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DIREITOS REAIS

Três casos práticos resolvidos sobre a matéria da posse


Ano lectivo 2021-2022
António Graça Moura

CASO PRÁTICO I

Em Setembro de 2015, A, seriamente carecida de dinheiro, pediu 25.000 euros emprestados a B, pelo
prazo de um ano, tendo, para garantia do reembolso da quantia mutuada, constituído a favor do
mutuante penhor sobre um valioso colar de ouro que tinha pertencido à sua avó . Nos termos legais, o
colar empenhado foi imediatamente entregue ao credor.
Porém, logo em Junho de 2016, B, convencido, em razã o de algumas informaçõ es que ia obtendo de
amigos comuns, de que a situaçã o econó mica de A era cada vez pior e de que esta nã o iria, por isso,
conseguir pagar a dívida dentro do prazo, confrontado com uma proposta de compra que lhe foi
dirigida por C, vendeu a jó ia a este por 40.000 euros, tendo-lha entregue no pró prio acto.
Em Julho do ano seguinte (2017), o colar foi furtado de casa de C no seguimento de um assalto
perpetrado por D, que foi preso pouco depois, tendo no entanto tido tempo de ocultar o produto do
furto.
Libertado da prisã o em Maio de 2020, D vendeu o colar em causa a E, a quem de imediato o entregou
contra a importâ ncia de 10.000 euros.
Isto posto:
a) qualifique a situaçã o jurídica dos diversos intervenientes na situaçã o supra descrita,
nomeadamente quanto ao seu enquadramento como possessó rio (ou nã o), caracteres da posse
(se e quando a haja) e modos de aquisiçã o;
b) esclareça quem é hoje (2022) o legítimo proprietá rio do colar.

Tópicos de resposta:
1. B é, ao receber a coisa empenhada em 2015, um mero detentor, posto que nã o tem a intençã o
de se comportar como se dela fosse proprietá rio que corresponderia ao elemento psicoló gico
da posse; a sua intençã o típica será a de, uma vez cumprida por A a obrigaçã o caucionada,
proceder à sua devoluçã o à devedora.
2. C adquire a posse em 2016 por modo derivado (cfr. o art. 1263º b) do CC), sendo a mesma
titulada e de boa-fé presumida (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
3. D adquire a posse originariamente por esbulho em 2017, tratando-se de posse nã o-titulada e
de má -fé (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
4. E adquire a posse derivadamente em 2020 (cfr. art. 1263º b) do CC), sendo a mesma titulada e
de boa-fé presumida (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
5. E, à data de hoje, nã o adquiriu ainda a propriedade da coisa por usucapiã o, posto que, apesar
da existência de título e de boa-fé, seriam necessá rios 3 anos para esse efeito (cfr. o art. 1299º
do CC), quando ainda apenas decorreram 2.
6. Tratando-se de um modo de aquisiçã o derivada, E pode, contudo, invocar a acessã o (art. 1256º
do CC), juntando à sua a duraçã o da posse de D; fazendo-o, aos seus 2 anos de posse (2020-
2022) acrescem os 3 anos pelos quais durou a posse do antecessor (2017-2020). Porém, a
posse deste ú ltimo revestia caracteres de menor â mbito do que os presentes na posse actual
(cfr. art. 1256º nú mero 2 do CC), visto ser nã o-titulada e de má -fé o que sempre determinaria a
aplicaçã o ao caso do prazo de 6 anos previsto no art. 1299º do CC. Contudo, é de notar
igualmente que, sendo oculta a posse do antecessor, nã o pode o possuidor actual aproveitar
dela para efeitos de acessã o, em virtude do estabelecido no art. 1297º do CC, aplicá vel ex vi do
seu art. 1300º nú mero 1; deste modo, E nã o logrou ainda adquirir por usucapiã o.

CASO PRÁTICO II

Em 1992, A, agricultor na regiã o de É vora e que desde 1977 vem ocupando um prédio rú stico que
integra um vasto montado de sobreiros abandonado pelos proprietá rios no ano anterior, morre
subitamente, sucedendo-lhe como ú nico herdeiro o seu filho, B. Este, desinteressado da actividade
corticeira, dá o imó vel de arrendamento a C em 2002, pelo prazo de cinco anos, emigrando
seguidamente para a Alemanha depois de ter deixado as devidas instruçõ es sobre as transferências
bancá rias para pagamento da renda.
Contudo, C, a braços com graves dificuldades econó micas, deixa de pagar qualquer renda a partir de
2003, até que, em estado de desespero, vende nesse mesmo ano o prédio a D, industrial do ramo
corticeiro, pela importâ ncia de 100.000 euros, que este imediatamente pagou, tendo recebido as chaves
do portã o de acesso à propriedade.
Ao reformar-se da actividade exercida, em 2010, D faz doaçã o do imó vel ao seu afilhado, E.

Responda à s seguintes questõ es:

a) Identifique os caracteres, a duraçã o e os modos de aquisiçã o de cada uma das posses dos
diversos intervenientes, justificando devidamente as respostas.
b) Suponha que hoje (2022), E é citado judicialmente para contestar uma acçã o de reivindicaçã o
instaurada contra si por F, que prova, além do mais, ser o ú nico herdeiro dos legítimos
proprietá rios do prédio em questã o, e que se ausentaram do país em 1976, conforme acima
referido. Poderá tal acçã o vir a ser julgada procedente? Justifique detalhadamente a resposta.

Tópicos de resposta:
a) A posse de A é evidentemente nã o titulada (posto nã o existir, de facto, título legítimo de
aquisiçã o), e, logo, de má -fé presumida (cfr. os artigos 1259º nú mero 1 e 1260º nú mero 2 do
CC), tendo sido adquirida originariamente pelo modo previsto na alínea a) do artigo 1263º do
CC. B sucede-lhe na posse nos termos do artigo 1255º, o que significa, por um lado, considerar-
se que a sua posse dura desde 1977 (ut do artigo citado, “[…] continua nos seus sucessores […]”
e, por outro, que mantém os caracteres originais.
Por outro lado, C torna-se, em 2002, mero detentor do imó vel, enquanto arrendatá rio do
mesmo (cfr. artigos 1251º e 1253º do CC) – mas, ao vendê-lo, em 2003, a D, este ú ltimo tem
posse, que nã o pode ser titulada (posto que o artigo 1259º nú mero 1 expressamente refere que
nem a falta de direito do transmitente nem a invalidade substancial do negó cio jurídico
subjacente retiram o título à posse – mas a invalidade formal sim, e esta necessariamente
existiu).
E adquire a posse por força do disposto no artigo 1263º b); essa posse é nã o titulada e de má fé
presumida (cfr., novamente, os artigos 1259º nú mero 1 e 1260º nú mero 2 do CC), em razã o
dos motivos anteriormente enunciados.
b) Trata-se, naturalmentemente, de saber, em funçã o do que antecede, se o possuidor actual já
adquiriu (ou nã o) a propriedade do imó vel por usucapiã o, posto ser incontestá vel a invalidade
de todos os negó cios celebrados anteriormente a essa posse (cfr. artigo 892º do CC).
E aquiriu, em 2010, a posse (nã o a propriedade) pela tradiçã o material feita pelo anterior
possuidor. Conforme acima referido, essa posse, sendo nã o titulada, é também de má -fé
presumida; e, dada a inexistência de título vá lido de transmissã o, desencadeia necessariamente
a aplicaçã o do artigo 1296º do CC – ou seja, o prazo de usucapiã o aplicá vel ao caso é de 20
anos, que, à data (2022) está longe de ter decorrido; e, apesar de a presunçã o decorrente do
nú mero 2 do artigo 1260º do CC ser relativa, isto é, susceptível de ser afastada mediante prova
em contrá rio, ainda assim E nã o teria adquirido, posto ser de 15 anos o prazo nesse caso
aplicá vel (cfr. artigo 1296º).
Mas E pode ainda socorrer-se do mecanismo da acessã o (cfr. o artigo 1256º do CC), partindo
do princípio de que adquiriu a posse de modo derivado – o que é verdade (cfr. 1263º b) do CC).
Simplesmente, a posse anterior (a de D, à qual pode aceder o possuidor actual) era igualmente
nã o titulada, logo de má -fé presumida (cfr. artigos 1259º nú mero 1 e 1260º nú mero 2 do CC);
de onde se infere que o prazo da usucapiã o estabelecido pelo artigo 1296º do CC seria de 20
anos, que ainda nã o decorreram desde 2003.
E ainda que se provasse a boa-fé do possuidor actual (E), sempre o nú mero 2 do artigo 1256º
do CC imporia a aplicaçã o do referido prazo de 20 anos.
Em suma: a acçã o de reivindicaçã o instaurada por F procederia.

CASO PRÁTICO III

Em 2009, A, residente no Porto e proprietá rio de uma tela de Salvador Dali de valor incalculá vel,
empresta a pintura em questã o a B, dono de uma galeria sita na mesma cidade e seu conhecido de longa
data, pelo período de um ano, a fim de que este ali a expusesse no â mbito de uma exposiçã o dedicada à
pintura surrealista.
Inaugurada a referida exposiçã o ainda em 2009, B (que, por expressa vontade de A, nã o divulgara o
nome do proprietá rio, que preferira manter-se incó gnito), recebe quase de imediato diversas
manifestaçõ es de interesse de terceiros na aquisiçã o do quadro (embora o mesmo nã o estivesse à
venda), acabando por, em seu pró prio nome, vendê-lo, já em 2010 e pelo preço de € 3.000.000,00 de
euros, a C, abastado empresá rio lisboeta.
A, decorrido o prazo do empréstimo, solicita a B a devoluçã o da obra, acabando este, depois de
inú meras evasivas e tentativas de protelar essa restituiçã o sob diversos pretextos falseados, acaba por
admitir tê-la vendido a C.
Em face disso, A interpela C, que o informa de que, embora considerando ter adquirido legitimamente o
quadro e pago por ele um preço elevado, jamais poderia, ainda que o quisesse fazer, proceder à sua
restituiçã o, em virtude de o mesmo ter sido furtado da sua residência por desconhecidos em 2011.
Entretanto, o autor do furto, D, conserva, por mera prudência no sentido de nã o levantar suspeitas, a
pintura consigo até 2017 – ano em que a vende a E com um lucro substancial.
Finalmente, em 2020, E doou a obra em questã o a F, prestigiado museu de arte contemporâ nea
localizado no Porto..
Apontando, relativamente a cada um dos intervenientes na situaçã o que antecede, a sua situaçã o
possessó ria e os caracteres e modos de aquisiçã o das respectivas posses (se as houver), esclareça se o
possuidor actual do quadro pode igualmente ser considerado proprietá rio legítimo do mesmo.

Tópicos de resposta:
1. Conceito de posse (arts. 1251º e 1253º do CC) e opçã o do legislador português por uma
concepçã o subjectiva (Savigny); distinçã o entre posse e simples detençã o.
2. B é, ao tomar a coisa de comodato em 2009, um mero detentor, posto que nã o tem a intençã o
de se comportar como se dela fosse proprietá rio que corresponderia ao elemento psicoló gico
da posse; a sua intençã o típica será a de, uma vez findo o contrato, proceder à sua devoluçã o.
3. C adquire a posse em 2010 por modo originá rio (cfr. os arts. 1263º d) e 1265.º do CC), sendo a
mesma titulada e de boa-fé presumida (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
4. D adquire a posse originariamente por esbulho em 2011, tratando-se de posse nã o-titulada e
de má -fé (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
5. E adquire a posse derivadamente em 2017 (cfr. art. 1263º b) do CC), sendo a mesma titulada e
de boa-fé presumida (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
6. Em 2020, F adquire também a posse derivadamente (cfr. art. 1263º b) do CC), sendo a mesma
igualmente titulada e de boa-fé presumida (cfr. arts. 1259º e 1260º nú mero 2 do CC).
7. F, à data de hoje, nã o adquiriu ainda a propriedade da coisa por usucapiã o, posto que, apesar
da existência de título e de boa-fé, seriam necessá rios 3 anos para esse efeito (cfr. o art. 1299º
do CC), quando ainda apenas decorreram 2.
8. Tratando-se de um modo de aquisiçã o derivada, F pode, contudo, invocar a acessã o (art. 1256º
do CC), juntando à sua a duraçã o da posse de E; fazendo-o, aos seus 2 anos de posse (2020-
2022) acrescem os 3 anos pelos quais durou a posse do antecessor (2017-2020). Nã o tendo a
posse deste ú ltimo revestido caracteres de menor â mbito do que os presentes na posse actual
(cfr. art. 1256º nú mero 2 do CC), iria, assim, adquirir por usucapiã o, desde que invocasse
expressamente a acessã o, que nã o é do conhecimento oficioso.

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