressa não só à com unidade de an alistas com o a todos
os profissionais do cam po da saúde m en tal que direta ou
indiretam ente lidam com situações de u rgência.
Uma das características das situações de urgência é
não ter hora ou lu g ar p ara acontecer, podendo se precipitar
de m odo bastante imprevisível. É p o r incidir sobre o espaço
e tempo, tanto pela vertente das conseqüências do rom pi­
m ento dessa articulação significante q u an to p ela vertente
dos dispositivos p a ra acolher as cham adas situações de u r­
gência, que a questão da urgência tem m erecido destaque
nos Fóruns de discussão da rede pública de saúde3 e n a co­
m unidade de analistas do Cam po Freudiano.

1. Psicanalista m em b ro d a Escola B rasileira de Psicanálise (EBP) e da


A ssociação M undial de Psicanálise (AMP); d o cen te do In stitu to de Clí­
nica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP-RJ).
2. LACAN, J. (1953) “F unção e cam po da fala e d a lin g u ag em ”. In: Es­
critos. Rio de Janeiro: Jorg e Z ahar Ed., 1998, p. 242.
3. Em ju n h o de 2004, n o I C ongresso N acional d o s CAPS realizado em
São Paulo, a u rg ê n c ia foi foco de um debate in ten so . Em dezem bro de
Hoje, no Rio de Janeiro, estam os envolvidos com a
im plantação de p ro je to s que p reten d em tran sfo rm ar o
enquadre oferecido a o acolhim ento e tra ta m e n to da u r­
gência. N este contexto, surgiu a idéia de u m evento e de
u m a publicação que prom ovessem um e n co n tro da saúde
m ental com a psicanálise. Assim, em 20 de m aio de 2005
realizam os o I C olóquio do Núcleo de P esquisa em Psicose
e Saúde M ental do In s titu to de Clínica P sicanalítica do Rio
de Janeiro (ICP-RJ), n o Instituto Philippe Pinei, sob o títu ­
lo Urgência sem Emergência?. A presente publicação con­
d en sa grande parte da viva discussão nele em preendida.
A lém do C olóquio, apresentam os tam b ém contri­
buições que rem etem o le ito r ao estatuto da questão da
urg ên cia no Cam po Freudiano. Com esta publicação pro- I
curam os verificar o e sta tu to atual da u rg ên cia em sua re­
lação com os efeitos d a contem poraneidade e, portanto,
investigada como um do s sintom as a ela articulados.
Em bora considerem os de grande relevância, não
pretendem os aprofundar questões sobre políticas públi­
cas para as urgências p siquiátricas nem sobre a gestão dos
dispositivos dos setores de em ergência. T rata-se tam bém
de u m a oportunidade de estabelecer u m diálogo en tre prá­
ticas calcadas em prin cíp io s universais e a p o lítica de tra­
tam en to orientada p e la psicanálise, que v isa o particular
do sujeito.
Como manejar a u rg ê n c ia em articulação à sua pró­
p ria tem poralidade, ou seja, uma in terv en ção que não
pode ser adiada? Com o, a partir das in terv en çõ es do
analista, produzir efeitos terapêuticos rápidos? Questões
com o essas e outras são debatidas e desenvolvidas nos
textos aqui publicados.

2004, o Sem inário Anual dos C A PS da Secretaria M u n icip al de Saúde


do Rio de Janeiro tomou com o te m a da crise a q u estão d e trabalho,
•convergindo p ara este debate experiên cias e discussões sobre o m ane­
jo d a u rg ên cia nos CAPS.
A URGÊNCIA NA CIDADE
As urgências não têm h o ra nem lu g ar pré-determ i-
nado para seu aparecim ento. Podem os adm itir que elas
caracterizam um rol de m anifestações do que nom eam os
com o um dos índices do “real sem le i”4, que incide tanto
sobre o sujeito q u an to sobre o social.
M uitas vezes, é preciso colocar a p e rg u n ta sobre de
quem é a urgência. Do ponto de v ista da saúde m ental,
não raro a urgência é de ordem pública. Lidam os tam bém
com o sofrim ento subjetivo como resp o sta a um m undo
transform ado pela ciência e pela globalização econôm ica.5
U m conjunto de au to re s6 cham a atenção p a ra os efeitos
de m udança no regim e de crença no O utro e m odificações
nas referências cu lturais que antes o rien tav am e situavam
o sujeito em identificações sociais estáveis.
Verificamos ainda que a noção de u rg ên cia am plia-se
em certa sintonia com a extensão do conceito de trau m a
na contem poraneidade: tudo que não é program ável ou
que escapa a um a program ação p re te n d id a pela ciência
pode ser rapidam ente assim ilado como traum a, a p o n ta n ­
do p a ra um a época que recusa a contingência.7
Q uando abordam os a urgência, é inevitável levar em
consideração tais m udanças no plano da civilização, que
incidem na subjetividade contem porânea. Para tem atizá-
la, tais rem anejam entos do O utro exigem do psicanalista
um a torção da noção de sintom a. Com o assinala Romildo
do Rêgo Barros, a noção da urgência, correlata à da com ­

4. MILLER, J-A. “O real é sem lei”. In: O pção L acaniana - Revista brasi­
leira in tern acio n al de psicanálise, n. 34. São Paulo: Edições Eólia, 2002.
5. BELAGA, G. “P resentación: la u rg ên cia generalizada, la práctica en
el h o sp ital”. In: BELAGA, G. (Org.). La urgência generalizada I. B uenos
Aires: Gram a, 2004, p. 13.
6. J-A. Miller, Éric L aurent, G uillerm o Belaga, en tre o utros, têm ab o r­
dado os rem an ejam en to s produzidos n o O utro social. A m bos os volu­
mes da publicação Urgência Generalizada trazem tex to s que co n tem ­
plam e sta questão.
7. LAURENT, E. “H ijos dei tra u m a ”. In: BELAGA, G. (Org.). La urgência
generalizada I. B uenos Aires: G ram a, 2004, p. 24.
pulsão, im pulso a agir, d e sta c a o que podem os iso lar como
a verten te de repetição d o sintom a, fora do sentido.
Supom os que a n ovidade apresentada e desenvolvida
n e sta publicação reside n o próprio estatuto atual da u r­
gência abordada sob o â n g u lo da m udança na experiência
do tem po, na m aneira de v iv e r o passado, presente e fu tu ­
ro, assim como n a relação do sujeito com o Outro, m odifi­
cações essas que tornam o lugar do sujeito no m undo mais
instável e precário.
A cidade, a polis, que se constituiu como lugar da so­
ciabilidade pública, da civilização, abriga o seu avesso, a
desregulação, que se m anifesta sob diversas m odalidades.8
H á um vasto leque de situações unificadas como urgên­
cias, que se m anifestam p e la via do ato ou do afeto. A gita­
ções, irrupção de atos de violência que culm inam em auto
e/ou hetero-agressividade, alterações súbitas de h u m o r que
se expressam p ela exaltação ou estupor, atos derivados do
consum o excessivo de drogas lícitas ou ilícitas e crises de
pânico são algum as das m anifestações clínicas assimiladas
como urgências. Desse co njunto de fenômenos, u m ele­
m ento com um é a irru p ção do imprevisto, incontrolável,
fora dos recursos com os quais cada sujeito responde aos
acontecim entos d a vida. E stas manifestações têm seus efei­
tos desdobrados tanto na perspectiva do sujeito quanto do
ponto de vista das conseqüências da irrupção maciça destes
fenôm enos no campo social.

A CLÍNICA COMO FIO CONDUTOR DA PRÁTICA INSTITUCIONAL


N o campo da clínica, n o ssa época é m arcada p o r uma
espécie de justaposição. C onvivem os com a clínica psiqui­
átrica e seus rem anejam entos produzidos pelas novas ge­
rações de neurolépticos; a g ran d e difusão do medicamento
psicotrópico para além das categorias da psicose; a extensão
da prescrição dos antidepressivos e a extensão do uso dos
ansiolíticos, suscitando questões quanto à medicalização

8. BELAGA, loc. cít.


maciça de problem as de angústia existencial ou os fenôm e­
nos sociais. C onvivem os tam bém com os efeitos de sistemas
classificatórios calcados na descrição de com portam entos e
respostas aos m edicam entos. As classificações tradicionais
já não respondem e, m esm o no campo da psicanálise, nem
sem pre encontram os respostas n a classificação standard
freudiana. C ontam os ainda com as m udanças produzidas
pelâs sucessivas reform as no cam po da psiquiatria após a
Segunda G uerra M undial que deram origem, som ente para
citar algum as experiências, às com unidades terapêuticas;
a psiquiatria de setor n a França, país que hoje passa por
novas modificações no sistem a de saúde e de seguridade
social; a reform a italiana; e a reform a psiquiátrica brasileira
que, sob forte influência da italiana, rom pe com o paradig­
m a da psiquiatria asilar, criando dispositivos substitutivos
de atenção diária e intensiva de base territorial.9
No Brasil, verificam os, apesar de te n ta tiv as de tra n s­
form ação e im plantação de novos dispositivos p ara aco­
lhim ento das urgências, que os setores de aten d im en to à
cham ada em ergência p siquiátrica foram os m enos p erm e­
áveis a transform ações no seu rfiodo de funcionam ento
e sobrevivem à p a rte dos dispositivos de tratam en to . A
u rg ên cia p ersiste sendo p red o m in an tem en te tra ta d a em
serviços especializados e ainda se co n serv a um modelo
operacional padronizado apoiado n a contenção m ecânica
e m edicam entosa, podendo estar associado ao isolam ento
tem porário. E, principalm ente, são a in d a abordadas den­
tro de um en q u ad re que excluem do sujeito: o p o d er de
decisão, a responsabilidade e o reco n h ecim en to de seu
testem unho.
As urgências no cam po da saúde m ental, acolhidas e
tratad as dentro do enquadre da em ergência psiquiátrica,
são predom inantem ente destinadas a setores especializa­
dos, dissociados dos serviços terapêuticos. A especializa-

9. N o Rio de Janeiro, o serviço de atenção diária e in ten siv a e cham ado


C en tro de A tenção P sicossocial (CAPS).
ção e fragm entação d a s ações in sta u ra m um paradoxo ao
separar as urgências subjetiv as de outras, m as nem p o r
isso recolhem sua especificidade. Som a-se à com plexidade
que envolve essa d iscussão o fato de m uitas v ezes tran s-
form ar-se em u rg ên cia um contin g en te de atendim entos
não absorvidos na re d e básica de saúde.
Nesse campo c o n tem p o rân e o e m u ltifacetado da
saúde m ental, os le ito re s encontrarão p sican alistas e psi­
quiatras situando n a clín ica o fio co n d u to r a s e r conside­
rado na abordagem d a urgência.
A crise e a irru p ção do im previsto o rg an izam a p ró ­
p ria noção de clínica, pois é ex atam en te no q u e rom pe
u m a seqüência que algo do singular te m a ch an ce de se
intro d u zir de form a m a is m a rc an te .101A clínica fundam en- £
taím ente é um tra b a lh o sobre o singular, convocando sua
extração. De certo m odo, esse fio co n d u to r converge para
u m a dim ensão assinalada p o r J-A. Miller: o sujeito emerge
quando se disjunta de u m a classe.11
Q uanto ao arg u m e n to de que n a u rg ên cia não há
p ropriam ente um a d em anda, no m arco da psicanálise de
orientação lacaniana, q u a n d o falam os em u rg ên cia sub­
jetiva, supom os de sa íd a o sofrim ento que se to rn o u in ­
suportável para o sujeito, im possível de ser colocado em
palavras e im agens e isto , p o r si só, como assinala Seldes,
é suficiente p ara to m arm o s a urgên cia com o d em an d a.12

P s ic a n á l is e e u r g ê n c ia
Há um a rede de dispositivos especializados na rede
pública p a ra acolher as urgências. Ao m esm o tem p o , a psi­
canálise é cada vez m a is convocada a in terv ir e m situações

10. Cf. RAMOS, F. A p re se n ta ç ão no I C olóquio do N úcleo de Pesquisa


em Psicose e Saúde M ental, cf. p. 73 desta publicação.
11. MILLER, J-A. “A arte do d iag n ó stico : o rouxinol de L acan ”. In: Car­
ta de São Paulo, v. 10, n. 5. S ão Paulo: E scola B rasileira de Psicanálise,
Seção São Paulo, 2003, p. 18-32.
12. SELDES, R. “L a urgência subjetiva, u m nuevo tiem po”. In: BELAGA,
G. (Org.). Urgência Generalizada I. B uenos Aires: G ram a, 2004, p. 40.
de crise, cham adas u rg e n te s e agudas. C olocam os n o cen­
tro do debate um a o rien tação que se difere radicalm ente
de qualquer tentativa de resp o sta adaptativa que p reten d e
a restauração de u m status quo anterior à em erg ên cia de
um a crise. Visamos isolar n a s coordenadas da irru p ção da
urgência a m arca da singularidade do caso único, além de
in tro d u zir pausa onde vigora o regime da pressa.
Mas, ainda hoje, m antêm -se algum as crenças e p re­
conceitos quanto à aplicação do dispositivo psicanalítico
fora do setting do co nsultório — e, portanto, fo ra das con­
dições standards que caracterizam o enquadre an alítico —,
sobretudo quando envolve urgências. A extensão da p rá­
tica da psicanálise no espaço da em ergência p siq u iátrica
era e, p o r vezes ainda é, concebida como u m a espécie de
v arian te ou subproduto da psicanálise, po d en d o ch eg ar a
ser confundida com algum a técnica de in sp iração psica-
nalítica.
A tualm ente, n a p ersp ectiv a da p siq u iatria e das psi-
coterapias, ainda resiste u m a concepção de que a p sica­
nálise não intervém em situações de crise, a princípio
p o rq u e o sujeito desorganizado e “fora de si” não e stá em
condições de form ular um a dem anda ou e n c a m in h a r um a
questão ao analista. N a m e lh o r das hipóteses, d e n tro de
um a perspectiva p siq u iátrica que valoriza a psicanálise,
o analista pode se oferecer a escutar, mas a esc u ta exige
tem po e organização subjetiva do paciente, am bos in co m ­
patíveis com a situação de crise. Torna-se en tão u m desa­
fio p a ra o psicanalista devolver à escuta sua dim ensão de
ato, separando-a do m ero ouvir, que im pede que o sujeito
advenha. Acerca dessa questão, Cottet tece u m co m en tá­
rio cuja radicalidade vale a p e n a acom panhar:

[...] há uma caricatura que deve ser evitada, a do


psicoterapeuta selvagem como especialista do senti­
do e do psicanalista lacaniano como especialistasdo
nâo-sentido. Uma vez que o sujeito chora ou relata
os maus-tratos sofridos, o caminho seria convencê-lo
de que é masoquista ou de que seu gozo está incluído
no sintom a de que ele se queixa? A situação é mais
complexa do que isso. Será que o sofrimento pode ser
escutado? Escutar o sofrimento humano é algo sádi­
co, pois denota complacência com ele. Não se deve
deixar o sujeito sofrer: ou o tratamos, ou escutamos o
discurso que resulta de seu sofrimento. Não devemos
deixar o sujeito g o za r ambiguamente do sofrimento
que ele expressa em sua fala. Ao contrário, devemos
tentar elucidar algum a coisa nesse espaço esburaca­
do que existe entre a imputação de uma causa, a bus­
ca de uma causa q u e é sempre imputada ao outro, e
o próprio sintoma.13

C om o trabalho teórico-clín ico da com unidade de.


analistas vinculados ao C am po Freudiano, a p resen ça
crescente de praticantes d a psicanálise de orientação laca-
n ian a nas instituições, q u e n ão recuaram diante d a p sico ­
se nem da p rática in stitucional, abriu-se um vasto cam po
de trabalho e pesquisa clínica.
Contudo, a extensão d a prática veio acom panhada da
preservação da especificidade da psicanálise sem dissolvê-
la nos outros discursos q u e circulam na instituição. O psi­
canalista não é u m mero expectador; inclui-se n a prática
institucional para trabalhar com os outros, evitando assim
um a posição segregacionista.
A p rática psicanalítica institucional contribui n a d i­
reção de co rro b o rar que n ã o h á psicanálise aplicada sem
psicanálise p u ra .14 Do lad o do praticante, a aplicação da

13. COTTET, S. “Efeitos te ra p ê u tic o s n a clínica psicanalítica co n te m ­


p o râ n e a ”. In: SANTOS, T. (O rg.). Efeitos terapêuticos na psicanálise
aplicada. C o n tra C apa: Rio de J a n e iro , 2005, p. 28.
14. J-A. M iller, em seu texto “P sicanálise pura, psicanálise aplicada
versus p sico terap ia” (In: Phoenix - R evista d a Delegação P a ra n á da EBP.
C uritiba: D elegação Paraná d a EBP, 2001), ressalta que a g ran d e dife­
ren ça não se e n c o n tra entre a p sican álise pura, que ao final produz

2.
psicanálise in te rro g a a form ação, a tran sm issão e a au to ri­
zação de seu ato. A ação do analista, sua intervenção, tem
algum a chance de ser elevada à a ltu ra de u m ato, do qual
se pode ju lg ar a eficácia graças a seus efeitos do discurso
no real e o alcance obtido sobre o so frim en to do sujeito a
p a rtir do uso das palavras.
Buscam os verificar o enlaçam ento da urgência,
tran sferên cia e em ergência a p a rtir de u m a inversão de
perspectiva. O u seja, n o lu g a r de restau rar, fazer em ergir
algo novo para o sujeito a p a rtir da urgência. Isso só pode
ser obtido caso ela n ã o seja abafada ou tra ta d a a p artir
de um tipo de resp o sta única e padronizada. H á algo na
urgência que pode p ro d u zir um a novidade.

A PSICANÁLISE APLICADA À URGÊNCIA


As urgências são m uitas. Sem pre h á u m m om ento
em que as coisas se p recip itam fazendo com que u m sujei­
to precise de um aten d im en to im ediato. Com o vim os, este
é u m ponto com um que atravessa o debate: a urgência
exige um a intervenção que não po d e ser adiada. Ao m es­
mo tem po, sabem os que h á um a u rg ên cia que é p ró p ria à
experiência analítica, p o d en d o se c o n stitu ir como p o rta
de en trad a de um a análise, bem com o ser provocada pela
própria.
M iller re tira do ensino de Lacan u m a articulação
im p o rtan te que aproxim a urgência e d em an d a de análi­
se: “a função da análise está essencialm ente relacionada,
antes do com eço da análise, com a urgência, ou seja, um a

u m analista, e a psicanálise ap licad a à terapêutica. A q u estão é que a


p sicanálise aplicada à te ra p ê u tic a p erm a n eça psicanálise. A diferença
a se fazer é e n tre a p sican álise aplicada e as psicoterapias, n a m edida
em que são dispositivos que o p eram com a e scu ta e p ela palavra. Di­
feren tem en te da b u sca de sen tid o que é a visad a pelas psicoterapias,
a e sc u ta do an a lista é u m co n v ite a isolar n o sintom a os sígnificantes
sem sentido q u e estão nele capturados. E sta é u m a v ia privilegiada
p a ra aced er ao su jeito e, em ú ltim a instância, ao sintom a.
m odalidade tem poral q u e responde a em erg ên cia do que
faz furo com o tra u m a tism o ”.15 U rgência e tra u m a se en ­
trelaçam no ponto e m que ocorre o ro m p im en to agudo
da cadeia significante,16 equivalendo ao m om en to em que
o sujeito não conta c o m a represen tação sim bólica e im a­
ginária n a qual se ap o iav a, o que configura, assim , um a
situação traum ática.
Nas urgências, e lem en to s non sense se destacam ,
revelando algo da d im e n são da loucura que h a b ita cada
sujeito. Lacan, em seu tex to “Form ulações sobre a causa­
lidade psíquica”,17 já s itu a o dram a da lo u cu ra n o lim iar
en tre sentido e não sen tid o , na relação do sujeito com a
linguagem . Lacan fa la v a então da psicose, m as fornece
elem entos que subsidiam os cham ados sintom as co n tem ­
porâneos. Na m edida e m que o ser falante abriga u m fora
do sentido equivalente à im possibilidade do significante
tudo dizer sobre quem ele é, a questão é v erificar como
cada sujeito pode lidar com essa dim ensão do real. Na vi­
gência da urgência, e n c o n tra -se em jogo aquilo q u e exce­
de o sujeito, im pedindo-o de se reconhecer n a desordem
que o invade, m uitas v ezes levando-o a ten tar se livrar
pela via do ato daquilo que o ato rm e n ta e eleva o sofri­
m ento a um nível insuportável.
A linguagem do h o m e m — este recurso, em q u e o su­
jeito se apóia para criar as ficções que dão enquadre a seu
corpo e a sua existência — é, segundo Lacan, um , in stru ­
m ento de sua m entira, “atravessada de p o n ta a p o n ta pelo
problem a de sua verdade”.18 A questão é saber como aquilo
que exprim e a m entira d e sua particularidade pode chegar
a form ular o universal d e sua verdade.-

15. MILLER, J. A. Seminário de Orientação Lacaniana III, 9 (1) aula de


15 de novem bro d e 2006, p. 7 e 8. Inédito. T radução b rasileira autori­
zada p a ra o S em inário do C o n se lh o da EBP.
16. SELDES, op. cit., p. 32.
17. LACAN, J. “Form ulações sob re a causalidade psíq u ica” (1946). In:
Escritos, Rio de Janeiro: Jo rg e Z a h a r Ed., 1998, p. 166.
18. Ibid., p. 167.
N a perspectiva psicanalítica, estam os falando do sin­
tom a com o m ensagem cifrada e do valor da fantasia como
modo de aproxim ação da realidade, ou seja, a fantasia vi­
sando estru tu ra r a realidade no que tange as relações do
sujeito, seus objetos e o Outro. Mas, nem sem pre o sujeito
conta com este enquadram ento. A urgência ajuda a com­
preender o que ocorre quando esta m ontagem se desarticu­
la e o sujeito perde seu quadro de realidade.
Em u m a época em que a com pulsão ao a g ir prevalece
sobre a palavra, a urgência pode ser u m dos nom es do sem
sentido que vigora na contem poraneidade. Esta publica­
ção p re te n d e contribuir p a ra o m anejo de respostas sin to ­
m áticas que se apoiam m enos no discurso e m ais no agir.
N a urgência, o discurso n ão opera p ara que se e n ­
tenda e que se lide com o sofrim ento que atinge um nível
insuportável p ara o sujeito. Podem os extrair das co n tri­
buições desenvolvidas d u ran te o Colóquio u m m odo de
definir a u rgência pela v e rten te d a suspensão de um a das
dim ensões do sintom a, ou seja, a dim ensão significante,
aquela que rep resen ta sim bolicam ente o sujeito. Tom e­
mos como referência um a das definições de sujeito para
Lacan: u m significante que se faz rep resen tar p a ra outro
significante. Se o significante não se articula, o sujeito não
pode rep resen tar-se e, quando isso ocorrer, ele pode se­
guir pela v ia do acting-out ou a d a passagem ao ato.19
P ara afirm arm os o quadro clínico da u rg ên cia, su ­
p om os a su sp en são te m p o rá ria do tem po e da localização
do sujeito fren te ao O utro. E sta su sp en são te m p o rá ria do
lu g a r do sujeito no sim bólico te m efeitos n o im aginário,
ou seja, incide no corpo, n a n o ção de espaço, de inte-
rio rid ad e e exterioridade, bem com o n a p ersp ectiv a da
identidade individual o u coletiva. Q u an to à tem p o rali-
dade, observa-se n a u rg ên cia um a ch atam en to do tem po:
não h á passado, nem fu turo e se in sta la um a espécie de
p resen te p e rm a n e n te que tende ao infinito. C om o assi-

19. SELDES, loc. cit.


nala R om ildo do Rêgo B arro s, to m an d o com o referên cia
os trê s tem pos lógicos de L acan — tem po de ver, tem ­
po de elaborar, tem po d e c o n c lu ir — a u rg ên cia po d eria
ser e n te n d id a como u m a a n u laç ã o do tem po de elaborar.
N esse sentido, sua p ro p o sta de in terv en ção seria a de re-
in tro d u z ir esse tem po ab o lid o .20
A lém de c o n sid e ra r os e fe ito s da c o n te m p o ra n e i-
dade n o e sta tu to atual d a u rg ê n c ia , p e rg u n ta m o s q u a n ­
do u m a u rg ê n c ia se to r n a su b jetiv a, n a m ed id a em que
ela é u m a n o ção d e riv a d a da p sican álise. Lidam os com
um p a ra d o x o , já que a u rg ê n c ia é o co rrelato do apa-
g a m e n to do sujeito, v ig o ra n d o u m a sep aração ra d ical
e n tre a cad eia sig n ifican te e o gozo pu lsio n al.
Q uan d o estamos falando de urgência subjetiva, a u r ­
gência do sujeito aparece nò intervalo, en tre a dim ensão
m édica e a jurídica.21 A lém disso, a urgência subjetiva re ­
quer u m a operação, um m odo de acolhim ento que p ro d u ­
za o sujeito em ato.
A intervenção da psican álise n a urgência im plica n e ­
cessariam ente rom per a dico to m ia en tre problem a crônico
e agudo, to rnando a in terv en ção do analista um tra ta m e n ­
to sim ultâneo de problem as e soluções. A tem poralidade
da u rgência exige um a m odificação do dispositivo, um a
vez que ele im plica o m an ejo do tem po.22
N esse sentido, M arcus A ndré Vieira propõe arrancar
tem po da própria crise e criar u m espaço subjetivo, p ro ­
pondo, d urante um dos debates do Colóquio, a noção que
foi nom eada de “contrato e m ato ”. Ela corresponde a noção
de intervenção na urgência articulada à idéia de produzir
sujeito, não procurando o singular em um a suposta p ro ­
fundeza do ser (noção vinculada ao senso comum), m as, ao

20. RÊGO BARROS, R. C o n ferên cia p ro n u n ciad a no I Colóquio do N ú­


cleo de P e sq u isa em Psicose e S aúde M ental, cf. p. 40 desta publicação.
21. Op. cit., p. 41.
22. RÊGO BARROS, R. S em inário de F orm ação dos D ocentes do ICP,
o utubro de 2005, inédito.
contrário, com o assinalava Lacan, isolando-o n a superfície
da fala. Em suma, o analista é convocado, ao acolher a u r­
gência, a produzir em ato o sujeito, tom ando sua singula-
rização em sua equivalência a singularização do sintoma.
C ontrariam ente à crença de que a escu ta está associada ne­
cessariam ente ao tem po extenso, é o próprio Lacan que nos
indica um a direção que com patibiliza pressa e psicanálise,
destacando a função da pressa com o potencial de precipi­
tar algo da verdade do sujeito.23
N este sentido, não podem os ach ar que a psicanálise
é um trabalho que só se faz fora da urgência ou que a ação
analítica n ã o tem nada a ver com ela. Ao contrário, o de­
bate d em onstra que a urgência e a intervenção analítica
estão em sin to n ia e u m a pode e n sin a r algo a o u tra .24
Os leitores p o d erão a in d a a co m p a n h a r as conclu­
sões que co n v erg em p a ra a clínica p sican alítica das u r­
gências, com o aquela que faz com que u m a c e rta exte-
rioridade seja reco n h ecid a com o algo que diz resp eito
ao sujeito. O sujeito não pode to m a r a palavra se o real,
a dim ensão que o excede n a u rg ê n c ia, é co m p letam en ­
te externo a ele. N a clínica p sica n a lític a das u rg ên cias a
in terv en ção do a n a lista a p o n ta p a ra a p ro dução da pas­
sagem que vai do excesso p a ra u m a n a rra tiv a su b jetiv a
que in clua o real, com o a p o n ta R om ildo do Rêgo B arros
em sua conferência.
A o ferta de se colocar com o d estinatário n ão anôni­
mo da urgência do sujeito é um dos princípios que n o r­
teiam a p rática do analista em dispositivos convencional­
m ente co ntra-indicados à ação da psicanálise. U m convite
à fala equivale a colocar em m a rc h a o saber n a linguagem ,
ou seja, a tran sferên cia. Assim, ali onde rom pe ou em que
h á a am eaça de rom perem -se os laços sociais do sujeito,

23. LACAN, J. “F unção e C am po da fala e d a linguagem ”. In: Escritos,


Rio de Janeiro: Z ah ar Ed., 1998, p. 244.
24. VIEIRA, M. A. C onferência p ro n u n c ia d a no I Colóquio do N úcleo
de Pesquisa em Psicose e Saúde M ental, cf. p. 28 desta publicação.
a ação do analista v isa in tro d u zir u m a pausa que p o ssi­
bilite reconectar o sujeito ao O u tro . Ou, como nos indica
Seldes,25 a intervenção do analista se o rie n ta por in tro d u ­
zir um tem p o e um lu g a r para a em erg ên cia da dim ensão
subjetiva do indivíduo q u e dem an d a algo, e um tem po de
verificação de sua relação com o inconsciente.
A ação do an alista visa, p o rta n to , a b rir um a brech a
para que um novo laço se estabeleça e u m cam inho novo
se co nstrua a p a rtir do q u e experim en to u como urgência.
Em que recursos o sujeito se a p o ia rá p ara se construir en ­
ganches que perm itam u m a certa o rd en ação e estabiliza­
ção? M ais do que oferecer a escuta p a ra conferir sentido,
o analista se coloca com o parceiro p a ra as invenções que
cada sujeito lança mão p a r a se a p a re lh a r e se haver com o
fora de sentido.

P a r a c o n c l u ir
D estacam os, no d eco rrer d e sta apresentação, um
conjunto de questões e conceitos q u e serão desenvolvidos
no decorrer deste volum e. A urgência, as instituições e
dispositivos de acolhim ento e as in terv en çõ es foram in ­
terrogadas. À psicanálise foi colocada a questão acerca do
estatuto da urgência subjetiva e a ação que se espera do
psicanalista. Relatos e te x to s diversos trazem experiências
que retiram a urgência d e um a ab o rd ag em padronizada e
que exclui o sujeito.
O leitor tam bém p o d e rá verificar com o o questiona­
m ento sobre a in terv en ção na u rg ê n c ia n o contexto do
Campo Freudiano c u lm in o u na criação de u m dispositivo,
cham ado Pausa, que é ap resen tad o aos leitores p or um de
seus fundadores, Ricardo Seldes, a p a rtir de u m relato ins-
tigante. A experiência d a Pausa o p era p a ra transform ar
a urgência em urgência subjetiva e p ro d u z ir efeitos te ra ­
pêuticos rápidos. A p o rta aberta da Pausa ao interrogar

25. SELD ES, R. “ Pausa: U na p u e rta a la subjetividad ho y ”, p. 88 desta


publicação.
a questão do lim iar que separa o in te rio r e o ex terio r do
sujeito urgenciado se constitui com o u m a boa e o p o rtu n a
m etáfora p a ra abordar a urgência subjetiva. C ertam en te
as indicações de Seldes nos ajudarão a ab rir outras p o rtas
e dar acesso a novas m odalidades de acolhim ento e in te r­
venção.26
Enfim , percorrem os definições, cotejam os m arcos te ­
óricos clínicos e operacionais. E speram os que o leito r des­
te volum e desdobre sua leitu ra em três tem pos: os tem pos
de ler, elaborar e concluir, enco n tran d o subsídios que o
auxiliem a resp o n d er ao tem po requisitado pela u rg ên cia
em consonância com a época em que vivemos.

26. SELDES, R. Loc. cit.


i
i

i
I

Parte I
O C O L Ó Q U IO

Abertura1
P a u la B orsoi12

Urgência sem emergência? É com e sta p erg u n ta que


abrim os nosso encontro. U m a p e rg u n ta que nos fez tra ­
b alh ar visando um a separação e n tre u rg ên cia e em ergên­
cia. A s urgências psiquiátricas, situações que cham am os
de “crise”, n ão se m anifestam m ais atu alm en te som ente
pelas descom pensações ou pelo início de patologias co­
nhecidas, como, por exem plo, episódios psicóticos. Essas
m anifestações já não são a regra, exigindo, de quem faz
este trabalho, u m m anejo clínico com expressões sintom á­
ticas variadas, m anifestadas de form a b astan te polim orfa.
D e que m aneira vam os re sp o n d er ao que se apre­
sen ta como desorganizado, caótico e h etero g ên eo e que
re q u e r um a resposta rápida? Esse é o desafio que en fren ­
tam os. É do lugar onde se situ a a resp o sta do profissional
de saúde m ental, ou seja, da posição de o n d e ele responde,
que v irá a m arca da direção da cura.
A psicanálise em a rtic u la ç ã o a o u tro s discursos tem
um a g ran d e c o n trib u ição a d a r no que se refere a um a

1. O p re se n te te x to foi c o n stru íd o a p a rtir da fala de ab ertu ra do I


C olóquio do N úcleo de P esq u isa em Psicose e Saúde M ental do ICP-RJ.
2. P sican alista m em bro da Escola B rasileira de Psicanálise (EBP) e da
A ssociação M undial de P sican álise (AMP); d o cen te do Instituto de
C línica P sicanalítica do Rio d e Janeiro (ICP-RJ); assessora técnica da
C oordenação de saúde m e n ta l p ara a infância e adolescência - SMS
Rio. S upervisora clínica do CAPSi M aria C lara M achado e do Núcleo
de a ten ção à crise do Instituto M unicipal Nise da Silveira.
política de inclusão e de laço social. A co n stru ção de u m
trabalho em equipe — u m a eq u ip e que envolve vários
discursos, onde o que é visado é u m m odo de ab o rd ar a
u rgência que leve em c o n ta o su jeito e suas m an ifesta­
ções subjetivas — é o p o n to fu n d a m e n tal em que o Co-
lóquio Urgência sem Em ergência? se apoiou. O trab alh o
de co n stru ção dessa prática, que se refere a u m m odo de
fu ncionam ento em equipe em que a in stitu ição é o e n ­
quadre, é p o r onde o en sin a m e n to de Lacan p ro d u z um a
abertura, p o r onde convoca e con v id a cada um , an alista
ou não, a d iscu tir sobre o que se en ten d e hoje p o r u r ­
gência.
O analista, sendo um entre outros, dá provas do que
faz colocando em verificação suas hipóteses clínicas e ex­
traindo conseqüências da experiência. E nessa direção que
o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Saúde M ental se
norteia: aprendendo com a prática e a experiência clínica e
tentando extrair daí form alizações.
Sabemos, com Lacan, que o sujeito, quando desco-
nectado do desejo, pode ex p erim en tar u m a v o n tad e im ­
perativa, que podem os n o m ear com o urgência, o que fre­
quentem ente tra z como conseqü ên cia a dissolução dos
laços sociais, deixando-o em u m a m ultidão am o rfa com ­
patível com a dispersão generalizada. Assim, é preciso que
haja, p a ra um a situação b astan te incerta, um a abordagem
precisa.
R eceber u m sujeito n a em ergência, adm iti-lo de fo r­
m a burocrática, eis algo que inclui o sujeito de m odo m u i­
to paradoxal, um a vez que deixa de fora aquilo pelo qual
ele é responsável: seu sintom a. Resta, então, não to m ar­
mos a dem anda de m odo absoluto, não resp o n d er apres­
sadam ente a u m a situação que n ã o p o d erá ser como era
antes porque te rá que necessariam en te incluir esse acon­
tecim ento inesperado. P ara tal, é preciso que aquele que
se expressa de m odo disruptivo, sem controle e m uitas
vezes sem palavras, te n h a a quem se dirigir, alguém v e r­
dadeiram ente im plicado nesse trabalho. E n g en d rar laços
sociais é deixar falar o sin g u lar do sujeito, é p erm itir que
se apresente do m odo que p u d e r se apresentar.3
N essa situação de urgência, onde tudo se desenvol­
ve sem limites, onde a p recaried ad e em que o sujeito se
encontra faz com que as barreiras e o contorno desapare­
çam, é preciso a construção de u m espaço e de um tem po
para que os fenôm enos sejam incluídos no dizer. Trata-se
de trab alh ar com a angústia, com o que escapa ao sentido,
sem querer explicar, e n sin a r ou orientar.
Preservar a particularidade do encontro em u m a si­
tuação de em ergência é p re se rv a r o reconhecim ento do
sujeito, in stau ran d o n a institu ição um a particularidade
contra o ideal. O u seja, n ã o podem os segregar o sujeito
em nom e de u m ideal u n iv e rsal que supõe saber o que é
m elhor para ele. O m om ento em que sobressai a urgência
é quando, de certa form a, o sintom a em jogo faz a pon­
te entre o m ais singular do sujeito e a vontade de estar
incluído na com unidade h u m an a. N ão se pode retirar a
conexão que o singular faz com o social.4
N essa clínica, a m a n e ira com que nos tornam os des­
tinatários do sintom a do paciente, o m odo com que faze­
mos nossa oferta, pode p ro d u z ir algum a diferença. M uitas
vezes, os sinais desse en d ereçam en to são mínimos, incer­
tos e instáveis. É, no e n tan to , preciso prosseguir a té en ­
co n trar um a brecha, u m a ab ertu ra.
O sintom a não é desordem , distúrbio ou m au funcio­
nam ento. Seu sentido p re c isa ser renovado, pois é essa a
possibilidade d a existência da clínica lacaniana em um a
sociedade hiperm oderna, como nos diz o psicanalista
Jacques-A lain M iller:

3. VASCHETTO, E. “U rgências d e la salud m ental”. In: BELAGA, G.


(Org.). Urgência Generalizada I. B u en o s Aires: Gram a, 2004.
4. SELDES, R. “La u rg ên cia subjetiva: um nuevo tiem po”. In: BELAGA,
G. (Org.). Urgência Generalizada I. B uenos Aires: Grama, 2004.
É precisam ente porque não compreendemos como
isso fu nciona — porque não fu n cio n a apertando
botões, seja qual fo r a perfeição diagnostica, a ex­
periência clínica e etc., que passam os nosso tempo
explicando, tentando explicar o que acontece, uns
aos outros e testem unhando sobre isso.5

O C O L Ó Q T JIO

Tenho a h o n ra de ap resen tar a publicação deste Coló-


quio, convidando a todos p a ra a leitu ra do d eb ate ocorrido
naquele dia e a prossegui-lo no cotidiano de cada trabalho.
N a p rim e ira m esa, in titu la d a “A u rg ê n c ia g en erali­
zada: to d a u rg ê n c ia é u rg ê n c ia p siq u iá tric a ? ”, a fala dos
convidados é c o m p artilh a d a p o r m eio da n o ção de que
o m odo de abordagem da crise p ro d u z u m a d iferen ça
im p o rtan te no m o d o de adesão ao tra ta m e n to p o ste rio r
e no g rau de confiança estabelecido e n tre o p acien te, a
fam ília e o serviço. Pode-se re su m ir esta q u e stã o com a
fala de E dm ar O liveira, qu an d o este situ a q u e tal discus­
são toca a q u estão d a responsab ilid ad e dos serviços, em
como tra ta m seus p acien tes q uando esses ap re se n ta m
um a situação de u rg ê n c ia .6
No debate da seg u n d a m esa, “A u rg ê n c ia su b jetiv a ”,
podem os re ssa lta r as tran sfo rm açõ es da a p re se n ta çã o da
crise p siq u iá tric a a b o rd ad a pelos convidados. A questão
da urg ên cia nos nossos tem pos, com o a p o n ta Rom ildo
do Rêgo B arros, v a i além do a ten d im en to p siq u iá tric o e
tam bém da e sc u ta psican alítica, estan d o lig ad a às tra n s ­
form ações no âm b ito da civilização e da cu ltu ra.

5. MILLER, J. A. “U m a fa n ta sia ”. In: Opção lacaniana - R evista B ra­


sileira In tern acio n al de Psicanálise, n° 42. São Paulo: Edições Eólia,
2005, p. 14.
6, Cf. p. 42 d esta publicação.

34
N a terceira m esa, “O lu g a r da u rg ên cia n a rede”, o
debate pode ser ap resen tad o p o r m eio da q u estão sobre o
tem po, trazida por A n a m a ria Lam bert e am plam ente p o n ­
tu a d a ao longo do evento, levando em conta q u e o m odo
com o se aborda a em erg ên c ia estará ligado à suspensão
de u m a resposta rápida. L am bert ressalta a im p o rtân cia
da suspensão de um a re s p o sta im ediata, que j á in tro d u ­
ziría n a urgência um tem po de em ergência em direção à
posição do sujeito d ian te do q u e se queixa. Esta su spensão
pode d ar lugar a invenção de um a resposta do sujeito p a ra
seu sofrim ento.7
N a últim a mesa, “Para onde encam inhar: ap o stan d o
na tran sferên cia”, o deb ate se inicia com u m a questão que
considero crucial: a c o n stru ç ã o da rede n a saúde m ental.
Com o se constrói um a rede levando em co n ta os pontos
de am arração inventados pelo sujeito psicótico, sem se
deixar levar por encam in h am en to s burocráticos? A fala
de K elly Siqueira é esclarecedora, um a vez que p rio riza a
responsabilidade clínica e, p o rta n to , ética, q u an d o aten d e­
m os pacientes. Siqueira afirm a que “o tra ta m e n to de um
sujeito pode requerer d iferen tes dispositivos, o u pode não
ser feito por um só, n e m em u m só lu g ar”, com o a clínica
da psicose nos ensina. O desafio para cada u m de nós, diz
ela, “p assa a ser o de tra n s m itir p ara outros aquilo que nos
cabe quando tratam os de pacientes: trab alh ar p a ra fazer
existir um a rede que p o ssa sustentá-los, pelo m enos nos
m om entos m ais difíceis”.8
V am os à leitura. Faço v o to s de que as consequências
dessa sejam as m elhores.

7. Cf. p. 101 e 102 desta publicação.


8. Cf. p. 107 desta publicação.
1 - A urgência generalizada: toda urgência
é urgência psiquiátrica?

A E M E R G Ê N C IA P S IQ U IÁ T R IC A
F ern ando S obh ie D ia z 1

É possível p a ra a organização dos serviços em saúde


m ental prescin d ir de u m local específico p a ra aten d im en ­
to das urgências? O m unicípio do Rio de Janeiro tem a ca­
racterística singular, não com partilhada p ela m aior parte
dos m unicípios do Brasil, de estar estru tu rad o em pólos
de em ergências psiquiátricas. C om o é de conhecim ento de
todos, são quatro: Engenho de D entro, In stitu to Philippe
Pinei, H ospital M unicipal Ju ra n d y r M anfredini (HMJM) e
C entro P siquiátrico do Rio de Jan eiro (CPRJ). No período
em que trab alh ei com o diretor do HMJM, de novem bro de
2003 a m aio de 2005, a transferência da em ergência psi­
quiátrica desse h o sp ita l para a em ergência geral do H o s­
pital M unicipal L ourenço Jorge esteve em pauta.

A EMERGÊNCIA EM SAÚDE MENTAL NOS HOSPITAIS GERAIS


Podem os refletir sobre as principais questões e in ­
dagações que surgem quando se p en sa o funcionam en­
to de u m a em ergência psiquiátrica em u m hospital geral.
A principal justificativ a favorável e consensual está na
proxim idade de recu rso s clínicos, freq ü en tem en te neces-

1. P siq u ia tra , n a é p o c a d o C olóquio, d o u to ra n d o d a C a sa de O sw al-


d o C ruz d a F io cru z; a tu a lm e n te o c u p a o c a rg o de C o o rd e n a d o r E s­
ta d u a l d e S aú d e M e n ta l d a S e c re ta ria d e E sta d o d e S aúde e D efesa
C ivil - SESDEC-RJ.
sários nos casos de em ergência, tanto p a ra diagnóstico
diferencial q u an to para a necessidade de te rap êu tica clíni­
ca. P o r outro lado, o arg u m en to m ais forte para m an ter a
em ergência p siquiátrica separada das outras especialida­
des está n a possibilidade da criação de u m am biente aco­
lhedor, com espaço e profissionais direcionados p a ra um
sofrim ento específico, lo n g e de acidentados, baleados ou
enfartados.
A saída p a ra este im passe está no posicionam ento
ético que deve m over os profissionais m ilitantes d a refor­
m a psiq u iátrica em curso: a exclusão social. Devemos es­
ta r atentos, no esforço de inclusão, a todas as justificativas
que propõ em espaços isolados e protegidos. A existência
de u m local de referên cia contínua é fundam ental para a
organização dos serviços em saúde m ental, porém , nova­
m ente e de form a ética, tem o s que considerar com o fazer
para que cada vez m enos seja necessário utilizá-lo.
Podemos e devemos incluir novos atores sociais nos
cuidados e na atenção? É possível rom per o histórico de­
sinteresse dos médicos e de outros profissionais de saúde
ao sofrim ento psíquico? Faz parte de nosso m andato tera­
pêutico ser o m ediador p a ra que cada vez m ais o saber psi­
quiátrico deixe de ser herm ético e possa ser com partilhado?
Se essas perguntas são respondidas afirmativamente, como
espero, é preciso estar aten to para que, mesm o tendo con­
quistado o espaço dos hospitais gerais, nossa atenção esteja
voltada para não criar novos espaços segregadores.

U m l u g a r p a r a a u r g ê n c ia
A vançando n a segunda parte da discussão, coloca­
mos a questão: será a em ergência em hospital geral o me­
lhor local para a expressão de um a crise? U m a determ ina- 2

2. O e s ta d o do Rio de Ja n e iro , a té aq uele m o m e n to , não d isp u n h a


de u m se rv iç o d e ssa n a tu re z a , c a b e n d o u m a in te rro g a ç ão s o b re os
m o tiv o s d e ssa n ã o im p la n ta ç ã o e u m a im p o ssib ilid ad e de av aliação
d e s u a efe tiv id a d e n o n o s s o c o n te x to local.
da co rrente defende as v an tag en s de serviços de atenção
diária funcionando 24 h o ra s — possibilitando, com isso,
internações. T rata-se dos CAPS III, previstos em Portaria
do M inistério da Saúde e em funcionam ento em alguns
m unicípios do Brasil.2 E m bora possa p ro d u zir resultados
in teressan tes pelo acolhim ento ju n to a u m a equipe e um
espaço já conhecidos pelo u su ário , retom a-se a questão de
criação de espaços isolados e distan tes dos recu rso s clí­
nicos. D e q u alq u er form a, acredito que h aja consenso de
que os espaços p a ra em ergência nos h ospitais gerais e os
CAPS III têm um papel de com plem entaridade n a org an i­
zação dos serviços em saúde m ental. D ito de o u tra forma,
o CAPS III, m esm o quando im plantado, não faz prescindir
da necessidade da em ergência em hospital geral.
Por sua vez, a im p o rtân cia dos serviços de atenção
diária, os CAPS, nas urgências e crises é estratégica. Tra­
b alh ar situações de crise n o dispositivo do CAPS oferece
dificuldades. A equipe m u itas vezes sente-se am eaçada, o
que acarreta divisões in tern as, estendendo a crise à in sti­
tuição. Nesse sentido, a equipe tam bém tem que se colocar
disponível para vivenciar crises.
C onsidero essencial que em cada CAPS seja pactuado
que aquela unidade tem a responsabilidade de cuidar e as­
sistir os usuários em crise. C om esse princípio pactuado e
transm itido para quem p ro cu ra esse lugar p a ra tratam ento,
o grau de confiança e adesão m uda substancialm ente.
Sem pre que reflito sobre esse ponto, lem bro-m e do
exem plo de um a paciente de A n g ra dos Reis. C om segui­
das internações psiquiátricas, ao p ressen tir que os fam i­
liares cham avam a am bulância p ara retirá-la de casa à for­
ça, ia p a ra o fogão colocar ág u a p ara ferver, ag u ard an d o
enferm eiros e bom beiros. C om a confiança alcançada em
u m a nova form a de tratam en to , passou a ir e sp o n tan ea­
m ente ao C entro de A tividades Integradas em Saúde M en­
tal (CAIS) sinalizar que não estav a bem.
A presença próxim a dos técnicos e da com unidade
que convivia no espaço do CAIS, oferecendo sucessivas
ofertas de escuta e de a ju d a co n creta nos m om entos de a n ­
gústia, determ inou u m a saída do isolam ento e u m a d im i­
nuição da desconfiança. Vem os, com esse exem plo, com o
um o u tro m odo de re sp o n d e r à crise pôde re d im e n sio n ar
a periculosidade e p e rm itir o u tra s m odalidades de e x p res­
são. É preciso apostar que a crise vivida em um am b ien te
coletivo, tolerante ao sofrim ento, p ro d u za tran sfo rm açõ es
na existência desse sujeito.
Paradoxalm ente, a crise é um m om ento privilegiado
para a transform ação de sofrim ento em em ancipação, p e r­
m itindo um crescim ento e u m a m aior autonom ia, in c re ­
m en tan d o seu poder c o n tra tu al. Da equipe, exige-se u m a
m áxim a flexibilidade n a o fe rta de respostas adequadas.
Além disso, ela pode to m a r p a ra si o desafio de tra n sp o r a
crise p a ra os espaços e x tern o s ao CAPS. Possibilitar que a
crise p o ssa se m an ifestar n o s espaços públicos, n a fam ília,
é investir n a continuidade de um a história, em laços afeti­
vos e sociais. É estar a te n to p a ra não criar um a ru p tu ra e
um esgarçam ento a in d a m aio r e irreparável.

A CRISE N A CIDADE
U m a lem brança significativa do período em que
trabalhei em A n g ra dos Reis é o dia de visita dom iciliar.
H avia u m a situação em que p acien tes em crise eram co n ­
vidados a visitar um d eterm in ad o u su ário que n ão saía
de sua com unidade. Iam to d o s à cachoeira, p assear pelo
local. E sta com unidade, b a sta n te resisten te à p e rm a n ê n ­
cia deste paciente em seu am biente, pelas diversas s itu ­
ações que criava, p arad o x alm en te lidava com os o u tro s
pacientes de form a acolhedora. A com panhar sujeitos em
crise nesse espaço p o ssib ilito u m udanças culturais. A
com preensão da com unidade de que u m sujeito em crise
m anifeste-a em espaços públicos é um sinal positivo de
desinstitucionalização d a doença, em oposição a seu sinal
negativo, a desassistência e o abandono de doentes m e n ­
tais, que tanto assusta e causa m al-estar aos cidadãos de
um a com unidade.
Sa ú d e M e n t a l : in t e r l o c u ç ã o d e s a b e r e s
M a rcelo P iq u et3

O tem a p ro p o sto p ara discussão nesse evento, a u r­


gência subjetiva, parece-m e bastante relevante. C om o sa­
bem os, o cam po da saúde m ental no B rasil está em um
m om ento de transform ação em que algum as em ergências
psiquiátricas estão m u d an d o de lugar d en tro da rede. Ti­
ran d o as em ergências agudas — que precisam ser aten­
didas, em sua m aioria, em h o sp ital geral —, discutim os o
que fazer com as outras dem andas que chegam ao serviço
psiquiátrico.
A tualm ente, coordeno a em ergência do C entro Psi­
quiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), um a das quatro d a cida­
de do Rio de Janeiro que constituem os pólos de internação.
Trata-se de u m a em ergência ligada à Secretaria Estadual
de Saúde, sendo as outras três, municipais. Realizamos de
1.200 a 1.500 atendim entos p o r mês, o que resu lta em um a
m édia de 65 aten d im en to s p o r dia.
Desses 65 a ten d im en to s diários, quais seriam consi­
derados em ergências? Tom o aqui em ergência e urgência
com o term os sinônim os que exigem um a in terv en ção que
não pode ser adiada. Sabem os que diante de um a situa­
ção de urgência ou de em ergência não h á com o p ro telar o
atendim ento. N esse sentido, a interlocução da psicanálise
com a clínica psiq u iátrica pode nos servir como referên ­
cia teórica no trab alh o que se desenvolve n a em ergência,
que, como vim os, não é pouco e precisa ser p en sad o con­
juntam ente. Em certa m edida, a psicanálise serve como
parâm etro de trabalho, com o form a de ap rim o rar a escuta.
Psicanalistas ou não, podem os usá-la como referência.

3. P siq u ia tra , e s p e c ia lis ta em p s iq u ia tria p e la UFRJ. N a é p o c a do


e v e n to o c u p a v a a fu n ç ã o de C o o rd e n a d o r d a E m e rg ê n c ia d o C en ­
tro P siq u iá tric o d o Rio d e J a n e iro (CPRJ).
1

U m a e x p e r iê n c ia
Lem bro-m e de uma ex p eriên c ia m u ito interessante.
Logo depois de sair da faculdade, fu i trab alh ar no H ospital
Psiquiátrico de Jurujuba. O tra b a lh o costum ava ser feito
por alguns neurologistas e psiq u iatras antigos, com um a
I visão pouco aberta a m udanças. Logo que comecei, o a te n ­
} dim ento na em ergência e ra feito p o r dois médicos, sendo
que um deles era sempre u m dos m édicos mais antigos.
A equipe, no entanto, cresceu com a en trad a de alguns
psicanalistas.A s m udanças tra z id as pela psicanálise cau ­
saram u m im pacto enorm e. A recom endação era o u v ir o
paciente o tem po que se acred ita sse ser necessário, o que
provocava, algum as vezes, atendim en to s interm ináveis.
Sabemos hoje tratar-se de u m a indicação n o m ínim o in g ê ­
nua, m as na época ela p o ssibilitou m udanças, pois abalou
o m odo m édico então co n stru íd o p ara os atendim entos
psiquiátricos, fazendo com q u e tivéssem os que rep en sar
nossa p rá tic a e nos adaptar a form as pouco usuais à clí­
I nica psiquiátrica da época. Foi polêm ico, m as a direção
do hosp ital su sten to u o desco n fo rto . A prendi, ali, a im ­
portância de p e rm itir ao p a c ie n te a construção de um a
narrativa.

O TRABALHO DAS EQUIPES


As em ergências se p re sta m a to d o tipo de aten d im en ­
to e, com as referências te ó ric as da psicanálise, podem os
coadunar a im portância da o rie n ta ç ã o da categoria d iag ­
nostica com a da escuta. É im p o rta n te d estrinchar o que
está levando aquela pessoa a p ro c u ra r atendim ento p a ra
além do diagnóstico de esquizofren ia, p o r exemplo. A s­
sim, as equipes devem estar p rep arad as não apenas p a ra
in terv ir em caso de em ergências m ais graves, que p o d em
vir a envolver um certo grau de violência, m as tam bém a
intervir em outros tipos de qu eix as que hoje chegam às
em ergências.
Os mais diferentes profissionais integram uma equipe
e os casos devem ser por eles discutidos a fim de que se crie

41
um a orientação m ais ou m enos com um de trabalho. É im por­
tante que cada equipe leve em conta o trabalho de responsa­
bilização do sujeito e a apropriação que ele pode vir a fazer
de seu sintoma. M edicar é apenas um a parte do trabalho.
Nesse sentido, considero preciosa a fundam entação teórica
da psicanálise e a presença dos psicanalistas na emergência,
o que m e fez aceitar o convite para estar nessa m esa e pensar
em conjunto com todos aqui presentes a prática da saúde
m ental n a cidade do Rio de Janeiro hoje. Obrigado.

A E M E R G Ê N C IA . S U B M E R S A : U M A Q U E S T Ã O D E U R ­
G Ê N C IA 4
E d m a r O liv e ir a 5

Em p rim eiro lugar, gostaria de agradecer o convite e


pedir desculpas. Relutei em aceitá-lo, pois situação de u r ­
gência é dirigir u m hospital psiquiátrico hoje n a cidade do
Rio de Janeiro, com a S ecretaria M unicipal n a situação em

4. N o ta a c re s c e n ta d a p elo a u to r e m se te m b ro de 2007
T alvez c a ib a a c re s c e n ta r que u m d esejo firm e m e n te co lo cad o a q u i
foi re a liz a d o d e p o is. H o je a m a io r e m e rg ê n c ia d a A m érica L atin a
n ã o e x is te m ais. N e s te s dois a n o s, d o is serv iço s, o de a te n ç ã o d iá ria
e a e m e rg ê n c ia , s a íra m do h o sp ita l. O s se rv iç o s são, h o je, CAPS em
c o m u n id a d e , a u m e n ta n d o o q u a n tita tiv o re c la m a d o à q u e la época.
A e m e rg ê n c ia e s tá fu n c io n a n d o d e n tro d a e m e rg ê n c ia do P o sto
de A te n d im e n to M éd ico R odolfo R occo, u n id a d e p ré -h o s p ita la r do
m u n ic íp io , n o b a irro d e D el C a stilh o . Isto re fo rç a o p ro je to té c n ic o
q u e a n o s s a d ire ç ã o tin h a p a r a a in s titu iç ã o , o que foi re s s a lta ­
do n a fa ia a q u i re g is tra d a . E, s u p e ra n d o n o ssa s e x p e c ta tiv a s m ais
o tim is ta s , a q u a n tid a d e de caso s, a n te s e m erg en ciais, foi re d u z id a
a m e n o s d e u m q u a r to do q u a n tita tiv o a n te rio r, e n q u a n to a q u a ­
lid a d e c lín ic a a u m e n to u de fo rm a e sp a n to sa . E ste salto p o d e se r
id e n tific a d o n o p rim e iro n ú m e ro d o s A rch ivo s C ontem porâneos do
E n genho de D entro, q u e circu la a p a r tir de o u tu b ro de 2007.
É b o m re v e r o p a s s a d o sab en d o q u e tín h a m o s u m a d ireção e c o n ­
se g u im o s v e r n a re a lid a d e o q u e a n te s e r a so n h o
5. D ir e to r do I n s titu to M u n ic ip a l N ise d a S ilv eira (IMAS).

42
que se encontra. Esta é a m aior urg ên cia que vivo! P o rtan ­
to, não teria tem po de p re p a ra r m in h a fala. Mas vim p a ra
contar alguns casos e conversar. N ão poderia recu sar a
oportunidade de d eb ater a questão da urgência n a cidade
do Rio de Janeiro.
T rabalhei em um serviço de aten ção diária que se
propôs a ser substitutivo. Sou d ireto r de um a in stitu ição
que tem a m aior em ergência p siq u iá tric a da A m érica La­
tina. P retendo, se tiver tem p o e a p re fe itu ra deixar, acabar
com ela, p orque acho u m a form a de atenção das piores
que podem existir.

E m e r g ê n c ia e s p e c ia l iz a d a
O que seria um a em ergência p siquiátrica? Com o sa ­
bemos, não existe em ergência de d o r de barriga ou de e n ­
farto agudo. H á em ergência geral. E m ergência especiali­
zada, só a psiquiátrica. É p a ra lá que são levadas as pessoas
consideradas pelas o u tra s em ergências com o excludentes.
C ostum a-se resp o n d er com a cam isa de força quím ica —
estou caricaturando — q u alq u er destas urgências que es­
tão colocadas n a cidade e que não se caracterizam como
p erten cen tes às outras em ergências. Então, a em ergência
especializada é psiq u iátrica p o r exclusão.
Com o in te rv ir q u an d o chega u m bom beiro com u m
paciente am arrado? A conteceu algo, a n terio r à chegada
do p acien te à em ergência, que levou a essa am arração.
Uma briga familiar, um a confusão dom éstica? N ão sabe­
mos. O u seja, há um a situação psiquiátrica, mas isso não
está em questão quando o paciente chega n a em ergência
contido pelo bom beiro.
O que se co stu m a fa z e r com a q u estão p siq u iátrica
em situações com o essa? D e sa m a rra r as cordas e a m ar­
ra r com H aldol e F energan. E m um a discussão sobre dis­
positivos su b stitu tiv o s, u m a das p rim eiras da luta anti-
m anicom ia! em Porto A legre, u m p a cie n te v iro u -se p ara
os p a rtic ip a n te s e disse: “Vocês discutem , discutem , mas
tudo acaba em H aldol”. B elo resum o d a ópera!
A em ergência reflete to d a essa situação e q u e m tr a ­
b a lh a nela sabe que se p ro c u ra su p rir aten d im en to s am -
bulatoriais, que estão em falta. A em ergência p siq u iátrica
p o r si só já está equivocada em sua concepção, n a m edida
em que serve para a ten d e r a outras dem andas que não são
suas.

O u t r a s respo sta s
Vou c o n ta r alguns casos que m o stram com o se pode
d im in u ir essa questão d a re sp o sta quím ica a q u alq u er
a to que esteja p e rtu rb a n d o o indivíduo. L em bro que o
H o sp ital da Piedade ligou certa vez querendo q ue fosse
in te rn a d o um paciente q u e esta v a am eaçando saltar do
q u a rto andar, um risco de suicídio im inente. P e rg u n te i se
ele tin h a passado p siq u iátrico , ao que m e re sp o n d era m
que não. N inguém sabia, no en tan to , lidar com a situação
e qu eriam que aceitássem os esse rap az em no sso serviço
de em ergência. N a ocasião, estávam os com eçando a fa­
zer u m trab alh o de v isita dom iciliar que en v o lv ia casos
com o esse e, em vez de e sp e ra r que eles v iessem até nós,
p o d e ria m o s ir até eles. P a ra essa situação, escolhem os
u m profissional que e ra m édico, m as sabíam os que ele
n ão m edicaria im e d ia tam en te e em prim eiro lu g a r escu ­
ta ria o que aconteceu.
Esse m édico ch eg a ao H o sp ital da Piedade, con­
v e rsa com o p aciente que com eça a c o n ta r su a h istó ria.
O p a cien te relata que foi in te rn a d o m otivado p o r um a
p n e u m o n ia , que v iro u u m a tuberculose, e era H IV p o si­
tivo. D u ran te a in te rn a çã o , n in g u ém co n v erso u com ele
sobre isso, um a vez que o a ten d im en to estav a c irc u n sc ri­
to ao diagnóstico e tam b ém à alta. M as sua p reo cu p ação
era a form a com que su a m u lh er iria reagir, p o is ela não
sab ia deste fato. D aí o desespero do cidadão. A ação do
m édico foi conversar com a equipe em vez de m edicá-lo.
A m u lh er estava c h eg an d o p a ra v isita e o no sso m édico,
ju n to com o m édico do H o sp ital da Piedade, falaram com
ela sobre o que estav a aco n tecen d o . O resu ltad o foi que
o p a cien te n ão foi para o h o s p ita l p siq u iátrico e h o je sua
m ulher faz tra tam en to em no sso am b u lató rio .6
O utra visita que se fez foi a u m a p acien te da m a te rn i­
dade C arm ela D utra, que é p e rto do hospital. Uma m u lh er
tinha acabado de ter um n e n ém , e n tro u em crise de agi­
tação p sico m o to ra e estava q u eb ran d o tudo na m a te rn i­
dade. D a m esm a forma, se fosse direto p ara a em ergência
psiquiátrica, acabaria sendo in tern an d a. Em vez disso, pe­
dimos que alguém fosse v ê -la n a m aternidade. Foi m uito
interessante esse caso, p o rq u e ao co n trário do outro, essa
senhora estava querendo fu g ir da m aternidade, v isto já
ter vendido o bebê escondido de sua mãe, ou seja, sem que
a avó do bebê soubesse. Q u e ria fu g ir p a ra realizar o que
estava p lan ejan d o e o m édico in terferiu , entendeu q u e o
caso era policial e que se c h am a sse a polícia; ou seja, não
era caso p a ra o psiquiatra resolver.
Se esses dois casos fossem ao hospital psiquiátrico,
certam ente term inariam em H aldol e Fenergan e estariam
nos autorizando a inaugurar um a carreira psiquiátrica p ara
esses pacientes, o que não ocorreu em função de uma form a
diferenciada de agir.

Dà r e s p o n s a b il id a d e d o s s e r v iç o s
U m a o u tra questão é a da responsabilidade dos ser­
viços que tra ta m de seus p a cien tes q uando esses ap resen ­
tam um a situação de urgência. D igo a urgência do nível
da fala, quando o paciente q u e r c o n v ersar com alguém de

6. N e ste m o m e n to , E d m a r O liv e ira é in te rro m p id o p o r u m a p a ­


c ien te d o I. P. P in e i, q u e p ed e p a r a fa la r c o m ele, q u e re n d o o café
situ a d o n a m e s a d o s p a le s tra n te s e d e b a te d o re s:
“D eixa e u a c a b a r d e fa la r e logo c o n v e r s o c o m você.”
“J á e s p e re i t a n to ”, re sp o n d e a p a c ie n te .
“E stá b em , v o c ê q u e r esp erar u m p o u q u in h o ? E sp e ra lá fora.”
“O brigada.”
“Se c h e g a r café, ta m b é m q u e ro ”, diz E dm ar. A p a c ie n te sai p a r a
e sp e rá -lo d o lad o d e fora.
m adrugada e, às vezes, um telefonem a resolve. Se o p a­
ciente tem acesso ao profissional que o atende, isso reduz
m uito o recurso do atendim ento na em ergência. É m elhor
te r acesso ao profissional que o aco m p an h a que direcionar
sua urgência p a ra u m a em ergência, que está fora da rela­
ção de quem conhece o paciente.
Dois casos com o exemplo. No prim eiro, u m paciente
m eu, que a fam ília in te rn a v a no fim de sem ana. T ínha­
m os um serviço de atenção diária que p re te n d ia ser subs­
titutivo — serviço substitutivo que q u e r dizer não usar o
m anicôm io e esse é o desafio. E stávam os tratan d o desse
paciente em u m serviço diário de seg u n d a a sexta, que não
tin h a um serviço 24 horas, como Fernando apontou. Era
um serviço diário de segunda a sexta e a fam ília cism ava
de interná-lo no final de sem ana. Eu dei um papel p ara o
m eu paciente carim bado com m eu nom e, ao qual denom i­
nava “salvo co n d u to ”, que ele ap resen tav a na em ergência
p ara onde era levado. “Sou paciente do Dr. Edmar, p o r fa­
vor, não me in te rn e ”.
F u ncionou b em e a fam ília d e sistiu dessa questão,
m as dizia q u e e ra só ch eg ar a n o ite de sexta-feira p a ra
ele e n tra r e m crise e, p o rta n to , eu tin h a que resolver esse
problem a. C om ecei a lig a r p a ra a casa dele nos finais de
sem ana e p e d ir que não e n trasse em crise, que esperasse
até seg unda-feira. A crise era tra n sfe rid a p a ra segunda
a p a rtir do c o n tra to que fazíam os p elo telefone. Eu me
d isp u n h a a p e g a r m e u telefone, lig a r p ra ele. Isso era
um a deferência, e eu dizia: “Você e stá bem , não vam os
te r essa crise no fim de sem ana, sen ão a sua fam ília vai
te levar, vai in te rn á -lo ”.
Um outro exem plo, para ilu strar o inverso. O pacien­
te chegava ao no sso serviço com a m ala n a m ão q ueren­
do internação. Q uem o recebia falava p a ra ele que estava
bem, Ele dizia: “As vozes estão aqui falando que está p ara
acontecer algum a coisa. C om prei u m som novo e não que­
ro quebrar não. Vou m e in te rn a r antes de quebrá-lo”. Esse
caso não era in ternado, porque o p acien te não era consi-
derado em crise, n a m edida em que a equipe d a em erg ên ­
cia não o acom panhava e n ã o soube avaliar que ele estava
pedindo um a ajuda naquele m om ento.
A em ergência p siq u iátrica que é im pessoal, que não
te m nada a ver com o a co m p a n h a m en to diário do p acien­
te, age p au tad a na p ré -h istó ria da lou cu ra do Foucault. É a
razão contra a desrazão ou a lo u cu ra com pleta c o n tra a ra­
zão. É o seguinte: se o c a ra q u e r ser internado, ele n ão vai
ser internado, e se não quer, ele vai. É a lógica de qualquer
em ergência perversa. Se d is s e r lá que está o uvindo vo­
zes, vão dizer que o p acien te está fingindo. Se c h eg a r com
o discurso contrário, p o d e receber u m a ação direcionada
ao que o paciente está se p ro p o n d o . C onheci u m paciente
que falava das vozes, mas d iz ia que n ão queria ser in te rn a ­
do, que queria apenas p e g a r u m rem édio p ara se acalmar,
pois tin h a que m a ta r o d o n o da voz. Assim, ele enganava o
p lan to n ista da em ergência e conseguia a internação.
A credito que a em ergência psiquiátrica deve ter um
lugar na em ergência geral que possa acolher, dentre os
casos atendidos, casos psiquiátricos, que são poucos. Nós
tam bém avaliam os e atendem os na em ergência psiquiátrica
alguns casos que são clínicos. A unificação das em ergências
dim inuiría a estatística a tu a l de casos tido como psiquiátri­
cos por aportarem em um a em ergência deste tipo.
A m aior em ergência d a A m érica Latina faz 200 a te n ­
dim entos p o r mês. Desses 200, só 20 estão em situação de
em ergência. D esses 20, e n tr e seis e oito são internados.
Dos 20, só dois têm algum a atenção ou em CAPS ou em
am bulatório e 18 são a b so lu tam en te abandonados, não
têm tratam en to em lugar n e n h u m . A em ergência e stá ali
tapando u m furo de um serv iço que está faltando, que é
o serviço de atenção d iária, e da qual ela não p o d e ser
substituta.
G ostaria de concluir falan d o do que é um g rande
desafio p a ra mim, que é a q u e s tã o dos CAPS n a cidade do
Rio de Janeiro. Os CAPS m o s tra ra m p a ra que v ieram , são
serviços excepcionais e s e rv ira m com o efeito dem ons-
trativo, m as estão em um dilem a agora. Vão crescer p a ra
dar c o n ta do te rritó rio ou vão falir com o sistem a que se
está p ro p o n d o ?
Estam os em um a encruzilhada absolutam ente com ­
plicada, p o rq u e o que está acontecendo — e isto é u m a b ri­
ga com quem dirige os CAPS — é que é m issão dos CAPS
ser ordenador de dem anda. O con tra-arg u m en to é que
isso pode a tra p alh a r a m issão do CAPS de cu id ar da sua
clientela no território. Term os poucos CAPS não vai fazer
com que essa m issão ten h a que ser recusada. O que estou
falando é que ou o CAPS torna-se de fato u m serviço subs­
titutivo, ou é m ais um dispositivo m elhorado do hospício.
Tendo em v ista essas questões, trouxe u m a frase do
B enedetto Saraceno que acho in teressan te. Ela é sim ples,
m as não se co stu m a p re sta r m u ita aten ção n a sim plicida­
de. Os conceitos en tu siasm am q u an d o são m u ito com pli­
cados. A sim plicidade do conceito não é ouvida. O que é
reabilitação social? B enedetto define: “co n ju n to de m eios
que são p ro g ram as, que são serviços, que se organizam
p ara facilitar a vida de pessoas com problem as severos e
p e rsiste n te s de saúde m e n ta l”.7 Ele n ão está dizendo p a ra
tratar, e stá falando no co njunto de serviços p a ra facilitar
a vida das pessoas e certam ente a em erg ên cia p siq u iá tri­
ca não é u m serviço que facilita a v id a de ninguém .
M uito obrigado.

7. SARACENO, B. (Org.). Libertando Identidades. Rio de Janeiro: Té-


Cora, 2000.
C o m e n t á r io s
M a rc u s A n d r é V ie ira 8

P ara estabelecer o lugar da psicanálise n este debate


crucial, ajudou-m e m uito u m a expressão que surgiu n as
discussões e n tre colegas do ICP. A situação que devem os
considerar é a do analista com o “u m entre o u tro s”. É a
p a rtir deste lu g ar que me p e rm ito e n u n ciar as questões
que seguem.
Seria de se estran h ar a participação d a psicanálise
em um a discussão sobre as e straté g ia s de aten d im en to das
em ergências no cam po da saúde m ental. A princípio, pelo
m enos n a visão da psicanálise que tem o senso com um , o
analista não trab alh a na urgência, apenas n a calma; não
intervém em crises, apenas em situações m ais ou m enos
estabilizadas.
M eu ponto de partida será o de que urgência e in ter­
venção analítica estão em sintonia, sendo que um a pode
ensinar algo à outra. Isso significa que podem os qualificar
as urgências do cam po da saúde m ental de urgências subje­
tivas — não no sentido de q u e haveria algum as dentre elas
que seriam especificam ente subjetivas, como se apenas es­
tas fossem da com petência d a psicanálise, m as de que todas,
ao menos em tese, poderíam ser abordadas não sob um a
resposta geral, m as de um ângulo que perm itisse um a so­
lução singular, em butida n as coordenadas de sua irrupção.
Para tanto, basta que concordem os com o fato de que
a urgência é um m om ento rico, o que me parece presente
em todas as contribuições q u e acabam os de ouvir. A urgên­
cia não pode e não deve ser sim plesm ente abafada. N ão se
pode e não se deve ter apenas um tipo de resposta p a ra ela.

8. P siq u iatra e p sican alista m e m b ro d a E scola B rasileira de Psicanálise


(EBP) e da A ssociação M undial d e Psicanálise (AMP), atual D ireto r
G eral da EBP. C o o rd e n a d o r da U n id ad e de P esquisa “T erceira m argem
do Rio” do In stitu to de Clínica P sican alítica do Rio de Janeiro (ICP-RJ).
H á algo na urgência que pode produzir u m a novidade, um a
solução singular, eventualm ente, inclusive, p a ra dar conta
do desespero da própria urgência em questão.
Isso posto, gostaria de p ro p o r um desdobram ento
inicial da abordagem da urgência a p a rtir do binôm io te m ­
po x espaço. De fato, podem os ab o rd á-la dando ênfase a
u m ou outro prism a. N os dois casos, vam os n o s encontrar
com um paradoxo.

C r ia r t e m p o ; in v e n t a r e s p a ç o
O prim eiro paradoxo se en u n cia d a seguinte m a­
neira: não é possível e n tra r no ritm o da u rg ên cia para
resolvê-la e, ao m esm o tem po, a u rg ên cia é exatam ente
quando o tem po falta. D ar tem po à crise seria u m a m ara­
vilha, deixá-la falar, ouvi-la e etc., m as sabem os que isto
te m algo de um sonho, de um a situação ideal que m uito
raram en te existirá.
É bem v erd ad e que m uitas vezes a p sican álise ofere­
ce à crise um te m p o e que esse tem p o às vezes ajuda, m as
qu ero in serir m in h a a rg u m e n taç ã o no_ ex trem o oposto
dessa visão. N ão acho que esta é a m aio r co n trib u ição da
p sicanálise — aliás, não acho que isso seja u m a grande
contribuição. N ão p o d em o s nos c o n te n ta r em oferecer
tem po, um a e sc u ta sem p ressa, p o rq u e a crise é rebelde às
nossas ofertas. A lguém se d esesp era e x ata m e n te quando
n ão se h á m ais a possibilidade de esp era, de cren ça em
u m a re sp o sta ou solução que estaria p o r vir. A lém disso,
se é preciso e lim in ar a crise p ara tra tá -la , não estarem os
pro p o n d o u m destin o p a ra a crise, u m a m u d a n ç a a p a rtir
dela, e sim sua erradicação, o que é c o n tra d itó rio com a
idéia de u rg ê n c ia subjetiva.
O segundo paradoxo diz respeito ao espaço. A crise
supõe um deslocam ento no espaço, u m espaço diferente
daquele em que ela se engendrou. C oloquem os com o p ro ­
posição: não h á u rg ê n c ia sem rem oção. N ão quero dizer
que é preciso n ecessariam en te criar u m espaço separado
p a ra o atendim ento das urgências, m as que é preciso sub­
tra ir o sujeito de seu lu g a r p a ra tra ta r a urgência. A crise
supõe que o lugar de o rig em não está servindo mais. É
com o se um a casa, em p len o cam po aberto, tivesse r u í­
do em m eio a um a te m p e sta d e cheia de relâm pagos. N ão
se pode sim plesm ente e sp e ra r p assar a ventania e não se
pode ficar esperando q u e a casa se reconstrua. É preciso
p ro cu rar o u tro abrigo. U m certo deslocam ento n o espa­
ço sim bólico parece im prescindível. O paradoxo ressurge.
Como p ro m o v er um a m u d a n ç a de lu g ar para alguém que
está sem lugar?
Estes dois paradoxos n o s evitam a idéia sim plista de
um a intervenção “zen”, q u e supusesse o problem a em um a
carência de tem po e espaço. N ão é carência o que está em
questão, é o apagam ento da própria possibilidade de re s­
pirar e/ou de deslocar-se. É o que assinala a angústia, até
mesm o em sua etim ologia, que rem ete ao estrangulam ento
e à sufocação. H á algo na em ergência que nos obriga a criar
tem po e g an h ar espaço. N este sentido, é preciso sem pre
introduzir algum a coisa. A lgo tem que ser feito p a ra que
se possa m udar a conform ação da crise e eventualm ente
interrom pê-la.
Parece-m e que vai n e ste sentido a proposta de pen­
sarm os esse tem po a ser g a n h o n a crise com o a introdução
de um a pausa. É preciso c ria r um tem po que não temos
como dar, não só porque n ã o dispom os dele (dadas as cir­
cunstâncias de dem anda g ig an tesca de nossos serviços),
m as p o rq u e a crise não deixa. É preciso arran car este tem ­
po da p ró p ria crise. É preciso ig u alm en te criar um espaço
subjetivo de respiração, e sta b iliz a r algum as posições e fa­
las que situem , em meio a o caos de possibilidades co n tra­
ditórias e posições in su sten táv eis e efêm eras que caracte­
rizam a angústia, um intervalo.

N ã o h á u r g ê n c ia sem r e s p o s t a
Por isso tudo, um terceiro ponto é essencial na urgên­
cia: a resposta. A resposta daquele que se vê diante de uma
urgência subjetiva; pode ser o médico, o analista, quem ali
estiver. Esta resposta é necessária. Tão decisiva que pode­
mos, inclusive, inverter e usá-la para caracterizar a urgência.
Não h á em ergência sem resposta. Se não é preciso agir, se a
situação não nos solicita ao ato, se nos perm ite esperar ou
encaminhar, não é urgência.
O que p ro p o r? O prim eiro encam inham ento, a m eu
ver, seria o de não opor sujeito e sin to m a, não p a rtir da
idéia de que existe u m sujeito oculto em todas as situações
e que estaria, aqui, especialm ente sufocado. Não ad ian ta
fornecer calm a e cuidados, pois o sujeito terá que ser p ro ­
duzido e não libertado.
O universal da resposta não abafa o sujeito, apenas
não consegue produzi-lo. O u n iv ersal n ão é em si o vilão.
Não se tra ta de d u a s ordens distintas, o universal e o p a r­
ticular, pois não h á sujeito fora do coletivo. É im portante
que isso seja assinalado, porque h á u m a certa tendência de
se ler a psicanálise como a d efen so ra d essa idéia p reco n ­
cebida, desse preconceito m en talista de que haveria um
indivíduo fu n d am en tal prim ário.
É como se achássem os que p a ra cada sujeito que nos
chega na u rg ên cia haveria sem pre um desejo m ais p ro ­
fundo a ser descoberto e que esta ria sufocado pela cruel
opressão do vilão cultural. H á sem pre algum a coisa, estou
de acordo, m as não chega a ser u m desej o formulável. H á
algo ali que pode ser trazido, pode ser valorizado, tra n s­
form ado em o u tra coisa, m as não podem os dizer que é
possível co n tar c o m aquilo com o algo a se descobrir em
sua form a prim ária.

SlNGULARIZAR O SINTOMA
Se abrim os m ão dessa posição, podem os en co n trar
coisas in teressan tes em Lacan, especialm ente no que ele
trabalha m ais ao final de seu ensino, em que valorizou,
sobretudo, o sintom a. M elhor ex p lo rar o sintom a como
um m eio de p ro d u z ir sujeito do que opor sujeito e sintom a
como se o prim eiro fosse o reino do sin g u lar e o seg u n ­
do o do coletivo/objetivo. O sujeito nos chega como um
sintom a, nem que seja de an g ú stia. É preciso agir sobre
essa an g ú stia para que n ela se produza um sujeito. É p re­
ciso um a intervenção, alg u m a resposta. No lu g ar de opor
indivíduo/coletivo, sujeito/sintom a, prop o n h o a idéia de
singularizar o sintoma.
H á algo de singular n o sintom a. N enhum deprimido
é igual a outro. Cada um te m um modo p ró p rio de estar
na depressão. É preciso o b te r a singularização dessa de­
pressão. Isso passa por u m a apropriação do sintom a pelo
sujeito. V ê-se o quanto é im p o rtan te se desfazer da oposi­
ção anterior. Se dizemos q u e o sintom a é o oposto do su­
jeito, com o ele vai se ap ro p ria r do sintom a? A o contrário,
m inha p ro p o sta seria a de q u e o sujeito está n o sintoma.
D ois exemplos. P rim e ira m en te , a situação de crise
trazida p o r Fernando. A p a c ie n te está em casa quando
chegam o s bom beiros. A p rin c íp io , ela e sta ria agitada,
resistindo com violência à violência dos bom beiros —
que, p o r s u a vez, tra d u z iría m a violência d a fam ília. En­
tão, teríam o s a violência do individual c o n tra a ten tativ a
de co n ten ção do social. O q u e ela faz? Põe ág u a no fogo.
A gua p a ra jogar nos b om beiros. É quase com o se ela dis­
sesse: “o bom beiro está c h eg an d o com esse fogo todo,
vou jo g a r água n ele”. C erto, m inha form ulação está m u i­
to m irabolante, m as p o r q u e não p ro cu rar n este gesto
algum a co isa que é dela? P o r que água e n ão fogo? Por
que água e não o u tra coisa? Isso é diferente de dizer que
precisam os descobrir o sim bolism o profundo e subjetivo
da água p a ra ela. N ada disso. Devem os to m á-la ao pé
da letra, p o is a p a rtir daí será possível localizar algu­
m a coisa. Talvez, a p a rtir d a água, fosse possível intervir,
seja no p lan o do discurso, in te rro g a n d o esta resp o sta do
sujeito, a água, seja se co lo can d o do lado dos que lidam
com a á g u a e não com o fogo.
A ssistim os a um a dem o n stração deste tip o de in te r­
venção h á pouco, quando u m a paciente in terro m p eu a
fala do Edm ar. Eu estava q u a se m e levantando p ara tirá-la
daqui. Q uando ela disse, de m odo meio gratuito: “Estou
esperando h á ta n to tem po, vou e sp e ra r”. E dm ar retom a
apenas a fala dela e diz: “Então esp era lá fora” e ela vai.
Tom ar ao pé da le tra o que está sendo dito não significa
que é preciso se en ten d e r o que “e sp e ra r” significa p ara
ela, é estabelecer algo que eu cham aria de um co n trato em
ato. Isso m uitas vezes funciona e é o que estou en ten d en ­
do como singularizar o sujeito.
O an alista não é um especialista disso. A experiência
da psicanálise talvez possa, porém , ilu m in ar um pouco a
coisa, esse tip o de faro clínico, essa possibilidade de ga­
n h a r lugar p a ra o paciente em 30 segundos. Isso não é um
saber específico, especializado do analista. Talvez o espe­
cífico seja a m a n eira como ele o teoriza.

C o n tra to em ato
Lacan fala da psicanálise como u m a espécie de p a ra ­
nóia dirigida, conferindo, de certa form a, u m lu g a r de cri­
se à psicanálise. A psicanálise não é u m espaço zen, pelo
m enos do p o n to de vista de Làcan, ela é lu g ar de acelera­
ção e arte.
Encerro a m inha participação neste m om ento re­
tom ando a p ro p o sta de um a m udança de foco que passa
por um a redefinição da escuta. Temos que p en sar a escuta
como escuta ativa, que produz fala ou peg a um a fala pouco
subjetiva e exige que ela se torne m ais subjetivada.
O indivíduo é social, se faz no social, isso sem deixar
de lado algo que é próprio. Difícil p eg ar esse tal de sujeito!
O perigo não é a ênfase colocada no social, m as a m assi­
ficação cega, o autom atism o das decisões, o ato perdido
diante de u m a m edicina de evidências que é apenas “só
faça o que for consenso”. M anter o fogo d a singularidade
aceso nestas condições é m uito difícil. Os m elhores te n ­
dem a ir p ara o nível m acro, p a ra o cam po da política p ara
assegurar um lu g a r p ara o singular. A penas ficamos sem
gente no nível m icro, que não se opõe ao m acro. Um p re ­
cisa do outro. É preciso um fazer que aju d e a in terro m p er
a série de dem andas de m assa em u m a vida.
A idéia de produzir sujeito, to m ar ao pé da letra o
que está sendo dito, não p ro c u ra r o profundo, é estabele­
cer u m contrato em ato. Isso é o que estas três falas tra ­
zem. C ontrato em ato, m u ita s vezes fu n cio n a e é isso que
estou entendendo como sin g u larizar o sujeito. Q ueria ver
o que vocês acham e o q u e a gente pode en cam in h ar a p a r­
tir daí, abrindo a jo rn ad a c o m três falas tão im portantes.

H a ilto n M a r tin e lli9


M arcus A n d ré traz d u a s im p o rta n te s dim ensões —
a tem p o ral e a espacial — que me a ju d a ra m a o rg an izar
alguns pontos. Penso q u e M arcelo coloca a qu estão da
em ergência com o o lugar q u e leva as p esso as à dem anda
e à re sp o sta apressadas. A c h o que um a reflexão in te re s­
sante pode su rg ir daí, a saber, a qu estão do diagnóstico
psiquiátrico.
Sabemos, em bora n u n c a ten h a visto n en h u m tra b a ­
lho nesse sentido, que o d iagnóstico p siquiátrico pode ser
feito, e quase sem pre é feito, nos p rim eiro s m inutos da
entrevista. Fato curioso q u e pode esta n c ar outras possi­
bilidades. A credito que n ã o se tra ta de ficar tanto tem po
com o paciente, não se tr a ta de u m a q u estão de tem po
cronológico, porque re a lm e n te existe u m a pressão da sala
de espera. Hoje em dia é c ad a vez mais possível fazer um
diagnóstico com m aior ra p id e z e m ais efetivo. Até porque
o diagnóstico psiquiátrico se to rn o u m uito m ais simples.

O SABER DA PSIQUIATRIA O N TEM E HOJE


G ostaria de en cadear esse pon to com u m a fala de
Fernando, em que ele co lo ca o saber psiquiátrico como
um saber herm ético. H istoricam ente, os m édicos n unca
tiveram interesse no saber da psiquiatria. A cho que hoje
em dia não é mais assim, a p e s a r do saber psiquiátrico es­
tar cada vez mais banalizado, m ais em pobrecido.

9. .P siq u ia tra e p sic a n a lista c o r r e s p o n d e n te d a E sc o la B rasileira de


P sican álise, Seção Rio, p s iq u ia tr a d a O rd e m T e rc e ira d a P en itên cia.
E nquanto a p siquiatria não tin h a seu estatu to m uito
garantido no discurso da ciência, era quase um a m edicina
de segunda categoria. H istoricam ente ela ocupa u m lugar
estran h o no atendim ento m édico e no in teresse governa­
m ental, pois era u m saber que não tin h a condições de se
encaixar no discurso m édico e que, p o r isso, p recisav a se
apoiar em outros. Então ela surge ten tan d o se ap o iar na
filosofia, n a fenom enologia, às vezes n a psicanálise, o que
era ru im p ara a psicanálise e p ara a p ró p ria psiquiatria.
Em um determ inado ponto, a psiquiatria quis tran sfo rm ar
a psicanálise em u m capítulo das psicoterapias.
O saber psiquiátrico hoje não é m ais tão herm ético. E
m uito m ais um saber sobre m odelos psicofarm acológicos,
e é a p a rtir desses m odelos que se faz u m diagnóstico. H á
um a certa inversão d a construção do saber a p a rtir d a clí­
nica, u m a vez que o saber agora é o do laboratório. Existe
u m m odelo dopam inérgico p a ra a esquizofrenia, u m sero-
toninérgico para as depressões e etc. A p siq u iatria pode
vir a p erecer com o u m cam po p róprio de atendim ento,
pois corre o risco de se diluir com pletam ente n a n e u ro ­
logia. Por outro lado, é evidente que o saber proveniente
da bioquím ica e d a psicofarm acologia não pode ser des­
prezado. São saberes de p o n ta que p o ssu em condições de
produzir novos conhecim entos.

O SINGULAR DE CADA CASO


Tendo isso em vista, com o fica o lugar do psicanalis­
ta n a urgência? A credito que seja um a reflexão valiosa. De
certa form a, a urg ên cia é um lugar quase p u n g en te p ara
que a clínica psiq u iátrica sobreviva com o prática, com o
um cam po m édico que não se dilui com pletam ente no
discurso da ciência, já que ela parece estar cad a vez m ais
incluída no discurso da hiperm odernidade.
É im portante que se te n h a u m a dim ensão das u rg ê n ­
cias em que o singular de cada caso possa advir. A lgum as
vezes é preciso dar-se co n ta de que a u rg ên cia não é do
sujeito, m as da fam ília. M uitas vezes, o m édico indica a in ­
ternação e o paciente não a quer. À s vezes, a família q u er
a internação, mas o médico n ã o . O u tras vezes, o paciente
pede a in tern ação e a família n ão quer, nem o médico. São
situações confusas e delicadas que exigem , a cada vez, um
olhar e u m a escuta específicos.
O que nos faz decidir? O que no s faz decidir por u m a
direção p a ra que tudo não acab e em Haldol com Fener-
gan? D evem os cham ar a a ten ç ã o p a ra a questão de com o
se faz a o fe rta do atendim ento. É isso que pode decidir a
direção do tratam ento.
São essas as questões q u e quis trazer, vam os passar
a bola p a ra frente.

Debate

M a r c e lo P i q u e t
Sobre a questão da ênfase no tem po, posso dizer que
a tolerância que tem os reiativiza as urgências. A capacida­
de de ser to le ra n te faz toda diferença.

Marcus A ndré Vieira


M arcelo tem razão, m as a questão continua: como
agir com tolerân cia quando a urgência, para um sujeito,
é o lugar do intolerável? O ferecer tolerân cia não pode ser
um a resp o sta universal. A p e n as d a r tem po à crise, p o r
exemplo, p o d e ser, em alguns casos, apenas m anter al­
guém mais tem po em contato c o m seu próprio intolerável.
Ê preciso to lerân cia sim, mas p a r a que se possa en co n trar
um p o n to de contato com o d esesp ero em questão. E p ara
isso abrir-se ao encontro é m ais im p o rtan te que o tem po.
Prefiro, portan to , o term o “sin to m a ”, já que quando fala­
mos em sujeito pensa-se logo e m profundidade, que p re ­
cisa de tem po p ara ser vislum brada. É preciso en trar em
contato com o sintom a logo, n o sentid o daquilo que está
mais evidente, maciço, mas que n ão deixa de ser singular.
Comentário da platéia: Adriano Aguiar
A chei im p o rtan te a interv en ção de M arcus A ndré,
pois toca em u m p o n to fun d am en tal que é acabar com
a idéia de que existe um sujeito p ro fundo que póde v ir a
aparecer caso se retire o social e a m edicação. Isto é, aca­
bar com a idéia de que a sociedade coercitiva abafa a lib er­
dade do sujeito, de que liberar coerções faria aparecer u m
sujeito que estaria escondido. E sta idéia atrap alh a e faz o
discurso cair em u m certo m aniqueísm o, procedim entos e
dispositivos do m al e do bem. É fu n d am en tal saber com o
e quando p ro d u zir um corte p ara escapar de acolhim entos
interm ináveis e im produtivos.

F e r n a n d o S o fo h ie D ia z
C o n co rd o que m eu tex to p riv ile g io u a q u estão do
espaço. T ra b a lh o n a ló gica do te rritó rio . A e m erg ên c ia
tem que g a r a n tir a criação de esp aço , espaço de e x p re s ­
são, c ria r e sp aço s novos n a co m u n id ad e. D e slo c a m en ­
to é um a q u e stã o m ais c u ltu ra l. Será que a situ ação de
crise é v a lo riz a d a im a g in a ria m e n te ? A a p o sta é que se
esvazie u m p o u c o isso, p a ra q u e a fam ília ou a c o m u ­
nid ad e a c e ite a crise com m en o s te rro r. Se a crise é u m
m o m e n to de ru p tu ra , tem os q u e a ss e g u ra r o m ínim o de
co n tin u id a d e.
N a fo rm ação m édica, a em erg ên cia p siq u iátrica e stá
separada da em erg ên cia geral e da em erg ên cia em h o s ­
pital geral, esse é u m grande desafio p a ra todos nós. A
época em que tive m ais tra n q ü ilid a d e p a ra tra b a lh ar foi
quando ch eg o u u m p a cien te confuso, com queixa de d o r
de cabeça. Pedi um a to m o g rafia que confirm ou a h ip ó ­
tese de a n eu rism a . Eu consegui falar a linguagem deles
e m eus colegas m édicos p a ssa ra m a m e aceitar m elh o r
na equipe e a ce ita ra m m elh o r a e n tra d a destes p acien tes
psiq u iátrico s. G rande p a rte de n o sso desafio é in te re s ­
sar as p e sso a s que tra b a lh am em h o sp itais gerais pelo
sofrim ento p síq u ico e não ap en as p e la lin g u ag em m é d i­
ca p a ra abordá-lo. N esse caso, a equipe p erceb eu que h á
sofrim entos que devem s e r acolhidos e não ab o rd ad o s
com o um a coisa à parte q u e não cabe a eles.

Edmar Oliveira
H á um a história in te re ssa n te que gostaria de contar
a vocês. Sou de um a cidade do in terio r do Piauí. Até os
m eus 18 anos, a loucura n ã o era u m a questão m édica. O
sargento doido que foi o louco na m in h a in fân cia anda­
va pela rua com a gente, u m a coisa lúdica, o tem p o todo.
N unca ninguém propôs in te rn a r o sargento. P assei a in ­
fância jogando pedra no sarg en to e ele co rren d o atrás de
m im . N unca acertei um a p e d ra e ele n u n c a m e pegou. Era
u m a questão de relações d e n tro da cidade, da fo rm a como
a com unidade se relacio n av a com o seu louco e com o su­
p o rtav a fazer isso.
No entanto, a cidade v a i crescendo e ficando m ais in ­
tolerante. Passa a ser necessário criar u m ap arato que p ro ­
duza um a resposta im ediata, coisas sobre as quais H ailton
ap o n ta com propriedade a o abordar o fato de q u e a p si­
quiatria está sendo elab o rad a no laboratório: o indivíduo
tem um sintom a “x ” e h á u m rem édio “x ” especialm ente
produzido para aquilo.
Q uanto ao que M arcus A ndré falou sobre a questão
da água da m oça citada p e lo Fernando, lem brei-m e que se
fazia isso nos castelos m edievais, ou seja, quando o in im i­
go chegava, o invadido b o ta v a a água p a ra ferver. Jogava-
se água na invasão. N a verdade, você está invadindo a p ri­
vacidade de um a pessoa p a r a pegá-la à força. N os castelos
m edievais era assim. É a ssim que vam os lid ar com isso?
Lembro-me de um a situação. U m a p acien te do Lula
W anderley que não estava querendo to m ar a m edicação
e estava com um neném recém -nascido. Situação com ­
plicada. Nela aprendi com Lula — e agradeço a ele p o r
esse ensinam ento — a in v e rte r o dilem a psiq u iátrico que
era assim: você m edica p ra fazer relação. Lula dizia: “Não,
você faz relação e depois m e d ic a ”. Fom os à casa da pacien ­
te. A prim eira coisa que ela falou após eu p e rg u n ta r se não
estava feliz p o r seu m édico estar em sua casa foi: “Visita
é boa quando se convida”. É verdade. Estávam os lá com
o u tro interesse, não estávam os como visita.
Então, é preciso que peguem os algo em cim a do que
disse essa m oça. Ela não aceitava to m ar o rem édio de fo r­
m a algum a. Lula não q u e ria interná-la. Eu, em ap ren d i­
zado com Lula, percebi algo com o m eu nariz, que é bom.
Percebi que o garoto tin h a feito cocô. Disse p a ra ela:
“A cho que você precisa to m a r rem édio”. Ela questionou:
“P or quê?”. R espondi que ela não estava cuidando do filho.
“C om o não estou? E stou cuidando sim ”. Eu disse: “Está
não, p resta atenção, pois o garoto está cagado”. Sua res­
p o sta foi: “Pode deixar o rem éd io ”.
U m a situação que não precisou cham ar bom beiro,
nem a m a rra r a paciente. É totalm en te diferente a atuação
de crise en tre duas pessoas que se conhecem e en tre dois
desconhecidos. Por isso digo que a em ergência p siq u iá tri­
ca é m uito com plicada qu an d o a situação se dá en tre dois
desconhecidos, tanto p a ra quem está chegando quanto
p ara quem e stá atendendo.

Pergunta da platéia:Renata Martinez


A questão é como fazer um co n trato em ato em um a
em ergência psiquiátrica. Q uando trabalhei em u m a em er­
gência, aparecia lá todo tip o de situação e a m aioria dos
casos acabava em m edicação. N a angústia, o profissional
dispensava o paciente p a ra a intern ação ou p ara casa com
m edicação. Com o não a p ag a r o incêndio? Como lidar com
a a n g ú stia do lado do profissional, que tende a resp o n d er
de m odo im ediato? Com o ab rir esse espaço no serviço p ú ­
blico?

Marcus André Vieira


Temos m il situações em que o sujeito chega e não vai
embora. Quis m arcar a resposta de Edm ar que pegou algu­
ma coisa da fala e estabeleceu um a espécie de contrato em
ato. Pode ser que não funcione da próxim a vez. Precisam os
de u m instrum ento para e n ten d e r a intervenção. De todo
modo, isso abre u m cam po de investigação interessante.
Quais poderíam ser os p o n to s a exam inar para estabelecer
as coordenadas de um e n contro possível?

Pergunta da platéia: Fernanda Dias


Com o lidar com a te n sã o en tre a necessidade de se
criar um a p au sa e a pressão a d m in istrativ a e financeira?

Edmar Oliveira
A em ergência do Nise da Silveira é cham ada Faixa de
Gaza, p a ra onde tu d o vai desem bocar. A questão é: com o é
tra ta d a a em ergência no R io? Joga-se n a em ergência tu d o
o que não se quer. No q u e d ep en d er de mim, esse lugar
vai acabar.
Vou falar dos pólos. C o n stru ím o s coisas em nossas
vidas. A ntes da década de 80, todo posto de saúde d av a
em issão de autorização de in tern ação hospitalar (AIH).
Q uando organizam os os pólos, a p a rtir de um a data só
eles poderíam em itir AIH e no dia seguinte, 40% da d e ­
m anda desapareceu. Do d ia p a ra a noite reduziu a d em an ­
da em 40% e, p o r outro lado, criam os um m onstro: tu d o
vai p a ra o pólo.
Trabalhei em um serviço de atenção diária que ra ra ­
m ente usava a em ergência psiquiátrica. A com panhei u m
caso com risco de suicídio, depressão grave, o que em g e­
ral é levado p a ra a em ergência psiquiátrica. Mas este p a ­
ciente nu n ca tin h a passado p o r um pronto-socorro, a p e ­
sar de ter um q uadro grave. Digo p a ra vocês que a gente
tinha m edo da reação dele n o pronto-socorro. D ecidim os
deixar o sujeito n o Espaço A berto ao Tem po (EAT) com
outro paciente tom ando c o n ta, um p acien te que é m a n ía ­
co, que não deixou o cara sossegar, m as tam bém não d e i­
xou o cara se m atar.
Som os responsáveis p e lo s nossos pacientes. Jo g ar
para a em ergência, que já fa z coisa dem ais, até nos o rg a­
nizarm os, n ão dá mais. Se q u ise re m conhecer um a em er­
gência funcionando, estão convidados a ir ao E ngenho
de D entro. São 200 aten d im en to s por dia e não h á tem po
p a ra grandes coisas a p esa r do esforço das pessoas. Em
um a discussão com o essa, tem o s que adm itir que não há
m ais lugar p ara esta u rg ên cia centralizada, p a ra u m a ten ­
dim ento especializado.

Marcus André Vieira


Encerro m inha p articipação neste m om en to im agi­
nando que gostaria de debater as questões q ue E dm ar traz
m ais concretam ente, m as n ã o tem os tem po hoje, quem
sabe m ais à frente. A p ro p o sta é a de um a escu ta ativ a que
p ro d u z fala, ou tom a um a fala pouco subjetiva e a força
a to rn a r-se m ais subjetiva, ai sim há escuta, é a isso que
estou cham ando de escuta.
O analista não é um especialista. H á q u a lq u er coisa
no lu g a r da psicanálise que é p eg ar as possibilidades que
surgem , esse certo tipo de faro, essa possibilidade de se
to rn a r conhecido em 30 segundos. Não precisa de tem po
para se to rn a r conhecido. V im os como com três ou qua­
tro palavras se estabelece algum a coisa. U m a b oa p a rte do
trab alh o do psicanalista é um a espécie de arte.
A psicanálise não é u m espaço de m editação — pelo
m enos do ponto de vista de Lacan —, a psicanálise é lugar
de aceleração. Mas isso não é u m saber específico, especia­
lizado do analista. Talvez o específico seja a m a n eira como
ele teoriza. Este tipo de saber deveria ser trabalhado, te o ­
rizado, e não deveria ser focado como u m sab er especial.
H á tam bém a idéia de u m contrato em ato. Foi um a
expressão criada h á cinco m inutos. H á algo de in te rv e n ­
ção rio pessoal, no u m a um , e não podem os p e rd e r isso de
vista p ara não cairm os em u m a certa relativização de que
não podem os fazer no público o que fazem os no privado.
H oje a oposição n ã o é a do médico, q u e a g iria n a
m assificação, e do p sica n a lista, h eró i da sin g u larid ad e.
A oposição é m ais do u n iv e rsa l social e da sin g u larid ad e.
O in d ivíduo é social, se faz n o social, isso sem d eix ar
de lado algo que lhe é p ró p rio . M as às vezes esse “algo”
desaparece. E stam os em te m p o s de m assa geral, a sso b e r­
bados de dem anda em q u a lq u e r lugar. O p arad o x o é que
os m elhores clínicos, e ste s que e stã o an ten ad o s p a ra a
m arca de singularidade d o sin to m a, te n d em a ir p a ra o
nível m acro, do p la n ejam e n to e das p o líticas de saúde,
pois é ele que aparece com o o m ais pro p ício p a ra asse­
g u ra r condições para que os e n c o n tro s clínicos p o ssam
se dar de m an eira m ais u n iv e rsa l.
A psicanálise me a ju d a a a cred itar que é quase sem ­
pre possível dar lugar a e ste algo, desde que não o defi­
nam os de antem ão. E o m a io r desafio é criar um corte n a
massa, seja aonde e com o for. O b ter um m eio de in te r­
rom per o desespero a p a rtir dele m esm o. Tal com o um a
análise p ro d u z em um a v id a um a m u d an ça a p a rtir dela
mesma. Então, eu me sinto respo n sáv el p o r in sistir p a ra
que o reto rn o se faça, do plano “m acro ” ou “m icro”, da
instituição de um geral q u e vise o singular.
2. A u r g ê n c i a s u b je tiv a

O .S U J E I T O T E M U R G Ê N C I A ?
R o m ild o do R êgo B a rro s

Quero agradecer pelo co n v ite que m e foi feito p a ra


estar aqui hoje. G ostaria, inicialm ente, de tran sm itir a v o ­
cês um a im pressão que tive lo g o quando cheguei. M inha
im pressão, ouvindo os p a rtic ip a n tes da m esa anterior, é
de q u e não se tra ta v a — o q u e é um sinal m uito in te re s­
sante — de um a discussão interd iscip lin ar, no pior sentido
que pode te r esta palavra. E sse foi o prim eiro sucesso que
constatei. V ieram outros depois.
No seu pior sentido, in terd iscip lin ar q u e r dizer a te n ­
tativa de fazer-se u m som atório das diferentes opiniões,
posições, tendências e orientações. Espera-se, aliás, tra ta -
se de um a esperança sem pre fru strad a , que o p roduto final
seja um a espécie de m édia d a s opiniões e que todo m undo
saia satisfeito — ou in satisfeito — em m edida m ais ou m e­
nos igual.
Este nosso evento p arece-m e um bom exem plo de
um sentido interessan te p a ra a palavra interdisciplinar: o
próprio objeto que está se discu tin d o é, de certa form a,
um produto da discussão. Isso diz respeito à questão do
sujeito. Parece que discutir o sujeito nos term os em que
está sendo discutido* aqui é a o m esm o tem po um a p ro d u ­
ção de sujeito. É diferente de um painel, o u de um a feira
de ciência, em que cada um exp õ e a sua posição — to d as
são legítim as — e o e sp e c tad o r vai ten tar ach ar a m édia ou
escolher a melhor.
A DIMENSÃO SUBJETIVA NA URGÊNCIA
O tem a que G lória M aron e os outros organizadores
deste C olóquio m e p ro p u seram resum e-se a u m a in te rro ­
gação: o sujeito tem urgência? N ão tem os m uito tem po
hoje p ara tra ta r exaustivam ente de u m tem a com o esse,
que m erecería talvez não um sem inário de u m ano, mas,
pelo m enos, várias conferências. D e qualquer form a, gos­
taria de p ro p o r um a o u tra questão, que é derivada da que
m e foi sugerida: de que m an eira a u rg ên cia m anifesta um a
dim ensão subjetiva?
G ostaria de sugerir que p en sem o s sobre a seguinte
idéia: só se pode p e n sa r em sujeito, com ou sem urgência,
a p artir da idéia de que ele difere do indivíduo psicológico,
civil ou jurídico. Ao nos p erg u n tarm o s, p o rtan to , sobre
as urgências subjetivas, estam os n o s referindo a algo bem
particular que exige o saber e a ex periência da psicanálise
p ara se p ô r em palavras.
Q uando se fala em urgência, pensa-se geralm ente em
um leque cujos extrem os seriam, de u m lado, a im inência
da passagem ao ato (o paradigm a do suicídio pode nos ser­
vir como exem plo aqui) e, no o u tro extremo, o afeto (um a
angústia insuportável ou a crise que, de uns tem pos para
cá, a m edicina cham a de síndrom e do pânico, p o r exemplo).
Q uando falam os de urgência, estam os em algum lugar nes­
se leque que vai do ato ao afeto. É claro que, idealm ente,
são duas dim ensões que se negariam : n o limite do ato não
haveria afeto, no extrem o do afeto não haveria ato.
Um sujeito em urgência é aquele que não se m anifes­
ta, em um p rim eiro m om ento, exatam ente com o sujeito.
Q uando se acolhe um a urgência, é necessário um certo
tipo de aproxim ação p a ra que se p o ssa atingir o sujeito, ou
m elhor dizendo, p a ra que o sujeito retom e a fala. Ou seja,
p ara que essa u rg ên cia m anifeste algo subjetivo, como in ­
dica o tem a deste Colóquio, é preciso que quem acolhe
esteja em u m a certa disposição, que costum am os em geral
cham ar de escuta — ap esar de que a sim ples escuta é in ­
suficiente. Exige-se certo tipo de acolhida p ara que, m ais
do que o sujeito se m an ifeste ou se exprim a, produza-se
no ato de ser acolhido. Em um a das dim ensões daquilo
que a psicanálise e n ten d e p o r sintom a, é verdade que se
pode dizer que h á na u rg ê n c ia subjetiva um a espécie de
suspensão do sintom a.
Teríam os, então, d e u m lado, o ato, e de o u tro , o afe­
to, todos os dois elevados a um a espécie de clím ax, o que,
em um dos sentidos da p a la v ra “sin to m a”, dá a im pressão
de que, tan to no ato q u a n to no afeto, existe u m a su sp e n ­
são da dim ensão sintom ática, se ela for en ten d id a como
um a representação sim bólica do sujeito.
Nos term os de L acan, pod eriam o s dizer q ue a u r ­
gência é um a das m anifestações da anulação do tem p o de
com preender, isso p ara aqueles que são fam iliares do e s­
crito lacaniano sobre o tem p o lógico.1 A u rg ên cia indica
um a restrição, um a a n u laç ã o do tem po de com preender.
Parece haver um a certa dificuldade em se falar de u rg ê n ­
cia a p artir da psicanálise. N ão é culpa da urgência, é culpa
da psicanálise. Em que sen tid o ?

A URGÊNCIA N A PSICANÁLISE
U rgência sem pre existiu. Sem pre h á um m om en to
em que as coisas se p recip itam , o que faz com q ue um s u ­
jeito precise de um aten d im en to im ediato. Às vezes, como
no caso de um a am eaça d e suicídio, é u m a questão de vida
ou m orte. A lgum a coisa precisa ser feita e não pode ser
deixada para am anhã. S e rá que existe, igualm ente, algum a
coisa que precisa ser d ita e que não p o d e ser d eix ad a p ara
am anhã?
Os psicanalistas, d esd e sem pre, trab alh am n o cam ­
po da saúde m ental. S em pre houve psicanalistas às voltas
com instituições m édicas, psiquiátricas, educativas etc.
G ostaria de v e r com v o cês se h á algum a novidade nesta
nossa discussão de h o je, n a qual estam os te n ta n d o for-

1. LACAN, J. “O tem po ló g ico e a asserção d a certeza an tecip ad a”. In:


Escritos. Rio de Jan eiro : Jorg e Z a h a r Editor, 1998.
(
çar a psicanálise a d izer algum a coisa sobre as urgências
subjetivas. Com o risco de exagerar um pouco, diria que,
tradicionalm ente, a psicanálise tem se oferecido como a u ­
xiliar da psiq u iatria ou, em alguns casos, com o sua substi­
tuta. Para isso, p en sam o s que sabem os o que é psicanálise
e sabem os o que é psiquiatria.
A psicanálise, com o se costum a dizer, se encarrega
de questões crônicas, e não agudas. O que significa, sim ­
plesm ente, encarregar-se de soluções e não de problem as.
A psicanálise é, tradicionalm ente, um tratam en to das so­
luções, enquanto as urgências psiq u iátricas se ocupam
dos problem as.
O p sicanalista, n o rm alm en te, recebe u m sujeito
p a ra ver se as soluções sintom áticas que ele a rru m o u o
ajudam , com o dizia Freud, a su p o rta r a vida da m elh o r
m aneira. É d iferente quando u m sujeito se a p resen ta
com um a p e rg u n ta p a ra a qual ele não desenvolveu a in ­
da n e n h u m a resposta. O u tra m a n e ira de definir a u rg ê n ­
cia su b jetiv a seria dizer que há u m a su sp en são p ro v isó ­
ria da solução, que h á u m p ro b lem a ap aren te m e n te em
estado puro.
A questão que está nos reu n in d o n esta m esa é a de
como se en ten d e r a u rgência na psicanálise: o que pode
fazer um psican alista em relação à u rg ên cia que não seja
som ente com o auxiliar da m edicina? Em outros term os,
será que podem os p e n sa r em u m a abordagem p ro p ria­
m ente psicanalítica da urgência?
Parece-m e que o prim eiro p asso p a ra se dizer que
existem urgências que são subjetivas, como este Colóquio
está afirm ando, é dizer que existem urgências que são
m anifestações de sujeito. A urg ên cia subjetiva se define,
nesse sentido, com o o estado agudo de um sujeito cuja
questão não se p re n d e diretam ente nem a u m a lesão ou
disfunção no corpo, nem a algum problem a n o cam po da
ordem pública — ou seja, um sujeito que nos traz um a
terceira dim ensão, en tre a dim ensão m édica e a dim ensão
jurídica. A urgência de sujeito e sta ria nesse intervalo.
Uma condição para a acolhida psicanalítica às u rg ê n ­
cias de sujeito é que esse contato, essa acolhida, p ro d u za
algum a coisa, tanto para o su jeito q u an to para o p sican a­
lista, isso é, tan to acarrete um a ch an ce d e modificação n o
sujeito quanto traga u m au m en to , um aperfeiçoam ento do
savoir faire do lado da p sicanálise ou do psicanalista. Isso
me parece essencial. Vocês sab em do que estou falando:
existe entre nós, m esm o tacitam ente, a idéia de que u m
psicanalista pode trab alh ar n a saú d e m en tal sem que n ad a
seja acrescentado ao que já se sa b ia da psicanálise, o que
faz com que ele fique talvez u m p o u c o perdido e n tre a dis-
função do corpo e a dim ensão ju ríd ica, que é basicam ente
a m anutenção da ordem pública, com o escreveu Jacques-
A lain Miller, h á alguns anos, e m um texto sobre a saúde
m ental.2

Um a t o r ç ã o n a n o ç ã o d e s in t o m a
O que é que nos perm ite p re te n d e r um a abordagem
da urgência subjetiva com os recu rso s da psicanálise?
Essa abordagem som ente é possív el se existe u m a torção
na noção de sintom a. Se só se p e n s a no sintom a com o so ­
lução, o psicanalista não tem n a d a a ver com as urgências
subjetivas. Ele teria apenas, com o se fazia antigam ente —
ou, pelo m enos, como p e n sa m o s atualm ente que se fazia
—, que esperar no consultório q u e esse problem a se to rn e
crônico, quando, então, um a an álise se to rn aria possível.
Para dizer ou pensar que há alg u m a coisa p ara ouvir no
próprio tem po agudo do p ro b le m a da urgência, é preciso
pensar que houve um alarg am en to , u m a modificação n a
noção de sintom a. Essa seria, n o m eu entender, a m aneira
de se pensar um a abordagem p ro p riam e n te psicanalítica
no plano das urgências.

2. MILLER, J-A. “Santé m en tale et o rd re p u b lic”. In: M ental - Revue


in tern acio n ale de santé m en tale e p sy c h a n aly tic appliquée, 01/1997,
n° 3. B ruxelas, 1997.
É o que p erm ite que o psicanalista reco n h eça que há
sujeito na urgência. Se h á nas urgências u m a suspensão
de um a das dim ensões do sintom a, da su a dim ensão crô­
nica, não h á suspensão do sintom a no sen tid o que está
sendo discutido h o je aqui, ou seja, como u m equivalente
do sujeito.
É preciso que o sintom a não seja v isto sim plesm en­
te com o um a posição p erm an en te do sujeito, da qual ele
foge de vez em quando, nas urgências. V ocês sabem que
a palavra “urg ên cia” se origina de um v erb o latino, urge-
re, que quer dizer e m p u rra r ou compelir, p alav ra da qual
se originou o term o “com pulsão”. O sujeito é em purrado
na com pulsão, e o p sicanalista só pode se in te re ssa r tanto
pela urgência q u an to pela com pulsão se tiv e r algum a coi­
sa a dizer sobre o q u e em p u rra o sujeito. E, n atu ralm en te,
só terá algum a coisa a dizer sobre o que e m p u rra ou com ­
pele o sujeito se o q u e o em p u rra se tra ta r tam b ém de um a
dim ensão subjetiva.
A com pulsão é aquilo que leva o sujeito a fazer algo
que não quer. É interessante n o ta r que essa é um a defini­
ção possível do inconsciente freudiano, que tam bém leva o
sujeito a fazer o que não quer. Um a clínica psicanalítica das
urgências é aquela q u e faz com que um a certa exterioridade
possa ser reconhecida como algo que p erten ce ao sujeito,
algo que diz respeito ao sujeito. Sem isso, não h á lugar para
um a acolhida propriam ente psicanalítica às urgências, ou
seja, não existem urgências subjetivas.
É necessária, portan to , um a transform ação na noção
e na com preensão do q u e é u m sintom a. É evidente que h á
experiências clínicas e institucionais mais o u m enos bem-
sucedidas no m undo. M as, de qualquer form a, é um desafio
novo, que pertence à nossa época. Não se tra ta simples­
m ente da contribuição dos psicanalistas, que são médicos,
psicólogos etc., no cam po da saúde mental, m as de tentar,
com os recursos da psicanálise, extrair deste cam po aqui­
lo que pode ser reconhecido como propriam ente subjetivo,
entendendo como subjetivo e como urgente o que escapa
tanto das lesões e disfunções corporais quanto da dim ensão
jurídica.
Isso não se deve, evidentem ente, a n en h u m m érito
especial do psicanalista, m as a u m a transform ação d a m a ­
nifestação subjetiva no m u ndo, n a cultura, n a h istó ria —
transform ação que, é bem verdade, foi, em parte, efeito da
existência da psicanálise. O psicanalista vai dem o n strar se
é ou não capaz de acom panhar — pois se tra ta de um m ovi­
m ento que não começou co m ele — a idéia de que é possível
se ocupar eficientem ente d e problem as, e não só de solu­
ções, que é o campo tradicional da clínica analítica.
V ou p a ra r p o r aqui, p a r a d a r tem po de co n v ersarm o s
um pouco.

C o m e n tá rio s

Bimas Soares Gonçalves3


M eu percurso na saú d e m e n ta l é basicam ente o das
em ergências. Sou o p ró p rio fórum das em ergências, p a s ­
sei p o r todas do Rio de Janeiro. E n ão é p o r acaso, é u m a
opção. U m a opção de que a li h á algo a ser dito, escutado
com o diferença.
A psiq u iatria está sen d o obrig ad a a dialogar com a
m edicina, de onde ela saiu sem pre como u m a filha u m
pouco rebelde. E, p o r outro lado, é p ressio n ad a a dialogar
com um a série de outros disp o sitiv o s que estão q u estio ­
nando o p ró p rio saber m édico. Essa ten são é de difícil m a­
nejo e exige criatividade c o n stan te.
P artindo disso, posso s itu a r que é um a questão é ti­
ca o que m ais me perturba na p e rg u n ta se o sujeito tem
urgência — e que p erturba e n q u a n to sou alguém que a tu ­
alm ente e stá n a qu arta em erg ên c ia psiquiátrica, pois já

3. Em 2005, D ire to r do H. J u ra n d y r M an fredini; atualm ente p siq u iatra


do C en tro d e A tenção Psicossocial In fan to -Juvenil (CAPSi) M aria Cla­
ra M achado, S ecretaria M unicipal do Rio de Janeiro.
passei pelo Pinei, pelo N lse da Silveira, onde exerci che­
fia, pelo CPRJ e, agora, e sto u no M anfredini. Essa questão
ética abre outras p a ra a psiquiatria e p a ra a psicanálise,
sobretudo no que tange ao sujeito na em ergência.

A c r e d it a r n o s u j e it o
A angústia que sem pre me aco m p an h o u foi a de es­
ta r em um a posição em que falo pela vida de alguém . Ao
contrário da em ergência m édica geral, n a psiquiátrica, na
estúpida m aioria das vezes, o paciente n ão quer ser a ten ­
dido. Q uem quer é o bom beiro, a polícia, a sociedade. E
nós somos cham ados a q u e re r com eles.
D izem os que feriado é FQI (fam ília querendo inter­
nar), pois os aten d im en to s dobram ou triplicam . E fico me
p erg u n tan d o acerca da m in h a posição. A tu alm en te tem os
in stru m en to s n a em ergência p a ra aco m p an h ar esse dado,
com as notificações de internação v o lu n tária e in v o lu n tá­
ria. As involuntárias têm que ser notificadas ao M inistério
Público. A m aioria, 90% ou 95%, é involuntária. Q uem de­
cide, neste caso, é a sociedade.
Um p o d er que é dado ao médico, a saber, o de dizer
p o r meio de u m diagnóstico: “Você não é, neste m om ento,
sujeito da sua vida, n o sentido jurídico. E a m im foi outor­
gado oficialm ente o direito de falar p o r você, de dizer o
que você p recisa”.
T rata-se de u m a e te rn a ang ú stia p ra m im e a p e r­
g u n ta que m e faço é: como é escutar esse sujeito que está
sendo assujeitado pela m in h a prática? U m a das soluções
p a ra isso é a p o n tu a çã o feita por A driano em cim a da fala
do M arcus A ndré. N ão a ch a r que vam os re tira r tudo para
achar um sujeito e pod erm o s escutar. T enho que acreditar
no sujeito, m esm o que contido, m edicado.

HÁ OUE DIZER ALGO


A segunda questão é o m edo que te n h o do term o “es­
c u ta ”. Se se tra ta apenas de ouvir, acho que podem os estar
um pouco equivocados. E scutar não é sim plesm ente p arar
em silêncio p ara ouvir o o u tro tagarelando. Às vezes, a
pessoa não fala nada. Ela g rita, atua, q u ebra o seu c o n su l­
tório. Se tem os u m a posição de e n ten d er que, ap esar de
assujeitado à m inha vontade, h á que dizer algum a coisa,
m esm o que por m eio disso, aí podem o s e star fazendo algo
diferente.
N essa hora — não sou p sicanalista, m as leio, faço su ­
pervisão —, não há como ficar escutando. Existe a c h a ­
m ada pressão de demanda. P osso te r um a posição ap en as
m édica, m as acho que o que a psicanálise traz é a possibi­
lidade de estar em outro lu g a r e acred itar que, apesar de o
paciente estar assujeitado à m in h a jurisdição, ele tem algo
a falar p o r m eio do sintoma, da atuação. A postar que ele
tem algo a falar m esm o na in te rn a çã o , com contenção q u í­
m ica e física. Pode-se ter u m a diferença aí ao se p e rg u n ta r
“o sujeito tem urgência?” e a o se in v erter a perg u n ta: a
urgência tem sujeito?

Fernando Ramos4
A credito que nosso p o n to de partida, conhecendo a
organização do evento, é d ia le tiza r três pontos: a in s ti­
tuição, a psicanálise e as p ossíveis questões que fo rm am
esse triângulo. Talvez a fo rm a de en trad a m ais in te re s­
sante p a ra p e n sa r a questão d a em erg ên cia e da u rg ên cia
seria p en sá-la como uma q u e stã o clínica p o r excelência. E
a clínica com o fio condutor q u e p o d e nos fazer dialetizar
esses três elem entos.
C om eçando pela questão institucional, podem os d ei­
xar, em um prim eiro m om ento, p siq u ia tria e psicanálise
no cam po da clínica e e stu d a r um pouco da tensão e n tre
elas e o cam po institucional. Isso porque a questão que
se coloca inicialm ente é p a ra onde devem os en cam in h ar
as em ergências e as urgências em u m prim eiro m om ento.

4. Em 2005, C o o rd en ad o r do P ro g ra m a de R esidência M édica em P si­


quiatria do Instituto Philippe Pinei. A tu alm ente acum ula esta fu nção
coin a de P residente do C entro de E studos.
CoN TEX TU A LIZA R A URGÊNCIA
Se rem o n tarm o s à clínica hipocrática, notam os que
ela está articulada desde seu início em to rn o da crise. A
crise é o po n to de p a rtid a da clínica. O u seja, é essa irru p ­
ção do im previsto que organiza a p ró p ria noção de clínica.
E exatam ente no que ro m p e do que é p rev isto que algo de
singular se in tro d u z de form a m ais m arcante. Não h á nada
m ais singular do que aquilo que escapa de u m a seqüência,
de um a série. A ssim , clínica é fu n d am en talm en te um tra ­
balho sobre o singular.
O campo institucional, o campo da medicina, da saúde
ou de uma clínica social, trabalha no coletivo. Existe um a ou­
tra perspectiva que, em geral, busca soluções institucionais
para situações de em ergência e de urgência. É comum que
essas situações term inem de um a form a m uito equivocada.
Um exemplo clássico é o de criar um lugar de concentração
de emergências e urgências, um a solução institucional para
tratar de um problem a que escapa. Cria-se um m onstro, pois
reunir em um único lugar tudo o que é singular é não enten­
der absolutam ente nada do que está em questão.
Então, o que podem os esperar do nível organizacio­
nal quando falam os de em ergência é que ele não atrapalhe
a clínica, que não se co n stru a m o n stro s como o pronto-
socorro, que inviabiliza qualquer ação clínica. É im possí­
vel trabalhar clinicam ente em cim a de u m a q u estão como
a em ergência e a u rgência em um co n tex to de pronto-
socorro psiquiátrico, em u m a m egalópole de u m país em
desenvolvim ento.
Deve-se p e n sa r em form as de organizações in stitu ­
cionais que p erm itam o trabalho clínico. Algo que já está
aí é o m odelo substitutivo. Trata-se de d esco n cen trar e
situar a em ergência e a urgência em seu contexto, e não
descontextualizá-las. O u seja, aquele indivíduo que está
na sua com unidade sendo atendido p o r u m serviço que
o conhece, ou que tem algum a possibilidade m elhor de
conhecê-lo, com certeza será aquele lu g a r onde ele poderá
ser mais bem atendido e onde um tra b a lh o clínico poderá
ser feito. Fora disso, acho q u e não h á condição. A solução
racionalizadora cairá no m e sm o equívoco.

O SUJEITO E A PSIQUIATRIA
E ntrando n a dim ensão clínica em si, pensando com o
se localizariam a p siquiatria e a psicanálise nessa d im e n ­
são, devem os p ensar que n ã o se tra ta de um a relação de
oposição lógica, no sentido da incom patibilidade en tre os
dois cam pos. Trata-se de u m a dialética, tanto no sentido
conceituai q uanto no histórico.
A psicanálise surge h is to ric a m e n te em um contexto
de debate no qual a p siq u ia tria já se encontrava. A cred i­
to que seja im p o rtan te le m b ra r que a psiquiatria, em seu
prim eiro m om ento, com o p ro je to alienista das p rim eiras
décadas do século XIX, foi u m p rojeto de construção da­
quilo que os p róprios alienistas da época denom inavam de
m edicina especial.
A m edicina especial — que e ra um term o m ais u tili­
zado que “m edicina m ental” — v in h a exatam ente colocar
a diferença que existia n e ssa p ro p o sta em relação à p ro ­
posta de um a m edicina so m á tic a ou u m a m edicina geral
ou ordinária, que era o o u tro te rm o que se usava. O que
havia de especial nesse tipo de m edicina é que algo e m e r­
gia quando se lidava com a q u e stã o da loucura, algo que a
m edicina som ática não dava conta.
Então a questão do su je ito coloca-se no próprio su r­
gim ento da psiquiatria, m as p a re ce que passa a receber
um tra ta m e n to m uito mais específico com a psicanálise.
A ten são que se coloca n e ssa clínica especial — que su r­
ge com o alienism o e que recebe, sem dúvida, um salto
qualitativo com a psicanálise — v em a ser a posição que
o clínico se coloca em relação ao que vem a ser seu o b je­
to clinico. N a psiquiatria c lássica do século XIX — que se
m antém com o tradição até h o je, em bora reconhecendo a
em ergência de algo que e sc a p a ao corpo —, essa relação
não é tem atizada como u m a fe rra m e n ta clínica, com o a
psicanálise vem fazer de m a n e ira m uito clara.
A posição do clínico é de assim etria, de não recip ro ­
cidade com seu paciente. Penso que o que a psicanálise
coloca como aquisição decisiva é ver a relação com o a
ferram en ta fundam ental da prática clínica especial. É na
relação e com ela que se pode trab alh ar clinicam ente. Não
se tra ta apenas da aquisição de instru m en to s técnicos ou
de conhecim entos teóricos na clínica. U m a clínica se faz
tam bém com as ações dos próprios sujeitos que se colo­
cam no papel de clínicos.
A credito que isso re p re se n ta um a diferença enorm e,
pois coloca em questão o u tro aspecto que julgo m uitas
vezes ser descuidado e p o uco discutido, que é o aspecto
da form ação profissional. Q uais são os elem entos n eces­
sários p ara se form ar u m clínico com as credenciais p a ra
tra b a lh ar essa lógica com plexa prop o sta p ela refo rm a psi­
q uiátrica no cenário atual? A cho que a psicanálise indica,
exatam ente p o r ser o único cam po que claram ente coloca
o p o n to de que não se tra ta de ficar aprendendo coisas,
que se trata de colocarm o-nos em questão e n q u an to sujei­
tos, diante de um outro.

U r g ê n c ia d e q u e m ?
Sem me esten d er m uito, gostaria de in tro d u zir o u ­
tra questão sobre a ótica da urgência. Penso que h á algo
m uito específico das situações de em ergência e u rg ên cia
no nosso campo: a u rg ên cia é algo que sem pre su rg e no
espaço intersubjetivo.
A prim eira coisa que nos perguntam os q u an d o esta­
m os diante de um a u rgência psiquiátrica é: a u rg ên cia é
de quem ? É do paciente que está sendo trazido? D aquela
fam ília? É m inha, já que e sto u sendo colocado em xeque
diante daquela situação? D e todos nós, de algum a m an ei­
ra? T rata-se de um a situação que, de m aneira im ediata,
coloca em questão todos os sujeitos envolvidos. É u m dife­
rencial em relação à urg ên cia médica, m ais típica, no qual
se pode localizar m uito m ais a em ergência, onde se pode
circunscrevê-la m ais claram ente.
Penso que, exatam ente n o caso da urgência e e m e r­
gência psiquiátrica, um a das características dessa situação
é ela não ser passível de ser c irc u n sc rita em u m espaço
exclusivam ente individual. E la não é passível de ser c o n ­
tida aí, e sem pre escapa p ara u m espaço relacionai o n d e
pelo m enos dois sujeitos estão em questão. Essa era m in h a
contribuição. Espero que p o ssam o s seg u ir em debate.

D e b a te

Pergunta da platéia Paula Borsói


Q ueria re to m a r uma q u e stã o que Romildo colocou,
abordada p o r D im âs e F ernando de m odos diferentes, e
que considero im portante a p ro fu n d a r aqui. Trata-se de
quando Romildo p ergunta se h á alg u m a coisa n a clínica
psicanalítica, nesse trabalho n a urg ên cia, que seria m u ito
próprio e que te m a ver com o reconhecim ento de u m a
exterioridade com o fazendo p a rte do sujeito. Acredito que
isso seja a experiência cotidiana do sujeito. Algo aparece
m anifestando-se sem pre com o estrangeiro, como e s tra ­
nho. Q ueria re to m a r essa q u e stã o p a ra deixá-la ser tra b a ­
lhada u m pouco entre nós, te n ta n d o p e n sa r o que fazem os
com isso que precisa incluir o sujeito e que se m anifesta
dessa form a tão estranha, tão exterior.

Pergunta da platéia Georgiana Gonçalves


Q ueria colocar alguns p o n to s desde a m esa anterior.
Fiquei me perguntando: onde e stá a urgência? De q u em é
o legado p a ra dar conta disso? O que vivem os no cotidia­
no da clínica, de u m hospital o u até m esm o do co n su ltó ­
rio, é que a u rg ê n c ia é algo d issem in ad o , que ela está a í e
que tudo é urgente. A sensação que ten h o , talvez por e sta r
na lin h a de fren te da em ergência, no am bulatório, é que
as pessoas querem um a re s p o sta p a ra dar conta daquilo
de que sofrem e que está cau sa n d o algum mal. E o que
fazem os com isso?
.Parece-m e q u e a em ergência não é o lugar dessa u r­
gência. M as essa urgência sobra, vai p a ra o am bulatório,
para o po sto de fam ília, e parece que n in g u ém sabe m u i­
to bem o que fazer com ela. Parece-m e que sabem os um
pouco m ais o que fazer com a em ergência trazida pelos
bom beiros, m esm o com todas as dificuldades, m esm o que
a resp o sta m uitas vezes seja p recip itad a com H aldol e Fe-
nergan.
De q u alq u er form a, ten h o a im pressão de que e sta­
mos m ais organizados com relação a esse tipo de urgência.
Mas e essa outra, que acossa os am bulatórios? D a experi­
ência que tive no M anfredini, pode-se c o n tar nos dedos
aquelas que chegam acom panhada pelos bom beiros.
N ão sei a resposta. A credito que seja n a interface en ­
tre, de um lado, a ch a r que se deve resp o n d er a tudo e, de
outro, dispensar q u e podem os m anejar.

Pergunta da platéia Hailton Martinelli


Tenho um a p e rg u n ta sobre a colocação de Romiido
de que a u rgência subjetiva seria u m fenôm eno da con-
tem poraneidade. O referencial m édico te m condições de
escutar essa u rg ên cia subjetiva? Essa escu ta seria possível
a p a rtir de outro referencial, o da psicanálise? Q uando fa­
lamos da questão da escuta, a p a rtir de que referencial se
escuta e com quais ferram entas, o que podem os co n stru ir
e o que podem os fech ar a p a rtir da escuta? Estam os sem ­
pre escutando. Q uando alguém busca atendim ento, algo
vai ser escutado. E ntão que arte se faz com aquilo? De que
lugar alguém se coloca p a ra lid ar com essa fala, lidar com
essa dem anda?
R ealm ente existe um a particu larid ad e do aten d i­
m ento psiquiátrico. Ele vem dessa “m edicina especial”
que surge na h istó ria da m odernidade com o o lugar de u m
atendim ento especial que a m odernidade n ão era capaz
de dar conta co rretam ente. N ão h av ia su b strato anátom o-
patoiógico que justificasse a loucura. Q u er dizer, dessa
forma, ela estava incluída e excluída da m odernidade.
78
A p a rtir do m om ento e m que, n a co n tem p o ran eid a-
de, existe a possibilidade, a p a rtir de m odelos psicofarm a-
cológicos, de te n ta r dar c o n ta do fenôm eno da lo u cu ra e
da ansiedade, é com o se a m edicina, a neurologia o u a
psiquiatria, renovadas pela psicofarm acologia, p u d essem
dar conta de to d a urgência. J á não h á m ais possibilidade
da singularidade, de sofrim ento pessoal. R om ildo colocou
de m odo m uito preciso um a q u estão que m e parece v a le r
a pena ser um p o uco mais desenvolvida. Se esse desafio
é da psicanálise, de ten tar cavar, nesse m o m ento da co n -
tem poraneidade, u m lugar q u e seja da escuta psicanalíti-
ca, acredito que não se trate de aqui colocar a psicanálise
e a p siquiatria em oposição.

Pergunta da piatéia Ana Cristina Figueiredo


A chei esta m e sa m uito b o a e gostaria de voltar ao
que Romildo colocou sobre “tr a ta r problem as, tra ta r s o lu ­
ções”, pois achei m uito in te re ssa n te trazer as dim ensões
do problem a e da solução de u m m odo distinto para c o n ­
seguirm os localizar algum as coisas.
C om relação à questão d a em ergência, do p ro n to -
atendim ento, do grupo de recepção, acho que h á nív eis
de “sufoco”, lim ites do real d a urgência, do sem sujeito,
da com pulsão. O grupo de rec ep ç ão no am bulatório o u
no p ro n to-atendim ento, p o r exem plo, possu i outro ritm o.
As pessoas j á chegam com u m a dem anda. B uscam os fazer
aparecer o sujeito ali, no m eio daquele caldeirão. N essa
em ergência m ais “hard”, não se p o d eria a te n d e r por u m
tem po prolongado, pois é p re c iso correr.
G iram os e n tre o problem a e a solução. H á horas em
que tem os que a rra n ja r solução p a ra o problem a. O u tra
em que a solução é u m problem a. Temos que problem ati-
zá-la p ara provocar o sujeito n o caldeirão. O sujeito m u i­
tas vezes diz “eu q u ero um psicólogo, quero u m rem éd io ”
e não sai disso. Faz p a rte do tra b a lh o criar problem a onde
o sujeito ap aren te m e n te tem u m a solução.

79
Pergunta da platéia Celina Guimarães
Algo da questão sobre o tem po surgiu com a idéia
de que o psicanalista ficaria m uito tem po escutando e isso
não p o d e ria ser feito no g ru p o de recepção, teria que ser
feito n o am bulatório. A idéia é que o psicanalista é aq u e­
le que escuta m uito? Isso é u m engodo, pois não é com
um tem po exagerado que o analista vai conseguir ex trair
o sujeito. P or vezes, para ex trair o sujeito, o tem po tem
que ser m uito curto. Mas é preciso estarm os aten to s p a ra
não alegar tem po curto apenas p o r co n ta da pressa, p or
term os que aten d er m uita gente. Precisam os lidar com o
tem po possível, com o tem po que se tem, pois é com ele
que tem os que extrair o sujeito.

Pergunta da platéia Deborah Uhr


Falam os o tem po todo da em ergência e da im possibi­
lidade de u m trabalho analítico lá p or co n ta da d em an d a
que se apresenta. N a verdade, produzim os e n a tu ra liz a ­
mos a idéia de que a em ergência não é o lugar do sujeito.
Valéria a p e n a trab alh ar m ais sobre esse tema. N a reali­
dade, esse é um incôm odo m eu. T rabalho no am bulatório
do N ise da Silveira e a idéia é exatam ente esta: sufocados
p o r u m a dem anda incessante, com todas as idas e vindas,
identificam os que a em ergência aparece e se esvai. Isso
que entendem os que é dado, u m a dem anda avassaladora a
que tem os que responder de fo rm a predeterm inada, m edi-
calizante, não é fato.

Romildo do Rêgo Barros


Estou vendo que não há propriam ente perguntas, m as
pedidos para que eu contorne um pouco mais a questão e
me explique um pouco melhor. É claro que a questão da
urgência nos nossos tem pos v ai além do atendim ento psi­
quiátrico, da escuta psicanalítica, da econom ia nacional, da
engenharia etc. Tem a ver com transform ações n o âm bito
da civilização e da cultura. D entre outras coisas, h á um a
transform ação na própria noção que se pode ter do tem po.
H á u m au to r francês ao qual te n h o m e referido em
meus sem inários, cham ado F ranço is H arto g 5 — talvez
alguns de vocês já ten h am m e ouvido falar dele. H artog
estudou o tem po a p a rtir do que ch am a de “regim es de
historicidade”. Ele diz que o tem po não é hom ogêneo;
existem tem pos m ais acelerados e tem pos m ais vagarosos
e, como h isto riad o r que é, divide a h istó ria em períodos.
A té a Revolução Francesa, segundo H artog, era o
passado que contava. As u topias, p o r exemplo, visavam
refazer o passado perdido, a e ra de ouro perdida. Com o
advento da ciência m oderna, d ep o is d a Revolução F rance­
sa, o futuro é que p asso u a contar. P o r exem plo, as utopias,
os projetos políticos e sociais e tam b ém as em presas se
voltam p a ra a construção de u m fu tu ro radioso.
E, finalm ente, segundo H arto g , d a m etade ou do final
do século XX p a ra cá, há u m a p rep o n d erân cia do p re sen ­
te. Não h á nem passado e n e m fu tu ro , h á presente. U m
presente que se a rra sta infinitam ente, u m p resen te eterno.
Então vocês vejam que, no q u e se refere à n o ssa questão, é
evidente que um presente e te rn o pro d u z urgências.
Isso vai bem além da q u estão do atendim ento p siq u i­
átrico, apesar de que o aten d im en to psiquiátrico, n a tu ra l­
m ente, nos toca de perto: estam os em um a instituição p si­
quiátrica, no Pinei. A lém disso, m u ita gente aqui trab alh a
com psiquiatria. M as é preciso p e n sa r que o aten d im en to
psiquiátrico está articulado a u m a ten d ên cia da época, que
se m anifesta n essa espécie d e eternização do presente e
produz, n a prática, sujeitos q u e n ão podem esperar. Então,
aquilo que antes se dizia “quando eu for g ra n d e ”, já não dá
mais. Tem que ser agora. Por exem plo, por q ue as crianças
são usadas em propagandas? Porque o tem po delas não é
no futuro, não é depois dos dezoito anos, é agora. Elas vão
ter que consum ir hoje, e não daqui a dez anos.
Isso me parece m uito im p o rtan te , a idéia da tem po-
ralidade, te m a que, como sabem os, m obilizou os esforços

5. Cf. resen h a n a p. 58 d esta publicação.


teóricos e clínicos de Lacan. Todos devem os m uito a La-
can, a c ultura deve m uito a Lacan, que foi alguém que teve
a coragem de se debruçar e prod u zir u m ensino sobre esse
p an tan al que é a idéia de que se trab alh a n a p rática com
u m tem po n ã o hom ogêneo.
É preciso p e n sa r que não se tra ta de m elh o rar o de­
sem penho de tal ou tal profissão, m as de saber se tal ou
tal profissão é digna de sobreviver em u m a época em que
a tem poralidade m udou — estou p e n san d o no que H aílton
disse sobre a situ ação atual da p siq u iatria e, n esse aspec­
to, é a m esm a coisa p a ra a psicanálise. É um desafio para
a psiquiatria, p a ra a psicanálise, p a ra a pedagogia e para
outras áreas.
Se não se h á u m a com preensão do que seria u m tem po
plástico, m últiplo, não se consegue dar conta da formidável
exigência que é feita à nossa geração. E não é só no aten­
dim ento em hospital psiquiátrico. Nos consultórios psica-
nalíticos, todo m u n d o sabe que o uso q u e se faz do tempo
não é mais o m esm o, e não só p o r causa do tem po lógico,
tratado, às vezes, com o se fosse um a particularidade técnica
dos lacanianos. É porque as dem andas estão diferentes. Por
exemplo, o analista não está esperando, não tinha m arcado
h o ra e, no entanto, o sujeito está n a sala de espera, sentado,
lendo um livro e aguardando ser atendido quando surgir
um intervalo. Ou, quando o sujeito está em crise — depres­
são, angústia, m arasm o —, você não vai dizer a ele que volte
n a próxim a sessão, na próxim a segunda-feira às 18h45min,
quando a crise já tiver passado. Ao contrário, o sujeito vem,
de certa forma, viver a crise n a sala de espera, o que não
deixa de ser um a urgência.
Isso não significa que a psiquiatria ou a psicanálise
fracassou, m as que há um a certa dim ensão do tem po que é
inédita. Se o psicanalista não for capaz de d ar u m tratam en ­
to a isso, a disciplina dele não m erece sobreviver. Trata-se
de um a questão q u e é em inentem ente prática, antes de ser
ideológica. E u m a questão de saber se h á chance ou não da
psicanálise en tra r no século XXI de um a m an eira efetiva.
A dim ensão tem poral h o je se m ostra diferente de u m a
época e m que se tin h a um a c e rta idéia de que a dim ensão
do passado, do presente e do fu tu ro com punham um te m ­
po. Pode-se ter hoje um te m p o presente em d etrim en to
do futuro, ou um futuro que n ão teve passado. É p reciso
que, tan to na teoria quanto n a prática, em qualquer n ív el
de intervenção e de exigência do real, como, p o r exem plo,
quando nos confrontam os c o m alguém com pletam ente e n ­
louquecido ou am eaçando se m atar, é preciso que se te n h a
um a idéia de que isso se articu la com u m a tendência g eral
da época.
N ão se tra ta som ente d e aperfeiçoar o a ten d im en to ,
seja ele psicanalítico, p siquiátrico ou o que for. T rata-se de
p e n sa r que há dados novos d a cultura. A tem p o ralid ad e é
como u m papel que se a m a sso u e não v o ltará m ais a ser
liso, ela é diferente. Já não s e pode mais p e n sa r o te m p o
como a superfície de um la g o sobre o qual não so p ra o
vento e cujos lim ites são estáveis. Estou dizendo isso, so ­
bretudo, depois de te r ouvido as intervenções de D eborah,
G eorgina e Celina, e tam bém com base no que disse H ail-
ton. N ão se trata de ap erfeiço a r profissões. E sto u p a rtin d o
da idéia de que todas estão p erfeitas. Trata-se de sab e r se
vão atender, não diria nem às dem andas, m as às q u ase
necessidades im postas pelas m utaçõ es n a cultura. N ão só
nas patologias, m as n a c u ltu ra como u m todo.
A s patologias, aliás, ta m b é m são relativas ao te m ­
po. O que estou dizendo do te m p o pode ser d em o n strad o
usando-se os exem plos das depressõ es, com pulsões, toxi-
com anias, patologias que p o d e m ser p ensadas com o fo r­
m as de m anejo do tem po. P o r isso é que m e parece q u e a
in terv en ção de A na C ristina é oportuna. Com o ela dizia, é
preciso que não se ten h a u m a am bição excessiva de saber
o que é um a solução e o q u e é u m problem a. Existe um a
zona de som bra en tre os do is, e essa zona de som bra às
vezes exige um a intervenção e u m a escuta.
“E scuta” é u m a p a lav ra que talvez esteja um p o u c o
desprestigiada, já íião tem a dignidade que teve h á trin ta
ou quarenta anos, m as a intervenção de um a escuta con­
tinua im portante, representando um a c e rta posição de al­
guém que rep resen ta um tem po que te m futuro. Talvez
seja um a m aneira de dizer que a posição de quem atende
um a .urgência é de alguém que está ap o stan d o em um fu­
turo e em que o presen te, que parece etern o , pode engen­
drar futuro. Isso pode fazer nascer no sujeito a dim ensão
da espera. C onhecem os, em psicanálise, a função essencial
da espera. “Q uero m e matar.” Deixe p ra am anhã. A m anhã
faça outra coisa que não seja se m atar.
Então, se a dim ensão da espera é recu sad a ao sujei­
to, a bem dizer, não h á sujeito. Essa é u m a questão e um
desafio. E, se a psicanálise, a psiq u iatria e a pedagogia não
souberem responder, não darão co n ta do que nos está im ­
pondo o século XXI.

Fernando Ramos
G ostaria ap en as de fazer um b rev e com entário.
Falou-se m uito em dem anda, que é um term o que p o s­
sui m uitos sentidos. Falou-se da dem an d a com o m assa de
atendim ento, e acredito que essa não seja um a questão
apenas da em ergência e urgência, p a ra se p en sar clinica­
mente, m as um a questão do cam po organizacional.
Tem havido um im pedim ento p a ra tratar dessa
questão como ela deveria ser tratada. Q u an d o falo que
não concordo com a p siq u iatria e a psicanálise colocadas
como pólos, é p o rq u e acredito que isso é u m a ilusão de
um m om ento m u ito atual. A p a rtir da d écada de 80, a p si­
quiatria se co nstitui explicitam ente com o u m a oposição à
psicanálise, um a p siq u iatria sem sujeito. Essa é a proposta
dom inante, m as n ão exclusiva e, felizm ente, já com eça a
ser criticada de u m a m aneira m ais séria, inclusive nos Es­
tados Unidos, seu lugar de origem.
Eu queria re sg a ta r o projeto fu n d a d o r d a psiquiatria,
que é o projeto de u m a m edicina especial. D esde seu p ro ­
jeto inaugural, o que diferenciava a m e d icin a especial da
m edicina ordinária não era exatam ente a q u estão do sujei­
to, mas a questão de que há u m a dim ensão h u m a n a que a
m edicina ordinária n ão dá conta. Essa dim ensão hum ana,
que cham am os de sujeito, n e ce ssita ser abordada com um a
m etodologia diferente, um e n ten d im en to diferente da re ­
alidade e com um a tecnologia te ra p ê u tic a d istin ta. O bvia­
m ente, à de hoje não era a d a q u ela época, m as a co n serv a­
m os como projeto. P enso que a psicanálise faz disso o seu
projeto, recriando-o e trazendo d e volta p a ra o seio da p si­
quiatria n o início do século XX algo que tin h a ficado p ara
trás. Se pensarm os n a p siq u ia tria em seus diversos m o­
m entos fortes, onde retom a o s e u projeto, ela volta a ser
um a m edicina especial. Se p e n sa rm o s a p siq u iatria como
um cam po de intervenção am p lo sobre o psicopatológico,
e não de m odo restrito, como especialidade, acredito que
podem os incluir a psicanálise n esse campo.

Dínias Soares
Só p a ra po n tu ar algum as coisas. Celina, espero que
você te n h a entendido o con trário . Eu não acho que o psi­
canalista seja aquele que precisa de m uito tem p o para fi­
car escutando. Pelo contrário, coloqu ei isso ap en as como
um a caricatura da psicanálise. P ara mim, q u em escuta
m uito tem po é biógrafo, que p re c isa fazer biografias.
Existe o espaço p ara a p o siçã o psican alítica — não
usarei o term o escuta — na em erg ên cia rápida. E o inver­
so. Não gosto de u sar o term o escu ta ju stam en te porque
ele vem sendo m uito m al usado. Começa a v ira r piada. Se­
ria m uito fácil ser psicanalista: b a sta ria deixar alguém fa ­
lar m uito tem po e dizer “Fale m a is sobre isso”. Ou, então,
repetir o finalzinho da frase. E ssas piadas ap o n tam p ara
um a caricatura. Nesse ponto, re ite ro as falas de D eborah
e de G eorgiana.
D iscordo fu n d am en talm en te de quem fala sobre a
im possibilidade de u m trab alh o psicanalítico n a em er­
gência. N unca trabalhei em CAPS, sempre n a em erg ên ­
cia, porque acredito nisso, e n ã o no contrário. Tanto no
sentido da psicanálise quanto n o sentido da R eform a Psi-
quiátrica, acredito q u e onde quero estar é neste lugar, na
em ergência.
Sobre o que H ailto n coloca a respeito da p siquiatria
desaparecer, acredito que seja um a questão de g rande re ­
levância. Com o F ernando a p o n to u m uito bem , a psiquia­
tria tem um a histó ria especial n a m edicina e trata-se de
um m odo de p e n sa r o sofrim ento hum ano. A psiquiatria
era a única especialidade que pensava isso n a época. Hoje
a psicanálise pensa, o serviço social pensa, mas, n a m edi­
cina, na época dos m édicos e dos barbeiros (que eram os
que faziam as cirurgias), poucos p en sav am o sofrim ento
hum ano. Então, p e n sa r em algo além do su b strato aná-
tom o-patológico é algum a coisa que não se p o d e perder.
A cho m uito triste a p siq u ia tria desaparecer.
Para term inar, p en so que Romildo foi de u m a felici­
dade ím par ao colocar a u rgência com o u m a c e rta m anei­
ra de lidar com o tem po. Ele citou um h isto ria d o r fran­
cês, François H artog, que fala sobre o etern o p resente, e
lem brei-m e de um livro de Jam eson, que li h á pouco. A
sociedade do tem po p re sen te é um a sociedade que não
gera história. As pessoas n ã o têm história, as instituições
n ão têm história. E não te r histó ria é p ro d u z ir u m sin­
to m a com plicadíssim o. C om o Romildo colocou, produz
o sujeito que n ão p o d e esperar. E, m ais que isso, produz
u m sujeito que não te m história. Vemos isso n a clínica: as
pessoas não têm h istó ria p a ra contar. É o p acien te que, no
m áxim o, conta o que aconteceu d u ran te a sem ana. M esmo
assim ele fala: “Eu acho im p o rtan te duas co n su ltas p o r se­
m an a porque já não m e lem bro o que aco n teceu n o início
da sem ana...”.
Isso é um fator extrem am ente com plicado, porque,
se algum a coisa co nstitui o sujeito, p ara m im , é u m a his-
toricidade. Em cim a disso, a fala da A na C ristin a é m uito
interessante: a dialética do problem a e da solução. Só acho
que não podem os esq u ecer que, m esm o onde querem os
fazer nascer o problem a, ouvir o problem a, esse caldei­
rão de sujeitos, m uitas vezes nossa p resen ça ali é a de al­
guém que traça um a solução. E , m esm o em u m lugar hard,
com plicado, que parece p re c isa r de u m a solução im ediata,
como a contenção, por exem plo, n ã o podem os esquecer a
existência de um a réstia de sujeito . É dessa réstia que va­
mos seg u rar e te n ta r traçar u rn a h istó ria que vai co n stitu ir
o que cham am os de projeto tera p êu tico .

Comentário da platéia Marcus André Vieira:


Q ueria reg istrar duas co isas que acho que não po­
dem deixar de constar nos a u to s d esta discussão. É m uito
especial esta discussão, pois cheg am o s a u m a espécie de
esvaziam ento de u m a oposição. A fala de A driano m arcou
isso de m an eira clara. É um a o p o sição relativam ente falsa.
A fala de Romildo talvez dê fim a essa tensão, que não faz
sentido, entre o indivíduo de u m lado e o sujeito e o sin to ­
ma de outro. Coloca-nos a p ro d u z ir algum a coisa a p a rtir
da urgência.
Q uero m arcar duas coisas. Prim eiro, Fernando traz
uma lem brança essencial, q u e é a tese de se fazer algum a
coisa com a u rgência a p a r tir da relação. Isso é especial,
talvez defina algum a coisa. D efine, pelo m enos, um m odo
de pensar, e nos alinham os n e sse ponto, nesse lugar, in­
dependentem ente das diferentes especialidades. H á algo
na pró p ria relação que entra em jo g o p a ra estabelecer um
ponto de parada.
Rom ildo dizia algum a c o isa que an o tei como “reco ­
nhecer o sujeito”. E, por tr á s desse reconhecim ento, h á
todo u m trabalho. R econhecim ento é u m term o forte em
Lacan, pois a p o n ta que é n a re la ç ã o que se produz algum a
coisa, u m a novidade. É a p o ssibilid ad e de n om ear o que se
diz a p a rtir do uso da p ró p ria relação com o u m lu g ar de
registro, p a ra produzir algo d e fu tu ro no presente.
§

-fê

.
3. O l u g a r d a u r g ê n c i a n a r e d e

F ó r x jn s de Sa ú d e M e n t a l
A n d ré a d a L u z C a rv a lh o 1

Fiquei pensando sobre o te m a Urgência sem em ergên­


cia?, sobre aquilo que emerge e o que surge nos postos de
saúde m ental. A credito que v á ria s pessoas aqui p resen tes
p articipem dos Fóruns de S aúde M ental, m as p ara os q u e
não p a rtic ip a m acredito que v a lh a a p en a esclarecer u m
pouco m ais sobre eles. Foram im plan tad o s em 2002 e são
in stru m en to s de gestão que aco n te c em nas Á reas P ro g ra-
m áticas,12 tam bém cham adas A Ps. Tem os FSM hoje em o ito
áreas (da 2.2 até a 5.3) e com eçarem os um fó ru m na 2.1 em
breve. O Fórum , que é aberto p a r a quem qu iser participar,
tem a finalidade de fazer com que os serviços se e n co n ­
trem p a ra que possam os p a c tu a r m inim am ente diretrizes
de saúde m ental para aquele local. Não só trab alh a com
profissionais da saúde m ental, m as tam bém convida p r o ­
fissionais das escolas, da a ssistên cia social, da justiça, e n ­
fim, te n ta tam bém fazer uma articu lação m tersetorial.

Iniciei a idéia para que seja replicada por articulado-


res a fim de fazer laços, estreitar redes, não só de ser­
viços, mas de ações e de afetos, pois os articuladores
muitas vezes trabalham com pacientes desconectados
de alguma rede social e/ou familiar. Não vamos para

1. Psicóloga, sanitarista, su p erv iso ra d o P rogram a de Saúde M ental,


SMS Rio d e Janeiro. ,
2. N a cidade do Rio de Janeiro h á d e z áre a s program áticas.
o Fórum para dar palestras. Os encontros giram em
torno de uma pergunta: “o que tenho a ver com esse
espaço em que sou convocado a trabalhar?”, ques­
tão que também repercute na interlocuçâo com as
instituições.

R e f l e t ir s o b r e o s p e d id o s e s o b r e a s p a r c e r ia s
N otam os que h á um a c e rta te n d ên c ia em o c u p ar
um lu g a r pedagógico ao se p en sar, p or exem plo, que
é preciso e u rg e n te “e n sin a r os p ro fesso res a lid arem
com os a lu n o s-p ro b le m a ”. N a a ssistên cia social, o u tro
exem plo, p arece u rg e n te que en sin em o s a lidar com
os p rob lem as dos psicóticos que estão n o s abrigos.
Parece que algo de um lu g a r ped ag ó g ico in siste em
nos convocar.

Além de evitar essa posição, tentamos também um


exercício de manejo com o tempo. Temos partilha­
do com os profissionais que fa zem parte do Fórum
a tentativa de não responder de imediato aos pedi­
dos, principalmente aos pedidos institucionais que
colocam a saúde mental no lugar da pedagogia. Por
vezes, há uma expectativa que ajudemos o paciente
a se adaptar aos tratamentos oferecidos e, em geral,
essa expectativa assume um caráter de urgência,
principalmente para os médicos que trabalham
com pacientes que tom.am medicamentos de hiper­
tensão e diabetes e que têm dificuldade de adesão
ao tratamento.

Penso que o exercício de u sa r o Fórum com o um


espaço p a ra discussão de caso p ossibilita que as in s­
tituições possam refletir sobre os pedidos que vêm
fazendo e que os profissionais tam b ém pen sem sobre
o que eles têm que assum ir. No m ínim o, é isso o que
acontece. Às vezes nem sem p re obtem os êxito e n em
sem pre as pessoas saem satisfeitas. Tenho pensado que
esses m o m en to s de troca e n tre profissionais é a m elhor
fe rram en ta p a ra que p ossam os de fato te n ta r m u d ar
um pouco o enten d im en to que se têm da saúde m ental
no Rio de Janeiro. Como ficam os m uitas vezes nos se r­
viços, perd em o s a possibilidade d essa articulação en tre
parceiros p a ra debater sobre o que vam os fazer com
os im passes apresentados p o r alg u n s casos e qual é a
responsabilidade de cada um .
É o exercício de um a a p o sta que en p a rtic u la rm e n ­
te acredito ser o que há de m ais im p o rtan te nos Fóruns.
Temos su sten tad o que a e q u ip e de saúde m e n tal p re c i­
sa de tem po p a ra avaliar, p a r a fazer essas articulações,
precisa escutar quem en cam in h a. Q uando en tram o s
em co n tato com quem e n cam in h a, a u rg ên cia pode se
tran sfo rm ar em outra coisa. V em os com isso que a a r­
ticulação é fundam ental e que p re c isa fazer parte de
nosso trab alh o básico. A clínica é articulação o tem po
inteiro.
Q uerem os ser parceiros, m as não querem os m ais
responder a todas as n ecessid ad es do sujeito como
p retendiam os hospícios. O hospício dava tratam en to ,
abrigo etc. S u sten tar esse lu g a r n ão tem sido m uito fá­
cil p a ra nós, p ois não re s p o n d e r ao im ediatism o nos
exige. É preciso que façam os u m a certa negociação, a
p artir n ã o apenas de recusas, m as da a b ertu ra de p o s­
sibilidades.
O F órum tam bém é u m espaço público de p resta­
ção de contas. Tem servido p a ra m o strar que p restar
contas não é n ecessariam en te u m a coisa ruim . Q uando
conseguim os fazer com q u e as pessoas p restem contas
daquilo que fazem , a q u estão da u rg ên cia de respon­
der aos vários pedidos p a ra os quais som os cham ados
ganha u m outro lugar. F oi p o r m eio dos Fóruns que
m ontam os os g ru p o s de recep ção , que são dispositivos
que têm a finalidade de se rv ir com o um espaço de su ­
porte. Temos esse dispositivo funcionando em vários
am bulatórios.

As PECULIARIDADES DE CADA COMUNIDADE


Precisam os estar aten to s ao ideal que carregam os
da rede. A rede de saúde m en tal ideal é um a que te n h a
CAPS, que te n h a am bulatório, que te n h a um leito de
retag u ard a e etc. A p ró p ria reform a psiq u iátrica co n ­
tribuiu para essa visão idealizada da rede. Em su b sti­
tuição ao asilo, tem os um a rede de todos os serviços.
O que vim os observando é que nossa p o tên cia m aio r é
o recurso hum ano. É sua form ação, sua visão e a p o si­
ção ética que podem transform ar. É claro que é preciso
um bom suporte, mas não ad ian ta te r dez profissionais
pen san d o que precisam responder a to d as as dem andas
que chegam ao serviço e agir de um a form a b u ro c rá ­
tica. O p io r é d a r a receita ou “o p assap o rte azul do
pacien te”, como brincam os, pois ele aprisiona em vez
de libertar.
H á duas experiências, que estão surgindo no Nise
da Silveira e no CPRJ, n a ten ta tiv a de fazer com que
o acolhim ento da recepção seja diferenciado, que não
passe logo para um médico que responda ao solicitado
p o r m eio de um m edicam ento. É claro que tam bém não
podem os tran sfo rm ar isso em oferta de psicoterapia.
N esse sentido, acredito que todas as equipes das
redes precisem to m ar p a ra si a questão: “o que ten h o
a ver com o pedido de um paciente e, principalm ente,
com as pessoas p o r quem sou responsável n essa re ­
gião?”. Todas as regiões da cidade têm um a p ecu lia­
ridade e isso está cada vez m ais certo p a ra os que v ão
a cada Fórum. Os h ab itan tes de um determ inado local
pedem coisas que os de outro local não pedem .
Convido, então, a todos p a ra p articip ar das dis-
cussõés dos FSM. C onseguim os organizar m elhor o ca­
lendário p ara estar disponível p ara todo m undo. Id en ­
tifiquem qual é o Fórum de su a região ou aquele que
interessa mais. Coloco-me à disposição p a ra conver­
sarm os sobre isso. Obrigada.

N a a t e n ç ã o b á s ic a
A n a C lá u d ia J o rd ã o 3

U rgência, do latim urgen tia, é definida como qua­


lidade do que é urgente, p ressa, necessidade prem ente,
im ediata. Essa é a definição dicionarizada do termo.
Pensar a definição de u rgência em saúde m en tal exige
articular reflexões sobre as fo rm açõ es sintom áticas na
atualidade e sobre o atravessam ento das questões con­
tem porâneas q u an to à subj etfvidade.

U r g ê n c ia g e n e r a l iz a d a
N o m undo globalizado, capitalizado, onde tudo
é acelerado, é quase im possível e n c o n tra r lugar para
o que não é urgente. Tudo d ev e ser m uito rápido e o
quanto antes: a velocidade d a conexão n a in ternet, os
prim eiros passos, a aquisição d a linguagem , o processo
de alfabetização, a puberdade, a aquisição de bens, a
tom ada de decisões e etc. N ão é de se estranhar, então,
que a urgência encontre lu g a r privilegiado para se ex­
p ressar quando se tra ta de liv rar-se de u m sofrim ento:
é u rg en te o pedido de um rem édio, de um diagnóstico,
o alívio da dor, da angústia, d o m edo, da ansiedade, o
controle da agressividade, da agitação, a rem issão dos
sintom as que trazem tanta infelicidade p a ra o sujeito e
para aqueles que com ele vivem .
Sendo assim, a urgência a tra v essa todos os dispo­
sitivos de saúde m ental, sejam eles h o sp itais psiquiátri­
cos, hospitais gerais, hospitais-dia, cen tro s de atenção
psicossocial, am bulatórios, e — p o r que não ? — consul­
tórios particulares. Afinal, a d e m a n d a não “co-respon-

3. Psicóloga do PS José Breves Neto/SM S-RJ.


de” à form a hierarquizada, segm en tad a e classificada,
com que os dispositivos são organizados. O paciente
psicótico su rta em u m a em ergên cia p siquiátrica o u em
um am bulatório de saúde m e n ta l e a h istérica não dei­
xa de se la m e n tar seja qual for o dispositivo que p ro ­
cura p a ra en red ar suas queixas. A dem anda clam a p or
urgência de respostas na p o rta de qualquer serviço. A
m an eira com o cada unidade, serviço, equipe ou p ro ­
fissional irá acolher e tra ta r a u rg ên cia está articulada
com as possibilidades co n tingen tes de aten d im en to e a
especificidade no m anejo de cada situação.
O am bulatório de saúde m ental, inserido em um
posto de saúde, onde há v árias especialidades, com pre­
ende, ainda, as solicitações de aten d im en to o riu n d as de
outros profissionais, m édicos e não m édicos. Tais soli­
citações tam bém engendram a conotação de urgência
nos atendim entos, g eralm ente determ inada pela pressa
de u m a resp o sta à questões sem diagnóstico, não expli­
cadas pela ciência m édica o u que não foram equacio­
nadas após um a prescrição m edicam entosa, um ato de
assistência social ou qualquer o u tra intervenção te ra ­
pêutica.
O utras urgências, urgências de terceiros, u rg ê n ­
cias p o r procuração, além d a s urgências em nom e p ró ­
prio, povoam os am bulatórios de saúde pública. Os
C onselhos T utelares querem laudos urgentes; a p ro fes­
sora ag u ard a p o r respostas terap êu ticas rápidas p a ra o
aluno que lhe traz im passes; os pais costum am achar
que as soluções m ágicas idealizadas com o aten d im en ­
to de seus filhos dem oram a chegar. Enfim, o fato de
estar em u m am bulatório não nos exime de te r que
lidar com as m ais diferentes form as de expressão da
urgência.

A PORTA DE ENTRADA NA CONTRAMÃO DA URGÊNCIA


O trabalho realizado n o serviço de saúde m ental
do PS José Breves com preende u m a p o rta de en trad a
pelos grupos de recepção. M esm o an tes da entrada no
grupo, encontram os com aqueles que n o s p ro cu ram di­
retam ente p a ra m arcação de sua v in d a e, desde logo,
tem os que lidar com as questões da urgência, as quais
são tangenciadas pela orien tação de p rio rizar o aten­
dim ento aos casos m ais graves. A q u i se esboça um a
p rim eira questão: os m ais graves são os m ais urgentes?
Será que são sem pre coincidentes?
Com o não trabalham os com u m a recepção aberta,
este p rim eiro encontro, o da m arcação p a ra a vinda ao
grupo de recepção, nos convoca a p e n sa r sobre a u r­
gência de cada pedido d e atendim en to e relacioná-los,
contextual e contingentem ente, com outros pedidos,
definindo quem será agendado e re ceb erá atendim ento
prim eiro.
A definição de q u e m e sta rá p re s e n te não é feita
sem im passes. C o n sid eram o s aqui, com o critério, e de
acordo com as R ecom endações sobre o A m bulatório
de Saúde M en tal — e lab o rad o em 2004 p ela C oordena­
ção de Saúde M ental do M unicípio do RJ em p arceria
com pro fissio n ais da á re a —, p rio riz a r os casos com ­
p reen d id o s no R elatório 2001 da O rg an ização M undial
de S aúde (tran sto rn o s d ep ressiv o s, tra n sto rn o s de uso
de substâncias, esquizofrenia, epilepsia, doença de Al-
zheim er, re ta rd o m ental e tra n sto rn o s da infância e da
adolescência, além de situ a çõ e s de v io lên cia d o m ésti­
ca e u rb an a, ten ta tiv a d e suicídio e iso lam en to social).
N os g rupos de recepção, o trab alh o se dá segundo
um a orientação ética e clínica: a clínica do sujeito. A
via p a ra um a clínica do sujeito necessariam en te passa
pela transform ação da q ueixa em d em an d a de tra ta ­
m ento, dem anda em que o sujeito se com prom ete, p as­
sando a reconhecer-se com o sujeito da fala, verificando
sua im plicação com a q u e ix a e o sintom a.
Interessa, então, p a ra o trab alh o com a clínica da
recepção, u m tem po de suspensão de respostas, a fim
de que se p o ssa verificar a posição subjetiva, buscando
responsabilizar o sujeito p o r aquilo que se p assa com
ele. Um tem po de trabalho onde o sujeito possa ser
levado a in te rro g a r o seu pedido, u m tem po onde ele
possa sofrer os efeitos de sua p ró p ria fala e de o utras
que se ap resen tam n o s grupos, co n stru in d o o u des-
construindo um a dem anda.
T rabalhar com um tem po de su spensão de re s ­
postas, u m tem po de esp era dos efeitos, é tra b a lh a r
um pouco n a co n tram ão da urgência. Tudo indica ser
este o m aio r im passe. A urg ên cia de resp o sta p o r p a r­
te do p rofissional pode o b tu ra r q u a lq u e r possibilidade
de tra ta m e n to . É preciso, antes de m ais nada, e sc u ta r
a urgência, o que o sujeito dem and a, quais os n om es
de sua urgência.

O QUE PODE EMERGIR N A URGÊNCIA?


Falam os de urgência. E a em ergência, o que tem
a ver com a urgência? Em ergência vem do latim emer-
gentia e, no dicionário, é definida com o aparecim ento,
estado do que em erge, ato de em ergir. C orrelacionando
urgência e em ergência, p o d eria se p e n sa r aqui, então: o
que em erge da urg ên cia de cada sujeito e se aproxim a
de um a verdade p articular?
R esponsabilizar o sujeito p a ra que ele se im plique
e se aproprie do que é urgente nele e p ara ele é re s­
ponsabilidade do profissional de q u alq u er dispositivo
de saúde m ental. E isso leva tem po. No entanto, h á si­
tuações que podem re q u e rer um a in terv en ção ráp id a e
im ediata. E aí, em vez da espera, a p re ssa deve im perar.
O m anejo e a decisão sobre o que fazer não deve obede­
cer a fórm ulas prescritas ou protocolos estabelecidos.
Talvez possam ser determ inados p o r u m a certeza a n te­
cipada e seus efeitos ten h am que ser aguardados.
A lguns casos ilustram as questões aqui colocadas.
Relatarei a seguir, o recorte de um destes casos:
Mônica, 42 anos, chega ao ambulatório em uma
quarta-feira, em companhia de sua mãe. Ainda
no corredor, mãe e filh a são recebidas pela psicó­
loga, que escuta a mãe pedir um a consulta urgente
para a filha. Esta, após receber a notícia de que o
filho fora assassinado, andava saindo pelas ruas da
comunidade catando coisas pelo chão, sendo cons­
tantemente levada de -volta para casa por vizinhos.
Mônica não falava, não se alimentava, não dor­
mia. A s duas foram convidadas a entrar na sala de
atendimento. Ainda em absoluto silêncio, Mônica
escuta sua mãe relatar sobre a morte do neto de
16 anos: o adolescente, portador de uma deficiên­
cia mental, fo i jogar bola com os amigos, com a
permissão de Mônica. No caminho, fo i convencido
por alguns rapazes a participar de um “bonde”em
outro bairro. Chegando lá, foram recebidos a tiros
e, ferido, o adolescente fo i levado ao hospital, onde
morreu. O enterro fo i no sábado, ocasião em que
Mônica desmaiou.
Neste momento do relato de sua mãe, Mônica fala:
“eu sei que o meu filho fo i jogar bola e não voltou.
Me disseram que ele morreu, mas eu não sei, eu não
vi. Eu acordei hoje. Estou lúcida, eu sei o meu nome,
sei onde moro, mas eu quero saber”. E repete várias
vezes: “Eu não sei, eu não sei, eu quero saber”.
A mãe a acolhe carinhosamente, voltando a lhe
contar sobre o neto, e solicita um remédio para
tranquilizar Mônica. A psicóloga decide prescrever
que a mãe continue respondendo à filha sobre o que
aconteceu e convida para que retornem no dia se­
guinte. Mãe e filha aparecem somente uma semana
depois e Mônica relata que, certa noite, fo i à casa
de sua mãe e lhe contou estar sentindo um vazio
no peito. A mãe lhe disse que ela estava sentindo a
perda do'filho e que ela podia chorar, lhe bater, que
ela continuaria ali, ajudando-a a passar por aquilo.
Mônica então fala que sente fa lta do filho, espe­
cialmente à noite, quando ela lhe fa zia cafuné na
cabeça até que ele adormecesse.
Ela passa a falar do curso de informática que fr e ­
quenta à noite. Diz que tem vontade de voltar às
aulas, mas que ainda não sabe se conseguirá ir so­
zinha.
Após dois meses, Mônica retomou seu curso e vai
aos atendimentos semanalmente, a f i m de saber “o
que quer saber”.

N a form ação
R ic a rd o L u gon 4

G ostaria de agradecer ao ICP-RJ pelo convite. Co­


meço dizendo que m inha m issão a q u i é m eio arrisca­
da: falar da form ação, enquanto e sto u nela. Estou te r­
m inando o terceiro ano de resid ên cia em psiquiatria
infantil. Falar de algum a coisa q u an d o se está m erg u ­
lhado nela é com plicado. Por o u tro lado, p o d e ser até
nobre, pois quem e stá entrando p a ra o se to r de saúde
m ental sabe que não se trata de algo m ágico, mas de
algo dinâm ico. D esde o início da resid ên cia estam os n a
rede, em articulação com o CAPS e com a enferm aria,
por exemplo.
Vou u tilizar o u tro term o p a ra form ação. Trata-
se de um term o que trago comigo, p o is so u de V itória
e o grupo que m e introduziu n a saú d e m en tal cham a
form ação de transform ação. T ran sfo rm ar n ã o é apenas
acrescentar noções à form ação, noções de psicanálise,
por exemplo, m as tran sfo rm ar atitu d es e habilidades.

4. N a época do C olóquio, psiq u iatra do CAPS E rnesto N azareth,


atu alm en te p siq u ia tra d a infância e adolescência.
Se pegarm os o sufixo “tr a n s ”, notam os que a tra n sfo r­
m ação é tam bém um a fo rm ação que leva a um outro
lado. T ransform a a inform ação em atitude, em reflexão,
em trabalho de equipe. E n tão , falarei u m pouco dessa
transform ação.

Form ação e tra n sfo rm a çã o


É im portante nesta transform ação valorizar a
cognição, não apenas o c o n teú d o form al, específico,
não só as habilidades — sa b e r conduzir um a entrevista,
p o r exemplo, saber p e n sa r um a reunião — m as a a titu ­
de tam bém . A titude e n q u a n to p o stu ra ética. D u ran te a
residência estam os em u m a constelação de profissio­
nais que pode ou não se c o n fig u ra r com o equipe.
Trago algum as p o n tu a çõ e s in teressan tes de A na
M arta Lobosque.5 Ela faz a seguinte p erg u n ta: qual a
concepção da coisa m e n ta l que se coloca com o p rin cí­
pio na form ação? Com q u e coisa m ental estam os lid an ­
do p a ra que alguém que s a i de um a graduação ven h a a
dizer “v o u trab alh ar com a saúde m ental”? Não deve­
m os p e rd e r esta p e rg u n ta de vista.
H á residentes que e n tra m sabendo o rodapé do
tra ta d o de psiquiatria. Já trabalh av am com isso, o pai
é psiq u iatra e entram , às vezes, fazendo du p la com um
residente da saúde m e n ta l que sabe os sem inários de
Lacan n a ponta da lín g u a. É m uito in teressan te como
se busca costurar as diferen ças de saberes n a apresen­
tação de casos clínicos, n o s atendim entos de em ergên­
cia e nos plantões de fin a l de sem ana. De algum modo,
u m a p rática em p arceria te r á que ser criada.
E n tra aí, então, m ais um ingrediente, que é o a tra ­
vessam ento do social. A n sied ad e p aralisan te porque
está havendo tiroteio o n d e m ora o paciente, p o r exem ­
plo. H á sem pre algo que surge, inesperado, n o singu­

5. LOBOSQUE, A. M. P rin c íp io s p a ra u m a clínica antim anicom ial.


São Paulo: E ditora HUCITEC, 1997.
lar da clínica que faz com que conceitos se rem odelem
com a prática. E dessa rem odelação dos paradigm as
que trazem os da graduação, da experiência prévia, que
surgem coisas interessantes, m odos de m an ejar a u r­
gência de m an eira interessante.

C o s t u r a r e t r a n s it a r
O utra colocação que a A na M arta tra z é sobre
a coisa freu d ia n a a que podem os fazer referên cia na
form ação do tra b a lh a d o r de saúde m e n ta l qu an d o está
em causa a sua resp o n sab ilid ad e com o clínico. A van­
çam os m ais: a psican álise é nossa p a rc eira n a defesa
da cidadania do louco e no q u e stio n am e n to de sua
exclusão. N a c a m in h ad a do resid en te de p siq u ia tria
com o re sid en te de saúde m ental n a co n d u ção de ca­
sos graves, sob su p erv isão , a coisa fre u d ia n a fornece
u m eixo ético.
H á tam bém a questão da supervisão, que é um a
retag u ard a com a orientação psicanalítica m uito enri-
quecedora no processo de tom ada de responsabilidade
pelo residente. H á que costurar a condução desses ca­
sos graves com os CAPS, com o p lan to n ista de em er­
gência, no am bulatório. C osturas vão sendo aprendi­
das nessa experiência e tem os chance de co n stru ir um a
rede mais eficaz.
H á u m a ú ltim a colocação da A n a M arta que eu
gostaria de trazer. Ela diz o seguinte:

Nossas atividades em conjunto com os usuários, a


interlocução com entidades populares ou trânsitos
em movimentos sociais mais amplos já nos terão
ensinado a importância de nos fazerm os entender.
Afinal, diante de uma associação comunitária, o
materna do fantasm a não é um bom assunto para
o debate, todavia, no campo da produção teórica, o
problema da inteligibilidade se apresenta, em ou­
tros termos, mostra-nos face da exigência peculiar
que o rigor de cada form ulação é a condição mes­
ma de sua transmissibilidade.b

É um a alfinetada in te re ssa n te, pois nos coloca no


fio da n av alh a entre a transitabilid ad e e a transm issibi-
lidade, que é algo com plicado e que o residente encara
de frente. É preciso tran sitar. O saber teórico precisa
ser colocado em trânsito, m a s sem p erd er sua especifi­
cidade p ara que possa ser transm itid o .
P ara retom ar a em ergência no processo de for­
mação, com o andam os em um a corda b am b a que se
dá m uitas vezes en tre u m su jeito am arrado e um a fala
desam arrada, como lidar c o m esse fio d a navalha no
processo de form ação? A supervisão, sob a m arca da
psicanálise, faz diferença. N ela, h á a possibilidade de
desenhar novos arranjos clínicos, in v en tar disposi­
tivos, criar saúde m ental, lev an d o em consideração o
sujeito.

C o m e n tá rio s
Anamaria Lambert67
G ostaria de falar rápido para debaterm os. Levanto,
então, duas questões. A p rim eira referente a u m comen­
tário im portante trazido p o r A na Cláudia, que é poder­
mos discutir a diferença e n tre os casos mais graves e
os casos de urgência. Às vezes, há m uita diferença. Um
paciente pode ficar quieto e m um grupo de recepção e

6. LOBOSQUE. Loc. cit.


7. P sicanalista da Escola B ra sile ira de Psicanálise (EBP), Seção Rio;
D iretora do C entro de A tenção P sicossocial Infanto-Juvenil (CAP-
Si) M aria C lara M achado, S ecretaria M unicipal do Rio de Janeiro.
D ireto ra Secretária-T esoureira e d ocente do Instituto de Clínica
Psicanalítica (ICP-RJ).
podem os pensar: bem , se não h á urgência, vam os des­
pachar, já que tem os tantas p ara atender. Mas como
podem os recuperar algo da fala desse sujeito? D iante
da urgência, a palavra geral aqui foi de um tempo de
espera, de pausa, um a suspensão. Com esses pacientes
mais silenciosos, que não sabem os p or que estão ali, não
precisam os fazer isso? Não seria isso tam bém um a difi­
culdade n a em ergência daquele sujeito, m as que se ap re­
senta de outra form a?
O u tra coisa que considero im p o rtan te ap ro fu n ­
darm os em nosso debate é com relação ao tem po, do
qual falam os tam bém pela m anhã. Pensei que a p ró p ria
suspensão de um a resp o sta im ed iata já coloca n a u r ­
gência um tem po de em ergência do que cada um tem
a ver com o que está se queixando. Ao se criar essa
suspensão, já se cria u m espaço p a ra a em ergência do
sujeito e p a ra a invenção de u m a resp o sta p a ra o p ro ­
blem a que está sendo trazido.
Do lado de quem ouve, u m a posição de não res­
p o n d er de im ediato, de te r que ouvir, é u m a posição
difícil de su ste n ta r quando se te m 200 p essoas batendo
n a porta. Com o se v ira r com a p ró p ria angústia? Essa
é a questão da p ró p ria análise, o trabalho que a pessoa
fez p ara lidar com suas urgências.
Relanço o debate.

Adriano Aguiar8
G ostaria de agradecer ao convite que m e foi feito
p o r G lória M aron. Verei o que ficou como fio p ara a rti­
cular as três falas.
A ndréa com eça relatando sobre a experiência dos
Fóruns de Saúde M ental, onde tem os que lid ar com o

8. Em 2005, C o o rd en ad o r de E n ferm aria C entro Psiquiátrico do


Rio de Jan eiro (CPRJ). A tu alm en te acu m u la esta função com a de
C o o rd en ad o r do P ro g ram a d e R esidência M édica em P siquiatria
do CPRJ.
que n ã o é da saúde m en tal: os am b u lató rio s, os outros
m édicos, outros profissionais que não tê m a fam iliari­
dade com o nosso discurso. O que vem de lá, com o p e ­
dido, é a saúde m ental no lu g a r de orelhão ou no lugar
da pedagogia. É consertar, educar, dar conta de algo
que n ão estão dando c o n ta. A n d réa diz que nosso papel
não é esse, nossa fu n ção não é essa. De fato, n ã o esta­
m os ali para colocar to d o s na norm a. P arece ser esse o
pedido: colocar na n o rm a , na reta, aquilo que desvia.
Veio-me um texto de Jacques-A lain M iller em Co-
m andatuba, onde ele dizia que, desde sem pre n a histó­
ria, o discurso da civilização te m a e stru tu ra do discurso
do m estre e a psicanálise pôde operar m u ito b em por
ser justam ente o avesso desse discurso.9 H á um a ques­
tão com a qual os psicanalistas têm de se deparar agora,
que é o fato do discurso contem porâneo te r a estrutura
do discurso do analista. E a situação que A ndréa traz é
típica de um tem po em que o discurso do m estre opera e
o que vem como pedido é o que escapa, aquilo o discurso
do m estre não tem com o conter, colocar n a fôrm a. Penso
que é precisam ente aí o n d e tem os que en trar. É preciso
ouvir quando eles dizem que a saúde m ental é complexa,
não responde nada, só devolve perguntas. N ão acho que
isso seja problem a deles. Isso é problem a nosso. Como
será que devolvemos? Só colocar questões reforça esse
lugar de orelhão.
A n a Cláudia diz q u e a u rg ên cia está em todo lu ­
gar, que é característica do capitalism o co n tem p o râ­
neo. E fala da experiência no lab o rató rio ... [risos, pelo
ato falho com etido]. V eio-m e à cabeça u m a frase doida:
a psicanálise só é boa se for laboratório. N ão lab o rató ­
rio do cientista, m as n o sentido usado p elo teatro. É um
term o do teatro, q u a n d o eles saem do setting e v ão para
a ru a fazer experim entações. Só dá p a ra ser laborató-

9. MILLER, J-A. U m a fan tasia. O pção Lacaniana. São Paulo: Eólia,


n.° 42, p. 7-18, fév. 2005.
.•a g p S S y S

lí­
rio. P ara quem lida com epilepsia, retardo, dem ência,
tudo isso o que foi listado p o r A na Cláudia, não dá p ara
ir p a ra a instituição com o divã na cabeça. Tem que se
virar, saber o que fazer com isso, com os conceitos, em
um contexto que é abso lu tam en te estranho. Espaço de
laboratório mesmo.
E aí vem a questão do tem po. É preciso tem po, tem ­
po do sujeito. Precisam os saber mais sobre essa questão
do tem po, porque se p a ra fazer psicanálise é preciso
m uito tempo, então, chegarem os à conclusão de que não
é possível. Talvez esse tem po se alongue m uito quando
ficamos impedidos de in terv ir ou não. Se ficam os inibi­
dos, com dificuldade de intervir, caímos novam ente n a
questão do orelhão. É im p o rtan te saber acolher, mas tão
im portante quanto é saber m andar embora.

D eb ate

Comentário da platéia Paula Borsói


Eu gostei m uito d a im agem que o A driano usou
de divã na cabeça e que A nam aria e G lória enfatiza­
ram . B rincando um pouco p a ra avançarm os: vam os
tira r o divã da cabeça e d eitar no divã p ara p o d e r su s­
te n ta r o trabalho.

A d r ia n o A g u ia r
Há, m uitas vezes, um desconforto p o r p a rte dos
p ratican tes que iniciam seu trabalh o na rede, com as
p ráticas que diferem do trabalho standard dos consul­
tórios particulares. Já o c o rre u de alguns an alistas in i­
ciantes passarem pelas oficinas de trabalho, p resen tes
em alguns serviços da rede, e ficarem ex trem am en te
incom odados, por co n sid erarem que estão ali im pedi­
dos de intervir, um a vez que esperam sen tar com o p a ­
ciente cara a cara, no m odelo do consultório particular.
É nesse sentido que afirm o ser preciso “d eix ar o divã
104
no consultório”. C ertam ente que p ara p o d er su sten tar
o trabalho de experim entar m a n e ja r a psicanálise nos
laboratórios, a que me re fe ri anterio rm en te, nos espa­
ços que nos fazem lidar co m a prática fora do m ode­
lo m ais conhecido do con su ltó rio particular, é preciso
deitar no divã.

Comentário da platéia Terezinha Aparecida Vieira


U m esclarecim ento q u e considero necessário,
tendo em v ista os inúm eros desentendim entos que
acredito h av er entre os serviços de saúde m ental e o
C onselhos Tutelares: C onselho T utelar n ã o é Justiça.
Ele está n a p o n ta dos serviços. Q uando pedim os um
relatório, é apenas para verificar se realm ente a criança
em questão está sendo atendida, porque se não estiver
é preciso recorrer às políticas públicas p a ra buscar um a
solução. D igo isso, porque m e parece que a confusão
entre C onselho Tutelar e J u s tiç a não é incom um em
nosso trabalho.

Andréa da Luz Carvalho


Sobre a confusão e n tre C onselho T utelar e Ju s­
tiça, m arco apenas que ela não é mal colocada, pois
acom panho, algum as vezes, u m certo receio, por parte
de quem atende, de ser p ro c e ssad o caso não cum pra
com o que exige o C onselho. D evem os estar atentos
a tal confusão e a tal receio p a ra não restringi-los a
um problem a de nom enclatura, pois a dificuldade da
interlocução das diferentes áreas existe e me parece
estar expressa aí. D iscussões de um caso podem, por
vezes, esclarecer a orientação a ser tom ada e facilitar o
diálogo. N esse sentido, a p ro v e ita r o espaço dos Fóruns
to rn a-se cada vez mais fu n d am en tal.

Comentário da platéia Gloria Maron


Bom, eu queria fazer u m co m en tário sobre o Fó­
ru m de Saúde M ental, p o rq u e o considero um disposi­
tivo m uito valioso. Estam os falando da questão do te m ­
po e localizo um tem po novo q u e se constitui a p a rtir
de um ato, de um corte, que in tro d u ziu um antes e um
depois: o F órum de Saúde M ental. A ntes, q u alq u er re u ­
nião, q u alquer idéia de fórum n a rede de saúde m ental
virava u m a espécie de p ro n to -so co rro em que cada um
dos profissionais de saúde m ental chegava com a sua
urgência, com a pressa, exigindo resp o stas im ediatas.
O dispositivo do Fórum crio u um a tem poralida-
de nova em term os de construção de rede. Introduziu
um a nova tem poralidade que im plica um a suspensão,
um a p au sa p a ra trab alh o e um envolvim ento dos p ro ­
fissionais de saúde m ental com o trabalho específico
dos atendim entos, bem como o com prom isso d a cons­
trução de rede.
Com o A n d réa cham ou a atenção, quando vigora
a idéia de u m a rede pronta, acabada, arrisca-se a ficar
preso a u m a fala que visa m o stra r o que não funcio­
na, o furo d a rede. O Fórum abre um a p ersp ectiv a de
construção onde cada u m se engaja, n a m edida c m que
se engajar form a e possibilita a tessitu ra da tram a da
própria rede.
Em segundo lugar, m arco a disjunção, introduzida
p o r A ndréa, do grave e do urgente. Precisam os su ste n ­
tar a questão: os m ais graves são os m ais urgentes?
A resp eito da fala de Ricardo, u m a fala viva apoia­
da em sua form ação em curso, m arco que aquilo que
se transm ite n a form ação é de n o ssa responsabilidade.
Não se tra ta n in g u ém com teoria, com o ele apontou,
m esm o que seja a m elhor de todas. A form ação envolve
um a v e rten te epistêm ica, que inclui o estudo da teoria,
e a verten te clínica, o aten d im en to sob supervisão e a
análise pessoal. N esse sentido, tem o s que carreg ar o
divã sim, o nosso divã, a experiência n a análise, p ara
suportar e aten d er sem se deixar fascinar pelo traum a,
pelo horror, pelas desgraças que todo dia batem em
grande quantidade, em profusão, nas unidades da rede.
4. P a r a o n d e e n c a m i n h a r : a p o s t a n d o n a
tra n s fe rê n c ia

So b r e o e n c a m in h a m e n t o
K e lly B a ta lh a S iq u e ira 1

O que p reten d o trazer h oje p ara d iscu tirm o s é um a


questão sobre a eficácia do q u e cham am os encam inha­
mento. Trata-se de considerá-lo p ara além de u m a ação
que, baseada em alguns critérios, rem ete os diferentes ti­
pos de dem andas aos lugares m a is co n v en ien tes para o
tratam en to — não esquecendo, com isso, q u e n e m toda
dem anda feita a um serviço deve resu ltar em u m a indica­
ção de tratam ento.
M esmo reconhecendo u m a certa reg u lação do fluxo
de pacientes com o um de seus efeitos, p a rto d a seguinte
idéia: encam inhar é d a r conseqüência a algo que, no caso,
é o próprio tra ta m e n to , fazendo com q u e ele avance ou
se oriente em um a d eterm inada direção. Por isso, não é
privilégio ou tarefa de u m tipo d e serviço ou de u m a equi­
pe específica. O trab alh o de e n ca m in h a r c o n ce rn e a todo
aquele que tem sob a sua respon sab ilid ad e a condução
de situações clínicas, mesm o q u e p o r u m p erío d o curto,
com o acontece em um serviço d e em ergência.
É com um que se realizem ali in te rv e n ç õ e s cujos
efeitos serão reco lh id o s por o u tro s p ro fissio n a is, em o u ­
tro s lugares. Q ue o tra ta m e n to de um su je ito possa re ­
q u e re r diferentes dispositivos, o u p o ssa n ã o ser feito por
u m só, nem em u m só lugar, a c lín ica da p sico se nos e n ­
sina. O desafio p a ra cad a um d e nós p a ssa a ser, então, o

1. Psicóloga, co o rd e n a d o ra d o CAPS H e rb e rt de S o u za FM S/Niterói.


de tra n s m itir para o u tro s aquilo que nos cabe qu an d o
tra ta m o s nossos pacien tes: tra b a lh a r p a ra fazer exis­
tir u m a rede que possa su ste n tá -lo s — pelo m enos nos
m om entos m ais difíceis.

T ra ba lh a r n a rede
Isso coloca um a ta re fa particu larm en te árdua
p a ra aqueles que trab alh am em u m a em ergência. Pri­
m eiro, p o r causa de sua p ró p ria função: in te rv ir em
m om entos específicos, p o r um tem po lim itado, geral­
m ente sem que a continuidade possa ser garan tid a pelo
m esm o profissional e, algum as vezes, com elem entos
m uitos parciais sobre o caso.
Segundo, os p acientes já referidos a um tra ta m e n ­
to geralm ente são rem etidos ao m esm o; os dem ais, que
tiverem indicação p a ra in iciar um, precisarão fazê-lo
em o u tro lugar, o que significa que dificilm ente o p ro ­
fissional da em ergência assu m irá o p ap el p rin cip al na
condução de u m caso por m u ito tem po.
É em função disso que, a m eu ver, a questão de
au to rizar o outro se coloca ali m ais do que em q u a l­
quer lugar. Boa p arte do tra b a lh o é co nseguir su ste n ­
tar essa autorização, tanto p a ra o paciente quanto p a ra
o p ró p rio profissional. Em últim a instância, significa
conduzir o trabalho de m odo a criar condições p a ra
reconduzir o sujeito ao seu lu g ar de tratam ento. N ão
é incom um ouvir em um a em ergência que “tan to foi
feito p o r determ inado caso e n a d a deu certo!”.
A experiência m o stra que o trabalho consis­
te, quase sem pre, em conseguir abster-se de algum as
coisas p a ra poder ocupar-se de outras. Por exem plo: é
preciso abster-se de p ro lo n g a r os reto rn o s p ara a te n ­
dim ento n a crise quando é possível im plicar a equipe
de assistência nessa tarefa; ou, ainda, abster-se de al­
terar prescrições m edicam entosas quando não há, de
fato, risco grave p a ra o p acien te e, quando se m o stra
inevitável fazê-lo, é preciso e n tão que o médico assis­
tente saiba das razões p a ra que po ssa d a r consequência
a elas.
T am bém não se deve precipitar, em nom e de al­
gum a reviravolta na direção do tratam en to , nem o re -
encam inham ento do p a cien te p a ra o u tro dispositivo,
nem a p ro p o sta de algum a nova m odalidade de a te n ­
dim ento, tam pouco a to m a d a de decisões que p artam
de um a h ipótese diagnostica com p letam en te diferente,
sem que oco rra antes um a interlocu ção m ínim a com os
responsáveis p elo tratam ento. Inclusive porque tal in ­
terlocução pode te r efeitos retificadores para am bas as
equipes. É certo que isso a p a re n te m e n te dá m ais trab a­
lho, mas, p a ra funcionar, n ã o depende necessariam ente
de u m consenso entre os profissio n ais o u de um a filia­
ção teórica com um . Não se tra ta disso.
É certo tam bém que o s serviços p odem se org an i­
zai' de m odo a favorecer, m a is o u m en o s, a ocorrência
de um a d eterm inada transm issão. Em u m a em ergência
psiquiátrica não é diferente. Sabem os do im pacto que
têm, p o r exem plo, as reuniões de equipe diárias, o re ­
gistro das decisões e dos p ro ced im en to s para orientar
o plantão seguinte, a facilidade de acesso aos p ro n tu ­
ários dos p acien tes que re to m a m , a clareza dos técni­
cos a respeito dos recursos da rede de saúde m ental, a
possibilidade de interlocução com os profissionais que
acom panham o paciente e etc.

A ORIENTAÇÃO DA PRÁTICA E O MANEJO DA DEMANDA


No dia a dia, faz m u ita diferença quando uma
equipe, ali m esm o na em ergência, tra b a lh a para que o
sujeito possa d ar lugar, no discurso, ao que até então
só aparecia com o sofrim ento insu p o rtáv el, m utism o,
perplexidade, crise de angústia, em puxo à passagem ao
ato. Faz m u ita diferença q u a n d o u m a equipe, diante de
situações corriqueiras, com o, p o r exem plo, lidar com
fam iliares que fazem apelos in term in áv eis em busca de
internação, não se lim ita a p e n a s a re c u sa r seus ape-
los, m as sabe aproveitar a chance desse en d ereçam en to
p ara fazê-los chegar aonde sua into lerân cia possa ser
trabalhada.
Por fim, acho que p o d e ria dizer algo sobre o que
to rn a um en cam inham ento eficaz: su sten tarm o s a p e r­
g u n ta sobre o que o rie n ta a nossa prática, de m odo a
fundar, a cada caso, um a equipe de trabalho, e ain d a
assim , continuarm os advertidos de que o ato é sem pre
de cada um.

E n c a m in h a m e n t o so b t r a n s f e r ê n c ia
M a r ia do R o sá rio C o llie r do Rêgo B arros2

E ncam inham ento e transferência são as duas p a ­


lavras colocadas p ela coordenação do C olóquio p ara
no s fazer falar de n o ssa prática. A p rim eira p e rg u n ta
que surgiu quando com ecei a escrever esse trabalho
foi: com o en cam in h ar sem transferir? O que p o d eria
p arecer paradoxal, já que m e pediram p a ra falar de e n ­
cam inham ento e transferência. A questão é, então, o
que se encam inha.
Falarei a p a rtir da m in h a experiência com o s u p e r­
v isora do Núcleo de A ten ção Intensiva à C riança Psicó­
tica (NAICAP) e do C entro de O rientação Infanto-Ju-
venil (COIJ) e agora do novo serviço que se co n stru iu a
p a rtir deles, o Serviço de A tendim ento Infanto-Juvenil
(SAIJ).
Um serviço que acolhe pacientes psicóticos está
acostum ado a receber o sofrim ento de alguém que está
às voltas com algo de insuportável, que, m u itas vezes,
não pode ser adiado. H á algo experim entado como im ­

2. Psicanalista, m em bro da E scola B rasileira de P sicanálise (EBP) e


..da A ssociação M undial de Psicanálise (AMP), docente e co o rd en a­
dora do N úcleo de P esq u isa “A crian ça no discurso an alítico ”, do
In stitu to de Clínica P sican alítica d o Rio de Jan eiro (ICP-RJ).
possível de ser suportado não só pelo paciente, m as
tam bém p o r aqueles que o trazem . Isso exige do clí­
nico um a disponibilidade p a ra acolher situações q u e
m uitas vezes já foram co n sid erad as inadm issíveis ou
sem solução p o r onde fo ra m passando. Poderá ser c a ­
tastrófico o en cam in h am en to que visa tran sferir esse
insuportável, p o r não p o d e r con stitu ir p a ra aquela si­
tuação, n a contingência d a q u ele encontro, um lu g ar de
endereçam ento. Temos q u e consid erar que são s itu a ­
ções que m uitas vezes d esen cad eiam tam bém a a n g ú s ­
tia dos profissionais de u m a equipe e que provocam ,
como defesa, a idéia de q u e existe um o u tro lugar que
seria m ais adequado, onde se saberia m elhor, onde se
teria u m p ro g ram a mais eficaz.
Podem os dizer que c o n tra o efeito devastador d a
angústia, o recu rso que n o s re sta é o de resg atar a d i­
m ensão clínica, aquela em q u e se está ao pé do leito,
com o diz a raiz grega da p a la v ra . A clínica surgiu d a
necessidade de se estar ao p é do leito p ara aco m p a n h a r
de p e rto o que acontece, c a d a efeito da terap êu tica a p li­
cada, cada sinal devendo s e r tom ado n a singularidade
de cada caso. P ara isso, foi p re c iso se despojar do sab er
considerado de antem ão eficaz p ara todos.
Ao sublinhar esse a sp e c to da clínica, não p o d e ­
m os reduzi-la à dim ensão d o o lh ar que observa o co m ­
p o rtam en to p a ra catalogá-lo. A clínica exercida a p a rtir
da preservação do não-saber dá chance ao sujeito de se
p ro d u zir na contingência do encon tro com o clínico. O
lugar dado ao sujeito ao escu tá-lo p erm ite fu rar o o lh a r
que te n d ería a reduzi-lo a s e u com portam ento, a p a rtir
do q ual lhe é atribuída um a etiq u e ta e lhe é oferecido
um encam inham ento.

C o n s t r u ir u m c a m in h o
E ncam inhar não pode ser confundido com d e s­
pachar, resolver o problem a tran sferin d o -o . O encam i­
n h a m en to deve ser resgatado em sua função de ab rir
cam inho p a ra a constituição de um sujeito que p o d e­
rá assum ir o cam inhar. Logo, o encam in h am en to não
pode dispensar de convocar e acolher o que tem ch an ­
ce de se dizer quando algo se to rn a insu p o rtáv el e pede
alívio.
Q uando esse pedido de alívio é dirigido ao saber
médico, o profissional que responde p o r esse saber de­
verá evitar cair n a arm adilha de fazer acred itar que ele
poderá controlar e/o u dom inar os sintom as p e rtu rb a ­
dores. Ele tem, no entanto, um a função fu n d am en tal
p a ra aquele paciente, quando ele consegue co n sen tir
com o limite de seu saber, pois é nessa b recha que ele
autoriza o sujeito a se dizer, a dar crédito ao seu sin to ­
ma. Com isso ele faz acreditar que é preciso in terro g ar
p a ra poder c o n stru ir u m cam inho. N en h u m cam inho
está dado de antem ão, é preciso construí-lo a cada vez,
p a ra cada um.
A presença da psicanálise em u m a in stituição é
um instrum ento que perm ite, aos diversos profissio­
nais de um a equipe, lidar com o lim ite d o .sab er não
como im potência ou desistência, m as com o m ola dos
laços de transferência, que servem de esteio ao tra b a ­
lho psieoterapêutico.

T r a n s f e r ê n c ia d e t r a b a l h o
N a psicose, esses laços se constroem quando o clí­
nico dá crédito ao saber e às construções do paciente,
quando ele aprende a se regular pelas indicações dadas
pelo paciente e está sem pre alerta p a ra evitar que o
saber dê corpo a um O utro perseguidor e invasor.
N ossa experiência no COIJ e no NAICAP m ostra-
nos que o não-saber só se to m a u m in stru m en to de tra ­
balho de um a equipe quando h á um a disponibilidade
p ara a form ação p erm anente, ou seja, q uando h á um a
disposição p ara a elaboração do saber a p a rtir de cada
caso, seguindo as elaborações e as invenções que cada
sujeito constrói n a p arceria com cada clínico. P ara isso,
é preciso um tem po de reu n ião , onde são transm itidos
os detalhes do que se p a ss o u com cad a um, das difi­
culdades experim entadas, das saídas encontradas. Esse
trabalho tem perm itido que se desenvolva um a tra n s ­
ferência de trabalho na equipe, o que te m alim entado a
busca dos instrum entos teó rico s e clínicos p ara ajudar
no trabalho de cada um.
Q uando um encontro p ro d u z efeito de sujeito, ele
deixa m arcas. É im portante su b lin h ar que essas m a r­
cas não são propriedade do clínico, m as pertencem ao
sujeito e ele pode carregá-las consigo p ara u m novo
encontro. Saber disso p e rm ite que não se recue diante
do trabalho a ser feito ao re c e b e r um paciente, sob ale­
gação de que ele n ão está n o serviço adequado. N ão se
deve perd er a chance de tir a r o sujeito do anonim ato
que prolifera a angústia. A saíd a do anonim ato perm ite
a criação de circuitos inéditos, onde o sujeito pode c ir­
cular entre vários profissionais sem se perder, sem ser
deixado cair.

So b r e o m a n e j o d a s u r g ê n c ia s s u b je t iv a s n a
CLÍNICA COM TOXICÔMANOS
V iv ia n e Tinoco M a r tin s 3

Ao confrontar o título d e sta m esa com m in h a p rá ­


tica clínica cotidiana em um C entro de A tenção Psicos-
social - Álcool e D rogas (CAPSad), p en sei em abordá-
lo a p a rtir do m odo como alguns sujeitos chegam a
nós, ou seja, a n tes m esm o de u m enlace transferenciai,
eles já nos fazem um a solicitação de en cam in h am en ­
to. C hegam com a dem anda de serem r o r A zidos para
um a internação. Nosso trC- ” _ m iciado com a te n ta ­
tiva de construção de um iaço transferenciai que possa
p e rm itir ao sujeito não se e n c a m in h a r n a direção do

3. Psicóloga do CA PSad Raul Seixas.


isolam ento em clínicas denom inadas “especializadas”.
A aposta se coloca na possibilidade de um trab alh o que
nos p erm ita acolher a urgência desta dem anda, sem
que necessariam ente o sujeito se dirija p a ra u m d isp o ­
sitivo de intern ação quando h á ausên cia de um a in d i­
cação clínica. T rata-se da possibilidade de d ar um outro
encam inham ento à urgência subjetiva que pode ser re ­
conhecida no apelo desesperado por u m a internação.

U r g ê n c ia e c o m p u l s ã o
M as de q u e u rg ê n c ia estam o s falan d o ? Q ue fe­
n ô m en o s ap arecem associados a e sta d em an d a de
in tern ação ? A in sistên c ia desta d em an d a n a clínica
se coloca com o a tra v essad a p o r um im p o ssív el de su ­
p o rtar, de controlar. São sujeitos que se a p re se n ta m
subm etidos à com pulsão pela droga, a algo que os
acom ete desde fora. T rata-se de um a relação de e s tra ­
n h a m en to com a von tad e im p erativ a de u sar drogas.
Não é raro que tais sujeitos se refiram a esta situ ação
da seg u in te m an eira: “É m ais fo rte do que eu. N ão sou
eu que quero u s a r ”. A qui, cham a a aten ção o c a rá te r
de ex terio rid ad e que m arca o discurso d estes sujeitos.
A u rgência se m anifesta n a im possibilidade de
co n ter a repetição avassaladora. E, avassalados p ela
com pulsão, estes sujeitos se colocam em inúm eras si­
tuações de risco que em alguns casos os fazem b eirar à
m orte, seja pela via de u m uso excessivo de drogas, seja
pelas am eaças do tráfico e etc.
Q uando associo a u rgência subjetiva com a m a n i­
festação da com pulsão nas toxicom anias, p rocuro e n ­
fatizar seu c aráte r de exterioridade. P ara isso, utilizei
a indicação p recisa de Rom ildo do Rêgo Barros, que
distingue duas v e rte n te s da com pulsão: da e x terio ri­
dade do sim bólico, que diz respeito ao inconsciente e
da exterioridade do real, que se m anifesta p o r m eio da
repetição au to m ática da dem anda pulsional, p resen te
nas toxicom anias e bulim ias.
A URGÊNCIA E SEU M ANEJO
Com o m anejar ta is situações de u rg ên cia sem
tira r o sujeito da cena e ratificar su a posição de ex-
terio rid ad e? É claro que as possibilidades de m anejo
n ão estão dadas a priori, m as é preciso que ten h am o s
u m a direção de trabalho que aponte p a ra um a a p o sta
n a transferência. D iante desse im possível de su p o rta r
que o sujeito enuncia em seu discurso, cabe ao a n a lista
se dispor a ocupar um lu g a r denom inado por R icardo
Seldes com o “d estin atário da urg ên cia”.4 Ao aco lh er
a urgência, o analista c r ia condições de possibilidade
p a ra que o sujeito possa atrib u ir significantes q u e ve­
n h a m dar algum sentido a o seu sofrim ento e c o n stru ir
u m a dem anda de tra ta m e n to , um a p e rg u n ta a ce rc a da
su a im plicação naquilo q u e o acom ete.
A aposta na tran sferên cia perm ite in tro d u zir a di­
m e n sã o de responsabilidade do sujeito frente à força
da repetição. Nas palav ras de B arros, “assim com o os
p a cie n te s de Freud tiv e ra m que se responsabilizar pelo
inconsciente, exterior a eles, os de hoje em dia terão
q u e resp o n d er pela rep etição acéfala da dem anda pul-
sional.”.5
S u sten tar essa a p o sta não constitui um a ta re fa fá­
cil, u m a vez que lidamos com sujeitos que se p o sicio ­
n a m rechaçando o inconsciente e avessos à associação
livre. Eles já se a p resen tam p o r m eio de um a nom eação
fe c h ad a em si mesma: “s o u toxicôm ano”, “m eu caso é
de in te rn a çã o ”.

4. SELDES, R. (2004). “La u rg ê n c ia subjetiva: u n nuevo tie m p o ”.


In: BELAGA, G. (Org.) La urgência generalizada: la p ráctica e n el
h o sp ita l. B uenos Aires: G ram a, 2004, p. 36.
5. BARROS, R. R. (2002). “C o m p u lsõ es, desejo e gozo”. In: Latusa,
n.° 7: A fu g a nas doenças im possíveis. Rio de Janeiro: EBP, 2002, p.
104.
115
O MODO DE CHEGADA NO CAPSAD
N o CAPSad Raul Seixas, lidam os com adoles­
centes e jovens adultos e é possível perceber algum as
diferenças quanto à chegada desses sujeitos. N o caso
dos adolescentes, a dem anda de intern ação em geral é
enunciada p o r um outro, que p o d e ser os pais, a escola,
o juiz, o Conselho Tutelar, as equipes dos abrigos e etc.
Com os jovens adultos, tam bém é com um que u m o u ­
tro se encarregue de enunciar a dem anda. M as cham a a
atenção o fato de que quando este sujeito fala em nom e
próprio, em geral é p a ra dizer de um im possível de su ­
p o rta r que desem boca em um a dem anda de in tern ação ,
de u m a m odalidade de contenção con creta p a ra algo
exterior que o avassala.
N a clínica com adolescentes, é raro aco n tecer de
o sujeito construir u m a dem anda de internação, m as
vez p o r o u tra ocorre. Lem bro-m e de um adolescente
de 16 anos que, diante da proxim idade de um a in te r­
rupção em seu atendim ento, em função de licença-
m aternidade da analista, se encarregou de b uscar u m a
internação. A pesar da posição da analista que ap o n to u
que n ão era preciso re c o rre r a u m a internação n aq u ele
m om ento, ele se dirigiu ao juiz da 2a Vara d a Infância e
Ju ventude e agenciou sua internação. A qui foi possível
reconhecer, nessa d em anda de internação, u m e n d ere-
çam ento, u m acting-out em resp o sta a im inente au sên ­
cia da analista.
H á casos em que reconhecem os um a clara indica­
ção de internação e outros em que o sujeito frente à di­
ficuldade de instituir um destinatário de sua urgência é
compelido a buscar u m apaziguam ento entre os m uros
das clínicas de internação. N esses casos, nossa aposta é
depositada na possibilidade de “retorno”. R etorno ta n ­
to no sentido de um a nova visita ao CAPSad, facilitada
pelo frágil laço estabelecido em um prim eiro m om ento,
ou ainda a partir do reto rn o insistente da repetição que,
não raro, se coloca presente após um a internação. Ao
sair do isolam ento, algo o aco m ete desde fora, de um lu ­
gar que o sujeito só consegue reconhecer como externo.
Ao se d eparar com o fracasso do isolam ento como fo rm a
de tratam en to do real em jo g o n a repetição, é possível
que o sujeito construa uma d em an d a de tratam ento pela
via da fala.

O ENCAM INHAM ENTO A PA R T IR DAS COORDENADAS D A


CONTEM PORANEIDADE
A questão atual, a m eu ver, é com o produzir e n ­
cam inham entos ao CAPSad, u m a vez que h á um e n ­
ten d im en to equivocado de q u e só é possível tra ta r das
toxicom anias pela via do iso la m en to e confinam ento
do sujeito. O reducionism o im presso n esta relação
estreita en tre tratam ento e in te rn a ç ã o pode ser re c o ­
nhecido em diversos setores q u e se o cupam de sujeitos
que fazem uso de álcool e o u tra s drogas. Além disso,
contam os, no Estado do Rio d e Janeiro, com um a am pla
oferta de leitos especializados de in tern ação para essa
população, ap esar das diretrizes do M inistério da Saú­
de que to m a os dispositivos d e tra ta m e n to com unitário
com o p rio ritário s. Sabemos q u e com a oferta criam os
dem anda. Cabe ressaltar que n ã o se tra ta de um a o fer­
ta qualquer. Trata-se de u m a o ferta que se en g an ch a
com a dificuldade do sujeito em lidar com a urgente e
e stran g eira com pulsão.
N essa conjuntura, em q u e h á u m a am pla oferta de
in ternações, encontram os m ais u m fato r de dificuldade
p a ra o en gajam ento do sujeito em u m tratam en to p ela
via da fala. A qui vale lem b rar a seguinte constatação
de Freud, em seu artigo técn ico “Sobre o início do tra ­
ta m e n to ”, de 1913: “os p acien tes afastam o interesse d a
análise assim que lhe é m o stra d o m ais de u m cam inho 6

6. FREUD, S. (1913). “Sobre o início d o tra ta m e n to ”. In:Edição S ta n ­


dard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigm und Freud
(vol. XII). Rio de Jan eiro : Imago, 1996, p. 152.
que p rom ete levá-los à saúde”.6 Daí a escolha m uito
freqüente e legítim a pelo cam inho da internação.
Frente à urgência de concluir, gostaria de co m p ar­
tilh a r a m in h a surpresa ao me d ep arar com u m e-m ail
de propaganda de um a clínica priv ad a de in tern ação
p a ra usuários de drogas com o seguinte enunciado:
“isolam ento do dependente e m anuten ção da ab stin ên ­
cia é o nosso diferencial”. No im pacto causado p o r essa
frase, pude localizar a in te n ç ão de situ ar a diferença
no isolam ento e na abstinência com o um a direção para
todos, universalizante.
E qual seria o diferencial do m anejo da u rg ên cia
n o trabalho do CAPSad? Penso n a possibilidade de si­
tu a r o que p roduz diferença p a ra cada sujeito que nos
procura. P ara alguns, a necessidade de u m dispositivo
de proteção pode se colocar com o prioritário. P a ra ou­
tros, a escolha de tra n sita r em u m tratam en to am bu­
latória! seria possível. A valiar as possibilidades diante
da urgência subjetiva é sem p re delicado. A postar, p or
exem plo, em um reto rn o no dia seguinte, em u m a ex­
te n sã o do tem po da urgência, exige u m cálculo dos ris­
cos e um a aposta no estabelecim ento de um laço tra n s ­
ferenciai. Trata-se, nessa aposta, no en d ereçam en to da
urgência, na construção d e u m p o n to de referência que
p e rm ita ao sujeito ir e vir. O u seja, um cam inho a lte r­
nativo ao isolam ento e à con ten ção da subjetividade.

C o m e n tá rio s
Rogério Rodrigues7
Colocarei algum as q u estões com o debatedor. A n ­
tes, agradeço à G lória M aron e à P au la Borsói p e la co­
rag em de terem m e convidado, pois não tenho fo rm a ­
ção psicanalítica. Vamos v e r no que isso vai dar.

7. S ub g eren te de In tern ação do IMAS N ise da Silveira.

118
Primeiro, algumas questões em relação à fala de
Kelly. A urgência pode acontecer e m qualquer lugar; não
necessariam ente em um a em ergência. O que nos faz pen­
sar que é possível urgência sem emergências. Que respos­
ta podería ser dada à urgência em term os de abordagem?
Encam inham entos são necessários? E a responsabilidade
do profissional? Não seria o lugar do tratam ento o ideal
p ara a abordagem da crise? Estou questionando a em er­
gência psiquiátrica no m odelo manicomial.
Tem os pensado na possib ilid ad e dos CAPS terem
a u to n o m ia p ara em itir A u to rização de Internação H os­
p ita la r (AIH), instru m en to n o rm a tiv o do SUS. O IMAS
N ise da Silveira tem um p ro je to — e é in teressan te co­
locar isso p a ra que todos co m p reen d am — que n ão é
de tra n sfe rir sua em ergência p a ra o H ospital Salgado
Filho, m as sim acabar c o m a em erg ên cia psiquiátrica,
com este dispositivo que c o n sid e ro extrem am ente p e r­
verso e equivocado.
C om relação ao que V iv ian e nos trouxe sobre os
pacientes acossados por a q u ilo que é im possível de su ­
portar, considero um p o n to delicado que exige cuidado,
pois situações que carregam esse im possível costum am
o b te r com o resposta im e d ia ta a in tern ação o u a m e-
dicalização, o que provoca u m atravessam ento. Aqui,
podem os fazer gancho com o que ap resen to u M aria do
Rosário: com o encam inhar sem tran sferir? A que a tra ­
vessam entos me refiro? D iria que à m edicalização e à
in tern ação . A em ergência p s iq u iá tric a produz isso. Ela
p ro d u z m edicalização e in te rn a çã o . É possível não dar
essas resp o stas de im ediato?
É possível um a u rg ê n c ia sem em ergência, m as
q u em está m ais capacitado p a ra avaliar a urgência? Eu
insisto, é o técnico de referên cia e não o profissional
da em ergência. M uitas vezes os técnicos, diante do que
se a p re se n ta como im possível, insuportável, sentem -se
p ressionados e não conseguem dar o u tra resposta além
de solicitar à em ergência u m a intern ação .
Marcus José Martins8
Boa tarde a todos. A gradeço ao convite de G ló­
ria e Paula p o r m e darem a oportunid ad e de trab alh ar
com vocês essas questões, especialm ente porque vejo o
dispositivo do qual tratam o s aqui com o um desdobra­
m ento de um a série de questões que estão colocadas n a
cena pública da assistência em saúde m ental da cidade
do Rio de Janeiro. Foram feitas várias referências aos
Fóruns de Saúde M ental n a m esa anterior, o que reflete
que esse encontro nos traz a possibilidade de criar algo
novo com o que trabalham os todos os dias.
H á um a tensão colocada entre a organização dos
serviços públicos da assistência em saúde m ental n a
cidade do Rio de Janeiro e os p rin c íp io s clínicos. P rin ­
cípios que m uitas vezes são tom ados inadequadam ente
p a ra determ inadas situações com as quais lidam os fre-
q üentem ente, como, p o r exem plo, centenas de pessoas
batendo em nossas portas.
Gostaria, então, de vo ltar à fala de A na Cláudia,
quando ela faz u m a distinção estrutural entre urgência e
em ergência. Trata-se de u m a conceituação que vai além
da conceituação médica, que faz um a diferença de escala
em função de um risco, ou seja, organiza a resposta no
tem po em função desse risco. Se tom arm os a distinção
estrutural entre urgência e em ergência como p e rtin e n ­
te no cam po da saúde m ental, com o eu considero que
seja, coloca-se um a questão. O quanto os lugares em que
aparecem prioritariam ente as urgências são lugares de
chance de trabalho, como nom eou Kelly? M esmo nesses
lugares, que ainda têm m uitos atravessam entos proble­
m áticos em relação aos nossos princípios, dizemos q ue
neles ainda há chance de trabalho.
E nquanto eu p ensava no título dessa m esa, refle­
tia sobre a palavra tran sferên cia e no uso com um dos

S. Psicólogo, articu lad o r da Rede de Saúde M en tal da Á rea P rogra-


m ática 4.
pronto-socorros psiquiátricos, de tran sferên cias de um a
sede p a ra outra. H á como p e n sa r algo d a tran sferên cia
pela via do encam inham ento, em bora, evidentem ente,
o conceito nos leve para o u tra s questões. Sabemos que
há um a forte tendência, um a espécie de im perativo ins­
titucional, em transferir os p acien tes. Isso, apesar de
não estar form alizado em proto co lo s, vai efetivam ente
organizando o m odo de fu n cio n am en to dos serviços.
G ostaria de tra z e r esse p o n to p a ra n o ssa discussão.
Q ual o lim ite entre um a c e rta abstenção e um fecha­
m ento que se produz a p a rtir de u m trabalho que se
lim ita a transferir, m as não a estabelecer vínculo?

D e b a te

Pergunta da platéia Glória Maron


Essa m esa levantou im p o rtan tes questões sobre o
tem a dos encam inham entos, mas, infelizmente, como
não temos m uito tempo, não poderem os estender o de­
bate. D iscutíam os no Núcleo de Pesquisa em Psicose e
Saúde M ental que a urgência v em sendo tratad a conven­
cionalm ente dentro de um enquadre que visa a restitui­
ção ao status quo, a idéia de saída da crise p o r meio de
um retorno ao que era até então. E n este Colóquio temos
a questão do que é um a intervenção que cria um tem po
novo. Romildo falava que a u rgência é u m a espécie de
etem ização do presente e que um corte produziría um
antes e depois, o analista sustentand o a possibilidade de
um futuro. Peço então a Rosário que retom e o que ela
coloca e que se articula ao q u e cada um falou sobre en­
cam inhar como criar um cam inho novo.

Pergunta da platéia Maria do Rosário Collier do Rêgo


Barros
Podem os fazer um a to rção do im possível de su­
p o rta r p ara falar que h á algo q u e p recisa se r suportado
como im possível. Só podem os tra ta r o im possível de
suportar se considerarm os que h á algo não-elim inável
nesse sofrim ento e q u e abrir um novo cam inho é dar
chance ao sujeito de lidar com este não-elim inável, já
que não h á com o escapar dele. Se co n sid erarm o s isso,
podem os utilizar vários instrum entos, inclusive a in­
ternação. Não podem os conceber um p reco n ceito com
relação a u rgência cortando esse laço com a in te rn a ­
ção, indicando-a com o perigosa. Ela p o d e ser bem vin­
da em m uitos casos, desde que seja u m in stru m en to
para tra ta r o im possível, o não-elim inável, e d ar um a
chance p a ra o sujeito se re-situar p a ra c o n tin u ar sua
cam inhada.
H á tam bém a questão de b a rra r o O u tro im perati­
vo institucional que aparece de várias form as. Podem os
p en sar n a p ró p ria idéia de referência. Às vezes, vemos
em um trabalho em equipe com a psicose com o o técni­
co de referência p o d e ser um obstáculo ao tratam ento,
u m obstáculo à transferência m ú ltipla que o psicótico
estabelece com v ário s profissionais e que concede a
chance de tra ta r ju sta m en te esse O utro im perativo, im ­
placável, pois um profissional pode ap arecer barrando
o Outro. Tam bém tem os visto essa experiência de um a
instituição, um a in stâ n cia barrando a outra. Vimos o
C onselho Tutelar, o hospital. São in stân cias que podem
cair na tentação de aten d er a um saber absoluto sobre
a situação, sobre o paciente. É preciso, nessa interlocu-
ção, abrir a b a rre ira m últipla entre as instâncias e os
profissionais.
E n c e rra m e n to

Hugo Fagundes9
Prim eiro gostaria de p a ra b en iz a r o Núcleo de p s i­
cose e saúde m ental e ag rad ecer p ro fu n d am en te à G ló­
ria e à Paula, que m e fizeram o convite. Lam ento m uito
não p o d e r ter acom panhado o desenvolvim ento dos
trabalhos. É m uito o p o rtu n o que possam os deixar fe r­
m en tan d o no ar u m a série de questões surgidas nesse
evento.
O m ovim ento rep etid o do ânim o prescritivo do
m édico que sai com o um a agência carim badora de re­
ceitas, distribuindo psicofárm acos p a ra a população,
fazendo com que algum as á re a s de n o ssa cidade batam
recordes de consum o de ansiolíticos e, mais recen te­
m ente, de anti-depressivos, nos coloca um a série de
questões: a quem a ten d em o s e como organizam os nos­
sa clientela? Aliás, os an ti-depressiv o s são um a nova
coqueluche p a ra os m édicos, inclusive fora do campo
psi, o que é um aspecto b a sta n te in teressan te p a ra pen­
sarm os o furor em p re scre v e r m edicações psis tam bém
p re sen te em cardiologistas, ginecologistas, clínicos ge­
rais.
H á quase cem anos, o c o rre u u m a coisa curiosa
no Rio de Janeiro. N a p rim e ira página de um im p o r­
ta n te jo rn al da cidade, saiu um a m atéria dizendo que
um sujeito foi atropelado p o r u m a carroça na Rua do
Lavradio. Ele foi levado p a ra u m lu g ar preparado para
aten d er situações desse tip o p o r u m a viatura tam bém
p rep arad a para atender situ açõ es desse tipo. Estava

9. C o o rd en ad o r do P rogram a de S aúde M ental do M unicípio do


Rio de Janeiro.
sendo inaugurado o p rim eiro pronto-socorro d a cida­
de. O interessante dessa notícia é que o atropelam ento
foi m ontado, com u m ator, p a ra produzir a notícia e seu
efeito. E o efeito produzido foi a construção do que é
hoje o Souza A guiar, com 1.500 atendim en to s p o r dia. É
para lá que endereçam os to d a a pouca disponibilidade
que tem os em nossos serviços petrificados. N ele não
há flexibilidade p a ra lidar com a insurgência de um in ­
suportável, com a necessidade im ediata que clam a p o r
um a palavra e p o r u m m om ento de escuta, clam a p o r
um a nova form a de organização.
A inda hoje se te m como resposta um cacoete a n ti­
go: o encam inham ento p ara um serviço m ais p re p a ra ­
do. P or exemplo, é com um a idéia de que existe apenas
um hospital psiquiátrico no estado do Rio de Janeiro
para crianças e adolescentes. Logo, todas as questões,
todas as insurgências que ocorram em q u alq u er canto
da rede de saúde, terão com o resposta o fam oso e n ­
cam inham ento p a ra o In stitu to Nise da Silveira, como
se esse tipo de cacoete tivesse algum sentido.-N ossa
tendência é fazer do Sistem a Único de Saúde algo totál-
m ente dissociado de seu propósito.
Estou fazendo aqui u m exercício extrem am en­
te crítico, radicalizando o argum ento, e posso ser m al
entendido, como se eu estivesse pasteurizando a assis­
tência e não percebesse a profundidade e a riqueza do
trabalho dos que aqui estão até agora discutindo, preo­
cupados em tra ta r de questões fundam entais. Estou ten ­
tando abordar, espero que fique claro, a organização do
Sistema de Saúde com o um todo. Situações de eclosão de
crise do sujeito, de u m insuportável, no serviço am bula-
torial, suscitando pedidos desesperados de solução, so­
bretudo porque o serviço está prestes a fechar porque já
batem 16h no relógio, acontecem . Não estam os acostu­
mados a lidar com a insurgência de procedim entos que
estão com pletam ente desconectados de nosso cotidiano,
insurgências que são com pletam ente atem porais.
R ecentem ente, houve u m a situação que me dei­
xou chocado em um a das em erg ên cias dessa cidade.
E stam os vivendo um a p ro fu n d a crise n a saúde, um a
série enorm e de dificuldades, dentre elas um a dificul­
dade de adm inistrar o tra n sp o rte en tre um a unidade
do serviço e outra. Uma p acie n te m uito jovem deu e n ­
tra d a com um quadro confusional, provocado p o r um a
abstinência de álcool, que rap id am en te evoluiu p a ra
um estado de agitação, um a pre ssã o a rterial altíssim a e
um infarto. O desespero da equip e m e cham ou a a te n ­
ção, p o rq u e eles efetivam ente não sabiam o que fazer.
A cabaram respondendo com um a terap êu tica que eu
já não ouvia falar há m uitos anos: re tira r sangue da
p acien te p a ra re-estabilizar a situação. P o r sorte, um a
série de situações contribuiu p a ra que essa pessoa con­
seguisse p assar p o r isso e chegasse outro atendim ento.
Isso está nos fazendo b u sc a r u m cam inho polêm i­
co. E stam os decididos a d e sm o n tar esses dispositivos
cham ados de pronto-socorro psiquiátrico. É necessário
re p e n sa r a idéia da pro n ta resposta. Se efetivam ente
tem os pessoas vivendo processos críticos, dram áticos,
que p o d em suscitar aparatos tecnológicos organizados
den tro da e stru tu ra hospitalar, sem dúvida algum a é
necessária tam bém a circulação de profissionais que
se ofereçam à escu ta e, a p a r tir dai, p o d er realizar u m
encam inham ento satisfatório. Para isso, é necessário
algum suporte.
O prim eiro deles é p e n sa r que b u scar m ed icam en ­
tos n ão é p ropriam ente algo q u e deva ser respondido
im ediatam ente. C ertam ente q u e um a e stru tu ra como a
que pro p o n h o n ã o é um a ag ên cia p rescrito ra de m edi­
cam entos. É necessário, p a ra que consigam os o rg an i­
zar a rede, pensar efetivam ente em u m fu n cio n am en to
em rede, p e n sa r form as em q u e possam os lid ar com
um a m argem enorm e de p e sso a s que têm g rande difi­
culdade de acesso aos serviços de saúde, e que sem pre
que conseguem chegar a eles recebem como resp o sta
I

a estereotipia da prescrição m édica. N ão h á m enor d ú ­


vida de que essa é um a das tarefas fu n d am en tais que
tem os a resolver, ligada ao nosso com prom isso ético
de e n fre n ta r as urgências. É u m a u rg ên cia do sistem a.
Poder colocar no seu lu g ar o ap arato m édico p a ra
criar situações nas quais o nosso cam po possa se fazer
presente tam bém aí e consolidar n a red e o com pro­
m isso que todos os dispositivos de cada ponto da rede
devem ter; e n c o n tra r pessoas que façam esse acolhi­
m ento, que escutem , e que dêem u m a direção ao caso, é
nosso grande desafio para p o d e r re o rd e n ar o caos que
construím os nesses cem anos, desde os tem pos do Sou­
za A guiar até o tem p o presente. Obrigado.

126
A nexo

O C O N T IN E N T E DO P R E S E N T E
R o m ild o d o R êgo B arros

François Hartog, R égim es cFhístoricité. P rése n lism e et


expériences du tem ps, Paris, Seuil, La librairie du XXI""
siècle, 2003, 258 páginas.

O tem po in teressa a psicanalistas tan to q u a n to a


historiadores. Eles fazem de form a diferente um a ex p e ­
riência prática do te m p o e de seu c aráte r não h o m o g ê ­
neo. A n tes de Lacan t e r explicado o sentido d essa d i­
versidade com seu tem p o lógico, F reud tin h a criado um
tem po apropriado à psicanálise, pelo qual o p assad o do
sujeito surgia como ficção (hystórica, segundo o e q u í­
voco lacaniano). O fu tu ro a n te rio r — que não p e rte n ce
à experiência, sendo m ais efeito de in terp retação — foi
a condição da clínica freu d ian a. Ele p e rm itiu que o so­
frim ento h u m an o p assasse à narrativ a, reen q u ad rad o
pelo passado, p resente e futuro.
François Hartog, professor n a École des Hautes
Études en Sciences Sociales, publicou em 2003 um livro
im portante dentro da discussão sobre o tempo, to rn ad a
incontornável e que surgiu a p artir do dia em que, tendo
se perdido a junção que o ligava à eternidade, nos dem os
conta de que o tem po e ra relativo. Isso foi a condição de
um a redefinição da histó ria e da invenção da psicanálise.
H arto g descreve u m a pluralidade de “regim es de
historicidade”. A ntes da Revolução Francesa, o p a ssa ­
do era o tem po forte. O p resente e o futuro estavam
em falta em relação às o rig en s, supostam ente perfeitas.
D epois, o futuro apareceu e n q u a n to m eta e inspiração.
Tudo era julgado na m edida desse devir, que não c h e ­
ga n u n ca. Essa idéia insp iro u todas as utopias que se
p ro p u seram como conclusão ú ltim a da história. D esde
o fim do século XX, en tram o s em um a vasta sin cro ­
nia, cham ada p o r H artog presentismo, um tipo de de­
saceleração do fluxo h istórico que to rn o u o p resen te
“perpétuo, inapreensível e quase im óvel”. O novo p o d e
aparecer na cena, a cadeia dos eventos pode p ro sseg u ir
seu cam inho, sem realm ente rom per com esse en o rm e
co n tin en te do presente que parece engolir tudo. N ão h á
m ais história, escreve H artog, predom in a a m em ória, e
no lu g a r do docum ento, d u ra n te m uito tem po cau sa da
história, a testem u n h a to m a a palavra p ara co n tar a
v itória da m em ória contra a história.
M em ória, história, testem unha... A psicanálise
está perfeitam ente concernida por essa form idável g u i­
nada cultural. Como não reconhecer, n a im obilidade
que an u n cia H artog, o uso do tem po dos sujeitos ditos
deprim idos, que sofrem ju sta m e n te da doença do sécu ­
lo, e p a ra quem o futuro parece ausente, ao passo que
o passado, com o dizia antig am en te H eidegger, re sta
com o “não ultrapassado”, isto é, como presente? C om o
não p e n sa r no consum ism o, essa relação tão atual com
os objetos da in d ú stria que consiste em tratá-los n ã o
um p o r um, como faria D on Juan, m as senão com o
elem entos de um a série sem fim? Se o próprio tem p o
se transform ou, se ele se dohrou docilm ente às c o n tin ­
gências, cabe à psicanálise o dever de dizer algo sobre
as condições de um a nova n arrativ a.
Parte II
i

J
I
.!

|Prt-

1
í
O C a m p o F r e u d i a n o e a u r g ê n c i a su b je tiv a :
u m a p r o p o s ta d e tra b a lh o

Pa u sa : u m a p o r t a p a r a a s u b je t iv id a d e h o je
R ic a rd o Seldes

U m a po rta aberta
C hegar à Pausa im p lic a p rim e ira m e n te en co n ­
tra r um a p o rta...

Uma porta [...] não é algo de totalmente real. To­


má-la por tal conduziría a estranhos mal-enten­
didos. Se observarem uma porta e deduzirem que
ela produz correntes de ar, os senhores levam-na
consigo, debaixo do braço, para o deserto para se
refrescarem. [...] Poder-se-ia crer [...] que se trata
do interior e do exterior. Creio que se estaria muito
enganado — vivem os em um a época suficientemen­
te grandiosa para imaginar uma grande muralha
que daria exatamente a volta a terra. E se nela f i ­
zessem uma porta, onde seria o interior? onde seria
o exterior?1

A p o rta da Pausa s e abre p ara d en tro , de form a


que, pela psicanálise aplicada, se estabeleça um laço
com os psicanalistas. D o lado de fora dos consultórios

1. LACAN, J. O Sem inário — liv ro 2: O e u na teo ria de Freud e na


técn ica da psicanálise. Rio de Ja n e iro : Jorge Z ah ar Editor, 1985, p.
375-376.
particulares, tem os a cidade, as pessoas que n ela m o­
ram e seus m odos de viver a pulsão. A o g irar a espiral,
os psicanalistas declinam da “paz” de seus consultórios
p ara sair p a ra o m ündo.
Uma p o rta assinala que h á dissim etria en tre a
abertura e o fecham ento: se aberta, a p o rta reg u la o
acesso, fechada, ela encerra o circuito — ou o ciclo,
como dizem os hoje. De cada lado de u m a p o rta pode
h aver pessoas à espreita, ao passo que em um a ja n ela
já não im aginam os algo assim . E n trar p ela janela, algo
que não deixa de ser do agrado de alguns, sem pre é vis­
to como um ato cheio de d esen v o ltu ra e, em todo caso,
deliberado; já ao passar p o r um a p o rta n em sequer nos
dam os conta.
Por isso é que a p o rta da P ausa é fu n d am en tal­
m ente percebida n a saída quando, em anam orfose,
ocorre que alguém que po ssa te r dem andado algo, saia
de form a u m p o uco mais digna do que entrou. R etom a­
m os a expressão de Lacan, “a dignidade do sujeito”2 e a
situam os no que qualificam os como a volta de sua ur­
gência. N ão se tra ta de um retorno a u m tem po prévio
no qual, p o r u m m au encontro (um sonho ruim inclu­
sive), o consultante ou seu en to rn o v iram seu equilíbrio
afetado. A postam os que esse m om ento p articu lar de
crise perm ita ab rir um a nova perspectiva, u m a nova
am arração que inclua n a sua resolução aquilo que a
provocou.

T e m p o s n a u r g ê n c ia
C onsideram os, em prim eiro lugar, a existência de
um a passagem que vai d a urgência p a ra a “urgência
subjetiva”. Tal transform ação não se produz sem um
analista. “E n q u an to p e rd u ra r u m vestígio do que in s­

2. LACAN, J. O Sem inário — liv ro 8: A tran sferên cia. Rio de Janeiro:


Jorge Z ahar Editor, 1992, p. 173.
tauram os.”3 Essa passagem, não é autom ática, depende
de u m a oferta: propor ao su jeito e m estado de ignorân­
cia o estado da causa. A u rg ê n c ia im plica u m tem po de
concluir acelerado, a p re ssa que assinala o horizonte
da passagem ao ato. P ropor um a p a u sa n ão é sem tra ­
balho.
O terceiro tem po é o de co n sen tir as intervenções
que realizam os. Se essas in te rp re ta çõ e s se m ostrarem
eficazes, coloca-se em jo g o a decisão responsável, n o ­
tável subversão da providência do inconsciente selva­
gem que jo g a o sujeito na an g ú stia m áxim a. O fato de
perm itir ao sujeito se o rie n ta r a p a rtir do recorte de
alguns significantes m estres que se produzem ali nos
indica que é possível um tra ta m e n to da urgência do
lado de fo ra do sentido. N ão se tra ta sim plesm ente de
‘c o n se rta r’ a cadeia significante rom p id a de form a agu­
da. Que o inconsciente seja B altim ore ao am anhecer,
como diz Lacan, é p en sar qual é a relação entre um
lugar e u m tem po para o su rg im en to d a dim ensão sub­
jetiva do indivíduo que d e m an d a algo; p e n sa r qual a
relação com o inconsciente.
Jacques-A lain M iller assin alo u em C om andatuba
que é preciso p en sar a tra n sfe rên c ia pelo avesso, que
o pivô da transferência n ã o é o sujeito suposto saber,
m as o am or que é o pivô d o sujeito suposto saber. Gos­
tam os de p e n sa r que a passagem do tem po dois, o da
constituição de um a ignorância artificial — “estado de
sujeito”, segundo Lacan —, p ara o tem po três, o do con­
sentim ento, im plica a configuração de um sujeito que
supostam ente sabe a solução do p roblem a que se co­
locou.
É um efeito de sujeito a p a rtir da in terv en ção do
an alista o que conduz à in sta laç ã o do sujeito suposto
saber. T rata-se de um a co n cep ção que p e rm ite in te r­

3. LACAN, J. “Do sujeito enfim em q u estão ”. In: Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Z ahar Editor, 1998, p. 237.

133
p re ta r de e n tra d a , p e rm ite dizer q u ais são as coorde­
nadas do su je ito desde o m o m en to que chega, com
intervenções m u ito m ais d iretas e ativ as que as que
n orm alm ente faríam os. Isso ta m b ém p e rm itiu que
nos abríssem os p a ra um a dim ensão n a q u al a questão
dos ciclos p e d e u m sentido distin to , p o is sem a con­
cepção do in c o n sc ie n te e da tra n sfe rê n c ia não seria
possível fe c h a r algo com um a reso lu ção rápida.
Uma vez pro d u zid a um a tran sfo rm ação mínima,
porém apreciável, o paciente da P ausa deve concluir.
A duração m áxim a de quatro m eses que fixam os não
indica explicitam ente um núm ero de sessões, já que
depende do estado de sua dem anda: u m a sessão diária,
várias sem anais. Pensam os que cada um pode chegar,
no tratam en to de sua urgência, a u m p o n to em que a
vida seja um pouco m ais possível.
Nosso dispositivo contem pla tam b ém a possibi­
lidade do tra ta m e n to “entre v ários”, q uestão que tem
se com provado com o sendo de gran d e utilidade nos
casos de urgência, nos casos de psicose com conteúdo
paranóide evidente. A m últipla tran sferên cia perm ite
um a m argem de m ovim ento que acelera a intervenção
e reduz os fenôm enos.

E O N D E ESTÁ O S U JE IT O ?
P erguntam o-nos, assim, onde e stá dim ensão sub­
jetiva. E o que é o sujeito? Lacan o define novam ente
em 1966, na ocasião de sua viagem aos Estados U ni­
dos, e o exem plifica c o m um a an ed o ta que ocorreu no
m esm o hotel onde form ulou que o in co n scien te é Bal-
tím ore ao am anhecer. Trata-se da in terv en ção que fez
a respeito da exposição de Lucien G o ldm ann.4 Lacan

4. In tervenção que o b tiv em o s graças ao nosso am igo Luis Solano.


E ncontra-se em “S tru ctu re: H um an R eality a n d M ethodoiogical
C o n cep t”, n o Sim pósio Internacional de John H opkins H um anities
Center, em B altim ore.
com eça dizendo que G oldm ann colocou a subjetivi­
dade como o sujeito do conhecim ento. Ao tran sferir
esse conceito p a ra o u tra s esferas, a ação, p or exemplo,
G oldm ann dava o exem plo de Joh n e James, que m e­
xem u m a m esa de um lu g a r p ara outro, o que faria um
só sujeito e, segundo a te o ria deste autor, estariam u n i­
dos nessa ação com um : o sujeito seria unidade.
A resposta de L acan inclui um a anedota: “queria
q u e mexessem u m a m esa” e cham a o concierge, que vem
rap id am en te com a frase: “Can I help youT. Q uando
ouve o pedido de Lacan, dem onstra-lh e certo desgosto,
p o is não é a ele que deveria fazê-lo, e sim à zeladora.
Lacan, m uito corretam ente, ainda que um pouco abor­
recido, pede ao concierge que a chame. Ela vem com
dois ajudantes que fazem quase que perfeitam ente o
que Lacan lhes pede. E ram im perfeições tão precisas
que não podiam ser involuntárias. A ssinala Lacan com
certa am argura:

O sujeito era eu, na medida em que me encontrava


em uma posição de fa lta na situação toda. O ponto
importante dessa história não é que eu tinha dado
a ordem e obtido finalm ente satisfação, mas antes
o modo como fracassei ao não pedir, de saída, à
pessoa certa na hierarquia reinante do hotel, e con­
seguir o serviço sem demasiada demora.

Lacan aproveitou a o p o rtu n id ad e para assinalar a


diferença entre o sujeito e a subjetividade.

Teria com certeza sido o sujeito se tivesse somente


sido questão de fa lta . Sou a subjetividade porque
indubitavelmente manifestei certa impaciência
com a história toda. Por outro lado, o que me pa­
rece ser o sujeito é realmente algo que não é nem
intra, nem extra nem intersubjetivo.
Q ue tipo de sujeito caracteriza u m estilo de socie­
dade no qual se supõe que cada um está pronto a res­
ponder “Can I help y o u T e ao mesm o tem po m anifesta
sua impossibilidade em fazê-lo?
É nesse in terv alo que a questão d a subjetividade
deve se colocar.
Os p ratican tes da Pausa investigam o tratam en ­
to que se pode dar a um a dem anda até quando não
se tra ta de u m a dem anda decididam ente analítica. O
trabalho da u rg ê n c ia não preten d e pro d u zir “satisfa­
ção” aos consultantes; entendem os que os direitos do
consum idor têm u m lu g ar p equeno em nossa oferta. A
urgência é um a o p ortunidade p a ra que cada um possa
se encontrar com sua falta e, é claro, com o espaço p ara
que a p a rtir da reco n stru ção de um laço, surjam afetos
como a im paciência ou a vergonha, índices certeiros de
u m questionam ento do excesso no p ró p rio gozo.

P a r a c o n c lu ir

A ndam ento d e um enco ntro


M a rcu s A n d ré V ieira

Este livro é o relato de um m om ento. R egistra o


que pareceu, p a ra b o a parte dos envolvidos, um feliz
encontro entre a psicanálise e o cam po da saúde m en­
tal. Publicando-o, buscam os d ar um alcance m ais am ­
plo às falas e idéias que o constituíram . Q ue me seja
perm itido aqui, com o editor de A ndam ento do ICP, re-
capitular suas coordenadas a p a rtir de seu contexto, seu
m om ento e do que m e ficou de sua urgência.

O CONTEXTO
No plano da rede de serviços do Rio de Janeiro a
tônica era a da desterritorialização da em ergência psi­
quiátrica. O term o, aparentem ente complicado, diz algo
simples: se a loucura n ã o precisa ficar confinada, restrita
aos m uros do hospício, p o r quê, quando se trata de u r­
gência, atribuir a ela u m nicho específico? Dito de outro
modo: p o r quê em ergências especificam ente psiquiátri­
cas? É possível ir mais longe: se não h á razão p ara res­
tringir o acolhim ento d o sofrimento de urgência a um
espaço fixo, se não há p o rq u e deixar o hospital geral fora
da crise, não há porque p e n sa r que a rede de CAPS, dos
serviços substitutivos p a ra o m anicôm io, não se pro p o ­
n h a ígualm ente a receber e intervir sobre ela.
N ada disso pode s e r estim ado caso se p erca de
vista o princípio que fu n d a a luta antim anicom ial: a
lo u cu ra não exige necessariam en te exclusão, ela pode,
ao m enos em tese, g o z ar de cid ad an ia em qualquer
parte. Como g o staríam os que isso fosse universalm en­
te válido! E specialm ente p a ra nós m esm os, em nossas
cidades partidas por to n elad as de segregação social.
A lterar um regim e de exclusão não é tarefa fácil, ainda
m ais quando se tra ta da loucura, pois, ali, por insondá-
veis decisões do se r (parafraseando Lacan), alguém de
carne e osso só pôde localizar-se fora do laço social e
da cidadania, habitando se u avesso.
Talvez a m elhor m a n e ira de caracterizar o cam po
da atenção psicossocial se ja esse: o de u m tenso equilí­
brio entre cidadania e loucura. C idadania, ali, não terá
v alo r universal. Afinal, p a ra alguns de seus integrantes,
aqueles que até h á pouco eram cham ados pacientes, ela
p o d e ser apenas u m a cam isa a mais, v estid a tão à força
q u an to àquelas que lhes im p u n h am os profissionais do
m anicôm io.

O M O M E N TO
A participação dos psicanalistas n o que se ch a­
m o u em um a época “re fo rm a ” é um fato. É o m ínim o
que se poderia esperar deles, pois tra ta -se de um a luta
essencial que vai m uito a lé m da d errubada dos m uros
da segregação. M ais que “psiquiátrica”, ela é a reform a
de um a m entalidade com relação às ações sociais sobre
a loucura em nosso país.
Sustentar a cada vez que nem sem pre o bem u n i­
versal é o m elhor p a ra alguém já justificaria, por si só,
a presença dos analistas neste cam po. N o Colóquio, p o ­
rém, tive a certeza de que havia ainda o u tra possibili­
dade de p articipação da psicanálise n a reform a. A m bos
têm em seu centro a loucura, tan to em sua concepção
restrita, de patologia, quanto am pliada, de radical es­
tranheza no in te rio r do hum ano. N isto reside a possibi­
lidade de um enriquecim ento m útuo, p a ra além d a p re ­
sença dos psicanalistas no cam po da reform a. D esde
então, tendo trabalhado com o su p erv iso r de um CAPS,
no Rio, esta certeza só aum entou.
Para aqueles que o viveram , o C olóquio teve o v a ­
lor de um acontecim ento. Saím os dali com a im pressão
de que tin h a valido a p en a m arcar h o ra e lugar p ara
que, extraídos do quotidiano, nossas falas forjassem o
novo. Este tip o de prática, ao m enos no Rio de Janeiro,
faz parte do trab alh o dos que, inseridos n o cam po da
atenção psicossocial, participam dos Fóruns, atividades
regulares su stentadas pela C oordenação de saúde m e n ­
tal do m unicípio. N este caso porém , tratava-se de um
fórum p rom ovido p o r um a instituição psicanalítica, de
orientação lacaniana, o ICP-RJ, vinculado à Escola B ra­
sileira de Psicanálise.
N isso, talvez, resida um a p a rte d a novidade. A
saúde m en tal é um cam po essencialm ente m últiplo,
feito das m ais variadas abordagens cujo p o n to com um
é um buraco negro: o saber definitivo sobre a loucura,
que n in g u ém detém . N este contexto, não h á e não pode
haver u m discurso hegem ônico. O cam po d a psicanáli­
se, p o r sua vez, feito da aposta n a singularidade, ta m ­
pouco p o d eria ser presidido p o r u m u n iv ersal coletivo.
E n tretanto, nele é possível que um a m esm a referência
conceituai faça às vezes de unidade. É a que servem
os tex to s de Freud e Lacan, p o r exem plo. N o Colóquio
isso foi m ais longe, pois a referên cia com um tanto era
conceituai quanto in stitucional, reunida sob o term o
orientação lacaniana, que sin te tiza a leitura da obra de
Lacan em preendida h á m ais de 25 anos p o r Jacques-
A lain Miller.
Esta orientação foi aplicada a um objeto, o tem a
da urgência, e suas idéias colocadas à disposição de um
bom núm ero de a to re s do cam po da saúde m ental. Re- •
úno, a p a rtir de m in h a leitu ra a posteriori, p arte das
definições ali produzidas - delas tom ando a liberda­
de de não citar n o m in alm en te seus autores (que estão
logo ali, nas páginas que nos precedem ). O leitor dirá
se elas são boas ferram en tas e se podem ser exportadas
a outros contextos.

Da u r g ê n c ia , o q u e f ic a ?
1. A urgência é a suspensão do tem po e a dis­
solução do espaço. Seu m om ento é o de um
p resente eternizado, sem am anhã, nem passa­
do. Seu lugar é o vazio e seu solo nenhum . Seus
co rresp o n d en tes afetivos se declinam como
angústia, stress e pânico.
2. Em term os lacanianos ela é a fusão do “instante
de v e r”, a b e rtu ra de um ho rizo n te novo, com
o “m om ento d e concluir”. O segundo deixa o
prim eiro para trá s sem que en tre os dois venha
se in sta u rar o “tem po p a ra com preender”, que
com eles com poria um a ação efetiva.
3. Q uando não h á tem po n em espaço, as coordena­
das do que costum am os ch am ar de subjetividade
se esfumaçam. A pesar disso, urgências subjeti­
vas existem, p o is a crise pod e ser produtiva. Ela
pode ser recuperada por aquele que estava antes
dela e que se v erá, por ela, modificado.
4. Não adianta, p o rém , querer em prestar tempo
para o “u rg en ciad o ”. A u rg ê n c ia não teria como
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aceitar a dilatação do espaço ou a acalm ia do
relógio universal, porque ela é, p a ra alguém
particular, o fim do tem po e do espaço. A inda
m ais porque, dadas as exigências de dem anda
de nossos serviços, dizer “calm a!” é tarefa a
cada dia m ais difícil.
5. Isso não contra-indica a psicanálise para o
tratam en to da urgência, pois ela, ap esar do que
dela dizem, não é o fora do espaço p a ra se p e n ­
sar a vida, n e m o fora do tem p o p a ra se acalm ar
o que vai m u ito rápido (m esm o que se possa
utilizá-la p a ra isso).
6. Essa fachada de “espaço zen ” esconde a verda­
deira essência da psicanálise que, nos term os
de Lacan, é um a lógica da ação. Ela só institui
um espaço v irtu al para re c ria r o m u n d o sub­
jetivo. E isso, ainda segundo Lacan, não se faz
sem um a certa precipitação, donde o encurta­
m ento e variação característico da sessão laca-
niana. Ela n ã o precisa n ecessariam en te do set-
ting clássico e se acom oda em b an q u in h o s de
parque, enferm arias, oficinas, CAPS etc.
7. É vital, d ian te do urgenciado, criar tem po e ar­
ran jar espaço. A psicanálise, porém , propõe que
isso se faça “de d entro”. P ara com eçar é preciso
produzir o bom encam inham ento, que leve em
conta o contexto subjetivo de quem sofre e não
apenas um a solução já pronta.
8. Nesse encam inham ento o clínico deverá estar
incluído, não por sua an g ú stia ou p o r sua von­
tade de fazer o bem , mas p o r seu desejo decidi­
do de obter o que Lacan cham ou de “diferença
absoluta”. Senão, m esm o levando em conta o
contexto do urgenciado o encam inham ento
pode ser ap en as mais um a resp o sta universal
e adm inistrativa, p o r mais carin h o sa e h u m an a
que seja.
9. Todo hom em m erece escuta, aten ção e cuida­
dos. O an alista p re c isa recusar-se ao papel de
defensor do “sujeito”, caso en ten d a-se por este
term o apenas um resg ate dos valores hum anos
e um sinônim o de subjetividade. É injusto p ara
com u m cam po tão p ro fu n d am en te hum ano
quanto o da reform a reserv ar o acolhim ento da
“subjetividade do su jeito ” a u m só profissional.
10. A psicanálise não é contraditória com cuida­
dos e atenção, m as aposta, sobretudo naqueles
elem entos inacessíveis ao conhecim ento de si
de quem sofre. Com eles co n stru irá u m elo de
ligação com o social que d ará ao urgenciado
u m novo lu g a r no O utro.
11. D essa form a, além d o encam in h am en to é p o s­
sível p e n sa r em u m a intervenção no contexto
próprio da urgência. N o entanto, com o a u rg ên ­
cia é o apagam ento d o contexto subjetivo, ela
não p o d erá co n tar com o “su jeito ”. Como o
sujeito, com o elem ento desconhecido que faz
enigm a, está fora do ar, vale m ais co n tar com
propostas e ditos do q u e com p e rg u n ta s e silên ­
cios.
12. A intervenção deverá estabelecer u m contexto
ad hoc, algo com o fu n d a r um “co n trato em ato ”
com o urgenciado. E ste contrato te rá com o base
pequenos detalhes da relação, os traços de sin­
gularidade que p e rm itirão um a ação não u n i­
versal. Isso se faz a p a rtir do que Lacan cham a
sintom a. B uscar o sin g u lar do sintom a, tom ado
não apenas com o patologia, m as com o m odo
de expressão subjetiva, pode p e rm itir que se
recrie o sujeito.
13. A fora isso, em term os m ais gerais, o Colóquio
deixou claro o quanto é preciso reto m ar as in ­
dicações da psicanálise dentro do contexto em
que elas se inserem hoje. O tem p o é cada vez
mais curto. Estam os em tem pos de urgência. A
cada dia m ais ela se com pacta n o pânico e se
dissem ina nas com pulsões.

O campo da ação psicossocial ganharia, a m eu


ver, em reafirm ar-se no universo das p ráticas hum anas
que se fundam no respeito dos poderes da fala. Não a
fala em seu sentido de com unicação, m as de expres­
são h u m an a p o r excelência, constituição de vida. A
fala carrega em suas enlouquecedoras am bigüidades,
em suas polifonias gritantes, o m elhor e o p io r do que
som os. Se há u m a lição da loucura é ju sta m en te essa:
o h u m an o é m uito m ais do que pode im ag in ar a razão.
O desafio é grande. Tanto é preciso reconquistar
um lugar para este respeito na m edicina, tão ofuscada
pelos brilhos do n eu rô n io e de suas m iragens localiza-
cionistas, q uanto o de cristalizar n a sociedade um lugar
p a ra ele. C aberá aos clínicos criar o tem p o e o espaço
deste trabalho. Os analistas, espaço em que m e inscre­
vo, não poderão fugir n essa tarefa a seu papel, o de
buscar a ação que localiza u m tropeço - um engano,
um grão de riso o u arte - e com ele, m ediação estran h a
e ilegível, reestabelece o laço. O fu tu ro dirá. M as ali,
no passado recente deste Colóquio, foi possível ver a
clínica em ação, m esm o nestas situações de urgência
quando o h u m ano parece se dissolver.

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/
preciso p ensar que n ã o se trata de m elh o rar o desem -
E penho de certas profissões, m as de saber se são dignas
de sobreviver em u m a época em que a tem poralidade
m udou. E um desafio p a ra a psiquiatria, p a ra psicanálise e
p a ra outras áreas. Se n ã o h á u m a com preensão d o que seria
um tem po plástico, m últiplo, não se consegue d a r conta da
form idável exigência que é feita à nossa geração. Se o psica­
nalista não for capaz de d a r u m tratam en to a isso, a disciplina
dele não m erece sobreviver. E um a questão de saber se h á
chances ou não d a psicanálise en tra r n o século de m aneiro
efetiva.
O interesse do cam po freudiano p o r novas experiências
clínicas e institucionais que se dedicam ao estudo e ao acolhi­
m en to das urgências subjetivas não se deve a u m m odism o ou
a u m a tentativa de estar “u p to d ate” , m as a u m a sensibili­
d a d e p a ra as transform ações n a p ró p ria experiência do
tem po. A urgência é o sintom a principal dessas transform a­
ções, que im põem u m a m u d a n ça nas m an eiras d e viver as di­
m ensões do passado, do presente e do futuro.
A dim ensão tem poral hoje se m ostra diferente de um a
época em que se tin h a u m a certa ideia de que passado, pre­
sente e futuro c o m p u n h a m u m tem po. E preciso q u e se tenha
u m a ideia, tanto n a teoria quanto n a p rática, em qualquer
nível de intervenção e de exigência do real, d e que isso se ar­
ticula com u m a ten d ên cia geral d a época. T rata-se d e pensar
que h á dados novos n a cultura. A tem poralidade é com o um
papél que se am assou e n ão voltará mais a ser liso.

Romildo do Rego Banos

ISBN 978-85-62062-03-2
aN oam eN to

N úcleo de Pesquisa em Psicose e S aúde M e n ta l 9 788562 062032


Crise, pressa, intervenção, term o s -
chave n a p rá tic a com as urgências no
cam po d a saúde m ental q u e p a re ­
cem se colocar e m co n trad ição com
a n o ção de urgência subjetiva. D e
fato, co m o p e n sa r a u rg ê n c ia do
ponto d e vista d o sujeito se ela p a re c e
incluir u m a dissolução d o "si
m esm o"? C o m o deixar c o rre r o
tem po a p ro p ria d o a c a d a um
q u a n d o u m perigo m aior, e v en tu al­
m ente a m o rte, tra z um im p erativ o
de a çã o que parece o m esm o a
todos? E m ais, o que fazer q u a n d o a
crise esg o ta as possibilidades d e ação
intrínseca e p a re ce exigir u m a in te r­
venção externa?
O desafio foi lançado pelas o rg a ­
nizadoras do evento “U rgências su b ­
jetivas" do N úcleo de Psicanálise e
S aúde M e n ta l do Instituto de C linica
Psicanalítica d o R io de J a n e iro , a
cargo, n a época, de P au la B orsói e
G lória M a ro n , evento este q u e
contou c o m a particip ação dos m ais
variados interlocutores, todos decid i­
dos a e n fre n ta r a u rgência a p a rtir de
seu ângulo clínico.
O v o lu m e q u e segue é a reed ição
d a p u b licação q u e transcrevia, u m
pouco m ais tard e, aquele m o m e n to .
R a p id a m e n te esgotada, a p u b licação
tem sido freq u en tem en te cita d a e a
ela re c o rre m m uitos, to m a n d o -a
referên cia e m assunto tão difícil. P o r
esta razão, a coleção A n d a m en to , n a
figura d e seu editor, R o m ild o do
R êgo B arros, decidiu reim prim i-la

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