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ECONOMIA E

POLÍTICA SOCIAL
Profa. Ariana Celis Leite
BLOCO 3. CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

3 Apresentação
O capitalismo contemporâneo tem buscado maneiras diferentes para manter suas
taxas de lucros. Será que ele está conseguindo? Vamos conhecer suas estratégias?
Vem comigo nesse terceiro bloco.

3.1 Crises e contradições do Capital

Contradições do capitalismo

Entrevista com David Harvey para o site Novara Media, Reino Unido

29 jun. 2014

Pergunta: Se você pudesse resumir o que é o capitalismo, da forma mais sucintamente


possível, como você o definiria?
Harvey: Capitalismo é um sistema no qual capitalistas usam dinheiro para fazer mais
dinheiro. De um modo muito clássico, eles vão ao mercado, compram os meios de
produção, compram a mão de obra, a põem para trabalhar, então produzem e vendem a
mercadoria. Até que, no final do dia, eles ficam com mais dinheiro do que tinham no início
do dia. No dia seguinte, aplicam esse dinheiro para ganharem mais dinheiro; logo, o
capitalismo é um sistema em constante expansão de acumulação de riqueza e de poder
num sentido capitalista.
Pergunta: Desde quando você diria que é um sistema?
Harvey: Já estava praticamente formado há muito tempo, nos séculos XV e XVI, acredito. A
forma industrial apenas veio no século XIX, quando se começou, de fato, a empregar
trabalho assalariado em grandes fábricas. E então criou-se o valor-trabalho do qual
capitalistas podem apropriar-se no final do dia quando eles vendem a mercadoria
produzida.
Pergunta: E o capitalismo não é tão suave, pela facilidade que faz tal processo acontecer,
quanto alguns nos querem fazer crer. Quais são as contradições nesse processo de
acumular capital?
Harvey: Acumular capital é uma espécie de processo contínuo e a qualquer momento pode
haver um bloqueio. Quer dizer, eu posso pegar dinheiro, procurar pela força de trabalho e
talvez todos os trabalhadores estejam em greve, por isso, não consigo encontrar o trabalho,
ou talvez eu não consiga encontrar os meios de produção, porque todo o minério de ferro
acabou ou os recursos se esgotaram, ou algo desse tipo. Pode ser que o processo de

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produção esteja em descompasso com a tecnologia. Se eu tenho a mercadoria, preciso
vendê-la, e se eu produzir algo que ninguém compre, todo esse esforço para produzir será
inútil. Portanto, há vários pontos onde, de fato, o processo de circulação do capital pode
travar. E se você pensar nisso como um processo contínuo, então, qualquer interrupção
dessa continuidade, significa, na verdade, que haverá uma crise para o capital.
Pergunta: E, uma grande questão, o capitalismo como um sistema, o capitalismo industrial
do qual estamos falando que começou no século XIX, pode acabar? E se pode acabar, o que
vem depois disso?
Harvey: Dos inúmeros problemas com o sistema, um deles é sobre o crescimento contínuo.
Isso acontece porque os capitalistas reinvestem parte do seu dinheiro. Eu sempre penso:
“Ah, se eles fossem pessoas normais e utilizassem o dinheiro extra apenas para consumir e
se divertirem!”. Porém, eles não podem fazer isso porque estão numa situação de
competição com outros capitalistas. Portanto, se não investirem, logo serão excluídos já
que outros irão fazê-lo. O resultado disso é o capitalismo, um sistema baseado no
crescimento contínuo. E por ter um crescimento composto, fica cada vez maior. Então, o
que vimos desde o século XIX é o sistema capitalista se expandindo geograficamente e em
intensidade. Mais e mais mercadorias indo para o mercado. Se você pensar nesse processo,
considerando que possa continuar por milhares de anos, a resposta é: Não pode continuar!
Agora, quando irá parar ou encontrar barreiras? Começamos a ver sinais de limites
atualmente. Em algum momento, nós temos que pensar em tornar a vida decente ao invés
de acumular capital.
Pergunta: A história dos fatos, desde a queda do muro de Berlim, desde o mercado de
trabalho chinês e de muitos países em desenvolvimento terem sido absorvidos, a grande
notícia é, na verdade, a redução da pobreza. Caiu drasticamente nas últimas duas décadas
o número de pessoas que sobrevivem com menos de 2 dólares por dia. Então, como
responder àqueles que dizem: “No hemisfério Norte, no oeste, o micro-ondas está mais
barato do que nunca”. E do mesmo modo, muitos em Guangzhou falam em um aumento da
qualidade de vida. Então, qual é o problema?
Harvey: O problema são os dados que você está me falando. Eu quero dizer, há diferentes
maneiras de analisar os dados. É verdade que na China, por exemplo, as pessoas vivem
melhor agora do que 20 anos atrás, por causa do processo que você acabou de falar. Mas
se você olhar a desigualdade social no mundo, verá um aumento acentuado da
desigualdade entre os muito ricos e o resto. Por exemplo, nos EUA, de onde eu vim em
1970, de modo geral, um chefe executivo ganhava em torno de 30 vezes o salário de 1

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empregado. Agora ele ganha 350 vezes o salário de um empregado médio. E temos
bilionários surgindo em todo o canto, ao mesmo tempo que vemos pessoas cada vez mais
em um estado de pobreza. Cuidado com esses 2 dólares por dia. A propósito, as pessoas
ganham agora 3 dólares por dia, mas o que você pode comprar com 3 dólares por dia? E se
os preços sobem? E de fato vimos os preços subirem. Um dos motivos porque vimos
revoluções no norte da África é o aumento no preço dos alimentos. Quando alguém diz:
“Bem, antes eles ganhavam 2 dólares por dia, agora ganham 3 dólares, isso não é bom?”. E
você diz: “Sim, mas o que eles podem comprar com isso?”. E no final isso não é tão bom
quanto aqueles dados, que você citou, fazem parecer.
Pergunta: Certo, isso não define a classe média global da qual falamos, com um consumo
maciço, que irá providenciar um mercado promissor para as exportações dos países
desenvolvidos. Há um mercado emergente na China, Brasil... Essa “nova classe média”
parece bem frágil. Como alguém da classe média pode dizer “ganham apenas 12 dólares
por dia?”.
Harvey: Vimos uma nova classe média surgindo em países como China e, fortemente, na
Índia, mas ao mesmo tempo a classe média está sob ataque. Por exemplo, até mesmo nos
EUA, a classe média está diminuindo e há mais e mais pessoas há um bom tempo
desempregadas, há mais e mais pessoas sem fazer parte da força de trabalho e há um
desespero entre os grupos que antes estavam satisfeitos com seus status de classe média.
Pode parecer bom aqui, mas não é tão bom do lado de lá. Esse é o grande problema.
Pergunta: Resposta clássica dos liberais para tudo o que disse: “Certo, a desigualdade nos
países e entre países aumentou dramaticamente desde meados de 1970. Isso é bem
conhecido, porém, se a riqueza está aumentando e os pobres, sim eles pegam a menor
fatia da riqueza, mesmo assim essa fatia é melhor do que foi em 1970. Então qual o
problema?”.
Resposta: Sim, eu ouço essa história desde quando eu era criança. Já vivi bastante e me
lembro que em 1950, diziam que nos liberariam da pobreza através do desenvolvimento do
capitalismo. Então 20 anos depois eles disseram: “A pobreza mundial ainda continua um
problema”. E mais 20 anos depois, eu até me lembro de Henry Kissinger dizer: “Logo
damos um jeito na fome”. E aqui estamos 50 anos depois. Há ainda muita fome no mundo.
E há os objetivos do milênio, quando em 2000 a ONU estabeleceu até 2015 o prazo para
acabar com a pobreza global. Nós estamos quase lá e isso ainda não aconteceu. A
dificuldade aqui é, na verdade, o capitalismo, como um sistema, que prospera com a
precarização do trabalho, mantendo salários baixos e elevando os lucros. E o resultado é

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um sistema que cria pobreza. O sistema também cria o desemprego, uma vez que o
desemprego mantém baixas as aspirações da classe trabalhadora. Então, o capitalismo
produz pobreza, produz desemprego, ao mesmo tempo que prospera com isso. Então, eles
nos dizem que com todo o superávit será possível acabar com a pobreza. Mas eu já ouvi
essa história tantas vezes desde os anos 1950, que eu acho que já é hora de todos
acordarem e dizer: “Vocês não podem usar um mecanismo que cria pobreza para se livrar
da pobreza”.
Pergunta: Se voltarmos a 2009, AIG, Lehman’s Brothers, Bestands, parece ser o fim de um
certo tipo de capitalismo. Muitas pessoas, na verdade, estão agora percebendo, que foi
provavelmente só o início do que procedeu 2009, de um modo exagerado, por assim dizer.
Então, a crise de 2009 e suas consequências, como queda de salário principalmente nos
países da OCDE, mais especificamente Estados Unidos e Reino Unido, um enorme
desemprego nos países do Sul Europeu... Enfim, qual o tamanho dessa crise? Por que
inicialmente estava sendo comparada à recessão do início dos anos 1990 e depois disseram
que era tão ruim quanto ela. Aos poucos, as pessoas começaram a comparar com a
recessão de 1929 e até com a de 1870. Então, dentro de um contexto histórico, qual o
tamanho da crise de 2009?
Resposta: Crises sempre criam e destroem, temos que nos perguntar quem se beneficia
com a criação e quem arca com os custos da destruição? Oficialmente, nós saímos da crise
em 2009 se olharmos para os direitos de lucro. Os direitos de lucro se recuperaram em
2009, mas em 2009, até mesmo o setor financeiro recebeu com êxito a ajuda financeira em
vários países. Então, o capital estava indo bem. E se olharmos para os dados, você verá que
o topo de 1%, ao qual acabamos de nos referir, saiu da crise de 2009 muito bem e ainda
aumenta sua riqueza e poder significativamente. Diria que para os ricos, para as
corporações capitalistas e para os acordos capitalistas, a crise acabou efetivamente em
2009. A dificuldade foi, na verdade, que para a maioria das pessoas esse não foi o caso. A
questão do desemprego não foi resolvida. Temos um problema muito sério com a queda no
padrão de vida. Salários, renda nacional têm caído continuamente. De fato, é a continuação
do mantra neoliberal, que ouvimos desde 1997, que é manter as rédeas sobre o trabalho,
manter os salários baixos e o desejo de acumular capital conspira por cima. Então, o que
vimos é uma destruição criadora e uma certa classe, um grupo, saiu da crise muito bem.
Enquanto a grande maioria da população, que depende não apenas de salários, mas
também das despesas do Estado, está numa situação bem difícil porque há esse mantra da
austeridade e orçamento da União. Há certas pessoas que estão arcando com os custos da

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destruição, o que inclui a massa da população. Enquanto a classe capitalista, clube de
bilionários está ficando mais rica. A Oxfam fez um cálculo que constatou um aumento do
grupo de bilionários em 2012. Isso não seria suficiente para acabar com a pobreza mundial?
Mas isso não está acontecendo, e para onde a riqueza está indo? Está indo para o bolso de
poucas pessoas.
Pergunta: Então, se 2009 foi o grande evento para o capital, anos atrás, 2011 pode nos
indicar para as respostas de contenção à crise. Você apontou a primavera árabe, mas houve
movimentos no hemisfério norte: Espanha com M15 e o J14 em Israel. E claro, o Occupy,
primeiramente nos EUA, mas em várias partes depois. O Occupy, agora, passados 3 anos,
falhou? Porque me parece que houve uma oportunidade histórica para avançar
amplamente, podendo criar uma coalizão entre classes, algo que você considera
necessário, de acordo com seu mais recente livro. O movimento Occupy falhou nesse
sentido?
Resposta: Eu não acredito que o movimento Occupy foi sequer iniciado. O Occupy foi um
movimento voluntário imediato. O que vimos ao redor do mundo, nos últimos 20 anos, são
cada vez mais explosões de eventos que traduzem o descontentamento geral. Em Londres,
houve manifestações, o que vemos no Brasil recentemente é outro exemplo do que vimos
na Turquia. Há erupções de descontentamento. O que para mim são sinais de um
descontentamento global com as condições decorrentes do modo como o capitalismo
funciona hoje. O Occupy foi um desses eventos e começou, acredito, como um movimento
pequeno e agora ele alega representar 99% da população. Um movimento pequeno que
reivindica representar a população.
O que foi interessante para mim, duas coisas foram interessantes, uma delas foi que em
pouco tempo eles mudaram a conversa. Como por exemplo, desde o grau em que estamos
falando de desigualdade social como uma questão, ao grau de, por exemplo, em Nova York
termos alguém que se dedica a fazer algo com relação à desigualdade, embora,
francamente, ele não será capaz de fazê-la, e ao grau que essa questão irá voltar até
ouvirmos o discurso de Obama. Tudo tem a ver com o Occupy mudar a natureza da
conversa. É interessante, todos sabem agora o que querem dizer com o topo de 1%. Agora
é como um jargão do discurso político que falamos o tempo todo, sobre o 1% agora todos
sabem do que estamos falando. Portanto, o Occupy teve êxito em mudar a conversa e acho
isso importante politicamente.
O segundo ponto interessante foi a velocidade e a violência da reação das forças, isto é, o
modo como a polícia reagiu foi tão rápido e duro que me faz acreditar no medo profundo

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nos banqueiros, em Wall Street e no 1%. Movimentos populares desse tipo podem se
fortalecer e os poderosos estarão em perigo. Em Nova York, por exemplo, o que vimos foi
um bilionário prefeito sendo instruído pelos bilionários de Wall Street para mandar a polícia
em cima dessas pessoas. A violenta resposta do poder político em relação ao Occupy foi
bastante marcante comparado a dizer que não houve resposta parecida ao Tea Party. O
Tea Party pode, por exemplo, ocupar o Nacional Monument ou algo parecido e ninguém fez
nada. Porém, o Occupy representou uma ameaça real. Não acho que eles perceberam a
ameaça que eles provavelmente eram. Não acredito que o Occupy se consolidou, mas não
se esgotou, é claro. Gostaríamos de vê-lo ressurgir de algum modo. E acredito que esses
tipos de movimento, que vimos no Parque Gazi, em Istambul, como também vimos em
quase 50 cidades do Brasil recentemente, esses movimentos não morreram. Eles estão
vivos. Bom, acredito que veremos muito mais. A grande questão é, como eles podem se
consolidar em algo com um plano de campanha coerente. Como o dever de dar voz a seu
descontentamento gritando canções de protestos e músicas de protesto e daí por diante.
Pergunta: Conservadores inteligentes sempre foram caracterizados por uma grande citação
de Thomas Macaulay: “Reformar para poder preservar”. É similar ao que disse o príncipe
Tancredi em Il Gatoppardo, produzido por Lampedusa. “Temos que mudar tudo para
manter tudo o mesmo”. Até onde você acha que as elites estão cientes da natureza dessa
crise e das possibilidades advindas das ações de contenção dessa crise? E eles são capazes
de se adaptarem às novas condições, ou melhor, atenuar seus efeitos? Ou capazes de
responderem politicamente? Você vê alguma ação? Porque além da citação de George
Soros, eu não vejo.
Resposta: Não, eu acho que as elites estão divididas. Eles se dividiram agora por clubes
nacionais de bilionários. Bilionários indianos são bem diferentes e os russos também se
diferem bastante. Eu não acho que tenham uma visão consolidada. Há alguns deles como
Soros, Warren Buffet, os grandes filantropos que acham que algo deve ser feito. Não
acredito que as elites tenham ideia do que fazer, porque o que eles veem, e acho isso
bastante significativo, o que eles veem é o aparato repressivo, aparato de vigilância e o
Estado paralelo podem ser facilmente usados para reprimir qualquer movimento contrário.
Acho que essa repressão pode ser violenta e em outros casos haverá controle através dele,
infiltrações. E eu mencionei a resposta violenta ao Occupy Wall Street, nós vimos uma
resposta violenta na Turquia, por exemplo, o que houve em Gazi, Parque Gazi. Eu acho que
essa é uma questão em andamento. Acredito que, no momento, a ponto de que não há
nenhuma resposta consolidada por parte do 1%, deixe então o Estado tomar conta disso.

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Nós pagamos, nós elegemos, nós controlamos... Deixe o Estado mandar a polícia para cima
das pessoas, então poderemos manter nossa riqueza do jeito que está. Há pouca empatia
por parte do topo de 1% para com as condições de vida da maioria da população no
momento.
Pergunta: Então se os poderosos da Turquia, até EUA, Espanha, Itália, Reino Unido, se eles
estão dizendo que talvez não podem mais governar através de consentimento e não é o
caso de resultar uma coerção nesse contexto, qual a utilidade e instituições e processos
eleitorais para aqueles que querem mudar as coisas?
Resposta: Acho que os processos eleitorais, e muitos já se convenceram disso, se tornaram
bastante inúteis. E isso é uma conclusão bastante forte. A tal democracia que temos é na
verdade uma democracia de dinheiro e poder e não há muito que se possa fazer. Essa
contínua esperança em acreditar que algo possa mudar, por exemplo, um prefeito liberal
eleito em Nova York que deu sinais do que ele quer fazer. Porém, percebe-se facilmente a
estrutura de poder de Wall Street agindo muito rápido para cercar suas possibilidades. Eles
literalmente compraram o governo democrata do estado de Nova York e agora esse
governo de Nova York disciplina a única pessoa do partido democrata que possa trazer
algum tipo de política que beneficie a massa da população. Então, de novo, acho que as
pessoas da política reconhecem o processo político. Elas podem estar errados em fazê-lo,
mas acho que há uma grande frustração com o processo eleitoral. E fora isso, começamos a
ver novas ideias de como se fazer política, que envolvem algo como os protestos,
assembleias populares, no verdadeiro sentido da palavra, tentativas de se autogovernarem
e outras maneiras de se fazer política por outros meios. Ainda não chegaram muito longe a
fim de se institucionalizarem, isso ainda tem que ser pensado, mas o que vimos foi um
contorno para cima do Estado e do processo político numa tentativa de fazerem algo
diferente, como vimos na Espanha os indignados e vimos também vários outros contínuos
processos em diferentes países.
Pergunta final: Você é um otimista?
Resposta: Depende do dia da semana. Na quinta, sou otimista e, na sexta, sou um
pessimista, depois eu volto a ser otimista, depende da situação. Acho que há muito escopo
para esperança. Para ser sincero, então eu não diria que sou um pessimista universal.
Porém, há alguns dias quando olho para a situação e me pergunto, como as pessoas
conseguem tolerar o modo estúpido com que o mundo está sendo governado? Enquanto
há soluções muito simples que poderiam ser aplicadas simplesmente por se tratar de seres
humanos e dizer: “Vamos todos compartilhar o poder e deixar todos se juntarem num

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processo coletivo de se autogovernar”. Eu acho que há muitas pessoas conscientes disso,
então eu fico bastante otimista, mas então eu olho as notícias e penso: “Isso é terrível”.

Tradução por Yuri Machado. Colaboração John Morgan.


Confira a entrevista em: https://www.youtube.com/watch?v=mFSZYm3kfSw
Para saber sobre David Harvey, acesse:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/david-harvey.htm

3.2 Neoliberalismo
O binômio fordismo-keynesianismo que regeu o capitalismo de 1945 a 1973, depois
disso, passou a indicar sinais de esgotamento.
Assim, diante da crise econômica colocou-se em xeque a dinâmica capitalista centrada
no modelo keynesiano-fordista e/ou welfarista, sob o argumento de que o Estado
gastava demais, era ineficiente e, por conseguinte, era um empecilho ao bom
funcionamento do mercado.
Com a crise, tornou-se necessário pensar em novas alternativas, dessa forma, o
processo de reestruturação do capitalismo determinou dois tipos de ajuste estrutural
distinto, mas inerentes ao movimento do capital: a reestruturação produtiva na esfera
da produção e a política de Estado Neoliberal.
O propósito do neoliberalismo era combater o keynesianismo e o solidarismo
reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras
para o futuro. Com a crise de 1970, as ideias neoliberais passaram a ganhar terreno.
Inicialmente, a tese foi defendida pelo economista austríaco F. Hayek na década de
1940, em seu livro O caminho da servidão, e inaugurada pelo governo chileno, em
1973, com Pinochet.
Exemplo da disseminação do ideário neoliberal ocorreu nos EUA já no início da década
de 1980. Nesse ano, Ronald Reagan foi eleito nos EUA com o slogan “O retorno da
América” e frases como “Não espere que a solução venha do governo. O governo é o
problema”. No Reino Unido, como representante do partido conservador britânico,
Margareth Thatcher ascendeu ao poder em 1979 e o exerceu até 1990. Na América
Latina, com especial relevo no Chile e na Argentina, sob ditaduras militares, estava em

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curso a adoção de políticas econômicas orientadas por equipes econômicas da Escola
de Chicago, notadamente conhecida pela ortodoxia monetarista já na década de 1970.
As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no
poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento
operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões
reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado
aumentasse cada vez mais os gastos sociais.
Segundo a ideologia neoliberal, conforme Anderson (1995),
seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com
bem-estar, e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de
um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos (ANDERSON, 1995).

Soberania do mercado, privatização e terceirização são características gerais desse


modelo. Na América Latina, esse modelo tem se dado via disciplina fiscal, estabilidade
monetária, redução de gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira e
comercial, alteração das taxas de câmbio, investimento direto estrangeiro,
privatizações e desregulamentação econômica.
Braz e Netto (2006) esclarecem que o capitalismo necessita do Estado, portanto, seu
real objetivo não é a “diminuição” do Estado, mas sim de suas funções relacionadas à
satisfação de direitos sociais. Dessa forma, seria um Estado mínimo para o trabalho e
máximo para o capital.

3.3 Consenso de Washington


A reunião ocorrida em 1989 e composta por líderes políticos e autoridades de diversos
países da América Latina, bem como por representantes dos principais organismos de
poder internacional e dos EUA, ficou conhecida como Consenso de Washington e
marcou a incorporação das políticas ditas neoliberais na agenda das principais agências
financeiras internacionais (FMI, BM, BIRD etc.), bem como na maioria dos países, como
resposta à crise e às mudanças nas correlações de forças político-ideológicas.
Entre as principais políticas e reformas traçadas nesse “consenso”, que se converteu
em diretriz política das principais agências multilaterais, estão: disciplina fiscal,
redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbios flexíveis,

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abertura comercial, investimento estrangeiro direto com eliminação de restrições,
privatização das estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e
trabalhistas), e direito à propriedade intelectual.
Em suma, o Consenso de Washington foi um golpe certeiro para redução dos gastos
sociais do Estado em prol da ofensiva do capital, a fim de canalizar o máximo possível
do fundo público aos setores empresariais.
Na medida em que os países recorriam à ajuda dos órgãos internacionais, eram
concedidos empréstimos mediantes “condicionalidades econômicas” e exigências de
“refuncionalização do Estado”.
As transformações na esfera produtiva se combinaram às políticas de ajustes fiscais,
corte de gastos sociais e pressão por desregulamentação de direitos. Contudo, a
definição da refuncionalização do Estado não responde às determinações quanto às
raízes dos problemas que fundamentam as crises cíclicas do capitalismo (Lei geral de
queda tendencial nas taxas de lucro).

3.4 Reestruturação Produtiva


A reestruturação produtiva foi uma das respostas do capital à queda das taxas de lucro
implantando uma nova forma de produção: o toyotismo. Essa forma de organização da
produção difundiu-se nos anos 1980 em oposição ao modelo fordista, que
pressupunha produção hierarquizada e em larga escala. Ao contrário, o modelo
japonês teve como base o uso de tecnologias microeletrônicas e mais automatizadas,
assim como a produção horizontal e flexível, que tornou os trabalhadores
multifuncionais e autofiscalizadores. Como consequência, viabilizou-se a produção
com alta produtividade em unidades fabris de pequeno porte, o que permitiu a
expansão do processo de descentralização e terceirização das atividades.
As novas tecnologias permitiram inovações que baratearam os custos da força de
trabalho e houve também um processo de intensificação do trabalho ao longo da
jornada.
A reestruturação produtiva caracteriza-se como um processo de acumulação flexível
em que se visa extrair o máximo de produtividade da força de trabalho com o menor
custo possível, como também pela intensificação da extração de mais-valia tanto na

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forma absoluta quanto relativa, o que, por sua vez, proporcionou aumento dos lucros.
Contudo, o arrocho salarial e o aumento da superpopulação relativa não promoveram
crescimento econômico. Se, por um lado, não houve ampliação do acesso ao consumo
e tampouco redistribuição de renda, por outro, a reestruturação produtiva resultou
numa retomada da rentabilidade do capital à custa da classe trabalhadora.
A acumulação flexível se apoia tanto na flexibilidade dos processos e mercado de
trabalho como no de produtos e padrões de consumo. Esses quesitos aumentados de
flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores exerçam pressões mais
fortes de controle sobre uma força de trabalho já enfraquecida. Implica, ainda, altos
níveis de desemprego, rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos
modestos de salários reais (quando há) e o retrocesso do poder sindical.
Diante da volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das
margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e
da grande quantidade de mão de obra excedente (desempregados ou subempregados)
para impor regimes e contratos de trabalhos mais flexíveis.

3.5 Financeirização e globalização do capital


3.5.1 O que é globalização?
A globalização pode ser pensada em diferentes contextos e épocas. Poderíamos, por
exemplo, discorrer sobre isso a partir da análise da expansão do império romano ou
até mesmo das grandes navegações, contudo, para fins de análise mais específica do
tema, vamos nos ater à realidade pós-1970, quando os economistas começaram a
difundir o conceito de globalização, definindo-o como um cenário em que as relações
de comércio entre os países fossem mais frequentes e facilitadas.
De maneira geral, podemos definir a globalização contemporânea como um aspecto da
realidade atual que se manifesta nos planos econômico, político e cultural, através da
aceleração do intercâmbio entre mercadorias, capitais, informações e ideias entre
países, ocasionando redução das fronteiras geográficas. Empresas, indivíduos,
movimentos sociais e governos estão conectados a uma extensa rede de informações,
o que traz impactos econômicos, culturais e políticos profundos à sociedade.
Mas que impactos seriam esses?

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No âmbito econômico, podemos citar a abertura econômica, a expansão das
transnacionalização das empresas, as grandes fusões e o alargamento da
interdependência financeira entre países e capitais. Se, por um lado, houve maior fluxo
de capitais e mercadorias, por outro, a concentração de riquezas não se reduziu e
tampouco se alterou consideravelmente a geopolítica-econômica global. Entre as
grandes potências mundiais de hoje, os únicos países a elevarem o grau de
desenvolvimento a um patamar compatível ao dos países imperialistas do pós-guerra
foram a Coreia do Sul e a China.
No âmbito político, ocorreu o fim da Guerra Fria e da URSS e, com isso, também se
expandiram as concepções em prol do livre mercado. Em contrapartida, houve
redução das fronteiras geográficas no que diz respeito às mercadorias (blocos
econômicos) e, em alguns casos, até a facilitação da circulação de pessoas (como no
caso europeu e do Mercosul). Nesse ambiente, também não se pode deixar de dizer
que os estadistas passaram a ter menor grau de autonomia e soberania, haja vista que
as ações globais passaram a ser fortemente mediadas pelos organismos econômicos,
políticos e financeiros internacionais como: Banco Mundial, ONU, FMI e OMC.
No aspecto cultural, por sua vez, houve uma mundialização do acesso à cultura
(cinema, música, literatura) e até mesmo maiores inter-relações culturais relativas ao
mundo dos esportes e gastronomia.
De acordo com o professor Milton Santos,
se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim apresentado é
verdadeiro, e não queremos admitir a permanência de sua percepção enganosa,
devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só (SANTOS,
2000).

Desse modo, o autor considera que há três formas de manifestação da globalização: a


globalização como fábula, a globalização real ou perversa, e a globalização como ela
pode ser. A primeira trata-se da visão ideológica da globalização como um conto de
fadas, uma fantasia da qual só se replicam potencialidades positivas da mesma sem
expor a face real e cruel do aumento da exploração, da desigualdade e concentração
de riquezas produzidas nesse ambiente econômico global. Trata-se da “história dos
vencedores contada pelos próprios”.

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A outra face dessa visão distorcida da realidade é justamente a exposição das mazelas
produzidas no âmbito do capitalismo global, isto é, do desemprego crônico, a redução
dos salários, a generalização da fome, doenças e epidemias (Aids, ebola etc.), a
elevação dos níveis de concentração de riquezas e o aprofundamento das crises
econômicas.
Por fim, o autor destaca potencialidades para que se conjugue o desenvolvimento das
forças produtivas ao desenvolvimento humano de tal modo que seja possível se utilizar
das tecnologias disponíveis e reduções das fronteiras como uma potencialidade
humanística em que o homem não as use para explorar o próprio homem, mas como
forma de tornar as condições de vida melhores a todos.
Assim, pode-se concluir que a globalização trouxe um aumento dos fluxos
internacionais de mercadorias, capitais e informações, os quais perpassam os vários
países e afetam a dinâmica econômica das empresas, a realidade social dos indivíduos
e as opções políticas de partidos e movimentos sociais. Porém, muitos estão à margem
desse processo, carentes de bens de consumo e tecnologias, incapazes de acessar
muitas informações e imunes à “padronização” dos valores sociais e morais impostos
por esse processo.

3.5.2 Globalização e financeirização


Os fluxos de capitais financeiros já eram significativos desde o século XIX. Porém, após
a crise de 1929 e o advento do nacionalismo keynesiano pós-Segunda Guerra Mundial,
entre 1950 e 1970, a esfera financeira passou a ser amplamente controlada. Nesse
período, ocorreram políticas de desestímulo às aplicações financeiras fora do país; o
capital externo de longo prazo foi fornecido exclusivamente pelo FMI e Banco Mundial
a taxas baixas e houve limites para aplicações nas bolsas estrangeiras.
Entretanto, em 1971 o pacto de Breton Woods firmado logo após o fim da Segunda
Guerra Mundial foi quebrado. Nesse ano, se extinguiu o padrão de reservas financeiras
com lastro em ouro de modo que o dólar passou a funcionar como moeda padrão de
equivalência universal. Com isso, o valor das moedas passou a oscilar mais, sendo
determinado pelo mecanismo de oferta e demanda por moeda interna e em relação
ao dólar. Essa ação gerou maior instabilidade monetária, sobretudo às moedas “mais

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fracas” oriundas de países periféricos que acabaram sofrendo com processos
inflacionários. Esse processo também gerou estímulo a aplicações financeiras em
reserva em dólar; logo, houve maior capacidade especulativa e menor autonomia
econômica interna aos países.
Soma-se a essa crise o fato de ter ocorrido a crise do petróleo provocada pela criação
da OPEP e que culminou na elevação do preço do petróleo em quatro vezes. Com o
aumento dos preços do petróleo, os países fornecedores passaram a investir os
petrodólares em bancos europeus, que, por sua vez, dispondo de mais crédito,
passaram a efetuar empréstimos de curto prazo aos países de Terceiro Mundo (sendo
assim, finda o monopólio de financiamento por parte do FMI e BM) que estavam
endividados em função dos acontecimentos supracitados. Logo, esse período foi o
marco para a abertura de capitais financeiros ao exterior e para o surgimento de novas
instituições financeiras globais.
A globalização financeira gerou alta rentabilidade, sobretudo aos bancos e empresas
de capital aberto, mas também causou alta especulação internacional, e aumento do
endividamento dos países. Houve crescente expansão dos empréstimos por parte dos
países periféricos, principalmente a fim de saldar os déficits externos na balança de
pagamentos (exportações maiores que as importações) e pagamento dos juros da
dívida. Em suma, não seria exagero afirmar que a financeirização seja a principal
responsável pelas sucessivas crises, principalmente na periferia.

a. Ações gerais dos movimentos do capital financeiro decorrentes desse período:


• bancos vão à caça de maiores rentabilidades;
• maior abertura de capitais de empresas;
• expansão da emissão de títulos da dívida dos governos, que levou ao aumento
das taxas de juros internas (SELIC no Brasil), pois este passou a ser o único
mecanismo usado como forma de atrair o capital estrangeiro;
• o aumento da taxa de juros levou os governos a adotarem medidas restritivas
quanto aos gastos públicos, uma vez que, teriam de cumprir os contratos de
pagamentos da dívida; logo, escasseariam os gastos sociais em favor do
pagamento dos juros e amortizações;

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• maior informatização e redução das falhas assimétricas de informação;
• lucros financeiros superam os lucros produtivos (capital fictício).

b. As novidades financeiras (surgimento de novas formas de investimentos):


• fundos de pensão (aposentadoria futura);
• seguradoras (casas, automóveis, saúde);
• fundos de investimentos (em empresas e títulos);
• derivativos (opções) – compra e venda futura;
• expansão do crédito (cartões de crédito, financiamentos e empréstimos) e
globalização do dinheiro (maior convertibilidade e mais informações sobre
cotações).
Objetivo: GANHAR DINHEIRO FÁCIL (sem produzir nem vender nada real)

c. Os Planos do FMI:
Realização de empréstimo sob condições de ajuste fiscal (disciplina fiscal, controle da
inflação e corte de gastos dos governos).
Consequências:
• redução dos gastos sociais e investimentos públicos sem reduzir a carga
tributária (pois o recurso proveniente desse corte era usado para saldar os
juros da dívida);
• elevação das taxas de juros (a fim de conter a inflação). Bom para os
emprestadores, mas péssimo para o setor produtivo nacional;
• maior concentração de renda, e;
• aumento do desemprego e da pobreza.
Conclusão: ao invés de combater as crises, os planos do FMI as agravaram.

Referências do bloco 3
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P; (Org.) Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995, p. 9-23.
BRAZ, M.; NETTO, J. P. Economia política. São Paulo: Cortez, 2006.

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SANTOS, M. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000.

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