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Ireny Caldeira de Souza Oliveira

José Lúcio Ferreira Higino

2ª edição atualizada por


José Lúcio Ferreira Higino

Filologia românica

2ª EDIÇÃO

Montes Claros/MG - 2014


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Chefe do Departamento de Política e Ciências Sociais/Unimontes


Carlos Caixeta de Queiroz
Autores
Ireny Caldeira de Souza Oliveira
Especialista em Filologia (curso em andamento. PUC - Minas); Docência de Ensino Superior
(disciplina isolada do Mestrado em Desenvolvimento Social – Unimontes); Linguística Aplicada
ao Ensino de Português (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas);Língua
Portuguesa: Leitura e Produção de Textos(PUC-Minas); Língua Portuguesa (PUC-Minas):
Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (PUC-Minas); Língua Portuguesa (PUC-Minas): Língua
Portuguesa e Literatura Brasileira (Fundação Norte Mineira de Ensino Superior – FUNM –
Unimontes). Graduada em Letras /Francês e suas Literaturas pela Unimontes (FUNM). Curso
Superior de Francês (Alliance Française -FUNM).Professora, organizadora e conteudista dos
Cadernos de texto das disciplinas: Fundamentos do Português; Literatura Infantil; Leitura
e Produção Textual; Fundamentos do Ensino de Português (para o curso Normal Superior
(Unimontes); das disciplinas Estilística, Filologia, Fundamentos da Linguística; Linguística
Aplicada, Língua Portuguesa, Semântica, Gramática Histórica(para os cursos emergenciais
e modulares de Letras/Português e Letras/Inglês). Atualmente: Coordenadora da área de
Português do Projeto NAP/Unimontes; Professora dos cursos de Letras/Português, Administração
e Ciências Contábeis. Professora, com experiência em ensino superior, há 30 anos.

José Lúcio Ferreira Higino


Especialista em Ensino de Língua Inglesa e graduado em Letras/Inglês pela Universidade
Estadual de Montes Claros – Unimontes.Atualmente, é professor do Departamento de
Comunicação e Letras da Unimontes e Professor Conteudista e Formador dos Cursos de Letras da
Universidade Aberta do Brasil – UAB.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Unidade I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Filologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 Filologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.3 Filologia: da sntiguidade ao século XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1.4 A filologia na idade média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

1.5 O século XIX e a Filologia comparada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

1.6 Diacronia das línguas românicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
O trabalho filológico e seus métodos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

2.2 Crítica textual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

2.3 Crítica Histórico-Literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

2.4 Edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

2.5 Métodos da filologia românica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Referências básicas, complementares e suplementares . . . . . 45

Atividades de Aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Letras Português - Filologia Românica

Apresentação
Prezados Acadêmicos e Acadêmicas,

Com muita satisfação, damos-lhes as boas-vindas ao estudo de Filologia Românica. Somos


José Lúcio Ferreira Higino e Ireny Caldeira de Souza Oliveira, professores de Filologia Românica,
na Universidade Estadual de Montes Claros. Esperamos despertar, em todos vocês, o interesse e
o gosto por essa disciplina.
Devido à exiguidade da extensão do curso, bem como ao imenso e rico campo de estudo da
Filologia Românica, ater-nos-emos, atendendo à nossa ementa, aos principais pontos da histó-
ria externa das línguas românicas, com uma visão geral dessas línguas, especialmente da língua
portuguesa. A história interna, embora interdependente, será explorada em seus aspectos estri-
tamente relevantes, mesmo porque, esta será estudada em disciplina específica.
Filologia Românica estuda a formação das línguas, ditas românicas, do português ao rome-
no, passando pelo castelhano, catalão, gascão, provençal (hoje occitano), francês, rético (com
suas três variedades), sardo, italiano e dalmático.
A Filologia é uma ciência multidisciplinar e, para alcançar seus objetivos, conta com o auxílio
de todos os ramos do conhecimento, isso porque considera a língua uma herança social, de evo-
lução multissecular. Adquirimos e desenvolvemos a língua materna na nossa família, no nosso
meio social, não a inventamos e nem nos cabe o direito de modificá-la. E, ao mergulhar em sua
fascinante história, conheceremos a sua verdadeira estrutura, desde a ortografia à semântica, do
léxico à morfologia e à sintaxe.
Como vimos, além de agradável, o estudo da Filologia Românica é fundamental para a for-
mação do professor de línguas, sobretudo, do português e espanhol, pois possibilitará visão ge-
ral da formação e evolução das chamadas línguas românicas, isto é, aquelas que se formaram a
partir da modificação do latim vulgar introduzido pelos romanos na Península Ibérica.

Bom estudo!

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Letras Português - Filologia Românica

UNIDADE I
Filologia
Ireny Caldeira de Souza Oliveira
José Lúcio Ferreira Higino

1.1 Introdução DICA


Caro(a) acadêmico(a), nesta unidade aprenderemos, um pouco, sobre a Filologia, o significa- A necessidade de cons-
do do vocábulo, sua origem e sua trajetória até os dias atuais. Veremos, também, a diacronia das tituir textos autênticos
se faz sentir quando um
línguas românicas, isto é, estudaremos a formação e evolução dessas línguas, até o presente. povo de alta civilização
toma consciência dessa
civilização e deseja pre-

1.2 Filologia
servar dos estragos do
tempo as obras que lhe
constituem o patrimô-
nio espiritual; salvá-las
não somente do olvido
A palavra Filologia provém de dois radicais gregos: phílos,“amigo”, “amante”, e logos, “es- como também das
tudo,” “ciência” (φιλό-λόγόα). O vocábulo entrou na língua portuguesa por intermédio do la- alterações, mutilações
tim philologus,“amigo das letras”, cujo significado etimológico é “amor da ciência”, “culto da e adições que o uso
popular ou o desleixo
erudição”. A palavra passa às línguas modernas de cultura como eruditismo. Francês: philo- dos copistas nelas
logie; espanhol: filologia, de 1732;português e italiano: Filologia; inglês: philology, de 1614 introduzem. Tal necessi-
(provavelmente por meio do francês); alemão: Philologie, todos entre o século XIV e XVIII. O dade se fez já sentir na
termo não é unívoco; portanto, a partir de agora, vocês verão como ele recebe variadas defi- época dita Helenística
nições. Vamos lá! da Antiguidade grega,
no terceiro século a.C.,
Segundo Lázaro Carreter (1990, p. 187), a Filologia é “[...] ciência que estuda a linguagem, a quando os eruditos que
literatura e todos os fenômenos de cultura de um povo ou de um grupo de povos por meio de tinham seu centro de
textos escritos”. atividades em Alexan-
Pessoal, reparem a data desta fotografia: 1904. dria registraram por
O vocábulo “Filologia”, preocupando-se com as atividades da linguagem do homem e de escrito os textos da
antiga poesia grega,
suas manifestações através das obras de arte escritas nessa linguagem, mais as disciplinas que sobretudo Homero,
delas cuidam metodicamente, comporta vá- dando-lhes forma
rios conceitos em suas primeiras definições, definitiva. Desde então,
daí a conceituação variar de acordo com o que a tradição da edição
se segue abaixo. de textos antigos se
manteve durante toda
O significado da palavra Filologia quase a Antiguidade; teve
sempre esteve relacionado à ciência da cultura. igualmente grande
É uma ciência muito antiga, mas, modernamen- importância quando
te, o vocábulo tornou-se ambíguo, porque, com se tratou de constituir
o passar da história e dos acontecimentos no os textos sagrados do
Cristianismo (AUERBA-
mundo, outras ciências foram aparecendo com CH, 1972, p. 11).
campo definido de estudo sobre o que ante-
riormente era o objeto da Filologia.
Lausberg (1981, p. 21) aponta como seu
objeto de estudo as “obras” ou “textos”, tanto
os textos de uso pragmáticos, como também ◄ Figura 1: Typos das ruas
os textos de uso repetido, ou seja, literários. - O Aguadeiro.Edição:
Basseto (2005, p.17)assevera que “[...] o fi- F.A. Martins- n°2. Ano:
1904
lólogo é aquele que apreende a palavra, a ex-
Fonte: Coleção Hugo
pressão da inteligência, do pensamento alheio D.Disponível em http://
e, com isso, adquire conhecimentos, cultura e postaisportugal.canalblog.
aprimoramento intelectual”. com. Acesso em 20 jul.
2009.

11
UAB/Unimontes - 3º Período

Dubois (1993, p. 278), em seu Dicionário de linguística, afirma que “a filologia é uma ciência
histórica que tem por objeto o conhecimento das civilizações passadas através dos documentos
escritos que aquelas nos deixaram, os quais nos permitem compreender e explicar as sociedades
antigas”.
Miazzi (1976, p.15) assume uma posição
clara e de consenso. Segundo ela, do ponto
de vista filológico, cabe ao romanista a pes-
Figura 2: Uma letra “P” ► quisa e publicação de textos, enquanto, no
capitular iluminada na plano linguístico, estuda ele os múltiplos
Bíblia de Malmesbury, aspectos da história das línguas neolati-
um livro medieval nas, sua evolução a partir do latim vulgar,
Ficheiro: Histórico as influências externas que receberam, os
de edições de
“Iluminura”.
contactos que mantiveram entre si, a sua
Fonte: Disponível em
fragmentação dialetal, enfim, todos os fenô-
Wikipédia,a enciclopédia menos concernentes à fonética, à morfolo-
livre. Acesso em 20 jul. gia, à sintaxe e ao léxico.
2009.
Modernamente, com efeito, puramente
didático, alguns autores têm dividido o estudo
da Filologia em duas perspectivas:

• Da Linguística – que estuda, cientificamente, as línguas do ponto de vista sincrônico (em


uma dada época, em seu estado atual), ou seja, a Linguística Descritiva; e/ou diacrônico
(através dos tempos), ou seja, a Linguística Histórica. Mais especificamente, o que melhor
delimita este campo é o estudo comparativo e histórico das línguas.
• Da Filologia Textual/Crítica Textual – que estuda o processo de transmissão dos textos, com
o objetivo de restituir e fixar sua forma original. Embora, historicamente, a Crítica Textual te-
nha privilegiado o estudo dos textos literários, atualmente considera tanto os textos literá-
rios como os não literários.

Rosa Borges Santos Carvalho afirma:

... nossa abordagem amplia-se pelo terreno da Filologia Textual/Crítica Textual


que se caracteriza por sustentar uma investigação de natureza interdisciplinar,
ou seja, tanto a Filologia, enquanto crítica de textos, fornece matéria-prima –
textos fidedignos, portadores de conteúdos historiográficos, literários, doutri-
nários, lingüísticos – para diversos especialistas, linguistas, literatos, historiado-
res, por exemplo, quanto outras disciplinas oferecem subsídios para o trabalho
do filólogo. Teremos então de reconhecer à Crítica Textual um estatuto deter-
minante, na medida em que condiciona os objetos de outras disciplinas e in-
flui, consequentemente, na qualidade e no alcance dos respectivos produtos,
nas edições que apresenta. Por mais rígidos que sejam os pesquisadores, se
não forem precavidos quanto aos cuidados críticos relacionados à constitutio-
textus, se não tiverem por base um texto crítico, poderão ter questionadas as
suas conclusões (CARVALHO, 2003,p.35).

Filologia x literatura

Figura 3: Imagem da A atual definição de Filologia não difere, em sua essência, daquela que se fazia
folha de rosto de um anteriormente, ou seja, como o disciplina do saber, continua estudando a lín-
manuscrito. gua e a literatura. No plano linguístico, a Filologia considera os vários aspectos
Fonte: Disponível em da história das línguas, sua evolução, as influências que receberam, a fragmen-
http://images.google.com. tação dialetal, todos os fenômenos relacionados com a fonologia, a morfolo-
br/imagens. Acesso em 20 gia, a sintaxe e o léxico (CARVALHO, 2003,p.35).
jul. 2009.

Quanto à literatura, trata dos autores e obras literárias; revisa a história da literatura através
dos movimentos culturais e estéticos, tendências e estilos mais relevantes; analisa temas, gêne-
ros e formas literárias comuns a diversas línguas e culturas; discute como as diferentes correntes
de pensamento têm influenciado na estética, na arte e na comunicação ao longo do tempo.

Enfim, as “Filologias” trabalham sobre as línguas, sobre os textos e sobre


as culturas, a partir de motivações diferentes. Cabe, portanto, ao filólogo
posicionar-se criticamente em relação aos objetos linguísticos, estético-lite-
rários e culturais (CARVALHO, 2003,p.35).

12
Letras Português - Filologia Românica

Houaiss(1970, p. 4599)define a Filologia em sua acepção mais geral, “como destinada a pes- Dica
quisar, estudar, perpetuar, através das manifestações linguísticas de um povo, seu gênio próprio, Linguística não é
sua civilização e sua evolução cultural”. Ainda, que “suas fontes de informações são os textos le- Filologia. Linguística é
gados por esse povo em diferentes épocas, textos não só literários, mas também religiosos, histó- o estudo da linguagem
ricos, filosóficos e científicos”. humana considerada
na base da sua mani-
festação como língua.
Trata-se de uma ciência

1.3 Filologia: da antiguidade ao desinteressada, que


observa e interpreta
os fenômenos linguís-

século XX
ticos para depreender
os princípios funda-
mentais que regem a
organização e o funcio-
namento da faculdade
O estudo da língua inicia-se com os Hindus, os quais sentiram necessidade de preservar da linguagem entre os
os textos religiosos contidos nos Vedas, considerados sagrados, para que os hinos e cânticos homens, a) numa dada
não sofressem nenhuma alteração, durante a sua execução nos ritos religiosos, pois sendo língua, b) numa família
ou bloco de línguas, c)
apenas falada, a língua tende a deturpar-se. Esse povo, então, passou a pesquisar e estudar nas línguas em geral
sobre sua língua, resultando em trabalhos considerados muito mais completos do que os da (CÂMARA JR., 1986,
gramática tradicional do ocidente, no que diz respeito à fonética e à estrutura interna dos p.159).
vocábulos.
Deu-se, na Índia, maior importância à língua escrita, pois os textos sagrados induziram DICA
naturalmente a isso. Trataram os hindus, melhor que os gregos, a fonética, havendo introdu- Continuando, no
zido as noções de raiz, afixo, flexão e desinência. Também distinguiram as classes de pala- mesmo verbete “Lin-
vras, fazendo distinção entre substantivo e verbo, preposições e particípios, e estabeleceram guística”, acrescenta
glossários, a fim de garantir a interpretação dos textos clássicos. Câmara: A Linguística
Os gramáticos hindus precederam os gregos nos estudos da língua; porém, mantiveram é uma ciência recente,
pois data do século
a tradição científica autônoma sem influência para fora do seu meio. Foram, finalmente, pou- XIX o estudo científico
co antes de 1.800, descobertos pelos linguistas do Ocidente, os quais estabeleceram uma e desinteressado dos
nova e maior síntese geral, expli- fenômenos linguísticos.
cativa de todo o contexto das lín- A princípio, concentra-
guas indo-europeias. va-se nos fenômenos
de mudança linguís-
Portanto, deste povo não tica através do tempo
podemos esquecer. Os Hindus como Linguística
tiveram como seu representan- Comparativa, especial-
te maior, nos estudos da língua, mente indo-europeia,
o gramático Pãnini, cuja obra só baseada na técnica
do comparativismo.
agora vem sendo conhecida. Ao Hoje, alargou-se-lhe o
estudar a língua Sânscrita, ele âmbito, distinguindo-
não ficou limitado apenas a estu- se, ao lado do estudo
dar os textos sagrados,mas estu- histórico (Linguística
dou, principalmente, a língua de Diacrônica), o estudo
descritivo (Linguística
seu tempo. Dedicou-se ao estudo Sincrônica), porque
do valor e do emprego das pala- “a fixidez aparente
vras e fez de sua língua,com preci- da língua, sendo uma
são e minúcias admiráveis, descri- realidade social, é que
ções fonéticas e gramaticais que a permite funcionar
nos grupos humanos
são modelares no gênero. Sua gra- como meio essencial de
mática foi modelo para muitos es- comunicação e esteio
tudiosos das Escolas Linguísticas de toda a vida mental
da era moderna. Pãnini estudou, – individual e coletiva”
observou e analisou esses textos, (CÂMARA JR. 1977,
p.39-40). (CÂMARA JR.,
e compilou a primeira gramática 1986, p.160)
do Sânscrito, expondo minuciosa-
mente em 4.000 regras o sistema
gramatical desta língua. ◄ Figura 4: O Livro dos
Vedas.
Fonte: Dados Técnicos.
Tradutor: Raul Xavier.
Coleção: Suprema Joia da
Sabedoria. Ano: 1972.

13
UAB/Unimontes - 3º Período

DICA BOX 1
Denominam-se Vedas Pāṇini (Devanāgarī significando “descendente de Paṇi”)
os quatro textos,
escritos em Sânscrito
por volta de 1500 a.C.,
Nascido em Gandhara (c.520 a.C. – c.460 a.C.), foi um gramático indiano que compôs uma
que formam a base gramática sânscrita com o nome Ashtadhyayi (sânscrito transliterado ashta = oito + adhyaya =
do extenso sistema de capítulo), constituída por 8.000 sutras ou aforismos, cuja consistência e encadeamento lógico
escrituras sagradas do apresentam notável rigor. A gramática de Pānini é convencionalmente usada para marcar o
hinduísmo, que repre- fim do Sânscrito Védico, introduzindo o Sânscrito clássico.O testemunho dos registros histó-
sentam a mais antiga
literatura de qualquer
ricos disponíveis leva a comunidade científica a reputá-la como a primeira gramática de uma
língua indo-europeia. língua produzida na história da civilização humana.Essa gramática foi traduzida pela primeira
Consistem de vários vez para uma língua europeia no alemão, por Böthtlingk, en Leipzig (Alemanha), entre 1837 e
tipos de textos, todos 1840. Pānini resume e sintetiza toda uma tradição (até então apenas oral) de gramáticos india-
datando aos tempos nos anteriores: refere pelo nome a 68 predecessores, inclusive o imediatamente anterior. Sua
antigos. O núcleo é
formado pelos Mantras
obsessão pelo estudo do sânscrito deve-se ao fato de que era considerada a “língua dos deu-
que representam hinos, ses”, e os eruditos davam-se conta de que ela se estava modificando ou “corrompendo”. Com
orações, encantações, efeito, cria-se então que apenas uma ligeira diferença ou erro de pronúncia poderia invalidar
mágicas e fórmulas uma vasta e complicada cerimônia religiosa da cultura local. Decorre disso o rigoroso estudo
rituais, encantos etc. fonético do sânscrito encontrado nesse texto: a análise da segunda articulação é tão profunda
Os hinos e orações são
endereçados a uma
que se admira pela sua modernidade. Trata-se, porém, de uma pseudociência, já que carece
grande quantidade por completo de uma base metodológica científica: prescinde por completo do conceito de
de deuses (e algumas fonema, e a palavra tem como constituinte fundamental o swara (ou sopro vocal), modificado
deusas), dos quais im- ao longo de sua trajetória pelos diferentes pontos de contato desde os pulmões. Os pontos de
portantes membros são articulação são descritos de modo tão exaustivo que chegam a dar uma verossímil impressão
Rudra, Varuna, Indra,
Agni etc. Os mantras
de cientificidade. A ciência ocidental tardaria mais de dois mil anos para alcançar tal grau de
são suplementados análise.
por textos relativos aos
rituais sacrificiais nos Fonte: Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Vedas . Acesso em 15 de ago. 2009
quais são utilizados es-
ses mantras e também Não podemos nos esquecer, também, que foi muito significativa a descoberta do Sânscrito,
textos explorando os no final do século XVIII, pelos sábios do Ocidente. Essa língua alcançou sua forma clássica e, a
aspectos filosóficos da partir de então, ela só se desenvolveu em seu vocabulário. Essa descoberta foi muito importante,
tradição ritual, narrati-
vas etc.
pois a partir dela pôde-se descrever o parentesco existente entre as diversas línguas. Os linguis-
Fonte: Disponível em tas perceberam, por exemplo, as semelhanças entre o sânscrito, o grego e o latim. O sânscrito
http://pt.wikipedia.org/ foi considerado língua-mãe de todas as outras línguas, mas isso durou pouco tempo, e logo se
wiki/Vedas . Acesso em 15
de ago. 2009.
percebeu que o sânscrito era uma língua irmã do latim e do grego, e que todas variavam de uma
língua ainda mais antiga. A partir daí, começa-se a comparar as línguas à procura de parentescos
entre elas.
Os saberes sobre a tradição gramatical da Índia foram fundamentais ao desenvolvimento
das pesquisas feitas pela corrente dos comparatistas. A linguística do século XIX revela clara in-
fluência dessa tradição e, estudos mais recentes, no campo da linguagem, comprovam a impor-
tância dos princípios propostos por Pãnini, tais como o da “exaustividade”, da “coesão” e da “eco-
Glossário nomia”.
Veda: em sânscrito, Foi na Grécia que o termo Filologia foi usado pela primeira vez, com variados sentidos em
vid- (reconstruída como relação às épocas e aos autores que o utilizavam. Antes de surgir como substantivo ou verbo (Fi-
sendo derivada do Pro-
to-Indo-Europeu weid-)
lologia e Filologar), foi encontrado como adjetivo (Filólogo) em Platão e em Aristóteles. O sig-
que significa conhecer, nificado etimológico da palavra é “o amigo da palavra”, sendo palavra, nesse caso, sinônimo de
escreve-se veda no alfa- expressão, exteriorização da inteligência, “por isso, o filólogo é aquele que apreende a palavra, a
beto devanágari e sig- expressão da inteligência, do pensamento alheio e, com isso, adquire conhecimentos, cultura e
nifica “conhecimento”. aprimoramento cultural”. (BASSETO, 2005, p.17). Mais tarde, quando a escrita se tornou mais co-
É a forma guna da raiz
vid- acrescida do sufixo
mum, o termo passou a designar aqueles que sabiam ler e escrever, e, depois, aqueles que gos-
nominal-a. Nos tempos tam de falar ou aprender, ouvindo.
modernos, estudos O estudo da língua, na Grécia, data do século V a.C. Os gregos pensavam e estudavam ape-
védicos são cruciais nas em sua própria língua. O estudo da língua era feito com a intenção de se compreender e pre-
para a compreensão da servar textos antigos, e como tomavam por base somente o grego, sem compará-lo com outras
linguística Indo-Euro-
peia, como também da
línguas, chegavam a falsas conclusões, pois davam mais valor às suposições do que às experiên-
história indiana antiga. cias. Assim, a base filosófica tornava as definições muito abstratas, e por ser puramente norma-
Fonte: Disponível em tiva, a gramática grega só ensinava a ler e aescrever. Apesar dessas restrições, “os gregos foram
http://pt.wikipedia.org/ os precursores dos estudos da linguagem por lançarem as bases fundamentais e as categorias
wiki/Vedas . Acesso em 15
de ago. 2009. gramaticais que permanecem até hoje traduzidas” (BORBA,1975, p.13).

14
Letras Português - Filologia Românica

A gramática era vista sob dois aspectos: “plano estético” (os procedimentos de estilo) e o Dica
“plano filosófico” (adequação da linguagem ao pensamento). Essa preocupação com a língua foi Correspondência
a base gramatical, estabelecida pelos gregos, que fundamentou os estudos linguísticos na Euro- entre som e símbolo- O
pa séculos depois, embora os gregos considerassem o estudo da língua não como gramatical, Sânscrito é fonetica-
mas sim como filosófico, tendo como tema central a relação pensamento/palavra, ou seja, o que mente preciso, isto é,
leva determinada coisa a ter aquele determinado nome. As gramáticas tinham como objetivo: cada som é represen-
tado através de um
símbolo único. Isto é
a) explicar e fixar a língua dos autores clássicos; bem diferente quando
b) proteger o grego, pois ao ser “falado por pessoas incultas”, correria o risco de corromper- vemos, por exemplo,
se. Os representantes dessa escola foram os bibliotecários Zenódoto, Aristófanes de Bizân- em português, que o
cio e Aristarco da Samotrácia. símbolo “x” pode ser
pronunciado e usado
de diversas formas.
Assim, fazendo a gramática parte da filosofia, os fatos linguísticos formaram a base das dis-
cussões por parte de filósofos das escolas filosóficas de Platão, Aristóteles, estoicos e sofistas. No
século III a.C., ao redor da biblioteca de Ale-
xandria– a chamada "escola "alexandrina""–
reuniam-se os sábios para fazer pesquisas ◄ Figura 5: Biblioteca ou
linguísticas e literárias. Além do conheci- Escola de Alexandria
mento fundamental, os sábios de Alexan- Fonte: Disponível em
http://www.angelfire.com/
dria davam grande importância ao saber al/alexandriano1/bibliot.
prático. html. Acesso em 15 ago.
Os textos escritos em épocas anterio- 2009.
res, como os de Homero, já não se mostra-
vam em estado de pureza, e para melhor
restabelecer o original e caracterizar os
manuscritos autênticos e apócrifos, os estu-
diosos usaram os conhecimentos de história, de geografia e de mitologia. Para Duarte Nunes, na
época dos alexandrinos, acreditava-se que o tempo desfigurava e corrompia as palavras. Esse sen-
timento, de certa forma, impregnaria o espírito racionalista dos filósofos e escritores dos séculos
XVII e XVIII, os quais precisavam se dar a certeza de que nada se tinha perdido e que as línguas na-
cionais eram até melhores que o latim para a expressão das ideias e sentimentos, uma concepção
que passou a perdurar após ter sido feita a opção pela expressão nas línguas vernáculas.
A língua grega da época helenística, isto é, o período da história da Grécia compreendido
entre a morte de Alexandre III (O Grande) da Macedônia em 323 a.C. e a anexação do Egito por
Roma em 31 a.C., já apresentava diferenças em relação à língua dos textos clássicos e pré-clás-
sicos. Para facilitar a leitura das obras publicadas e fazer comentários, os alexandrinos viram a
necessidade de preservar a língua, escrevendo gramáticas. Desse momento, até o século XIX, a
língua literária, então, passa a ser a língua mais “pura” e mais “correta” que a língua falada.
Os filólogos alexandrinos eram levados a estudar as antigas fases da língua e os traços dis-
tintivos dos dialetos gregos. Conforme Câmara Jr:

Assim, em um dicionário de Hesíquio, que viveu provavelmente no século V de


nossa era, encontramos não somente palavras áticas, mas, também, vocábulos
de outros dialetos gregos, do latim e, mesmo, de muitas línguas ‘não clássicas’,
tais como o egípcio, o acadiano, o lídio, o persa, o frígio, o fenício, o cita e o
parto. Vemos, assim, o início do estudo ‘de língua estrangeira’ como conse-
quência do estudo “filológico”(CÂMARA JR, 1986, p.19).

1.3.1 Os povos latinos

Os povos latinos foram influenciados pelos gregos em todos os aspectos humanos e sociais.
Entretanto, demonstraram grandes dificuldades em estabelecer regras e acordos com as teorias
gregas, mas terminaram ampliando os estudos casualmente. Adotaram, então, os pontos de vista
dos estoicos – que estudaram os problemas filosóficos da origem da linguagem, ao estudo da
lógica, retórica e pesquisas etimológicas buscando a verdade na origem das palavras–"a lingua-
gem se origina, naturalmente, na alma dos homens e a palavra expressa a coisa conforme a na-
tureza dela, suscitando, do mesmo modo, no ouvinte, uma impressão conforme a dita natureza"
(BORBA, 1975, p. 13), e dos alexandrinos, que, além de se ocuparem com o estabelecimento de
textos, também fizeram a crítica literária.

15
UAB/Unimontes - 3º Período

Nesse período, a preocupação com a relação coisa/nome foi substituída pela relação anomalia/
DICA analogia, sendo a anomalia a “falta de consequência continuamente observada entre palavra e pen-
samento” (BORBA, 1975, p. 14), e a analogia a “tendência niveladora da língua” (BORBA, 1975, p. 14).
A Biblioteca de Ale-
xandria se distinguiu A gramática surgida nesse período era puramente normativa, sendo usada para diferenciar
por ser um centro o certo do errado e estava ligada à interpretação de textos. Os romanos já reconheciam as partes
universal, aberto ao de um discurso, mas sem nomeá-las sujeito, predicado etc. Os primeiros tratados dirigidos aos
saber e à pesquisa sem escolares apareceram entre 37 e 52 d.C. e, depois, nos séculos IV e VI, outros também discursa-
fronteiras. O acervo da vam sobre as partes do discurso, as regras da retórica, métrica etc. Dessas partes do discurso, os
biblioteca teve uma
grande expansão no romanos distinguiam o Nome (substantivos e adjetivos), Pronome, Verbo, Particípio, Advérbio,
reinado de Ptolomeu Preposição, Conjunção e Interjeição, com a exclusão do Artigo, que não tinha correspondente
III, que solicitava livros em latim. A morfologia visava os sons (vogais, consoantes, semivogais, mudas etc.).
de todo o mundo para Em Roma, a gramática continuou a integrar-se à filosofia, e os filólogos a fazerem a crítica
copiar e utilizava os enquanto aprofundavam os estudos de retórica. A língua latina, por sua vez, deveria seguir as re-
mais diversos meios
para obtê-los. Com isso, gras elaboradas pelos gregos. Entre os estudiosos latinos, destaca-se Varrão (116 a27 a.C.), que es-
Alexandria se tornou creveu a obra De Língua Latina (Sobre a língua latina), a fonte principal dos estudos latinos “e fez
um grande centro de grande esforço para definir a Gramática ao mesmo tempo como ciência e como arte e que vislum-
fabricação e comércio brou, com mais lucidez que os gregos, o valor da oposição de aspectos no sistema do verbo” (BOR-
de papiros, e uma le- BA,1975, p.19). Embora, com as mesmas limitações dos gregos, tenham criado semelhantes fanta-
gião de trabalhadores,
ao lado de inúmeros siosas explicações e derivações para as palavras, os romanos avançaram ao estudar duas línguas.
copistas e tradutores, Prosseguem-se os trabalhos filológicos numa compilação enciclopédica, tomando novo
dedicavam-se a esse rumo com as escolas dos séculos III, IV e V d. C, cujos nomes representativos são Cássio Longino,
ofício. Dizem que a Porfírio, Donato, Macróbio e Prisciano. Donato e Prisciano produziram uma gramática que serviu
biblioteca chegou a de suporte didático da Idade Média até o século XVII. Eles estudaram, sobretudo, a língua literá-
ter 700.000 pergami-
nhos. Era suporte para ria, portanto, o latim clássico, apoiando-se em Cícero e Virgílio.
estudos de diversas Outra obra significativa, que teve seu uso por muito tempo, foi De nuptiis Philologie et Mer-
áreas do conhecimen- curii (Sobre as bodas da Filologia com Mercúrio), escrita por Marciano Capela (Martianus Capella)
to, como Filosofia, no século V, que, partindo das ideias de Isócrates e de Aristóteles, reuniu em torno das obras-pri-
Matemática, Medicina, mas da poesias partes do conhecimento humano e as valoriza por essa função.
Ciências Naturais e
Aplicadas, Geografia,
Astronomia, Filologia,

1.4 A filologia na idade média


História, Artes etc. Os
pesquisadores alexan-
drinos organizavam ex-
pedições para aprender
mais em outras partes
do mundo e desenvol- Na Idade Média, os bizantinos deram continuidade à tradição filológica clássica, muito lon-
veram tanto as ciências ge do antigo esplendor. Entre eles, sobressai-se Fócio, no século IX. No Ocidente europeu, os
puras como as aplica- trabalhos filológicos entraram em visível decadência. O único trabalho digno de menção foi a
das. Fala-se de inúme-
cópia de manuscritos, pagãos ou cristãos, que os monges faziam nos mosteiros, seguindo a tra-
ras invenções, como
bombas para puxar dição inaugurada por Cassiodoro, no século V. Essa tarefa teve, porém, fundamental importância,
água, sistemas de en- porquanto, com a destruição das enormes bibliotecas de Alexandria e Constantinopla, foi graças
grenagens, odômetros, a tais cópias que se pôde salvar uma parte significativa da cultura clássica, a qual, de outro modo,
uso da força do vapor provavelmente teria desaparecido.
de água, instrumentos
musicais, instrumentos
para uso na astrono-
mia, construção de
espelhos e lentes.

Figura 6: O ►
cristianismo
ortodoxo, uma das
particularidades
doImpério Bizantino.
Fonte: Disponível em
www.brasilescola.com/
historiag. Acesso em 22
ago. 2009.

16
Letras Português - Filologia Românica

DICA
Durante a Idade Média,
a Igreja Católica deti-
nha grande poder na
Europa, fazendo com
que a sociedade, a cul-
tura e a política estives-
◄ Figura 7: Venda de sem sob o controle da
indulgências instituição. Este poder
concentrado fez com
Fonte: Arquivo pessoal dos
autores.
que os religiosos crias-
sem doutrinas absurdas
para extorquir dinheiro
do povo. É o caso da
venda de indulgências.
O indivíduo só conse-
guiria o perdão de seus
pecados mediante o
pagamento de uma
taxa equivalente ao pe-
cado cometido. Quanto
maior o pecado, maior
a taxa para a absolvi-
ção. Outra doutrina
O latim foi a língua do Estado e da Igreja, da diplomacia, da erudição e da cultura, língua era a simonia, ou seja,
de transmissão dos ensinamentos ministrados aos alunos nas escolas seculares e nas univer- a venda de relíquias
sidades, do estudo e explicação das Sagradas Escrituras, das discussões diplomáticas, dos en- como fios de cabelo de
contros entre intelectuais, enfim, ela fornecia os subsídios necessários para um maior desen- santos, pedaços da cruz
de Cristo e ossos da
volvimento da cultura medieval, sendo, com isso, uma marca de sua autonomia. O sagrado e tíbia dos apóstolos.
o profano, frutos da tradição escrita e oral, confluem no tecido linguístico desse latim. Sua gra-
mática foi escrita baseada em Donato e Prisciano, como auxiliar no ensino do latim nas escolas.
Língua que, ao ser levada e falada em outras regiões e países, se “corrompia”. No seu contato
com povos de língua “bárbara“, isto é, na propagação do cristianismo, a tradução da Bíblia em
gótico no século IV, em armênio no século V, e em eslavo no século IX, o latim alterou algumas
teorias da tradição greco-latina.
A Filologia, reconhecendo o particular, o individual, tornou-se estudo da língua, da gra-
mática e, também, comentários anedóticos. Seus objetivos eram os “de analisar e fixar o texto
correto; propor sua leitura correta; explicar
palavras e passagens incompreensíveis; for-
necer dados sobre o autor, sobre as fontes da
obra e as circunstâncias em que foi escrita; ◄ Figura 8: Manuscritos
julgar qualitativamente a mesma” (HOUAS- da Idade Média
SIS,1970, p. 4600).A tendência à exegese Fonte: Disponível em
images.google.com.br/im
alegórica foi herança dos estoicos, que se ages?gbv=2&hl=PTBR&q=
preocuparam muito com os problemas de imagens+de+manuscritos
significação – relação entre a palavra e o que &sa=N&start=80&ndsp=20
Acesso em 22 ago. 2009.
designa, entre significante e o referente. Essa
discussão reaparece no século XIII, com os
escolásticos, que veem na língua um instru-
mento de análise real.
Os primeiros Padres da Igreja – Agostinho, Ambrósio, Orígenes – com a intenção de carrear
toda produção escrita para as Escrituras, insistiram na tendência de que os sábios da Idade Média
achassem em todas as obras a sua origem e seu fim na teologia e na filosofia. Assim, a filolo-
gia passa por algum tempo no esquecimento. A tradição cultural fica sob a responsabilidade dos
monges a partir de Cassiodoro (século VI). As escolas irlandesas (séculos VI e VII), anglo-saxônica
(séculos VI e VIII) e carolíngia (séculos IX e X) ficaram responsáveis pela conservação dos manus-
critos clássicos, que depois serão materiais de estudos na Renascença. Os objetivos eram de in-
terpretações teológicas e, em razão da preocupação com a exegese alegórica, não viam relevân-
cia com a originalidade e a pureza do manuscrito.
Acadêmicos e acadêmicas, viram como é rica a história filológica? Vamos tomar fôlego, pois
ainda temos um pouco de caminhada cultural. Reparem o cuidado em produzir uma capa bonita
para os trabalhos!

17
UAB/Unimontes - 3º Período

DICA
O Império Romano sen-
tiu um de seus maiores
golpes quando, em
395, o imperador
Teodósio dividiu os
territórios em Império
Romano do Ocidente Figura 9: ►
e do Oriente. Em 330, Manuscrito
o imperador Constan- latino
tino criou a cidade de Fonte: Disponível
Constantinopla no local e http://images.
onde anteriormente google.com.br/
se localizava a colônia images?gbv=2&hl
=pt-BR&q=im
grega de Bizâncio. Não
agens+de+man
sentindo os reflexos uscritos&sa=N&
da desintegração do start= 966&ndsp
Império Romano, a =21. Acesso em 22
cidade de Constanti- ago. 2014.
nopla aproveitou de
sua posição estratégica
para transformar-se em
um importante centro
comercial. Cercada por
águas e uma imponen-
te fortificação, tornou-
se uma salvaguarda aos
conflitos que marcaram
o início da Idade Média.
Com o passar do tem-
po, o Império Bizantino
alcançou seu esplendor
graças à sua prospe-
ridade econômica e
seu governo centrali-
zado. No governo de Agora, vamos adentrar por mais um período importantíssimo da Filologia.
Justiniano (527 – 565),
o império implemen-
tou um projeto de
expansão territorial que 1.4.1 A renascença
visava a recuperar o
antigo esplendor vivido
pelo Antigo Império Sabe-se que, nessa época, o interesse pela Antiguidade greco-latina renasceu na Europa, se
Romano. bem que nunca tenha deixado totalmente de existir. Não obstante, antes da Renascença, não se
trabalhava sobre os textos originais dos grandes autores, mas, antes, sobre remanejamentos e
adaptações secundárias. A descoberta da medicina e do direito romano exigiram que se tives-
sem textos merecedores de fé.
No período anterior, não se importavam com esta verdade: os textos sofriam arranjos e
adaptações e os autores da Antiguidade Clássica eram lidos em manuais de épocas muito poste-
riores e, de longe, apenas mostravam a cultura literária greco-latina. Os textos autênticos teriam
sumido, desaparecido nas guerras, ca-
tástrofes, negligências e esquecimen-
to; e os existentes eram cópias, devi-
das, na maioria dos casos, a monges,
Figura 10: Monge ► e espalhadas por bibliotecas dos con-
escriba medieval. ventos. Muitas vezes elas estavam in-
Fonte: Disponível em completas, sempre inexatas, algumas
http://pt.wikipedia.org/ vezes mutiladas e fragmentárias ou
wiki/Idade_Média. Aces-
so em 23 ago. 2009.. eram simplesmente fragmentos dos
originais. De numerosas obras não
há praticamente autor da Antiguida-
de cuja obra inteira tenha chegado a
nós, e de muitos livros antigos se tinha
uma só cópia, muitas vezes totalmente
incompleta.

18
Letras Português - Filologia Românica

Mexias-Simon afirma:

(...)o trabalho que se impunha aos humanistas era, primeiramente, encontrar os


manuscritos que ainda existissem e, em seguida, compará-los e tentar extrair
a redação autêntica do autor. Era uma tarefa muito difícil. Alguns manuscritos
foram localizados pelos colecionadores, outros se perderam. Séculos transcor-
reram até que se reunisse tudo que existia. Um grande número de documentos
só foi descoberto muito mais tarde, nos séculos XVIII e XIX e nos chamados Pa-
pirus do Egipto, que, ainda recentemente, enriqueceram nosso conhecimento
dos textos, sobretudo da Literatura Grega. Em seguida, foi necessário compa-
rar e julgar o valor dos manuscritos. Eram, quase todos, cópias de cópias feitas
sobre cópias e essas já tinham sido escritas numa época em que a tradição já
estava muito obscurecida. Muitos erros foram introduzidos nos textos; alguns
copistas não sabiam ler bem a escritura de seu modelo, anterior, às vezes, de
vários séculos. Há troca de palavras, mudanças de posição e modificações arbi-
trárias. por falta de correto entendimento; os manuscritos podem também ser
alterados por censura, gastos pelo tempo e pelos vermes. A partir dos huma-
nistas, um método rigoroso de reconstituição foi estabelecido. Hoje em dia, é
possível fotografar os textos, o que evita novos lapsos. Quando o filólogo tem,
diante de si, várias versões do mesmo manuscrito, é preciso compará-las, por
um método preestabelecido. O trabalho do filólogo é o de um genealogista
(MEXIAS-SIMON, 2009, p.49).
DICA
A Filologia renasce fortemente com a tradição filológica árabe-islâmica, crescendo, a partir Alguns linguistas
do século IX, e influenciando o Ocidente, salvando documentos importantíssimos da Época Clás- contemporâneos
acham que a fala é um
sica. O grego e o latim, depois o hebraico, são estudados minuciosamente. A partir dessa época,
objeto de estudo mais
surge a edição de textos como pensam os estudiosos modernos. Ela se transforma no principal importante do que a
fundamento do humanismo, na Itália, primeiramente, depois em toda a Europa. No final do sécu- escrita. Talvez porque
lo XIII, muitos manuscritos são identificados e publicados. No século XIV, ressurge o interesse dos ela seja uma caracterís-
estudiosos para os documentos da Antiguidade. O grande invento de época é a descoberta da tica universal dos seres
humanos, e a escrita
imprensa que vem multiplicar, fielmente, os documentos.
não (pois existem
Dando continuidade ao nosso estudo, vamos aprender que, mesmo passando tantos sécu- muitas culturas que
los, a língua estudada era a escrita e literária, de escritores considerados “bons”. Os dados cientí- não possuem a escrita).
ficos serão considerados ao se estudar a veracidade das fontes desses documentos. À Filologia O fato de as pessoas
apresentam-se, então, duas perspectivas de estudo: aprenderem a falar e a
processar a linguagem
oral mais facilmente
a) Uma formal cujo representante foi Júlio César Escalígero(1484-1558) que exerceu grande e mais precocemente
influência, tanto pela disputa mantida com Erasmo de Roterdã como por suas edições das do que a linguagem
obras de Aristóteles e Teofrasto. Seu trabalho intitulado De Causis Linguae Latinae foi vis- escrita também é outro
to como a primeira proposta de uma gramática latina científica. Como médico, poeta e fator. Algunsacham
que o cérebro tem um
humanista, foi o modelo renascentista do sábio, do filólogo na acepção grega e latina. O
“módulo de linguagem”
termo “filólogo” volta a qualificar os expoentes intelectuais. inato e que podemos
b) Outra mais histórica e enciclopédica de José Justo(1540-1609), filho de Júlio César, pro- obter conhecimento
motorda escola holandesa do século XVII. Essa última tendência começa com Guillaume sobre ele estudan-
Budé(1468-1540), Robert Estienne (1503-1559) e seu filho Henri Estienne(1531-1598). do mais a fala que a
escrita.
Uma perspectiva ainda mais formal (língua escrita e literária) surge primeiramente no iní-
cio do século XVIII, em Cambridge, com Richard Bentley(1662-1742).

1.4.2 Os séculos XVII e XVIII

O tempo passa, outras tradições não tão velhas suscitam o interesse dos eruditos. As outras
línguas da Europa começam a despertar o interesse dos sábios. Surge a primeira gramática do Ir-
landês no século XII, uma do Provençal no século XIII, e várias do Francês, redigidas por viajantes
ingleses, nos séculos XIV e XV. O Basco já havia sido estudado no Século X. Todos esses trabalhos
só serão considerados durante a Renascença.
Em 1678, Charles Du Fresne Du Cange(1610-1688) publica seu Glossarium mediae et infimae
latinitatis (Dicionário da Latinidade média e ínfima). Familiarizado com muitas línguas, Du Cange
foi consultado por todos os lados, e obteve informações por meio de sua correspondência. Sua
forte energia foi em grande parte gasta com a história da França e de Constantinopla. Para garan-
tir uma base sólida para suas pesquisas, ele começou a dominar as línguas dos textos e foi inces-
sante em seus esforços para aumentar o seu conhecimento do Bizantino Grego e do Baixo Latim.

19
UAB/Unimontes - 3º Período

BOX 2

O Latinitatis Glossarium mediae et infimae, publicado originalmente por


Charles Du Fresne, SieurCanges (1610-1688), é um glossário de latim me-
dieval e latim da sua época. Esse livro é, apesar de sua idade, uma referên-
cia para a pesquisa histórica e linguística do Ocidente medieval. A edição
Figura 11: Du Cange ► eletrônica do Glossarium, com base nos arquivos resultantes da digitaliza-
Fonte: Disponível ção de imagens, é um modo de texto (codificação em XML de acordo com
emhttp://ducange.enc. o modelo TEI P5) do Glossarium. Atualmente, apenas o volume 6 do livro
sorbonne.fr/. Acesso em
2 ago.2009. (letras O, P, Q, é de cerca de 620 páginas, cerca de 6 000 páginas a serem
processados) é processado e disponível. O aplicativo é o resultado do tra-
balho de uma equipe multidisciplinar, incluindo um objetivo em longo
prazo que é o de ajudar a entender melhor a semântica do latim medieval.
Du Cange:
Breves sunt dies hominis... Sola aetemitas longa.
Breves são os dias dos homens... Apenas a eternidade é longa.

Fonte: Disponível em http://ducange.enc.sorbonne.fr/. Acesso em 2 ago. 2009.

Outro estudioso que deixou um legado também importante foi La Curne de Sainte-Palaye
(1697-1781). Ele pesquisou, nos textos medievais, a história dos trovadores e foi o precursor do
estudo comparativo das línguas românicas.
Queridos estudantes: são muitas informa-
ções, mas ainda temos muito a dizer, assim, vo-
cês compreenderão melhor. Vamos lá?
Os beneditinos de Saint-Maur-des-Fossés
(quer dizer Fossos; Fossatiem Latim Medieval),
uma abadia, nos arredores de Paris, fundada
em 638 pela Rainha Nanthild, regente pelo seu
Figura 12: Leibniz ► filho Clóvis II, começaram, em 1733, a publica-
Fonte: Disponível em ção da Histoire littéraire de France (História Lite-
http://www.guia.heu.
nom.br/leibnitz.htm. rária da França),na qual são analisados e inter-
Acesso em 05 abr.2014. pretados diversos documentos da Idade Média.
Também significativos foram os estudos
de Leibniz. Ele não admitia a teoria de que a
“língua-mãe” daria origem a outras línguas e
deixa claro, a todos, que os documentos anti-
gos só poderiam ser analisados e interpretados
em comparação com os de línguas modernas.
Em 1660, os gramáticos de Port-Royal, An-
toine Arnauld [1612-1694] e Claude Lancelot
[1616-1695], publicaram a Grammaire générale
et raisoné (Gramática de Port Royal), a primeira
tentativa mais coerente de oferecer uma teoria da gramática, com vista a incorporar as proprie-
dades universais da linguagem humana. Nela, eles defendiam uma filosofia da linguagem racio-
nalista, oposta à linguagem de modelo empirista, que surgirá depois. A linguagem seria regida
por princípios gerais, que são racionais. É marcante o encontro tenso da gramática particular pro-
duzida até então com a filosofia, num contexto em que o latim,

desafiado por um vernáculo após o outro como veículo de produção intelec-


tual, e totalmente inútil fora da Europa ocidental, estava empenhado numa ba-
talha desesperada. Defrontados com a perspectiva iminente da fragmentação
linguística numa escala desconhecida na Europa desde a partida dos romanos,
os eruditos e também o público reagiram, lançando o foco do interesse sobre o
aspecto universal da linguagem (WEEDWOOD, 2002, p. 96-97).

A luta da obra, então, é a de construir uma gramática que pudesse servir a todas as línguas,
sem aceitar uma língua específica como sendo universal. Assim, seria possível amenizar a frag-
mentação supracitada, dando, ao mesmo tempo, valor aos vernáculos. Após sua publicação,
passaram a exigir, dos falantes, clareza e precisão no uso da linguagem: ideias claras e distintas
deviam ser expressas de forma precisa e transparente. Sua principal intenção era mostrar que a

20
Letras Português - Filologia Românica

estrutura da língua é um produto da razão (LYONS, 1979). A gramática que desejavam construir DICA
deveria funcionar como uma máquina que pudesse separar automaticamente o que é válido do Leibniz e o Pensamento
que não é. O objetivo era traçar uma língua-ideal, universal, lógica, sem equívocos nem ambigui- Quase todas as obras
dades, capaz de assegurar a unidade da comunicação do gênero humano. de Leibniz estão escri-
É preciso, ainda, clarear um pouco mais sobre essa gramática. Vamos lá? tas em francês ou latim
Quanto à obra em si, a definição de gramática e do objeto de estudo deles já aparece na e poucas em alemão,
língua que não era mui-
primeira página, antes do prefácio, no qual Arnaulde e Lancelot (2001, p.3) deixam claro que a to destinada às obras
gramática é a arte de falar. Falar é explicar seus pensamentos por meio de signos que os homens de filosofia. Ortodoxas
inventaram para esse fim [...] Assim, pode-se considerar duas coisas nesses signos. A primeira: o e otimistas, proclaman-
que são por sua própria natureza, isto é, enquanto sons e caracteres. A segunda: sua significação, do que o plano divino
isto é, o modo pelo qual os homens deles se servem para expressar seus pensamentos. A Gramá- fez deste o melhor
de todos os mundos
tica de Port-Royal explicita o conceito de signo como meio, através do qual os homens exprimem possíveis, um ponto
seus pensamentos. A relação pensamento/linguagem era dada por princípios gerais, que se es- de vista satirizado por
tenderiam a todas as línguas. Voltaire (1694-1778),
No desenvolvimento dela, os autores se apegam na base lógica dos pensadores da época, no Candide. Leibniz
afirmando que há no espírito dos homens três operações: conceber (formar um conceito), julgar é conhecido entre os
filósofos pela amplitu-
(afirmar coisas a respeito dos conceitos) e raciocinar (fazer um julgamento a partir de julgamen- de de seu pensamento
tos já estabelecidos). Essas seriam a base da expressão dos pensamentos em todas as línguas, sobre ideias e princí-
por isso, segundo Weedwood (2002, p.99), “essas operações e as suas consequências linguísticas pios fundamentais da
são universais, elas podem ser exemplificadas por meio de qualquer língua”. filosofia, incluindo a
Além disso, Arnauld e Lancelot (2001)distinguem dois tipos de palavras: os objetos do pensa- verdade, os mundos
possíveis, o princípio
mento (nomes, artigos, pronomes, particípios, preposições e advérbios) e o modo do pensamento de razão suficiente
(verbos, conjunções e interjeições), afirmando a existência de uma ordem natural de expressão do (isto é, que nada ocorre
pensamento na qual essas palavras são exteriorizadas. Em linhas gerais, a análise feita no decor- sem uma razão), o
rer da obra tem características prescritivas e descritivas ao mesmo tempo. As primeiras aparecem princípio da harmonia
sempre que se referem às regras do bem falar, sem que seja dada uma explicação plausível sobre pré-estabelecida (Deus
construiu o universo de
a regra. Um exemplo é o capítulo sobre os advérbios. A descrição aparece toda vez que os autores tal modo que os fatos
da gramática se atêm numa análise mais detalhada e comparativa entre línguas, geralmente latim mentais e físicos ocor-
e francês, com um pouco de grego e hebraico. A utilização de poucas línguas faz com que, em rem simultaneamente),
alguns pontos determinados, o texto pareça apenas conter uma lista de regras do francês e do e o princípio de não
latim, como é o caso dos artigos que eles afirmam não se tratarem de uma característica presente contradição (que uma
proposição da qual se
em todas as línguas. Os critérios utilizados também são bastante flutuantes, mas geralmente le- pode derivar uma con-
vam em conta a significação, fato este que a aproxima da semântica, principalmente no que diz tradição é falsa). Teve
respeito ao conceito de proposição e de suas relações com as operações mentais. por toda a vida interes-
Deve-se ressaltar, aqui, que não se pode ignorar a contribuição da gramática filosófica aos se e perseguiu a ideia
estudos linguísticos. Dela é tributária a própria gramática tradicional, não só na sua divisão e es- de que os princípios
da razão pudessem ser
truturação enquanto compêndio, mas também na apresentação e descrição de fatos gramaticais, reduzidos a um sistema
principalmente na classificação e descrição dos sons fundamentais, na distribuição e classifica- simbólico formal, uma
ção das partes da oração, na divisão e classificação das orações, nas sintaxes de regência, concor- álgebra ou cálculo do
dância e construção etc. Disso testemunham os que sobre ela se debruçaram em algum momen- pensamento no qual
to de suas pesquisas. controvérsias seriam
acertadas por meio de
cálculos.
Fonte: Disponível em
http://gballone.sites.uol.
com.br/hlp/leibniz.html.
Acesso em 2 ago. 2009.

◄ Figura 13: Gramma-


ticaphilosophica da
língua portugueza ou
principios de gramma-
tica geral applicados à
nossa linguagem / por
J. S. B.
Fonte: Disponível em
http://purl.pt/128/2/l-
296-v_PDF/l-296-v_PDF_
24-C-R0072/l-296-v_
0000_capa-v_t24-
C-R0072.pdf. Acesso em:
2 ago. 2009.

21
UAB/Unimontes - 3º Período

DICA A Gramática de Port-Royal também exerceu grande influência entre os estudiosos eruditos
Antigamente, os de toda a Europa, por mais de dois séculos. Serviu de base para as gramáticas filosóficas portu-
homens escreviam guesa e italiana. Em Portugal, esse corte vem manifestar-se mais tardiamente, no final do século
utilizando diversos XVIII. A Academia das Ciências propôs premiação a quem escrevesse a melhor gramática filosófi-
suportes, tais como: ca. Muitos foram os concorrentes. Jerônimo Soares Barbosa é considerado o principal represen-
moedas, mármores, tante do movimento.
madeira, bronze,
papiros e pergaminhos. A gramática filosófica (Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza ou Principios da
Hoje, o suporte não é Grammatica Geral applicados à Nossa Linguagem), de Jerônimo Soares Barbosa, foi lançada nos
tão resistente nem tão primeiros anos do séculoXIX, sendo a 1ª edição, póstuma, em 1822, mas estava voltada para o
duradouro como os de espírito filosófico do século XVIII, com base na Gramática de Port-Royal (1660). Apesar de publi-
antes. O que se utiliza cada, em 1ª edição, em 1822, é de se deduzir que foi concluída em 1803, uma vez que sua Intro-
em larga escala desde
o Humanismo é o frágil dução data de 24 de junho desse ano.
papel. A umidade, a À época da Gramática de Port-Royal, desenvolve-se um pensamento para revalorizar e ree-
poeira, os fungos, o xaminar a história. Entre as figuras significativas desse período, destacou-se Giambattista Vico
sol, os insetos em geral (1668-1744) que escreveu De constantia philologiae (Sobre a continuidade da filologia) e La
podem desfazer e des- Scienza nuova (A Ciência nova), obras em que ele apresenta a teoria de uma nova ciência, cujo
truir a imensa massa de
papel em que está de- objeto seria o mundo histórico, por oposição ao mundo natural. Essa ciência se confunde com
positada toda a história a filologia. Há um vínculo entre filologia – no caso, estudo das obras como produto da vontade
da humanidade, ou humana – e a filosofia, fundada sobre a razão. A filologia, então, renasce e amplia os seus domí-
seja, aquilo que lhe é nios. Além disso, Vico publicou, em 1710, o De Antiquíssima Italorum Sapientia (A Antiga Sabe-
mais caro e precioso. O doria dos Italianos), no qual tentava apresentar a sabedoria dos sábios jônios e etruscos através
corpus que vem sendo
editado é constituí- de uma análise filológica das palavras latinas.
do por documentos A filologia renasce como uma “neofilologia” e se preocupa em estudar textos de línguas mo-
eclesiásticos – livros de dernas, cujos precursores são encontrados entre os editores das canções que vieram dos séculos
batismo, casamento e XIII e XIV. No final do século XVIII e início do seguinte há, paralela a uma “filologia clássica”, uma “fi-
óbito, e livro de tombo lologia germânica”, uma “filologia românica”, seguindo-se estudos filológicos do eslavo e do inglês.
– e cíveis: cartas de
alforria, queixa-crime,
inventários, certidões

1.5 O século XIX e a Filologia


de venda, declaração
de venda, cartas impe-
riais, correspondências

comparada
pessoais, queixas de
defloramento, livro de
notas de compra e ven-
da de escravos etc.

O Ocidente intensificou os seus contatos com a Índia só a partir do século XVI, com a utiliza-
ção das rotas marítimas, mas nesse primeiro século de relações mais frequentes entre Ocidente e
Oriente, chegaram à Europa poucas notícias relativas ao sânscrito, as quais não tiveram divulga-
ção, como as cartas de Filippo Sassetti a seus parentes, amigos e personalidades da Europa.
As referidas cartas só foram publicadas quase dois séculos mais tarde, na primeira metade do
século XVIII, em Prose Fiorentine, cujo volume II, parte IV, divulgou 34 delas. Não sabemos se, na
época, tiveram muita repercussão, mas no século XIX, certamente, foi-lhes atribuída importância
porquanto foram republicadas e comentadas. Duas cartas tornaram-se famosas: uma, dirigida a B.
Davanzati e outra a PierVettori, ou Valori, nas quais fazia referência às semelhanças que observara
entre o sânscrito e as línguas europeias, em particular o italiano, como por exemplo, devaḥ / dio,
“Deus”, sarpaW / serpe, “serpente”, sapta / sette, “sete”, aṣṭa / otto, “oito”, nava / nove, “nove”.
O jesuíta francês Gaston Coeurdoux e outros estudiosos fizeram observações semelhantes
quanto às comparações entre o grego e o latim. Coeurdoux fez uma comparação minuciosa das
conjugações do sânscrito, do grego e do latim, no fim da década de 1760, sugerindo uma possí-
vel relação entre eles. A hipótese ressurgiu em 1786, quando Sir William Jones deu sua primei-
ra palestra a respeito das semelhanças entre quatro das línguas mais antigas conhecidas na sua
época: o latim, o grego, o sânscrito e o persa. Foi Thomas Young quem usou, pela primeira vez, o
termo indo-europeu, em 1813, tornando-se o termo científico padrão (exceto na Alemanha) atra-
vés da obra de Franz Bopp, cuja comparação sistemática destas e de outras línguas antigas deu
suporte à teoria.
A Gramática Comparativa de Bopp, que surgiu entre 1833 e 1852, é considerada o ponto de
partida para os estudos indo-europeus como disciplina acadêmica, trazendo uma visão mais his-
toricista dos estudos gramaticais e abrindo perspectivas para o surgimento dos estudos linguís-
ticos. Bopp destaca elementos morfológicos: trata da importância das inflexões na conjugação
dos verbos, comparando esse fenômeno linguístico em várias línguas distintas.

22
Letras Português - Filologia Românica

Bopp preferiu o fenômeno à essência; estudou a língua ◄ Figura 14: Franz Bopp
por si mesma, através da sua fala, começando por comparar - O pai da Filologia
diversas línguas tradicionais, procurando descobrir seus pon- Românica
Fonte: Disponível em
tos de intersecção e suas estruturas mais remotas. Os estudos wapedia.mobi/PT/
gramaticais anteriores, que recaíam sobre o significado, passa- ficheiro:FranzBopp.jpg;
ram a priorizar o significante, e, aos poucos, a filosofia da es- Acesso em ago. 2009.
critura foi se ampliando em linguística da fala, inaugurando-se
assim, com Bopp, uma nova idade nos estudos linguísticos. A
gramática passa a se preocupar mais com o signo, as flexões, DICA
as raízes etc., e, segundo ele, há três tipos de línguas relativa- Padre Jerônimo Soares
mente às flexões e afixos: uma língua pode ser justa positiva, Barbosa (1737-1816) é
quando agrega os afixos à raiz, como é o caso do Chinês e do um filólogo português.
Basco; pode ser flexiva, quando flexiona internamente o ra- Bateu-se pela renova-
ção dos métodos de
dical, como no Sânscrito e no Celta; e finalmente, uma soma ensino de então, contra
dos dois casos anteriores, mistura de flexões e afixações, como a pedagogia dos jesuí-
ocorre no Árabe. Outra conclusão é de que o estudo de um sistema linguístico qualquer pode dar- tas, pela qual primeiro
se em duas direções: ou começa pela palavra (etimologia), ou pela estrutura (sintaxe) (DOMINGUES, se ensinava a gramática
1991, p.339), ou seja, ou pela palavra, tendo a raiz como seu elemento irredutível, ou pelas relações latina para, só então,
ensinar-se a do portu-
que ela estabelece. Bopp, portanto, se preocupou com o mistério das raízes. guês. Preconizava que
Vários estudiosos começam a afirmar, a partir da Gramática Comparativa, os conceitos de se procedesse primei-
“parentesco linguístico” e “protótipo comum”. Explicando: “duas línguas são aparentadas quando ramente ao ensino da
derivam de uma mesma língua – pertencem, então, à mesma família”’. Ex.: língua materna para
só então ensinar-se o
QUADRO 1 latim. Sua obra tem
Ramos linguísticos pertencentes ao Indo Europeu como fundamentação
teórica a da gramática
1. Germânico: alemão, inglês, holandês e sueco etc. geral e filosófica. Ela
apresenta, ao final de
2. Românico, provindo do latim: português, espanhol, francês, italiano etc. cada lição, orientações
aos mestres-escola.
3. Grego Como homem de seu
tempo, malgrado bater-
4. Indo-iraniano: sânscrito, persa etc. se pela renovação no
ensino, prescreve, em
5. Eslavo: russo, polonês, theco etc. sua gramática, normas
6. Celta: gaélico, bretão, gaulês etc. que atendiam a inte-
resses sócio-políticos
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados coletados em Ilari, 2002. e culturais. Malgrado
pautar-se por princípios
QUADRO 2 ligados à fé católica,
Outras famílias linguísticas num período eminen-
temente missionário,
1. Camito-semítica: hebraico, árabe, egípcio, etiópio etc. Soares Barbosa deu
contribuição deci-
2. Sino-tibetana: chinês, tibetano etc. siva para a reforma
do ensino da língua
3. Altaica: turco, mongol, mandchuetc. vernácula, especifica-
mente o português.
4. Ugro-fínica: finlandês, húngaro etc. Nela, Barbosa antecipa
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados coletados em Ilari, 2002. muitas das conclusões
apresentadas como
Ressalta- se, aqui, que, no decorrer do século XIX, os estudos filológicos são direcionados no sen- ovo-de-colombo por
tido de serem fixados princípios e métodos para a definição das famílias linguísticas, de uma teoria alguns estudiosos mais
recentes.
geral relacionada às mudanças linguísticas e às relações entre as línguas. Em 1840, surge, pela primei- Fonte: Disponível em
ra vez, o termo filologia comparada ou gramática comparada ou linguística histórica e comparada. http://www.ub.uio.no/uhs/
A corrente literária romântica ou Romantismo contribuiu para que as línguas da Europa ti- sok/fag/RomSpr/misling-
brasil/ponencias/abstrac-
vessem grande importância no cenário europeu. Os românticos discordavam que a tradição clás- tRanauro.pdf. Acesso em: 2
sica fosse modelo, em sua totalidade, na literatura. Para que isso acontecesse, procuraram conhe- ago. 2009.
cer e valorizar suas próprias raízes, editando textos alemães e estudando e analisando os dialetos
germânicos.
J.G.vonHerder (1744-1803) escreveu, em 1772, Abhandlung überden Ursprung der Sprache
(Ensaio sobre a origem da linguagem), oportunidade que teve de estreitar relações entre a lín-
gua e a mentalidade de um povo. Johann Gottfried Herder insistiu, também, no caráter natural
evolutivo da linguagem, que teria surgido da imitação dos sons da natureza e seria capaz de evo-
lução e crescimentos contínuos.

23
UAB/Unimontes - 3º Período

ATIVIDADE Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt (1767-1835), baseando-se
Reflita sobre o tre- na obra de Bopp que havia apresentado, com dados precisos, a aproximação do sânscrito com
cho da Gramática de as línguas europeias, procurou estudar a linguagem de um ponto de vista global e estabeleceu
Jerônimo abaixo e em uma teoria geral sobre ela. Atento às diferenças estruturais das diversas línguas, declarou que
seguida postesuas con- cada uma delas tem sua própria estrutura e que essa estrutura mostra e condiciona a maneira de
siderações no fórum, pensar e de manifestar-se de cada grupo étnico. Fez, também, importantes contribuições à filo-
Normas e Usos em Jerô-
nimo Soares Barbosa: O sofia da linguagem, à teoria e prática pedagógica e influenciou o desenvolvimento da filologia
primeiro estudo funda- comparativa. Foi reconhecido como sendo o primeiro linguista europeu a identificar a linguagem
mental “a todo homem humana como um sistema governado por regras, e não simplesmente uma coleção de palavras
bem creado”, esclarece, e frases acompanhadas de significados. Essa ideia é uma das bases da teoria da Linguagem, de
seria o da gramática da Noam Chomsky (gramática transformacional).
língua nacional, posto
que “ainda que não as- Vico, Herder e Humboldt, então, proporcionaram o desenvolvimento e a fixação das con-
pire à outra litteratura cepções da linguagem como uma atividade do homem e em criação permanente. Também a
deve ter ao menos a de linguística geral teve a fixação de objeto e método que diferenciou daqueles que primeiramen-
fllar e escrever correc- te preocuparam os especialistas do século XX. O vocábulo “gramática”– estudo da estrutura da
tamente a sua lingua linguagem –passou a ser substituído por “linguística”, o que implica, por sua vez, que a língua
(...)”. (BARBOSA, 1881,
p.XIII). Considera que considerada seja a falada, susceptível de transformações e independente de suas manifestações
“o meio unico, e o mais escritas.
geral, para emendar É na Alemanha que se encontram os fundadores da filologia comparada. A segunda versão
ao povo” dos “vicios da da obra de Vico foi publicada em 1827, em francês, e sem o título original Principe de La philoso-
linguagem, e rectificar phie de l’histoire (Princípio da filologia da história). As ideias de Vico eram conhecidas pelos filólo-
a sua pronunciação é
o das escolas publicas gos alemães.
das primeiras lettras”, Schelling (1775-1854), ao discorrer sobre sua teoria, afirma que é de competência da filolo-
“sob a direcção de bons gia perceber e expor a história das obras de arte e das ciências, enquanto August Boeckh (1785-
mestres”. (BARBOSA, 1867) apresenta um ponto de vista filosófico do objeto da filologia: “os fatos históricos são em
1881, p.38). si um saber cujo conteúdo(a ideia) cabe à filologia precisar e explicar”. Ao lado de Boeckh, estão
Nas gramáticas, obser- Friedrich Von Schlegel (1772-1835), que estudou o contraste entre a literatura clássica e a litera-
va,  (...)“há coisas que tura romântica e expandiu a teoria da “ironia romântica”, ou seja, a consciência da lacuna exis-
so os mestres devem tente entre o ideal artístico e as possibilidades e meios para atingi-lo, e Jacob Grimm, que fez
estudar para exppli- estudos relacionados à fonética.
car a seus discipulos; Na França, vale destacar François-Juste-Marie Raynouard (1761-1836), F. Michel (1809-1887)
outras que estes devem
apprender, como os e Paulin Paris (1800-1881) que estudaram documentos medievais e fizeram as primeiras interpre-
usos particulares e tações globais.
idiotismo da lingua; Karl Lachmann (1793-1851) publica, em 1824, sua edição do Novo Testamento e, em 1850,
e muitas que devem a de Lucrécio. São obras que foram acompanhadas por prefácios explicativos sobre o método
decorar, como são os utilizado para a classificação de manuscritos e o estabelecimento de textos. Esse método só vai
paradigmas todos das
partes da oração e ser usado, cientificamente, no final do século XIX, quando se faz o estema das várias lições de um
regras de suas termi- manuscrito, o que facilita a fixação de critérios de valor e reconstituição do texto. Esse método
nações, conjugações vigora até hoje, com pequenas modificações.
e syntaxe.” (BARBOSA, Entre 1815 e 1850, o conceito de filologia estende-se ao “estudo geral” das línguas, ao estu-
1881, p. XV e XVI). do de documentos escritos e sua devida transmissão, e ainda,à ciência universal da literatura.
(Apud. Normas e usos
em Jerônimo Soares
Barbosa– uma análise 1.5.1 De 1860 ao início do século XX
crítica e comparativa
da GrammaticaPhilo-
sophica da LinguaPor- Foi uma época de grandes realizações no âmbito da Filologia. Vários documentos de civili-
tugueza ou Principios
da Grammatica Geral
zações diversas foram reconstituídos e publicados. O espírito positivista e científico do final do
applicados à Nossa século contribuiu muito para o restabelecimento do texto e suas fontes, e ainda, para especiali-
Linguagem, 494p. digi- zação dos vários ramos da filologia.
tadas, em fase final de Gröber (1844-1911) reconstruiu, fundamentado em comparações românicas em seus Vul-
revisão, com texto de gärlateinische Substrate romanischer Wörter, em ALLG, toda uma série de palavras latinas vulga-
apresentação do Prof.
Dr. Antônio Martins de
res, cuja existência foi confirmada mais tarde. Seu estudo formou o núcleo do Dicionário Etimo-
Araújo, comentada por lógico das Línguas Românicas, redigido mais tarde por Meyer-Lübke, no qual as palavras que
Hilma Ranauro – UFF). levam asterisco, ou seja, reconstruídas, formam aproximadamente 10% das 10.000 que encabe-
çam os artigos. Em 1880, Gröber fez uma distinção entre uma “filologia real” (Sachphilologie), que
se ocupava dos textos, e uma “filologia pura”, que estudava os documentos antigos da língua.
Surge, então, uma divisão entre o que é da língua como tal e o que é literatura como expressão.
Em relação à língua e à linguagem, assim se expressou:

24
Letras Português - Filologia Românica

E se uma língua ou a linguagem fosse imutável, não haveria absolutamente DICA


possibilidade de filologia. É aqui que se reconhece, sem ambiguidade, o cam-
po da atividade específica do filólogo: o discurso e a língua não compreendi- Línguas indo-europeias
dos, ou que se tornaram incompreensíveis. Somente nesse caso, o investigador resultam de transfor-
do passado de um campo de realizações espirituais tem necessidade de ajuda mações históricas de
do filólogo. Aliás, não é senão junto a ele que encontrará ajuda: somente ele [o um idioma hipotético,
filólogo] possui a chave que permite abrir a significação do escrito mudo, so- falado há mais ou
mente ele faz com que os tempos passados nos falem e que as línguas desco- menos 4.500 anos,
nhecidas nos sejam compreensíveis; a filologia é, portanto, a ciência do discur- por um povo que hoje
so desconhecido. [Trad. a partir do francês]. (Apud: SWIGGERS, Pierre. Filologia denominamos ários,
e Linguística: enlace, divórcio, reconciliação. Filologia e Linguística Portuguesa, dos quais pouco se co-
n. 2, p. 5-18, 1998). nhece. Deu-se o nome
indo-europeu porque
os atuais idiomas que
A seguir, ressaltam-se as publicações das obras de Hermann Paul (1846-1921), Gastón Paris se originaram dela são
(1893-1903) e Bertoni (1878-1942),que se preocupavam com o substrato étnico, daí proveio a lin- falados na Índia e em
guística francesa, com Ferdinand Saussure, que era sociólogo, indo-europeista. Seus discípulos, quase toda a Europa.
entretanto, já serão romanistas. Fonte: FREITAS, J.Távo-
ra. Pontos essenciais de
Também foram publicadas várias revistas dedicadas aos estudos filológicos, tais como a Re-
gramática histórica.Col.
vista de Filologia Românica (Zetschrift Jür Romanische Philologie), e a Revista de Língua e Litera- Champagnat, 1969.
tura Francesa, Neofilólogo, Revista Belga de Filologia e História, Filologia Moderna, Cultura Neo-
latina e România. Os artigos nelas publicados relatavam sobre o estabelecimento da edição e da
interpretação – linguística ou histórica–de textos escritos em línguas antigas.

1.5.2 Século XX

A Alemanha foi o berço dos grandes filólogos do século XX: Erich Auerbach (1892-1957),
Curtius (1886-1956), Karl Vossler (1872-1949) e Spitzer (1887-1961). Todos eles procuraram iden-
tificar o fundamento da filologia como relação particular existente entre a obra literária e o leitor.
Revalorizaram a filologia ao buscar nos textos um testemunho da humanidade, desde quando
ela surgiu e participa da história. Auerbach (1972)conceituou “filologia românica” como “um dos
ramos do historicismo romântico, no qual o fato histórico da România era visto como uma tota-
lidade semântica”. Spitzer preocupou-se com a estética da língua. Estudou a etimologia com a
estilística e, como Vossler, estudou a história da língua com a história da literatura. A diferença
entre ambos é apenas formal. Diferenciam a língua literária da língua de um falante qualquer.
Uma é objeto de estudo de literatura, a outra é a língua normal.
A partir de 1900, surgem diversas ciências autônomas, com princípios e métodos próprios,
preocupando-se com os fatos linguísticos e literários, e determinando a área do campo de es-
tudos linguísticos. Os estudos de filologia comparada foram de grande valia para a formação de
ideias da nova ciência, a linguística. Os primeiros comparatistas foram muito presos à ideia clássi-
ca de que a língua escrita e literária era a mais importante e que ela deveria ser objeto de estudo.
Logo reconheceram que as letras eram símbolos e que representavam sons. Até então, a língua
falada ainda não tinha sido estudada. A gramática, por sua vez, tinha um caráter normativo, esta-
belecendo “regras” para uso “correto” da linguagem.
Os estudiosos da língua preocuparam-se em estabelecer a distinção entre língua e dialeto,
em razão da valorização das línguas europeias. As transformações das línguas não eram mais vis-
tas como um processo de decadência delas. Fatores de ordem política e social contribuíam para
que as línguas e certos dialetos sofressem mudanças. Surge a dialetologia ou geografia linguís-
tica, que é a apresentação dos fatos linguísticos em forma de mapas. Esses estudos mostraram
que as palavras, como as pessoas, migram e assim se modificam.
Inicia-se, então, o estabelecimento da distinção entre língua e dialeto. Tem-se a língua com
um dialeto que foi alçado ao status de língua, isto é, a rigor todo falar é dialeto, nas suas diversas
variantes, que são, conforme Mexias-Simon (2009):

• de estrato social – para classificá-la, usam critérios extralinguísticos (econômicos ou de esco-


laridade) – estudos diastráticos;
• de espaço – estudos diatópicos – localização espacial das línguas;
• de geração – estudos diafásicos – fase da vida em que o indivíduo se encontra;
• de situação (formal ou informal, culta, semiculta, coloquial etc.) – estudos dias situativos.

25
UAB/Unimontes - 3º Período

Dica Portanto, os dialetos não pertencem à língua, eles são a língua. Um sistema é formado por
É preciso, também, mais de um elemento que tem características comuns e algumas divergências.
levar em conta a afeti- Em 1933, S.Étienne, em Défense de La philologie (Defesa da filologia) definiu a filologia como
vidade, o estado emo- “estudo insubstituível e irredutível do texto na sua relação interna com o autor”. Mais tarde,
cional do falante. Esse N.E.Enkvist apresentou a ideia de que o estudo da linguagem comportaria três ciências: a) crítica
fator, que se estende literária, estética, histórica e sociológica b) linguística descritiva; c) filologia com o trabalho de
ao estado físico, produz
modificação na fala, crítica textual e a estilística. Atualmente, determina-se que o objeto específico da filologia é o
incluindo o som e o sig- estabelecimento de textos, criando uma confusão entre esse conceito e um dos seus aspectos, a
nificado. O erro na fala ecdótica, de que trataremos adiante.
seria consequência de A história literária e a crítica literária obtiveram métodos próprios de estudos, sendo que a
estado emocional. Para crítica mantém estreito relacionamento com outras ciências, como a antropologia, a sociologia e
Freud, seria resultado
de Nebengedanken a psicologia. Já a estilística cuida da interpretação de texto. O universo semântico está na semân-
(pensamentos laterais). tica e na semiologia.
Os objetos passam a ter Evidencia-se, aqui, que o termo filologia, ainda hoje, é usado com o sentido de estudos lite-
denominações em re- rários, enquanto nos países anglo-saxões é frequente a referência aos estudos linguísticos.
lação a outros objetos Segundo Segismundo Spina, a filologia também tem funções:
já existentes e também
em consequência da
afetividade. É o caso função substantiva, que seria a explicação do texto, restituição à sua forma ge-
de sambódromo, em nuína através dos princípios da Crítica Textual e preparação técnica para publi-
relação a hipódromo cação. Tem caráter erudito;
e autódromo. O nome
original, Passarela do função adjetiva: a filologia também se interessa por uma série de problemas,
Samba, não agradou. que não estão no texto, mas deduzem-se dele, nas etapas da investigação lite-
Em relação a sambó- rária :determinação de autoria, biografia do autor, datação do texto, sua posi-
dromo, formaram-se ção na literatura do autor e da época, bem como a sua avaliação estética (valo-
fumódromo, namo- rização) perante os textos da mesma natureza;
ródromo, tendo o
radical-dromo passado função transcendente: o filólogo, agora, não se concentra no texto, nem deduz
a significar ‘lugar onde’, aquilo que não está no texto, mas procura transpô-lo. O texto deixa de ser um
ao invés de ‘corrida’. fim, em si mesmo, na tarefa filológica para se transformar na reconstituição da
Fonte: Maria Lucia vida espiritual de um povo ou de uma comunidade em determinada época. A
Mexias-Simon, Texto do individualidade ou presença do texto praticamente desaparece, pois o leitor,
Curso de especialização abstraindo do texto, apenas se compraz no estudo que dele resultou. Vocação
em Filologia (2009). ensaística do filólogo, em busca da história da cultura. (SPINA, 1977, p.77).

Glossário Para facilitar o estudo da Filologia, diversos autores fazem a seguinte classificação: Filologia
Formidável: o primeiro
Clássica; Filologia Românica e Filologia Portuguesa.
significado é “pavoroso,
diabólico, horrendo, as- Filologia Clássica
sustador”. Mas, depois, Reafirmando o que já abordamos, a filologia tem como objetivo conhecer a civilização e a
essa palavra passou a cultura de um povo através de seus documentos escritos, tendo como principal instrumento a
significar algo como
“maravilhoso, excelen-
língua em que esses documentos foram produzidos. Valemo-nos de Silveira Bueno (1963, p. 22)
te, fantástico”. para dizer: “quantas forem as civilizações deixadas em certas e determinadas línguas, tantas e
Bárbaro: Os gregos e quantas serão as filologias”.
os romanos chamavam Conforme Ilari (2002), a partir do Humanismo, muitos estudiosos começaram a se interessar
bárbaros todos os pela cultura clássica, surgindo, assim, um especial gosto pelos textos produzidos pelos gregos e
estrangeiros. Bárbaro
também é um indi-
romanos. Tais documentos eram tidos como fontes de informações sobre a época a que se refe-
víduo dos bárbaros, riam os textos antigos, o que exigia um conhecimento muito grande das línguas antigas. A esse
povos do Norte da interesse pelas literaturas antigas, chamou-se Filologia Clássica, que busca analisar e desvendar a
Europa, que, por sinal, civilização greco-romana através do estudo da produção literária deixada por seus poetas e pro-
invadiram parte do sadores. De acordo com Silveira Bueno (1963), esse estudo poderá ser realizado tanto indepen-
Império Romano. A pa-
lavra também assumiu
dentemente um do outro, como, também, comparativamente, confrontado os aspectos seme-
o significado de “rude, lhantes nas línguas e literaturas desses povos.
sem civilização, inculto,
selvagem”. No Brasil, Filologia Românica
essa palavra possui ain- Durante a expansão do Império Romano, houve a dialetação do latim, dando origem a di-
da o sentido de “muito
bom, excelente”. Muita
versas línguas modernas, as línguas românicas, que, por sua vez, desenvolveram uma literatura
gente de mais de 40 própria. Com o passar do tempo, essas línguas foram modificando-se também, no limite de se
anos continua usando tornarem incompreensíveis aos leitores modernos, necessitando, portanto, de estudo para a sua
essa palavra com esse interpretação. Nasce a filologia românica, responsável por buscar a compreensão de civilizações
sentido muito comum distintas, mas com origem em comum – o latim – como a italiana, a espanhola, a francesa, a ro-
na época da Jovem
Guarda.
mena, o provençal e a portuguesa, através de seus documentos e produção literária.

26
Letras Português - Filologia Românica

Filologia Portuguesa Glossário


A Filologia Portuguesa aparece no século XII com o poema “A Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, considerado o texto mais antigo da literatura portuguesa. Nessa época, a Sofisticado: usada com
o sentido de “chique,
língua falada era o galego-português, devido à integração linguística e cultural existente entre muito chique, de
Portugal e a região da Galiza. As primeiras produções literárias portuguesas estão registradas em extremo bom gosto, de
galego-português e, do ponto de vista literário, constituem um período denominado de Trova- alto nível”, essa palavra
dorismo. Mas, há de se lembrar que a Galiza é anexada ao território espanhol, e gradativamente aparece nos dicioná-
essa região vai perder a sua influência sobre Portugal, sendo que, no século XV, o português se rios como derivada de
“sofisticar”, sinônimo
separa do galego, tornando-se uma língua independente. de “sofismar”, ou seja,
“falsificar, adulterar,
deturpar”. E um sofisma

1.6 Diacronia das línguas


nada mais é do que
“argumento falso
formulado de propósito
para induzir alguém a

românicas erro”.
Relevar: “Relevar um
fato” pode ser “desta-
cá-lo”, dar-lhe impor-
As mais antigas inscrições latinas datam, aproximadamente, do século VI a.C. A tradição lite- tância, salientá-lo,
ou “deixá-lo de lado,
rária, porém, inicia-se em Roma no século III a. C., com o aparecimento dos primeiros escritores: ignorá-lo, atenuar sua
Lívio Andronico, Ênio, Plauto e Terence. O período de ouro do latim clássico, cujos principais re- importância”. A palavra
presentantes são Cícero e Virgílio, abrange, aproximadamente, um século das últimas décadas simplesmente tem sen-
da República ao fim do reinado de Otaviano (Augusto), primeiro imperador romano. Antes dessa tidos quase opostos. E
época, o latim, porém, já apresenta dois aspectos que, com o correr do tempo, se tornam cada mais uma que quase
passa despercebida:
vez mais distintos: o clássico (língua escrita, literária, um tanto artificial) e o vulgar (falado pelas “tornar a levar, levar de
classes inferiores da sociedade romana). novo”.
O latim, primeiramente um simples dialeto de pastores e agricultores, foi falado no Lácio Percalço: que significa
(Latium), pequena região às margens do rio Tibre, onde, depois, se edificou a cidade de Roma, “problema, obstáculo,
na Península Itálica. Passou-se depois a ser a língua dominante da península, e foi levada pelos dificuldade”, como é
mais usada hoje. Mas
romanos para os países por eles conquistados, onde o adotaram, por fim, para língua própria, as também pode signifi-
populações vencidas e romanizadas. car “lucro, vantagem,
Ao se propagar, o latim vai se modificando e surgem então as chamadas Línguas Românicas, provento, rendimento,
neolatinas ou novilatinas, línguas que representam continuações históricas do latim vulgar fala- proveito”.
do na România (nome que designava o conjunto de territórios ocupados pelos romanos e onde Sanção: pode significar
“aprovação” (a sanção
se falava o latim). Elas não descendem do latim, mas são os diversos aspectos assumidos pelo que o presidente dá a
latim na sua evolução através dos territórios sujeitos a Roma ou aos romanos, cuja língua era o uma lei, por exemplo).
latim e que conservam plenamente o seu vestígio no vocabulário, na sintaxe e, sobretudo, na Mas também pode
morfologia. As línguas românicas vivas são: francês, português, italiano, espanhol, catalão, rome- significar “castigo,
no, sardo, provençal e reto-românico. punição” (as sanções
impostas aos que des-
respeitam o código de
trânsito, por exemplo).

◄ Figura 15: Mapa das


regiões onde as línguas
românicas são faladas.
Legenda: laranja-
português; verde-
espanhol; azul-francês;
amarelo-italiano;
vermelho-romeno
(cores escuras indicam
língua oficial; cores
claras, língua de uso
comum).
Fonte: Disponível em
WWW.tiosam.net. Acesso
em 10 ago. 2009.

27
UAB/Unimontes - 3º Período

DICA Afinidade latino-românica


A variação no número
das línguas românicas No quadro a seguir podemos observar a proximidade de uma língua com a outra:
decorre da diferença de
critérios usados pelos QUADRO 3
estudiosos. Alguns se O latim e as línguas românicas
baseiam no critério
literário (considera-se LATIM ESPANHOL FRANCÊS ITALIANO PORTUGUÊS
como língua aquela
octo Ocho Huit Otto Oito
variedade que possui
farta literatura); outros aurícula oricla oreja Oreil Orecchia Orelha
utilizam o critério nocte noche Nuit Notte noite
político(consideram- oculu oclu ojo Oeil Occhio olho
se como um grupo de cantare cantar chanter cantare cantar
dialetos de uma mesma Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados coletados em Ilari, 2002.
língua aquelas varieda-
des que se encontram Conforme Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (UEFS) e Maria da Conceição Reis Teixeira
em uma dada região,
que constitui uma uni-
(UNEB), no texto “Contribuições da Filologia para o ensino de línguas”, percebe-se que os resulta-
dade política) e outro, dos apresentados nas línguas românicas são muitos próximos, tendo ocorrido os seguintes fatos:
ainda, fundamenta-se
no critério linguístico 1. no encontro das consoantes oclusivas c e t, tem-se no espanhol a palatalização do grupo
(consideram-se como ct em ch ([tS]); no francês, a palatalização do primeiro elemento oclusivo, passando a it;
dialetos deumalíngua
aquelas variedades que
no italiano, a perda do primeiro elemento oclusivo e a geminação do segundo, tt; e no
possuem certas carac- português, com o mesmo processo do francês, it.
terísticas linguísticas 2. Nos casos do encontro formado pela oclusiva mais líquida, cl, têm-se os seguintes resulta-
em comum). dos: em espanhol j ([z&]); a palatalização do elemento oclusivo no francês, il; a palataliza-
Fonte: CHAVES,1981.
ção no italiano cchi ([ki]); a palatalização no português lh ([λ]);
3. No exemplo em que consta o verbo latino cantare, tem-se: em espanhol e português, há
a apócope da vogal final e; em italiano, há a manutenção da forma latina; e, em francês,
ocorre um fenômeno típico dessa língua.
4. Quando a consoante oclusiva [k] está diante da vogal [a] em início de palavra, ocorre a
palatalização, passando a [S], a vogal final sofre apócope e a vogal a passa a e.

Quando se tem conhecimento desses resultados e um conhecimento básico da língua lati-


na, assimilam-se melhor as realizações nas línguas românicas. Toda palavra em que ocorra o que
foi aqui exemplificado, exceto para aquelas que não seguem esse paradigma, os resultados serão
os mesmos.
Veremos, a seguir, outro quadro em que se constata certa similitude nas formas apresen-
tadas. É clara a influência da língua latina, pois foi dela que as formas, nas outras línguas, se es-
tabeleceram. Observa-se, entretanto, que, nesses casos, há as particularidades de cada língua,
principalmente quanto à pronúncia (que envolve a fonética e a prosódia, por exemplo). As lín-
guas estão sempre em processo de intercâmbios, de empréstimos, mesmo entre línguas de ori-
gens aparentemente distintas, pois as línguas evoluem, se diferenciam, tomam empréstimos, são
substituídas, dominam e são dominadas.
QUADRO 4
O latim, o inglês e as línguas românicas.
LATIM INGLÊS ESPANHOL FRANCÊS ITALIANO PORTUGUÊS
bicycle bicicleta bicyclette bicicletta bicicleta
problema problem problema problème problème problema
paupertas poverty pobreza pauvreté povertà pobreza
translatio translation traducción traduction traduzione tradução
admirabilis admirable admirable admirable admirable admirável
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados coletados em Ilari, 2002.

O Império Romano, que teve sua florescência entre os séculos III a.C. e V d.C., expandiu-se
por uma boa extensão da Europa, África e Oriente Próximo. Essas ocupações tinham um caráter
principalmente político-econômico, mas, também, ajudaram a difundir o latim, a arte e a cultura
romana.
Para se compreender as transformações ocorridas na língua latina, citam-se três causas: a
histórica, a etnológica e a política.

28
Letras Português - Filologia Românica

A causa histórica deve-se ao fato de as conquistas romanas acontecerem em diferentes


épocas; um exemplo disso é a distância temporal entre a conquista da Sardenha e da Dácia, que
durou aproximadamente quatro séculos. Segundo Coutinho (1976), as primeiras terras romaniza-
das receberam a linguagem mais popular, enquanto as últimas conheceram um latim mais erudi-
to. Isto se deu pelo fato de a língua literária ser mais recente do que a popular.
A causa etnológica pode ser notada através dos diversos povos de raças e idiomas diver-
sos dominados pelo Império Romano. Um exemplo disto é a Península Itálica, onde eram falados
muitos outros idiomas, como o etrusco, o céltico, o ligúrio. Esses idiomas constituem os substra-
tos linguísticos, que abordaremos adiante.
A razão política  é explicitada pelas invasões e imposição cultural e linguística que deram
origem a dialetos mistos.  É a causa mais importante, porque a unidade linguística se mantém
forte enquanto um povo está politicamente sujeito a outro. Quando isso ocorre, a língua inicia um
processo de divergência, e as diferenças aumentam à medida que os elos entre o país dominante
e o país dominado se tornam enfraquecidos. Desse modo, originam-se os dialetos, que, posterior-
mente, podem transformar-se em línguas independentes, como ocorreu com o latim.
Além dessas, outras causas são consideradas: diversidade do meio, extensão territorial e to-
pografia irregular de vários domínios romanos, criando um relativo isolamento geográfico dos
grupos entre si; o desenvolvimento de unidades políticas separadas; as circunstâncias educacio-
nais; as diferenças dialetais na língua dos colonos latinos; os substratos linguísticos originais; os
superstratos linguísticos subsequentes e as influências dos adstratos.

1.6.1 Origem: as denominações Romanus, Romania

Caros acadêmicos e acadêmicas, o capítulo intitulado “As Denominações Romanus, Romania”


apresenta um breve percurso histórico do Império Romano e da língua latina, desde o início da ex-
pansão territorial romana, por intermédio de violentas guerras. As conquistas do Império Romano
contribuíram para a divulgação do latim como língua oficial do Império, que, ao entrar em contato
com as diferentes famílias linguísticas dos povos dominados, deram origem a novas línguas, deno-
minadas, então, de línguas românicas, isto é, as línguas formadas a partir do latim vulgar. Estuda-
remos, ainda, o significado das denominações Romanus e România e o surgimento desses termos.
Vamos lá! Não se sabe ao certo, mas a origem do Estado romano se deu entre os séculos
X ou IX a.C., porém, a tradição histórica fixa a data de 753 a.C. como marco da fundação de sua
capital, a cidade de Roma. É importante lembrar que a história de Roma se divide em três fases,
e estas correspondem às três formas de governo que os romanos tiveram. A primeira é a fase
da monarquia, que perdurou desde a origem do Estado até o ano de 509 a.C. A segunda é a Re-
pública, cujo início se deu em 509 a.C. e se estendeu até 27 a.C. A terceira fase é o Império, que
vigorou de 27 a.C. até o ano de 476 d.C.

◄ Figura 16: Os domínios


romanos no século IV
Fonte: Disponível em
www.ime.usp.br. Acesso
em 10 ago. 2009

29
UAB/Unimontes - 3º Período

Entre os séculos V a.C. e II d.C., o Estado romano conseguiu uma fabulosa expansão territo-
rial, quase sempre às custas de sangrentas ações militares. Por exemplo, contra Cartago, Roma
empreendeu três sangrentas guerras que duraram mais de cem anos e ficaram conhecidas como
Guerras Púnicas. Após obter a vitória definitiva sobre Cartago, a região da Tunísia, terra dos carta-
gineses, tornou-se território romano, com o nome de África.
Cerca de trinta anos depois da vitória sobre Cartago, Roma já dominava quase toda a Euro-
pa mediterrânea, alguns territórios da África do Norte e, ainda, da Ásia Menor. Deu-se, então, o
nome de România ao conjunto dos territórios sujeitos a Roma, isto é, os territórios que se uniram
linguística e culturalmente por intermédio do latim e da cultura romana. O termo Romania for-
mou-se a partir de romanus, isto é, habitante de Roma, e os povos latinizados ou romanizados
(povos que assimilaram o latim vulgar e a cultura dos romanos) que habitavam essas regiões se
autodenominavam romanus para distinguirem-se dos bárbaros, ou seja, daqueles que não agiam
segundo os costumes romanos e tampouco falavam dialetos latinos. Foi a partir de romanus que
se formou o advérbio romanice, ou “à maneira ou costume romano”, que, por sua vez, originou
um novo advérbio denominado romance, que se aplicava a qualquer texto ou composição escri-
ta em uma das línguas vulgares. Podemos dizer que o romance nada mais é do que o prenúncio
do surgimento de uma nova língua, que só receberia esta denominação após o surgimento dos
primeiros escritos literários.
O termo românia é empregado, modernamente, em toda área ocupada por línguas de ori-
gem latina, sendo que os limites da România atual e os do antigo Império Romano não coinci-
dem, pois, por um lado, através dos movimentos de propagação do catolicismo e das grandes
navegações, as línguas românicas chegaram a novos continentes, chegando a atingiro status de
línguas oficiais como o português, o espanhol e o francês; por outro lado, antigas províncias ro-
manas, como a Britânia, atualmente, não utilizam o idioma de origem, isto é, o latim. Entre os
fatores que contribuíram para que o latim não se mantivesse como a língua falada em todo o
Império, podemos citar: a romanização superficial, a superioridade cultural dos povos vencidos e
a superposição maciça de populações não romanas.
Sobre esses fatores é que se passa a tratar agora.

Figura 17: A România ►


atual
Fonte: Disponível em
www.ime.usp.br. Acesso
em 10 ago.2009.

1.6.2 Os substratos, os adstratos e os superstratos linguísticos

O substrato é a língua que não sobrevive ao contato com outra língua, isto é, a língua usa-
da antes por uma população e que foi abandonada e suplantada por outra, por vários motivos:
conquista, posse, ou colonização da terra por outro povo. Temos como exemplo os falares célti-
cos utilizados na Gália antes da conquista romana, nos territórios que hoje constituem a França e
foram substituídos pelo latim.

30
Letras Português - Filologia Românica

O superestrato é a língua utilizada por povos conquistadores que, introduzida na área con-
quistada, não substitui a língua dos povos conquistados, podendo, com o passar do tempo, vir a
desaparecer, deixando-lhes alguns traços. Depois das grandes invasões bárbaras, as línguas ger-
mânicas acabaram por desaparecer das antigas províncias romanas, mas exerceram sobre o ro-
mance uma influência léxica e sintática que não é de se menosprezar.
Adstrato é a língua que coexiste com outra no mesmo espaço territorial, influenciando-a e
dela recebendo influência, porém nenhuma delas é assimilada pela outra. Diz-se, por exemplo,
que o grego e o latim foram adstratos, no período em que Roma dominou a Grécia. O espanhol,
também, é adstrato do português brasileiro (tomado este como referência nas regiões da frontei-
ra Brasil / Uruguai).

◄ Figura 18: Os
substratos, os adstratos
e os superstratos
linguísticos
Fonte: Elaboração dos
autores.

É a partir desses elementos que ocorrerá a dialetação do latim vulgar, que se transformará
no português, galego, castelhano, catalão, provençal, francês, rético, sardo, italiano, dalmático e
romeno, línguas ditas Românicas, Neolatinas ou Novilatinas.

Referências
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31
UAB/Unimontes - 3º Período

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LÁZARO CARRETER, Fernando. Diccionario de términos filológicos. 3ª ed. corr. Madrid: Gredos,


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WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábo-
la Editorial, 2002.

32
Letras Português - Filologia Românica

Unidade 2
O trabalho filológico e seus
métodos
Ireny Caldeira de Souza Oliveira
José Lúcio Ferreira Higino

2.1 Introdução
Queridos acadêmicos, depois de uma longa caminhada pela história da Filologia, vamos
aprender, agora, como é feito o importante trabalho do filólogo.

2.1.1 O trabalho filológico e métodos

Conforme dissemos na introdução, nesta unidade, apresentaremos os passos fundamentais


de um Trabalho Filológico: inicia-se pela Crítica Textual e suas fases fundamentais: recensio; col-
latiocodicum; estemática; emendatio. Depois, teremos a etapa de reconstituição de texto, o estu-
do dos vários aspectos da chamada Crítica Histórico-Literária,em que estudaremos o que seria a
autenticidade; datação; fontes; circunstâncias; sorte; unidade e integridade; linguagem do texto;
avaliação crítica, cuja finalidade é procurar esclarecer os pontos obscuros e eliminar as lacunas
no conhecimento de dados sobre o texto. Para finalizar o trabalho filológico, o autor terá em suas
mãos a escolha do tipo de edição que gostaria que seu trabalho fosse publicado, ou seja, Edição:
crítica; diplomática; paleográfica; outros tipos de edição. Abordaremos, ainda, de forma sucinta,
os Métodos da Filologia Românica: histórico-comparativo; idealista; geografia linguística; “pala-
vras e coisas”; onomasiológico; neolinguístico ou espacial; teoria das ondas; afins.

2.1.2 A caminhada filológica

Como já foi dito, os documentos escritos formam o campo de estudo da filologia. Assim, o
trabalho filológico consiste na reconstituição de um texto, total ou parcial, ou a determinação e
o esclarecimento de algum aspecto relevante a ele relacionado. Há a reconstituição tanto na sua
existência material e histórica como na função de testemunho documental e literário.
Compreende-se desde a Crítica Textual, cujo objeto é o próprio texto, até as questões históri-
co-literárias, como a autoria, a autenticidade, a datação etc., e o estudo e a exegese do pormenor.
Através deles, conhece-se o pensamento de um povo e a sua produção literária; porém, o
filólogo deve estar preparado em diversas áreas do conhecimento, para que seja capaz de de-
sempenhar as seguintes funções:

• Determinar por meio do estudo, análise e interpretação dos manuscritos as diversas versões
do texto.
• Interpretar e corrigir os possíveis erros encontrados nos textos e restaurá-los em toda a sua
máxima perfeição.
• Esclarecer e explicitar os pontos obscuros dos manuscritos, completando-os em suas falhas,
restituindo-os ao seu estado tal qual os deixou o seu autor em sua época.
• Determinar a autenticidade de textos anônimos ou autoria duvidosa, colocando-os em sua
época devida.

33
UAB/Unimontes - 3º Período

Karl Lachmann (1793-1851) estabeleceu os princípios científicos do trabalho filológico.


Depois o método foi aplicado à filologia germânica e à filologia românica. Antes dele, Giorgio
Pasquali (1842-1952)completou as ideias de Lachmann, um texto era reproduzido com base em
apenas um manuscrito, que muitas vezes nem era o melhor, apenas o mais próximo e acessível
ao editor, sendo as variantes apresentadas com critérios subjetivos.
Também, faz parte do trabalho do filólogo a análise do texto sob diversos pontos de vista:
morfológico, sintáxico e semântico, bem como o estudo do objeto de que o texto trata. Exemplo:
um trecho da análise do manuscrito de Theotonio Joze Juzarte – “Diário da Navegação” de 1769.
Esse exemplo faz parte de uma síntese do capítulo 3, da dissertação de mestrado intitulada: Diá-
rio da navegação: reprodução e Estudo das variantes da Edição “Uspiana Brasil 500 anos”, com
orientação do professor doutor Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, defendida em 2006, por
Maria Aparecida Mendes Borges, UFMT, doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. Ela
disponibilizou essa edição para comemorar os 500 anos de descobrimento do Brasil.

Figura 19: M.S do ►


Trecho de Diário da
Navegação.
Fonte: M.S de Theotonio-
JozeJuzarte – “Diário da
Navegação” de 1769

Figura 20: Trecho do ►


Diário da navegação:
reprodução e Estudo
das variantes da Ed.
“Uspiana Brasil 500 * Erro paleográfico – a letra “r” minúscula é semelhante à letra “v” atual, também minúscula.
anos”. O cronista não descreve os índios como “vesgos”, mas de olhos “resgados para baixo” – é possível
Fonte: Dissertação de que ele esteja se referindo à maquiagem dos olhos. (Crítica textual: variantes semânticas, sintáti-
mestrado defendida por cas e lexicais na edição “Uspiana Brasil 500 anos”*BORGES, Maria Aparecida Mendes** ).
Maria Aparecida Mendes
Borges intitulada: Diário Legenda:* (asterisco) marca o comentário de cada variante. MS. = Manuscrito. Ed. = edição
da navegação: repro- uspiana
dução e Estudo das
variantes da Edição “Us-
piana Brasil 500 anos”,

2.2 Crítica textual


defendida em 2006.

O objetivo fundamental desta primeira etapa é a reconstituição do texto. “Emendar” o texto


para aproximá-lo ao máximo da forma que recebera do próprio autor. Consta das seguintes fases:

a. Recensio: foi denominada recensio (“recenseamento”) por Lachmann; é a operação inicial


da edição crítica. Consiste no levantamento de todos os códices existentes da obra a ser
publicada. Destaca-se, aqui, a tradição direta da indireta. A direta consiste nos manuscri-
tos (do próprio autor, chamados de “autógrafos”, ou de copistas, chamados de apógrafos)
ou edições impressas da obra. A indireta é constituída de todos os documentos que po-
dem auxiliar na leitura ou interpretação desse texto, tais como as fontes, versões, alusões,
glosas, paráfrases, imitações, as traduções, as citações, os comentários etc. Os dados da
tradição indireta são considerados de grande utilidade para a compreensão do texto.

Os códices (plural de codex, palavra em latim que significa “livro”, “bloco de madeira”) eram
os manuscritos gravados em madeira, em geral do período da era antiga tardia até a Idade Mé-
dia. Manuscritos do Novo Mundo foram escritos por volta do século XVI. O códice é um avanço
do rolo de pergaminho, e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O có-
dice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso. Os manuscritos podem ser do próprio autor,
chamados então “autógrafos”, ou de copistas, chamados “apógrafos”.
Com o recensio, obtêm-se diversos resultados: um manuscrito único (codexunicus), ou uma
só edição de um texto impresso (editio princeps), ou vários manuscritos do mesmo autor (códi-
ces plurium), ou ainda várias edições. Nos manuscritos da Antiguidade Clássica, feitos de papiro
ou de pergaminho, o trabalho de recensio precisa de condutas específicas, porque eles estão, há
muitos séculos, distante de seus autógrafos. Cada edição, à época, só dispunha de um exemplar,

34
Letras Português - Filologia Românica

escrito à mão, e outros volumes também. Os copistas erravam muito em seus trabalhos não só
pelo cansaço, má leitura, distração, e até por conta própria. Dica
Ressalta-se que é necessário muita atenção para a época em que esses textos foram pro- O arquétipo é o
duzidos, se antes ou depois do aparecimento da imprensa, pois, antes, dispunha-se somente de manuscrito existente
cópias de cópias, e qualquer intenção de restauração do texto seria resultante de um processo ou reconstituído que
se interpõe entre o
difícil e complexo, através do método conjectural; depois, os textos interessam como realidades manuscrito e o original.
dinâmicas nas quais se mesclam, de muitas formas, diversas perspectivas de estudo, daí se pro- Para melhor entendi-
cura estudar os materiais e as técnicas de escrita, as condições históricas e sociais que interferem mento das denomina-
em sua produção. ções usadas até então,
entende-se por “arqué-
tipo” o manuscrito que
b. A Colação, ou Collatio Codicum: inicia-se esta fase quando terminada a distinção entre mais se assemelhe com
testemunhos coletados(no caso dos manuscritos) ou colação das edições (quando sob tra- o original, podendo ter
dição impressa). Aqui, comparam-se diversos códices ou edições da tradição direta, tendo existência real ou ser
um texto ideal; passa
por base um manuscrito ou edição (texto ou exemplar de colação, primeira edição em li-
a ser considerado o
vro), ou seja, há comparação de manuscritos para extrair as variantes. Toma-se um deles original das cópias
como texto de base ou exemplar de colação, cuja execução exige cuidados muito espe- subsistentes. As cópias
ciais, pois é necessário que ele seja o que mais se aproxime do original. Por isto, é preciso do original são deno-
verificar o estado de conservação do texto e a sua história externa, pois desta verificação é minadas “apógrafos” e
o texto que está entre o
que resultará a escolha do texto-base. No caso de se ter o original manuscrito, por exem-
arquétipo e um grupo
plo, ou edições impressas em vida do autor, a preferência será dada a um deles, de acordo de manuscritos, “subar-
com critérios estabelecidos para cada caso. Como resultado, elege-se o testemunho mais quétipo’. Já “variantes”
completo e se eliminam os inúteis ao estabelecimento do texto crítico, por serem coinci- são versões diferentes
dentes (ou cópias de outros testemunhos subsistentes) ou por outros motivos, como, por de uma palavra, ou
pequeno número de
exemplo, por serem edições contaminadas ou deturpadas. Através dos confrontos dos “lu-
palavras, ocorrentes em
gares críticos” e do exame sistemático dos “erros comuns”, segue-se ao estabelecimento do manuscritos diver-
grau de independência e parentesco dos testemunhos conservados. Realizada essa etapa sos da mesma obra.
de confrontação e escolha de um manuscrito mais correto, passa-se à classificação dos ma- “Versão” vai se referir às
nuscritos ou das edições impressas. A esta operação da crítica textual se costuma denomi- diferentes redações do
texto, enquanto “lição”
nar eliminatiocodicumdescriptorum (eliminação dos códices copiados).
ou “leitura” consiste
c. Estemática: é a fase da crítica textual que registra, classifica, interpreta e organiza os na variante escolhida
exemplares remanescentes, com o objetivo de definir as relações hierárquicas (descen- pelo editor do texto. Os
dentes, ascendentes ou colaterais), deixando claras todas as relações de dependência que erros constituem ele-
há entre cada um deles e os demais. A construção desta árvore genealógica dos manus- mentos de provas para
detectar as relações
critos e edições parte do original ou arquétipo e termina nos testemunhos mais recentes.
de parentesco entre
Quando só há uma edição impressa da obra e quando o original está perfeito, e não hou- códices transmitidos
ver edição em vida do autor, a estemática é dispensável. de determinada obra,
d. Emendatio ou Correção do Texto: é o nome dado ao conjunto das operações que visam à entretanto, nem todos
correção do texto. A exatidão resultante dessa fase e dos acertos do filólogo nas escolhas os erros servem para re-
lacionar ou definir uma
indicará o valor e a qualidade do texto final.
tradição literária.

2.3 Crítica Histórico-Literária


Fase para esclarecer possíveis pontos obscuros, eliminar lacunas no conhecimento de dados
a respeito do texto etc. São usados critérios internos fornecidos pelos próprios documentos e cri-
térios externos, como citações, alusões, referências etc. A crítica histórico-literária consistirá em
determinar:
a) autenticidade: a autoria de manuscritos normalmente não é clara, e ao filólogo cabe a
missão de estudar e dizer se o texto é autêntico ou não. Exemplo: As Cartas Chilenas fo-
ram publicadas de forma anônima, por razões históricas, e o estudo do crítico Afrânio Pei-
xoto demonstrou que acarta prefácio foi de autoria de Cláudio Manuel da Costa e as ou-
tras doze foram de Tomás Antônio Gonzaga.
b) datação: precisar a data, o ano ou, pelo menos, a época em que o documento foi escrito.
Tais dados serão importantes para a compreensão do conteúdo, forma, finalidade e outros
aspectos do documento em análise, pois um escrito é um reflexo de sua época.
c) fontes: pesquisam-se as citações diretas e as indiretas, as alusões, os possíveis plágios, as
imitações, ou toda e qualquer influência de outros autores sobre o texto. O estudo das

35
UAB/Unimontes - 3º Período

Glossário fontes leva à reconstituição, pelo menos parcial, de documentos e obras perdidas. Ex.: Nos
Alguns Termos da gramáticos latinos há a influência da Ars Grammatica, de Dionísio Trácio. Até a terminolo-
Crítica Textual gia gramatical latina é tradução, decalque das fontes gregas correspondentes e nem os
Autógrafo: original exemplos são mudados.
escrito pelo próprio d) circunstâncias: são todas as variáveis que “estão ao redor” de algo, ou seja, o contexto em
autor. que está inserida a obra. Situar um documento em seu contexto histórico, cultural, social
Apógrafo: cópia
derivada do original. e político pode facilitar a compreensão de sua mensagem, esclarecer tópicos e alusões,
Idiógrafo: original escri- além de integrar o autor e sua obra segundo as diversas correntes filosóficas, literárias,
to sob o controle direto políticas etc. Exemplo: O conhecimento das circunstâncias político-sociais da época per-
do autor. mitiram justificar o anonimato da obra Cartas Chilenas, conforme Bassetto (2005, p. 54),
Apócrifo: de falsa pro- (...) A situação político-social explica o anonimato da obra, bem como o próprio título; era
cedência ou de fonte
duvidosa. preciso satirizar, verberar a opressão, protestar contra o exagero dos impostos, contra a
Testemunhos: cópias “derrama” injusta, mas também, se possível as represálias, através do disfarce de alguém
manuscritas ou supostamente distante, em Santiago do Chile.
impressas de uma obra. e) sorte: aqui, o filólogo procura rastrear a sorte, boa ou má, do documento. O êxito de um
Lição: a leitura de uma texto manuscrito se avalia pelo número de cópias, pelas citações, referências, estudos, alu-
passagem determinada
do texto transmitido sões etc. Exemplo: a Bíblia foi o primeiro livro impresso e é o mais publicado em todas as
por um testemunho. línguas.
Edição príncipe ou f) unidade e integridade: era possível em um manuscrito acrescentar textos e também su-
princeps: a primeira primir-lhe uma parte menor ou maior; estudando esse ângulo, o filólogo verifica a integri-
edição impressa de dade da obra, isto é, se está inteira, íntegra e completa.
uma obra.
Vulgata editio: edição g) linguagem do texto: através do estudo da linguagem do documento em análise, o filólogo
popular. pode obter diversas informações para o conhecimento mais aprofundado do próprio texto.
Obra autêntica: do h) avaliação crítica: o último ponto desta fase, onde o filólogo avaliará criticamente a obra
próprio autor que a sob duas perspectivas: seu valor documental e seu valor literário. Exemplo: na obra Grande
assina. Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, há diversas informações, implícitas, sobre a fauna
e a flora da região descrita, os usos e costumes, as crenças e rotinas daquela população.
i) exegese do pormenor: para completar o trabalho filológico, é necessário determinar os
detalhes ou os pormenores que o leitor não consegue entender com clareza, ou que exi-
ge um estudo com maior aprofundamento. Para tanto, aplicam-se os princípios da herme-
nêutica, a ciência da interpretação; à prática dessa ciência, dá-se o nome de exegese (do
grego εξήγηση), do verbo“ eu conduzo, guio, explico, interpreto”, que esclarece as alusões
obscuras, verifica a autenticidade e correção das citações, os erros históricos, se houver, e
explicitação das expressões típicas, tópicos não claros por interpolações ou supressões.
Justificará, também, as aparentes ou reais incoerências textuais e outros problemas seme-
lhantes. Há uma exigência de que o pesquisador tenha conhecimentos de ciências afins, e
do contexto próximo e remoto.

2.4 Edição
Após o trabalho filológico, o autor fará ou não a publicação e escolherá que tipo de edição
lhe é mais conveniente para atingir os seus objetivos. Entre as edições possíveis temos:

2.4.1 Edição crítica

É o momento mais difícil do trabalho filológico. É reproduzir o melhor texto possível que
veio com muitas variações. Para fazer uma edição crítica, é necessário ter, pelo menos, duas ver-
sões da obra independentes da vontade do escritor. Uma edição crítica pode ser definida como
um ponto de partida, mais do que como um termo de chegada, para a publicação de textos, em
edições correntes, escolares ou de divulgação, destinadas a um público amplo. “Edição crítica” é
a que procura determinar o texto perfeito – confrontando manuscritos ou edições antigas, à vida
do autor, anotando variantes – e, além disso, desfaz as abreviaturas, quando é o caso, moderniza
a pontuação, corrige os erros tipográficos, interpreta os passos obscuros, podendo ainda substi-
tuir o sistema ortográfico por outro mais moderno – mas tudo isso respeitando, cuidadosamen-
te, a língua, as formas, a fonética do tempo e do autor. Para o filólogo, a edição deve conter:

36
Letras Português - Filologia Românica

a) Introdução: deve indicar os problemas encontrados e as soluções dadas na crítica textual, Dica
os critérios adotados em suas diversas etapas; o conspectus siglorum, conjunto das siglas Edição de um manus-
indicativas dos diversos códices; das diversas edições ou editores e das abreviaturas mais crito com as mesmas
usadas; informações, como as colhidas no estudo histórico-literário, selecionadas de acor- características gráfi-
do com a importância dos esclarecimentos em relação à compreensão do texto. cas do texto original.
b. Texto reconstituído; as variantes que foram encontradas formam o “aparato crítico” (parte de Nesse tipo de edição,
o paleógrafo deve ler
uma edição crítica que contém a história da gênese do texto, anotações críticas ou estratos os manuscritos antigos
de outras versões; são ainda registradas todas as variantes, ainda que se trate de lições sin- (normalmente papi-
gulares), no rodapé de cada página, com a indicação do códice ou documento em que cada ros e pergaminhos),
variante se encontra. Conforme o caso, acrescenta-se os resultados da hermenêutica, como atribuir-lhe uma data e
interpretações, comentários, notas e os esclarecimentos obtidos pela exegese do pormenor. um local de edição ou
produção. Em regra, as
Dependendo do assunto, um glossário ajudará muito na compreensão do texto. edições paleográficas
dizem respeito a textos
antigos escritos em
2.4.2 Edição diplomática grego e latim. O editor
paleógrafo deve conhe-
cer os diferentes estilos
dos copistas e ser capaz
Consiste na “reprodução tipográfica do original manuscrito, como se fosse completa e per- de identificar os perío-
feita cópia do mesmo na grafia, nas abreviações, nas ligaduras, em todos os seus sinais e lacunas, dos em que os textos
inclusive nos erros e nas passagens estropiadas” (SPINA, 1977, p. 78). Atualmente, está em desu- foram escritos. Deve-se
so, porque a reprodução fotográfica tem tomado o seu lugar (esta tem, contudo, alguns inconve- notar que nem todos
nientes também). os copistas são fiáveis,
pois alguns eram, sobre
tudo desenhadores que
não sabiam ler o que
2.4.3 Edição paleográfica copiavam, produzindo
erros que se repetiam
de cópia em cópia.
Transcrição de um manuscrito antigo ([...]). Mais perfeita que a reprodução fac-similada, por- Fonte: Disponível em
<http://www.fcsh.unl.pt/
que ressalta particularidades do texto e do material que só um perito pode descobrir. edtl>. Acesso em 10 ago.
2009.

2.4.4 Outros tipos de edição

Com a tecnologia em expansão, vão surgindo outras formas de reprodução do texto: lito-
grafia, fotografia, fototipia, por meio de programas e equipamentos computacionais.
Edição comentada: aquela em que há explicações, notas e esclarecimentos sobre termos
técnicos ou específicos, vocábulos polissêmicos, alusões etc.
Edição escolar: para facilitar e adequar ao nível a que se destina, muitas vezes são suprimi-
dos itens considerados inconvenientes e a obra perde na sua integridade e valor.
Edição popular: destinada ao público em geral. Impressa em papel mais barato, composi-
ção cerrada e formato compacto, para diminuir o custo de produção e venda.
A diferença entre a edição crítica e as outras edições é o número de textos. A edição crítica
é pluritextual, e as outras edições são monotextuais. Cabe ao filólogo a busca da edição mais fiel
sempre.
Caros acadêmicos, vamos, agora, aprender, em linhas gerais, sobre os Métodos que podem
ser utilizados no trabalho filológico.

2.5 Métodos da filologia românica


Desde a época da biblioteca de Alexandria, surgiu a preocupação em preservar a cultura e o
passado, quando foram compiladas as obras antigas da literatura grega, principalmente de Ho-
mero. Entretanto, só a partir de 1500, com a Renascença, é que cresce, de fato, o interesse dos es-
tudiosos pela história cultural do seu país. Há um interesse pela filologia, dando origem à história
literária, porque no Oriente começava a despertar o desejo de preservação do seu passado, que,
por sua vez, remetia à Antiguidade greco-latina. Ao humanista cabia a tarefa de descobrir os ma-
nuscritos que ainda existiam, compará-los e tentar obter o texto original do autor.

37
UAB/Unimontes - 3º Período

Para fazer esse resgate, o estudioso conta com alguns métodos de trabalho. Uns métodos
são mais adequados, produtivos; outros trazem pequena contribuição. Assim, o recurso é a apli-
cação de mais de um método e confrontação dos resultados obtidos. Vejamos a seguir, sintetica-
mente, os mais conhecidos.

2.5.1 Método histórico-comparativo


De grande valia, com condições ideais de estudo para a reconstrução do léxico do latim vul-
gar e das línguas românica, também eficiente nos estudos das línguas germânicas e eslavas ou
grupos de línguas genealogicamente afins. Parte de fatos comprovados em textos observados
nas línguas estudadas. Processo de trabalho: recolhem-se os dados nas línguas com a mesma
origem; faz-se a comparação entre elas a fim de encontrar a forma originária, os fenômenos de
metaplasmos, verifica-se o significado, a formação de novos campos semânticos e o motivo ou
os motivos das formações e outros estudos. Ideal para os trabalhos na fonética, na morfologia,
no léxico e questões afins. Não ideal para o estudo da sintaxe, cujo motivo seria a dificuldade de
comprovar a regularidade e a frequência das correspondências em que o método se fundamen-
ta, porque a sintaxe é mais sujeita às particularidades não só individuais como coletivas.
BOX3
Exemplo verbo deixar
Derivou “deixar” supondo* delaxare. Com os metaplasmos: delaxare>delaixar>deleixar>-
deeixar>deixar; que se apoia nas formas desleixo e desleixado. Conclusão: tais alterações são
comuns na evolução normal dos vocábulos em português. Port.: deixar – tem seu registro a
partir do século XV variante da língua falada – leixar com caráter mais erudito se arcaizou. Dis-
leixo e desleixado – derivados de laxare, acrescido de outro prefixo – dis- ou de mais ex – mais
antigos. Vocábulos semanticamente afins, eruditos, em Português, com o étimo laxare: laxa-
ção, laxante, laxar, laxativo, laxidão, laxiorismo, laxiorista, laxiorístico, laxismo, laxista e laxo.

Fonte: VASCONCELOS, 1920.

2.5.2 Método idealista

Foge dos modelos propriamente filológicos, por ter estrutura de caráter filosófico e de lin-
guística geral. Tinha seu centro de estudos relacionado com a valorização de quanto de indivi-
dual e criador há na língua; o descobrimento do elemento artístico, estético e espiritual que há
em toda manifestação da linguagem, valorização da estilística e da sintaxe frente ao excessivo in-
fluxo da fonética, e por último, a colocação da História da literatura e da língua no mesmo nível.
Segundo Walther Von Wartbug, em Evolution et structure de la langue française, o método
idealista, apoiando-se em módulos históricos, linguísticos e descritivos, toma como ponto de
partida os fatos linguísticos sociais e individuais, relacionando a língua com os fatos sociais, polí-
ticos e literários do país. A língua é expressão da cultura e da “mundividência” do povo que a usa.
Desde os seus primeiros momentos, o método foi objeto de duras críticas, provenientes, em
grande parte, de autores positivistas, que tinham ressalvas quanto ao aspecto criador e indivi-
dual da língua, assim como a concepção da língua como produto estético, reflexo de uma deter-
minada cultura.
Outros estudiosos afirmam que a contribuição do método idealista dá resultados inexatos e
inconcludentes porque não há contato direto com os fatos linguísticos; parte dos fatos não são
levados em consideração em todos os seus aspectos, nem há relacionamento com um número
grande de causas; são selecionados por princípios não muito claros.

2.5.3 Método da geografia linguística

Ocupa-se com a situação em que uma língua se encontra num determinado momento, em
localidades ou em regiões previamente escolhidas. Não utiliza documentos escritos como objeto
de sua pesquisa, mas investiga, sobretudo a linguagem falada.

38
Letras Português - Filologia Românica

Conforme Câmara Jr (1986, p. 94), a geografia linguística é a técnica mais moderna de pes-
quisa na área da dialetologia e consiste no levantamento de mapas, de cartas geográficas, que
indicam a distribuição geográfica de cada traço linguístico dialetal.
A organização do método consiste na caracterização exata de suas etapas: elaboração dos
questionários; melhores meios de aplicação deles; seleção das regiões ou das localidades a se-
rem pesquisadas, de acordo com os objetivos propostos; definição do tipo e número de infor-
mantes, e outras variáveis. Tem como resultados da pesquisa os atlas linguísticos, que obedeciam
a rigoroso planejamento. Limitavam-se a uma área geográfica que pudesse ser estudada e esta-
beleciam-se normas para determinar o objetivo pretendido e a execução das pesquisas de cam-
po para coletar os dados. Depois de reunir os dados de todas as regiões do território, procedia-se
a seu processamento, até a elaboração e publicação do atlas respectivo.
Vários foram os atlas planejados, mas nem todos realizados ou concluídos, e sua metodolo-
gia variou bastante, particularmente em face da experiência dos que se foram realizando.
Para Bassetto (2005), a contribuição do método da geografia linguística para o estudo das lín-
guas românicas é muito valiosa, apesar do seu caráter unilateral que recolhe apenas os dados lin-
guísticos instantâneos. Não registra aspectos e vocábulos satíricos, familiares e afetivos por serem
de caráter sintético. Tem o mérito de possibilitar uma visão geral da situação atual da língua, além
de realizar o ideal neogramático de estudar a língua viva. Seus estudos mostraram que as palavras
se chocam, migram, arcaízam-se, renascem ou desaparecem, demonstrando que o fator deter-
minante em todo esse processo é o aspecto semântico, cuja busca fez nascer outros métodos de
pesquisa. Exemplo: em Port. ferrolho do latim verruculum. Port. /v/ inicial não passa a /f, ferrolho.
Pela etimologia popular, ligou-se a ferro (metal em que é fabricado) daí a mudança /v/ - /f.
Segundo Santiago e Dalpian (2001), as pesquisas de campo feitas através da geografia lin-
guística proporcionaram maior compreensão do processo de evolução histórica das formas lin-
guísticas. Assim, deduziram que as regiões mais afastadas dos grandes centros apresentam uma
resistência maior às variações, enquanto as regiões centrais e mais desenvolvidas culturalmente
aceitam melhor as inovações linguísticas.
Ex: O Atlas Linguístico da França(ALF), publicado em Paris, entre 1902 e 1910, pelo linguista
suíço Jules Guilliéron (1854-1926), registra 30 expressões para “avarento” e uma só para “rico” no
Galo – românia. Láhá cerca de 200 expressões para “avarento” e 80 para “rico”.
BOX 4
Excerto: Projeto Atlas Linguístico do Brasil

O Projeto Atlas Linguístico do Brasil tem por objetivo geral a descrição do português do
Brasil considerando os espaços geográficos e as variáveis sociais, gênero, faixa etária e grau
de escolaridade, a partir da coleta de dados tomados a 1.100 informantes, distribuídos por
250 localidades brasileiras, dentre as quais se incluem as capitais de Estado (exceto Palmas
e o Distrito Federal), observando-se a representação de todas as regiões. É coordenado por
um Comitê Nacional de que participam Suzana Alice Marcelino Cardoso (UFBA), Jacyra An-
drade Mota (UFBA), AbdelhakRazky (UFPA), Ana Paula Antunes Rocha (UFOP), Aparecida Ne-
gri Isquerdo (UFMS), Cléo Vilson Altenhofen (UFRS), Maria do Socorro Silva de Aragão (UFPB/
UFC), Mário Roberto LobuglioZágari (UFJF) e Vanderci de Andrade Aguilera (UEL). O corpus em
constituição resulta da aplicação sistemática de Questionários Linguísticos que recobrem as
áreas fonético-fonológica, semântico-lexical, morfossintática, pragmática, e incluem, ainda,
amostras de falas coletadas em discurso semidirigido e na leitura de texto. O produto final
do Projeto deverá atender aos objetivos e finalidades da Geolinguística, área em que se inse-
re, especificamente trazendo um mapeamento do português do Brasil, apresentando as par-
ticularidades de áreas e permitindo, com o traçado de isoglossas, o estabelecimento de uma
divisão dialetal do Brasil no tocante ao português brasileiro. A isso se acrescentam: (i) a contri-
buição para a formulação de políticas de ensino-aprendizagem da língua materna integradas
à realidade de cada área e tendo em vista a diversidade regional; (ii) o fornecimento de dados
para ampliação do volume de informações constantes de léxicos, glossários e dicionários ge-
rais; (iii) a indicação de fatores linguísticos com repercussão na história do povoamento do
país; (iv) a explicitação de interfaces dos estudos geolinguísticos com outros ramos do conhe-
cimento científico.

Fonte: Disponível em http://74.200.74.244/~munadmin/sites/default/files/proyectos/ALIB.htm. Acesso em 20 de


junho de 2014.

39
UAB/Unimontes - 3º Período

2.5.4 Método “wörterundsacher” (palavras e coisas)

“Palavras e coisas” traz o que há de vivo na linguagem. Há necessidade de se conhecer o


objetivo designado por determinado termo, a fim de se captar seu significado. “Conhecimento
das coisas fica mais fácil para se chegar ao significado correto e originário com que a coisa foi
primeiramente nomeada”(BASSETTO, 2005, p.79).Sabendo-se a natureza, as medidas, a forma, o
uso etc. dos objetos, é possível fixar a origem e a história das palavras com as quais esses mes-
mos objetos são designados. Estabelece a etimologia e até a biografia das palavras. Destaque à
Semântica. Tornou os estudos filológicos mais objetivos.
Segundo Ilari (2002, p.31), esse movimento buscava a verdadeira etimologia de uma palavra.
Há necessidade de um estudo minucioso da realidade que ela designa e dos conhecimentos que
a cercam. Os estudiosos da língua deveriam considerar com mais interesse as “coisas”, em oposi-
ção a outros movimentos que dedicavam atenção quase que exclusivamente às “palavras”. Para
ilustrar o estilo de pesquisa desse movimento, Ilari (2002) exemplifica com a palavra “fígado” e de
seus cognatos românicos (esp. hígado, fr.foie, it. Fegatto, cat. e prov. fetge). De acordo com o au-
tor, essas palavras são a tradução exata da palavra latina iecur, entretanto, não é possível traçar
entre esta e aquelas uma derivação fonética regular.Não se conhecia a “coisa” chamada ficatum.
Descobriu-se, depois, que a coisa etimológica estava no “hábito dos grupos engordar patos e por-
cas com figos para que o fígado desses animais ficassem maiores e melhores para o consumo”.
“Fígado engordado com figo”. (lat. ficum, port. figo), os gregos importaram o nome e o produto,
iecur ficatum – por braquissemia ficou apenas ficatum que tornou o étimo das formas românicas
em substituição a iecur. Com o passar do tempo, apenas a segunda parte da expressão (ficatus)
sobrevive, passando a significar genericamente o “fígado”. A dificuldade fonética foi o exame das
designações românicas que vêm de ficatum, proparoxítona, recente influência dos gregos.

2.5.5 Método onomasiológico

Com objetivos semânticos e lexicológicos, estuda as dominações, os diversos nomes dados


a um objeto, animal, planta, conceito, individualmente ou em grupo, dentro de um ou de varia-
dos domínios linguísticos, com os aspectos vivos e as forças criadoras da linguagem.
Segundo Ilari (2002, p.31), o método onomasiológico “consiste no levantamento de todas
as expressões que designam um mesmo objeto ou conceito”. Essa linha de pesquisa leva a repre-
sentar o léxico “como um conjunto de ‘campos semânticos’, estruturados por relações de sinoní-
mia e posição”. Tem em comum os métodos de geografia linguística e o de palavras e coisas; não
foi criado por um só pesquisador, pois ele se desenvolveu aos poucos. Ver a cultura do povo, cuja
língua se estuda, costumes, ocupações, instrumental, crenças e crendices, moradia – sua mundi-
vidência. Segue caminhos contrários à etimologia do significante para os significados – da his-
tória da palavra, desde a época mais antiga até os dias atuais, explicando as diversas influências
sofridas pelos vocábulos, os cruzamentos semânticos, vitalidade e frequência de uso.
Para Bassetto (2005), esse método teve uma grande contribuição para os estudos da lingua-
gem ao permitir identificar a cultura de um povo através do estudo de seu léxico, ou seja, permi-
te sentir a linguagem viva, traduzindo a vivência cultural de um povo.

2.5.6 Neolinguístico ou espacial

Esse método apresenta o modo pelo qual a história dos diversos aspectos das línguas dei-
xa seus traços no espaço. A partir dos dados da Geografia Linguística, mascara relações cronoló-
gicas entre os vários fenômenos linguísticos. Conforme Bassetto (2005), havendo palavras dife-
rentes em fases cronológicas distintas para um significado, a forma da área mais afastada ou de
acesso difícil costuma ser a mais antiga. O método se apresenta como normas(norma – corres-
ponde aos fatos);

a) áreas afastadas: dificuldade de acesso: interposição de montanhas e outros acidentes


geográficos.
b) formas de regiões periféricas são mais antigas que as correspondentes centrais;

40
Letras Português - Filologia Românica

c) são mais antigas: palavras conservadas em áreas mais amplas que as correspondentes, de
áreas mais restritas;
d) regiões de latinização mais tardia: conserva formas mais antigas (especialmente em rela-
ção à Itália);
e) palavras desaparecidas, arcaizadas, menos usuais são mais antigas.

Ressalta-se que as normas de área são muito esquemáticas. Os fatos linguísticos não podem
se reduzir à fórmula rígida. Há necessidade de se observar as grandes variações provocadas por
fatores sociais e estilísticos dos diversos estratos. Os fatos contrários ao que elas estabelecem não
são tão raros. Embora ajudem a determinar as características gerais e as tendências das línguas e
dialetos românicos, suas normas carecem da abrangência e da precisão necessárias, e sua contri-
buição específica foi mais negativa que positiva.

2.5.7 Método da teoria das ondas (Wellentheorie)

A contribuição do método não abrange a totalidade do fato linguístico; apenas o observa e


o acompanha no espaço, mas não explica sua natureza ou as causas múltiplas que podem pro-
duzi-lo. As inovações linguísticas se propagam como ondas, irradiadas continuamente de centros
geográficos humanos de prestígio, que se cruzam e entrecruzam com frequência. Relaciona-se
com a geografia linguística. Combinado com elementos da Geografia Linguística, da Linguística
Espacial e de outros métodos pode ser útil à Filologia Românica.
Caros acadêmicos: as principais linhas metodológicas entrecruzam-se e, combinadas, auxi-
liam-se mutuamente. Da geral se concebe outras mais específicas. Cada estado da língua é con-
tinuação de um anterior e, por sua vez, encerra os germens que o tornarão um novo estado lin-
guístico. Se a filologia encerra os estudos possíveis sobre uma língua ou grupo de línguas, para
tanto vai necessitar, muitas vezes, do fio condutor constituído por sólida base linguística.

Considerações finais
Queridos acadêmicos,
Chegamos ao fim de mais uma disciplina e, como sempre, nessa etapa, chega também a
avaliação. Este é o melhor momento para pensarmos em um trecho da música de Beto Guedes
(nascido Montes Claros), o qual contém muita sabedoria: “A lição sabemos de cor, só nos resta
aprender.” Será que aprendemos?
Naturalmente, não queremos essa resposta agora, mas ao longo do nosso curso. Espera-
mos que vocês tenham lido e aproveitado muito desse conteúdo e utilizado o Fórum para tirar
as dúvidas e conversar sobre os temas pertinentes ao curso, pois através desses momentos é que
construímos a verdadeira aprendizagem.
Estamos convictos de ter apresentado apenas um breve relato da Filologia Portuguesa nos
últimos anos, relato este que ainda há de ser completado e retificado futuramente. Uma inves-
tigação mais extensa sobre a pesquisa filológica no Brasil exigirá não apenas a incorporação de
dados de outros estudos, tais como os locais, regionais ou estrangeiros, mas também um rastrea-
mento minucioso das publicações da área no país e no exterior. Na impossibilidade de incluir
neste texto informações obtidas através de todos esses instrumentos, deixamos aqui essa contri-
buição e externamos-lhes o desejo de continuidade deste trabalho, pois sabemos que muito terá
sido deixado de se expor, pela exiguidade natural do tempo e da regra de espaço.
Os trabalhos filológicos precisam de muitos pesquisadores, infelizmente não ainda em nú-
mero suficiente para suprir todas as carências. Na verdade, a Filologia, no Brasil, ainda não se re-
cuperou de todo do impacto provocado pela introdução da Linguística, porque ainda ocupa um
lugar marginal nos cursos de graduação, ficando como apêndice das disciplinas “Filologia Româ-
nica” ou “História da Língua Portuguesa”. Tal condição suscita a ideia errônea de que a preocupa-
ção com a “fidedignidade dos textos é relevante apenas em relação a textos medievais ou renas-
centistas, ou seja, textos que remontam à época da tradição apenas manuscrita”: a preocupação
com a autenticidade do texto é também fundamental mesmo quando se trata de obras que da-
tam já de depois da imprensa. Uma amostra dessa falta de preocupação com o texto moderno é
descrita por Gomes (1986) em seu trabalho sobre a fidedignidade dos textos nos livros didáticos
no Brasil: demonstra a pesquisadora que

41
UAB/Unimontes - 3º Período

as diversas deturpações e mutilações que os livros didáticos fazem ao repro-


duzir textos de grandes nomes da literatura brasileira. O compromisso com a
fidedignidade na transmissão e a compreensão de quanto é grave a adulte-
ração dos textos são atitudes indispensáveis nos profissionais que trabalham
com textos (não apenas os literários, mas também os não literários – que são
fundamentais para os estudos linguísticos) e precisam ser provocadas através
de reflexão sobre Crítica Textual, tarefa que é de responsabilidade da Filologia.
Daí, portanto, a importância de esta disciplina ocupar o lugar que lhe é devido
na formação dos alunos de Letras (GOMES, 1986).

Neste caderno, buscamos apresentar uma reflexão para que vocês, futuros licenciados em
Letras, usem o conhecimento sócio-histórico-cultural que adquirem nas aulas da disciplina Filo-
logia Românica em sua prática de ensino. Refletir sobre esse conhecimento fará com que enten-
dam a dinâmica da língua que se usa e que se ensina na escola. Vocês não podem deixar de lado
o componente cultural no momento em que ensina gramática, literatura e técnicas de redação.
Tudo isso junto reflete o todo que compõe a sociedade atual, herdada de gerações e gerações.
É urgente que os egressos de Letras analisem o processo de construção das suas identidades e
que seja passado para os(as) alunos(as), a fim de que todos juntos entendam os mecanismos que
compõem e que seguirão compondo as sociedades.
Trabalhar com textos, sejam estes literários ou não, verificar naqueles as ocorrências relati-
vas às mudanças linguísticas, históricas, culturais é um exercício que será revelado na prática do
licenciado em Letras. Entretanto, sabe-se que muitos dos egressos dos cursos de Letras, ao in-
gressarem no mercado de trabalho, seguem a cartilha que as escolas determinam, ensinando a
língua materna sem a devida reflexão dos aspectos sócio-histórico-culturais que a compõem e
que a tornam um bem inestimável para todos os seus usuários (GOMES, 1986).

Sucesso em seus estudos!

Referências
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dade de São Paulo, 1977.

42
Letras Português - Filologia Românica

Resumo
Filólogos e linguistas, mesmo com objetivos diferentes, continuam a analisar o mesmo obje-
to, a língua. Para os primeiros, o texto é documento da língua, para os segundos, a língua existe
enquanto atividade comunicativa documentada no texto. Nesta ou naquela perspectiva, o ob-
jeto final enfocado será sempre a língua. Dirige-se, então, à Filologia, ao conhecimento de uma
civilização, de uma cultura através de documentos escritos, tendo como instrumento principal
o estudo da língua. Ao buscar a lição autêntica do testemunho, a filologia pode dar inestimável
contribuição ao estudo de nossa literatura e, sobretudo, da história de nossa língua. Podemos
observar que a compreensão de certos fenômenos linguísticos, históricos nos faz compreender
os fatos da língua atual. Vimos como uma língua evolui durante o seu uso no decorrer do tempo
e que essa evolução cria dialetos, que podem vir a se transformar numa língua diferente, como
ocorreu com o latim, principalmente depois da queda do Império Romano no século V. Vimos,
também, que da língua latina surgiram diversas línguas românicas, uma das quais foi o portu-
guês, e que a sua evolução se deu, em alguns casos, de forma espontânea e, em outros, de forma
motivada. Apesar de serem fatos consolidados, podem mesmo assim suscitar opiniões diversas
no que diz respeito ao conceito da disciplina. Silveira Bueno (1967) sabiamente afirmou que os
textos podiam ser belos ou feios, em poesias ou em prosa. Isso não importa ao filólogo. Importa-
lhe unicamente que sejam verdadeiros, da época e do autor a que são atribuídos e que estejam
na sua forma perfeita; para isso, deve o filólogo estar preparado em paleografia, em hermenêuti-
ca e em todos os ramos do conhecimento que forem necessários para restabelecer as passagens
obscuras, para elucidar os pontos falhos ou de difícil intelecção, para, enfim, restabelecer os tex-
tos em toda a sua verdadeira fisionomia de documento do passado.

43
Letras Português - Filologia Românica

Referências
Básicas

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46
Letras Português - Filologia Românica

Atividades de
Aprendizagem - AA
1) Dos enunciados a seguir, marque a letra “V” se o enunciado for VERDADEIRO, e a letra “F”, se
FALSO:
a) ( ) A Filologia preocupa-se com as atividades da linguagem do homem e de suas manifesta-
ções através das obras de arte escritas nessa linguagem, mais as disciplinas que delas cuidam
metodicamente.
b) ( ) Embora historicamente a Crítica Textual tenha privilegiado o estudo dos textos literários,
atualmente considera tanto os textos literários como os não literários.
c) ( ) Crítica Textual é um estatuto determinante, na medida em que condiciona os objetos de
outras disciplinas e influi, consequentemente, na qualidade e no alcance dos respectivos produ-
tos, nas edições que apresenta.
d) ( ) No plano linguístico, a Filologia não considera os vários aspectos da história das línguas,
sua evolução, as influências que receberam, a fragmentação dialetal, todos os fenômenos rela-
cionados com a fonologia, a morfologia, a sintaxe e o léxico.
e) ( ) Os Hindus sentiram necessidade de preservar os textos religiosos dos Vedas, considerados
sagrados, para que os hinos e cânticos não sofressem nenhuma alteração durante a sua execu-
ção nos ritos religiosos, pois sendo apenas falada, a língua tende a deturpar-se.
f ) ( ) Pânini, ao estudar a língua Sânscrita, ficou limitado apenas a estudar os textos sagrados;
estudou principalmente a língua de seu tempo.

2) Numere a 2 coluna de acordo com a 1ª


1. Autógrafo ( ) Edição popular.
2. Apógrafo ( ) Cópias manuscritas ou impressas de uma obra.
3. Idiógrafo ( ) A primeira edição impressa de uma obra.
4. Apócrifo ( ) Original escrito pelo próprio autor.
5. Testemunhos ( ) Do próprio autor que a assina.
6. Lição ( ) Original escrito sob o controle direto do autor.
7. Edição príncipe ou princeps ( ) De falsa procedência ou de fonte duvidosa.
8. Vulgata editio ( ) Cópia derivada do original.
9. Obra autêntica ( ) A leitura de uma passagem determinada do texto transmi-
tido por um testemunho.

3) Dos enunciados a seguir, marque a letra “V” se o enunciado for VERDADEIRO, e a letra “F”, se FALSO.
É papel do filólogo:
a) ( ) Estabelecer, através do estudo e da análise dos manuscritos, as diversas versões do texto.
b) ( ) Corrigir os possíveis erros encontrados nos textos e restaurá-los em toda a sua possível
perfeição.
c) ( ) O filólogo não precisa se incomodar com a análise de texto nem com o estudo do objeto
de que ele trata.
d) ( ) Estabelecer a autenticidade de textos anônimos ou autoria duvidosa, colocando-os em sua
época devida.

4) Após séculos de dominação da cultura e do idioma romano, as línguas românicas vão surgir
e se desenvolver nas províncias em que a latinização tinha lançado raízes mais profundas e
resistentes a mudanças políticas e sociais, bem como a intermináveis guerras e invasões. Dis-
tinguem-se então várias etapas neste processo de evolução do latim vulgar para as línguas e
dialetos românicos.
Sobre essas etapas, é INCORRETO afirmar que
a) ( ) substrato: “são as marcas linguísticas advindas do povo que abandona seu idioma, levadas
para a língua que passa a adotar”.
b) ( ) no que diz respeito à contribuição do superstrato para a origem das línguas românicas, de-
ve-se principalmente tomar em consideração o superstrato germânico.

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UAB/Unimontes - 3º Período

c) ( ) na fase do bilinguismo, o povo dominado passa a usar o idioma do povo dominador por
período de tempo indeterminado.
d) ( ) adstrato é a denominação dada à língua que coexiste com outra no mesmo espaço territo-
rial, influenciando-a e dela recebendo influência.

5) Friedrish Diez tornou-se o pai da Filologia Românica aplicando o método histórico-comparati-


vo às línguas românicas, obtendo excelentes resultados.
Assinale a alternativa INCORRETA, considerando o assunto acima.
a) ( ) O método histórico-comparativo é aplicável a casos de grupos de línguas genealogicamen-
te afins.
b) ( ) A utilização do método histórico-comparativo deu à Filologia Românica uma perspectiva
histórica mais coerente e adequada.
c) ( ) O uso criterioso do método histórico-comparativo foi e continua sendo profícuo e muito
útil para o conhecimento tanto do latim vulgar como das línguas românicas.
d) ( ) Os resultados do método histórico-comparativo foram satisfatório sem todos os níveis da
linguagem.

6)A língua portuguesa proveio do latim vulgar que os romanos introduziram na Lusitânia, região
situada ao ocidente da Península Ibérica.
Das alternativas abaixo, assinale a única que NÃO corresponde à afirmativa acima.
a) ( ) As circunstâncias históricas em que se criou e se desenvolveu nosso idioma estão intima-
mente ligadas a fatos que pertencem à história geral da Península.
b) ( ) É falsa a afirmação de que o português é o próprio latim modificado.
c) ( ) Pode-se afirmar que o idioma falado pelo povo romano não morreu, mas continua vivo,
transformado no grupo de línguas românicas ou novilatinas.
d) ( ) O latim que se vulgarizou no território ibérico foi o do povoinculto, o sermovulgaris, ple-
beius ou rusticus.

7) Marque a proposição INCORRETA.


a) ( ) Função substantiva: é a explicação do texto, restituição à sua forma genuína através dos
princípios da Crítica Textual e preparação técnica para publicação.
b) ( ) Função adjetiva: a filologia não se interessa com a série de problemas, que não estão no
texto, mas deduzem-se deles, nas etapas da investigação literária.
c) ( ) Função transcendente: o texto deixa de ser um fim em si mesmo da tarefa filológica para se
transformar na reconstituição da vida espiritual deum povo ou de uma comunidade em determi-
nada época.
d) ( ) Função adjetiva: o trabalho do filólogo é a determinação de autoria, biografia do autor, da-
tação do texto, sua posição na literatura do autor e da época bem como a sua avaliação estética
(valorização) perante os textos da mesma natureza.

8) Marque com a letra ”V” se a proposição for VERDADEIRA, e com “F”, sefor FALSA.
O estudo filológico de um texto ou documento perpassa as seguintes etapas:
a) ( ) Sua datação.
b) ( ) Seu deciframento, recorrendo-se à paleografia, à diplomática, à codicologia e à bibliologia.
c) ( ) Seleção de qualquer testemunho através dos confrontos dos “lugares críticos” e do exame
sistemático.
d) ( ) Seleção só de citações diretas.
e) ( ) Análise das variantes.
f ) ( ) Verificação da tradição – recensio.
g) ( ) Segue-se a examinatio, para escolha do texto-base.
h) ( ) Colação das várias lições.
i) ( ) Emendatio, no que respeita a passos duvidosos e reparação de “erros”.

9) As línguas evoluem, se diferenciam, tomam empréstimos, são substituídas, dominam e são


dominadas. Abaixo, apresentam-se as causas dessa evolução, EXCETO:
1) ( ) A histórica, em que as conquistas romanas aconteceram em diferentes épocas; as primeiras
terras romanizadas receberam a língua mais popular, enquanto as últimas conheceram um latim
mais erudito.
2) ( ) A extensão territorial e a topografia irregular de vários domínios romanos não interferem
na evolução linguística.

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Letras Português - Filologia Românica

3) ( ) A política é explicitada pelas invasões e imposição cultural e linguística que pode originar
dialetos mistos, foi o que aconteceu com a língua latina.
4) ( ) A etnológica pode ser notada através dos diversos povos de raças diversas dominados pelo
Império Romano, onde eram falados diversos idiomas.

10 ) Marque com a letra ”V” se a proposição for VERDADEIRA, e com “F”, se for FALSA.
a) ( ) Os manuscritos podem também ser alterados por censura, gastos pelo tempo e pelos ver-
mes.
b) ( ) Uma edição crítica é um ponto de partida para a publicação de textos, em edições corren-
tes, escolares ou de divulgação, destinadas a um público amplo.
c) ( ) O editor paleógrafo deve conhecer os diferentes estilos dos copistas e ser capaz de identifi-
car os períodos em que os textos foram escritos.

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