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Curso: Direito Civil - Contratos

Aula: Princípio da Boa Fé Objetiva - Teoria dos Atos Próprios


Professor: Rafael da Mota

Resumo

Como fora visto, o princípio da boa-fé objetiva tem uma função limitadora, que vai limitar o exercício dos
direitos, logo, o art. 187 vai dizer que comete ato ilícito quem excede manifestamente os limites impostos
pela boa-fé.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Uma forma específica de limitação dos direitos, fundada no abuso de direito é a “teoria dos atos próprios”.
Essa teoria parte da ideia que você até mudar de ideia, pensamento, comportamento, mas não pode fazer
isso quando criou uma legítima expectativa na parte contrária. É o chamado venire contra factum proprium,
do latim. Em completo, a tradução seria “a ninguém é dado vir contra seus próprios atos”.

Esse comportamento contraditório que frustra uma expectativa legítima que fora criado viola o princípio da
boa-fé, logo, configura ato ilícito, na modalidade abuso de direito, conforme art. 187 do CC.

Exemplo da cooperativa que fornecia gratuitamente sementes para agricultores, que plantavam essas
sementes. Quando as frutas nasciam, a cooperativa comprava os tomates. Ocorre que num determinado
momento a cooperativa não quis mais comprar. Veja, foi criada a legítima expectativa de que toda vez que
entregava as sementes, os frutos seriam comprados. Não existia um contrato prevendo isso, mas o
comportamento da cooperativa fez nascer essa obrigação.

Quando a cooperativa criou a expectativa e posteriormente modificou seu comportamento, cometeu ato
ilícito. Trata-se, inclusive, de modalidade extracontratual de responsabilidade civil. Mas como ocorreu o
abuso de direito, combinamos o art. 187 e 927 do CC.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Outro exemplo: REsp 95539/SP – STJ.

Esse recurso traz a noção exata do que é um comportamento contraditório. Resumidamente, é a seguinte
situação: João e Maria eram casados e venderam um apartamento que estava no nome apenas de João, mas
que fora adquirido na constância do casamento. Dessa forma, seria necessário a autorização do cônjuge
(outorga uxória) para que a venda fosse realizada (art. 1.647 do CC). Como não ocorreu a autorização, seria,
em tese, um negócio anulável, mas Maria não ajuizou a ação anulatória. José comprou esse imóvel e
começou a fazer obras no imóvel, todavia a prefeitura discordou da obra e ingressou com ação para
embargar a obra em face de João e Maria, pois não havia sido levado a registro o negócio. João e Maria
alegaram ilegitimidade passiva, alegando que venderam e indicaram José como o comprador. Diante disso, a
prefeitura ingressou com ação em face do José e a ação lá prosseguiu em face do José normalmente. Ocorre
que, três anos depois, Maria e José se divorciaram, oportunidade na qual Maria ingressou com ação
anulatória em face de João (seu ex-marido) e José, alegando que o imóvel foi vendido sem sua autorização,
com a finalidade de meiar o valor do imóvel. No caso, o STJ entendeu que seria um comportamento
contraditório, pois naquela ação da prefeitura Maria veio aos autos junto com João alegando que o imóvel
fora vendido, ou seja, naquele momento concordou tacitamente com a venda. Deveria ter demonstrado esse
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comportamento de querer anular o negócio naquela oportunidade, não pode agora, se passado tanto tempo
querer agir dessa forma, pois estaria incorrendo em comportamento contraditório.

Outro exemplo: Súmula 370 do STJ:

Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado.

Esse é um belo exemplo de venire contra factum proprium, pois não existe isso de cheque “pré” ou “pós”
datado, cheque é uma ordem de pagamento a vista, no momento que for apresentado, o banco efetuará o
desconto. O art. 32 da Lei de Cheque (Lei 7.357/85) estabelece isso de maneira muito clara. Ora, o credor
pode descontar o cheque pois a lei autoriza, mas a ética não. Pois quando se recebe o cheque pós datado,
gera expectativa legítima que só será descontado naquela data, sob pena de configurar comportamento
contraditório, ou seja, ato ilícito por abuso de direito.

Art . 32 O cheque é pagável à vista. Considera-se não-estrita qualquer menção em contrário.

Parágrafo único - O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é
pagável no dia da apresentação.

De igual maneira, o Enunciado 362 do CJF:

Enunciado 362 do CJF: “A vedação do comportamento contraditório funda-se na proteção da confiança, tal
como se extrai dos arts. 187 e 422 do CCB.”

Além disso, o exemplo constante no informativo 558 do STJ:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA POR MÁFÉ DO DEVEDOR.
120 Não se deve desconstituir a penhora de imóvel sob o argumento de se tratar de bem de família na hipótese
em que, mediante acordo homologado judicialmente, o executado tenha pactuado com o exequente a
prorrogação do prazo para pagamento e a redução do valor de dívida que contraíra em benefício da família,
oferecendo o imóvel em garantia e renunciando expressamente ao oferecimento de qualquer defesa, de modo
que, descumprido o acordo, a execução prosseguiria com a avaliação e praça do imóvel. De fato, a
jurisprudência do STJ inclinou-se no sentido de que o bem de família é impenhorável, mesmo quando indicado
à constrição pelo devedor. No entanto, o caso em exame apresenta certas peculiaridades que torna válida a
renúncia. Com efeito, no caso em análise, o executado agiu em descompasso com o princípio nemo venire
contra factum proprium, adotando comportamento contraditório, num momento ofertando o bem à penhora
e, no instante seguinte, arguindo a impenhorabilidade do mesmo bem, o que evidencia a ausência de boa-fé.
Essa conduta antiética deve ser coibida, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário, que validou o
acordo celebrado. Se, por um lado, é verdade que a Lei 8.009/1990 veio para proteger o núcleo familiar,
resguardando-lhe a moradia, não é menos correto afirmar que aquele diploma legal não pretendeu estimular o
comportamento dissimulado. Como se trata de acordo judicial celebrado nos próprios autos da execução, a
garantia somente podia ser constituída mediante formalização de penhora incidente sobre o bem. Nada
impedia, no entanto, que houvesse a celebração do pacto por escritura pública, com a constituição de hipoteca
sobre o imóvel e posterior juntada aos autos com vistas à homologação judicial. Se tivesse ocorrido dessa
forma, seria plenamente válida a penhora sobre o bem em razão da exceção à impenhorabilidade prevista no
inciso V do art. 3º da Lei 8.009/1990, não existindo, portanto, nenhuma diferença substancial entre um ato e
outro no que interessa às partes. Acrescente-se, finalmente, que a decisão homologatória do acordo tornou
preclusa a discussão da matéria, de forma que o mero inconformismo do devedor contra uma das cláusulas
pactuadas, manifestado tempos depois, quando já novamente inadimplentes, não tem força suficiente para
tornar ineficaz a avença. Dessa forma, não se pode permitir, em razão da boa-fé que deve reger as relações
jurídicas, a desconstituição da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário. REsp 1.461.301-
MT, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/3/2015, DJe 23/3/2015 (Informativo 558).

Aquele que oferece o único imóvel residencial para penhora não pode em momento posterior alegar que é
impenhorável por ser bem de família. Ora, foi o próprio devedor que ofereceu o bem para saldar o débito, do
contrário seria autorizar um comportamento contraditório, um comportamento de má-fé.
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Qual a diferença entre venire contra factum proprium e a alegação de se valer da própria torpeza?

Na parte geral existe o princípio geral de que ninguém pode se valer da própria torpeza. São institutos muito
parecidos. A pessoa não pode alegar uma situação que seja inválida se foi ela quem gerou a invalidade. Ex:
menor de 18 anos falsifica documento para contrair empréstimo, nessa situação, não poderá alegar sua
menoridade para se esquivar de pagar o empréstimo. Isso é se valer da própria torpeza, mas não são a
mesma coisa.

A ideia do venire é dentro do comportamento abusivo, ela até tem direito de fazer aquilo, mas está fazendo
de forma abusiva, logo, tem-se uma análise objetiva da situação. No caso da torpeza, tem que demonstrar
que a pessoa agiu de má-fé, logo, uma análise subjetiva.

Institutos correlatos do venire contra factum proprium:

- Supressio;

- Surrectio;

- Tu quoque

Além desses, o dever de mitigar as próprias perdas, do inglês duty to mitigate the loss.

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