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Neurotoxoplasmose

Quadro clínico

Paciente do sexo feminino, 43 anos de idade, HIV positivo, descontinuou tratamento com
antirretrovirais há 2 anos. Evolui com quadro de cefaleia há 1 mês; na última semana,
apresentou déficit de força em hemicorpo esquerdo e há 1 dia, confusão mental. Realizou TC
de crânio com múltiplas lesões com captação de contraste em anel.

Comentário

Paciente HIV positivo, sem tratamento, presumivelmente com contagem baixa de linfócitos
CD4, apresenta quadro de cefaleia, déficit neurológico e múltiplas lesões que captam contraste
em tomografia. A principal hipótese é neurotoxoplasmose, que será discutida a seguir.

Neurotoxoplasmose

A toxoplasmose é uma doença causada por parasita com distribuição mundial, cujo agente é o
Toxoplasma gondii, que é um protozoário intracelular obrigatório. Em pacientes
imunocompetentes, pode causar síndrome mono-like ou cursar assintomático; infecção
latente pode persistir por toda a vida. Em imunodeprimidos, particularmente no paciente com
Aids, pode cursar com reativação da doença, em geral quando a contagem de linfócitos CD4 se
torna menor que 100 cels/mm3. Todos os pacientes HIV positivos devem realizar rastreamento
com sorologia para toxoplasmose e, para os casos indicados, a profilaxia deve ser iniciada.

A soroprevalência da toxoplasmose é variável, mas se aproxima de 15% nos Estados Unidos e é


semelhante em pacientes HIV positivos e negativos. O risco do paciente com Aids com CD4
abaixo de 100 cels/mm3 de desenvolver toxoplasmose é de 30%, caso não receba a profilaxia
adequada. Nestes pacientes, o sítio mais frequente de aparecimento é o sistema nervoso
central, na forma conhecida como neurotoxoplasmose.

A toxoplasmose extracerebral envolve sobretudo pulmões, causando pneumonites e


toxoplasmose ocular com coriorretinite. No paciente imunodeprimido por HIV, o parasita
causa lesões granulomatosas no parênquima cerebral, que determinam as manifestações
neurológicas focais, sinais e sintomas de hipertensão intracraniana, sinais de irritação
meníngea, convulsões, alterações do nível de consciência e coma. Tais manifestações fazem
parte da síndrome geralmente associada com a neurotoxoplasmose.

A neurotoxoplasmose é a principal causa de lesão com efeito de massa no SNC em pacientes


com Aids, representando cerca de 50 a 70% desses casos. Acontece em 3 a 10% dos pacientes
com Aids nos Estados Unidos e em 25 a 50% na Europa e África. Nos últimos anos, a frequência
de neurotoxoplasmose tem diminuído em virtude do uso dos esquemas HAART e da profilaxia
contra Pneumocistis jiroveci com trimetoprim-sulfametoxazol.

O quadro clínico costuma ser subagudo, com duração de duas a três semanas. Os sinais e
sintomas mais frequentes são: alterações sensoriais que ocorrem em 50 a 90% dos casos,
hemiparesia e outros sinais focais ocorrem em cerca de 60% dos pacientes. Cefaleia ocorre
entre 50 e 55% dos casos; convulsões (30%), acidentes cerebrovasculares (30%) e sinais de
irritação meníngea (menos de 10%) também são descritos. Febre é uma queixa comum em
47% dos pacientes; confusão e coma podem estar presentes.

A manifestação mais comum no serviço de emergência é de déficit motor focal, geralmente


hemiparesia ou hemi-hipoestesia, associado à confusão mental, que se instala no decorrer de
dias, ou ainda de forma súbita, com cefaleia, febre e ataxia.

Ao exame neurológico, o paciente muitas vezes está sonolento, com déficit motor focal, como
hemiparesia, com sinais de liberação piramidal, ataxia e lentificação psicomotora, com
manifestações sobretudo quanto ao nível de consciência, que podem ser flutuantes.

Os exames de imagem são fundamentais para o diagnóstico. A tomografia de crânio e a


ressonância magnética mostram lesões nodulares que podem ser únicas ou múltiplas,
ovaladas, predominantemente profundas, localizadas na região dos gânglios da base, na região
cortico-subcortical na substância branca profunda ou na transição entre substância branca e
cinzenta. Muitas vezes, as lesões são cercadas por um halo de edema acentuado, que pode ser
evidenciado no contraste com captação formando imagens com reforço anelar (1 a 2 cm), em
geral com sinais de sangramento intralesional, associadas a edema perilesional significativo
reforçando o efeito de massa da lesão (Figura 1). Este aspecto, apesar de muito sugestivo de
neurotoxoplasmose, não é exclusivo, podendo ocorrer também nos linfomas e outras doenças
granulomatosas cerebrais. Um estudo mostrou que 70% dos pacientes apresentam lesões
múltiplas em tomografia e 30% dos pacientes apresentam lesão única. Pacientes com lesão
única à tomografia devem ser submetidos necessariamente a ressonância magnética.
Figura 1. Neurotoxoplasmose: múltiplas imagens com captação de contraste em T1.

A ressonância magnética é mais sensível que a tomografia, mas só deve ser feita se o exame
tomográfico for inconclusivo. Um estudo demonstrou que a ressonância pode achar até 40%
de lesões não encontradas no estudo tomográfico, as quais influenciariam o manejo do
paciente. Nos casos com achado de lesão única na ressonância magnética, a biópsia cerebral
estereotáxica provavelmente será necessária. Vale lembrar que o diagnóstico diferencial de
lesões ocupadoras de espaço em pacientes com sorologia positiva para HIV é extenso e deve
incluir:

Linfoma primário do SNC: cerca de 20 a 30% dos casos, inclusive eventualmente com lesões
múltiplas;

Leucoencefalopatia multifocal progressiva: 10 a 20% dos casos, ainda assim apresentação


atípica da doença.

Outros diagnósticos: sarcoma de Kaposi, tuberculose, infeções por fungos como a


criptococose, abscessos bacterianos, micobacteriose e herpes vírus.

Os principais diagnósticos diferenciais de acometimento do sistema nervoso central em


pacientes com Aids são mostrados na Tabela 1.

Tabela 1. Principais causas de acometimento de SNC em Aids


Lesões neurológicas focais

Meningites/meningoencefalites

Neurotoxoplasmose

Neurotuberculose

Linfoma primário de SNC

Neurocriptococose

Outras menos comuns: tuberculoma, criptococoma, LEMP (evolução crônica)

Meningite bacteriana (pneumococo, hemófilos, meningococo e listeria)

Evento vascular: AVC/AIT

Meningite viral

A realização de tomografia de emissão de pósitrons (PET) ou tomografia com emissão de tálio


(SPECT) pode ajudar no diagnóstico diferencial, uma vez que o linfoma apresenta maior
captação de tálio no SPECT e maior metabolismo de glicose no PET com flúor-deoxiglicose.

O líquido cefalorraquidiano (LCR) não é coletado de rotina nestes pacientes. Em 20 a 30% do


casos, ele é normal, podendo apresentar uma proteína abaixo de 150 mg/dL. Quando essa
hipótese diagnóstica é formulada pelos achados descritos anteriormente, sua coleta não é
mandatória. Pleiocitose linfocítica e monocítica (geralmente com menos 200 céls/mm3 e
percentual baixo de neutrófilos) e hiperproteinorraquia (com elevação dos teores de
gamaglobulinas) discreta podem ocorrer. Eventualmente, taquizoítas podem ser observados
no LCR, o que é virtualmente diagnóstico. A PCR para T. gondii tem alta especificidade,
chegando a 96%, mas baixa sensibilidade (50 a 90%) para o diagnóstico e seu resultado pode
demorar alguns dias.
Outro dado importante é a presença de sorologia positiva para toxoplasmose para IgG. A
sorologia negativa torna o diagnóstico improvável. Dados de estudos diagnósticos mostram
que a sorologia para Toxoplasma gondii é positiva em 84% dos pacientes e negativa em 5 a
15% dos casos.

O diagnóstico definitivo é feito por biópsia cerebral, entretanto, na maioria das vezes, não é
necessária. O diagnóstico presuntivo de neurotoxoplasmose pode ser realizado em paciente
com Aids e menos de 100 linfócitos CD4/mm3, desde que os 3 critérios seguintes estejam
presentes:

Paciente com sorologia positiva para Toxoplasma gondii (Acs IgG);

Paciente sem profilaxia para neurotoxoplasmose;

Presença de imagem típica com realce anelar do contraste.

Quando estes 3 critérios estão presentes, a chance do diagnóstico ser neurotoxoplasmose é de


90% e, assim, sugere-se que seja iniciado tratamento empírico. Em outros casos, a biópsia
pode ser necessária.

Tratamento

O tratamento deve ser iniciado empiricamente em todos os casos, exceto em pacientes com
lesões grandes que precisam de descompressão externa e biópsia, pacientes com lesões
sugestivas de linfoma na tomografia (T1 SPENT ou com emissão de pósitrons FDG-PET) e em
pacientes com lesão única e sorologia negativa para T. gondii.

A primeira opção de tratamento é a sulfadiazina (100 mg/kg/dia: 4 a 6 g) dividido em 4 doses,


associado à pirimetamina (dose de ataque de 100 a 200 mg no primeiro dia; manutenção de
50 a 75 mg/dia) e ácido folínico (10 a 15 mg/dia). A duração do tratamento é de 3 a 6 semanas;
posteriormente profilaxia é indicada em doses menores das mesmas indicações.

Em pacientes alérgicos a sulfas (ou intolerantes), pode-se substituí-la por clindamicina (2,4 a
4,8 g/dia divididos em 4 doses), mantendo a pirimetamina e o ácido folínico.

Regimes alternativos

Trimetroprim-sulfametoxazol (5 mg/kg trimetroprim e 25 mg/kg sulfametoxazol), 2


vezes/dia;

Pirimetamina com azitromicina (900 a 1.200, 1 vez/dia);

Primetamina e atovaquona (1.500 mg, 2 vezes/dia);

Sulfadiazina (1.000 a 1.500 mg, 4 vezes/dia) e atovaquona (1.500 mg, 2 vezes/dia);

Atovaquona (1.500 mg, 2 vezes/dia).

Lembrando que todos os regimes com pirimetamina necessitam de uso de ácido folínico.

Os estudos com TMP-SMX mostram eficácia similar ao dos regimes de primeira linha. Ainda
assim, não pode ser considerado regime de primeira linha, pois as evidências de sucesso são
menores que o do regime com sulfadiazina.

Corticosteroides

Seu uso é controverso, podendo mascarar sintomas de outras doenças com efeito de massa,
como linfoma, mas deve ser considerado se houver edema significativo e lesões com efeito de
massa importante. A literatura considera indicações do uso de glicocorticoides as seguintes
situações:

Evidência radiológica de desvio de linha média;

Sinais de hipertensão intracraniana;

Deterioração clínica nas primeiras 48 horas de tratamento.

Neste caso, a dose usual de corticosteroides é de 4 mg de dexametasona a cada 6 horas, com a


dose sendo eventualmente diminuída conforme resposta clínica no curso de vários dias. Um
problema do uso de glicocorticoides é a avaliação da melhora clínica, que pode ser secundária
ao uso de esteroides e não a antibioticoterapia. Mesmo melhora radiológica pode ser difícil de
avaliar, pois estas medicações também afetam o quadro de edema, de modo que se deve, a
princípio, evitar seu uso.

Anticonvulsantes

Usar em pacientes com antecedente de epilepsia, uso profilático não parece ter benefício.

A melhora clínica precede a radiológica; assim, avaliação neurológica diária é importante no


manejo destes pacientes. Reavaliação com imagem costuma ser realizada somente após 2 a 3
semanas de tratamento, exceto se paciente não apresentar melhora ou deterioração do
quadro clínico. Vale lembrar que mais de 85% dos pacientes respondem ao tratamento após
14 dias.

Ausência de melhora após 10 a 14 dias de tratamento necessariamente deve levantar a


hipótese de diagnóstico alternativo.
Profilaxia

Pacientes soropositivos para T. gondii devem receber profilaxia, que é indicada em pacientes
com CD4 < 100 cels/mm3 com sorologia IgG positiva para toxoplasmose. Em pacientes com
síndrome de reconstituição imune, pode-se descontinuar a profilaxia quando a contagem de
CD4 estiver acima de 200 cels/mm3 por mais de 3 meses.

Profilaxia secundária

Após 6 semanas de tratamento para neurotoxoplasmose, pode-se utilizar doses menores das
medicações, o que se considera profilaxia secundária. Sua indicação é obrigatória, pois, sem
ela, a taxa de recorrência chega a 60%; já com uso de profilaxia secundária, a taxa é de 20%.

O principal esquema profilático usado é sulfadiazina 2 a 4 g/dia associada a pirimetamina 25


mg/dia e ácido folínico 10 a 15 mg/dia. Esquemas alternativos são:

Clindamicina (1,2 a 2,4 g/dia);

Pirimetamina (25 a 50 mg/dia);

Ácido folínico (10 a 15 mg/dia);

Dapsona (100 mg/dia) com pirimetamina (25 a 50 mg/dia) e ácido folínico (10 a 15 mg/dia);

Atovaquona 750 mg, 2 a 4 vezes/dia, com ou sem pirimetamina e ácido folínico (o uso da
atovaquona sem pirimetamina é associado a recidiva em 25% dos pacientes).
Critério para descontinuação da profilaxia: contagem de CD4 > 200 cels/mm3 por 3 meses
consecutivos.

Prescrição

A prescrição sugerida para este paciente é mostrada na Tabela 2.

Tabela 2. Prescrição sugerida para o paciente deste caso

Prescrição

Comentário

Dieta assistida oral

Paciente com quadro de confusão mental e lesão neurológica ainda sem rebaixamento
significativo de nível de consciência, mantida a dieta assistida

Sulfadiazina 1,5 g a cada 6 horas e pirimetamina 200 mg no primeiro dia, seguido de 75 mg/dia

Tratamento padrão da neurotoxoplasmose

Medicações

Derivados da sulfa: sulfametoxazol, sulfadiazina

Os derivados da sulfanilamida possuem estrutura similar ao ácido para-aminobenzoico (PABA),


fundamental para a síntese do ácido fólico pelos agentes microbianos.
Modo de ação

A medicação inibe a síntese do ácido fólico, precursor das purinas, componente do material
genético. Ocorre inibição da atividade da enzima di-hidropteroato-sintetase, com diminuição
da síntese do ácido di-hidrofólico.

Os principais agentes utilizados na prática médica são a sulfadiazina e a associação do


sulfametoxazol com uma diaminopirimidina, o trimetoprim (SMX-TMP).

Posologia e modo de uso

Na maioria das infecções, usa-se 800 mg de SMX com 160 mg TMP a cada 12 horas (EV ou IM).
Para pneumocistose, usa-se 75-100 mg/kg/dia de SMX e 15 a 20 mg/kg/dia de TMP, com a
dose dividida a cada 6 ou 8 horas por 21 dias. É necessário ajuste para função renal e hepática.

Indicações

O espectro de ação engloba cocos gram-positivos (sensibilidade variável), fungos como


Pneumocystis carinii, protozoários como Isospora belli, micobactérias como Mycobacterium
kansasii, Mycobacterium marinum e Mycobacterium scrofulaceum e espécies como Nocardia
asteroides.

Clinicamente, constitui terapêutica de escolha para pneumocistose, isosporíase e nocardiose.


Habitualmente é utilizada para infecções urinárias (baixas) não complicadas por agentes
sensíveis, donovanose, legionelose, salmonelose, doença de Whipple (terapia combinada),
alternativa para toxoplasmose e infecções por Stenotrophomonas maltophilia.

Efeitos adversos

Reações gastrintestinais como náuseas e vômitos são frequentes. Também são descritas
anemia aplástica, anemia hemolítica e megaloblástica. Reações cutâneas com dermatite
esfoliativa, Stevens-Johnson e necrólise epidêmica tóxica podem ocorrer, sobretudo em
idosos, mas são raras.

Apresentações comerciais

Há disponibilidade da forma oral e parenteral (EV) do SMX-TMP, com meia-vida da droga em


torno de 10 horas, índice de ligação proteica de 50 a 70% e passagem através da barreira
hematoencefálica, mesmo em meninges não inflamadas. O comprimido ou ampola contém 80
mg de trimetoprim e 400 mg de sulfametoxazol. A formulação com dose dobrada apresenta
160/800 mg, respectivamente.

Os nomes comerciais são vários entre eles: Bactrim®, Assepium®, Bacgen®, Bacteracin®,
Benectrim F®, Bactrisan®, Bacfar®, entre outros.

Monitoração

Sem indicação específica de monitoração.

Classificação na gestação

Classe C.

Interações medicamentosas

Uso com metotrexato e pirimetamina podem piorar citopenias graves. Pode ainda
potencializar os efeitos de varfarina, fenitoína e clorpropamida.

A sulfadiazina possui propriedades semelhantes ao sulfametoxazol, sendo utilizada


prioritariamente no tratamento de paracoccidioidomicose e toxoplasmose em doses e
esquemas variados. É disponível em comprimidos de 500 mg.
Pirimetamina

Modo de ação

Inibe a di-hidrofolato-redutase resultando em diminuição da síntese do ácido fólico.

Indicações

Tratamento da toxoplasmose, pneumocistose e isosporíase.

Posologia e modo de uso

Na toxoplasmose cerebral em pacientes com Aids, a dose de ataque é de 200 mg e depois 50 a


100 mg diários pelo resto da vida; após 3 a 8 semanas, pode-se tentar reduzir a dose para 25
mg/dia. Associa-se com sulfadiazina 2 a 6 g/dia dividida em 4 doses diárias. Na toxoplasmose
em imunocompetentes, 25 mg/dia por 3 a 4 semanas associados com 2 a 6 g de sulfadiazina.

Efeitos adversos

Exantema, vômitos, eosinofilia, necrose epidérmica tóxica, anemia megaloblástica e


plaquetopenia. Pneumonias eosinofílicas podem ocorrer.

Raramente ocorrem convulsões e depressão.

Apresentações comerciais

Darapim® em comprimidos de 25 mg.


Monitoração

Hemograma periódico.

Classificação na gestação

Classe C.

Interações medicamentosas

Hepatotoxicidade no uso conjunto com lorazepam. Supressão medular no uso com


sulfonamidas. Pode ainda aumentar os níveis séricos de neurolépticos.

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