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REPÚBLICA DE ANGOLA

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA

1ª SECÇÃO DA CÂMARA CRIMINAL

***

PROCESSOS Nº02/022 E 04/022

ACÓRDÃO

ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DA CÂMARA CRIMINAL DO


TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA, EM NOME DO POVO:

I-RELATÓRIO

No Tribunal da Comarca de Luanda, 3ª Secção da Sala dos Crimes Comuns,


mediante despacho do Meritíssimo Juiz de Direito de fls. 4081, do processo
nº827/21-B, foi indeferido o requerimento do arguido Carlos Manuel de
São Vicente, solteiro, de 61 anos de idade, filho de Acácio António Pereira
e de Ilda Rodrigues, residente antes de preso, no bairro Azul, Casa s/nº, Rua
Américo Júlio, Luanda, para substituição da medida de coação pessoal de
prisão preventiva que lhe foi aplicada, pela medida prevista no artigo 280º
nº1, alínea a) e nº3 do C.P.P.

Inconformado com o despacho em causa, o arguido, através dos seus


mandatários forenses, interpôs recurso nos termos do artigo 287º nº6, do
Código de Processo Penal, nos termos que a seguir se descrevem, em
resumo:

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“A decisão a quo – ao não conhecer do estado de saúde grave do
Recorrente e da sua incompatibilidade com a manutenção da prisão,
preventiva, nem do pedido do Recorrente de que se oficiasse pela junção
dos documentos/relatórios corroborantes do estado de saúde do
Recorrente, e que estão na posse de terceiros, quando o deveria ter feito
por assumirem relevância para a boa decisão, e nula por omissão de
pronúncia”.

“…que seja substituída a medida de coacção prisão preventiva aplicada


ao Recorrente por medida menos gravosa, pelo facto de as circunstâncias
deixarem de a justificar e a aplicação de uma medida de coacção menos
gravosa ser adequada ou suficiente às exigências cautelares do caso
concreto”.

“…que a decisão recorrida seja substituída por outra que declare a


inaplicabilidade da medida de coacção pessoal de prisão preventiva ao
Recorrente, substituindo-a pela medida de coacção de prisão domiciliária,
no estrito cumprimento do artigo 280º nº 1, al. a) e nº 3 do CPP”.

Entretanto, deu entrada neste Tribunal um outro processo do mesmo


arguido e com o mesmo objecto.

Consequentemente, foi ordenada a conexão de processos, conforme


despacho de fls.53 do processo nº04/022, que se funda na necessidade de
se cumprir o princípio da celeridade e o disposto no art.º72º da CRA.

Neste último alega como se transcreve, em resumo:

“ A decisão recorrida é o despacho de fls.4952 a 4953 dos autos de


processo nº 827/21-B,proferido oralmente pelo Meritíssimo Juiz da 3ª
Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Comarca de Luanda, na

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sessão de audiência de julgamento no dia 17/02/2022,que,em suma,
indeferiu a substituição da medida de coação pessoal de prisão preventiva
por uma medida menos gravosa para o Recorrente, decretando,
outrossim, a sua manutenção mas com a transferência do Recorrente para
o Hospital Prisão de São Paulo.

Baseando a sua decisão, sucintamente, nas razões médicas espelhadas na


informação Clínica junta aos autos de fls. 4897 a 4899,em alegado perigo
de fuga e perigo de continuação da pática criminosa.

As razões de cariz médico e de saúde presentes na Informação Clínica


acima mencionada, encontram-se subvertidas ou não foram devidamente
levadas em conta pela Decisão Recorrida.

Verifica-se, sem margem para dúvidas, caso ainda as houvesse, que o


Recorrente padece de doença grave e que torna incompatível a privação
da sua liberdade (artigo 280º,nº1,alínea a), do C.P.P).

O aqui Recorrente não se conforma com a decisão a quo por entender


que, in casu não se mantêm válidos os pressupostos que estiveram na
base da aplicação da medida de coacção pessoal de prisão preventiva.

E quando uma medida de coacção se torne excessiva, como é o caso, pode


(deve) o magistrado competente substituí-la por outra menos gravosa
para o arguido.

(…) a decisão recorrida seja substituída por outra que declare a


inaplicabilidade da medida de coacção pessoal de prisão preventiva ao
Recorrente no Hospital Prisão de São Paulo, substituindo-a pela medida
de coacção de prisão domiciliária, ou por uma medida de coacção menos

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gravosa, por ser adequada ou suficiente às exigências cautelares do casos
concreto.”

Subidos os autos a esta instância, foram com vista ao Digníssimo


Magistrado do Ministério Público que emitiu os doutos pareceres que se
transcrevem:

No processo nº 02/022:

“O recorrente não apresenta quaisquer provas que sustentam a sua


petição, não junta documentos médicos que façam prova de que o seu
actual estado físico-psíquico coloca em risco a sua vida caso se mantenha
na cadeia, nem que é padece de hipertensão arterial e diabetes mellitus,
nem mesmo que se encontra em sério risco de ter um AVC, um enfarte com
consequente paralisia ou incapacidade irreversível ou morte.

Entendemos que de acordo a afirmação que o recorrente faz no nº 31 do


seu requerimento, «…todas patologias têm agravado no decorrer do
período em que se encontra preso preventivamente…» as doenças que o
recorrente afirma possuir e que podem levar à morte do arguido não
foram adquiridas depois de o mesmo estar detido, já as possuía quando
foi detido, logo não é possível que este não tenha qualquer documento
médico anterior a sua detenção para apresentar ao Tribunal e deste modo
fazer prova de que padece destas doenças.

Sendo certo que o fundamento da sua pretensão, isto é, de que as


circunstâncias que determinaram a sua aplicação deixarem de justificar a
medida de coação prisão preventiva, é o agravamento do estado de saúde
do arguido.

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Com essa omissão, violou o recorrente o disposto no nº5 do art.º 476º do
C.P.P.

Outro argumento invocado, pelo recorrente é a violação de normas


jurídicas, mais concretamente dos artigos 1º, 3º, 5º e 9º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, artigos 2º, 6º, nºs 2 e 3, 30º e 31º, 36º
nº2, 4º nº1, 67º nº1, 175º nº1 e 177º nº1, todos da Constituição da
República de Angola, e os artigos 262º, 267º, nº1, alínea b) e nº3, 280º
todos do C.P.P. contudo não indica o sentido em que o Tribunal recorrido
interpretou essas normas ou as aplicou, nem qual o sentido que aquele
Tribunal deveria interpretá-las. Deste modo violou o disposto no nº6
alínea b) do art.º 476º C.P.P.

A violação dos preceitos legais supra mencionados (.º5 do art.º 476º e º5


do art.º 476º do C.P.P., ambos do C.P.P.) conduz necessariamente a falta
de fundamentação do recurso, prevista no art.º 477º do C.P.P.

Pelo exposto, se promove que o presente recurso não seja admitido e o


recorrente condenado em custas.”

No processo nº04/22:

“ A questão suscitada no recurso respeita à errada apreciação dos


elementos que levaram à aplicação da medida de coacção de prisão
preventiva ao arguido/recorrente.

Desde logo:

Efectivamente, a decisão judicial que indeferiu o requerimento da defesa


de alteração da medida de coacção pessoal e manteve a prisão preventiva
do arguido CARLOS MANUEL DE SÃO VICENTE de que se recorre deve

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obrigatoriamente, indicar as razões por que considere inadequadas ou
insuficientes outras medidas de coacção pessoal.

As medidas de coação são meios processuais restritivos da liberdade que


têm natureza meramente cautelar cuja aplicação depende, da referência
aos actos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da
medida, nomeadamente:

Factos concretos que demonstrem a existência:

o De perigo de fuga;
o Perigo real de perturbação da instrução do processo no que refere,
nomeadamente a aquisição, conservação e integridade da prova e;
o Perigo, em função da natureza das circunstâncias do crime e da
personalidade do arguido de continuação por este da actividade
criminosa ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade
públicas.

No caso em apreço;

No Tribunal a quo alicerçou a sua decisão na existência de perigo de fuga


e perigo de continuação da actividade criminosa, pese embora, na decisão
de que se recorre, salvo melhor entendimento, somos de parecer que o
Juiz a quo tenha fundado deficientemente o preenchimento, em concreto
por referência a factos, dos requisitos gerais de aplicação das medidas,
porque:

Ao referir «que a prisão preventiva revela-se necessárias as exigências


cautelares do processo sendo que não existem nos autos circunstâncias
que alterem o quadro em função do qual a medida (..) foi aplicada que
implique a sua substituição», relegou para despacho anterior a

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comprovação dos factos concretos que preenchem os pressupostos de
aplicação da medida.

Entrementes:

Tal não significa necessariamente que os mesmos não tenham sido


aferidos e sopesados com actualidade, ié no momento da sua aplicação
da medida.

Quanto à informação clinica ( fls 31,32 e 33) proveniente do Hospital Prisão


São Paulo, que serviu de mote ao pedido de substituição da medida de
coação, com relevo para a decisão apontamos as seguintes referencias
nela contidas:

O arguido/paciente tem antecedentes patológicos datados de mais de 5


anos com: cardiopatia hipertensiva medicada e regularmente controlada
com condesartan, bisoprol, nifidipina e aspirina, diabetes méllitus tipo II
regularmente controlada com regularidade metformina e hiperplasia
benigna da próstata, regularmente tratada com dutasterida e cloridrato
de tansulosina;

Arguido tem apresentado queixas constantes de saúde sendo


regularmente atendido em consulta no Hospital Prisão São Paulo bem
como em hospitais externos, com relevância para Clinica Girassol,

Em 2020 o mesmo teve, no mínimo 10 episódios de consultas atendidas


(malaria, gripe) atendidas desde o Estabelecimento Prisional de Viana, no
Hospital Prisão São Paulo com crises hipertensivas estáveis e na Clinica
Girassol em consultas de psiquiatria, urologia e cardiologia.

Em 2021 foi internado na Clinica Girassol em Maio com problema na


região lombar e novamente em junho.

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O relatório médico refere uma última observação médica em Setembro de
2021

Conclusão: quadro clinico hemodinamicamente instável, com elevado


risco cardiovascular (…) pela cronicidade das patologias necessita
acompanhamento permanente e contínuo de consultas de especialidade:
cardiologia, urologia, e endocrinologia.

Realça para análise:

O estado de saúde do arguido é efectivamente anterior a aplicação da


medida.

O estado de saúde do arguido é cronico e este sempre esteve


regularmente medicado.

Continuamente quando apresentou queixas de saúde, o arguido obteve o


acompanhamento médico não só no Estabelecimento Prisional de Viana,
como no Hospital Prisão São Paulo e na Clinica Girassol.

A informação Clinica proveniente do Hospital Prisão São Paulo, elaborada


aos Fevereiro de 2022 não atesta a impossibilidade do Hospital Prisão São
Paulo fazer frente ao estado de saúde do arguido e sequer refere qualquer
relação de causa efeito entre a prisão do arguido e eventual agudizar da
sua situação de saúde.

De facto aconselha O RELATÓRIO, o acompanhamento permanente e


contínuo de consultas de especialidade cardiologia, urologia e
endocrinologia sem referir qualquer impossibilidade do mesmo beneficiar
delas na condição de preventivamente preso, até porque tem havido
cooperação entre os serviços prisionais e os familiares do arguido,

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possibilitando o transporte do arguido a clinica Girassol, aliás clínica de
referência no nosso país e que oferece segurança ao arguido.

Assim, conforme certifica o relatório em si, o arguido tem beneficiado de


assistência médica oportuna.

Em termos correntes, entende-se por doença grave aquela irreversível e


que normalmente, conduzirá ao decesso.

A título de exemplo, estamos perante doenças graves nos casos de tumor


maligno, de esclerose múltipla, de deficiência imunológica, etc.

No campo do direito processual penal, acredita-se que terá de se fazer


uma interpretação restritiva do tipo de doenças.

Em situação análoga (execução do mandado de captura) considerava o


Prof. Dr. Cavaleiro de Ferreira que o mandado de captura só não seria
executado se “ a doença puser em risco a vida do indiciado, conforme
comprovação médica”.

Acrescentaremos, para o caso em apreço: doença que ponha em risco a


vida do indiciado, conforme comprovação médica, e se não puder ser
tratada no EP.

Doença grave para os fins do artº 280º/1ª) do C.P.P, é aquela que é


irreversível, põe em risco a vida do arguido e não pode ser trata no EP.

Ora, se apesar de padecer de doença que até se pode considerar grave (o


caso da doença do Recorrente),se o arguido puder ser tratado em
Estabelecimento Prisional, segundo parecer o médico do EP onde se
encontra, não deve ser substituí a medida de coação (veja variadíssimos acórdãos
nesse sentido Tribunal da Relação do Porto).

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Na verdade, cada estabelecimento penitenciário deve dispor, de acordo
com as necessidades, na medida do possível, de serviço médico, de serviço
de enfermagem, de serviço farmacêutico que responda às exigências
essências de profilaxia e tratamento da saúde dos reclusos.

O tribunal a quo levou em consideração o relatório, na medida em que o


solicitou.

Nestes termos:

Porque:

Segundo a informação Clinica do Hospital Prisão São Paulo, junta aos


autos, o arguido/doente toma regularmente a medicação crónica que o
acompanha e tem a possibilidade de seguimento regular em consulta no
próprio estabelecimento e na eventualidade de necessitar de tratamento
médico urgente, existe a possibilidade de deslocação à Clinica Girassol,
clinica privada de referência no país de que beneficiaria caso estivesse sob
outra medida de coação, assegurando-se assim a prestação de cuidados
adequados ao arguido Sr. CARLOS MANUEL DE SÃO VICENTE;

Porque:

Não se encontram alterados os pressupostos que estiveram na base da


decretação da medida imposta ao arguido;

Promove-se:

A improcedência do recurso, mantendo-se e confirma-se a decisão


recorrida.

Custas pelo Recorrente”.

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Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

***

II - OBJECTO DO RECURSO

É jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o âmbito do recurso


se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação,
sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

Como é sabido, os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos,


pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas
sim apreciar as questões submetidas ao seu exame.

As conclusões das motivações não podem limitar-se a mera repetição


formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione
ao Tribunal Superior uma correta compreensão do objeto dos recursos.

No caso em apreço, apesar das conclusões não estarem claras, é possível


aferir o objeto dos recursos.

Assim, definimos como questões a conhecer, as seguintes:

a) Alteração da medida de coação de prisão preventiva para uma menos


gravosa;

b) Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia no processo


nº02/022.

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III – FUNDAMENTAÇÃO

Por considerarmos relevante, a seguir transcrevemos os despachos


recorridos que têm o seguinte teor:

No processo nº 02/022:

Atento ao requerimento de fls. 4057 a 4064 de solicitação de substituição


da medida de coação pessoal de prisão preventiva, compulsados os autos
verifico que mantêm-se válidos os pressupostos que estiveram na base da
aplicação da medida de coação pessoal de prisão preventiva, que
mantenho, termos em que indefiro o requerimento de fls. 4057 a 4064.
Ainda assim, atendendo a promoção do Ministério Público de fls.4073,
oficie o Ministério Público junto dos serviços penitenciários, no sentido de
remeter a esta Secção Criminal um relatório médico sobre a situação
clínica do réu.

No processo nº04/022:

Relativamente ao requerimento da defesa constante da acta do dia 16 de


fevereiro, de alteração da medida de coação pessoal do réu em função do
conteúdo do relatório médico de fls. 4896 a 4899,compulsados
minuciosamente os autos, verifico que o réu se encontra preso
preventivamente no estabelecimento prisional de Viana. Ora, os serviços
penitenciários de Luanda dispõem de um hospital prisão para o
acompanhamento médico de todos os que estejam internados nos seus
estabelecimentos prisionais com problemas de saúde.

Assim sendo, em função do conteúdo do referido relatório médico a que


a defesa faz referência, havendo necessidade de o réu ser acompanhado

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por médicos, deverá o mesmo ser transferido da cadeia de Viana onde se
encontra para o hospital prisão de são Paulo no sentido de receber a
assistência médica e medicamentosa de acordo como seu quadro clínico,
sem prejuízo de ser acompanhado pela clínica girassol, tal como
aconteceu em sede da instrução contraditória como pode vislumbrar as
fls. 1892 a 1894.

Deste modo, dada as circunstância das infracções cometidas de que vem


acusado e pronunciado e por haver fortes indícios de continuidade de
práticas criminosas em função da gravidade e da intencionalidade
criminosa, a aplicação de qualquer outra medida de coação pessoal,
mostra-se inadequada e insuficiente sendo portanto necessária a prisão
preventiva para desencorajar a fuga que é admissível bem como o perigo
de continuação da actividade criminosa isto nos termos das alíneas a) e c)
do número 1 do art.263º do C.P.P conjugado com o número 1 do art. 279º
também do código do C.P.P.

Acresce-se que a prisão preventiva revela-se necessária as exigências


cautelares do processo, sendo que, não existem nos autos circunstâncias
que alteram o quadro em função da qual a medida de coação pessoal de
prisão preventiva foi aplicada que impliquem a sua substituição. Outro
sim, mantem-se a actual necessidade de se acautelar o perigo de
continuação da actividade criminosa e que não se compadece com a
aplicação de outra medida de coação pessoal.

Nestes termos, e fundamentos indefiro o requerimento da defesa de


alteração da medida de coação pessoal do réu, e mantenho a medida de
coação pessoal de prisão preventiva já estabelecida nos autos.

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E por que o réu e os seus mandatários se fazem presentes ficam desde já
notificados.

Cumpre, nesta sede, apreciar e decidir.

III. a) Alteração da medida de coação de prisão preventiva para uma


menos gravosa.

Antes de nos pronunciarmos concretamente sobre as questões suscitadas,


importa referir que, o tribunal de recurso ao sindicar a aplicação de uma
medida de coação deve basear-se num juízo de prognose póstuma
reportado ao circunstancialismo existente no momento da tomada da
decisão.

As medidas de coação, conforme escrevem Fernando Gonçalves e Manuel


João Alves, na obra Crime. Medidas de Coação e Prova, O Agente Infiltrado,
Encoberto e Provocador, pág.115, “são meios processuais penais
limitadores da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar,
aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios da prática de um
crime”.

Na aplicação das medidas de coação, especialmente a prisão preventiva


deve-se ter em linha de conta o necessário equilíbrio entre a presunção
constitucional de inocência (art.67º,nº 2 da CRA) e os direitos liberdades e
garantias.

No quadro do Estado de Direito e democrático e no respeito pelos direitos,


liberdades e garantias dos cidadãos, as medidas de coação a aplicar, em
função do seu caracter excecional, deverão ser exclusivamente aquelas
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previstas na lei processual penal (principio da legalidade- art.261º do CP.P)
e a decisão que as materializar deve atender aos princípios da necessidade,
adequação, proporcionalidade e subsidiariedade (art.262º do C.P.P).

No que respeita, em particular, a prisão preventiva, considerando o


caracter privativo da liberdade que a caracteriza, o legislador entendeu só
dever ser aplicada, se no caso concreto, considerarem-se inadequadas ou
insuficientes todas as outras medidas de coação legalmente previstas
(art.279º do C.P.P).

Para o que nos importa, em função da questão sobre que versa o presente
caso, a prisão preventiva depende da prévia constituição de arguido e da
existência de “fortes indícios” da prática de um crime doloso, punível com
prisão superior, no seu limite máximo, a 3 anos (art.249º,nº 2 e 279º,nº
1,ambos do C.P.P).

Em função da sua relevância para aplicação das medidas, importa saber o


que se entende por fortes indícios, como um dos pressupostos de aplicação
das medidas de coação.

Segundo Simas Santos e Manuel Leal Henriques, Código de Processo Penal


Anotado, I Volume, pág. 995, “…quando a lei fala em fortes indícios há que
ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois
que o legislador se não limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o
que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou
participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não
basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes

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em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes
para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma
medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar
inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a
probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado”.

Pretende-se com isto dizer, que os indícios têm que ser sólidos, inequívocos
para qualquer das fases em questão, mas não podem ser olhados da mesma
maneira em cada uma das diferentes etapas do processo.

Nestes autos de recurso, como nota o recorrente (fls.6 do processo


nº02/022), foi deduzida acusação e proferido despacho de pronuncia, por
isso, já nem sequer estamos a falar em “fortes indícios”, mas na existência
efetiva de “indícios suficientes”, no sentido que nos é dado pelo nº 2 do art.
328º do C.P.P(Cfr.352º,nº 1 do C.P.P),da prática pelo recorrente dos crimes
que lhe são imputados, indícios estes, que sustentam a acusação e
pronúncia.

Em suma, como ficou claro, existindo nos autos indícios suficientes para
suportar a acusação e pronúncia, certamente, também os existem para
aplicação de medida de coação, nomeadamente, a prisão preventiva.

Por outro lado, a aplicação de medidas de coação requer também que se


verifiquem os requisitos do artigo 263º do C.P.P; este preceito legal, dispõe
sobre os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coação nos
seguintes termos:

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“Nenhuma medida de coação, à exceção do termo de identidade e

residência, podem ser aplicadas se, no momento da sua aplicação, se não

verificar:

a) Fuga ou perigo de fuga;


b) Perigo real de perturbação da instrução do processo no que respeita,
nomeadamente, à aquisição, conservação e integridade da prova;
c) Perigo, em função da natureza, das circunstâncias do crime e da
personalidade do arguido, da continuação por este da atividade criminosa
ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas”.

No presente caso, como já frisado, o despacho recorrido, entendeu que se


mantêm os pressupostos que estiveram na base da aplicação da medida de
coação de prisão preventiva, ao passo que, o recorrente entende que a
referida medida deve ser alterada para uma menos gravosa, por já não
subsistirem os pressupostos que sustentaram a sua aplicação e, ter havido
uma alteração das circunstâncias decorrentes da sua situação clinica que
reclama por substituição da medida em execução.

Importa, por isso, analisar os acima referidos pressupostos:

a) Fuga ou perigo de fuga.

“Fuga”, significa em termos comuns, evasão, retirada e por isso, se entende


que foge quem se esconde, quem desaparece, quem evita, quem se esquiva
para evitar um incómodo ou um acontecimento desfavorável. Assim, a
finalidade de aplicação desta medida de coação, consiste em acautelar a

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presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final.

Impõe-se, pois, a formulação de um juízo de prognose em relação a um


futuro comportamento do arguido, a partir dos indícios já recolhidos e
assente numa qualificada probabilidade de verificação das particulares
exigências cautelares.

Esse juízo de prognose terá necessariamente de encontrar sustentação na


gravidade dos factos indiciados e moldura penal abstratamente aplicável, a
forma concreta de atuação, os sentimentos indiciariamente revelados pelo
arguido na conduta, o relacionamento e estruturação familiar e afetiva, os
meios económicos disponíveis, a existência e natureza de vínculos
referentes a atividade profissional, bem como, os antecedentes por factos
desta natureza.

No caso em análise, os factos suficientemente indiciados são graves,


atingem bens jurídicos diversificados, mormente, o património do Estado,
factos que, a provarem-se, podem justificar a aplicação de uma pena de
prisão efectiva severa (como de resto já foi, sendo que, como o processo se
encontra em recurso, face ao efeito suspensivo do mesmo é como se não
existisse). É, por isso, natural e até humano que o arguido na perspectiva
de o Tribunal Superior manter a condenação se pretenda eximir a acção da
justiça, até porque, tem uma situação económica que o permite,
concluindo-se pela existência real deste perigo de fuga, (art.263º,nº 1,al. a)
do C.P.P).

b) Perigo real de perturbação da instrução do processo no que respeita,

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nomeadamente, à aquisição, conservação e integridade da prova.

A instrução do processo que a lei refere aqui, não é apenas à fase processual
da instrução, mas a toda a atividade instrutória, que inclui a recolha e
produção de prova no processo, quer decorra na fase da investigação, na
instrução ou no julgamento.

No caso concreto, dado os tipos de crimes em causa, bem como os


contactos de que dispõe o recorrente em função da sua posição social e
profissional, há um perigo para a actividade instrutória, cuja intensidade
justifica a aplicação de uma medida de coação.

Também aqui, os despachos recorridos não merecem censura.

c) Perigo, em função da natureza, das circunstâncias do crime e da


personalidade do arguido, da continuação por este da actividade
criminosa ou de perturbação grave da ordem pública.

Quanto ao “perigo da continuação da actividade criminosa”, pode justificar-


se a aplicação de uma medida de coação se, atento as circunstâncias do
crime e a personalidade do arguido for de concluir a continuação da
actividade criminosa, com a prática de crimes análogos ou da mesma
natureza aos que esta indiciado.

No presente caso, apesar da indubitável gravidade dos crimes de que o


recorrente está formalmente acusado e pronunciado, aquele praticou-os
durante longos anos, com indiferença relativamente às consequências

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gravosas da sua prática.

E, por isso, é seguro concluir com razoabilidade, pela possibilidade da


continuação da actividade criminosa por parte do recorrente.

Por outro lado, considerando os tipos de crime que ao recorrente são


imputados, o contexto social, a relevância e censura que a comunidade
presta a estes ilícitos, deve-se acautelar também o perigo de perturbação
da ordem e tranquilidade públicas.

Por tudo o que ficou exposto, concluímos que, os pressupostos gerais para
aplicação das medidas de coação, prisão preventiva, no caso concreto,
encontram-se preenchidos, pelo que, não merecem reparo, os despachos
recorridos, porquanto a mesma se mostra como adequada, proporcional e
única capaz de garantir as exigências processuais de natureza cautelar do
caso concreto.

Resta-nos, agora, analisar a possibilidade de substituição da medida de


coação aplicada ao recorrente com fundamento na alegada precariedade
da sua saúde e outras circunstâncias que em momento oportuno
referiremos.

As decisões que aplicam medidas de coação, devem manter a sua validade


e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos que
estiveram na base na sua aplicação. Nesse sentido, os casos de modificação
das medidas de coação fora das situações de procedência do recurso para
esse efeito, encontram-se previstas no código de processo penal.

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Para o que interessa ao caso, vamos referir apenas as seguintes:

1.As circunstâncias deixaram de as justificar (art.267º,nº 1,al b) do C.P.P)


2.Pessoa portadora de doença grave e que declaradamente torne
incompatível a privação da sua liberdade (art.280º, nº 1, al. a) e 3 do C.P.P).

No caso em análise, o recorrente vem alegar, para efeitos de substituição


da medida de coação de prisão preventiva que lhe foi aplicada, por outra
menos gravosa, o seu estado de saúde grave, a pandemia da Covid 19 e o
facto de ser pessoa idosa (tem mais de 60 anos).

Os argumentos que fundamentam esta pretensão e acima elencados, já


eram conhecidos nos autos na ocasião em que foi imposta a prisão
preventiva e outros o foram durante o reexame dos seus pressupostos (cfr.
art. 282º do C.P.P) e certamente beneficiaram da devida apreciação e
ponderação.

O pressuposto para substituição da medida de coação é a existência de


circunstâncias novas, que não tenham sido objecto de apreciação pelo
magistrado competente e tornem a medida em execução excessiva.

Como se observou anteriormente, as circunstâncias ora invocadas para a


substituição não são novas e já foram por diversas vezes objecto de análise
a quando da aplicação e reapreciação da medida.

Improcede, de igual modo, este argumento.

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III. b) Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia no
processo nº02/022.

O recorrente veio alegar a nulidade do despacho recorrido por omissão de


pronúncia, nos termos dos artigos 668ºnº1, alínea d), primeira parte, do
CPC, nº 3 do artigo 666º do mesmo diploma legal e nº2 do artigo 3º do CPP.

Nos termos do art.668º, nº 1, al a) do C.P.C, há omissão de pronúncia


quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse
conhecer; esta nulidade traduz-se no incumprimento, por parte do
julgador, do dever prescrito no nº 2 do art. 660º do C.P.C, que é o de
resolver todas as questões submetidas a sua apreciação, excepto aquelas
cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

No entanto, esta nulidade reporta-se somente a falta de apreciação de


questões que o tribunal devesse apreciar, portanto, estamos a falar de
pedidos, sendo irrelevante o não conhecimento das razões ou argumentos
aduzidos.

No presente caso, foi pedido ao tribunal que apreciasse a possibilidade de


substituição da medida de coação de prisão preventiva, por outra menos
gravosa; a esta pretensão, cabia ao tribunal dar resposta, negando ou
concedendo o pedido. Em concreto, foi o que sucedeu. O despacho
recorrido conheceu o pedido formulado e decidiu pela manutenção da
medida em execução, por entender que se mantêm validos os pressupostos
que estiveram na base da sua decretação. É o pedido que determina o
conteúdo da decisão.

Convém sublinhar, que quando não se alteram os pressupostos da medida


ou se verifiquem circunstâncias supervenientes que atenuem as exigências
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processuais de natureza cautelar, para fundamentar a decisão de
manutenção, basta a menção ao condicionalismo que sustentou a aplicação
da medida, tendo o tribunal recorrido procedido nestes termos.

Ora, aqui chegados, não vislumbramos, que o despacho recorrido tenha


deixado de conhecer a questão que lhe foi colocada, porquanto, apreciou-
a e decidiu como devia, pois, como já expressamos antes, não há nenhuma
razão legal para fundamentar a substituição da medida de coação de prisão
preventiva que pende sobre o recorrente e, sendo assim, não podia ter
decidido doutro modo.

Temos pois de concluir pela inexistência de qualquer omissão de pronúncia


e consequentemente da invocada nulidade.

Finalmente, um sublinhado, apenas para referirmos que também nós,


concordamos com a manutenção da medida de coação pessoal de prisão
preventiva, por se manterem válidos os pressupostos que estiveram na
base da sua aplicação e, não se ter verificado qualquer circunstância
superveniente que, nos termos da lei, determine a sua substituição.

Posto isto, concluímos pela bondade das decisões recorridas ao manterem


a prisão preventiva.

Termos em que, improcede a pretensão do recorrente, mantendo-se os


despachos recorridos.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª secção desta


Câmara Criminal em:

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1. Negar provimento aos recursos e, em consequência, manter os
despachos recorridos.
2. Custas pelo recorrente no valor de 4000 ucf- arts. 144º e 150º do
C.C.J.
3. Após trânsito, baixe os autos ao tribunal recorrido-art.719 do C.P.C.

Notifique.

Luanda,23 de Maio de 2022


Eduardo Samuco
(Relator)
Cláudia Domingos
Vidal Romeu Francisco

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