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SUMÁRIO DO CAPÍTULO

FÍGADO E VIAS BILIARES


Características gerais da doença hepática
Mecanismos de lesão e de reparo
Respostas dos hepatócitos e do parênquima
Formação e regressão de cicatrizes
Insuficiência hepática
Insuficiência hepática aguda
Insuficiência hepática crônica e cirrose
Hipertensão portal
Insuficiência hepática crônica agudizada
Distúrbios infecciosos
Hepatites virais
Vírus da hepatite A
Vírus da hepatite B
Vírus da hepatite C
Vírus da hepatite D
Vírus da hepatite E
Síndromes clínico-patológicas de hepatite viral
Infecções bacterianas, fúngicas e parasitárias
Hepatite autoimune
Lesão hepática induzida por medicamentos e toxinas
Esteatose hepática
Doença hepática alcoólica
Doença hepática gordurosa não alcoólica
Doença hepática hereditária
Hemocromatose
Doença de Wilson
Deficiência de α1-antitripsina
Doença colestática
Formação e secreção de bile
Fisiopatologia e hiperbilirrubinemia
Icterícia fisiológica do recém-nascido
Hiperbilirrubinemia hereditária
Obstrução dos grandes ductos biliares
Colestase da sepse
Hepatolitíase primária
Colestase neonatal
Atresia biliar extra-hepática
Colestase neonatal não obstrutiva
Colangiopatias autoimunes
Colangite biliar primária
Colangite esclerosante primária
Anomalias estruturais da árvore biliar
Cisto de colédoco
Doença fibropolicística
Distúrbios circulatórios
Comprometimento do fluxo sanguíneo para o fígado
Comprometimento da artéria hepática
Obstrução e trombose da veia porta
Comprometimento do fluxo sanguíneo ao longo do fígado
Obstrução do fluxo venoso hepático
Trombose da veia hepática
Síndrome da obstrução sinusoidal
Congestão passiva e necrose centrolobular
Doença hepática associada à gravidez
Pré-eclâmpsia e eclâmpsia
Esteatose hepática aguda da gravidez
Colestase intra-hepática da gravidez
Nódulos e neoplasias
Lesões não neoplásicas expansivas
Hiperplasia nodular focal
Outras lesões expansivas não neoplásicas
Neoplasias benignas
Hemangioma cavernoso
Adenoma hepatocelular
Neoplasias malignas primárias
Hepatoblastoma
Carcinoma hepatocelular
Neoplasias biliares malignas
Outras neoplasias malignas hepáticas primárias
Metástases

VESÍCULA BILIAR
Anomalias congênitas
Colelitíase (cálculos biliares)
Colecistite
Colecistite aguda
Colecistite crônica
Carcinoma de vesícula biliar

Fígado e vias biliares


O fígado adulto normal pesa 1.400 a 1.600 g e tem duplo suprimento sanguíneo, em que a veia porta
do fígado fornece 60 a 70% do fluxo sanguíneo hepático, ao passo que a artéria hepática fornece os 30
a 40% restantes. A veia porta do fígado e a artéria hepática entram pela face inferior do fígado através
do hilo ou porta do fígado. No interior do fígado, os ramos das veias porta, as artérias hepáticas e os
ductos biliares seguem um trajeto paralelo nos tratos portais.
O modelo de lóbulos fornece uma maneira conveniente de considerar a organização
anatômica do fígado (Figura 18.1). Nesse modelo, o fígado é dividido em lóbulos hexagonais de 1 a
2 mm, que são orientados em torno das tributárias terminais da veia hepática. As veias situam-se no
centro dos lóbulos e, portanto, são denominadas veias centrais (também chamadas de
centrolobulares), ao passo que os tratos portais estão localizados na periferia. Cada lóbulo pode ser
dividido em seis ácinos triangulares. Os hepatócitos na vizinhança da veia central são denominados
“pericentrais” e encontram-se na “zona 3”, ao passo que os hepatócitos próximos ao trato portal são
periportais e pertencem à “zona 1”. De forma notável, determinados tipos de lesão hepática afetam
preferencialmente os hepatócitos em zonas específicas (ver Figura 18.1). Essas diferentes
sensibilidades resultam da variação na oxigenação dos hepatócitos (maior na zona 1 e menor na zona
3) e das atividades metabólicas da periferia em direção ao centro do lóbulo.
Dentro do lóbulo, os hepatócitos estão organizados em lâminas ou “placas” anastomosantes,
denominadas trabéculas, que se estendem dos tratos portais até as veias hepáticas terminais. Entre as
placas trabeculares de hepatócitos, estão os sinusoides vasculares. O sangue atravessa os sinusoides e
passa para as veias hepáticas terminais através de numerosos orifícios na parede da veia. Assim, os
hepatócitos são banhados nos dois lados por uma mistura de sangue venoso portal e sangue arterial
hepático. Os sinusoides são revestidos por endotélio fenestrado. Abaixo das células endoteliais,
encontra-se o espaço de Disse, no qual se projetam numerosas microvilosidades dos hepatócitos. As
células de Kupffer dispersas, que pertencem ao sistema fagocítico mononuclear, estão fixadas à face
luminal das células endoteliais, e as células estreladas hepáticas que contêm gordura são encontradas
também no espaço de Disse. Entre os hepatócitos contíguos, encontram-se os canalículos biliares, que
são canais de 1 a 2 μm de diâmetro, formados por sulcos nas membranas plasmáticas dos hepatócitos
e separados do espaço vascular por zônulas de oclusão (junções firmes). Esses canais drenam nos
canais de Hering, que, por sua vez, se conectam com os dúctulos biliares. Os dúctulos deságuam nos
ductos biliares interlobulares dentro dos tratos portais. No fígado normal, observa-se também a
presença de muitos linfócitos (em sua maioria células T gama delta, mas também células natural killer
[NK]), compreendendo até 22% das células, além dos hepatócitos.
Figura 18.1 Modelo de anatomia do fígado. No modelo do lóbulo hexagonal, a veia hepática terminal (VC)
encontra-se no centro de um “lóbulo”, ao passo que os tratos portais estão na periferia. Esses pontos de
referência servem para identificar o parênquima “periporta” e “pericentral”. No modelo acinar, com base no
fluxo sanguíneo, podem ser definidas três zonas, estando a zona 1 mais próxima do suprimento sanguíneo
portal, e a zona 3, mais distante. AH, artéria hepática; DB, ducto biliar; VP, veia porta.

Características gerais da doença hepática


O fígado é vulnerável a uma grande variedade de agressões metabólicas, tóxicas, microbianas,
circulatórias e neoplásicas. Além disso, ocorrem danos hepáticos secundários a outras doenças, como
insuficiência cardíaca, câncer disseminado e infecções extra-hepáticas. A enorme reserva funcional do
fígado mascara o impacto clínico dos danos hepáticos leves; entretanto, com a progressão de doença
difusa ou a ruptura do fluxo biliar, as consequências da alteração da função hepática podem se tornar
potencialmente fatais.
Com exceção da insuficiência hepática aguda, a doença hepática é um processo insidioso, em que
a detecção clínica e os sintomas de descompensação hepática podem ocorrer semanas, meses ou
muitos anos após o início da lesão. A flutuação da lesão hepática pode ser imperceptível para o
paciente e só detectável por anormalidades dos exames laboratoriais (Tabela 18.1).

Mecanismos de lesão e de reparo


Respostas dos hepatócitos e do parênquima
Os hepatócitos lesionados e disfuncionais em uma variedade de distúrbios podem demonstrar várias
alterações morfológicas potencialmente reversíveis. Essas alterações incluem acúmulo de gordura
(esteatose) e bilirrubina (colestase), bem como balonização, uma alteração caracterizada por
tumefação da célula, citoplasma claro e agregação de filamentos intermediários, que, quando
proeminentes, podem formar inclusões hialinas de Mallory. Os hepatócitos balonizados constituem
uma característica essencial da esteato-hepatite induzida por álcool ou não alcoólica (ver adiante), mas
também podem ocorrer na lesão isquêmica ou tóxica ou na presença de colestase.

Tabela 18.1 Avaliação laboratorial da doença hepática.

Categoria de exame Medição sérica

Integridade dos hepatócitos Enzimas hepatocelulares citosólicasa


Aspartato aminotransferase (AST) sérica
Alanina aminotransferase (ALT) sérica
Lactato desidrogenase (LDH) sérica

Função excretora biliar Substâncias normalmente secretadas na bilea


Bilirrubina sérica
Total: não conjugada mais conjugada
Direta: apenas conjugada
Bilirrubina urinária
Ácidos biliares séricos
Enzimas da membrana plasmática (em consequência dos danos ao
canalículo biliar)a
Fosfatase alcalina sérica
γ-glutamil transpeptidase (GGT) sérica

Função de síntese dos Proteínas secretadas no sangue


hepatócitos Albumina séricab
Fatores da coagulaçãob
Tempo de protrombina (TP) e tempo de tromboplastina parcial
(TTP): fibrinogênio, protrombina, fatores V, VII, IX e X
Metabolismo dos hepatócitos
a
Amônia sérica
Teste do ar expirado de aminopirina (desmetilação hepática)b

a
Aumento na doença hepática.
b
Diminuição na doença hepática.

Quando a lesão é irreversível, os hepatócitos podem morrer por necrose ou apoptose. Na necrose
dos hepatócitos, os desequilíbrios iônicos devido à função defeituosa do transportador de membrana
plasmática levam ao fluxo de líquido para dentro da célula, que incha e sofre ruptura. As
anormalidades da membrana também levam ao acúmulo de cálcio intracelular e a vários eventos que
desencadeiam a disfunção mitocondrial. Até mesmo antes da ruptura da membrana, a perda de sua
integridade leva à liberação de constituintes citoplasmáticos no compartimento extracelular, incluindo
substâncias que alertam as células imunes inatas sobre uma ameaça vigente (sinal de perigo). Os
remanescentes das células necróticas são rapidamente fagocitados por macrófagos, que tendem a se
aglomerar e a marcar os locais de necrose dos hepatócitos (Figura 18.2). Essa forma de lesão
constitui o modo predominante de morte na lesão isquêmica/hipóxica e uma parte significativa da
lesão hepática na presença de estresse oxidativo.
A apoptose dos hepatócitos é uma forma ativa de morte celular “programada”, que resulta em
retração dos hepatócitos, condensação da cromatina nuclear (picnose), fragmentação nuclear
(cariorrexe) e fragmentação celular em corpos apoptóticos acidófilos. Essas alterações resultam de
cascatas de caspases, descritas de modo detalhado no Capítulo 2. Os hepatócitos apoptóticos foram
claramente descritos pela primeira vez na febre amarela por William Thomas Councilman e, por esse
motivo, têm sido comumente denominados corpúsculos de Councilman; como a apoptose ocorre em
muitas formas de doença hepática, esse epônimo, por convenção, fica restrito a essa doença. Nos
contextos mais frequentes em que se observam hepatócitos apoptóticos (p. ex., hepatite aguda e
crônica), utiliza-se o termo corpúsculos acidófilos, devido às suas características de coloração
intensamente eosinofílica (Figura 18.3).

Figura 18.2 Hepatite B aguda. Agrupamentos de macrófagos com material intracelular PAS-positivo derivado
de hepatócitos necróticos.
Figura 18.3 Focos de hepatite lobular na hepatite C crônica mostrando um hepatócito apoptótico (“corpúsculo
acidófilo”; seta) e um foco de infiltração mononuclear em torno de um hepatócito lesionado de coloração mais
escura (setas duplas).

Se a lesão do parênquima for generalizada, ela pode levar à necrose confluente, que consiste em
uma perda zonal de hepatócitos contíguos. Essa situação pode ser observada em lesões tóxicas ou
isquêmicas agudas ou na hepatite viral ou autoimune grave. A necrose confluente pode começar com
perda dos hepatócitos na zona 3, próximo à veia central. O espaço resultante é preenchido por restos
celulares, macrófagos e remanescentes da rede de reticulina. Na necrose em ponte, a área de necrose
pode estender-se das veias centrais até os tratos portais ou através de tratos portais adjacentes (com
frequência com uma veia central inaparente dentro da área de lesão). Na necrose panacinar, ocorre a
obliteração de todo o lóbulo. Mesmo em doenças como a hepatite viral, em que os hepatócitos
constituem os principais alvos de ataque, as agressões vasculares secundárias – devido à inflamação
ou à trombose – podem produzir grandes áreas de necrose confluente dos hepatócitos. Esse processo
ocorre em muitos tipos de doenças hepáticas nas quais há extensa perda de hepatócitos e colapso da
estrutura de reticulina de sustentação. A cicatrização resultante (conhecida no fígado como cirrose),
em que os hepatócitos são circundados por fibrose (com ou sem resposta regenerativa), representa um
ponto final comum na doença hepática crônica. Em alguns casos, há regressão da cicatriz (descrita na
próxima seção).
A substituição dos hepatócitos perdidos ocorre principalmente por meio de replicação dos
hepatócitos maduros adjacentes aos que morreram, mesmo quando há necrose confluente
significativa. Os hepatócitos são quase semelhantes a células-tronco quanto à sua capacidade de
replicação contínua, mesmo após anos de lesão crônica, de modo que a reposição do parênquima a
partir de células-tronco teciduais não constitui comumente uma parte significativa do processo de
reparo. Entretanto, nos indivíduos com doença crônica, os hepatócitos alcançam a senescência
replicativa, e, quando isso ocorre, as populações de células-tronco podem começar a se expandir e a se
diferenciar, um evento marcado por reações ductulares. Essas estruturas semelhantes a ductos, às
vezes sem luz, contêm células multipotentes que podem contribuir de modo significativo para a
restauração do parênquima.

Formação e regressão de cicatrizes


O principal tipo de célula envolvida na deposição de cicatrizes fibrosas no fígado é a célula
estrelada hepática. Quando estão em seu estado quiescente, a principal função das células estreladas
consiste em armazenamento de lipídios, incluindo vitamina A. Entretanto, em várias formas de lesão
aguda e crônica, as células estreladas tornam-se ativadas e diferenciam-se em miofibroblastos
altamente fibrogênicos. Os estímulos para a ativação das células estreladas são variados e incluem: (1)
citocinas inflamatórias, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), que é produzido pelas células
de Kupffer, por macrófagos e outros tipos de células; (2) interações alteradas com a matriz
extracelular (MEC); e (3) toxinas e espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species).
Após a ativação, a conversão das células estreladas em miofibroblastos é estimulada por sinais
transmitidos pelo receptor β do fator de crescimento derivado das plaquetas e por citocinas, como o
fator de crescimento transformador β (TGF-β) e a interleucina-17 (IL-17), bem como quimiocinas,
que podem ser liberadas a partir das células de Kupffer residentes ou de macrófagos e linfócitos
recrutados. Por sua vez, as células estreladas ativadas também liberam citocinas, fatores de
crescimento e fatores quimiotáticos e vasoativos. Se a lesão e os estímulos inflamatórios persistirem,
têm início a deposição de matriz extracelular e a formação de cicatriz, frequentemente no espaço de
Disse; há perda concomitante da fenestração das células endoteliais sinusoidais, uma alteração
denominada capilarização sinusoidal, que constitui uma característica particularmente proeminente
da esteato-hepatite não alcoólica, bem como uma característica dos sinusoides anormais observados
no carcinoma hepatocelular (ambos descritos adiante).
As áreas de perda de hepatócitos na doença hepática crônica, talvez relacionada com o
comprometimento vascular, são transformadas em septos fibrosos densos por meio do colapso da rede
de reticulina subjacente e pela deposição de colágeno pelos miofibroblastos. Os fibroblastos portais
também podem desempenhar um papel na formação de cicatriz que acompanha a lesão hepática
crônica em alguns distúrbios. Por fim, os septos fibrosos circundam os hepatócitos sobreviventes e
resultam em cicatrização difusa (cirrose). Na doença hepática crônica, os hepatócitos sobreviventes
multiplicam-se em um esforço para restaurar o parênquima, formando nódulos regenerativos, que
constituem uma característica predominante na maioria dos casos de cirrose hepática.
Se a lesão crônica que leva à formação de cicatriz for interrompida (p. ex., eliminação da infecção
pelo vírus da hepatite ou interrupção do uso de álcool), a ativação das células estreladas e a formação
de cicatriz cessam, e os septos fibrosos podem começar a ser degradados por metaloproteinases
produzidas pelos hepatócitos, levando à resolução parcial e a uma aparência denominada cirrose
septal incompleta. Infelizmente, o remodelamento vascular e outras mudanças da arquitetura que
ocorrem na cirrose podem não se normalizar, mesmo com a extensa reabsorção da cicatriz, o que pode
explicar por que determinadas anormalidades vasculares, como hipertensão portal, não melhoram em
alguns pacientes.

Insuficiência hepática
A forma mais grave de doença hepática é a insuficiência hepática, que pode ser aguda (em
consequência de destruição hepática súbita e maciça) ou (mais comumente) crônica, após anos
de lesão insidiosa e progressiva do fígado. Em alguns casos, os indivíduos com doença hepática
crônica desenvolvem insuficiência hepática crônica agudizada, em que uma lesão aguda não
relacionada se sobrepõe à doença crônica em estágio avançado, ou em que ocorre uma “exacerbação”
da doença crônica que leva à descompensação hepática. Qualquer que seja a sequência seguida, é
necessária uma perda de 80 a 90% da capacidade funcional antes que ocorra insuficiência hepática.
Quando o fígado não consegue mais manter a homeostasia, o transplante hepático oferece a melhor
esperança de sobrevida; sem transplante, a taxa de mortalidade em indivíduos com insuficiência
hepática é de cerca de 80%.

Insuficiência hepática aguda


A insuficiência hepática aguda é definida como uma doença hepática aguda associada à
encefalopatia e à coagulopatia, a qual ocorre nas primeiras 26 semanas após a ocorrência de
lesão hepática inicial, na ausência de doença hepática preexistente. Em geral, a síndrome
manifesta-se nas primeiras 8 semanas após a lesão, e muitos pacientes evoluem para o coma em
apenas 1 semana. Dentro dessa janela de 26 semanas, é útil conhecer o intervalo entre o início dos
sintomas e a insuficiência hepática, visto que isso pode fornecer pistas importantes para definir a
etiologia. A insuficiência hepática aguda de início muito rápido é induzida, com mais frequência, por
fármacos ou toxinas e normalmente resulta de necrose hepática maciça. Essa forma de insuficiência
hepática, antes denominada “insuficiência hepática fulminante”, é um termo que permanece enraizado
na literatura e ainda é utilizado como sinônimo. A ingestão acidental ou deliberada de paracetamol
(ver Capítulo 9) responde por quase 50% dos casos em adultos nos EUA, ao passo que a hepatite
autoimune, outros fármacos/toxinas e as infecções agudas pelos vírus das hepatites A e B são
responsáveis pela maior parte dos casos restantes. Na Ásia, as hepatites B e E agudas constituem as
causas predominantes. Com a toxicidade do paracetamol, a insuficiência hepática surge na primeira
semana após o início dos sintomas, ao passo que a insuficiência causada por vírus da hepatite leva
mais tempo para se desenvolver. O mecanismo da necrose hepatocelular pode consistir em danos
tóxicos diretos (como no caso do paracetamol); todavia, com mais frequência, consiste em uma
combinação variável de toxicidade e destruição imunomediada dos hepatócitos (p. ex., infecção pelo
vírus da hepatite). Causas raras de insuficiência hepática aguda incluem anormalidades do fluxo
sanguíneo, distúrbios metabólicos e neoplasias malignas, mais comumente leucemia ou linfoma
(33%), seguidas de câncer de mama (30%) e câncer de cólon (7%). Não é possível estabelecer uma
etiologia em aproximadamente 15% dos casos em adultos e em 50% dos casos pediátricos.
Morfologia

A insuficiência hepática aguda geralmente está associada à necrose hepática maciça, com perda de
grandes regiões de parênquima ao redor de ilhas de hepatócitos em regeneração (Figura 18.4). O
fígado afetado é pequeno e retraído. A proeminência da perda hepatocelular (dropout) e das reações
ductulares no fígado depende da natureza e da duração da agressão. As lesões tóxicas, como a
superdosagem de paracetamol, normalmente ocorrem em horas a dias, constituindo um período
muito curto para possibilitar a formação de cicatrizes ou a regeneração. As infecções virais agudas
podem causar insuficiência ao longo de semanas a alguns meses, de modo que, embora a lesão dos
hepatócitos continue ultrapassando o processo de reparo, a regeneração é, com frequência,
evidente, assim como a cicatrização.
Em alguns poucos casos, a insuficiência hepática aguda pode estar associada a uma disfunção
generalizada das células hepáticas, sem morte celular óbvia, como na esteatose microvesicular
difusa, relacionada com o fígado esteatótico da gravidez ou com reações idiossincrásicas a toxinas
(p. ex., valproato, tetraciclina). Nessas situações, o metabolismo dos hepatócitos está gravemente
afetado, em geral devido à disfunção mitocondrial, impedindo o fígado de desempenhar suas
funções normais. Nos estados de imunodeficiência, como a infecção não tratada pelo vírus da
imunodeficiência humana (HIV, human immunodeficiency virus), a imunossupressão pós-transplante e
certas neoplasias malignas linfoides, a insuficiência hepática aguda pode ser causada por vírus não
hepatotróficos, particularmente citomegalovírus, herpes-vírus simples e adenovírus. Com os
melhores tratamentos disponíveis para a infecção pelo HIV, a incidência dessas formas de hepatite
viral está diminuindo.

Características clínicas
A insuficiência hepática aguda manifesta-se inicialmente com náuseas, vômitos e icterícia, seguidos
de encefalopatia potencialmente fatal e defeitos da coagulação. Normalmente, os níveis séricos das
transaminases hepáticas estão acentuadamente elevados. No início, o fígado está aumentado, devido à
tumefação dos hepatócitos, a infiltrados inflamatórios e ao edema; entretanto, à medida que o
parênquima é destruído, ocorre retração drástica do fígado. Por conseguinte, o declínio das
transaminases séricas (com a morte dos hepatócitos) com frequência não representa um sinal de
melhora, mas sim indica que existem poucos hepatócitos viáveis restantes; essa suspeita é confirmada
se houver agravamento da icterícia, coagulopatia e encefalopatia. Com a progressão ininterrupta,
ocorre falência múltipla de órgãos e, se o transplante não for possível, morte. As outras manifestações
de insuficiência hepática aguda são as seguintes:
• Ocorre colestase devido a alterações na formação e no fluxo de bile, levando à retenção de
bilirrubina e de outros solutos normalmente eliminados na bile. A coloração amarela da pele e da
esclera (icterícia) ocorre com a retenção de bilirrubina, e há um risco aumentado de infecção
bacteriana potencialmente fatal
• A encefalopatia hepática é um espectro de alterações da consciência, que variam desde
anormalidades sutis do comportamento até confusão e estupor acentuados, coma profundo e
morte. A encefalopatia pode progredir ao longo de vários dias, semanas ou meses após a lesão
hepática aguda. Os sinais neurológicos flutuantes associados incluem rigidez e hiper-reflexia. A
ocorrência de asterix ou flapping, um sinal particularmente característico, consiste em
movimentos de extensão-flexão rápidos e não ritmados da cabeça e dos membros, que são bem
observados quando os braços são mantidos em extensão, com os punhos em dorsiflexão. Acredita-
se que a encefalopatia hepática seja causada por níveis elevados de amônia, que apresentam uma
correlação com o comprometimento da função neuronal e o edema cerebral. A principal fonte de
amônia é o trato gastrintestinal, no qual ela é produzida por microrganismos e pelos enterócitos
durante o metabolismo da glutamina. Normalmente, a amônia é transportada na veia porta até o
fígado, onde é metabolizada no ciclo da ureia; na presença de doença hepática grave, ocorre falha
desse mecanismo de destoxificação. Foram sugeridos vários mecanismos não exclusivos de
toxicidade do sistema nervoso central (SNC) pela amônia, incluindo efeitos diretos sobre os
neurônios e efeitos indiretos mediados pelo metabolismo de amônia para glutamina nos astrócitos,
que parecem contribuir para o edema ao atuar com efeito osmótico
• Coagulopatia. Os hepatócitos são responsáveis pela síntese dos fatores da coagulação II
(protrombina), V, VII, IX, X, XI e XII, bem como do fibrinogênio (Capítulo 4). Por conseguinte,
na insuficiência hepática, ocorre o desenvolvimento de deficiências de fatores de coagulação e da
coagulabilidade. A formação de hematomas é um sinal precoce, que pode progredir para o
sangramento intracraniano com risco de vida ou fatal. O fígado também é responsável por ajudar a
remover os fatores da coagulação ativados da circulação, e, em alguns casos, a perda dessa função
leva à coagulação intravascular disseminada (ver Capítulo 14), exacerbando ainda mais a
tendência ao sangramento
• Surge hipertensão portal quando ocorre diminuição do fluxo através do sistema venoso porta, que
pode se desenvolver devido à obstrução nos níveis pré-hepático, intra-hepático ou pós-hepático.
Embora possa ocorrer na insuficiência hepática aguda, a hipertensão portal é observada com mais
frequência na insuficiência hepática crônica e é descrita mais adiante. Na insuficiência hepática
aguda, se houver desenvolvimento de hipertensão portal em poucos dias a semanas, a obstrução é
predominantemente intra-hepática, e a principal consequência clínica consiste em ascite. Na
doença hepática crônica, a hipertensão portal desenvolve-se ao longo de meses a anos, e seus
efeitos são mais complexos e generalizados
• A síndrome hepatorrenal é uma forma de insuficiência renal que ocorre em indivíduos com
insuficiência hepática, nos quais não há nenhuma causa morfológica ou funcional intrínseca para a
disfunção renal. O seu início é marcado pela queda do débito urinário e pelo aumento dos níveis
de ureia e creatinina no sangue. A sua fisiopatologia não está totalmente elucidada, porém foi
formulada a hipótese de que o evento desencadeante seja a hipertensão portal e a produção
secundária aumentada de vasodilatadores, como o óxido nítrico, pelas células endoteliais na
vasculatura esplâncnica. Isso, por sua vez, leva à vasodilatação sistêmica e à diminuição da
perfusão renal, que é detectada pelo rim, provocando ativação do eixo renina/angiotensina. Na
presença de hipertensão portal e produção persistente de vasodilatadores, o principal efeito da
ativação de renina/angiotensina consiste na redução adicional da perfusão renal e da taxa de
filtração glomerular, resultando em insuficiência renal. O declínio da função renal é reversível se a
função hepática for restaurada, por exemplo, por transplante de fígado. Os pacientes que
desenvolvem síndrome hepatorrenal geralmente apresentam hipertensão portal devido à cirrose, à
hepatite alcoólica grave ou (menos frequentemente) a neoplasias metastáticas. Contudo, os
pacientes com insuficiência hepática fulminante de qualquer causa podem desenvolver síndrome
hepatorrenal.
Figura 18.4 A. Necrose maciça, corte do fígado. O fígado é pequeno (700 g), corado com bile, de
consistência mole e congesto. B. Necrose hepatocelular causada por superdosagem de paracetamol. A
necrose confluente é observada na região perivenular (zona 3) (seta larga). O tecido normal residual está
indicado por um asterisco. (Cortesia do Dr. Matthew Yeh, University of Washington, Seattle, Wash.)

Insuficiência hepática crônica e cirrose


Na doença hepática crônica, a insuficiência hepática está mais frequentemente associada a
fibrose/cirrose avançada, uma condição caracterizada por remodelamento difuso do fígado em
nódulos parenquimatosos (em geral, regenerativos) circundados por faixas fibrosas e grau
variável de derivação vascular (com frequência, portossistêmica). As principais causas de
insuficiência hepática crônica em todo o mundo consistem em hepatite B crônica, hepatite C crônica,
doença hepática gordurosa não alcoólica e doença hepática alcoólica. Nos EUA, a doença hepática
crônica é a décima segunda causa mais comum de mortalidade e é responsável pela maioria das
mortes relacionadas com o fígado.
Embora a cirrose e a insuficiência hepática crônica estejam frequentemente associadas, elas não
são sinônimas; nem todos os casos de cirrose levam de modo inexorável à insuficiência hepática
crônica, tampouco todas as doenças hepáticas crônicas em estágio terminal são cirróticas. Por
exemplo, as doenças crônicas, como a colangite biliar primária, a colangite esclerosante primária, a
hiperplasia nodular regenerativa, a esquistossomose crônica e a doença hepática fibropolicística, não
costumam ser acompanhadas de cirrose totalmente estabelecida, mesmo em estágio terminal. Em
contrapartida, os pacientes com hepatite autoimune bem tratada ou aqueles com hepatite B suprimida
ou hepatite C curada geralmente não progridem para a doença hepática terminal, mesmo na presença
de cirrose.
Em algumas doenças que dão origem à cirrose, como hepatite viral não tratada, doença hepática
alcoólica, doença hepática gordurosa não alcoólica e doenças metabólicas, a morfologia e a
fisiopatologia da cirrose apresentam algumas características particulares (descritas em seções
subsequentes deste capítulo). Por conseguinte, embora o termo cirrose implique a presença de doença
crônica grave, essa doença não constitui um diagnóstico específico e tem implicações de prognóstico
variáveis. Há também alguns casos nos quais a cirrose surge sem qualquer causa bem definida; nessas
circunstâncias, emprega-se, às vezes, o termo cirrose criptogênica.

Morfologia

A cirrose caracteriza-se pela presença de nódulos parenquimatosos circundados por faixas


densas de fibrose em todo o fígado, convertendo a cápsula hepática normalmente lisa em uma
superfície irregular, com áreas deprimidas de cicatrização e nódulos regenerativos
protuberantes (Figura 18.5). No nível microscópico, a extensão da fibrose é ressaltada pelo uso de
corantes especiais para colágeno (Figura 18.6A). O tamanho dos nódulos, o padrão de formação de
cicatrizes (com ligação de tratos portais entre si versus ligação de tratos portais com as veias
centrais), o grau de colapso do parênquima e a extensão da trombose vascular (particularmente da
veia porta) variam entre doen ças e, em certo grau, entre indivíduos com a mesma doença. As
características morfológicas de regressão incluem cicatrizes incompletas (ver Figura 18.6B)
associadas a uma reação ductular va riável e a alterações da arquitetura. Conforme assinalado
anteriormente, nem todos os fígados em estágio terminal são cirróticos, porém todos revelam graus
va riáveis de lesão, reparo, regeneração e fibrose. Por conseguinte, a doença hepática em estágio
terminal é mais bem considerada um espectro de tentativas ineficazes de reparo de lesão
continuada, intermitente ou passada.

Características clínicas
Cerca de 40% dos indivíduos com cirrose são assintomáticos até os estágios mais avançados da
doença. Quando sintomáticos, eles apresentam manifestações inespecíficas: anorexia, perda de peso,
fraqueza e, na doença avançada, sinais e sintomas de insuficiência hepática discutidos anteriormente.
As causas comuns de morte consistem em encefalopatia hepática, sangramento de varizes esofágicas,
infecções bacterianas (que resultam de danos à barreira mucosa do intestino e disfunção das células de
Kupffer) e carcinoma hepatocelular.
Figura 18.5 Cirrose em consequência de hepatite viral crônica. Observe as áreas deprimidas de cicatrização
densa separando nódulos regenerativos proeminentes na superfície do fígado.

Figura 18.6 Cirrose alcoólica em um paciente etilista ativo (A) e após abstinência de longa duração (B). A.
Faixas espessas de colágeno separam os nódulos cirróticos arredondados. B. Após 1 ano de abstinência, a
maior parte das cicatrizes desapareceu. (Coloração tricrômica de Masson.) (Cortesia dos Drs. Hongfa Zhu e
Isabel Fiel, Mount Sinai School of Medicine, NY.)

Além de icterícia, encefalopatia e coagulopatia (todas também observadas na insuficiência


hepática aguda), a insuficiência hepática crônica está associada a várias outras características
significativas:
• Por meio de mecanismos ainda não definidos, a colestase persistente pode levar ao prurido
(coceira), que pode ser de grande intensidade. Alguns pacientes podem arranhar a pele, o que leva
ao risco de episódios repetidos de infecção potencialmente fatal. O alívio só pode ser obtido por
meio de transplante de fígado
O distúrbio do metabolismo dos estrogênios leva à hiperestrogenemia, que tem vários efeitos. Ela

produz alterações vasculares que podem levar ao eritema palmar (um reflexo da vasodilatação
local) e às aranhas vasculares (angiomas aracneiformes) da pele. Cada angioma consiste em uma
arteríola dilatada central e pulsátil, a partir da qual irradiam pequenos vasos. Nos homens, a
hiperestrogenemia também pode produzir hipogonadismo e ginecomastia
• O hipogonadismo também pode ocorrer em mulheres, devido à ruptura da função do eixo
hipotálamo-hipófise, por meio de deficiências nutricionais associadas à doença hepática crônica
ou a alterações hormonais primárias.

Hipertensão portal
Pode ocorrer o desenvolvimento de resistência aumentada ao fluxo sanguíneo portal em uma
variedade de circunstâncias, que podem ser divididas em pré-hepáticas, intra-hepáticas e pós-
hepáticas (Tabela 18.2). As principais condições pré-hepáticas consistem em trombose obstrutiva,
estreitamento da veia porta antes de sua ramificação dentro do fígado e esplenomegalia maciça, com
aumento do fluxo sanguíneo na veia esplênica. As principais causas pós-hepáticas incluem
insuficiência cardíaca direita grave, pericardite constritiva e obstrução do fluxo da veia hepática. A
causa intra-hepática dominante é a cirrose, responsável pela maioria dos casos de hipertensão portal.
Outras causas intra-hepáticas muito menos frequentes incluem esquistossomose, degeneração
gordurosa maciça, doença granulomatosa fibrosante difusa, como sarcoidose, e doenças que afetam a
microcirculação portal, como hiperplasia nodular regenerativa (discutida adiante)
A fisiopatologia da hipertensão portal é complexa e envolve resistência ao fluxo portal no
nível dos sinusoides e aumento do fluxo portal causado pela circulação hiperdinâmica. O
aumento da resistência ao fluxo portal no nível dos sinusoides é causado pela contração das células
musculares lisas vasculares e dos miofibroblastos e pela interrupção do fluxo sanguíneo por
cicatrização e formação de nódulos parenquimatosos. As alterações das células endoteliais sinusoidais
que contribuem para a vasoconstrição intra-hepática associada à hipertensão portal incluem
diminuição da produção de óxido nítrico (NO) e liberação aumentada de endotelina-1,
angiotensinogênio e eicosanoides. O remodelamento sinusoidal e as anastomoses entre os sistemas
arterial e portal nos septos fibrosos contribuem para a hipertensão portal ao impor pressões arteriais
sobre o sistema venoso porta de baixa pressão. O remodelamento sinusoidal e as derivações intra-
hepáticas também interferem na troca metabólica entre o sangue sinusoidal e os hepatócitos.

Tabela 18.2 Localização e causas da hipertensão portal.

Causas pré-hepáticas

Trombose obstrutiva da veia porta

Anormalidades estruturais, como estreitamento da veia porta antes de sua ramificação no fígado

Causas intra-hepáticas

Cirrose de qualquer causa

Hiperplasia nodular regenerativa

Colangite biliar primária (mesmo na ausência de cirrose)

Esquistossomose

Degeneração gordurosa maciça

Doença granulomatosa fibrosante difusa (p. ex., sarcoidose)

Neoplasia maligna infiltrativa, primária ou metastática

Neoplasia maligna focal com invasão da veia porta (particularmente carcinoma hepatocelular)
Amiloidose

Causas pós-hepáticas

Insuficiência cardíaca direita grave

Pericardite constritiva

Obstrução do fluxo da veia hepática

Outro fator importante no desenvolvimento da hipertensão portal consiste em aumento do fluxo


sanguíneo venoso portal, em decorrência da circulação hiperdinâmica. Isso é causado pela
vasodilatação arterial, principalmente na circulação esplâncnica. Por sua vez, o aumento do fluxo
sanguíneo arterial esplâncnico leva ao aumento do efluxo venoso no sistema porta. Embora vários
mediadores, como a prostaciclina e o TNF, tenham sido implicados na etiologia da vasodilatação
arterial esplâncnica, o NO emergiu como a causa mais significativa.
As quatro principais consequências da hipertensão portal são: (1) encefalopatia hepática
(descrita na seção sobre insuficiência hepática); (2) ascite; (3) formação de derivações venosas
portossistêmicas; e (4) esplenomegalia congestiva. Essas consequências estão ilustradas na Figura
18.7 e são descritas a seguir.

Ascite
O acúmulo de líquido na cavidade peritoneal é denominado ascite, e 85% dos casos são causados por
cirrose. Em geral, a ascite torna-se clinicamente detectável quando há acúmulo de pelo menos 500
mℓ. O líquido geralmente é seroso, apresenta menos de 3 g/dℓ de proteína (em grande parte albumina)
e um gradiente de albumina entre soro e ascite ≥ 1,1 g/dℓ. O líquido pode conter um número escasso
de células mesoteliais e leucócitos mononucleares. A presença de neutrófilos sugere infecção, ao
passo que a presença de eritrócitos indica a possibilidade de câncer intra-abdominal disseminado. Na
ascite de longa duração, a infiltração de líquido peritoneal através dos linfáticos transdiafragmáticos
pode produzir hidrotórax, geralmente do lado direito. A patogênese da ascite é complexa, envolvendo
hipertensão sinusoidal, hipoalbuminemia, aumento do fluxo linfático hepático, vasodilatação
esplâncnica e circulação hiperdinâmica.

Derivações portossistêmicas
Na presença de hipertensão portal crônica, a dilatação vascular e o remodelamento frequentemente
levam ao desenvolvimento de derivações venosas de paredes finas entre as circulações porta e
sistêmica que contornam o fígado. Essas derivações podem aparecer sempre que as circulações
sistêmica e porta compartilharem leitos capilares (ver Figura 18.7). Os principais locais são as veias
ao redor e dentro do reto (cuja manifestação consiste em hemorroidas), a junção gastresofágica
(produzindo varizes), o retroperitônio e o ligamento falciforme do fígado (envolvendo colaterais
periumbilicais e da parede abdominal). Os colaterais da parede abdominal aparecem como veias
subcutâneas dilatadas, que se estendem do umbigo até as margens das costelas (cabeça de medusa) e
constituem uma característica clínica típica da hipertensão portal. Embora possa ocorrer o
sangramento de hemorroidas, ele raramente é maciço e potencialmente fatal. Muito mais importantes
são as varizes esofagogástricas, que aparecem em cerca de 40% dos indivíduos com cirrose hepática
avançada e causam hematêmese maciça e morte em cerca da metade dos indivíduos afetados. Cada
episódio de sangramento está associado à mortalidade de cerca de 30%.
Figura 18.7 Principais consequências clínicas da hipertensão portal no contexto da cirrose, mostradas em
homens. Nas mulheres, a oligomenorreia, a amenorreia e a esterilidade em consequência de hipogonadismo
são frequentes. Os achados de importância clínica estão em negrito.
Esplenomegalia
A hipertensão portal de longa duração pode causar esplenomegalia congestiva. O grau de aumento do
baço varia amplamente, e o peso do órgão pode alcançar até 1.000 g (cinco a seis vezes o normal),
porém não apresenta necessariamente uma correlação com outras características da hipertensão portal.
A esplenomegalia pode induzir secundariamente anormalidades hematológicas atribuíveis ao
“hiperesplenismo”, particularmente trombocitopenia ou até mesmo pancitopenia, em grande parte
devido ao sequestro de elementos sanguíneos na polpa vermelha expandida do baço.

Complicações pulmonares da insuficiência hepática e hipertensão portal. Essa discussão será


concluída com duas síndromes pulmonares que ocorrem no contexto da insuficiência hepática crônica
e hipertensão portal:
• A síndrome hepatopulmonar é observada em até cerca de 30% dos pacientes com cirrose hepática
e hipertensão portal. A síndrome é causada pela dilatação de capilares e vasos pré-capilares
intrapulmonares de até 500 μM de tamanho. A derivação do sangue da direita para a esquerda
através dos vasos dilatados produz desigualdade da ventilação-perfusão e compromete a
oxigenação do sangue, manifestando-se na forma de hipoxemia. A dispneia resultante é mais
grave na posição ortostática, em comparação com a posição de decúbito, visto que a gravidade
exacerba o desequilíbrio de ventilação-perfusão. Os pacientes com essa síndrome apresentam pior
prognóstico do que aqueles sem ela. A patogênese ainda não está esclarecida, porém foi postulado
que o fígado doente pode não eliminar fatores como a endotelina-1, que estimula as células
endoteliais a produzir vasodilatadores, como o óxido nítrico
• A hipertensão portopulmonar refere-se à hipertensão arterial pulmonar que surge na doença
hepática. Ela também não está bem compreendida, mas parece depender da hipertensão portal e da
vasoconstrição pulmonar excessiva concomitantes e do remodelamento vascular. As
manifestações clínicas mais comuns consistem em dispneia ao esforço e baqueteamento digital.

Insuficiência hepática crônica agudizada


Alguns indivíduos com doença hepática crônica avançada e estável, porém bem compensada,
desenvolvem subitamente sinais de insuficiência hepática aguda. Nesses pacientes, geralmente há
cirrose estabelecida, com extensa derivação vascular. Por conseguinte, grandes volumes de
parênquima hepático funcional apresentam um suprimento vascular limítrofe, tornando-os altamente
vulneráveis a agressões sobrepostas. A mortalidade a curto prazo dos pacientes com essa forma de
insuficiência hepática é de cerca de 50%.
Os pacientes com infecção crônica pelo vírus da hepatite B superinfectados pelo vírus da hepatite
D podem sofrer súbita descompensação, assim como aqueles com hepatite B controlada clinicamente,
nos quais surgem mutantes virais que são resistentes à terapia; ambos os casos ocorrem devido a
exacerbações agudas da doença. A colangite ascendente em um paciente com colangite esclerosante
primária ou com doença hepática fibropolicística (descrita adiante) também pode causar rápida
descompensação da função hepática. Em raros casos, pacientes com esteato-hepatite não alcoólica
podem desenvolver grave disfunção hepática após uma rápida perda de peso ou desnutrição; o
mecanismo de lesão nesses casos não é conhecido.
Outras causas de descompensação são agressões sistêmicas, em vez de intra-hepáticas. Por
exemplo, a sepse e sua hipotensão associada podem comprometer o parênquima hepático com
suprimento vascular limítrofe. De modo semelhante, a insuficiência cardíaca aguda, a superdosagem
de medicamento ou uma lesão tóxica podem fazer um paciente cirrótico bem compensado
desenvolver insuficiência. Por fim, existe a possibilidade de neoplasia maligna, seja uma neoplasia
hepática primária, particularmente carcinoma hepatocelular ou colangiocarcinoma, seja metástases
hepáticas a partir de algum outro local (p. ex., cólon), devendo esta ser sempre considerada como
possível causa de insuficiência hepática aguda na doença hepática crônica previamente bem
compensada.

Conceitos-chave

Insuficiência hepática

• Pode ocorrer insuficiência hepática após uma lesão aguda ou crônica, embora também possa se
dar como agressão aguda sobreposta a uma doença hepática crônica bem compensada nos
demais aspectos
• A regra mnemônica para as causas de insuficiên cia hepática aguda é a seguinte:
• A: paracetamol (acetaminofeno), hepatite A, hepatite autoimune
• B: hepatite B
• C: hepatite C, criptogênica
• D: fármacos (drogas)/toxinas, hepatite D
• E: hepatite E, causas mais exóticas (p. ex., doença de Wilson, síndrome de Budd-Chiari,
linfoma, carcinoma)
• F: degeneração gordurosa (fatty) do tipo microvesicular (p. ex., esteatose hepática da gravidez,
valproato, tetraciclina, síndrome de Reye)
• Sequelas graves e às vezes fatais da insuficiência hepática incluem coagulopatia, encefalopatia,
hipertensão portal, sangramento de varizes esofágicas, síndrome hepatorrenal e hipertensão
portopulmonar.

Distúrbios infecciosos

Hepatites virais
O termo “hepatite viral” é mais comumente utilizado no contexto do comprometimento hepático por
vírus hepatotrópicos, que incluem os vírus das hepatites A, B, C, D e E. Os vírus não hepatotrópicos,
como o vírus Epstein-Barr, o citomegalovírus, o herpes-vírus simples, o adenovírus e o vírus da febre
amarela, também podem causar hepatite, geralmente em associação com infecção sistêmica. Pode
ocorrer comprometimento hepático em uma ampla variedade de outras infecções virais sistêmicas,
porém ele é geralmente leve e, com frequência, subclínico.
Nas seções a seguir, serão discutidos os vírus hepatotrópicos individualmente e, em seguida, certas
síndromes clínico-patológicas comuns a todos.

Vírus da hepatite A
A infecção pelo vírus da hepatite A (HAV) é uma doença autolimitada que não leva à hepatite
crônica ou a um estado de portador. Ela é responsável por aproximadamente 25% dos casos de
hepatite aguda clinicamente evidente em todo o mundo, e as estimativas nos EUA são de 2 mil novos
casos de hepatite viral por ano.

Epidemiologia
O HAV é transmitido pela ingestão de água e alimentos contaminados e é endêmico em países com
condições sanitárias e de higiene precárias. Nos países de alta renda, a prevalência da soropositividade
(indicadora de exposição prévia) aumenta gradualmente com a idade, alcançando 50% aos 50 anos
nos EUA. O HAV é eliminado nas fezes durante 2 a 3 semanas antes e 1 semana após o início da
icterícia. O contato pessoal próximo com um indivíduo infectado ou a contaminação fecal-oral
durante esse período respondem pela maioria dos casos e podem resultar em surtos em ambientes
institucionais, como escolas e creches. Além disso, podem ocorrer epidemias transmitidas pela água
em locais com condições de aglomeração e sem saneamento. Nos países de alta renda, infecções
esporádicas podem ser contraídas pelo consumo de moluscos crus ou cozidos no vapor (ostras,
mexilhões, amêijoas), que concentram o vírus da água do mar contaminada por esgoto humano. Pode
ocorrer transmissão sexual, mas não transmissão materno-fetal. Como a viremia do HAV é transitória,
a transmissão hematogênica do HAV é rara, e o sangue doado não é submetido a rastreamento para
esse vírus.

Patogênese
Descoberto em 1973, o HAV é um pequeno picornavírus não envelopado de RNA de fita positiva que
ocupa o seu próprio gênero, Hepatovirus. Do ponto de vista ultraestrutural, o HAV é um capsídio
icosaédrico de 27 nm de diâmetro. O receptor para o HAV nos hepatócitos é a HAVcr-1 (também
conhecida como TIM-1), uma glicoproteína que é membro da família de proteínas que servem como
receptores para vários outros vírus. O HAV não é citopático, e a lesão hepatocelular é provocada por
linfócitos T citotóxicos e células NK que reconhecem e matam os hepatócitos infectados pelo vírus.

Características clínicas
O período de incubação do HAV é de 2 a 6 semanas. O anticorpo IgM contra o HAV aparece com o
início dos sintomas e persiste por 3 a 6 meses (Figura 18.8). A IgG anti-HAV aparece durante a
recuperação da infecção aguda e persiste por anos, conferindo imunidade permanente contra a
reinfecção. Os indivíduos afetados apresentam sintomas inespecíficos, como fadiga e perda do apetite,
e, com frequência, desenvolvem icterícia. A maioria dos pacientes recupera-se em 3 semanas, e ocorre
resolução da doença em quase todos os pacientes dentro de 6 meses. Ocorre insuficiência hepática
aguda em 0,1 a 0,3% dos pacientes, particularmente naqueles com doença hepática crônica devido a
outra etiologia. Outras complicações incomuns incluem colestase prolongada e recidiva da doença nos
primeiros 6 meses após o quadro inicial. As manifestações extra-hepáticas incluem exantema,
artralgia e complicações mediadas por imunocomplexos, como vasculite leucocitoclástica,
glomerulonefrite e crioglobulinemia. A vacina HAV é efetiva na prevenção da infecção.

Vírus da hepatite B
A infecção pelo vírus da hepatite B (HBV) apresenta resultados clínicos variados, que dependem da
idade de exposição, da presença de comorbidades (incluindo exposição a outros agentes infecciosos) e
da imunidade do hospedeiro. As principais apresentações clínicas incluem: (1) hepatite aguda
seguida de recuperação e eliminação do vírus; (2) insuficiência hepática aguda com necrose
hepática maciça; (3) hepatite crônica com ou sem progressão para a cirrose; e (4) estado de
portador assintomático “saudável” (Figura 18.9).

Epidemiologia
A infecção crônica pelo HBV afeta 400 milhões de pessoas em todo o mundo, com maior prevalência
(> 8%) na África, na Ásia e no Pacífico Ocidental. A prevalência também é relativamente alta (2 a
7%) no sul e no leste da Europa e mais baixa (< 2%) na Europa Ocidental, na América do Norte e na
Austrália. De acordo com as estimativas, há 60 mil novos casos de infecção pelo HBV nos EUA a
cada ano, e quase 2 milhões de pessoas têm infecção crônica pelo HBV. O vírus tem um modo de
transmissão parenteral por meio de sexo não protegido, transfusão de sangue e compartilhamento de
agulhas e seringas para uso de substâncias intravenosas. A transmissão por transfusões foi
acentuadamente reduzida pela triagem do sangue doado para HBsAg e exclusão de doadores de
sangue remunerados. Em regiões de alta prevalência, a transmissão durante o parto é responsável por
90% dos casos. Além disso, pode ocorrer transmissão horizontal em crianças por meio de pequenas
lacerações da pele ou das membranas mucosas ou com contato corporal próximo.

Figura 18.8 Alterações temporais dos marcadores sorológicos na infecção aguda pelo vírus da hepatite A
(HAV). IgM, imunoglobulina M.

Patogênese
O HBV foi associado pela primeira vez à hepatite na década de 1960, quando foi identificado o
antígeno Austrália (agora conhecido como antígeno de superfície da hepatite B). O vírus é um
membro da Hepadnaviridae, uma família de vírus de DNA que causam hepatite em diversas espécies
animais. O vírion maduro tem um envelope superficial externo composto de proteínas virais e lipídios
derivados do hospedeiro, o qual circunda um cerne constituído de proteínas de nucleocapsídio,
polimerase viral e DNA viral. O genoma do HBV consiste em uma molécula de DNA parcialmente
circular de fita dupla, com vários quadros de leitura abertos que codificam as seguintes proteínas:
• O antígeno de superfície da hepatite B (HBsAg), que se refere a três glicoproteínas relacionadas
do envelope viral, os HBsAg grande, médio e pequeno. O HBsAg grande está geralmente
associado aos vírions completos, ao passo que as proteínas do envelope virais não infecciosas
(principalmente o HBsAg pequeno) são liberadas em grandes quantidades por hepatócitos
infectados livres de elementos do cerne virais
• Antígeno do cerne da hepatite B (HBcAg), a proteína do nucleocapsídio, que desempenha um
papel na montagem dos vírions completos; e um transcrito polipeptídico mais longo, com uma
região pré-cerne e do cerne, denominada antígeno E da hepatite B (HBeAg)
• A HBV polimerase (Pol), que exibe atividade tanto de DNA polimerase quanto de transcriptase
reversa
• A proteína X da hepatite B (HBx), que não é necessária para a replicação do vírus, mas pode atuar
como transativador da transcrição dos genes virais e de um subgrupo de genes do hospedeiro. Ela
foi implicada na patogênese do carcinoma hepatocelular relacionado com HBV.

Figura 18.9 Possíveis resultados da infecção pelo vírus da hepatite B em adultos e suas frequências
aproximadas nos EUA. *Ocorre eliminação espontânea do antígeno de superfície do vírus da hepatite B
durante a infecção crônica pelo HBV, com incidência anual estimada de 1 a 2% nos países ocidentais.

A entrada do HBV nos hepatócitos ocorre por meio da ligação do HbsAg grande ao transportador
de sais biliares, conhecido como polipeptídeo cotransportador de sódio-taurocolato (NTCP). O
genoma viral entra no núcleo, onde a fita positiva é sintetizada para formar o DNA circular
covalentemente fechado (ccc DNA). A replicação do HBV ocorre por meio de transcrição reversa
através de um RNA intermediário.
A resposta imune do hospedeiro ao vírus constitui o principal determinante do resultado da
infecção. A replicação viral de alto nível e a elevada produção de proteínas virais podem provocar
alterações citopáticas nas células infectadas; entretanto, a maior parte da lesão dos hepatócitos é
causada por um ataque das células infectadas por células T citotóxicas CD8+. Uma forte resposta por
células CD4+ e CD8+ produtoras de interferona (IFN)-γ específicos do vírus está associada à
resolução da infecção aguda.

Características clínicas
O HBV tem um período de incubação prolongado (4 a 26 semanas). A evolução da infecção é
acompanhada pela medição de antígenos virais e por respostas sorológicas no sangue, conforme
ilustrado na Figura 18.10. Algumas características relevantes desses marcadores merecem ser citadas:
• O HBsAg aparece antes do início dos sintomas e alcança um pico na doença sintomática aguda.
Em pacientes com resolução da infecção, o HBsAg com frequência declina para níveis
indetectáveis em 12 semanas, porém pode persistir por até 24 semanas. Em contrapartida, o
HBsAg persiste nos casos que progridem para a cronicidade
• O anticorpo anti-HBs começa a surgir após a resolução da doença aguda, geralmente após o
desaparecimento do HBsAg (ver Figura 18.10A). Em alguns casos, o aparecimento do anticorpo
anti-HBs é retardado até várias semanas a meses após o desaparecimento do HBsAg; nesses casos,
pode-se estabelecer um diagnóstico sorológico pela detecção do anticorpo IgM anti-HBc. Os
anticorpos anti-HBs tendem a persistir durante toda a vida, conferindo proteção ao organismo,
base essa das estratégias atuais de vacinação que utilizam o HBsAg não infeccioso. Em
contrapartida, os anticorpos anti-HBs não são produzidos nos casos que progridem para a doença
hepática crônica, que também está associada a elevações persistentes e variáveis dos níveis séricos
de transaminases na maioria dos casos (mas não em todos) (ver Figura 18.10B)
• O HBeAg, o DNA do HBV e a DNA polimerase do HBV são detectáveis no soro logo após o
HBsAg e indicam uma replicação viral ativa. A persistência do HBeAg é um importante indicador
de replicação viral contínua, infectividade e provável progressão para a hepatite crônica. Uma
ressalva é o possível surgimento de cepas mutadas de HBV que não produzem HBeAg, mas que
apresentam replicação competente e expressam HBcAg. Nesses pacientes, o HBeAg pode estar
baixo ou indetectável, apesar da presença do DNA do HBV no soro
• A presença do anticorpo anti-HBe indica que a infecção aguda alcançou o seu pico e está
declinando, ao passo que, nos casos que progridem para a infecção crônica, o anticorpo anti-HBe
não é produzido ou só aparece tardiamente no curso da doença.
A infecção aguda pelo HBV é leve ou subclínica em quase dois terços dos adultos, ao passo que
outros apresentam sintomas constitucionais inespecíficos, como anorexia, febre, icterícia e dor no
quadrante superior direito do abdome. Podem ocorrer fenômenos mediados por imunocomplexos,
como glomerulonefrite, bem como outros distúrbios imunológicos, como poliarterite nodosa (ver
Capítulo 11). A insuficiência hepática aguda é rara e ocorre em aproximadamente 0,1 a 0,5% dos
indivíduos com infecção aguda. Na maioria dos casos, a infecção é autolimitada, e ocorre resolução
sem tratamento. Em 5 a 10% dos indivíduos infectados, a infecção persiste e torna-se crônica. O risco
de infecção crônica está inversamente relacionado com a idade e é maior (aproximadamente 90%) em
lactentes expostos ao vírus por meio da transmissão de suas mães no momento do parto. Os
indivíduos que adquirem o HBV ao nascimento e que subsequentemente desenvolvem hepatite
crônica também correm risco máximo de desenvolver carcinoma hepatocelular (Figura 18.9), que
constitui um dos cânceres mais comuns e fatais em partes do mundo, como a China, onde a
transmissão perinatal ocorre com frequência.
Figura 18.10 Alterações temporais dos marcadores sorológicos na infecção pelo vírus da hepatite B. A.
Infecção aguda com resolução. B. Progressão para a infecção crônica. Em alguns casos de hepatite B crônica,
os níveis séricos de transaminases podem tornar-se normais.

A vacinação é altamente efetiva, visto que induz uma resposta protetora dos anticorpos anti-HBs
em 95% dos lactentes, crianças e adolescentes. Embora tenham sido descritos mutantes induzidos pela
vacina, que se replicam na presença de imunidade induzida pela vacina, a sua prevalência não parece
estar aumentando. Em indivíduos com HBV crônico, o tratamento com interferona e agentes
antivirais, como inibidores da transcriptase reversa (entecavir, tenofovir), pode diminuir a velocidade
de progressão da doença, reduzir os danos hepáticos e diminuir o risco de cirrose e de carcinoma
hepatocelular, porém a cura completa é difícil.

Vírus da hepatite C
O vírus da hepatite C (HCV) raramente causa hepatite aguda sintomática, porém constitui a
causa mais comum de hepatite viral crônica.

Epidemiologia
O HCV afeta aproximadamente 170 milhões de pessoas em todo o mundo; nos EUA, há 2,7 milhões
de casos de HCV crônicos. A triagem do sangue de doadores diminuiu a incidência anual da infecção
de 230 mil novas infecções por ano, em meados da década de 1980, para 17 mil novas infecções por
ano atualmente. O modo de transmissão é parenteral; os fatores de risco mais comuns consistem em
uso de substâncias intravenosas, múltiplos parceiros sexuais, lesão por picada de agulha e múltiplos
contatos com um indivíduo infectado pelo HCV. A transmissão relacionada com a transfusão
praticamente desapareceu nos EUA. Pode ocorrer transmissão perinatal em crianças. Um terço dos
indivíduos infectados não apresenta fator de risco identificável, o que constitui um mistério
hepatológico permanente.

Patogênese
O HCV, descoberto em 1989, é um membro da família Flaviviridae. O HCV é um pequeno vírus de
RNA de fita simples e envelopado, com um quadro de leitura aberto que codifica uma única
poliproteína, que é subsequentemente processada em várias proteínas funcionais, incluindo duas
proteínas do envelope, E1 e E2, e cinco proteínas do cerne: p7, NS2, NS3/4a (protease), NS5A
(complexo de replicação) e NS5B (RNA polimerase). O papel dessas proteínas no ciclo de vida do
HCV está resumido na Figura 18.11.
A incapacidade da resposta imune do hospedeiro de eliminar o HCV está relacionada com o
rápido surgimento de variantes genéticas, tanto na população quanto nos indivíduos infectados.
A RNA polimerase do HCV apresenta baixa fidelidade, dando origem a variantes que são
classificadas em sete genótipos e muitos subtipos. Com a progressão da doença, múltiplas variantes
genéticas “pessoais”, conhecidas como quasispécies, surgem em indivíduos infectados. Os anticorpos
anti-HCV dirigidos contra a proteína do envelope E2 são comuns e têm atividade neutralizante, porém
as variantes emergentes com epítopos E2 alterados escapam dessa defesa do hospedeiro. A protease
NS3/NS4A também afeta a resposta antiviral celular mediada por interferona, bloqueando outros
meios potenciais de defesa do hospedeiro.

Características clínicas
O período de incubação da hepatite por HCV varia de 4 a 26 semanas, com média de 9 semanas. O
RNA do HCV é detectável no sangue durante 1 a 3 semanas na infecção aguda e coincide com o
aumento das transaminases. Os anticorpos anti-HCV surgem 3 a 6 semanas após a infecção. A
eliminação espontânea do vírus após 4 a 6 meses é rara, de modo que a detecção persistente do RNA
do HCV depois desse período fornece um indicador de infecção crônica pelo HCV (Figura 18.12). O
teste para anticorpos anti-HCV é utilizado como exame de rastreamento para o HCV, porém pode ser
negativo no início da infecção e em indivíduos imunossuprimidos. Após tratamento o bem-sucedido,
ou em casos de eliminação espontânea do vírus, os anticorpos anti-HCV podem ser detectados na
ausência de RNA do HCV, mas podem desaparecer com o tempo.
Figura 18.11 Ciclo de vida da hepatite C. A entrada, a replicação, a montagem e o brotamento do vírus são
mostrados, com ênfase nas etapas que podem constituir alvos efetivos para fármacos antivirais.
A infecção aguda pelo HCV é assintomática em aproximadamente 85% dos indivíduos, e a
hepatite aguda grave é rara. Embora algumas pessoas privilegiadas eliminem a infecção aguda (por
motivos não esclarecidos), a infecção persistente e a hepatite crônica constituem o resultado habitual.
Diferentemente do HBV, ocorre doença crônica em 80 a 90% dos indivíduos infectados pelo HCV, e
cerca de 20% deles progridem para a cirrose em 20 a 30 anos. Normalmente, são observadas
elevações flutuantes das aminotransferases séricas durante a fase crônica da doença. Até mesmo os
pacientes com níveis normais de transaminases correm risco de desenvolver danos hepáticos
permanentes, e, portanto, todos aqueles que apresentam níveis séricos detectáveis de RNA do HCV
necessitam de tratamento e acompanhamento a longo prazo. A idade avançada, o sexo masculino, o
uso de álcool, os agentes imunossupressores, a coinfecção pelo vírus da hepatite B/HIV e doenças
associadas à resistência à insulina, incluindo obesidade, diabetes melito tipo 2 e síndrome metabólica,
têm sido associados à progressão. Os pacientes que desenvolvem cirrose correm risco de apresentar
carcinoma hepatocelular. Embora o risco global seja pequeno, nos EUA, o HCV é responsável por
cerca de um terço dos casos de câncer de fígado.
Felizmente, o tratamento da hepatite C foi revolucionado nos últimos anos com a disponibilidade
de agentes antivirais altamente efetivos. Esse notável avanço tornou-se possível com a compreensão
do papel das proteínas virais no ciclo de vida do vírus, o que, por sua vez, possibilitou o
desenvolvimento de fármacos antagonistas específicos (ver Figura 18.11). À semelhança da infecção
pelo HIV, esses medicamentos são utilizados em associação para superar a resistência e incluem
agentes que têm como alvo a protease NS3/4a, o complexo de replicação NS5A e a polimerase NS5B.
Diferentemente do HIV, o HCV não se integra no genoma, no qual pode permanecer latente, de modo
que verdadeiras curas são frequentemente obtidas. A resposta terapêutica sustentada é definida como
um nível de RNA do HCV indetectável após 12 a 24 semanas de terapia medicamentosa; de modo
geral, essas respostas sustentadas são obtidas em 80 a 90% dos casos, com taxas de respostas mais
baixas em pacientes infectados pelo genótipo 3 do HCV. A infecção pelo HCV parece estar curada em
> 99% dos pacientes que apresentam uma resposta antiviral sustentada. A principal desvantagem
desses avanços é o seu custo muito elevado; um ciclo curativo de terapia medicamentosa custa mais
de US$ 100.000, e, só nos EUA, estima-se que o tratamento das infecções por HCV possa gerar
despesas superiores a US$ 50 bilhões nos próximos 5 anos.

Vírus da hepatite D
O vírus da hepatite D (HDV) ou “agente delta” é um vírus de RNA característico, que depende
do HBV para o seu ciclo de vida.

Epidemiologia
Estima-se que 5% dos indivíduos infectados pelo HBV sejam coinfectados pelo HDV, o que equivale
a aproximadamente 15 milhões de pessoas em todo o mundo. A maior prevalência é observada na
bacia Amazônica, na África Central, no Oriente Médio e na bacia do Mediterrâneo. O HDV é
incomum no Sudeste Asiático e na China. A transmissão da doença ocorre por via parenteral, com
frequência em associação ao uso de substâncias intravenosas e a múltiplas transfusões de sangue.
Figura 18.12 Alterações temporais dos marcadores sorológicos na infecção pelo vírus da hepatite C. A.
Infecção aguda com resolução. B. Progressão para a infecção crônica.

Patogênese
O HDV, descoberto em 1977, é uma partícula de dupla camada, de 35 nm. O antígeno de revestimento
externo do HDV envolve uma montagem polipeptídica interna, denominada antígeno delta (HDAg),
que é a única proteína produzida pelo vírus. Associada à partícula viral, existe uma pequena molécula
circular de RNA de fita simples, cujo comprimento é o mais curto de qualquer vírus animal
conhecido. A replicação do vírus ocorre por meio de síntese de RNA dirigida por RNA pela RNA
polimerase do hospedeiro. A base dos surtos de doença associados à superinfecção pelo HDV não está
bem elucidada; foram sugeridos efeitos citopáticos e aumento das respostas citotóxicas do hospedeiro.

Características clínicas
A infecção pelo HDV surge em dois contextos, cada um deles com um curso clínico ligeiramente
diferente:
• Ocorre coinfecção após a exposição a soro contendo tanto HDV quanto HBV. A coinfecção pode
resultar em hepatite aguda, que é indistinguível da hepatite B aguda. Ela é autolimitada e
geralmente é seguida de eliminação de ambos os vírus. Entretanto, existe uma maior taxa de
insuficiência hepática aguda em usuários de substâncias intravenosas
• Ocorre superinfecção quando um portador crônico de HBV é exposto a um novo inóculo de HDV.
Isso resulta em doença dentro de 30 a 50 dias, que se manifesta como hepatite aguda grave em um
portador de HBV assintomático ou como exacerbação de infecção crônica preexistente pelo vírus
da hepatite B. A infecção crônica pelo HDV ocorre em mais de 80% das superinfecções e pode
apresentar duas fases: uma fase aguda, com replicação ativa do HDV e supressão do HBV
associada a níveis elevados de transaminases; e uma fase crônica, em que a replicação do HDV
diminui, a replicação do HBV aumenta e os níveis de transaminases flutuam.
O RNA do HDV é detectável no sangue e no fígado imediatamente antes da doença sintomática
aguda, bem como nos primeiros dias após o seu aparecimento. O anticorpo IgM anti-HDV é o
indicador mais confiável de exposição recente ao HDV, porém o seu aparecimento é tardio e, com
frequência, de curta duração. Na hepatite delta crônica que surge a partir de uma superinfecção pelo
HDV, o HBsAg está presente no soro, e os anticorpos anti-HDV persistem por meses ou mais.
A coinfecção por HDV e HBV aumenta o risco de progressão para cirrose e CHC. A infecção
crônica pelo HDV é tratada com interferona-γ, porém a eliminação do vírus só ocorre em uma minoria
de casos. Novos agentes que têm como alvo a entrada e a replicação do vírus estão em fase de ensaios
clínicos. A vacinação contra o HBV também evita a infecção pelo HDV.

Vírus da hepatite E
O vírus da hepatite E (HEV) é uma infecção transmitida entericamente pela água, cuja ocorrência se
dá principalmente em jovens e adultos de meia-idade.

Epidemiologia
O HEV é uma doença zoonótica com reservatórios animais, como macacos, gatos, porcos e cães.
Foram relatadas epidemias na Ásia e no subcontinente indiano, na África Subsaariana, no Oriente
Médio, na China e no México. A infecção pelo HEV representa mais de 30% dos casos de hepatite
aguda esporádica na Índia, ultrapassando a frequência do HAV. Casos esporádicos podem ocorrer em
pessoas que viajam para essas regiões e são observados em países de alta renda, em associação à
criação de suínos ou ao consumo de vísceras.

Patogênese
Descoberto em 1983, o HEV é um vírus de RNA de fita positiva e não envelopado, do gênero
Hepevirus. O genoma de RNA tem 7,3 kb de comprimento e contém quatro quadros de leitura
abertos, que codificam múltiplas proteínas, incluindo uma protease viral e a RNA polimerase viral. O
HEV não é citopático, e acredita-se que o danos hepáticos sejam decorrentes da resposta do
hospedeiro às células infectadas pelo vírus.

Características clínicas
Os vírions são eliminados nas fezes durante a doença aguda, e a infecção normalmente ocorre por via
fecal-oral. O período de incubação médio após a exposição é de 4 a 5 semanas, seguido de hepatite
aguda autolimitada na maioria dos casos, com resolução em 2 a 4 semanas. Antes do início da doença
clínica, o RNA do HEV e os vírions podem ser detectados por meio de PCR nas fezes e no soro. O
aparecimento dos sintomas clínicos, a elevação das aminotransferases séricas e a ocorrência de IgM
anti-HEV são praticamente simultâneos. A IgM é substituída por anticorpos IgG anti-HEV
persistentes durante a recuperação.
Em pacientes imunocompetentes, não há doença hepática crônica nem viremia persistente. No
entanto, a infecção aguda pelo HEV está associada a uma taxa de mortalidade que se aproxima de
20% entre mulheres grávidas. Pode ocorrer infecção crônica pelo HEV em situação de
imunossupressão, como em pacientes com AIDS e em receptores de transplante.

Síndromes clínico-patológicas de hepatite viral


A hepatite viral pode seguir vários cursos clínicos: (1) infecção assintomática aguda com recuperação;
(2) hepatite sintomática aguda, anictérica ou ictérica, com recuperação; (3) insuficiência hepática
aguda com necrose hepática maciça ou submaciça; e (4) hepatite crônica com ou sem progressão para
a cirrose. A Tabela 18.3 fornece um resumo das principais características da infecção por diversos
vírus da hepatite. As infecções agudas por todos os vírus hepatotrópicos podem ser assintomáticas ou
sintomáticas. O HAV e o HEV (em hospedeiros imunocompetentes) não causam hepatite crônica, e
apenas um pequeno número de pacientes adultos infectados pelo HBV desenvolve hepatite crônica.
Em contrapartida, o HCV é notório pela progressão para a infecção crônica. A insuficiência hepática
aguda é incomum e é observada principalmente na infecção por HAV, HBV ou HDV, dependendo da
região. O HEV pode causar insuficiência hepática aguda em mulheres grávidas. Embora o HBV e o
HCV sejam responsáveis pela maioria dos casos de hepatite crônica, muitos outros distúrbios
apresentam características clínicas e patológicas semelhantes, em particular a hepatite autoimune e a
hepatite induzida por medicamentos/toxinas, que são descritas mais adiante. Por conseguinte, os
exames sorológicos e moleculares são essenciais para o diagnóstico de hepatite viral e para diferenciar
os vários tipos de hepatite.
As características relevantes das principais síndromes clínico-patológicas associadas às infecções
por vírus hepatotrópicos incluem as seguintes:
• Infecção assintomática aguda com recuperação. Nesse caso, a infecção é identificada devido à
elevação mínima das transaminases séricas ou, após a recuperação, à presença de anticorpos
antivirais. As infecções por HAV e HBV podem ser eventos subclínicos, verificados apenas pela
presença de anticorpos anti-HAV ou anti-HBV
• Infecção sintomática aguda com recuperação. A doença sintomática pode ser dividida em quatro
fases: (1) período de incubação; (2) fase pré-ictérica sintomática; (3) fase ictérica sintomática; e
(4) convalescença. O período de incubação para os diferentes vírus é fornecido na Tabela 18.3. O
pico de infectividade ocorre durante os últimos dias assintomáticos do período de incubação e os
primeiros dias dos sintomas agudos
• Insuficiência hepática aguda. A hepatite viral é responsável por cerca de 10% dos casos de
insuficiência hepática aguda. As hepatites A e E constituem as causas mais comuns em todo o
mundo, ao passo que o HBV é mais comum na Ásia e no Mediterrâneo. O tratamento consiste em
fornecer cuidados de suporte e possibilitar a replicação dos hepatócitos residuais, levando à
restituição do fígado. O transplante de fígado representa a única opção se não houver resolução da
doença antes do desenvolvimento de infecção secundária e falência de outros órgãos
• Hepatite crônica. A hepatite crônica é definida como evidências sintomáticas, bioquímicas e
sorológicas de doença hepática continuada ou recidivante por mais de 6 meses. Em alguns
pacientes, a elevação persistente das transaminases séricas pode constituir a única evidência
clínica de cronicidade. Podem ocorrer prolongamento do tempo de protrombina,
hiperglobulinemia, hiperbilirrubinemia e elevações discretas do nível de fosfatase alcalina. Em
indivíduos sintomáticos, a fadiga constitui o achado mais comum; os sintomas menos comuns
incluem mal-estar, perda de apetite e episódios ocasionais de icterícia leve. A doença por
imunocomplexos pode se desenvolver, devido a complexos de antígeno-anticorpo circulantes na
infecção crônica por HBV e HCV, e pode se manifestar como vasculite, glomerulonefrite e
crioglobulinemia
• Estado de portador. Um “portador” é um indivíduo que abriga e pode transmitir um
microrganismo, mas não apresenta sintomas. No caso dos vírus hepatotrópicos, o estado de
portador tem sido utilizado para descrever dois cenários separados: (1) indivíduos que abrigam o
vírus, mas não apresentam doença hepática; e (2) indivíduos que abrigam o vírus e apresentam
danos hepáticos não progressivos e assintomáticos. Em ambos os casos, particularmente no
segundo, os indivíduos afetados são reservatórios da infecção. Na infecção pelo HBV, o termo
“portador saudável” tem sido utilizado para se referir a indivíduos com HBsAg e anti-HBe, porém
sem HBeAg. Esses pacientes apresentam níveis normais de aminotransferases, níveis séricos
baixos ou indetectáveis de DNA do HBV e ausência de inflamação significativa ou lesão hepática
na biopsia (ver Figura 18.11). No caso do HCV, um estado equivalente ao “portador saudável” de
HBV não é reconhecido.

Tabela 18.3 Vírus da hepatite.

Vírus Hepatite A Hepatite B Hepatite C Hepatite D Hepatite E

Tipo de vírus RNAfs Parcialmente RNAfs RNAfs circular RNAfs


DNAfd defeituoso
Via de Fecal-oral (água Parenteral, Parenteral; Parenteral Fecal-oral
transmissão ou alimentos contato uso de
contaminados) sexual, cocaína
perinatal intranasal

Período 2 a 6 semanas 2 a 26 4 a 26 Igual ao HBV 4 a 5 semanas


médio de semanas semanas
incubação

Frequência Nunca 5 a 10% > 80% 10% Apenas em


de doença (coinfecção); hospedeiros
hepática 90 a 100% imunocomprometidos
crônica para a
superinfecção

Diagnóstico Anticorpos IgM Anticorpos ELISA para Anticorpos IgM Anticorpos IgM e IgG
séricos anti-HBs ou anticorpos ou IgG séricos; PCR para RNA
anti-HBc; anti-HCV; séricos; PCR do HEV
PCR para PCR para para RNA do
DNA do HBV RNA do HDV
HCV

DNAfd, DNA de fita dupla; ELISA, ensaio imunoabsorvente ligado à enzima; HBcAg, antígeno do cerne da hepatite B;
HBsAg, antígeno de superfície da hepatite B; HBV, vírus da hepatite B; HCV, vírus da hepatite C; HDAg, antígeno da
hepatite D; HDV, vírus da hepatite D; HEV, vírus da hepatite E; IgG, imunoglobulina G; IgM, imunoglobulina M; IV, via
intravenosa; PCR, reação em cadeia da polimerase; RNAfs, RNA de fita simples.
De Washington K: Inflammatory and infectious diseases of the liver. In Iacobuzio-Donahue CA, Montgomery EA,
editors: Gastrintestinal and Liver Pathology, Philadelphia, 2005, Churchill Livingstone.

O HIV é um importante fator de comorbidade nas infecções por vírus hepatotrópicos. A


coinfecção pelo HIV e por vírus da hepatite é comum nos EUA, visto que entre 10 e 25% dos
indivíduos infectados pelo HIV também são infectados por HBV e HCV, respectivamente. As
infecções crônicas por HBV e HCV constituem as principais causas de morbidade e mortalidade em
indivíduos infectados pelo HIV, embora a gravidade e a progressão em pacientes imunocompetentes
infectados pelo HIV sejam semelhantes àquelas de indivíduos HIV negativos. A infecção pelo HIV
não tratada exacerba de modo significativo a gravidade da doença hepática causada por HBV ou HCV.
Morfologia

As características morfológicas gerais da hepatite viral são apresentadas de modo esquemático na


Figura 18.13. As alterações morfológicas nas hepatites virais aguda e crônica devido a vírus
hepatotrópicos são, em grande parte, semelhantes e sobrepostas àquelas associadas a hepatite
autoimune, reações adversas a medicamentos e doença de Wilson.
Na hepatite viral aguda, o tamanho do fígado pode ser normal, aumentado (devido à inflamação)
ou diminuí do (retraí do) nos casos associados à insuficiência hepática aguda e à necrose hepática
maciça (ver Figura 18.4). No exame microscópico, há um infiltrado inflamatório portal e lobular,
constituído predominantemente de linfócitos e uma mistura variável de plasmócitos e eosinófilos. A
lesão dos hepatócitos pode resultar em necrose ou apoptose (ver Figuras 18.2 e 18.3), geralmente
com macrófagos pigmentados, que removem os restos celulares mortos. Nos casos graves, pode-se
observar a necrose de grupos de hepatócitos (i. e., necrose confluente), que pode progredir para a
necrose do lóbulo inteiro (i. e., necrose panlobular ou panacinar) ou conectar estruturas vasculares (i.
e., necrose em ponte). Além disso, pode haver o desenvolvimento de insuficiência hepática com
necrose hepática maciça.
A característica histológica definidora da hepatite viral crônica é a inflamação linfocitária
ou linfoplasmocitária portal com fibrose. Com frequência, as células inflamatórias cruzam a placa
limitante e levam à lesão dos hepatócitos periportais (atividade de interface). Isso pode ser
acompanhado de grau variável de inflamação lobular. Há formação de fibrose com o aumento dos
danos hepáticos, que se manifesta inicialmente como fibrose portal e periporta. Ocorre
desenvolvimento de septos fibrosos, que levam à fibrose em ponte portoportal e, por fim, à cirrose.
Algumas características morfológicas estão presentes em determinados subtipos de hepatite viral
crônica. Na hepatite B crônica, o retículo endoplasmático dos hepatócitos está intumescido e
preenchido por HBsAg, levando a uma aparência de “vidro fosco”. A imuno-histoquímica para os
antígenos de superfície e do cerne da hepatite B pode confirmar a infecção por HBV (Figura 18.14).
Em geral, a hepatite C crônica exibe agregados linfoides proeminentes ou folículos linfoides
totalmente formados nos tratos portais (Figura 18.15). A esteatose é comum na hepatite C crônica e
pode ser significativa nos casos de infecção pelo genótipo 3. Pode-se observar a presença de lesão
dos ductos biliares na hepatite C, simulando uma doença biliar, porém isso normalmente é um
achado focal.
Com frequência, a biopsia de fígado é realizada para confirmar o diagnóstico de hepatite crônica
e para avaliar a atividade inflamatória (grau) e a fibrose (estágio). O estágio da doença é utilizado em
associação a outros parâmetros clínicos para determinar a abordagem terapêutica.
Conceitos-chave

Hepatite viral

• A hepatite A é transmitida por via fecal-oral, provoca hepatite aguda e não leva à doença hepática
crônica
• A hepatite B é transmitida por via parenteral, e a maioria das infecções é subclínica; entretanto,
ela pode causar hepatite aguda, hepatite crônica e cirrose
• A hepatite C está mais frequentemente associada à progressão para a doença hepática crônica
(80% ou mais dos casos), ao passo que as infecções agudas são quase sempre subclínicas
• A hepatite D é um vírus defeituoso, que exige a coinfecção com o vírus da hepatite B para a sua
replicação e infecção
• A hepatite E é endêmica em regiões equatoriais e, com frequência, epidêmica; provoca doença
aguda, que pode ser grave durante a gravidez e pode levar à hepatite crônica em in divíduos
imunocomprometidos
• As células inflamatórias na hepatite viral, tanto aguda quanto crônica, são principalmente células
T; os achados morfológicos sobrepõem-se com outros distúrbios hepáticos, como hepatite
autoimune, lesão hepática induzida por medicamentos e doença de Wilson
• A avaliação por meio de biopsia na hepatite viral crônica revela a extensão da fibrose (estágio),
que pode determinar o curso terapêutico de ação
• Os pacientes com HBV ou HCV correm risco aumentado de desenvolver CHC, particularmente no
contexto da cirrose.

Figura 18.13 Representação esquemática das características morfológicas das hepatites aguda e crônica. A
hepatite aguda caracteriza-se por inflamação lobular e lesão hepatocelular, ao passo que a hepatite crônica
apresenta inflamação portal densa. Pode ocorrer necrose em ponte na hepatite aguda grave, e observa-se a
presença de fibrose na hepatite crônica. Com frequência, observa-se a presença de reação ductular em áreas
de fibrose na hepatite crônica.
Figura 18.14 Hepatócitos com aspecto de vidro fosco na hepatite B crônica, causados pelo acúmulo do
antígeno de superfície do vírus da hepatite B no retículo endoplasmático. As inclusões citoplasmáticas são de
coloração rosa-claro e finamente granulares na coloração pela hematoxilina e pela eosina; a imuno-
histoquímica (detalhe) confirma que elas contêm o antígeno de superfície da hepatite B (em marrom).

Infecções bacterianas, fúngicas e parasitárias


As bactérias, os fungos, os helmintos e outros parasitas/protozoários podem acometer o fígado e
a árvore biliar na forma de infecções localizadas ou como parte de doença sistêmica. Exemplos
de infecções bacterianas incluem Staphylococcus aureus na síndrome do choque tóxico, Salmonella
typhi na febre tifoide, Treponema pallidum na sífilis secundária ou terciária e Bartonella henselae na
doença da arranhadura do gato. A obstrução biliar cria um ambiente para a proliferação bacteriana,
levando à infecção da árvore biliar, geralmente denominada colangite ascendente. Quando grave, a
infecção pode estender-se até o fígado e produzir abscessos intra-hepáticos. A propagação das
bactérias por via hematogênica ou a sua disseminação direta a partir de tecidos infectados adjacentes
também podem levar à formação de abscesso. Os abscessos hepáticos estão associados à ocorrência
de febre, dor no quadrante superior direito do abdome e hepatomegalia dolorosa. A icterícia pode
resultar da obstrução biliar extra-hepática. Em geral, a antibioticoterapia é efetiva, porém a drenagem
cirúrgica pode ser necessária para as lesões grandes. As infecções bacterianas extra-hepáticas,
particularmente as infecções intra-abdominais, podem levar a alterações inflamatórias inespecíficas no
fígado. A sepse pode estar associada à reação ductular e à colestase, que se manifesta como tampões
de bile nos dúctulos (colestase ductular ou colangiolar), uma característica típica da sepse.
O fígado pode estar acometido nas infecções fúngicas (p. ex., histoplasmose) e micobacterianas
disseminadas. A histologia hepática mostra granulomas epitelioides, com ou sem necrose, em locais
de comprometimento. O diagnóstico baseia-se nos achados sorológicos, nas hemoculturas ou na
demonstração dos microrganismos em biopsias de fígado.
Figura 18.15 Hepatite viral crônica causada pelo vírus da hepatite C. A. Expansão característica do trato
portal por um agregado linfoide. B. Fibrose em ponte delicada, observada em uma fase mais tardia da
evolução da doença.

As infecções parasitárias e helmínticas que podem acometer o fígado incluem malária,


esquistossomose, estrongiloidíase, criptosporidiose, leishmaniose, equinococose, amebíase e infecções
pelos trematódeos hepáticos Fasciola hepatica, Opisthorchis e Clonorchis sinensis (ver Capítulo 8).
A esquistossomose é mais comumente encontrada na Ásia, na África e na América do Sul, em áreas
em que a água contém numerosos caramujos de água doce como vetor e tem tendência particular a
causar doença hepática crônica. As infecções por trematódeos hepáticos, que são mais comuns no
Sudeste Asiático, são conhecidas por aumentar o risco de colangiocarcinoma (discutido adiante). Os
cistos hidáticos são geralmente causados por infecções por Echinococcos (ver Capítulo 8). Com
frequência, ocorrem calcificações características nas paredes dos cistos, que podem permitir um
diagnóstico radiológico. Os cistos hidáticos são incomuns nos países de alta renda. A degeneração
hepática cística ou abscessos podem ser causados por infecções amebianas e infecções por outros
protozoários e helmintos. A incidência das infecções amebianas é baixa em países de alta renda e é
comumente encontrada em imigrantes de regiões endêmicas.

Hepatite autoimune
A hepatite autoimune é uma hepatite progressiva crônica associada à predisposição genética, a
autoanticorpos e a uma resposta terapêutica à imunossupressão. Observa-se predomínio da
doença no sexo feminino (78%).

Patogênese
A hepatite autoimune tem uma forte associação com alelos HLA específicos em indivíduos brancos
(DR3), japoneses (DR4) e sul-americanos (DRB1). Os fatores desencadeantes propostos para a reação
imune incluem infecções virais, medicamentos/toxinas e vacinação, porém os antígenos que
constituem o alvo da autoimunidade não são conhecidos, e, à semelhança de outros distúrbios
autoimunes, a base do ataque imune aos hepatócitos permanece obscura. O infiltrado linfocitário no
fígado é composto predominantemente de células T auxiliares CD4+, com células T citotóxicas CD8+
na interface. As células CD4+ desempenham um importante papel na ativação dos linfócitos B e sua
diferenciação em plasmócitos, que são responsáveis pela produção de autoanticorpos. O mecanismo
pelo qual a interação entre linfócitos, autoanticorpos e tipos HLA leva à lesão hepática não está bem
esclarecido. Um pequeno número de medicamentos, como minociclina, nitrofurantoína e α-metildopa,
pode desencadear a formação de autoanticorpos e lesão hepatocelular, que simula a hepatite
autoimune.

Morfologia

As características da hepatite autoimune sobrepõem-se àquelas das hepatites aguda e crônica de


outras etiologias. A inflamação extensa e a lesão hepatocelular na interface, bem como no
parênquima hepático, constituem características da hepatite autoimune. É típica a presença de
numerosos plasmócitos agrupados (Figura 18.16). Pode-se observar a presença de linfócitos e
plasmócitos dentro do citoplasma dos hepatócitos, com frequência na interface, constituindo um
fenômeno curioso, denominado emperipolese. A necrose de grupos de hepatócitos (necrose
confluente) pode afetar as áreas perivenulares, todo o ácino (necrose panacinar) ou conectar
estruturas vasculares (necrose em ponte). As características regenerativas resultantes podem se
manifestar como “rosetas”, um arranjo circular de hepatócitos ao redor de um canalículo dilatado. A
maioria dos casos exibe algum grau de fibrose na apresentação inicial, o que aumenta a progressão
da doença. A cirrose com atividade inflamatória limitada (i. e., “cirrose de exaustão”) é observada na
apresentação inicial em alguns casos, constituindo o resultado de doença subclínica.

Características clínicas
A hepatite autoimune não tratada leva à morte ou progride para a cirrose na maioria dos casos. Ela
apresenta uma ampla gama de apresentações, que variam desde doença assintomática, detectada por
níveis elevados de transaminases durante um rastreamento, até apresentações agudas e crônicas. As
apresentações agudas podem ser indistinguíveis da hepatite viral aguda ou da hepatite induzida por
fármacos e podem levar à insuficiência hepática aguda. Mais comumente, a apresentação é insidiosa,
com sintomas inespecíficos, como fadiga, anorexia, náuseas e dor abdominal. Os pacientes
assintomáticos ou com apresentação aparentemente aguda têm, com frequência, fibrose e até mesmo
cirrose na necropsia, indicando a existência de doença subclínica que não foi reconhecida.

Figura 18.16 Hepatite autoimune. A figura mostra um foco de hepatite lobular com plasmócitos proeminentes,
típicos dessa doença.

Em um pequeno subgrupo de pacientes, pode haver sobreposição de características com a


colangite biliar primária ou a colangite esclerosante primária, sendo esta última de ocorrência mais
frequente na população pediátrica. O diagnóstico das síndromes de sobreposição exige a presença
inequívoca de evidências sorológicas, bioquímicas e/ou histológicas de ambas as doenças. Em alguns
casos, o segundo componente da síndrome de sobreposição torna-se evidente meses ou anos após o
tratamento do primeiro componente. A hepatite autoimune também pode estar associada a outras
doenças autoimunes, como diabetes melito tipo 1, tireoidite e espru celíaco. É importante reconhecer a
lesão do tipo hepatite autoimune induzida por fármacos, visto que a interrupção do medicamento
normalmente leva à recuperação clínica.
O diagnóstico de hepatite autoimune baseia-se na combinação de quatro características:
autoanticorpos, elevação dos níveis séricos de IgG, exclusão de outras etiologias (p. ex., hepatite
viral, medicamentos) e achados histológicos confirmatórios na biopsia de fígado. Essas
características foram combinadas para criar um esquema de pontuação, que permite a categorização
de casos em hepatite autoimune definida e provável (Tabela 18.4). Com base nos tipos de
autoanticorpos presentes, a hepatite autoimune é subclassificada como tipos 1 e 2. O tipo 1 é mais
comum e caracteriza-se, normalmente, pela presença de anticorpos antinucleares (ANA) e anticorpos
antiactina do músculo liso (SMA). Além disso, podem ser observados anticorpos contra o antígeno
hepático solúvel/o antígeno de fígado-pâncreas (SLA/LPA) e, menos comumente, anticorpos
antimitocondriais (AMA, mais típicos da colangite biliar primária). A doença tipo 2 é mais comum
em crianças e caracteriza-se por anticorpos antimicrossomais de fígado-rim 1 (LKM-1), que são
dirigidos contra CYP2D6, e anticorpos anticitosol hepático 1 (ACL-1). As outras características
clínicas, a história natural e os achados patológicos são semelhantes nos dois tipos. Com frequência,
os níveis séricos de IgG estão elevados na hepatite autoimune e podem fornecer outra indicação para o
diagnóstico.

Tabela 18.4 Critérios diagnósticos simplificados (2008) do International Autoimmune Hepatitis


Group.

Pontosa

Autoanticorpos ANA ou ASMA ou LKM > 1:80 2

ANA ou ASMA ou LKM > 1:40 1

SLA/LP positivo (> 20 unidades) 0

IgG (ou gamaglobulinas) > 1,10 vez o limite normal 2

Limite superior da normalidade 1

Histologia do fígadob Típica da hepatite autoimune 2

Compatível com hepatite autoimune 1

Atípica para a hepatite autoimune 0

Ausência de hepatite viral Sim 2

Não 0
aHepatite autoimune (HAI) definida: N = 7; HAI provável: N = 6.

bTípica: (1) hepatite de interface, infiltrados linfocitários/linfoplasmocitários em tratos portais e estendendo-se no

lóbulo; (2) emperipolese (penetração ativa de uma célula dentro e através de uma célula maior); (3) formação de
rosetas hepáticas.
Compatível: hepatite crônica com infiltração linfocitária sem características consideradas típicas.
Atípica: presença de sinais de outro diagnóstico como doença hepática gordurosa não alcoólica.
ANA, anticorpo antinuclear; ASMA, antiactina do músculo liso; HAI, hepatite autoimune; IgG, imunoglobulina G;
LKM, anticorpos microssomais antifígado-rim; LP, fígado-pâncreas; SLA, antígeno hepático solúvel.
Modificada de Hennes EM, Zeniya M, Czaja AJ, et al: Simplified criteria for the diagnosis of autoimmune hepatitis,
Hepatology 48(1):169-176, 2008.

Os títulos de autoanticorpos não se correlacionam bem com a gravidade ou o resultado da doença


e podem não estar presentes em um pequeno subgrupo de casos (i. e., hepatite autoimune
soronegativa). Além disso, observa-se a presença de autoanticorpos em outras doenças, como esteato-
hepatite e hepatite viral crônica (p. ex., por HBV e HCV); por conseguinte, é importante estabelecer o
diagnóstico com base nas características clínicas, sorológicas e histológicas gerais.
O tratamento de escolha consiste em imunossupressão com prednisona, com ou sem azatioprina,
levando à remissão em 80 a 90% dos pacientes, geralmente nos primeiros 12 meses de tratamento.
Outros agentes imunossupressores são utilizados se não for possível tolerar os efeitos colaterais dos
esteroides. Os pacientes com respostas incompletas ou com múltiplas recidivas correm maior risco de
progressão para a cirrose, bem como risco de desenvolver carcinoma hepatocelular. O transplante de
fígado pode ser necessário para pacientes cirróticos. A taxa de sobrevida em 10 anos após o
transplante de fígado é de 75%, com recorrência da doença em 20% dos pacientes.
Conceitos-chave

Hepatite autoimune

• O diagnóstico de hepatite autoimune baseia-se em uma combinação de quatro características:


autoanticorpos, níveis séricos elevados de IgG, achados patológicos e exclusão de etiologias
virais/medicamentosas
• Os autoanticorpos mais comuns na hepatite autoimune tipo 1 são os ANA e os anticorpos
antimúsculo liso (ASMA), ao passo que a hepatite autoimune tipo 2 se caracteriza por
autoanticorpos anti-LKM1
• A hepatite autoimune pode ter apresentações variáveis: elevação assintomática das enzimas
hepáticas, insuficiência hepática aguda, hepatite crônica e cirrose
• As características histológicas típicas da hepatite autoimune consistem em alto grau de atividade
necroinflamatória e numerosos plasmócitos.

Lesão hepática induzida por medicamentos e toxinas


A lesão hepática induzida por medicamentos ou toxinas constitui uma importante causa de
insuficiência hepática aguda nos EUA. Devido ao seu papel central no metabolismo, o fígado é
suscetível a lesões por uma ampla variedade de compostos encontrados em medicamentos (Tabela
18.5), fitoterápicos, suplementos dietéticos, plantas e fungos venenosos (p. ex., cogumelos Amanita
phylloides) e produtos domésticos e industriais (p. ex., pomadas, perfumes, xampu, solventes de
limpeza, pesticidas). Com base em dados da U.S. Drug Induced Liver Injury Network, 10% dos
pacientes com lesão hepática induzida por medicamentos morrem ou necessitam de transplante de
fígado, ao passo que 17% desenvolvem doença hepática crônica.

Patogênese
Os princípios de lesão por medicamentos e lesão tóxica são discutidos no Capítulo 9. A lesão
hepática pode se desenvolver imediatamente após a exposição ao agente responsável ou se manifestar
depois de semanas ou até mesmo meses. Na maioria dos casos, a lesão é mediada por metabólitos
reativos gerados no fígado. A família de enzimas do citocromo, em particular o citocromo P-450, está
envolvida na maioria dessas reações metabólicas. Tendo-se em vista que essas enzimas são mais
ativas na zona central do lóbulo, a necrose de hepatócitos perivenulares constitui uma característica
típica da lesão hepática induzida por medicamentos. Os agentes que induzem o sistema do citocromo,
como rifampicina, fenitoína, isoniazida, fumaça de tabaco e etanol, podem exacerbar a toxicidade de
outros fármacos.
A lesão hepática induzida por medicamentos pode ser idiossincrásica (imprevisível) ou
dependente da dose (previsível). As reações idiossincrásicas constituem a forma mais comum de lesão
hepática induzida por medicamentos e ocorrem geralmente depois de 1 a 3 meses de exposição (ver
Tabela 18.5). Em alguns casos, parecem resultar de uma resposta de hipersensibilidade ao
medicamento ou ao(s) seu(s) metabólito(s). Acredita-se que exista uma suscetibilidade genética nos
indivíduos que apresentam reações idiossincrásicas. Por exemplo, o metabolismo da isoniazida (um
agente antituberculose) é lento em indivíduos que apresentam uma variante da N-acetiltransferase
(NAT2) com atividade enzimática diminuída, elevando os níveis do medicamento no fígado e
resultando em suscetibilidade à hepatotoxicidade da isoniazida. Os medicamentos antimicrobianos são
os responsáveis mais comuns nas reações idiossincrásicas, representando quase metade dos casos.
Outros agentes comumente implicados incluem fármacos cardiovasculares, agentes que atuam no
sistema nervoso central, fármacos antineoplásicos e analgésicos, como os anti-inflamatórios não
esteroides. Uma grande variedade de fitoterápicos e agentes nutricionais também foi implicada nas
reações idiossincrásicas.
O paracetamol é uma hepatotoxina previsível clássica e dependente de dose, e hoje constitui
a causa mais comum de insuficiência hepática aguda, exigindo transplante nos EUA. O agente
tóxico não é o paracetamol em si, mas sim um metabólito, a N-acetil_P-benzoquinona imina
(NAPQI), que é produzido pelo sistema do citocromo P-450. Os hepatócitos da zona 3 pericentral são
mais sensíveis à NAPQI; todavia, em caso de superdosagem grave, a lesão afeta todas as partes dos
lóbulos, resultando em insuficiência hepática aguda. Embora tentativas de suicídio com paracetamol
sejam comuns, as superdosagens acidentais também são frequentes. Isso se deve ao fato de que a
atividade do sistema do citocromo P-450 pode ser suprarregulada por outros agentes tomados em
associação com o paracetamol, como o álcool (é preciso ter cuidado com o paracetamol como
profilático para ressaca) ou codeína em comprimidos de paracetamol. Outros exemplos de
hepatotoxinas de ação direta que podem produzir lesão hepática grave incluem solventes orgânicos e
toxinas em cogumelos.

Tabela 18.5 Padrões de lesão hepática induzida por medicamentos e toxinas.

Padrão de lesão Achados morfológicos Exemplos de agentes associados

Colestática Colestase hepatocelular leve, Contraceptivos e esteroides


sem inflamação anabolizantes, antibióticos, TARV

Hepatite colestática Colestase com atividade Antibióticos, fenotiazinas, estatinas


necroinflamatória lobular;
pode apresentar destruição
dos ductos biliares

Necrose hepatocelular Necrose irregular dos Metildopa, fenitoína


hepatócitos

Necrose maciça Paracetamol, halotano

Hepatite crônica Isoniazida

Esteatose hepática Gotículas de gordura grandes Etanol, corticosteroides, metotrexato,


e pequenas nutrição parenteral total

“Esteatose microvesicular” Valproato, tetraciclina, ácido


(gotícula de gordura acetilsalicílico (síndrome de Reye),
pequena e difusa) TARV

Esteato-hepatite com hialino Etanol, amiodarona, irinotecano


de Mallory

Fibrose e cirrose Fibrose periporta e Álcool, metotrexato, enalapril, vitamina


pericelular A e outros retinoides

Granulomas Granulomas epitelioides não Sulfonamidas, amiodarona, isoniazida


caseosos

Granulomas com anel de Alopurinol


fibrina

Lesões vasculares Síndrome da obstrução Quimioterapia em altas doses, chá de


sinusoidal (doença veno- ervas
oclusiva): obliteração das
veias centrais

Síndrome de Budd-Chiari Contraceptivos orais


Peliose hepática: cavidades Esteroides anabolizantes, tamoxifeno
repletas de sangue, não
revestidas por células
endoteliais

Neoplasias Adenoma hepatocelular Contraceptivos orais, esteroides


anabolizantes

Carcinoma hepatocelular Álcool, torotraste

Colangiocarcinoma Torotraste

Angiossarcoma Torotraste, cloreto de vinila

TARV, terapia antirretroviral.


Modificada de Washington K: Metabolic and toxic conditions of the liver. In Iacobuzio-Donahue CA,
Montgomery EA, editors: Gastrointestinal and Liver Pathology, Philadelphia, 2005, Churchill Livingstone.

Morfologia

Os fármacos podem causar um ou mais padrões de lesão. A lesão hepatocelular é responsável por
quase metade dos casos, e o restante é dividido de modo aproximadamente igual entre padrões
colestático e hepatocelular/colestático misto. As reações idiossincrásicas com padrão de lesão
hepatocelular exibem características típicas da hepatite aguda dominada por inflamação e graus
variáveis de necrose. O quadro assemelha-se ao das hepatites viral e autoimune, e a necrose da zona
central é uma característica comum. Em uma minoria de casos, pode-se observar uma progressão
para hepatite crônica e até mesmo cirrose. A lesão causada por hepatotoxinas intrínsecas é
dominada por necrose, com inflamação mínima. A lesão centrada nos ductos biliares caracteriza-se
por combinações variadas de colestase e reações ductulares, que podem progredir para a colestase
crônica e a “perda” de ductos em uma minoria de casos.
Alguns agentes produzem outros padrões de lesão. Fármacos como a amiodarona (agente
antiarrítmico), o tamoxifeno (antiestrogênio), o irinotecano (antineoplásico) e o metotrexato (agente
imunossupressor) podem causar um padrão de lesão semelhante à esteato-hepatite. A disfunção
mitocondrial causada por medicamentos como a tetraciclina (antibiótico), o ácido valproico
(anticonvulsivante) e a zidovudina (antirretroviral) pode resultar em esteatose microvesicular. A
lesão endotelial dos sinusoides e das veias centrais pode ser causada por agentes citotóxicos
(azatioprina, oxaliplatina), levando à síndrome da obstrução sinusoidal (anteriormente
denominada doença veno-oclusiva).

Características clínicas
A lesão hepática induzida por medicamentos pode ter uma ampla variedade de apresentações e deve
ser sempre incluída no diagnóstico diferencial de doença hepática. Como não há nenhuma
característica clínica ou patológica específica, o diagnóstico é estabelecido com base na associação
temporal de exposição a medicamentos ou toxinas ao início de lesão hepática. As medições das
enzimas hepáticas podem ser utilizadas para avaliar se a lesão é principalmente: (1) hepatocelular
(alanina aminotransferase [ALT] ≥ 5 vezes o limite superior do normal ou razão ALT/fosfatase
alcalina [FA] > 5); (2) colestática (FA ≥ 2 vezes o limite superior do normal ou razão ALT/FA < 2); ou
(3) mista (aumento da ALT e da FA com razão ALT/FA entre 2 e 5). A exclusão de outras etiologias e
a recuperação (na maioria dos casos) após a retirada do agente agressor favorecem o diagnóstico
presuntivo. A recorrência com reexposição ao medicamento pode ser confirmatória, porém raramente
é utilizada na prática por motivos óbvios.
Conceitos-chave

Lesão hepática induzida por medicamentos

• Existem dois mecanismos de lesão hepática:


• A hepatotoxicidade direta, um fenômeno dependente da dose do medicamento ou de seu
metabólito, que previsivelmente afeta os indivíduos expostos; um exemplo típico é o
paracetamol, que constitui a causa mais comum de insuficiência hepática aguda nos EUA
• Uma resposta idiossincrásica (hipersensibilidade), que não é dependente da dose, é
responsável pela maioria dos casos de lesão hepática induzida por medicamentos, porém
ocorre normalmente em uma minoria de indivíduos
• Os medicamentos podem simular qualquer padrão clínico ou histológico de lesão e devem ser
incluí dos no diagnóstico diferencial das doen ças hepáticas em diversos contextos clínicos
• É necessária uma correlação do perfil temporal da ingestão de medicamentos com o início da
doença para o estabelecimento do diagnóstico.

Esteatose hepática
A doença hepática alcoólica e a doença hepática gordurosa não alcoólica compartilham muitas
semelhanças e são consideradas em conjunto nesta seção.

Doença hepática alcoólica


O consumo excessivo de álcool (etanol) representa uma importante causa de doença hepática na
maioria dos países ocidentais; ele é responsável por 5,9% das mortes em todo o mundo e, com
mais frequência, leva à morte e à incapacidade mais cedo na vida do que outras formas de lesão
hepática crônica. Existem três formas distintas, ainda que sobrepostas, de lesão hepática induzida por
álcool: (1) esteatose ou degeneração gordurosa; (2) esteato-hepatite alcoólica; e (3) fibrose, que leva à
cirrose.

Patogênese
A farmacocinética e o metabolismo do álcool são descritos no Capítulo 9. Os efeitos prejudiciais do
álcool e de seus subprodutos na função hepatocelular são pertinentes para essa discussão. A ingestão a
curto prazo de apenas 80 g de álcool (seis cervejas ou 240 m ℓ de bebidas com 40% de graduação
alcoólica) durante um a vários dias geralmente produz esteatose hepática leve e reversível. O risco de
lesão hepática grave torna-se significativo com o consumo de 80 g ou mais de etanol por dia. O
consumo diário de 160 g ou mais por 10 a 20 anos com frequência está associado à lesão hepática
grave. Entretanto, apenas 10 a 15% dos etilistas desenvolvem cirrose. Por conseguinte, outros fatores
também influenciam o desenvolvimento e a gravidade da doença hepática alcoólica. Esses fatores
incluem:
• Gênero. Embora a maioria dos pacientes com doença hepática alcoólica seja constituída de
homens, as mulheres, com base na dose, são mais suscetíveis à lesão hepática induzida por álcool.
As diferenças de gênero na farmacocinética e no metabolismo do álcool podem contribuir para
isso, bem como as respostas dependentes de estrogênio do fígado à endotoxina derivada do
intestino (lipopossacarídeo [LPS]). Embora os mecanismos exatos sejam desconhecidos, parece
que o estrogênio aumenta a permeabilidade do intestino às endotoxinas. As endotoxinas são
transportadas no sistema porta para o fígado, onde se ligam ao receptor CD14 de LPS expresso
nas células de Kupffer, um evento que estimula o receptor TLR4. A sinalização do TLR
desencadeia a liberação de citocinas e quimiocinas, que podem contribuir para a inflamação que
acompanha a doença hepática alcoólica
• Diferenças étnicas e genéticas. Nos EUA, as taxas de cirrose são mais altas em afro-americanos
do que em norte-americanos brancos, apesar dos níveis semelhantes de consumo de álcool.
Estudos realizados com gêmeos sugerem que existe um componente genético na doença hepática
induzida por álcool, embora seja difícil separar as influências genéticas das ambientais. A variação
genética nas enzimas de destoxificação do álcool e os promotores de citocinas podem
desempenhar um papel significativo e contribuir para as diferenças observadas entre as
populações. A ALDH*2, uma variante da aldeído desidrogenase (ALDH) encontrada em 50% dos
asiáticos, tem atividade enzimática muito baixa. Os indivíduos homozigotos para ALDH*2 são
incapazes de oxidar o álcool a acetaldeído e, portanto, são intolerantes ao álcool, que produz rubor
na parte superior do corpo e níveis variáveis de náuseas e letargia
• Comorbidades. A sobrecarga de ferro, a esteato-hepatite não alcoólica e a infecção por HCV e
HBV atuam de modo sinérgico com o álcool para aumentar a gravidade da doença hepática.
O consumo excessivo de álcool provoca esteatose, disfunção de mitocôndrias, microtúbulos e
membranas celulares e estresse oxidativo, e a lesão resultante leva a graus variáveis de
inflamação e morte dos hepatócitos. Vários fatores parecem contribuir para a esteatose. O
metabolismo do álcool pela álcool desidrogenase e pela acetaldeído desidrogenase gera grandes
quantidades de nicotinamida adenina dinucleotídio (NADH) reduzida. Isso altera o equilíbrio redox
nos hepatócitos e produz numerosos efeitos que favorecem a lipogênese, incluindo supressão da
oxidação dos ácidos graxos e aumento da expressão de enzimas que realizam a síntese de ácidos
graxos. O acúmulo de lipídios intra-hepáticos pode ser ainda mais exacerbado pelo comprometimento
da montagem e pela secreção de lipoproteínas. O álcool também aumenta o catabolismo periférico da
gordura, aumentando o compartimento circulante de lipídios disponíveis para captação pelos
hepatócitos.
Os mecanismos exatos subjacentes à lesão dos hepatócitos e à hepatite alcoólica não estão bem
elucidados, porém foram identificados vários fatores provavelmente contribuintes:
• A acetaldeído (o produto da álcool desidrogenase) induz a peroxidação lipídica e a formação de
aduto de acetaldeído-proteína, rompendo a função do citoesqueleto e da membrana e,
possivelmente, produzindo neoantígenos
• Indução de CYP2E1. O consumo de álcool em altos níveis induz os microssomos hepáticos que
contêm CYP2E1, um componente do sistema do citocromo P-450. O metabolismo do álcool pela
CYP2E1 produz ROS, que provoca danos às proteínas celulares, membranas e mitocôndrias –
efeitos que podem promover a apoptose
• Metabolismo da metionina. O álcool prejudica o metabolismo hepático da metionina, que diminui
os níveis de glucagon, sensibilizando, assim, o fígado à lesão oxidativa e contribuindo para a
produção de homocisteína, que pode induzir a resposta de estresse do retículo endoplasmático.
A indução das enzimas do citocromo P-450 no fígado pelo álcool também aumenta a conversão de
outros fármacos (p. ex., paracetamol) em metabólitos tóxicos. Além disso, conforme assinalado, o
álcool tem sido associado à captação aumentada de endotoxina bacteriana pelo intestino, induzindo
respostas inflamatórias no fígado.
Os danos causados por esses e outros fatores levam à inflamação e, com a cronicidade, à fibrose
hepática e a distúrbios de perfusão vascular (resumidos na Figura 18.17). Em essência, a doença
hepática alcoólica pode ser considerada um estado de desregulação adaptativa, em que as células do
fígado respondem de maneira cada vez mais patológica a um estímulo (álcool) que, originalmente, era
apenas marginalmente prejudicial.

Morfologia

As alterações características na doença hepática alcoólica começam na zona 3 centrolobular e


estendem-se para fora, em direção aos tratos portais, à medida que a gravidade da lesão aumenta. A
esteatose hepática (fígado gorduroso) é um efeito precoce e previsível do consumo de álcool.
Mesmo após um consumo moderado de álcool, ocorre o acúmulo de gotículas de lipídios nos
hepatócitos. O acúmulo de lipídios começa na forma de pequenas gotículas, que coalescem em
grandes gotículas, que distendem o hepatócito e empurram o núcleo para a periferia (Figura 18.18).
Ao exame macroscópico, o fígado gorduroso do alcoolismo crônico está aumentado (com peso de
até 4 a 6 kg), amolecido, amarelo e gorduroso. A esteatose pode ser dividida nas formas micro e
macrovesicular. A esteatose macrovesicular é a forma predominante da doença hepática alcoólica.
Uma exceção incomum é a degeneração espumosa alcoólica, uma forma de esteatose
microvesicular às vezes observada com consumo maciço e crônico de álcool, que está associada a
danos do retículo endoplasmático e da mitocôndria. Em geral, a degeneração gordurosa é
totalmente reversível se houver cessação da ingestão de álcool.
Em um subgrupo de pacientes com doença hepática alcoólica, a inflamação (hepatite alcoólica) e
a fibrose hepáticas (ver Figura 18.18) constituem características proeminentes. Os achados
morfológicos na hepatite alcoólica incluem os seguintes:
• Hepatócitos balonizados (Figura 18.19). Trata-se de hepatócitos intumescidos e lesionados, com
citoplasma claro e danos ao citoesqueleto, que, quando extensos, resultam na formação de
hialino de Mallory (corpúsculos de Mallory), que consiste em emaranhados de filamentos
intermediários, como a queratina 8 e a queratina 18, que são parcialmente degradados e
ubiquitinados (ver Figura 18.19B). Os corpúsculos de Mallory podem refletir uma tentativa
fracassada de sequestrar e degradar as proteínas citoplasmáticas danificadas. Outros hepatócitos
com balonização não apresentam corpúsculos de Mallory e contêm, em vez disso, gotículas de
lipídios. Embora os hepatócitos balonizados não sejam totalmente específicos da esteato-hepatite
alcoólica, eles são essenciais para esse diagnóstico. Outras condições que apresentam
balonização dos hepatócitos incluem a esteato-hepatite não alcoólica (EHNA, ou NASH, do inglês),
a doença de Wilson e doenças crônicas do trato biliar
• Inflamação e necrose. Em geral, os neutrófilos são mais proeminentes na hepatite alcoólica do que
na EHNA e podem ficar em torno dos hepatócitos balonizados, particularmente na presença de
corpúsculos de Mallory. Os infiltrados linfocitários lobulares são comuns, e podem ocorrer
infiltrados linfocitários portais, bem como aumento dos macrófagos nos tratos portais e no
parênquima lobular. A necrose/apoptose é geralmente irregular; todavia, em alguns casos, pode
ocorrer lesão hepatocelular mais proeminente e necrose confluente
• Fibrose perivenular/pericelular. Com frequência, a esteato-hepatite é acompanhada de fibrose. Ela
normalmente se inicia na zona acinar 3 (zona centrolobular) na forma de fibrose pericelular ou
perissinusoidal, com aparência de “tela de arame” (ver Figura 18.18). Com os danos contínuos,
esse processo progride para a fibrose portal/periporta e, em seguida, para a fibrose em ponte e
cirrose. que, em muitos casos, é micronodular (“cirrose de Laennec”) (Figura 18.20). Os estágios
iniciais de formação de cicatriz podem regredir com a interrupção do uso de álcool; entretanto,
com o desenvolvimento da cirrose e de suas alterações vasculares (relacionadas com a fibrose
perivenular e a obliteração fibrosa, denominada fleboesclerose e lesões veno-oclusivas), a
probabilidade de recuperação completa da função normal diminui. A regressão completa da
cirrose alcoólica, embora tenha sido relatada, é rara.
Figura 18.17 Doença hepática alcoólica. São mostradas as inter-relações entre a esteatose hepática, a
hepatite alcoólica e a cirrose alcoólica, com ilustrações das principais características morfológicas. Convém
assinalar que alguns pacientes apresentam inicialmente cirrose sem qualquer uma das formas de doença
hepática alcoólica.

Características clínicas
A esteatose hepática pode causar hepatomegalia, com elevação leve dos níveis séricos de bilirrubina e
fosfatase alcalina. A disfunção hepática grave é incomum. A abstinência de álcool e o consumo de
uma dieta adequada constituem o tratamento suficiente. Em contrapartida, a hepatite aguda tende a ter
início rápido, com frequência após um episódio de consumo maciço de álcool. Normalmente, ocorrem
mal-estar, anorexia, perda de peso, desconforto na parte superior do abdome e hepatomegalia
dolorosa, acompanhados dos achados laboratoriais de hiperbilirrubinemia, níveis séricos elevados de
aminotransferases e fosfatase alcalina e, com frequência, leucocitose neutrofílica. Diferentemente de
outras doenças hepáticas crônicas, nas quais o nível sérico de ALT tende a ser mais alto do que o nível
sérico de AST, na doença hepática alcoólica, os níveis séricos de AST tendem a ser mais elevados que
os de ALT, com razão de 2:1 ou mais. Esse achado pode ser particularmente útil em caso de etilismo
oculto. No outro extremo do espectro, em casos graves, os sintomas e os achados laboratoriais podem
simular os da insuficiência hepática aguda. Em outros casos, observa-se um quadro de síndrome
colestática aguda, que se assemelha à obstrução dos grandes ductos biliares.
Figura 18.18 Esteatose alcoólica e fibrose. Uma mistura de pequenas e grandes gotículas de lipídios
(observadas como vacúolos claros) é mais proeminente ao redor da veia central, estendendo-se para fora até
os tratos portais. Observa-se a presença de alguma fibrose (coloração azul) em um padrão em tela de arame
perissinusoidal. (Coloração: tricrômico de Masson.) (Cortesia da Dra. Elizabeth Brunt, Washington University,
St. Louis, Mo.)

Figura 18.19 A. Hepatite alcoólica com células inflamatórias agrupadas marcando o local de um hepatócito
necrótico. Observa-se a presença de corpúsculo de Mallory em outro hepatócito (seta). B. Hepatite alcoólica
com muitos hepatócitos balonizados (cabeças de setas). Observa-se, também, a presença de agrupamentos
de células inflamatórias; o detalhe mostra a imuno-histoquímica para as queratinas 8 e 18 (em marrom), com a
maioria dos hepatócitos, incluindo aqueles com vacúolos lipídicos, apresentando coloração citoplasmática
normal; entretanto, na célula balonizada (seta), as queratinas ubiquinadas sofreram colapso, formando os
corpúsculos Mallory e deixando o citoplasma “vazio”. (Cortesia da Dra. Elizabeth Brunt, Washington University,
St. Louis, Mo.)
Figura 18.20 Cirrose alcoólica. A. A nodularidade difusa característica da superfície é induzida pela
cicatrização fibrosa subjacente. O tamanho médio dos nódulos é de 3 mm nessa vista ampliada, típico da
cirrose “micronodular” da doença hepática alcoólica. A coloração esverdeada é causada pela colestase. B. Do
ponto de visto microscópico, essa cirrose caracteriza-se por pequenos nódulos envolvidos por tecido fibroso
de coloração azul; o acúmulo de gordura não é mais observado nesse estágio de “exaustão” (coloração:
tricrômico de Masson).

O prognóstico é imprevisível; cada episódio de hepatite está associado a um risco de morte de


cerca de 10 a 20%. Com surtos repetidos, ocorre o desenvolvimento de cirrose em cerca de um terço
dos pacientes dentro de alguns anos. A hepatite alcoólica também pode se sobrepor à cirrose
estabelecida. Com nutrição adequada e interrupção total do consumo de álcool, pode ocorrer
resolução da hepatite alcoólica. Todavia, em alguns pacientes, a hepatite persiste apesar da
abstinência, e observa-se uma progressão para a cirrose.
As manifestações da cirrose alcoólica assemelham-se àquelas de outras formas de cirrose. Os
achados laboratoriais refletem a disfunção hepática e consistem em elevação dos níveis séricos de
aminotransferases, hiperbilirrubinemia, elevação variável da fosfatase alcalina sérica, hipoproteinemia
(globulinas, albumina e fatores da coagulação) e anemia. Em alguns casos, a biopsia de fígado pode
estar indicada, visto que, em cerca de 10 a 20% dos casos de suspeita de cirrose alcoólica, observa-se
a presença de outra doença. Por fim, a cirrose pode ser clinicamente silenciosa e descoberta apenas na
necropsia, ou quando um estresse, como infecção ou trauma, desequilibra a balança para a
insuficiência hepática.
O prognóstico a longo prazo para os etilistas com doença hepática é variável. A taxa de sobrevida
em 5 anos aproxima-se de 90% em abstêmios que não apresentam icterícia, ascite ou hematêmese,
porém cai para 50 a 60% naqueles que continuam consumindo álcool. Na doença avançada, as causas
imediatas e comuns de morte incluem: (1) coma hepático, (2) hemorragia gastrintestinal maciça, (3)
infecção intercorrente (à qual esses pacientes são predispostos), (4) síndrome hepatorrenal (com
frequência após um episódio de hepatite alcoólica) e (5) carcinoma hepatocelular (o risco de
desenvolver essa neoplasia na cirrose alcoólica é de 1 a 6% por ano).

Conceitos-chave

Doença hepática alcoólica

• A doença hepática alcoólica é um distúrbio crônico que pode resultar em esteatose, hepatite
alcoólica, fibrose progressiva e acentuada alteração da perfusão vascular, levando, por fim, à
cirrose
• O consumo de 80 g/dia de álcool é considerado o limiar para o desenvolvimento de doença
hepática alcoólica, mas pode ser inferior em mulheres
• Pode levar 10 a 15 anos de consumo de álcool para o desenvolvimento de cirrose, que só ocorre
em uma pequena proporção de etilistas crônicos
• Os efeitos patológicos do álcool sobre os hepatócitos incluem alterações no metabolismo dos
lipídios relacionadas com alteração do potencial redox, lesão causada por ROS geradas como
resultado do metabolismo do álcool pelo sistema P-450 e adutos de proteína formados pelo
acetaldeído, um importante metabólito do álcool.

Doença hepática gordurosa não alcoólica


A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) é definida pela presença de esteatose
hepática (fígado gorduroso) em indivíduos que não consomem álcool ou que o fazem em
pequenas quantidades e não apresentam outra causa de acúmulo secundário de gordura
hepática (p. ex., HCV, doença de Wilson, medicamentos). A DHGNA está associada a obesidade,
diabetes melito tipo 2 e hiperlipidemia, que são, todos eles, componentes da síndrome metabólica
(Tabela 18.6). Ela tornou-se a causa mais comum de doença hepática crônica nos EUA, e projeta-se
que a sua prevalência ultrapasse 30% na população adulta em 2030. A expressão esteato-hepatite não
alcoólica (ou seu acrônimo comum, EHNA) é reservada para pacientes com DHGNA que apresentam
lesão esteato-hepatítica com características histológicas semelhantes àquelas observadas na hepatite
alcoólica. O diagnóstico de EHNA confere maior risco de desenvolver doença hepática fibrótica
avançada, e a expectativa é a de que o aumento na prevalência da DHGNA produza um aumento
concomitante na incidência de EHNA e de suas complicações graves (p. ex., cirrose descompensada,
carcinoma hepatocelular).

Patogênese
Os mecanismos subjacentes precisos à DHGNA são desconhecidos. A forte associação com
resistência à insulina sugere que esse fator é particularmente importante no desenvolvimento da
doença. Todavia, mesmo entre os que apresentam resistência à insulina, existe uma variabilidade
significativa na gravidade da DHGNA, e foram sugeridas associações complexas com variantes
genéticas, dieta e microbioma intestinal. À semelhança da doença hepática alcoólica, existe uma
associação estabelecida entre o aumento da produção de endotoxinas derivadas do intestino e a
inflamação e lesão hepáticas. As dietas ricas em frutose também têm sido associadas ao aumento do
risco de fibrose relacionada com DHGNA, e a gordura dietética, particularmente a gordura trans,
pode desempenhar um papel na produção de lesão hepática. A apneia obstrutiva do sono, que
geralmente ocorre no contexto da obesidade, tem sido associada à progressão da doença,
possivelmente relacionada com a hipoxia intermitente. A fibrose pode ser acelerada quando a lesão de
outra doença hepática (p. ex., hemocromatose) se sobrepõe à DHGNA.

Tabela 18.6 Critérios da Organização Mundial da Saúde para a síndrome metabólica.

Um dos: Diabetes melito


ou
tolerância à glicose diminuída
ou
alteração da glicemia em jejum
ou
resistência à insulina

E dois de: ≥
Pressão arterial: 140/90 mmHg

Dislipidemia: triglicerídeos (TG): 1,695 mmol/ℓ e fração de lipoproteínas de alta
densidade do colesterol (HDL-C) ≤ 0,9 mmol/ℓ (homens), ≤ 1 mmol/ℓ
(mulheres)
Obesidade central: relação cintura-quadril > 0,90 (homens); > 0,85 (mulheres) ou
2
índice de massa corporal > 30 kg/m
Microalbuminúria: taxa de excreção urinária de albumina de ≥ 20 μg/min ou
razão entre albumina e creatinina ≥ 30 mg/g

Em indivíduos com resistência à insulina estabelecida e síndrome metabólica, o tecido adiposo


visceral não apenas aumenta em massa, mas também se torna disfuncional. A resistência à insulina
leva ao aumento da liberação de ácido graxos livres dos adipócitos, devido à hiperatividade da
lipoproteína lipase (ver Capítulo 24). Isso está associado à redução da produção do hormônio
adiponectina dos adipócitos, que diminui a oxidação dos ácidos graxos livres pelo músculo
esquelético e aumenta a captação de ácidos graxos livres pelos hepatócitos (ver Capítulo 9), nos quais
os ácidos graxos são armazenados como triglicerídeos. Os adipócitos disfuncionais também sintetizam
citocinas pró-inflamatórias, como o TNF-α. Ao mesmo tempo, há evidências de que os hepatócitos na
DHGNA infrarregulam a lipólise, uma alteração que pode contribuir ainda mais para o acúmulo de
lipídios. A lipólise ocorre por meio de um mecanismo denominado lipofagia, que se assemelha
estreitamente à macroautofagia, que, como se sabe, é o processo pelo qual as células removem os
componentes celulares excessivos ou disfuncionais e (em épocas de inanição) geram metabólitos para
a produção de energia.
O efeito final dessas alterações consiste em acúmulo de lipídios nos hepatócitos. As células
carregadas de gordura são altamente sensíveis a produtos de peroxidação lipídica gerados por estresse
oxidativo, que podem danificar as membranas mitocondriais e plasmáticas, levando potencialmente à
apoptose ou à necrose. Essas tendências podem ser exacerbadas pelo estado pró-inflamatório que
acompanha a resistência à insulina. Uma vez estabelecida a lesão celular, a liberação de citocinas,
como TNF-α e TGF-β, das células de Kupffer localmente leva à ativação das células estreladas, à
deposição de colágeno e à formação de cicatrizes.

Morfologia

A EHNA compartilha muitas características morfológicas com a hepatite alcoólica; o



estabelecimento de seu diagnóstico exige a presença de esteatose ( 5% dos hepatócitos),
inflamação lobular e hepatócitos balonizados. Não é possível distinguir com segurança a hepatite
alcoólica da EHNA com base nos achados histológicos, embora a hepatite alcoólica tenha, em média,
menos esteatose e mais hepatócitos balonizados, inflamação lobular, corpúsculos de Mallory,
infiltrados neutrofílicos, colestase e obliteração das veias centrais (Figura 18.21).
A determinação da extensão da fibrose é importante para o manejo clínico. Normalmente, ocorre
o desenvolvimento de fibrose ao redor da veia central na forma de uma fina “teia de aranha” de
deposição de colágeno pericelular (também denominada padrão em tela de galinheiro), que só pode
ser apreciada com uma coloração tricrômica. Em geral, a progressão da fibrose manifesta-se como
fibrose periporta, seguida de fibrose em ponte e cirrose. Com frequência, a cirrose permanece
subclínica durante anos, e, quando estabelecida, a esteatose ou os hepatócitos balonizados podem
estar reduzidos ou ausentes. Acredita-se que mais de 90% dos casos designados como “cirrose
criptogênica” (i. e., cirrose de causa desconhecida) sejam devidos à EHNA (i. e., “EHNA burned out”).
A DHGNA pediátrica difere de modo significativo da DHGNA do adulto. Normalmente, as crianças
apresentam esteatose mais difusa e fibrose portal (em vez de central), e pode não haver hepatócitos
balonizados.

Características clínicas
O curso clínico variado de indivíduos com DHGNA está resumido na Figura 18.22. Aqueles que só
apresentam esteatose geralmente são assintomáticos. Com frequência, a apresentação clínica está
relacionada com outros sinais e sintomas da síndrome metabólica, em particular resistência à insulina
ou diabetes melito. Os exames de imagem podem revelar acúmulo de gordura no fígado. É necessário
proceder à biopsia de fígado para o diagnóstico de EHNA e para a avaliação da fibrose. É
fundamental excluir a possibilidade de doenças virais, autoimunes e outras doenças metabólicas do
fígado, e a biopsia pode ser útil quando há mais de uma possível etiologia para a lesão hepática. Os
níveis séricos de AST e ALT estão elevados na maioria dos pacientes com EHNA. Apesar das
elevações enzimáticas, os pacientes podem ser assintomáticos. Outros apresentam sintomas
inespecíficos, como fadiga, ou queixam-se de desconforto abdominal do lado direito do abdome,
causado pela hepatomegalia. Devido à associação com a síndrome metabólica, a doença
cardiovascular constitui uma causa frequente de morte em pacientes com EHNA. A EHNA também
aumenta o risco de carcinoma hepatocelular, assim como outras doenças metabólicas (discutidas
posteriormente).
O objetivo do tratamento de indivíduos com EHNA é reverter as características histológicas da
doença e prevenir ou reverter a fibrose ao corrigir os fatores de risco subjacentes, como obesidade e
hiperlipidemia, e ao tratar a resistência à insulina. A perda de peso, a dieta e o exercício podem
reverter potencialmente as anormalidades histológicas na EHNA. Existem numerosos ensaios clínicos
em andamento destinados a desenvolver abordagens farmacológicas para o tratamento da EHNA e
suas complicações.
Figura 18.21 Doença hepática gordurosa não alcoólica. A. Fígado com gotículas lipídicas grandes e
pequenas misturadas, bem como hepatócitos balonizados. B. Esteatose e fibrose que se estende ao longo dos
sinusoides em um padrão semelhante a uma tela de galinheiro, em que os hepatócitos individuais e agrupados
são circundados por cicatrizes finas (fibras azuis). Observe a semelhança com a hepatite alcoólica mostrada
na Figura 18.18. (Coloração: tricrômico de Masson).
Conceitos-chave

Doença hepática gordurosa não alcoólica

• O distúrbio metabólico mais comum do fígado é a DHGNA, que está associada a síndrome
metabólica, obesidade, diabetes melito tipo 2 e hiperlipidemia
• A DHGNA pode apresentar todas as alterações histológicas associadas à doença hepática
alcoólica (p. ex., esteatose, esteato-hepatite e esteatofibrose). O diagnóstico de EHNA exige a
realização de biopsia, e não é possível diferenciar de modo confiável a EHNA da hepatite alcoólica
sem história clínica
• A DHGNA pediátrica está sendo cada vez mais reconhecida à medida que a epidemia de
obesidade acomete faixas etárias pediátricas. As suas características histológicas diferem
ligeiramente daquelas observadas em adultos.

Doença hepática hereditária


Entre as doenças metabólicas hereditárias, a hemocromatose, a doença de Wilson e a deficiência de
α1-antitripsina são mais proeminentes e são discutidas nas seções seguintes.

Hemocromatose
A hemocromatose é causada pela absorção excessiva de ferro, cuja maior parte é depositada no
fígado e no pâncreas, seguidos do coração, das articulações e dos órgãos endócrinos. Quando a
hemocromatose resulta de um distúrbio hereditário, ela é denominada hemocromatose hereditária.
Quando ocorre acúmulo em consequência da administração parenteral de ferro, geralmente na forma
de transfusões, ou de outras causas, ela é denominada hemocromatose secundária. A classificação das
várias causas de sobrecarga de ferro é apresentada na Tabela 18.7.
Conforme discutido no Capítulo 14, o compartimento de ferro corporal total varia de 2 a 6 g nos
adultos normais; ocorre armazenamento de aproximadamente 0,5 g no fígado, dos quais 98% estão
nos hepatócitos. Na hemocromatose grave, o compartimento de ferro corporal total pode ultrapassar
50 g, dos quais mais de um terço se acumula no fígado. A sobrecarga grave de ferro caracteriza-se
pelos seguintes aspectos:
• Os casos totalmente desenvolvidos exibem: (1) cirrose micronodular (em todos os pacientes); (2)
diabetes melito (75 a 80% dos pacientes); e (3) pigmentação anormal da pele (em 75 a 80% dos
pacientes)
• O acúmulo de ferro nas formas hereditárias ocorre durante toda a vida, porém a lesão causada pelo
excesso de ferro é lenta e progressiva; em consequência, os sintomas geralmente aparecem pela
primeira vez entre a quarta e a quinta décadas de vida nos homens e mais tarde nas mulheres, visto
que o sangramento menstrual contrabalança o acúmulo até a menopausa
• Como muitas mulheres não acumulam quantidades clinicamente relevantes de ferro durante a sua
vida, a hemocromatose hereditária afeta mais homens do que mulheres (razão de 5 a 7:1).

Tabela 18.7 Classificação da sobrecarga de ferro.

I. Hemocromatose hereditária

Mutações de genes que codificam HFE, o receptor de transferrina 2 (TfR2) ou a hepcidina

Mutações de genes que codificam HJV (hemojuvelina: hemocromatose juvenil)


II. Hemossiderose (hemocromatose secundária)

Sobrecarga de ferro parenteral devido a transfusões de hemácias

Anemias hemolíticas crônicas graves (p. ex., doença falciforme)

Formas graves de talassemia

Insuficiência da medula óssea (p. ex., anemia aplásica)

Condições associadas a um aumento da captação de ferro

β-talassemia

Síndrome mielodisplásica

Aumento da ingestão oral de ferro

Sobrecarga de ferro africana (siderose de Bantu)

Atransferrinemia congênita

Doença hepática crônica

Doença hepática alcoólica

Porfiria cutânea tardia


a
Hemocromatose neonatal
a
A hemocromatose neonatal desenvolve-se in utero, mas não parece ser uma condição hereditária.

Figura 18.22 História natural dos fenótipos da doença hepática gordurosa não alcoólica. A esteatose hepática
isolada apresenta risco mínimo de progressão para a cirrose ou aumento da mortalidade, ao passo que a
esteato-hepatite não alcoólica apresenta um aumento da mortalidade global, bem como risco aumentado de
cirrose e carcinoma hepatocelular.

Patogênese
Como não existe uma regulação da excreção de ferro do corpo, o conteúdo corporal total de ferro é
rigorosamente regulado pela sua absorção intestinal. Na hemocromatose hereditária, a regulação da
absorção intestinal do ferro dietético é anormal, levando ao acúmulo efetivo de ferro de 0,5 a 1 g/ano.
Normalmente, a doença manifesta-se após o acúmulo de 20 g de ferro armazenado. Os mecanismos de
lesão hepática incluem: (1) peroxidação dos lipídios por reações de radicais livres catalisadas pelo
ferro; (2) estimulação da formação de colágeno pela ativação das células estreladas hepáticas; e (3)
interação de ROS e do próprio ferro com o DNA, resultando em lesão celular letal e predisposição ao
carcinoma hepatocelular.
O principal regulador da absorção de ferro é a proteína denominada hepcidina, que é
codificada pelo gene HAMP e produzida e secretada pelo fígado (Figura 18.23). A transcrição do
HAMP é aumentada pelas citocinas inflamatórias e pelo ferro, ao passo que é diminuída por
deficiência de ferro, hipoxia e eritroferrona, um hormônio produzido pelos eritroblastos da medula
óssea. Esses estímulos são integrados para regular a síntese e os níveis plasmáticos de hepcidina (ver
Capítulo 14). A hepcidina liga-se ao canal de efluxo de ferro celular, a ferroportina, causando a sua
internalização e proteólise, com consequente inibição da liberação de ferro das células intestinais e
dos macrófagos. Devido a essas atividades, o aumento da hepcidina produz uma redução nos níveis
plasmáticos de ferro. Em contrapartida, uma deficiência anormal de hepcidina provoca a sobrecarga
de ferro. Outras proteínas envolvidas no metabolismo do ferro atuam por meio de regulação dos níveis
de hepcidina. A diminuição da síntese ou da atividade da hepcidina pode ser causada por mutações de
perda de função nos genes HAMP, HJV, TFR2 e HFE, que estão todos associados a formas
hereditárias de hemocromatose. Além disso, ocorre deficiência de hepcidina quando há uma elevação
crônica dos níveis de eritroferrona, conforme observado em distúrbios caracterizados por
hematopoese ineficaz, como a β-talassemia e a síndrome mielodisplásica.
A forma adulta da hemocromatose hereditária é geralmente causada por mutações do HFE;
a mutação do TFR2 é uma causa rara. As mutações nos genes HAMP e HJV são muito menos comuns
e dão origem às formas juvenis de hemocromatose hereditária. O HFE codifica uma molécula do tipo
HLA de classe I, que controla a absorção intestinal de ferro dietético ao regular a síntese de hepcidina.
A mutação do HFE mais comum produz uma substituição inativadora de cisteína por tirosina no
aminoácido 282 (C282Y) e ocorre em 70% ou mais dos pacientes com diagnóstico de hemocromatose
hereditária. A outra mutação comum do HFE associada à doença resulta em uma substituição de
H63D (histidina na posição 63 para aspartato).
A mutação C282Y do HFE está confinada, em grande parte, a populações brancas de origem
europeia, ao passo que a mutação H63D tem distribuição mundial. A frequência de homozigosidade
de C282Y é de 0,45% (1 em cada 220 pessoas), ao passo que a frequência de heterozigosidade é de
11%, o que torna a hemocromatose hereditária um dos distúrbios genéticos mais comuns em seres
humanos. A penetrância do distúrbio é baixa em pacientes com mutação C282Y homozigota e ainda
menor em indivíduos homozigotos para H63D e heterozigotos compostos para C282Y/H63D.
Figura 18.23 Metabolismo normal do ferro e sua alteração na hemocromatose hereditária. A. No estado
normal, HFE, HJV e TFR2 regulam a síntese de hepcidina pelos hepatócitos, mantendo níveis circulantes
normais de hepcidina, que se liga à ferroportina nos enterócitos, resultando em internalização do complexo e
em degradação da ferroportina. Isso, por sua vez, reduz o efluxo de ferro dos enterócitos. Por meio dessas
interações reguladoras, a absorção normal de ferro é mantida. B. Na hemocromatose hereditária, as mutações
dos genes HFE, HJV ou TFR2 reduzem a síntese de hepcidina, diminuindo os seus níveis na circulação.
Devido à diminuição da interação entre hepcidina e ferroportina, a atividade da ferroportina e o efluxo de ferro
dos enterócitos aumentam, produzindo sobrecarga de ferro sistêmica.
Morfologia

A hemocromatose grave (hereditária ou secundária) caracteriza-se por: (1) deposição de


hemossiderina nos seguintes órgãos (por ordem decrescente de gravidade): fígado, pâncreas,
miocárdio, hipófise, glândulas suprarrenais, glândula tireoide, glândulas paratireoides, articulações e
pele; (2) cirrose; e (3) fibrose pancreática. No fígado, o ferro torna-se inicialmente evidente como
grânulos amarelo-ouro de hemossiderina no citoplasma dos hepatócitos periportais, que se coram
pelo azul da Prússia (Figura 18.24). Com o aumento da carga de ferro, ocorre a deposição
progressiva no restante do lóbulo, assim como no epitélio dos ductos biliares e nas células de
Kupffer. O ferro é uma hepatotoxina direta, e, caracteristicamente, a inflamação está ausente. Nos
estágios iniciais da doença, o fígado normalmente é um pouco maior do que o normal, denso e de
cor marromchocolate. Há o desenvolvimento lento de septos fibrosos, levando, em última análise, ao
fígado pequeno e retraído, com padrão micronodular de cirrose. Nos estágios mais avançados, o
parênquima hepático com frequência é marrom-escuro a quase preto, devido ao extenso acúmulo
de ferro.
Outros órgãos que são particularmente suscetíveis aos efeitos tóxicos do ferro também
apresentam alterações morfológicas. O pâncreas torna-se intensamente pigmentado e pode sofrer
atrofia do parênquima em associação com fibrose intersticial. Com frequência, o coração está
aumentado e apresenta hemossiderose, que produz uma notável coloração marrom. Ambos os
órgãos podem desenvolver fibrose. A pigmentação da pele resulta predominantemente do aumento
da produção de melanina epidérmica, cujo mecanismo permanece desconhecido. A combinação
desses pigmentos confere à pele uma cor cinza-ardósia característica. Com a deposição de
hemossiderina nos revestimentos articulares, pode haver desenvolvimento de sinovite aguda. A
deposição excessiva de pirofosfato de cálcio provoca danos à cartilagem articular, produzindo uma
poliartrite incapacitante, denominada pseudogota. Os testículos podem ser pequenos e atróficos,
secundariamente ao comprometimento da hipófise e aos níveis reduzidos de gonadotrofinas e
testosterona.

Características clínicas
As principais manifestações da hemocromatose consistem em hepatomegalia, dor abdominal,
pigmentação anormal da pele (particularmente nas áreas expostas ao sol), alteração da
homeostasia da glicose ou diabetes melito (devido à destruição das ilhotas pancreáticas),
disfunção cardíaca (arritmias, miocardiopatia) e artrite atípica. Em alguns pacientes, a queixa
inicial consiste em hipogonadismo (p. ex., amenorreia em mulheres, impotência e perda da libido em
homens). Trata-se, com mais frequência, de uma doença que acomete homens pelas razões descritas
anteriormente; raramente, torna-se evidente antes dos 40 anos. A tétrade clássica de cirrose com
hepatomegalia, pigmentação anormal da pele, diabetes melito e disfunção cardíaca pode não se
desenvolver até um estágio avançado no curso da doença. A morte pode resultar de cirrose ou doença
cardíaca.
Outra causa significativa de morte é o carcinoma hepatocelular, cujo risco é 200 vezes maior do
que na população em geral. O tratamento que reduz a sobrecarga de ferro não remove por completo o
risco de câncer, presumivelmente devido aos danos ao DNA que ocorrem antes do diagnóstico e do
início do tratamento.
Felizmente, a hemocromatose com frequência é diagnosticada antes da ocorrência de danos
teciduais irreversíveis. Atualmente, a maioria dos pacientes com hemocromatose é identificada no
estágio subclínico pré-cirrótico por meio de medições dos níveis séricos de ferro de rotina (como parte
de outras avaliações diagnósticas), e o diagnóstico é confirmado pelo sequenciamento do DNA e pela
detecção de mutações causadoras, com frequência HFE. A avaliação adicional inclui a exclusão de
causas secundárias de sobrecarga de ferro. Uma biopsia hepática também pode fornecer informações
úteis (p. ex., sobre a presença de fibrose), porém não é realizada de modo rotineiro, visto que os testes
genéticos e os exames de imagem anularam a necessidade de avaliação quantitativa do conteúdo de
ferro tecidual. O rastreamento de familiares dos pacientes com suspeita de hemocromatose é
importante, visto que a identificação de portadores assintomáticos pode prevenir o desenvolvimento
da doença.
A prevenção do desenvolvimento ou da progressão da doença em pacientes com doença
hereditária de início na vida adulta é notavelmente simples, visto que a flebotomia regular possibilita a
depleção contínua das reservas teciduais de ferro. Com tratamento, a expectativa de vida é normal.

Figura 18.24 Hemocromatose hereditária. Nesse corte corado pelo azul da Prússia, o ferro hepatocelular
aparece na cor azul. A arquitetura do parênquima está normal.

As causas mais comuns de hemocromatose secundária (ou adquirida) consistem em distúrbios


associados à eritropoese ineficaz, como talassemia (ver Capítulo 14) e síndrome mielodisplásica (ver
Capítulo 13). Nesses distúrbios, o excesso de ferro resulta não apenas de transfusões, mas também do
aumento de absorção. A eritroferrona liberada de uma população expandida de progenitores eritroides
na medula óssea suprime a produção de hepcidina pelo fígado, levando ao aumento da absorção de
ferro. As transfusões isoladas, quando administradas repetidamente durante um período de anos (p.
ex., em pacientes com anemias hemolíticas crônicas), também podem levar à hemossiderose sistêmica
e à lesão do parênquima, independentemente de a hematopoese ser ineficaz. Por fim, outras formas de
cirrose também podem diminuir a produção de hepcidina, devido à perda da massa de eritrócitos,
levando mais uma vez ao aumento da captação de ferro pelo intestino e ao aumento dos níveis de ferro
nos tecidos.

Doença de Wilson
A doença de Wilson é um distúrbio autossômico recessivo causado pela mutação do gene
ATP7B, resultando em comprometimento da excreção de cobre na bile e incapacidade de
incorporar o cobre na ceruloplasmina. Esse distúrbio caracteriza-se pelo acúmulo de níveis tóxicos
de cobre em muitos tecidos e órgãos, principalmente o fígado, o cérebro e os olhos. O cobre livre é
captado pelos hepatócitos e incorporado à apoceruloplasmina para formar a ceruloplasmina, que é
secretada no sangue. A ceruloplasmina representa 90 a 95% do cobre plasmático. O excesso de cobre
dentro dos hepatócitos que não é incorporado à ceruloplasmina é sequestrado nos lisossomos e
transportado na bile, a partir da qual é finalmente excretado nas fezes.

Patogênese
A doença de Wilson resulta de mutações de perda de função no gene ATP7B, que codifica uma
ATPase transportadora de cobre transmembranar, expressa na membrana canalicular dos hepatócitos.
Foram identificadas mais de 300 variantes de sequência no gene ATP7B, porém nem todas causam a
doença. A maioria dos pacientes consiste em heterozigotos compostos, que contêm diferentes
mutações em cada alelo ATP7B. A frequência global de alelos mutados é de 1:100, e a prevalência da
doença é de aproximadamente 1:30.000 a 1:50.000 (cerca de 9 mil pacientes nos EUA). A deficiência
de ATP7B diminui o transporte de cobre na bile, compromete a sua incorporação à ceruloplasmina e
inibe a secreção de ceruloplasmina no sangue. Esses defeitos levam à diminuição da ceruloplasmina
circulante, acompanhada de acúmulo de cobre nos hepatócitos. O cobre sérico total pode estar abaixo
do normal, devido à deficiência de ceruloplasmina, particularmente no início da evolução da doença.
O excesso de cobre hepático provoca lesão tóxica por três mecanismos: (1) promoção da formação
de radicais livres pela reação de Fenton (ver Capítulo 2); (2) ligação a grupos sulfidrila de proteínas
celulares; e (3) deslocamento de outros metais das metaloenzimas hepáticas. A lesão dos hepatócitos
faz o cobre não ligado à ceruloplasmina ser derramado no sangue e se acumular em certos tecidos,
particularmente nos núcleos da base e na córnea. De modo concomitante, ocorre um aumento
acentuado da excreção urinária de cobre, porém sem alcançar níveis suficientes para evitar a
deposição de cobre nos tecidos.

Morfologia

Com frequência, o fígado sofre as consequências da lesão, porém a doença também pode se
manifestar como distúrbio neurológico. As alterações hepáticas são va riáveis, incluindo desde danos
relativamente mínimos até danos maciços, podendo simular muitas outras doenças. A degeneração
gordurosa (esteatose) pode estar presente, com necrose focal dos hepatócitos. A insuficiência
hepática aguda pode simular a hepatite viral aguda. Na doença de Wilson, a hepatite crônica
normalmente apresenta inflamação portal moderada a grave e necrose dos hepatócitos, bem como
degeneração gordurosa e características de esteato-hepatite (i. e., balonização dos hepatócitos,
corpúsculos de Mallory proeminentes e fibrose perissinusoidal). Por fim, ocorre cirrose. A coloração
histoquímica do cobre não é sensível nem específica para o diagnóstico de doen ça de Wilson. A
lesão tóxica do cérebro acomete principalmente os núcleos da base, e quase todos os pacientes com
comprometimento neurológico desenvolvem lesões oculares, denominadas anéis de Kayser-
Fleischer, que consistem em depósitos verdes a marrons de cobre na membrana de Descemet no
limbo da córnea.

Características clínicas
A idade de início da doença de Wilson varia de 6 a 40 anos (com idade média de 11,4 anos). A
apresentação clínica é extremamente variável. Alguns pacientes apresentam doença hepática aguda ou
crônica. O comprometimento neurológico pode levar a distúrbios do movimento (tremor, falta de
coordenação, coreia ou coreoatetose) ou distonia rígida (em distonia espástica, face semelhante a uma
máscara, rigidez e distúrbios da marcha). Os pacientes também podem ter sintomas psiquiátricos.
Pode ocorrer anemia hemolítica, devido aos danos à membrana eritrocitária, causados por oxidantes
produzidos pelo cobre livre. O diagnóstico bioquímico da doença de Wilson baseia-se, em geral, na
presença de níveis séricos diminuídos de ceruloplasmina, no aumento do conteúdo de cobre hepático
(o teste mais sensível e acurado) e na excreção urinária aumentada de cobre (o teste mais específico).
Hoje, dispõe-se do sequenciamento do gene ATP7B para casos em que os resultados dos exames
bioquímicos são indeterminados. Esses problemas podem surgir no contexto de lesão hepática, que
pode provocar a elevação dos níveis séricos de ceruloplasmina, ainda dentro da faixa normal. A
demonstração de anéis de Kayser-Fleischer pelo exame com lâmpada de fenda também é útil para o
diagnóstico. O reconhecimento precoce e a terapia de quelação de cobre a longo prazo (com d-
penicilamina ou trientina) ou terapia à base de zinco (que bloqueia a captação de cobre dietético no
intestino) são efetivos. Os indivíduos com hepatite ou cirrose intratável necessitam de transplante de
fígado, que pode ser curativo.

Deficiência de α1-antitripsina
A deficiência de α1-antitripsina é um distúrbio autossômico recessivo do enovelamento de
proteínas, caracterizado por níveis muito baixos de α1-antritripsina (α1AT) circulante. A
principal função dessa proteína é a inibição das proteases, particularmente de elastase, catepsina G e
proteinase 3 dos neutrófilos, que normalmente são liberadas dos neutrófilos em sítios inflamatórios. A
deficiência de α1AT leva ao desenvolvimento de enfisema pulmonar, visto que a atividade das
elastases dos neutrófilos não é inibida (ver Capítulo 15). Além disso, ela provoca doença hepática,
em consequência do acúmulo hepatocelular da proteína mal enovelada, um exemplo de mutação “de
ganho de função tóxica”.
A α1AT é uma pequena glicoproteína plasmática de 394 aminoácidos, sintetizada
predominantemente pelos hepatócitos. Trata-se de um membro da família de inibidores da serina
protease (serpina). O gene é muito polimórfico, e foram identificadas pelo menos 75 formas de α1AT,
indicadas alfabeticamente pela sua migração relativa em gel isoelétrico. A notação geral consiste em
“Pi” para “inibidor da protease” e uma letra alfabética para a posição no gel; a presença de duas letras
indica o genótipo de dois alelos de um indivíduo. O genótipo mais comum é PiMM, que ocorre em
90% dos indivíduos (“tipo selvagem”).
A mutação clinicamente significativa e mais comum é a PiZ; os homozigotos para a proteína
PiZZ apresentam níveis circulantes de α1AT, que correspondem a apenas 10% do valor normal.
Esses indivíduos correm alto risco de desenvolver doença clínica. A expressão dos alelos é
autossômica codominante; portanto, os heterozigotos para PiMZ apresentam níveis plasmáticos
intermediários de α1AT. Entre pessoas de ascendência do norte da Europa, o estado PiZZ afeta 1 em
cada 1.800 nascidos vivos. Devido à sua apresentação inicial com doença hepática, a deficiência de
α1AT constitui o distúrbio hepático hereditário mais comumente diagnosticado em lactentes e
crianças.

Patogênese
As variantes associadas à doença exibem um defeito seletivo no transporte da proteína do retículo
endoplasmático para o complexo de Golgi; isso é particularmente característico do polipeptídeo PiZ,
que resulta da substituição de glutamina por lisina na posição 342. O polipeptídeo mutante (α1AT-Z) é
mal enovelado e sofre agregação, criando estresse do retículo endoplasmático e desencadeando a
resposta a proteínas mal enoveladas, uma cascata de sinalização que pode levar à apoptose (ver
Capítulo 2). Todos os indivíduos com o genótipo PiZZ acumulam α1AT-Z no retículo endoplasmático
dos hepatócitos, porém apenas um pequeno subgrupo desenvolve doença hepática franca. Por
conseguinte, postula-se que outros fatores genéticos ou ambientais possam desempenhar um papel no
desenvolvimento da doença hepática.

Morfologia

A deficiência de α1AT caracteriza-se pela presença de inclusões globulares citoplasmáticas nos


hepatócitos, que são redondas a ovais, fortemente positivas na coloração pelo ácido periódico de
Schiff (PAS) e resistentes à diastase (Figura 18.25). As inclusões aparecem em primeiro lugar nos
hepatócitos periportais nas formas precoce e leve da doença; com a progressão, elas aparecem nos
hepatócitos centrais na doença mais grave, como aquela associada à variante PiZZ. Entretanto, o
número de hepatócitos que contêm glóbulos não exibe uma estreita correlação com a gravidade da
doença, e os pacientes podem apresentar hepatite neonatal antes do aparecimento dos glóbulos
(em geral, 12 semanas de idade ou mais para a doença associada a PiZZ).
Figura 18.25 Deficiência de α1-antitripsina. A. Coloração pelo ácido periódico de Schiff após a digestão do
fígado pela diastase, destacando os grânulos citoplasmáticos de coloração magenta característicos. B.
Micrografia eletrônica mostrando o retículo endoplasmático dilatado por agregados de proteínas mal
enoveladas.
Características clínicas
Os achados clínicos e a evolução são muito variáveis. A apresentação neonatal incomum tende a estar
associada à doença grave e à rápida progressão para a cirrose. Outros pacientes manifestam a doença
na vida adulta com hepatite crônica, cirrose ou carcinoma hepatocelular, que se desenvolve em 2 a 3%
dos adultos PiZZ, geralmente (mas nem sempre) no contexto da cirrose. O transplante de fígado é
curativo para a doença hepática, porém não tem efeito sobre o desenvolvimento e a evolução da
doença pulmonar (ver Capítulo 15).

Conceitos-chave

Doença hepática hereditária

• A hemocromatose hereditária é mais comumente causada por mutações de perda de função no


gene HFE, cujo produto regula a captação intestinal de ferro ao aumentar a síntese de hepcidina
pelo fígado. Ela se caracteriza pela absorção aumentada de ferro dietético e pelo acúmulo de
ferro no fígado e no pâncreas; a lesão desses órgãos resulta em cirrose e diabetes melito
• A doença de Wilson é causada por mutações que anulam a função do transportador de íons
metálicos, ATP7B, que resulta em acúmulo de cobre no fígado, no cérebro (particularmente nos
núcleos da base) e nos olhos (“anéis de Kayser-Fleisher)
• A deficiência de α1-antitripsina é uma doença de mau enovelamento de proteínas, que resulta em
comprometimento da secreção de α1-antitripsina no soro e provoca estresse do retículo
endoplasmático, levando à lesão dos hepatócitos por meio da via de resposta a proteínas mal
enoveladas. A principal consequência da deficiência de α1-antitripsina é o enfisema pulmonar,
devido à atividade não controlada da elastase.

Doença colestática

Formação e secreção de bile


A bile desempenha um papel fundamental na eliminação de bilirrubina, excesso de colesterol,
xenobióticos e oligoelementos, como cobre, arsênio, selênio e zinco, e a sua ação detergente
emulsifica a gordura alimentar na luz intestinal, possibilitando a sua absorção pelo intestino. Os
principais componentes da bile são: bilirrubina, sais biliares, colesterol e fosfolipídios (principalmente
fosfatidilcolina).
A bilirrubina é um produto final tóxico da degradação do heme, e é processada pelo fígado e
excretada na bile (Figura 18.26). O processamento hepático da bilirrubina envolve a sua captação da
circulação, o armazenamento intracelular, a conjugação com ácido glicurônico e a excreção na bile. A
maior parte da bilirrubina produzida diariamente (0,2 a 0,3 g, 85%) provém da degradação dos
eritrócitos senescentes pelos macrófagos no baço, no fígado e na medula óssea. A bilirrubina restante
é produzida pela renovação de proteínas hepáticas que contêm grupos heme (p. ex., citocromos P-
450). O heme é convertido em bilirrubina pela ação de várias enzimas dos fagócitos e liberada no
sangue, onde se liga à albumina, uma etapa necessária para o transporte, visto que a bilirrubina é
insolúvel em pH fisiológico. A captação pelos hepatócitos na membrana sinusoidal é seguida de
conjugação da bilirrubina com uma ou duas moléculas de ácido glicurônico no retículo
endoplasmático e excreção dos glicuronídeos de bilirrubina hidrossolúveis e atóxicos na bile. Os
glicuronídeos de bilirrubina são, em sua maioria, desconjugados na luz intestinal por β-glicuronidases
bacterianas e degradados a urobilinogênios incolores. Os urobilinogênios e os resíduos de pigmento
intacto são excretados, em grande parte, nas fezes. Cerca de 20% dos urobilinogênios formados são
reabsorvidos no íleo e no cólon, devolvidos ao fígado e reexcretados na bile. Uma pequena quantidade
do urobilinogênio reabsorvido é excretada na urina.
Figura 18.26 Metabolismo e eliminação da bilirrubina. (1) A produção de bilirrubina normal a partir do heme
(0,2 a 0,3 g/dia) provém principalmente da degradação dos eritrócitos senescentes circulantes. (2) A bilirrubina
extra-hepática liga-se à albumina sérica e é transportada até o fígado. (3) A captação hepatocelular e (4) a
glicuronidação no retículo endoplasmático geram monoglicuronídeos e diglicuronídeos de bilirrubina, que são
hidrossolúveis e facilmente excretados na bile. (5) As bactérias intestinais desconjugam a bilirrubina e a
degradam em urobilinogênios incolores. Os urobilinogênios e o resíduo de pigmentos intactos são excretados
nas fezes, com alguma reabsorção e excreção na urina.

Os sais biliares são formados pela conjugação de ácidos biliares com taurina ou glicina. Nos seres
humanos, os ácidos biliares predominantes são o ácido cólico e o ácido quenodesoxicólico, que são
detergentes altamente efetivos. Os ácidos biliares combinam-se com o colesterol e os fosfolipídios
para formar micelas, que solubilizam o colesterol e reduzem o efeito tóxico dos ácidos biliares sobre o
epitélio biliar. Os ácidos biliares secretados, conjugados ou não conjugados, são reabsorvidos, em sua
maioria, a partir do intestino e recirculam para o fígado (circulação êntero-hepática), onde são
captados pelos hepatócitos, ajudando, assim, a manter o reservatório endógeno de ácidos biliares.
Os constituintes da bile são transportados através da membrana canalicular dos hepatócitos por
uma variedade de proteínas transportadoras. Algumas dessas proteínas importantes são a MRP2
(proteína resistente a múltiplas drogas-2) para a bilirrubina conjugada, a bomba de exportação de sais
biliares (BSEP) para os sais biliares, a MDR3 (resistência a múltiplas drogas-3) para a fosfatidilcolina
e as esterolinas 1 e 2 para o colesterol.

Fisiopatologia e hiperbilirrubinemia
No adulto normal, os níveis séricos de bilirrubina variam entre 0,3 e 1,2 mg/dℓ, e a taxa de produção
de bilirrubina é igual à taxa de captação hepática, conjugação e excreção biliar. A icterícia torna-se
evidente quando os níveis séricos de bilirrubina aumentam acima de 2 a 2,5 mg/dℓ. Dependendo da
etiologia subjacente (resumida na Tabela 18.8), a elevação pode envolver predominantemente a
bilirrubina não conjugada (indireta) ou conjugada (direta). O exame para bilirrubina plasmática
conjugada e não conjugada ajuda a determinar a causa da hiperbilirrubinemia. A produção excessiva
de bilirrubina (p. ex., devido à anemia hemolítica ou à eritropoese ineficaz) ou a conjugação
defeituosa (devido à imaturidade ou a causas hereditárias) levam ao acúmulo de bilirrubina não
conjugada. Essa forma é, em grande parte, insolúvel e não pode ser excretada na urina. Embora a
maior parte da bilirrubina não conjugada esteja firmemente ligada à albumina no sangue, em níveis
excessivos, a fração não ligada aumenta e pode se difundir para os tecidos, particularmente no cérebro
de lactentes, produzindo danos neurológicos (kernicterus). Com mais frequência, a
hiperbilirrubinemia conjugada resulta de doença hepatocelular, lesão dos ductos biliares e obstrução
biliar. Como essa forma é hidrossolúvel e fracamente ligada à albumina sérica, ela pode ser excretada
na urina.
Com essa visão geral, serão discutidos a seguir os distúrbios hepatobiliares que levam à
hiperbilirrubinemia, muitos dos quais se caracterizam por colestase, que se refere à retenção de
bilirrubina e de outros solutos eliminados na bile, devido à formação prejudicada de bile ou à
obstrução do fluxo. Antes de analisar as entidades específicas, será realizada uma breve revisão das
características morfológicas e clínicas da colestase, que são comuns a todos eles.
Morfologia

A característica típica da colestase é o acúmu lo de tampões marrom-esverdeados de pigmento biliar


nos hepatócitos e canalículos dilatados (Figura 18.27). A ruptura dos canalículos pode levar ao
extravasamento de bile, que é fagocitada pelas células de Kupffer. O acúmulo de sais biliares nos
hepatócitos resulta em uma aparência intumescida e espumosa do citoplasma (“degeneração
plumosa”).

Tabela 18.8 Causas de icterícia.

Hiperbilirrubinemia predominantemente não conjugada

Produção excessiva de bilirrubina

Anemias hemolíticas

Reabsorção de sangue de hemorragia interna (p. ex., sangramento do trato alimentar, hematoma)

Eritropoese ineficaz (p. ex., anemia perniciosa, talassemia)

Redução da captação hepática

Interferência de fármacos nos sistemas de transporte da membrana

Alguns casos de síndrome de Gilbert

Comprometimento da conjugação de bilirrubina

Icterícia fisiológica do recém-nascido (atividade diminuída da UGT1A1, excreção diminuída)

Icterícia do leite materno (β-glicuronidases no leite)

Deficiência genética da atividade de UGT1A1 (síndrome de Crigler-Najjar tipos I e II, alguns casos de
síndrome de Gilbert)

Hiperbilirrubinemia predominantemente conjugada

Deficiência de transportadores da membrana canalicular (síndrome de Dubin-Johnson, síndrome de


Rotor)

Doença hepatocelular (p. ex., hepatite viral ou induzida por fármacos, cirrose)

Comprometimento do fluxo biliar em consequência de obstrução dos ductos ou colangiopatias


autoimunes

UGT1A1, família da uridina difosfato glicuroniltransferase, peptídeo A1.

Características clínicas
A bilirrubina elevada torna-se clinicamente evidente na forma de pigmentação amarelada da pele
(icterícia) e esclera (icterus). Outras manifestações incluem prurido, xantomas cutâneos (acúmulo
focal de colesterol) ou sintomas relacionados com a má absorção intestinal, incluindo deficiências de
vitaminas lipossolúveis (vitaminas A, D e K). Os achados laboratoriais característicos de doença
colestática consistem em níveis séricos elevados de fosfatase alcalina (FA) e de γ-glutamil
transpeptidase (GGT), enzimas presentes nas membranas apicais (canaliculares) dos hepatócitos e das
células epiteliais dos ductos biliares.

Icterícia fisiológica do recém-nascido


Na icterícia fisiológica do recém-nascido, os níveis de UGT1A1 (família da uridina difosfato
glicuroniltransferase, peptídeo A1), a enzima responsável pela glicuronidação da bilirrubina, estão
baixos ao nascimento e só alcançam os níveis do adulto com 3 a 4 meses de idade. Por conseguinte, a
presença de hiperbilirrubinemia não conjugada transitória e leve é quase universal na primeira semana
de vida. A amamentação pode exacerbar a hiperbilirrubinemia não conjugada, possivelmente devido à
presença de enzimas de desconjugação da bilirrubina no leite materno. Na maioria dos lactentes, a
fototerapia com luz azul (que converte a bilirrubina em um isômero solúvel, que é prontamente
excretado na urina) é suficiente para manter os níveis de bilirrubina não conjugada dentro de uma
faixa segura até ocorrer a maturação suficiente dos mecanismos hepáticos de conjugação.

Hiperbilirrubinemia hereditária
As mutações genéticas podem resultar em comprometimento da captação, conjugação ou secreção de
bilirrubina. A síndrome de Crigler-Najjar tipo 1 é causada pela deficiência grave de UGT1A1 e é fatal
próximo à época do nascimento. Na síndrome de Crigler-Najjar tipo 2 e na síndrome de Gilbert,
observa-se alguma atividade da UGT1A1, resultando em fenótipo mais leve. Em contrapartida, a
síndrome de Dubin-Johnson e a síndrome de Rotor levam à hiperbilirrubinemia conjugada. Ambas são
doenças autossômicas recessivas e clinicamente benignas. A síndrome de Dubin-Johnson é causada
pela mutação do gene MRP2 (proteína resistente a múltiplas drogas-2), que é necessária para o
transporte de ânions orgânicos diferentes dos sais biliares nas membranas canaliculares. A deposição
de pigmento negro marrom semelhante à melanina nos hepatócitos constitui uma característica
notável dessa doença, podendo levar ao escurecimento do fígado.
Figura 18.27 Colestase. A. Características morfológicas da colestase (à direita) e comparação com o fígado
normal (à esquerda). Os hepatócitos colestáticos (1) estão aumentados, com espaços canaliculares dilatados
(2). Pode-se observar a presença de células apoptóticas (3), e as células de Kupffer (4) frequentemente
contêm pigmentos biliares regurgitados. B. Colestase intracelular, mostrando os pigmentos biliares no
citoplasma. C. Tampão biliar (seta), mostrando a expansão do canalículo biliar pela bile.

Obstrução dos grandes ductos biliares


A obstrução dos grandes ductos biliares tem diversas causas. Em adultos, as causas comuns consistem
em cálculos (coledocolitíase), neoplasias malignas da árvore biliar ou da cabeça do pâncreas (em
geral, adenocarcinoma) e estenoses, que resultam de procedimentos cirúrgicos anteriores ou de lesão
isquêmica. A colangite esclerosante primária (descrita adiante) pode levar a um quadro obstrutivo,
devido à lesão inflamatória dos grandes ductos biliares intra-hepáticos ou extra-hepáticos. No
contexto pediátrico, os fatores responsáveis comuns incluem atresia biliar, fibrose cística e cistos de
colédoco. As alterações colestáticas resultantes são reversíveis se a obstrução for corrigida
precocemente na evolução da doença, porém a obstrução persistente pode levar à fibrose e à
denominada cirrose biliar. A obstrução biliar também predispõe à colangite ascendente, uma infecção
bacteriana da árvore biliar mais comumente causada por microrganismos entéricos, como coliformes e
enterococos. Em geral, a colangite apresenta-se com febre, calafrios, dor abdominal e icterícia. Os
casos graves podem resultar em formação de abscesso, sepse e morte.

Morfologia

A obstrução dos ductos biliares extra-hepáticos ou dos grandes ductos biliares intra-hepáticos leva à
dilatação da parte proximal dos ductos. Na biopsia de fígado, a característica essencial consiste em
expansão portal devido ao edema, reação ductular proeminente na interface parênquima-portal e
neutrófilos infiltrativos associados aos dúctulos (“pericolangite”) (Figura 18.28). Na colangite
ascendente, os neutrófilos também envolvem o epitélio e a luz dos ductos biliares (Figura 18.29). A
obstrução persistente leva à fibrose, que, por fim, pode evoluir para a cirrose biliar (Figura 18.30). O
intumescimento dos hepatócitos periportais (“degeneração plumosa”), o pigmento biliar e os
corpúsculos de Mallory são observados nos hepatócitos periportais na doença avançada. A colangite
ascendente sobreposta na doença avançada pode precipitar a insuficiência hepática crônica
agudizada.
Figura 18.28 Obstrução aguda dos grandes ductos. Há edema acentuado do estroma do trato portal (espaços
brancos) e uma reação ductular com neutrófilos infiltrados na interface entre o trato portal e o parênquima
hepatocelular.
Figura 18.29 Colangite ascendente. Os indivíduos com obstrução dos grandes ductos biliares correm risco de
infecções bacterianas na árvore biliar. São observados neutrófilos no revestimento epitelial do ducto biliar e
dentro da luz.
Figura 18.30 Cirrose biliar. A. Corte sagital através do fígado mostrando a nodularidade (mais proeminente à
direita) e a coloração esverdeada da cirrose biliar em estágio terminal. B. Diferentemente de outras formas de
cirrose, os nódulos de células hepáticas na cirrose biliar com frequência não são redondos, mas sim
irregulares, como as peças de um quebra-cabeça.
Colestase da sepse
A sepse pode afetar o fígado por vários mecanismos: (1) por meio de efeitos diretos da infecção
bacteriana intra-hepática (p. ex., formação de abscessos ou colangite bacteriana); (2) isquemia
relacionada com a hipotensão causada pela sepse (particularmente quando o fígado é cirrótico); ou (3)
em resposta a produtos microbianos circulantes. Esse último efeito tem maior probabilidade de levar à
colestase da sepse, particularmente quando a infecção sistêmica é causada por microrganismos gram-
negativos. Os achados morfológicos característicos na presença de sepse grave incluem colestase
canalicular e tampões biliares dentro dos canais dilatados de Hering e dos dúctulos biliares na
interface parênquima-portal (“colestase ductular” ou “colangiolar”) (Figura 18.31). A inflamação e a
lesão hepatocelular são normalmente leves.

Hepatolitíase primária
Outrora denominada “colangite piogênica recorrente”, a hepatolitíase refere-se à presença de cálculos
nos ductos biliares intra-hepáticos, que podem levar a episódios repetidos de colangite ascendente e à
destruição inflamatória progressiva do parênquima hepático. A doença é altamente prevalente no
Leste Asiático, porém é rara em outras partes do mundo. A sua causa é incerta; como possíveis
etiologias, foram sugeridas anormalidades congênitas dos ductos, dieta e infecção crônica por
bactérias ou parasitas. A lesão inflamatória crônica associada à hepatolitíase é um fator de risco para o
colangiocarcinoma, particularmente em Taiwan e, em menor grau, no Japão.

Figura 18.31 Colestase ductular da sepse. Grandes concreções biliares escuras dentro dos canais de Hering
acentuadamente dilatados e dúctulos na interface parênquima-portal. (Cortesia do Dr. Jay Lefkowitch,
Columbia University College of Physicians and Surgeons, NY.)
Morfologia

Observa-se a presença de cálculos de bilirrubinato de cálcio pigmentados nos ductos biliares intra-
hepáticos distendidos (Figura 18.32). Os ductos exibem inflamação crônica, fibrose mural e
hiperplasia das glândulas peribiliares. Não há obstrução dos ductos extra-hepáticos. Episódios
repetidos de inflamação, colapso do parênquima e fibrose podem levar a uma lesão de tipo massa,
que pode simular uma neoplasia nos exames de imagem.

Colestase neonatal
A icterícia fisiológica do recém-nascido (discutida anteriormente) desaparece em 2 semanas, de modo
que os lactentes que apresentam icterícia depois de 14 a 21 dias de vida precisam ser avaliados para a
possibilidade de colestase neonatal. As principais causas podem ser agrupadas em duas grandes
categorias: (1) doença biliar obstrutiva, como atresia biliar; e (2) etiologias não obstrutivas, que
incluem escassez de ductos biliares, doenças infecciosas/metabólicas, defeitos nos transportadores de
bile e hepatite neonatal idiopática.

Atresia biliar extra-hepática


A atresia biliar extra-hepática caracteriza-se por obstrução completa ou parcial da árvore biliar
extra-hepática nos primeiros 3 meses de vida. Ela é responsável por um terço dos casos de colestase
neonatal e por 50 a 60% das crianças encaminhadas para transplante de fígado. Em sua forma
perinatal mais comum (80% dos casos), a árvore biliar está normalmente formada, e o início da
doença é observado após o nascimento. Infecções, agentes tóxicos e lesões autoimunes foram
sugeridas, porém a causa permanece desconhecida. A forma fetal menos comum provavelmente
resulta do desenvolvimento aberrante da árvore biliar extra-hepática. Os lactentes com atresia biliar
extra-hepática apresentam icterícia, urina escura, fezes claras ou acólicas e hepatomegalia.
Figura 18.32 Hepatolitíase. Lobo hepático direito atrófico ressecado, com achados característicos, incluindo
acentuada dilatação dos ductos biliares distorcidos, que contêm grandes cálculos pigmentados e amplas áreas
de colapso do parênquima hepático. (Cortesia do Dr. Wilson M.S. Tsui, Caritas Medical Centre, Hong Kong.)

Morfologia

A inflamação e a fibrose dos ductos hepáticos ou do ducto colédoco constituem a característica


essencial da doença e podem se estender, acometendo os ductos intra-hepáticos. As características
típicas de obstrução biliar são observadas na biopsia de fígado, incluindo edema portal, reação
ductular e infiltrados de neutrófilos. Se não for corrigida, pode desencadear o desenvolvimento de
cirrose aos 3 a 6 meses de idade.

Características clínicas
Como a atresia biliar extra-hepática exige intervenção cirúrgica (portoenterostomia ou procedimento
de Kasai), a sua diferenciação da colestase neonatal não obstrutiva é de importância crítica. Além
disso, é preciso excluir outras etiologias de doenças biliares obstrutivas, como fibrose cística. A
combinação de apresentação clínica, exames de imagem (ultrassonografia e cintilografia com ácido
iminodiacético [HIDA] hepatoespecífico) e biopsia pode confirmar o diagnóstico na maioria dos
casos. Os achados de vesícula biliar pequena ou ausente e fibrose na porta do fígado na
ultrassonografia sustentam o diagnóstico de atresia biliar extra-hepática, assim como a cintilografia
HIDA com tecnécio-99m (99mTc), que é excretado na bile. Na atresia biliar extra-hepática, há ausência
total de secreção de 99mTc na bile, e a árvore biliar não é visualizada. O comprometimento dos ductos
proximais à porta do fígado, a progressão intra-hepática da doença e a colangite ascendente
representam obstáculos ao tratamento cirúrgico bem-sucedido. O transplante de fígado constitui a
única opção quando a intervenção cirúrgica não é viável.

Colestase neonatal não obstrutiva


Um grupo diverso de distúrbios está associado à colestase neonatal não obstrutiva. Eles podem ser
divididos em distúrbios nos quais a colestase aparece como parte de uma síndrome ou como
anormalidade isolada do fígado:
• A síndrome de Alagille é uma doença autossômica dominante que está associada à colestase e à
escassez de ductos biliares, bem como a outras anormalidades, como face dismórfica, vértebras
em forma de borboleta, defeitos oculares e defeitos cardíacos. Ela é causada por mutações de
perda de função na via Notch envolvendo os genes que codificam o ligante JAG1 ou o receptor
NOTCH2, ambos necessários para o desenvolvimento normal da árvore biliar
• Certos erros inatos do metabolismo, em particular a galactosemia (ver Capítulo 10) e a doença de
Niemann-Pick (ver Capítulo 5), podem se manifestar com colestase não obstrutiva
• As causas não sindrômicas de colestase não obstrutiva incluem deficiência de α1-antitripsina
(discutida anteriormente) e diversos distúrbios da síntese de ácidos biliares e do transporte de bile.
Com os recentes avanços, é possível determinar a etiologia subjacente em 85 a 90% dos casos
(resumida na Tabela 18.9).

Morfologia

A diminuição do número de ductos biliares nas regiões portais constitui o aspecto mais característico
e constante. Com frequência, a insuficiência biliar está associada à hepatite, caracterizada por
inflamação e apoptose/necrose hepatocelular. As características mais significativas são colestase
hepatocanalicular e alteração das células gigantes ou células sinciciais com hepatócitos
multinucleados (Figura 18.33). Em geral, há células de Kupffer reativas e hematopoese extramedular.

Tabela 18.9 Principais causas de colestase neonatal.

Doença biliar obstrutiva

Atresia biliar extra-hepática

Infecção neonatal

Citomegalovírus

Sepse bacteriana

Infecção do trato urinário

Sífilis

Distúrbios genéticos

Doenças metabólicas: tirosinemia, galactosemia

Doenças de depósito de lipídios: doença de Niemann-Pick

Defeitos na síntese de bile: anormalidades do transporte de bile (colestase intra-hepática progressiva),


defeitos na síntese de ácidos biliares

Fibrose cística

Deficiência de α1-antitripsina

Síndrome de Alagille (escassez sindrômica de ductos biliares)

Diversas

Choque/hipoperfusão, fármacos, nutrição parenteral total, hipopituitarismo

Hepatite neonatal idiopática


Colangiopatias autoimunes
Esta seção discute os dois principais distúrbios autoimunes dos ductos biliares: a colangite biliar
primária e a colangite esclerosante primária. As características dessas duas condições são comparadas
na Tabela 18.10.

Figura 18.33 Hepatite neonatal. Observe os hepatócitos gigantes multinucleados.

Tabela 18.10 Principais características da colangite biliar primária e da colangite esclerosante


primária.

Parâmetro Colangite biliar primária Colangite esclerosante primária

Idade Idade mediana de 50 anos Idade mediana de 30 anos

Sexo 90% do sexo feminino 70% do sexo masculino

Condições associadas Síndrome de Sjögren (70%), Doença inflamatória intestinal


doença da tireoide, (70%)
esclerodermia

Sorologia 95% AMA-positivos, 40 a 50% ANA- 65% ANCA-positivos; ANA variável,


positivos AMA normalmente negativo
6% ANA-positivos

Radiologia Normal Estenoses e beading dos grandes


ductos biliares; “poda” (pruning)
dos ductos menores

Lesão dos ductos Lesões floridas dos ductos; perda Destruição inflamatória dos ductos
dos ductos pequenos extra-hepáticos e dos grandes
ductos intra-hepáticos;
obliteração fibrótica dos ductos
intra-hepáticos médios e
pequenos; reação ductular nos
tratos portais menores

AMA, anticorpo antimitocondrial; ANA, anticorpo antinuclear; ANCA, anticorpo anticitoplasma de neutrófilo.

Colangite biliar primária


A colangite biliar primária (CBP) é uma doença autoimune caracterizada pela destruição
inflamatória dos ductos biliares intra-hepáticos de pequeno e médio porte. Os grandes ductos
intra-hepáticos e a árvore biliar extra-hepática não são acometidos. Na maioria dos pacientes, o
diagnóstico é estabelecido nos estágios iniciais da doença, de modo que o nome anterior de “cirrose
biliar primária” não é mais utilizado. A CBP tem uma notável predileção pelo sexo feminino de 9:1,
com pico de incidência entre 40 e 50 anos de idade. A doença é mais comum nos EUA e na Europa
Setentrional, ao passo que a incidência é baixa na África e no subcontinente indiano. Os familiares de
pacientes com CBP correm risco aumentado de desenvolver a doença.

Patogênese
Acredita-se que a CBP seja um distúrbio autoimune, resultante de um ataque mediado por
linfócitos T dos pequenos ductos biliares interlobulares. O fator desencadeante para esse ataque
não é conhecido, porém pode envolver a exposição a fatores ambientais, como infecções e substâncias
químicas tóxicas, em indivíduos geneticamente suscetíveis. Isso pode levar à expressão de
“autoantígenos” nas células epiteliais dos ductos biliares, com destruição resultante pelos linfócitos T.
A retenção de sais biliares devido a uma lesão dos ductos biliares leva à lesão hepatocelular
secundária na CBP, que pode, em última análise, produzir um quadro cirrótico.
Os anticorpos antimitocondriais dirigidos contra o componente E2 do complexo da piruvato
desidrogenase (PDC-E2) constituem o achado mais característico da CBP. Células T específicas para
o PDC-E2 estão presentes na CBP, sustentando ainda mais a noção de um processo imunomediado. O
papel dos anticorpos antimitocondriais na patogênese da CBP não está bem definido, visto que 5%
dos pacientes com CBP típica nos demais aspectos são negativos para anticorpos antimitocondriais
(AMA). Além disso, os títulos de anticorpos não se correlacionam com a gravidade ou a progressão
da doença, e eles não são preditivos de resposta à terapia (ver adiante). Além disso, pode haver outros
autoanticorpos dirigidos contra proteínas dos poros nucleares e proteínas centroméricas.
Morfologia

A característica essencial da CBP consiste em infiltração linfocítica e lesão epitelial que acomete os
pequenos ductos biliares interlobulares. Com frequência, observa-se a presença de granulomas
epitelioides malformados nos tratos portais, que podem estar centrados nos ductos biliares. O
quadro histológico de destruição linfocitária e/ou granulomatosa dos ductos biliares (lesão
ductal florida) é altamente característico da CBP (Figura 18.34). Com frequência, ocorrem
inflamação linfoplasmocitária portal e reação ductular. O comprometimento dos ductos biliares tem
uma distribuição irregular, em que o comprometimento de uma minoria de tratos portais constitui
uma característica comum na doença em estágio inicial. A progressão da doença leva à perda de
pequenos ductos biliares intra-hepáticos (“ductopenia”). Diferentemente da colestase obstrutiva,
induzida por fármacos ou associada à sepse, o acúmulo de bile na CBP não é centrizonal, porém é
observado em regiões periportais/perisseptais. A estase de sais biliares leva ao intumescimento dos
hepatócitos periportais, que apresentam citoplasma claro com filamentos granulares (degeneração
plumosa) e podem desenvolver corpúsculos de Mallory. Essas alterações periportais, denominadas
estase de colato, podem ser observadas em qualquer doença biliar crônica. A doença em estágio
terminal culmina em cirrose. À semelhança de outras doenças biliares, os nódulos cirróticos na CBP
tendem a ser alongados (“em forma de guirlanda”), diferentemente dos nódulos redondos que
ocorrem nas doenças hepatíticas. Alguns pacientes desenvolvem hipertensão portal, devido a
nódulos regenerativos sem fibrose, característica denominada hiperplasia nodular regenerativa. A
base desse fenômeno na CBP não é conhecida.

Figura 18.34 Colangite biliar primária. Um trato portal sofreu acentuada expansão por um infiltrado de
linfócitos e plasmócitos ao redor de uma reação granulomatosa destrutiva centrada em um ducto biliar (“lesão
ductal florida”).

Características clínicas
Em geral, a CBP sintomática manifesta-se com fadiga e prurido, que aumentam lentamente com o
passar do tempo. A hipercolesterolemia é comum. Observa-se a ocorrência de esplenomegalia e
icterícia na doença avançada. Outras características que podem ocorrer incluem hiperpigmentação da
pele, xantelasmas, esteatorreia e osteomalacia e/ou osteoporose relacionadas com a má absorção de
vitamina D. Outras doenças autoimunes, como síndrome de Sjögren, esclerose sistêmica, tireoidite,
artrite reumatoide, fenômeno de Raynaud e doença celíaca, também podem estar presentes nos
pacientes afetados.
Um número crescente de casos está sendo detectado em pacientes assintomáticos com níveis
séricos elevados de fosfatase alcalina. Os anticorpos antimitocondriais estão presentes em 90 a 95%
dos pacientes em todos os estágios da doença e são altamente característicos. Por motivos incertos,
muitos pacientes também apresentam níveis séricos elevados de anticorpos IgM. Os anticorpos
antimitocondriais podem ser detectados por imunofluorescência indireta ou pelo ensaio
imunoabsorvente ligado à enzima (ELISA); este último tem maior sensibilidade e especificidade,
visto que detecta seletivamente a presença de anticorpos dirigidos contra a subunidade E2 do
complexo da piruvato quinase. O diagnóstico pode ser estabelecido na presença de dois dos seguintes
critérios: fosfatase alcalina elevada por mais de 6 meses; teste positivo para anticorpos
antimitocondriais; e achados histológicos característicos. A forma da doença AMA-negativa tem
apenas dois desses achados e, às vezes, é denominada “colangiopatia autoimune” ou “colangite
autoimune”. A apresentação clínica, a patologia e a história natural dessa doença são semelhantes nos
demais aspectos.
A CBP é uma doença lentamente progressiva, e ocorre progressão para a doença hepática em
estágio terminal em 20 a 25% dos pacientes ao longo de 15 a 20 anos. O tratamento com ácido
ursodesoxicólico oral, um ácido biliar de ocorrência natural, retarda a progressão da doença na
maioria dos pacientes, porém a resposta é inadequada em até 40% dos indivíduos afetados. Nesses
pacientes, outras terapias médicas estão sendo avaliadas, como o ácido obeticólico (um ácido biliar
sintético). Em pacientes nos quais o tratamento clínico falha, o transplante de fígado produz resultados
excelentes, com sobrevida em 7 anos de mais de 70%. À semelhança de muitas formas crônicas de
lesão hepática, a CBP está associada a risco aumentado de carcinoma hepatocelular.

Colangite esclerosante primária


A colangite esclerosante primária (CEP) caracteriza-se por inflamação e fibrose obliterativa dos
ductos extra-hepáticos e dos grandes ductos intra-hepáticos e por dilatação dos segmentos
preservados. A CEP tende a ocorrer entre a terceira e quinta décadas de vida e apresenta uma
predominância no sexo masculino de 2:1.

Patogênese
A presença de autoanticorpos circulantes e linfócitos T no estroma periductal e as associações
com HLA-B8 e outros antígenos do MHC e retocolite ulcerativa sustentam a ideia de que a CEP
é um processo imunomediado. Acredita-se que uma combinação de fatores ambientais e genéticos
possa desencadear a lesão inflamatória dos ductos biliares. Os parentes de primeiro grau de pacientes
com CEP apresentam aumento do risco de desenvolver a doença, o que sugere um componente
genético. Foi proposto que as células T, ativadas na mucosa danificada de pacientes com colite
ulcerativa, migram para o fígado, onde elas reconhecem um antígeno do ducto biliar por reação
cruzada. Foi também postulado que as infecções ou as mudanças no microbioma intestinal podem
levar a alterações nos colangiócitos, que induzem a lesão inflamatória. Diferentemente da CBP, o
perfil de autoanticorpos na CEP não é característico; todavia, em aproximadamente 65% dos
pacientes, são encontrados anticorpos anticitoplasma de neutrófilo – perinucleares (pANCA) atípicos
dirigidos contra uma proteína do envelope nuclear.
Morfologia

Os grandes ductos biliares intra-hepáticos e os ductos extrahepáticos apresentam lesão epitelial e


infiltrados neutrofílicos sobrepostos à inflamação crônica. O edema e a inflamação provocam
estreitamento da luz, levando à fibrose e a estenoses. Pode-se observar o desenvolvimento de litíase
nos ductos dilatados. A lesão inflamatória pode resultar em fibrose circunferencial “em casca de
cebola” (fibrose/esclerose periductais) ao redor de uma luz cada vez mais atrófica (Figura 18.35),
levando finalmente à obliteração por uma cicatriz em “lápide”. Os ductos biliares intra-hepáticos
menores, cuja amostra é mais comumente obtida em biopsia, não estão diretamente acometidos
pela inflamação, mas podem exibir lesão leve e reação ductular proeminente, devido à colestase. A
progressão da colestase e da fibrose culmina em cirrose biliar. Pode haver o desenvolvimento de
neoplasia intraepitelial biliar, levando ao colangiocarcinoma, uma complicação temida da CEP.

Características clínicas
Os sintomas de apresentação mais comuns consistem em fadiga, prurido e icterícia. Quase metade dos
pacientes é assintomática na apresentação e chama a atenção médica devido à elevação persistente da
fosfatase alcalina sérica, particularmente em pacientes com retocolite ulcerativa que são submetidos a
rastreamento de rotina. A colangite ascendente também pode ser a apresentação inicial. Observa-se,
também, a ocorrência de pancreatite crônica e colecistite crônica, em consequência do
comprometimento dos ductos pancreáticos e da vesícula biliar. Podem ocorrer fibrose e, por fim,
cirrose.

Figura 18.35 Colangite esclerosante primária. Um ducto biliar em degeneração está aprisionado em uma
densa cicatriz concêntrica “em casca de cebola”.

O padrão-ouro para o diagnóstico de CEP é o beading característico observado na grande árvore


biliar intra e extra-hepática por meio de colangiopancreaticografia retrógrada endoscópica/magnética
(CPRE/CPRM), envolvendo estenoses e dilatações biliares irregulares (Figura 18.36). A doença
inflamatória intestinal, em particular a retocolite ulcerativa, afeta cerca de 70% dos indivíduos com
CEP, ao passo que 8% dos pacientes com doença inflamatória intestinal desenvolvem CEP. Em um
pequeno subgrupo de casos, principalmente em associação com a doença inflamatória intestinal,
ocorre o comprometimento dos ductos biliares menores apenas, e o exame de CPRE/CPRM é normal.
Essa condição é denominada CEP de pequenos ductos e pode progredir para a CEP de grandes ductos
típica. A CEP clássica precisa ser distinguida da colangite que ocorre na doença esclerosante com
IgG4 (ver Capítulo 6), que responde a esteroides e frequentemente está associada à hepatite. Em 5 a
10% dos casos, ocorre hepatite autoimune em associação com a CEP.
Normalmente, a doença segue um curso prolongado, levando à cirrose, no decorrer de 10 a 15
anos. O risco cumulativo de desenvolver colangiocarcinoma é de 20%. Não existe terapia médica
estabelecida para a CEP; ensaios clínicos do ácido ursodesoxicólico estão em andamento. A
colestiramina, uma resina de ligação aos ácidos biliares, é utilizada para aliviar o prurido, e a dilatação
endoscópica ou a colocação de stent são utilizadas para aliviar a obstrução biliar. O transplante de
fígado constitui o tratamento de escolha para a doença hepática em estágio terminal.

Conceitos-chave

Doenças colestáticas

• Ocorre colestase com comprometimento do fluxo biliar, levando ao acúmulo de pigmento biliar
no parênquima hepático. As etiologias hepáticas incluem defeitos metabólicos na formação ou na
secreção de bile e lesão inflamatória dos ductos biliares, ao passo que as etiologias pós-hepáticas
incluem obstrução mecânica ou destruição inflamatória dos ductos biliares extra-hepáticos
• A obstrução dos grandes ductos biliares está mais comumente associada a cálculos biliares e a
carcinomas que acometem a cabeça do pâncreas. Pode haver desenvolvimento de colangite
ascendente. A obstrução crônica pode levar à cirrose
• A colestase na sepse pode resultar dos efeitos diretos da infecção bacteriana intra-hepática, dos
produtos microbianos circulantes ou da isquemia relacionada com a hipotensão
• A hepatolitíase primária é um distúrbio de formação de cálculos biliares intra-hepáticos, que é
mais comum no Leste Asiático e leva a episódios repetidos de colangite ascendente e destruição
inflamatória do parênquima. Ela predispõe ao colangiocarcinoma
• A CBP é uma doença autoimune com destruição inflamatória e, com frequência, granulomatosa
dos ductos biliares intrahepáticos de tamanho pequeno a médio. Ela ocorre com mais frequência
em mulheres de meia-idade e está normalmente associada a anticorpos antimitocondriais e a
outras doenças autoimunes (p. ex., síndrome de Sjögren e tireoidite de Hashimoto)
• A CEP é uma doença autoimune que é mais comum em homens e está fortemente associada à
doença inflamatória intestinal, particularmente retocolite ulcerativa. O diagnóstico é estabelecido
pela visualização da árvore biliar. Do ponto de vista histológico, as características típicas
consistem em inflamação, fibrose e estenoses que acometem os grandes ductos biliares intra e
extra-hepáticos. Os pacientes correm risco de desenvolver colangiocarcinoma.
Figura 18.36 Exames de imagem de um paciente com colangite esclerosante primária. A. A colangiografia
por ressonância magnética mostra uma dilatação focal em alguns ductos biliares (áreas largas e brilhantes) e
estreitamento em outros (adelgaçamento ou ausência). B. A colangiografia retrógrada endoscópica do mesmo
paciente mostra estruturas quase idênticas às de A. O endoscópio é visível, dando uma ideia de escala.
(Cortesia do Dr. M. Edwyn Harrison, MD, Mayo Clinic, Scottsdale, Ariz.)

Anomalias estruturais da árvore biliar


Cisto de colédoco
Os cistos de colédoco são dilatações congênitas do ducto colédoco. Com mais frequência, eles surgem
em crianças com idade inferior a 10 anos e manifestam-se como icterícia e/ou dor abdominal
recorrente, sintomas que são típicos de cólica biliar. Cerca de 20% dos casos tornam-se sintomáticos
apenas na vida adulta. Em alguns casos, os cistos de colédoco ocorrem em associação com a dilatação
cística da árvore biliar intra-hepática (doença de Caroli, descrita mais adiante). A razão entre sexo
feminino e sexo masculino é de 3:1 a 4:1. Esses cistos incomuns podem assumir a forma de dilatação
segmentar ou cilíndrica do ducto colédoco, divertículos dos ductos extra-hepáticos ou coledococeles,
que consistem em lesões císticas que se projetam na luz duodenal. Os cistos colédocos predispõem à
formação de cálculos, estenose e estreitamento, pancreatite e complicações biliares obstrutivas no
fígado. Além disso, existe risco aumentado de desenvolver carcinoma de ductos biliares.

Doença fibropolicística
A doença fibropolicística do fígado é um grupo heterogêneo de lesões, nas quais a principal
anormalidade consiste em malformação congênita da árvore biliar. As lesões podem ser identificadas
de modo incidental durante exames radiográficos, cirurgia ou necropsia. As formas mais graves
podem se manifestar como hepatoesplenomegalia ou hipertensão portal na ausência de disfunção
hepática, começando no final da infância ou na adolescência. Essas lesões fazem parte do espectro de
malformações de desenvolvimento das placas ductais, que resultam da persistência das placas ductais
periportais fetais. O calibre dos tratos portais acometidos determina o tamanho, a morfologia e a
distribuição das lesões. A doença fibropolicística do fígado ocorre, com frequência, em associação
com a doença renal policística autossômica recessiva (Capítulo 20). Os indivíduos com doença
fibropolicística do fígado correm risco aumentado de desenvolver colangiocarcinoma.
Na doença polifibrocística, podem-se observar três conjuntos de achados patológicos, que, às
vezes, se sobrepõem:
• Os complexos de von Meyenburg são hamartomas dos ductos biliares pequenos (Figura 18.37).
Complexos de von Meyenburg ocasionais são comuns em indivíduos normais sob os demais
aspectos. Quando são difusos, eles sinalizam a presença de doença fibropolicística subjacente e
clinicamente importante
• Cistos biliares intra-hepáticos ou extra-hepáticos solitários ou múltiplos. Quando presentes de
modo isolado, esses cistos podem ser sintomáticos, devido à colangite ascendente. A dilatação
cística multifocal dos grandes ductos biliares intra-hepáticos é denominada doença de Caroli.
Quando a dilatação cística da árvore biliar ocorre em associação com a fibrose hepática congênita,
utiliza-se o termo síndrome de Caroli (Figura 18.38). Pode ocorrer dilatação cística dos ductos,
porém também existem cistos verdadeiros. Estes últimos podem ser cistos intra-hepáticos ou do
colédoco, conforme descrito anteriormente
• A fibrose hepática congênita caracteriza-se pelo aumento dos tratos portais causado por faixas
largas de tecido colagenoso, formando septos que dividem o fígado em ilhas irregulares (Figura
18.39). Números variáveis de ductos biliares de formato anormal estão incluídos no tecido fibroso,
embora permaneçam em continuidade com a árvore biliar. À semelhança da cirrose, os indivíduos
com fibrose hepática congênita correm risco de desenvolver hipertensão portal e suas
complicações, particularmente hemorragia de varizes.

Distúrbios circulatórios
Tendo-se em vista o grande volume de sangue que flui pelo fígado, não é surpreendente que os
distúrbios circulatórios tenham um considerável impacto sobre o órgão. Entretanto, na maioria dos
casos, não há desenvolvimento de anormalidades clinicamente significativas da função hepática,
porém a morfologia do fígado pode estar consideravelmente afetada. Esses distúrbios podem ser
agrupados de acordo com o comprometimento do fluxo sanguíneo para o fígado, através ou a partir
dele (Figura 18.40).
Figura 18.37 Complexo de von Meyenburg (hamartoma de ductos biliares). Acredita-se que os ductos biliares
irregulares e dilatados com contornos curvilíneos representem a formação de placa ductal.
Figura 18.38 Fibrose hepática congênita com múltiplos cistos biliares.

Comprometimento do fluxo sanguíneo para o fígado


Comprometimento da artéria hepática
O duplo suprimento de sangue do fígado atenua a ocorrência de infarto; entretanto, a obstrução de um
ramo intra-hepático da artéria hepática por êmbolos, trombos ou compressão pode resultar em infarto
localizado, que é pálido e anêmico, ou hemorrágico, se houver sufusão com sangue portal (Figura
18.41). As causas subjacentes podem incluir neoplasia, poliarterite nodosa (ver Capítulo 11) ou sepse.
A interrupção do fluxo sanguíneo através da artéria hepática principal nem sempre provoca necrose
isquêmica do órgão, particularmente se o fígado estiver normal nos demais aspectos, visto que o fluxo
arterial retrógrado através de vasos acessórios, quando acoplado ao suprimento venoso portal,
geralmente é suficiente para sustentar o parênquima hepático.
Figura 18.39 Fibrose hepática congênita. Amplas faixas de fibrose com remanescentes dilatados de placas
ductais. O parênquima intercalado é relativamente normal (coloração: tricrômico de Masson).
Figura 18.40 Formas e manifestações clínicas dos distúrbios circulatórios hepáticos.

Diversas condições aumentam a vulnerabilidade do fígado ao infarto em caso de obstrução da


artéria hepática. A trombose da artéria hepática em um fígado transplantado geralmente leva ao
infarto dos ductos principais da árvore biliar, visto que o seu suprimento sanguíneo é totalmente
arterial, podendo levar também à lesão hepática e a alterações regenerativas. Podem ocorrer grandes
infartos com trombose combinada da veia porta e da artéria hepática, resultando, por fim, em cicatriz
subcapsular.

Obstrução e trombose da veia porta


O bloqueio da veia porta e suas tributárias tanto pode ser insidioso e bem tolerado quanto ser um
evento catastrófico e potencialmente letal; a maioria dos casos situa-se em algum ponto entre esses
dois extremos. A doença oclusiva da veia porta ou de seus principais ramos normalmente produz dor
abdominal e, na maioria dos casos, manifestações de hipertensão portal, principalmente varizes
esofágicas que têm propensão a sofrer ruptura.
A obstrução pode ocorrer na veia porta extra-hepática, nas radículas da veia porta intra-hepática
ou nos pequenos ramos da veia porta. A obstrução extra-hepática da veia porta pode ser idiopática
(cerca de um terço dos casos) ou pode se originar das seguintes condições:
• Sepse umbilical neonatal ou cateterismo da veia umbilical, que produzem, com frequência,
oclusão subclínica da veia porta, que se manifesta como sangramento de varizes e ascite dentro de
alguns anos
• Infecção intra-abdominal causada por diverticulite aguda ou apendicite, levando à pieloflebite na
circulação esplâncnica
• Estados de hipercoagulabilidade herdados ou adquiridos, incluindo neoplasias
mieloproliferativas, como policitemia vera (ver Capítulo 13), em que as anormalidades das
plaquetas predispõem à trombose da veia porta
• Trauma, cirúrgico ou de outro tipo
• Trombose da veia esplênica associada à pancreatite e ao câncer de pâncreas, que se propaga para
a veia porta
• Invasão da veia porta por carcinoma hepatocelular
• Cirrose, que está associada à trombose da veia porta em aproximadamente 25% dos pacientes,
muitos dos quais apresentam um genótipo trombofílico subjacente (p. ex., fator V de Leiden; ver
Capítulo 4).

Figura 18.41 Infarto do fígado. Um trombo está alojado em um ramo periférico da artéria hepática (seta) e
comprime a veia porta adjacente; o tecido infartado necrótico distal apresenta margens pálidas e áreas
multifocais de hemorragia.

As radículas intra-hepáticas da veia porta têm maior probabilidade de serem obstruídas por
trombose aguda, geralmente no contexto de uma neoplasia maligna ou de algum outro estado de
hipercoagulabilidade. Em contrapartida, pode-se observar a ocorrência de obstrução de pequenos
ramos da veia porta em uma variedade de condições patogenicamente distintas, caracterizadas por
hipertensão portal não cirrótica, como:
A causa mais comum de obstrução de pequenos ramos da veia porta é a esquistossomose; os ovos

dos parasitas e a resposta inflamatória granulomatosa associada causam obstrução dos menores
ramos da veia porta
• Outras doenças associadas à obstrução de pequenos ramos da veia porta são coletivamente
denominadas hipertensão portal não cirrótica idiopática. A patogênese é desconhecida; foram
observadas associações com estados protrombóticos, infecções (p. ex., HIV), fármacos, toxinas,
imunodeficiências, obstrução biliar crônica e doenças autoimunes. Foi relatada uma variação
geográfica na incidência de fibrose e hipertensão portais não cirróticas. A doença é
particularmente comum na Índia, porém a incidência parece estar diminuindo. Com frequência, os
pacientes apresentam sangramento gastrintestinal alto. No Leste Asiático, particularmente no
Japão, existe uma predominância do sexo feminino, e os pacientes apresentam esplenomegalia,
frequentemente em associação com doenças reumatológicas. A doença é observada na infecção
pelo HIV não tratada e em pacientes que recebem terapia antirretroviral, nos quais pode
representar uma complicação do tratamento. O transplante de fígado pode ser necessário para
evitar sequelas fatais da hipertensão portal em todos esses contextos.

Comprometimento do fluxo sanguíneo ao longo do fígado


A causa intra-hepática mais comum de comprometimento do fluxo sanguíneo é a cirrose, conforme
descrito anteriormente. Além disso, a oclusão física do fluxo sanguíneo sinusoidal ocorre em um
pequeno grupo de doenças, incluindo as seguintes:
• Doença falciforme (Figura 18.42), devido à obstrução por eritrócitos falciformes
• Coagulação intravascular disseminada, devido a numerosos trombos pequenos
• Eclâmpsia (discutida adiante)
• Neoplasia metastática intrassinusoidal difusa, devido à obstrução física por tampões de neoplasia,
às vezes com trombose sobreposta.
Em todos esses cenários, a obstrução do fluxo sanguíneo pode levar à necrose maciça dos
hepatócitos e à insuficiência hepática aguda.
A peliose hepática é uma forma peculiar de dilatação sinusoidal, que ocorre em qualquer condição
em que haja impedimento do efluxo de sangue hepático. O fígado contém espaços císticos
preenchidos por sangue, revestidos ou não por células endoteliais sinusoidais. A patogênese é
desconhecida. Foram observadas espécies de Bartonella nas células endoteliais sinusoidais na peliose
associada à AIDS; entretanto, observa-se, também, a ocorrência de peliose no câncer e em outras
infecções, como a tuberculose. A administração de hormônios sexuais (p. ex., esteroides
anabolizantes, contraceptivos orais, danazol) também pode provocar peliose. Embora os sinais
clínicos geralmente estejam ausentes, podem ocorrer hemorragia intra-abdominal potencialmente fatal
ou insuficiência hepática. Em geral, as lesões desaparecem após a correção da causa subjacente.
Figura 18.42 Crise falciforme no fígado. A fotomicrografia mostra vários sinusoides que contêm eritrócitos
“falciformes” (seta).

Obstrução do fluxo venoso hepático


Trombose da veia hepática
A obstrução das veias hepáticas principais provoca aumento do fígado, dor e ascite, uma
condição conhecida como síndrome de Budd-Chiari. A obstrução de uma única veia hepática
principal por trombose é clinicamente silenciosa. Os danos hepáticos são uma consequência do
aumento da pressão arterial intra-hepática. A trombose da veia hepática está associada a neoplasias
mieloproliferativas, como policitemia vera (ver Capítulo 13), distúrbios hereditários da coagulação
(ver Capítulo 4), síndrome do anticorpo antifosfolipídio, hemoglobinúria paroxística noturna (ver
Capítulo 14) e cânceres intra-abdominais, em particular o carcinoma hepatocelular. Na gravidez ou
com o uso de contraceptivos orais, ela ocorre em consequência da interação com um distúrbio
trombofílico subjacente.
Morfologia

Na síndrome de Budd-Chiari, o fígado está intumescido e púrpura-avermelhado e apresenta uma


cápsula tensa (Figura 18.43). Pode haver áreas de colapso hemorrágico alternando com parênquima
preservado ou em regeneração, e os padrões são dependentes de quais veias hepáticas pequenas e
grandes estão obstruídas. Ao exame microscópico, o parênquima hepático afetado revela congestão
centrolobular intensa e necrose. Há o desenvolvimento de fibrose pericentral/sinusoidal nos casos
em que a trombose ocorre mais lentamente. As principais veias contêm trombos, que exibem graus
variáveis de organização.

Características clínicas
A mortalidade da trombose aguda da veia hepática não tratada é elevada. A realização imediata de
cirurgia para criar uma derivação venosa portossistêmica possibilita o fluxo reverso pela veia porta e
melhora o prognóstico. A forma crônica é muito menos letal, e mais de dois terços dos pacientes
permanecem vivos após 5 anos.

Figura 18.43 Síndrome de Budd-Chiari. A trombose das veias hepáticas principais causou necrose hepática
hemorrágica.

Síndrome da obstrução sinusoidal


Descrita originalmente em jamaicanos que bebiam chá de arbusto com o alcaloide pirrolizidina e
denominada doença veno-oclusiva, a síndrome da obstrução sinusoidal agora ocorre principalmente
em dois contextos: (1) após o transplante de células-tronco hematopoéticas alogênicas (ou, menos
comumente, autólogas), em geral nas primeiras 3 semanas (embora a realização de mudanças nos
esquemas de condicionamento tenha reduzido a incidência); e (2) em pacientes com câncer
submetidos a certas formas de quimioterapia. A taxa de mortalidade é de até 80% na doença grave.

Patogênese
A síndrome da obstrução sinusoidal surge em decorrência de lesão tóxica do endotélio sinusoidal. O
endotélio lesionado e descamado provoca a obstrução do fluxo sanguíneo sinusoidal, e os restos
associados acumulam-se na veia hepática terminal. Os eritrócitos entram no espaço de Disse nos
sinusoides rompidos, e a interrupção do fluxo sanguíneo com frequência leva à necrose dos
hepatócitos perivenulares.
Morfologia

A síndrome da obstrução sinusoidal caracteriza-se por obliteração das vênulas hepáticas terminais
pelo endotélio intumescido ou necrótico, edema e deposição final de colágeno. Na doença aguda, há
congestão centrolobular, necrose hepatocelular e acúmulo de macrófagos carregados de
hemossiderina. Nas lesões avançadas, a luz obliterada das vênulas pode ser identificada por
corantes especiais para o tecido conjuntivo (Figura 18.44). Na síndrome da obstrução sinusoidal
crônica ou cicatrizada, pode ocorrer obliteração fibrosa completa da vênula.

Características clínicas
Embora a histologia seja o padrão-ouro para o estabelecimento do diagnóstico, a biopsia de fígado é,
com frequência, perigosa nesses pacientes. Em consequência, o diagnóstico é normalmente
estabelecido em bases clínicas, a partir dos achados de hepatomegalia dolorosa, ascite, ganho de peso
e icterícia, bem como fluxo venoso hepático invertido ou atenuado na ultrassonografia com Doppler.
Os resultados iniciais sugerem que o tratamento com anticoagulantes e ursodesoxicolato pode reduzir
a incidência e a gravidade da síndrome da obstrução sinusoidal em pacientes submetidos a transplante
de células-tronco hematopoéticas.

Figura 18.44 Síndrome da obstrução sinusoidal. A coloração do colágeno revela congestão sinusoidal
acentuada, atrofia e perda de hepatócitos, bem como trombo organizado dentro da luz da veia (seta).
(Coloração: tricrômico de Masson.)

Congestão passiva e necrose centrolobular


Essas manifestações hepáticas de comprometimento circulatório sistêmico – congestão passiva e
necrose centrolobular – são consideradas em conjunto, visto que elas representam um continuum
morfológico. Ambas as alterações são comumente observadas na necropsia, visto que existe um
elemento de insuficiência circulatória pré-óbito em praticamente toda morte não traumática.

Morfologia

A descompensação cardíaca direita leva à congestão passiva do fígado. O fígado está levemente
aumentado, tenso e cianótico, com bordas arredondadas. Ao exame microscópico, observa-se a
congestão dos sinusoides centrolobulares que também se encontram dilatados. Com o tempo,
os hepatócitos centrolobulares tornam-se atróficos, o que resulta em acen tuada atenuação das
placas celulares hepáticas.
A insuficiência cardíaca esquerda ou o choque podem levar à hipoperfusão hepática e à hipoxia
dos hepatócitos ao redor das veias centrais. A combinação de hipoperfusão e congestão retrógrada
atua de modo sinérgico, causando necrose hemorrágica centrolobular. O fígado adquire uma
aparência mosqueada variegada, refletindo a hemorragia e a necrose nas regiões centrolobulares
(Figura 18.45A). Esse achado é conhecido como fígado em noz-moscada, devido à sua semelhança
com a superfície de corte de uma noz-moscada. Na maioria dos casos, a única evidência clínica de
necrose centrolobular ou de suas variantes consiste em elevação transitória dos níveis séricos de
aminotransferases, porém os danos ao parênquima podem ser suficientes para induzir icterícia leve
a moderada.
Ao exame microscópico, há uma nítida demarcação entre os hepatócitos periportais viá veis e os
hepatócitos pericentrais necróticos ou atróficos, com sufusão de sangue através da região
centrolobular (Figura 18.45B). Na insuficiência cardíaca congestiva grave e crônica sustentada,
observa-se o desenvolvimento de esclerose cardíaca com fibrose pericelular centrolobular, às vezes
com septos fibrosos em ponte.

Conceitos-chave

Distúrbios circulatórios

• Os distúrbios circulatórios do fígado podem ser causados por comprometimento do fluxo


sanguíneo de entrada no fígado, por defeitos no fluxo sanguíneo intra-hepático e pela obstrução
do fluxo sanguíneo de saída
• A obstrução da veia porta por trombose intra-hepática ou extra-hepática pode causar hipertensão
portal, varizes esofágicas e ascite
• A cirrose constitui a causa mais comum de comprometimento do fluxo sanguíneo intra-hepático
• As obstruções ao fluxo sanguíneo de saída incluem trombose da veia hepática (síndrome de
Budd-Chiari) e síndrome da obstrução sinusoidal, anteriormente conhecida como doença veno-
oclusiva.
Figura 18.45 Congestão passiva aguda (“fígado em noz-moscada”). A. A superfície de corte do fígado tem
uma aparência vermelha mosqueada e variegada, representando a congestão e a hemorragia nas regiões
centrolobulares do parênquima. B. Ao exame microscópico, a região centrolobular apresenta sufusão com
eritrócitos, e os hepatócitos atrofiados não são facilmente observados. Os tratos portais e o parênquima
periporta estão intactos.

Doença hepática associada à gravidez


Algumas formas de doença hepática podem ser exacerbadas pela gravidez. A hepatite viral (HAV,
HBV, HCV ou HBV + HDV) constitui a causa mais comum de icterícia na gravidez. Embora essas
mulheres necessitem de manejo clínico cuidadoso, a gravidez não altera especificamente o curso da
hepatite viral, com exceção da infecção pelo HEV, que, por motivos desconhecidos, segue uma
evolução mais grave e apresenta uma taxa de mortalidade que se aproxima de 20% em gestantes. O
fígado também pode ser secundariamente acometido por outras infecções durante a gravidez,
incluindo hepatite causada pelo herpes-vírus simples, uma rara causa de insuficiência hepática aguda
na gravidez, e abscesso hepático causado por Listeria monocytogenes, um microrganismo que cresce
no tecido placentário, a partir do qual pode se implantar no fígado.
São obtidas provas de função hepática anormal em 3 a 5% das gestações; todavia, na maioria dos
casos, essas anormalidades não têm importância clínica. Em um subgrupo muito pequeno de mulheres
grávidas (0,1%), observa-se o desenvolvimento de complicações hepáticas mais graves. Esses
distúrbios incluem a pré-eclâmpsia e a eclâmpsia, a esteatose hepática aguda da gravidez e a colestase
intra-hepática da gravidez. Nos casos extremos, a eclâmpsia e a esteatose hepática aguda da gravidez
podem ser fatais.

Pré-eclâmpsia e eclâmpsia
A pré-eclâmpsia afeta até 10% das gestações e caracteriza-se por hipertensão materna, proteinúria,
edema periférico e anormalidades da coagulação (ver Capítulo 22 para uma discussão detalhada).
Quando ocorrem hiper-reflexia e convulsões, a condição é denominada eclâmpsia e pode ser
potencialmente fatal. Como alternativa, a doença hepática subclínica pode ser a principal
manifestação da pré-eclâmpsia, como parte de uma síndrome de hemólise, elevação das enzimas
hepáticas (liver) e contagem baixa (low) de plaquetas, designada como síndrome HELLP. Aqui, o foco
será concentrado na patologia hepática dessas entidades.

Morfologia

Na pré-eclâmpsia, os sinusoides periportais contêm depósitos de fibrina associados à


hemorragia no espaço de Disse, levando à necrose coagulativa hepatocelular periporta. O sangue
sob pressão pode coalescer e se expandir para formar um hematoma hepático; a dissecção sob a
cápsula de Glisson pelo sangue pode levar à ruptura hepática catastrófica na pré-eclâmpsia (Figura
18.46).

Características clínicas
Os pacientes com comprometimento hepático na pré-eclâmpsia podem apresentar elevação modesta a
grave dos níveis séricos de aminotransferases e elevação leve da bilirrubina sérica. Uma disfunção
hepática suficiente para causar coagulopatia indica doença avançada e potencialmente letal. Os casos
leves podem ser tratados de modo conservador. A interrupção da gravidez é necessária nos casos
graves. As mulheres que sobrevivem à pré-eclâmpsia leve ou grave se recuperam sem sequelas.

Esteatose hepática aguda da gravidez


A esteatose hepática aguda da gravidez manifesta-se como um espectro de doença, que varia
desde uma disfunção hepática subclínica ou modesta (evidenciada por elevação dos níveis
séricos de aminotransferases) até insuficiência hepática, coma e morte. Trata-se de uma doença
rara, que afeta cerca de 1 em 16 mil mulheres grávidas.
Figura 18.46 Eclâmpsia. Hematoma subcapsular dissecando sob a cápsula de Glisson em um caso fatal.
(Cortesia do Dr. Brian Blackbourne, Office of the Medical Examiner, San Diego, Calif.)

Patogênese
Em alguns casos, a patogênese dessa doença pode envolver um distúrbio herdado do metabolismo.
Em um subgrupo de pacientes, ambos os pais têm uma deficiência heterozigota na 3-hidroxiacil
coenzima A (CoA) desidrogenase de cadeia longa mitocondrial. Os fetos e a placenta com deficiência
homozigota passam bem durante a gestação, porém essa deficiência provoca disfunção hepática na
mãe, visto que os metabólitos 3-hidroxiacil de cadeia longa produzidos pelo feto ou pela placenta
entram na circulação materna e causam hepatotoxicidade. Por conseguinte, esse é um raro caso em
que o feto provoca doença metabólica na mãe.

Morfologia

O diagnóstico de esteatose hepática aguda da gravidez depende da identificação, na biopsia, de


esteatose microvesicular difusa característica dos hepatócitos. Nos casos graves, pode haver
desorganização lobular com perda dos hepatócitos, colapso da rede de reticulina e inflamação dos
tratos portais, tornando difícil a distinção da hepatite viral. Além disso, pode ocorrer colestase.

Características clínicas
Embora essa condição siga mais comumente uma evolução leve, as mulheres com esteatose hepática
aguda da gestação podem progredir dentro de alguns dias para insuficiência hepática e morte. O
principal tratamento consiste em interrupção da gravidez. As mulheres afetadas manifestam a doença
na segunda metade da gestação, comumente no terceiro trimestre. Os sintomas são diretamente
atribuíveis à insuficiência hepática incipiente, incluindo sangramento, náuseas, vômitos, icterícia e
coma. Em 20 a 40% dos casos, os sintomas de apresentação podem ser os da pré-eclâmpsia
coexistente.
Colestase intra-hepática da gravidez
O início de prurido no segundo ou terceiro trimestres, seguido, em alguns casos (10 a 25%) de
escurecimento da urina e, em certas ocasiões, de fezes claras e icterícia, anuncia o desenvolvimento
dessa síndrome enigmática, que regride nas primeiras 2 a 3 semanas após o parto. O nível sérico de
bilirrubina (em sua maior parte conjugada) raramente ultrapassa 5 mg/d ℓ , e pode haver elevação
discreta da fosfatase alcalina. Os níveis de sais biliares estão acentuadamente elevados. O estado
hormonal alterado da gravidez provavelmente se combina com fatores ambientais e defeitos das
proteínas transportadoras para produzir colestase canalicular. Existe um risco modesto de perda fetal,
e a condição pode sofrer recorrência em gestações subsequentes. O prurido resultante da retenção de
sais biliares pode ser extremamente desconfortável para a gestante.

Nódulos e neoplasias
As lesões hepáticas expansivas incluem processos não neoplásicos, como hiperplasia nodular focal,
nódulos regenerativos e abscessos ou outro processo infeccioso. As lesões neoplásicas expansivas
incluem: nódulos hepatocelulares benignos, como o adenoma hepatocelular; neoplasias malignas
primárias do epitélio hepático, como carcinoma hepatocelular e colangiocarcinoma intra-hepático; e
neoplasias não epiteliais, como angiossarcoma e neoplasias metastáticas.

Lesões não neoplásicas expansivas


Hiperplasia nodular focal
A hiperplasia nodular focal (HNF) é uma lesão não neoplásica benigna, mais comum em mulheres
adultas.

Patogênese
Acredita-se que a HNF resulte de uma alteração do fluxo sanguíneo que leva a alterações
hiperplásicas dos hepatócitos. Podem ocorrer nódulos semelhantes à HNF em locais adjacentes a
outras neoplasias e em condições vasculares, como hemangiomas e síndrome de Budd-Chiari. A HNF
multifocal pode ocorrer em associação a hemangioma hepático ou extra-hepático, malformações
vasculares ou (curiosamente) tumores cerebrais, como meningioma e astrocitoma.

Morfologia

A HNF é bem circunscrita, normalmente carece de uma cápsula e apresenta uma cicatriz estrelada
central em até 80% dos casos (Figura 18.47A). A maioria das lesões tem 5 cm ou menos de
diâmetro. Ao exame microscópico, septos fibrosos irradiam-se a partir da cicatriz central, dividindo o
parênquima hepático em nódulos. Os septos fibrosos e a cicatriz central contêm artérias de paredes
espessas, com hiperplasia da íntima e fibromuscular e lâmina elástica malformada (Figura 18.47B).
Com frequência, há uma reação ductular proeminente, porém os ductos biliares interlobulares estão
ausentes. Os hepatócitos nos nódulos estão organizados em placas com uma a duas células de
espessura; não há atipia citológica e arquitetônica. A imuno-histoquí mica para a glutamina sintetase
(GS), uma enzima normalmente presente nos hepatócitos centrizonais, é muito útil para o
diagnóstico. Na HNF, observa-se um “padrão semelhante a um mapa” altamente característico de
intensa coloração citoplasmática de GS no interior de grupos anastomosantes de hepatócitos.

Características clínicas
Os casos são, em sua maioria, assintomáticos e chamam a atenção clínica durante um exame de
imagem ou uma cirurgia. A presença de uma cicatriz central é um achado altamente característico, que
ajuda a estabelecer o diagnóstico em exames de imagem. A HNF é uma lesão benigna e não necessita
de tratamento. A ressecção é realizada apenas na presença de grandes lesões sintomáticas.

Outras lesões expansivas não neoplásicas


As lesões expansivas não neoplásicas, como abscessos, granulomas e pseudotumores inflamatórios,
podem simular neoplasias verdadeiras. Podem ocorrer grandes nódulos regenerativos no fígado não
cirrótico em condições vasculares, como síndrome de Budd-Chiari, hemangioma e malformações
vasculares. Em algumas condições, todo o fígado torna-se nodular sem fibrose significativa, uma
condição denominada hiperplasia nodular regenerativa (HNR). A HNR pode levar à hipertensão
portal e pode simular a cirrose em exames de imagem.
Figura 18.47 Hiperplasia nodular focal. A. Espécime ressecado mostrando os contornos lobulados e uma
cicatriz central estrelada. B. Micrografia de pequeno aumento mostrando uma cicatriz fibrosa larga, com
artérias de paredes espessas e reação ductular, porém sem ductos biliares interlobulares.
As proliferações biliares benignas incluem o adenoma dos ductos biliares e o hamartoma biliar
(complexo de von Meyenburg, descrito anteriormente). Ambos são assintomáticos e, em geral,
medem menos de 2 cm. Essas lesões chamam a atenção clínica como nódulos minúsculos ou cistos
em exames de imagem, ou como pequenas lesões subcapsulares observadas durante uma cirurgia
abdominal, quando podem ser confundidas com doença metastática. Ambas as lesões apresentam
ductos biliares aleatórios em um estroma fibroso e não apresentam atipias citológicas ou arquiteturais.
Os perfis ductulares no adenoma dos ductos biliares tendem a ser redondos e não dilatados, ao passo
que os do hamartoma biliar são dilatados, curvilíneos e, com frequência, apresentam bile ou secreções
espessas. Acredita-se que estes últimos sejam um remanescente da malformação da placa ductal. A
identificação recente de mutações adquiridas de BRAF patogênicas na maioria dos adenomas dos
ductos biliares indica que se trata de uma neoplasia benigna, resolvendo um debate antigo.

Neoplasias benignas
Hemangioma cavernoso
O hemangioma cavernoso é a neoplasia hepática benigna mais comum. Ele aparece como um nódulo
macio e distinto, azul-avermelhado, geralmente com menos de 2 cm de diâmetro e de localização
subcapsular. Ao exame histológico, o tumor consiste em canais vasculares dilatados de paredes finas
(Figura 18.48). Na maioria dos casos, são assintomáticos e detectados de modo incidental em exames
de imagem.

Adenoma hepatocelular
O adenoma hepatocelular é uma neoplasia benigna que normalmente ocorre em mulheres
jovens e está fortemente associado ao uso de contraceptivos orais e esteroides anabolizantes. A
incidência dessa doença aumentou na última década, presumivelmente relacionada com a obesidade e
a síndrome metabólica. Podem ocorrer múltiplos adenomas hepatocelulares (denominados
adenomatose hepática quando há 10 ou mais tumores) em contextos tanto familiares quanto
adquiridos.

Patogênese
Foram definidos três subtipos moleculares, cada um deles associado a características clínico-
patológicas distintas e a risco variável de transformação em carcinoma hepatocelular:
• Adenoma hepatocelular inativado pelo fator nuclear do hepatócito 1-alfa (HNF1-α). Por
definição, todas essas neoplasias apresentam mutações de perda de função no gene HNF1-α, que
codifica um fator de transcrição que regula muitos genes nos hepatócitos e nas ilhotas
pancreáticas. As mutações de linhagem germinativa heterozigotas são responsáveis pelo diabetes
juvenil do início da maturidade (MODY, maturity-onset diabetes of the young) autossômico
dominante e estão associadas a 10% dos adenomas hepatocelulares inativados pelo HNF1-α. Esse
subtipo representa 40 a 50% dos casos, tem forte predileção por indivíduos do sexo feminino e
está associado a risco mínimo de transformação em carcinoma hepatocelular
• O adenoma hepatocelular inflamatório é um subtipo que resulta de mutações ativadoras no gp130,
um correceptor de IL-6, que levam à ativação constitutiva da sinalização de JAK-STAT. Esse
subtipo representa 40 a 50% dos casos, é mais comum em mulheres e está associado a obesidade e
síndrome metabólica. Além disso, ocorrem mutações ativadoras de β-catenina em 10% dos
adenomas hepatocelulares inflamatórios, e essas neoplasias correm maior risco de transformação
maligna
• O adenoma hepatocelular ativado por β-catenina é definido por mutações ativadoras no gene de
β-catenina (CTNNB1) ou em outros componentes da via Wnt (como APC). Essas neoplasias
correm alto risco de transformação maligna em carcinoma hepatocelular e estão associadas ao uso
de contraceptivos orais e esteroides anabolizantes. Quase 40% dessas neoplasias ocorrem em
homens.

Figura 18.48 Hemangioma cavernoso. Canais vasculares repletos de sangue e separados por um estroma
fibroso denso.

Morfologia

Os adenomas hepatocelulares aparecem como massas distintas, às vezes com hemorragia


associada, compostos de hepatócitos dispostos em placas de uma a duas células de espessura
(Figura 18.49). Observa-se a presença de grandes artérias dentro de uma pequena quantidade de
estroma fibroso, ao passo que não há ductos biliares interlobulares nem tratos portais normais.
Normalmente, as neoplasias com mutação de HNF1α apresentam gordura proeminente nos
hepatócitos lesionais e por imunohistoquímica, e a proteína de ligação de ácidos graxos do fígado
(LFABP), uma proteína regulada pelo HNF1α, está ausente (Figura 18.50A). Os tumores com mutação
de β-catenina frequentemente apresentam características citológicas ou arquitetônicas atípicas, e
pode-se observar a presença de áreas que exibem transformação evidente em carcinoma
hepatocelular. Devido às mutações de β-catenina ou a outras mutações que ativam a sinalização Wnt,
a localização nuclear acentuada da β-catenina é observada em pelo menos um subgrupo das células
neoplásicas (ver Figura 18.50B). Normalmente, as neoplasias inflamatórias exibem dilatação
sinusoidal e podem apresentar características que simulam a hiperplasia nodular focal, como septos
fibrosos e reação ductular. Devido à sinalização de JAK-STAT hiperativa, essas neoplasias
superexpressam proteínas de fase aguda, como proteína C reativa e amiloide A sérico (Figura
18.50C).
Características clínicas
O adenoma hepatocelular pode ser detectado de modo incidental por meio de exames de imagem ou
pode chamar a atenção devido ao aparecimento de sintomas relacionados com dor abdominal ou
necrose hemorrágica. A ruptura de adenomas hepatocelulares pode causar hemorragia abdominal
maciça e representa uma emergência cirúrgica. Recomenda-se a ressecção para neoplasias ativadas
pela β-catenina, bem como para neoplasias com 5 cm ou mais, devido ao risco de hemorragia e
transformação maligna. No caso de neoplasias menores sem ativação pela β-catenina, o
acompanhamento rigoroso e a interrupção da exposição a contraceptivos orais ou esteroides
anabolizantes podem ser suficientes.

Neoplasias malignas primárias


As neoplasias malignas do fígado podem ser primárias ou metastáticas. Entre as neoplasias epiteliais
primárias, as mais comuns são o carcinoma hepatocelular e o colangiocarcinoma intra-hepático. O
hepatoblastoma é uma neoplasia hepatocelular rara, que ocorre no contexto pediátrico. As neoplasias
não epiteliais, como o angiossarcoma, são extremamente raras.
Figura 18.49 Adenoma hepatocelular. A. Espécime ressecado mostrando uma massa bem definida de
coloração bronze no fígado. B. Vista microscópica mostrando cordões finos de hepatócitos, com suprimento
vascular arterial (seta) e sem tratos portais.

Hepatoblastoma
O hepatoblastoma é a neoplasia hepática mais comum no início da infância. Ele ocorre raramente
em crianças com idade superior a 3 anos, e a sua incidência está aumentando. A ativação da via de
sinalização de Wnt é característica do hepatoblastoma, levando à translocação da β-catenina ao núcleo
e, consequentemente, ao aumento da expressão dos genes-alvo de Wnt, como glutamina-sintetase, em
quase todos os casos. Essas neoplasias estão associadas a várias síndromes, incluindo polipose
adenomatosa familiar (causada por mutações de linhagem germinativa de perda de função no APC;
ver Capítulo 17) e síndrome de Beckwith-Wiedemann. Este último distúrbio está associado a
anormalidades congênitas do crescimento, causadas por alteração epigenética anormal de uma região
do cromossomo 11, que leva à superexpressão do fator de crescimento semelhante à insulina-2 e à
perda de expressão do CDKN1C, um gene supressor de tumor que codifica o inibidor de quinase
dependente de ciclina, p57.

Figura 18.50 Subtipos moleculares de adenoma hepatocelular. A. Adenoma hepatocelular inativado pelo
HNF1α. A proteína de ligação a ácidos graxos do fígado (LFABP, cuja expressão depende do HNF1α) está
ausente na neoplasia por imuno-histoquímica e presente nos hepatócitos normais adjacentes (parte inferior, à
esquerda). B. Adenoma hepatocelular com ativação da β-catenina. Observe a imuno-histoquímica nuclear em
alguns hepatócitos neoplásicos (em comparação com outros hepatócitos neoplásicos que mantêm a coloração
normal das membranas). C. Adenoma hepatocelular inflamatório. Ocorre suprarregulação acentuada da
proteína C reativa nos hepatócitos neoplásicos, em comparação com a expressão altamente variável e de
baixo nível no parênquima hepático adjacente. (Imuno-histoquímica com DAB [em marrom] e contracorante de
hematoxilina.) (A, Cortesia do Dr. Valerie Paradis, Beaujon Hospital, Paris, França.)
Morfologia

Existe uma variedade de subtipos histológicos de hepatoblastoma, que podem ser agrupados em
duas categorias principais: (1) o tipo epitelial, composto de pequenas células fetais poligonais ou
células embrionárias menores, formando trabéculas, ácinos, túbulos ou estruturas papilares, que
lembram vagamente o fígado em desenvolvimento (Figura 18.51); e (2) o tipo epitelial e
mesenquimal misto, que contém focos adicionais de diferenciação mesenquimal, que podem
consistir em mesênquima primitivo, osteoide, cartilagem ou músculo estriado.

Características clínicas
Em geral, o hepatoblastoma chama a atenção clínica devido à tumefação abdominal em lactentes ou
crianças assintomáticos. São observados sintomas relacionados com disfunção hepática (icterícia,
prurido) em um subgrupo de pacientes, e cerca de 20% dos tumores apresentarão metástases para os
pulmões por ocasião do diagnóstico. A neoplasia é tratada por meio de ressecção cirúrgica e
quimioterapia, que melhoraram os resultados. A taxa de sobrevida global em 5 anos é de
aproximadamente 80%.

Carcinoma hepatocelular
O carcinoma hepatocelular (CHC) é responsável por aproximadamente 5,4% de todos os
cânceres em todo o mundo e constitui um dos cânceres mais comuns em regiões geográficas com
altas taxas de infecção por hepatite B. Mais de 85% dos casos ocorrem em países da Ásia, (sudeste
da China, Coreia, Taiwan) e África Subsaariana, onde a infecção crônica pelo HBV é comum. O pico
de incidência do CHC nessas áreas é observado em adultos jovens entre 20 e 40 anos, que adquiriram
o vírus da hepatite B por transmissão materno-fetal. Felizmente, a incidência do CHC está diminuindo
na Ásia, devido à vacinação contra a hepatite B; entretanto, ao mesmo tempo, a sua incidência está
aumentando em países ocidentais, devido às taxas crescentes de infecção pelo vírus da hepatite C e de
síndrome metabólica. Por motivos que ainda não foram esclarecidos, existe uma predominância
masculina pronunciada, de até 8:1, nas áreas de alta incidência.
Figura 18.51 Hepatoblastoma. As células neoplásicas estão dispostas em lâminas e assemelham-se a
hepatócitos embrionários e fetais.

Patogênese
Em sua maioria, os CHCs ocorrem no contexto de doença hepática crônica com cirrose, ao
passo que 15 a 20% surgem em fígados não cirróticos (Figura 18.52). As doenças subjacentes
mais comuns são a hepatite viral crônica (B e C), as doenças metabólicas, como hemocromatose
hereditária e deficiência α1-antitripsina, e a doença hepática alcoólica. A doença hepática gordurosa
não alcoólica também aumenta o risco de CHC, mesmo na ausência de cirrose. Embora os detalhes
ainda não estejam claramente elucidados, acredita-se que a lesão crônica, a inflamação e a
regeneração dos hepatócitos, que são observadas nesses distúrbios, contribuem para a aquisição de
mutações condutoras que levam ao desenvolvimento de CHC (ver adiante). Parte do risco na África e
na Ásia parece estar relacionada com a contaminação de colheitas por aflatoxina, uma micotoxina
produzida por espécies de Aspergillus, que atua de modo sinérgico com o álcool e a hepatite B. O
risco de CHC na cirrose relacionada com outras etiologias, como doença de Wilson e doenças biliares
crônicas, é ligeiramente mais baixo, porém ainda acima da média da população.
Figura 18.52 Carcinoma hepatocelular. A. Fígado retirado durante a necropsia mostrando uma neoplasia
unifocal substituindo a maior parte do lobo hepático direito. B. Hepatócitos malignos crescendo em versões
distorcidas da arquitetura normal, incluindo grandes espaços pseudoacinares (canalículos biliares dilatados e
malformados) e trabéculas de hepatócitos espessas.
À semelhança de outros tipos de câncer, o CHC está associado a conjuntos complementares de
mutações condutoras, que levam à aquisição das marcas registradas do câncer (ver Capítulo 7). Entre
as mais comuns, destacam-se as mutações ativadoras no gene da β-catenina (40% das neoplasias),
mutações no promotor do gene TERT (telomerase transcriptase), que suprarregulam a atividade da
telomerase (50 a 60% das neoplasias), e mutações inativadoras em TP53 (até 60% das neoplasias). O
CHC fibrolamelar, um subtipo histológico incomum, que, com frequência, ocorre em adolescentes e
adultos jovens na ausência de doença hepática preexistente, está fortemente associado a um gene de
fusão, que leva à atividade aberrante da proteinoquinase A, uma enzima que participa de uma via de
sinalização regulada pelo cAMP.

Morfologia

Foram descritas várias lesões precursoras no CHC. Conforme discutido anteriormente, no fígado não
cirrótico, o CHC pode surgir no adenoma hepatocelular, particularmente naquele com mutações
ativadoras de β-catenina. Na doença hepática crônica, as alterações morfológicas mais precoces que
parecem se correlacionar com a presença de hepatócitos “em risco” são denominadas “alteração de
grandes células” e “alteração de pequenas células” (Figura 18.53). A alteração de grandes células
refere-se a hepatócitos que são maiores do que o normal e, com frequência, apresentam múltiplos
núcleos aumentados e pleomórficos, sem aumento da razão núcleo-citoplasma (ver Figura 18.53A).
Nas alterações de pequenas células, os hepatócitos exibem uma alta razão núcleo-citoplasma e
hipercromasia nuclear leve e/ou pleomorfismo (ver Figura 18.53B). As lesões nodulares no fígado
cirrótico, denominadas nódulos displásicos (Figura 18.54), são mais ameaçadoras e estão
normalmente associadas à alteração de pequenas células. Os nódulos displásicos diferem dos
nódulos cirróticos adjacentes quanto ao tamanho, à cor e à vascularização, exibem graus variáveis
de displasia e apresentam aberrações clonais associadas ao CHC totalmente desenvolvido. Às vezes,
podem-se observar pequenas áreas de CHC em nódulos displásicos de alto grau (aspecto de “nódulo
dentro de nódulo”) (ver Figura 18.54B).
O CHC pode formar uma única massa ou múltiplas massas distintas, ou pode infiltrar
difusamente o fígado. Essas massas podem ser pálidas e amarelas, devido à degeneração gordurosa,
ou verdes, devido à colestase. As neoplasias com mais de 2 cm têm maior tendência a estar
associadas à invasão vascular e a metástases intra-hepáticas. Pode ocorrer invasão das veias, com
extensão para dentro da veia porta, da veia cava inferior e até mesmo do lado direito do coração.
Do ponto de vista microscópico, os CHCs bem diferenciados e moderadamente diferenciados são
compostos de células que se assemelham aos hepatócitos normais, ao passo que as neoplasias
pouco diferenciadas exibem atipia citológica acentuada. As células neoplásicas crescem em placas
espessas ou trabéculas, estruturas pseudoglandulares com tampões biliares ou lâminas (ver Figura
18.52B). Essa variante fibrolamelar distinta apresenta a tríade característica de grandes células
poligonais: citoplasma granular (oncocítico), devido às mitocôndrias abundantes; núcleos
vesiculares, com nucléolo proeminente; e lamelas paralelas de feixes densos de colágeno (Figura
18.55).

Características clínicas
As manifestações clínicas do CHC são inespecíficas e incluem dor abdominal, mal-estar, fadiga, perda
de peso e hepatomegalia. As características da doença hepática crônica subjacente podem estar
presentes. Os níveis elevados de α-fetoproteína sérica constituem um achado frequente na doença
avançada, porém não são sensíveis como teste de rastreamento para neoplasias em estágio inicial e
não estão associados à variante fibrolamelar. A ultrassonografia é utilizada para o rastreamento de
pacientes de alto risco, como os que apresentam cirrose. A tomografia computadorizada e a
ressonância magnética com exames contrastados fornecem achados altamente característicos. O realce
precoce da neoplasia, devido à captação do meio de contraste na fase arterial, seguido de rápido
washout venoso, é considerado o diagnóstico do CHC.
Figura 18.53 Alterações pré-malignas dos hepatócitos. A. Alteração de grandes células. Grandes hepatócitos
com núcleos volumosos e, com frequência, atípicos estão dispersos entre hepatócitos de tamanho normal com
núcleos redondos típicos. B. Alterações de pequenas células. As células anormais apresentam uma razão
núcleo-citoplasma elevada e são separadas por placas espessas. Os hepatócitos de aparência normal estão
no canto inferior direito. (Cortesia do Dr. Young Nyun Park, Yonsei Medical College, Seoul, Coreia do Sul.)
Figura 18.54 A. Cirrose relacionada com a hepatite C com nódulo distintamente grande (setas). O
crescimento do nódulo dentro de nódulo sugere um câncer em evolução. B. Histologicamente, a região
delimitada pelo quadrado em A mostra um carcinoma hepatocelular (CHC) bem diferenciado (à direita) e um
subnódulo de CHC moderadamente diferenciado dentro dele (no centro, à esquerda). (Cortesia do Dr.
Masamichi Kojiro, Kurume University, Kurume, Japão.)

A ressecção cirúrgica, quando possível, constitui o tratamento de escolha das neoplasias em


fígados não cirróticos e em fígados cirróticos com função adequada. O transplante de fígado é
considerado para o CHC no contexto de cirrose avançada. A ablação da neoplasia guiada por imagem
com álcool ou com ondas de radiofrequência pode ser utilizada para neoplasias não ressecáveis ou
para aquelas que não preenchem os critérios de transplante. As metástases hematogênicas,
particularmente para o pulmão, tendem a ocorrer em um estágio avançado da doença. Ocorrem
metástases para linfonodos em < 5% dos casos.
O prognóstico geral no CHC é limitado, devido à doença hepática subjacente e à resistência
intrínseca do CHC à quimioterapia convencional. A taxa de sobrevida global em 5 anos é de 30% para
a neoplasia confinada ao fígado e de apenas 5 a 10% para os casos com disseminação extra-hepática.
Os resultados são melhores para a variante fibrolamelar (que é incomum), e até 40% dos pacientes
sobrevivem por 10 anos ou mais. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que, na ausência de doença
hepática subjacente, é possível efetuar uma ressecção cirúrgica extensa, em virtude da capacidade
regenerativa do fígado remanescente.
Figura 18.55 Carcinoma fibrolamelar. A. Espécime ressecado mostrando um nódulo bem demarcado. B.
Fotomicrografia mostrando ninhos e cordões de hepatócitos oncocíticos de aspecto maligno, separados por
feixes densos de colágeno.

Neoplasias biliares malignas


Os adenocarcinomas que surgem a partir da árvore biliar intra-hepática são denominados
colangiocarcinoma intra-hepático, ao passo que a neoplasia semelhante que se origina a partir dos
ductos biliares extra-hepáticos é denominada adenocarcinoma biliar. O colangiocarcinoma intra-
hepático é a neoplasia maligna primária mais comum do fígado depois do CHC. A sua incidência está
aumentando nos EUA. Ele é responsável por 7,6% das mortes por câncer em todo o mundo e por 3%
das mortes por câncer nos EUA. É muito comum em países do Sudeste Asiático, como Tailândia,
Laos e Camboja, onde a infestação pelo trematódeo hepático é endêmica.

Patogênese
Os fatores de risco para neoplasias do trato biliar incluem distúrbios do desenvolvimento, como
doença hepática fibropolicística, e condições inflamatórias crônicas que acometem os ductos biliares,
como colangite esclerosante primária, infestação por trematódeos hepáticos (particularmente espécies
de Opisthorchis e Clonorchis) e hepatolitíase. As doenças hepáticas crônicas que predispõem ao CHC,
como hepatite B, hepatite C e doença hepática gordurosa não alcoólica, também aumentam o risco de
colangiocarcinoma intra-hepático. À semelhança do CHC, a lesão crônica, a inflamação e a
regeneração do epitélio biliar nessas condições podem preparar o terreno para a aquisição de mutações
condutoras, levando ao desenvolvimento de câncer.
As mutações condutoras no colangiocarcinoma intra-hepático e no adenocarcinoma biliar extra-
hepático exibem sobreposição apenas parcial. As mutações no KRAS são comuns em ambas as
neoplasias. Além disso, subgrupos de colangiocarcinoma intra-hepático apresentam mutações
condutoras em IDH1 e IDH2 (isocitrato desidrogenase), que geram “oncometabólitos” (ver Capítulo
7), e em genes modificadores da cromatina, como BAP1 e PBRM1. Os genes de fusão que envolvem o
FGFR2 (receptor do fator de crescimento do fibroblasto 2) também são comuns. Em contrapartida,
além das mutações em KRAS, os adenocarcinomas biliares extra-hepáticos têm maior tendência a
apresentar mutações em TP53 e SMAD4, que constituem características genéticas semelhantes àquelas
do adenocarcinoma de pâncreas.

Morfologia

Em geral, o colangiocarcinoma intra-hepático ocorre no fígado não cirrótico (Figura 18.56) e


normalmente forma uma massa firme branco-acinzentada. Os adenocarcinomas biliares extra-
hepáticos incluem neoplasias peri-hilares, conhecidas como tumores de Klatskin, que se localizam
na junção dos ductos hepáticos direito e esquerdo. Essas neoplasias representam 60 a 70% dos
adenocarcinomas biliares extra-hepáticos, ao passo que os 30 a 40% restantes acometem o ducto
colédoco. Em geral, os adenocarcinomas biliares extra-hepáticos são pequenos por ocasião do
diagnóstico, visto que são detectados precocemente, devido às características obstrutivas. Essas
neoplasias podem formar um nódulo firme na parede do ducto biliar, podem ser difusamente
infiltrativas ou podem formar lesões papilares.
Ao exame microscópico, ambas as neoplasias intra-hepáticas e extra-hepáticas exibem
características de adenocarcinomas. Na maioria dos casos, elas são bem a moderadamente
diferenciadas e estão dispostas em estruturas glandulares/tubulares claramente definidas,
revestidas por células epiteliais malignas incorporadas em um estroma fibroso abundante (ver
Figura 18.56B). É comum ocorrer invasão linfovascular e perineural (ver Figura 18.56C). Acredita-se
que essas neoplasias surjam geralmente a partir de lesões pré-malignas, denominadas neoplasias
intraepiteliais biliares. Outras lesões precursoras menos comuns incluem as neoplasias císticas
mucinosas e as neoplasias papilares intraductais.

Características clínicas
O colangiocarcinoma intra-hepático pode ser detectado de modo incidental em exames de imagem ou
pode apresentar-se com um quadro colestático ou massa hepática sintomática, ao passo que o
adenocarcinoma extra-hepático normalmente se manifesta com sintomas relacionados com a
obstrução biliar. A ressecção da neoplasia com margens negativas e a ausência de comprometimento
dos linfonodos constituem fatores favoráveis. Verifica-se a presença de metástases para linfonodos em
50 a 60% dos pacientes na apresentação inicial. A quimioterapia adjuvante é comumente administrada
após a ressecção, porém as respostas da neoplasia são comumente transitórias. O prognóstico global é
sombrio, visto que as recorrências são comuns, e a taxa de sobrevida em 5 anos é de 20 a 40% após a
ressecção cirúrgica.
Figura 18.56 Colangiocarcinoma. A. Colangiocarcinoma multifocal no fígado de um paciente com infestação
pelo trematódeo hepático, Clonorchis sinensis. B. Glândulas malignas invasivas em um estroma esclerótico e
reativo. C. Invasão perineural por glândulas malignas formando um padrão semelhante a uma coroa ao redor
do nervo central aprisionado. (A, Cortesia do Dr. Wilson M.S. Tsui, Caritas Medical Centre, Hong Kong.)

Outras neoplasias malignas hepáticas primárias


Vários outros tipos de câncer podem surgir no fígado. Entre os mais comuns ou de interesse
patológico, destacam-se os seguintes:
• O carcinoma hepatocelular-colangiocarcinoma combinado é composto de células semelhantes ao
CHC e ao colangiocarcinoma intra-hepático. Essas neoplasias apresentam os mesmos fatores de
risco do CHC
• O angiossarcoma é uma neoplasia vascular maligna, que, historicamente, está associada a cloreto
de vinila, arsênio ou agente para exames de imagem Thorotrast (ver Capítulos 9 e 11). Essa
neoplasia tornou-se rara com a redução das exposições a esses agentes
• O hemangioendotelioma epitelioide é outra neoplasia vascular com potencial maligno
intermediário e prognóstico ligeiramente melhor do que o angiossarcoma, que é quase
uniformemente fatal
• O linfoma hepático primário é um tipo raro de neoplasia maligna hepática. O subtipo mais comum
é o linfoma difuso de grandes células B, uma forma de linfoma não Hodgkin, que, com frequência,
ocorre em sítios extranodais (ver Capítulo 13). Outro subtipo raro é o linfoma de células T
hepatoesplênico, mais comum em homens adultos jovens, que tem predileção pelo seu
crescimento dentro dos sinusoides do fígado, do baço e da medula óssea.

Metástases
O comprometimento do fígado por neoplasias malignas metastáticas é muito mais comum do que a
neoplasia hepática primária. Embora as fontes mais comuns sejam o cólon, a mama, o pulmão e o
pâncreas, praticamente qualquer tipo de câncer pode se disseminar para o fígado. Normalmente, são
encontradas metástases nodulares que, com frequência, causam hepatomegalia pronunciada e
substituem uma grande parte do parênquima hepático normal. O peso do fígado pode ultrapassar
vários quilogramas. A metástase também pode aparecer como nódulo solitário, que, nesse caso, pode
ser tratado por meio de ressecção cirúrgica. A extensão do comprometimento metastático que pode
estar presente na ausência de evidências clínicas ou laboratoriais de insuficiência hepática é sempre
surpreendente; com frequência, o único sinal revelador é a hepatomegalia. Entretanto, com a
destruição maciça dos hepatócitos ou a obstrução direta dos ductos biliares principais, é inevitável o
aparecimento de icterícia e outras evidências de disfunção hepática.
Conceitos-chave

Neoplasias hepáticas

• O fígado é o local mais comum de cânceres metastáticos de neoplasias primárias de cólon,


pulmão e mama
• Os adenomas hepatocelulares são neoplasias benignas de hepatócitos, e podem ser
subclassificados com base em diferentes conjuntos de mutações condutoras
• O CHC é a neoplasia maligna hepática primária mais comum, e ocorre frequentemente na
presença de cirrose relacionada com doença hepática crônica, incluindo hepatites B e C crônicas,
hepatite autoimune, doença hepática gordurosa alcoólica/não alcoólica e hemocromatose
• O colangiocarcinoma intra-hepático e o adenocarcinoma biliar extra-hepático apresentam
características histológicas semelhantes e compartilham fatores de risco, como colangite
esclerosante primária e infestação por trematódeos hepáticos, como Opisthorchis e Clonorchis.
Essas neoplasias apresentam prognóstico sombrio.

Vesícula biliar
O fígado secreta até 1 ℓ de bile por dia. Entre as refeições, ela é armazenada na vesícula biliar, onde é
concentrada. No adulto, a vesícula biliar tem capacidade de cerca de 50 mℓ. O órgão não é essencial
para a função biliar, visto que os seres humanos não sofrem de indigestão nem de má absorção de
gordura após a colecistectomia.

Anomalias congênitas
Pode haver ausência congênita da vesícula biliar ou ocorrer duplicação da vesícula biliar, com ductos
císticos unidos ou independentes. Um septo longitudinal ou transverso pode criar uma vesícula biliar
bilobada. São observadas localizações aberrantes da vesícula biliar em 5 a 10% da população, mais
comumente com inclusão parcial ou completa na substância hepática. A presença de dobra no fundo
constitui a anomalia mais comum, criando barrete frígio (Figura 18.57). Além disso, pode ocorrer
agenesia de toda ou de qualquer porção dos ductos hepáticos ou do ducto colédoco e estreitamento
hipoplásico dos canais biliares (“atresia biliar” verdadeira). Os cistos de colédoco, descritos
anteriormente, podem constituir achados isolados na vesícula biliar ou estar associados a outros cistos
na árvore biliar extra-hepática ou à doença fibropolicística.

Colelitíase (cálculos biliares)


Mais de 95% dos casos de doença do trato biliar são atribuíveis a cálculos biliares. Os cálculos
biliares afetam 10 a 20% das populações de adultos em países de alta renda. Nos EUA, estima-se que
mais de 20 milhões de pessoas tenham cálculos biliares, totalizando aproximadamente 25 a 50
toneladas e levando à realização anual de mais de 700 mil colecistectomias, com custo aproximado de
US$ 6 bilhões.
Figura 18.57 Barrete frígio da vesícula biliar; o fundo é dobrado para dentro.

Epidemiologia
Existem duas classes gerais de cálculos biliares: os cálculos de colesterol, que contêm mais de 50% de
colesterol cristalino monoidratado; e os cálculos pigmentados, compostos predominantemente de sais
de bilirrubinato de cálcio. Cada um deles apresenta fatores de risco diferentes. Os cálculos de
colesterol são mais prevalentes nos EUA e na Europa Ocidental (90%) e são raros em países de baixa
renda. As taxas de prevalência de cálculos biliares de colesterol aproximam-se de 75% em americanos
nativos dos grupos Pima, Hopi e Navajo, ao passo que os cálculos pigmentados são raros nessas
populações. Os cálculos pigmentados, que constituem o tipo de cálculo predominante em populações
não ocidentais, surgem principalmente no contexto de infecções bacterianas ou infestações
parasitárias da árvore biliar, bem como em indivíduos com doenças que levam à hemólise crônica dos
eritrócitos.
Os principais fatores de risco associados ao desenvolvimento de cálculos biliares estão listados na
Tabela 18.11 e são descritos aqui de maneira sucinta:
• Idade e sexo. A prevalência de cálculos biliares de colesterol aumenta ao longo da vida, porém
eles afetam predominantemente indivíduos da meia-idade até idosos. A prevalência é maior em
mulheres de qualquer região ou etnia; em mulheres brancas, a prevalência é cerca de duas vezes
maior do que em homens. A hipersecreção de colesterol biliar parece desempenhar um importante
papel nas diferenças de idade e de gênero. Além disso, são observadas associações significativas
com a síndrome metabólica e a obesidade
• Fatores ambientais. A exposição ao estrogênio, incluindo com o uso de contraceptivos orais e
durante a gravidez, aumenta a expressão dos receptores hepáticos de lipoproteínas e estimula a
atividade da HMG-CoA redutase hepática, aumentando tanto a captação quanto a biossíntese de
colesterol, respectivamente. O resultado consiste em secreção biliar excessiva de colesterol. A
obesidade e a rápida perda de peso também estão fortemente associadas ao aumento da secreção
de colesterol biliar
• Distúrbios adquiridos. A estase da vesícula biliar, que pode ser neurogênica ou hormonal,
promove um ambiente local favorável para a formação de cálculos tanto de colesterol quanto de
pigmento
• Fatores hereditários. Os genes que codificam proteínas dos hepatócitos que transportam lipídios
biliares, conhecidas como transportadores cassete de ligação de ATP (ABC), têm associações com
a formação de cálculos biliares. Em particular, uma variante comum do transportador de esterol,
codificada pelo gene ABCG8, está associada a risco aumentado de cálculos de colesterol.

Tabela 18.11 Fatores de risco para cálculos biliares.

Cálculos de colesterol

Demografia: habitantes da Europa Setentrional, Américas do Norte e do Sul, americanos nativos,


mexicano-americanos

Idade avançada

Hormônios sexuais femininos

Sexo feminino

Contraceptivos orais

Gravidez

Obesidade e síndrome metabólica

Redução rápida do peso

Estase biliar

Distúrbios inatos do metabolismo dos ácidos biliares

Síndromes de hiperlipidemia

Cálculos pigmentados

Demografia: mais frequentes em asiáticos do que em ocidentais, maior ocorrência em áreas rurais do
que urbanas

Anemias hemolíticas crônicas

Infecção biliar

Distúrbios gastrintestinais: doença ileal (p. ex., doença de Crohn), ressecção ou derivação ileal, fibrose
cística com insuficiência pancreática

Patogênese dos cálculos de colesterol


O colesterol é solubilizado na bile pela formação de micelas com sais biliares e lecitinas, ambos os
quais atuam como detergentes. Quando as concentrações de colesterol ultrapassam a capacidade de
solubilização da bile (supersaturação), o colesterol não pode mais permanecer disperso e torna-se
nucleado em cristais de colesterol monoidratado sólidos. Quatro condições parecem contribuir para a
formação de cálculos de colesterol: (1) supersaturação da bile com colesterol; (2) hipomotilidade da
vesícula biliar; (3) nucleação acelerada de cristais de colesterol; e (4) hipersecreção de muco na
vesícula biliar, que aprisiona os cristais nucleados, levando ao acúmulo de mais colesterol e ao
aparecimento de cálculos macroscópicos.

Patogênese dos cálculos pigmentados


Os cálculos pigmentados consistem em misturas complexas de sais de cálcio insolúveis de bilirrubina
não conjugada e sais de cálcio inorgânico. Os distúrbios associados a níveis elevados de bilirrubina
não conjugada na bile aumentam o risco de desenvolvimento de cálculos pigmentados. Esses
distúrbios incluem anemia hemolítica crônica, disfunção grave ou derivação ileais e contaminação
bacteriana da árvore biliar. A bilirrubina não conjugada normalmente representa um componente
menor da bile, porém aumenta quando a infecção do trato biliar leva à liberação de β-glicuronidases
microbianas, que hidrolisam os glicuronídeos de bilirrubina. Por conseguinte, a infecção do trato biliar
por Escherichia coli, Ascaris lumbricoides ou pelo trematódeo C. sinensis aumenta a probabilidade de
formação de cálculos pigmentados. Nas anemias hemolíticas, ocorre o aumento da secreção de
bilirrubina conjugada na bile. Cerca de 1% dos glicuronídeos de bilirrubina sofre desconjugação na
árvore biliar, e, no contexto de secreção cronicamente aumentada de bilirrubina conjugada, ocorre a
produção de uma quantidade de bilirrubina desconjugada grande o suficiente para possibilitar a
formação de cálculos de pigmento.

Figura 18.58 Cálculos biliares de colesterol. A parede da vesícula biliar está espessada e fibrótica, devido à
colecistite crônica.
Morfologia

Os cálculos de colesterol surgem exclusivamente na vesícula biliar e variam de 100% de colesterol


puro (o que é raro) até cerca de 50% de colesterol. Os cálculos de colesterol puro são amarelo-
pálidos, redondos a ovoides e têm uma superfície externa dura e finamente granular (Figura 18.58),
que, na transecção, revela uma paliçada cristalina brilhante que se irradia. Com proporções
crescentes de carbonato de cálcio, fosfatos e bilirrubina, os cálculos adquirem uma cor branco-
acinzentada a preta e podem ser lamelares. Em geral, ocorrem múltiplos cálculos, que variam até
vários centímetros de diâmetro. Raramente, um cálculo muito grande pode preencher praticamente
quase todo o fundo da vesícula biliar. As superfícies dos cálculos podem ser arredondadas ou
facetadas, devido à aposição entre cálculos adjacentes. Os cálculos compostos em grande parte de
colesterol são radiotransparentes; uma quantidade suficiente de carbonato de cálcio é encontrada
em 10 a 20% dos cálculos de colesterol, tornando-os radiopacos. O colesterol supersaturado na bile,
que forma cálculos de colesterol, também pode se difundir na mucosa, manifestando-se como
colesterolose (Figura 18.59).
Os cálculos pigmentados são de coloração marrom a preta. Em geral, os cálculos pigmentares
negros são encontrados na bile da vesícula biliar estéril, ao passo que os cálculos marrons são
encontrados em grandes ductos biliares infectados. Os cálculos negros contêm polímeros oxidados
de sais de cálcio de bilirrubina não conjugada, pequenas quantidades de carbonato de cálcio, fosfato
de cálcio, glicoproteína mucina e alguns cristais de colesterol monoidratados. Os cálculos marrons
contêm compostos semelhantes, bem como alguns sais de palmitato e estearato de colesterol e
cálcio. Os cálculos de pigmento negro raramente medem mais de 1,5 cm de diâmetro, quase sempre
estão presentes em grande número (com uma relação inversa entre tamanho e número; Figura
18.60) e são muito friáveis. Em geral, eles apresentam contornos espiculados e moldados. Os
cálculos marrons tendem a ser laminados e moles e podem apresentar uma consistência saponácea
ou oleosa. Cerca de 50 a 75% dos cálculos de pigmento negro são radiopacos, devido aos sais de
cálcio, ao passo que os cálculos marrons, que contêm sabões de cálcio, são radiotransparentes. As
glicoproteínas de mucina constituem o arcabouço e o cimento entre as partículas de todos os tipos
de cálculos.
Figura 18.59 Colesterolose. A mucosa da vesícula biliar mostra uma lâmina própria distendida por
macrófagos espumosos.

Características clínicas
Os cálculos biliares podem estar presentes por várias décadas antes do aparecimento de sintomas, e 70
a 80% dos pacientes permanecem assintomáticos durante toda a vida. Os indivíduos assintomáticos
passam a ser sintomáticos em uma taxa média de até 4% por ano, embora o risco diminua com o
passar do tempo. Os pacientes sintomáticos com “cólica” biliar apresentam dor excruciante, embora
essa designação seja incorreta, visto que a dor é normalmente constante, e não em cólica. Com
frequência, a dor ocorre após uma refeição gordurosa, que induz a contração da vesícula biliar, o que
comprime o cálculo contra a saída da vesícula biliar, resultando em aumento de pressão e, por fim,
dor. Esta está localizada no quadrante superior direito ou na região epigástrica e pode irradiar para o
ombro direito ou as costas. A inflamação da vesícula biliar (colecistite, discutida adiante) em
associação a cálculos também produz dor. As complicações mais graves incluem empiema,
perfuração, fístula, inflamação da árvore biliar (colangite), colestase obstrutiva e pancreatite. Quanto
maiores forem os cálculos, menor será a probabilidade de eles entrarem nos ductos císticos ou no
colédoco para provocar obstrução; os cálculos muito pequenos ou “areia” são os mais perigosos. Em
certas ocasiões, um cálculo grande pode causar erosão direta em uma alça adjacente do intestino
delgado, provocando obstrução intestinal (“íleo biliar” ou síndrome de Bouveret). Os cálculos biliares
também estão associados a risco aumentado de carcinoma de vesícula biliar (discutido adiante).
Figura 18.60 Cálculos biliares pigmentados. Vários cálculos biliares negros e facetados estão presentes
nessa vesícula biliar normal sob os demais aspectos de um paciente com prótese mecânica de valva mitral,
levando à hemólise intravascular crônica.

Colecistite
A inflamação da vesícula biliar pode ser aguda, crônica ou aguda sobreposta à crônica. Ela ocorre
quase sempre em associação a cálculos biliares. Nos EUA, a colecistite é uma das indicações mais
comuns para cirurgia abdominal. A sua epidemiologia acompanha estreitamente a dos cálculos
biliares.

Colecistite aguda
A colecistite aguda é precipitada, em 90% dos casos, por obstrução do colo da vesícula biliar ou
do ducto cístico por um cálculo. A colecistite calculosa aguda constitui a principal complicação dos
cálculos biliares e a razão mais comum para colecistectomia de emergência. A colecistite sem cálculos
(colecistite acalculosa) também pode ocorrer em pacientes em estado clínico grave e representa os
10% restantes de casos.

Patogênese
A colecistite calculosa aguda resulta da irritação química e da inflamação de uma vesícula biliar
obstruída por cálculos. A ação das fosfolipases da mucosa hidrolisa as lecitinas luminais a
lisolecitinas tóxicas. Ocorre ruptura da camada de muco de glicoproteína normalmente protetora, com
consequente exposição do epitélio da mucosa à ação detergente direta dos sais biliares. As
prostaglandinas liberadas dentro da parede da vesícula biliar distendida contribuem para as
inflamações da mucosa e mural; a distensão e o aumento da pressão intraluminal comprometem o
fluxo sanguíneo para a mucosa. Esses eventos ocorrem inicialmente na ausência de infecção
bacteriana; entretanto, posteriormente, durante a evolução, pode haver sobreposição de infecção
bacteriana, exacerbando o processo inflamatório. A colecistite calculosa aguda é comum, sobretudo
em pacientes diabéticos que apresentam cálculos biliares sintomáticos.
Acredita-se que a colecistite acalculosa aguda resulte de isquemia. A artéria cística é uma
artéria terminal sem circulação colateral. Os fatores que contribuem para tal podem incluir inflamação
e edema da parede (comprometendo o fluxo sanguíneo) e estase da vesícula biliar, devido ao acúmulo
de microcristais de colesterol (lama biliar), bile viscosa e muco, causando a obstrução do ducto cístico
na ausência de cálculos. Em geral, essa doença ocorre em pacientes agudamente enfermos, que estão
hospitalizados por condições não relacionadas. Os fatores de risco para a colecistite acalculosa aguda
incluem: (1) sepse com hipotensão e falência múltipla de órgãos; (2) imunossupressão; (3)
traumatismo significativo e queimaduras; (4) diabetes melito; e (5) infecções.

Morfologia

Na colecistite aguda, a vesícula biliar normalmente está aumentada e tensa e pode assumir uma
coloração vermelho-brilhante ou manchada, violácea a negro-esverdeada, conferida pelas
hemorragias subserosas. Com frequência, a serosa é coberta por um exsudato fibrinoso, que pode
ser fibrinopurulento nos casos graves. Não há diferenças morfológicas específicas entre as
colecistites acalculosa e calculosa aguda, exceto a ausência de cálculos na forma acalculosa. Na
colecistite calculosa, comumente existe um cálculo que causa obstrução no colo da vesícula biliar
ou no ducto cístico. A luz da vesícula biliar contém um ou mais cálculos e está preenchida com bile
turva misturada com fibrina, pus e hemorragia. Quando o exsudato consiste em pus praticamente
puro, a condição é denominada empiema da vesícula biliar. Nos casos leves, a parede da vesícula
biliar está espessada, edematosa e hiperêmica. Nos casos mais graves, ela é transformada em um
órgão necrótico negro-esverdeado, denominado colecistite gangrenosa, com perfurações
pequenas a grandes. A invasão por mi crorganismos formadores de gás, notavelmente clostrídios e
coliformes, pode causar colecistite “enfisematosa” aguda. Do ponto de vista histológico, as
alterações precoces da colecistite aguda incluem edema, congestão e erosão da mucosa.
Normalmente, os neutrófilos estão esparsos, a não ser que haja infecção sobreposta.

Características clínicas
Os indivíduos com colecistite calculosa aguda geralmente (mas nem sempre) apresentaram episódios
anteriores de dor associada à vesícula biliar. Uma crise começa com dor abdominal progressiva no
quadrante superior direito ou na região epigástrica e dura mais de 6 horas. Com frequência, ela está
associada a febre baixa, anorexia, taquicardia, sudorese, náuseas e vômitos. A maioria dos pacientes
não apresenta icterícia; a ocorrência de hiperbilirrubinemia sugere obstrução do ducto colédoco. A
leucocitose leve a moderada pode ser acompanhada de elevação modesta dos níveis séricos de
fosfatase alcalina. A colecistite calculosa aguda pode aparecer de maneira notavelmente súbita e
constitui uma emergência cirúrgica aguda, ou pode se manifestar com sintomas leves, que regridem
sem intervenção médica. Na ausência de cuidados médicos, a crise geralmente desaparece em 7 a 10
dias e, com frequência, nas primeiras 24 horas. Todavia, até 25% dos pacientes desenvolvem sintomas
progressivamente mais graves, exigindo intervenção cirúrgica imediata. A recorrência é comum em
pacientes que se recuperam sem cirurgia.
Os sintomas clínicos da colecistite acalculosa aguda tendem a ser mais insidiosos, visto que são
obscurecidos pelas condições subjacentes que precipitam a crise. Uma maior proporção de pacientes
não apresenta sintomas relacionados com a vesícula biliar; por conseguinte, o diagnóstico depende de
um alto índice de suspeita. No paciente em estado grave, o reconhecimento precoce da condição é
crucial, visto que o seu não reconhecimento quase sempre cursa com uma evolução fatal. Em
consequência da demora no diagnóstico ou da própria doença, a incidência de gangrena e perfuração é
muito maior na colecistite acalculosa do que na calculosa. Em raros casos, a infecção bacteriana
primária por agentes como S. typhi e estafilococos pode dar origem à colecistite acalculosa aguda.
Além disso, pode ocorrer uma forma mais indolente de colecistite acalculosa aguda no contexto de
vasculite sistêmica, doença isquêmica aterosclerótica grave em indivíduos idosos, AIDS (em geral,
relacionada com a infecção por Cryptosporidium) ou infecção ascendente do trato biliar.

Colecistite crônica
A colecistite crônica pode ser uma sequela de surtos repetidos de colecistite aguda leve a grave;
todavia, em muitos casos, ela se desenvolve na ausência aparente de crises agudas antecedentes.
Como a colecistite está associada à colelitíase em mais de 90% dos casos, a população de pacientes de
risco é a mesma que a dos cálculos biliares. A evolução da colecistite crônica é obscura; não se sabe
ao certo se os cálculos biliares desempenham um papel direto na iniciação da inflamação ou no
aparecimento da dor, tendo-se em vista que a colecistite acalculosa crônica apresenta sintomas e
histologia semelhantes aos da forma calculosa. Na verdade, a supersaturação de bile predispõe à
inflamação crônica e, na maioria dos casos, à formação de cálculos. Microrganismos, geralmente E.
coli e enterococos, são cultivados a partir da bile em cerca de um terço dos casos. Diferentemente da
colecistite calculosa aguda, a obstrução do fluxo da vesícula biliar não é um pré-requisito.

Morfologia

As alterações morfológicas na colecistite crônica são extremamente variáveis e, às vezes, mínimas.


Em geral, a serosa é lisa e brilhante, mas pode se tornar fosca devido à fibrose subserosa. Pode
haver aderências fibrosas densas, que representam as sequelas de infecção aguda precedente. Em
cortes, a parede exibe espessamento variável e aparência opaca, branco-acinzentada. Nos casos não
complicados, a luz contém bile mucoide amarelo-esverdeada e, em geral, cálculos. A mucosa em si é
geralmente preservada.
Ao exame histológico, o grau de inflamação é variável. Nos casos mais leves, são encontrados
apenas linfócitos, plasmócitos e macrófagos dispersos na mucosa e no tecido fibroso subseroso
(Figura 18.61A). Nos casos mais avançados, ocorre acentuada fibrose subepitelial e subserosa,
acompanhada de infiltração de células mononucleares. A proliferação reativa da mucosa e a fusão
das pregas mucosas podem resultar em criptas de epitélio mergulhadas dentro da parede da
vesícula biliar. Projeções de epitélio da mucosa através da parede (seios de Rokitansky-Aschoff)
podem ser muito proeminentes (ver Figura 18.61B).
Em raros casos, ocorre calcificação distrófica extensa da parede da vesícula biliar (vesícula em
porcelana). Com mais frequência, há substituição completa da parede da vesícula biliar e da mucosa
por fibrose densa (colecistite hialinizante), com ou sem calcificação. Essa alteração é notável pela
sua associação à incidência aumentada de carcinoma de vesícula biliar (discutido adiante). Na
colecistite xantogranulomatosa, a vesícula biliar apresenta uma parede extremamente espessa e
está retraída, nodular e cronicamente inflamada, com focos de necrose e hemorragia. Ela é desen
cadeada pela ruptura dos seios de Rokitansky-Aschoff na parede da vesícula biliar, seguida de
acúmulo de macrófagos que ingeriram fosfolipídios biliares. Essas células que contêm lipídios com
citoplasma espumoso são denominadas células xantomatosas, o que explica o nome dessa condição.
Por fim, uma vesícula biliar atrófica, com obstrução crônica e frequentemente dilatada pode conter
apenas secreções claras, uma condição conhecida como hidropisia da vesícula biliar. Outras
formas raras de colecistite crônica incluem a colecistite esclerosante relacionada com IgG4, outra
manifestação da doença fibrosante relacionada a IgG4.
Figura 18.61 Colecistite crônica. A. A mucosa da vesícula biliar está infiltrada por células inflamatórias. B.
Evaginação da mucosa através da parede formando o seio de Rokitansky-Aschoff (que contém bile).

Características clínicas
A colecistite crônica não apresenta as manifestações características das formas agudas e caracteriza-se
normalmente por ataques recorrentes de dor epigástrica ou contínua no quadrante superior direito. As
náuseas, os vômitos e a intolerância a alimentos gordurosos são associações frequentes.
O diagnóstico da colecistite tanto aguda quanto crônica é importante, devido às seguintes
complicações:
• Superinfecção bacteriana com colangite ou sepse
• Perfuração da vesícula biliar e formação local de abscesso
• Ruptura da vesícula biliar com peritonite difusa
• Fístula entérica biliar (colecistoentérica), com drenagem de bile em órgãos adjacentes, entrada de
ar e bactérias na árvore biliar e possível obstrução intestinal induzida por cálculo biliar (íleo)
• Agravamento de doença médica preexistente, com descompensação cardíaca, pulmonar, renal ou
hepática.

Carcinoma de vesícula biliar


O carcinoma da vesícula biliar é a neoplasia maligna mais comum do trato biliar extra-hepático.
Nos EUA, cerca de 6 mil novos casos de câncer de vesícula biliar são diagnosticados a cada ano.
Existem amplas variações na incidência do câncer de vesícula biliar em todo o mundo, com algumas
regiões que abrigam os maiores números de casos, como Chile, Bolívia e norte da Índia. Até mesmo
nos EUA, certas áreas com grande número de populações nativas americanas ou hispânicas, como o
sudoeste, apresentam maior incidência de câncer de vesícula biliar do que o restante do país. O câncer
de vesícula biliar é pelo menos duas vezes mais comum em mulheres do que em homens, e essa
disparidade pode ser várias vezes maior em regiões de incidência mais alta. A esmagadora maioria
dos pacientes é diagnosticada em um estágio avançado cirurgicamente não ressecável, e a taxa de
sobrevida média em 5 anos é de menos de 10% para os pacientes afetados.

Patogênese
O fator de risco mais importante para o câncer de vesícula biliar (além do gênero e da etnia) é a
formação de cálculos biliares, que estão presentes em 95% dos casos. Entretanto, convém assinalar
que apenas 1 a 2% dos pacientes com cálculos biliares desenvolvem câncer de vesícula biliar. Na
Ásia, as infecções bacterianas ou parasitárias crônicas foram implicadas como fatores de risco, e a
coexistência de cálculos biliares com câncer de vesícula biliar é muito menor. No entanto, o traço
comum que liga os cálculos biliares ou as infecções crônicas com o câncer de vesícula biliar é a
inflamação crônica. As mutações condutoras relativamente comuns incluem aberrações de ganho de
função que afetam membros da família do gene do receptor de EGF (incluindo HER2) e genes que
codificam componentes de sinalização a jusante, como RAS, e mutações de perda de função no gene
supressor de tumor TP53, que estão presentes em até metade das neoplasias. Como é típico dos
cânceres com mutação de TP53, a maioria dos carcinomas de vesícula biliar exibe aneuploidia.
Morfologia

Foram descritas várias lesões precursoras do carcinoma de vesícula biliar, o que indica que (como é
típico do carcinoma em geral) o câncer totalmente desenvolvido tende a surgir a partir de um
processo gradativo e prolongado. Esses precursores incluem lesões planas in situ com graus
variáveis de displasia, lesões expansivas semelhantes ao adenoma, denominadas neoplasia tubular
papilar intracolecística e metaplasia intestinal. Os cânceres de vesícula biliar são principalmente
adenocarcinomas e, com frequência, são detectados no fundo da vesícula biliar (Figura 18.62). Eles
podem produzir uma massa firme e mal circunscrita ou podem infiltrar de modo difuso a parede da
vesícula biliar, simulando a aparência macroscópica da colecistite crônica. Ao exame microscópico,
eles caracterizam-se comumente pela presença de glândulas incorporadas no estroma
desmoplásico; todavia, em alguns casos, a atipia citológica e a resposta do estroma são mínimas;
nesses casos, a identificação de invasões perineural e vascular ajuda a estabelecer o diagnóstico.
Com a progressão, ocorrem extensão direta em outros órgãos, formação de fístula, disseminação
peritoneal e biliar e metástases para o fígado e os linfonodos porta-hepáticos. Raramente, outros
tipos de neoplasias malignas surgem, principalmente dentro da vesícula biliar, incluindo neoplasias
neuroendócrinas, carcinoma de células escamosas e sarcomas.
Figura 18.62 Adenocarcinoma de vesícula biliar. A. A vesícula biliar aberta contém uma grande neoplasia
exofítica, que praticamente preenche a luz. B. Glândulas malignas são observadas infiltrando a parede da
vesícula densamente fibrótica.

Características clínicas
O diagnóstico pré-operatório de carcinoma da vesícula biliar é mais a exceção do que a regra,
ocorrendo em menos de 20% dos pacientes. Os sintomas de apresentação clínica são insidiosos e
normalmente indistinguíveis daqueles associados à colelitíase, incluindo dor abdominal, icterícia,
anorexia, náuseas e vômitos. Se a neoplasia for detectada antes da invasão e da disseminação, como
no caso de achado incidental de carcinoma durante uma cirurgia para cálculos biliares sintomáticos ou
colecistite aguda, é possível obter a cura por meio de ressecção cirúrgica. Entretanto, a maioria dos
pacientes apresenta doença avançada por ocasião do diagnóstico, e o prognóstico global para esses
pacientes é sombrio, mesmo com ressecção aparentemente completa de neoplasia evidente. Com
frequência, a quimioterapia adjuvante é oferecida a esses pacientes, porém não é curativa, e a maioria
deles acaba sucumbindo à doença.

Conceitos-chave

Doenças da vesícula biliar

• As doen ças da vesícula biliar incluem colelitíase, colecistites aguda e crônica e câncer de vesícula
biliar
• Os cálculos biliares são comuns nos países ocidentais. A maioria consiste em cálculos de
colesterol. Os cálculos pigmentados, que contêm bilirrubina e cálcio, são mais comuns nos países
asiáticos
• Os fatores de risco para o desenvolvimento de cálculos de colesterol incluem idade avançada,
sexo feminino, uso de estrogênio, obesidade e hereditariedade
• A colecistite quase sempre ocorre em associação à colelitíase, embora seja observada na ausência
de cálculos biliares em cerca de 10% dos casos. Os cálculos biliares também constituem um fator
de risco para o câncer de vesícula biliar
• A colecistite calculosa aguda é a razão mais comum para a realização de colecistectomia de
emergência
• Os cânceres de vesícula biliar estão associados a cálculos biliares na maioria dos casos.
Normalmente, eles são detectados tardiamente, devido aos sintomas inespecíficos, e, portanto,
apresentam prognóstico sombrio.

LEITURA SUGERIDA
Mecanismos de lesão e reparo do fígado
Gouw ASW, Clouston AD, Theise ND: Ductular reactions in human livers: diversity at the interface, Hepatology 54:1853,
2011. [Revisão das reações ductulares, a resposta de células-tronco dos fígados humanos em todas as doenças
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Kocabayoglu P, Friedman SL: Cellular basis of hepatic fibrosis and its role in inflammation and cancer, Front Biosci
(Schol Ed) 5:217, 2013. [Entrelaçando o que se sabe sobre as células estreladas hepáticas e outras células
miofibroblásticas do fígado com processos inflamatórios, fibrosantes e de doenças neoplásicas].
Koyama Y, Brenner DA: Liver inflammation and fibrosis, J Clin Invest 127(1):55–64, 2017. doi:10.1172/JCI88881. [Epub
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patologistas a evoluir o uso passado do termo “cirrose” para comunicar informações mais úteis sobre fibrose em
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fígado].
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fibrose/cirrose poderia regredir; veja também, no mesmo volume do periódico, às críticas dos revisores originais do
artigo (publicado apesar de suas objeções) e as respostas dos autores a elas. A história da Patologia acontecendo
diante de seus olhos].
Insuficiências hepáticas aguda, crônica e crônica agudizada
Bernal W, Wendon J: Acute liver failure, N Engl J Med 369:2525, 2013. [Excelente revisão clínica].
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2009. [Sobre a causa mais comum de falência hepática aguda que leva ao transplante].
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achados do Grupo de Estudo da Insuficiência Hepática Aguda].
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Hepatite viral
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entendemos sobre o vírus da hepatite C e as células que ele infecta].
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[Revisão sobre a infecção pelo vírus da hepatite E].

Doenças hepáticas autoimunes


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diagnosis of autoimmune hepatitis, Hepatology 48:169, 2008. [Conjunto de critérios ainda relevante para o diagnóstico
da hepatite autoimune].
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tratamento da colangite biliar primária].
Karlsen TH, Folseraas T, Thorburn D, et al: Primary sclerosing cholangitis – a comprehensive review, J Hepatol
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Lesão hepática induzida por fármacos e toxinas
Crawford JM: Histologic findings in alcoholic liver disease, Clin Liver Dis 16:699, 2012. [Um olhar completo sobre as
alterações morfológicas na doença hepática alcoólica e os mecanismos subjacentes que as produzem].
Gunawan B, Kaplowitz N: Clinical perspectives on xenobiotic-induced hepatotoxicity, Drug Metab Rev 36:301, 2004.
[Revisão abrangente e atual].
Kleiner DE: Drug-induced liver injury: the hepatic pathologist’s approach, Gastroenterol Clin North Am 46(2):273–296,
2017. [Revisão da maneira pela qual as alterações morfológicas são avaliadas no contexto da suspeita de lesão
hepática induzida por drogas].

Doença hepática gordurosa


Alpert L, Hart J: The pathology of alcoholic liver disease, Clin Liver Dis 20(3):473–489, 2016. [Revisão recente sobre a
patologia da doença hepática alcoólica].
Kleiner DE, Brunt EM: Nonalcoholic fatty liver disease: pathologic patterns and biopsy evaluation in clinical research,
Semin Liver Dis 32:3, 2012. [Tão competente quanto alguém pode ser sobre o assunto].

Doenças hepáticas herdadas


Perlmutter DH, Silverman GA: Hepatic fibrosis and carcinogenesis in α1-antitrypsin deficiency: a prototype for chronic
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sobre algumas doenças hereditárias crônicas usando a antitripsina α1 como o exemplo paradigmático].
Pietrangelo A: Genetics, genetic testing, and management of hemochromatosis: 15 years since hepcidin, Gastroenterology
149(5):1240–1251, 2015. [Revisão abrangente da genética da hemocromatose com ênfase na hepcidina no mecanismo
da doença].
Rosencrantz R, Schilsky M: Wilson disease: pathogenesis and clinical considerations in diagnosis and treatment, Semin
Liver Dis 31:245, 2011. [Revisão dos mecanismos da lesão hepática induzida por cobre na doença de Wilson com um
resumo útil das considerações de diagnóstico e tratamento].

Síndromes colestáticas
Desmet VJ: Congenital diseases of intrahepatic bile ducts: variations on the theme “ductal plate malformation”,
Hepatology 16:1069, 1992. [Artigo clássico de patologia do fígado].
Hirschfield GM, Heathcote EJ, Gershwin ME: Pathogenesis of cholestatic liver disease and therapeutic approaches,
Gastroenterology 139:1481, 2010. [Visão geral completa das características mais comuns da doença hepática].
Paumgartner G: Biliary physiology and disease: reflections of a physicianscientist, Hepatology 51:1095, 2010. [Como o
trabalho de bancada exerce um impacto na medicina clínica, às vezes lentamente ao longo de décadas].
Tsui WM, Lam PW, Lee WK: Primary hepatolithiasis, recurrent pyogenic cholangitis, and oriental cholangiohepatitis: a
tale of 3 countries, Adv Anat Pathol 18:318, 2011. [Revisão que revela muito sobre as doenças discutidas, bem como as
histórias variáveis da compreensão médica em diferentes regiões do globo].

Distúrbios circulatórios
Guido M, Alves VAF, Balabaud C et al: Histology of portal vascular changes associated with idiopathic non-cirrhotic
portal hypertension: nomenclature and definition, Histopathology 74(2):219–226, 2019. [Fornece uma revisão do
espectro de alterações histológicas e uma nomenclatura unificadora].

Neoplasias hepáticas benignas e malignas


Choi WT, Kakar S: Atypical hepatocellular neoplasms: review of clinical, morphologic, immunohistochemical, molecular,
and cytogenetic features. Adv Anat Pathol 25(4):254–262, 2018. [Revisão dos aspectos patológicos e moleculares dos
adenomas e tumores atípicos com características limítrofes do CHC].
International Consensus Group for Hepatocellular Neoplasia: Pathologic diagnosis of early hepatocellular carcinoma,
Hepatology 49:658, 2009. [Um bom exemplo de como as mudanças chegam à medicina, pela combinação de esforços
individuais ao longo de anos, para alcançar um novo consenso].
Massarweh NN, El-Serag HB: Epidemiology of hepatocellular carcinoma and intrahepatic cholangiocarcinoma, Cancer
Control 24(3): 1073274817729245, 2017. [Revisão da epidemiologia e tendências em carcinomas hepatocelulares e
colangiocarcinoma].
Rizvi S, Khan SA, Hallemeier CL et al: Cholangiocarcinoma—evolving concepts and therapeutic strategies, Nat Rev Clin
Oncol 15(2):95–111, 2018. [Revisão da epidemiologia, patogênese e manejo do colangiocarcinoma].
Sempoux C, Chang C, Gouw A et al: Benign hepatocellular nodules: what have we learned using the patho-molecular
classification, Clin Res Hepatol Gastroenterol 37(4):322–327, 2013. [Da equipe amplamente responsável pelas novas
subclassificações moleculares dos adenomas hepatocelulares].
Vogel A, Cervantes A, Chau I et al: ESMO Guidelines Committee: hepatocellular carcinoma: ESMO Clinical Practice
Guidelines for diagnosis, treatment and follow-up, Ann Oncol 29(Suppl 4):iv238–iv255, 2018. [Revisão das diretrizes
para diagnóstico e manejo do CHC].
WHO Classification of Tumours Editorial Board: Digestive System Tumors, Lyon, France, 2019, International Agency for
Research on Cancer. [Classificação da OMS de séries de tumores, ed 5, vol 1].
a
Somos extremamente gratos às contribuições dos doutores James Crawford e Neil Theise para este capítulo nas várias
últimas edições deste livro.
a

SUMÁRIO DO CAPÍTULO
Anomalias congênitas
Pancreatite
Pancreatite aguda
Pancreatite crônica
Cistos não neoplásicos
Cistos congênitos
Pseudocistos
Neoplasias
Neoplasias císticas
Carcinoma de pâncreas
Precursores do câncer de pâncreas
Carcinoma de células acinares
Pancreatoblastoma

O pâncreas adulto é um órgão retroperitoneal de orientação transversal, que se estende desde a


alça em C do duodeno até o hilo esplênico (Figura 19.1). Embora o órgão tenha recebido seu
nome do grego pankreas (“todo de carne”), trata-se, na verdade, de um complexo órgão
lobulado, com componentes exócrinos e endócrinos distintos.
O pâncreas exócrino representa 80 a 85% do órgão e é composto por células acinares.
Essas células epiteliais de forma piramidal contêm grânulos delimitados por membrana ricos
em proenzimas (zimogênios), incluindo tripsinogênio, quimiotripsinogênio,
procarboxipeptidase, pró-elastase, calicreinogênio e pró-fosfolipase A e B, todas as quais
contribuem para a digestão. Após secreção, essas proenzimas e enzimas são conduzidas por
uma série de dúctulos e ductos até o duodeno, em que são ativadas por clivagem proteolítica
(descrita adiante).
O pâncreas endócrino é composto por cerca de 1 milhão de grupos de células endócrinas,
as ilhotas de Langerhans, que estão espalhadas por toda a glândula. As células das ilhotas
secretam insulina, glucagon, somatostatina e polipeptídio pancreático. Embora constituam
apenas 1 a 2% da massa do órgão, os hormônios liberados pelas células das ilhotas são
reguladores essenciais do metabolismo sistêmico. As doenças do pâncreas endócrino são
descritas de modo detalhado no Capítulo 24.

Anomalias congênitas

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