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APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO 1

NOTA PRÉVIA: Os casos práticos de aplicação da lei no tempo só têm relevância para as situações em curso, ou seja,
situações constituídas durante vigência de LA mas que também produzem efeitos durante LN.
Exemplo: (A) e (B) celebram contrato de arrendamento a 1 de fevereiro de 2020, ao abrigo de LA, que entrou em vigor a 1 de
janeiro de 2020. Entretanto, a 1 de março de 2020, entra em vigor LN. Quid juris?

PASSO 1 - Há Direito Transitório Material? Ou seja, a LN prevê um regime transitório para as situações em
curso, distinto de LA e LN?
▪ SIM (e não é inconstitucional) – aplicar Direito Transitório Material; caso resolvido.
▪ NÃO – ver passos seguintes (aplica-se LA ou LN).

PASSO 2 - Estamos perante um Ramo do Direito específico, como o Direito Penal (29º/4 CRP), o Direito
Processual (aplicação imediata de LN) ou o Direito Fiscal (103º/3 CRP)?
▪ SIM – aplicam-se os princípios desse ramo; caso resolvido.
▪ NÃO – ver passos seguintes (aplica-se 12º CC e ss.).

PASSO 3 - Estamos perante lei interpretativa (artigo 13.º CC) ou lei sobre prazos (artigo 297.º CC)?
▪ SIM – aplicam-se as regras supletivas especiais do CC; caso resolvido.
▪ NÃO – ver passos seguintes (aplica-se artigo 12.º CC).

Artigo 13.º (Leis interpretativas)


1. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da
obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.
2. A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo desistente ou confitente a quem a lei
interpretativa for favorável.

CONCLUSÃO: LN (lei interpretativa) tem aplicação imediata às situações em curso, mas encontram-se salvaguardados
certos efeitos jurídicos: (i) cumprimento de obrigação; (ii) sentença transitada em julgado; (iii) transação; e (iv) atos de
natureza análoga (e.g., desistência e confissão do pedido).
Exemplo: LA – “Todo o consumidor tem direito a uma indemnização decorrente de publicidade enganosa”; LN – “O tomador de
seguro não é tido como consumidor”. Se tiver transitado em julgado sentença que proferiu o direito do tomador de seguro à
indemnização, LN não se aplica de imediato, pelo que este não perde o direito à indemnização pela entrada em vigor de LA.

1 O presente texto é da autoria do Dr. João Pinto Ramos e não afasta a necessidade da consulta da bibliografia recomendada para
Introdução ao Estudo do Direito, servindo apenas para esquematizar, de modo simplificado, a resolução de casos práticos.
Artigo 297.º (Alteração de prazos)
1. A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos
que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga,
falte menos tempo para o prazo se completar.
Exemplos: LA – Prazo de 50 dias; LN – Prazo de 20 dias.
1. Se LN entrar em vigor quando já decorreram 25 dias de prazo ao abrigo de LA, isso significa que, caso LA se aplicasse, faltariam mais 25 dias
para completar o prazo. Sendo superior ao prazo de 20 dias de LN, então aplica-se LN à situação em curso, a contagem suspende-se e contam-se
20 dias desde a data em que LN entrou em vigor [artigo 297.º/1/1.ª parte CC].
2. Se LN entrar em vigor quando já decorreram 40 dias de prazo ao abrigo de LA, isso significa que, caso LA se aplicasse, faltariam mais 5 dias para
completar o prazo. Sendo inferior ao prazo de 20 dias de LN, então aplica-se LA às situações em curso [artigo 297.º/1/2.ª parte CC].
2. A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso, mas computar-se-á neles todo
o tempo decorrido desde o seu momento inicial.
Exemplo: LA – Prazo de 20 dias; LN – Prazo de 50 dias.
Se LN entrar em vigor quando já decorreram 15 dias de prazo ao abrigo de LA, então LN aplica-se de imediato à situação em curso, mas são
descontados os 15 dias na contagem do prazo e, como tal, o prazo completa-se dentro de 35 dias.

PASSO 4 - LN atribui eficácia retroativa a si mesma?


▪ SIM – ver passos seguintes.
▪ NÃO – saltar p/ PASSO 7.

PASSO 5 – Há proibição da retroatividade? (29º/1, 18º/3, 32º/9, 103º/3 CRP; tutela da confiança; violação de
direitos fundamentais; 282º/3 CRP – limite do caso julgado p/ retroatividade extrema?)
▪ SIM – norma é inconstitucional; caso resolvido.
▪ NÃO – ver passos seguintes.

PASSO 6 – LN prevê o seu grau de retroatividade? (NOTA: este passo pressupõe que não estamos perante
retroatividade extrema, pois esta tem limites – cf. 282º CRP)
▪ SIM – aplica-se LN com o grau de retroatividade que dela resultar; caso resolvido.
▪ NÃO – aplica-se o artigo 12º/1/2ª parte CC e presume-se ser retroatividade ordinária; caso resolvido.

Graus de retroatividade
Extrema – não tem limites, nem mesmo o caso julgado.
Quase extrema – o único limite é o caso julgado.
Agravada – os limites são os que têm um título especial reconhecido pela LN (exemplo: artigo 13º CC).
Ordinária – ficam ressalvados os efeitos já produzidos dos factos a regular (artigo 12º/1/2ª parte CC).
PASSO 7 – “A lei só dispõe para o futuro” (artigo 12º/1/1ª parte CC) + artigo 12º/2/… CC
▪ 1ª parte – LN apenas se aplica aos factos novos; LA aplica-se aos factos antigos; caso resolvido.
▪ 2ª parte – aplicação imediata de LN às situações em curso; caso resolvido.

Como se sabe qual a parte do artigo 12º/2 CC que se deve aplicar?

Artigo 12º/2/1ª parte CC: “Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de
quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos”.

1. Condições de validade formal → Requisitos de forma (como é exteriorizado?) que o facto jurídico deve observar
para ser válido.
o LA – “O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento
particular autenticado”; LN – “O contrato de compra e venda só é válido se for celebrado por escritura pública”. Os contratos
que tenham sido celebrados por documento particular autenticado, ao abrigo de LA, não se tornam inválidos com o início de
vigência da LN, pois esta dispõe sobre uma condição de validade formal, logo só visa os factos novos.

2. Condições de validade substancial → Requisitos substanciais, não relacionados com a exteriorização do facto
jurídico, que devem ser observados:
➢ Capacidade jurídica das partes (maioridade, interdição, inabilitação, etc.);
o LA – “É menor quem não tiver ainda completado 18 anos de idade”. LN – “É menor quem não tiver ainda completado
21 anos de idade”. Quem tiver completado os 18 anos de idade durante a vigência de LA, mas não tiver ainda
completado 21 anos de idade no início de vigência de LN, não torna a ser legalmente considerado «menor», pois LN
dispõe sobre um requisito da capacidade jurídica das partes, logo só visa os factos novos.

➢ Legitimidade das partes para praticar o ato;


o LA – “A paternidade do filho pode ser impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou pelo Ministério Público”.
LN – “A paternidade do filho pode ser impugnada pela mãe, pelo filho ou pelo Ministério Público”. Uma ação
intentada pelo marido da mãe, durante o período de vigência de LA, não se torna ilegítima apenas porque LN entrou
em vigor; isto porque LN dispõe sobre a legitimidade das partes, logo só visa factos novos.

➢ Vontade das partes (vícios da vontade, etc.);


o LA – “O contrato simulado é nulo, mas o contrato dissimulado pelas partes é válido”. LN – “Tanto o contrato simulado
como o contrato dissimulado pelas partes são nulos”. Se durante a vigência de LA for celebrado um contrato de
doação dissimulado, por corresponder na verdade a uma compra e venda, este não se torna inválido com o início
de vigência de LN, pois esta dispõe sobre vícios da vontade das partes, logo só visa os factos novos.

➢ Objeto ou conteúdo do ato (objeto do negócio jurídico, etc.); etc…


o LA – “É nulo o negócio cujo objeto seja fisicamente impossível”. LN – “É nulo o negócio cujo objeto seja fisicamente
impossível ou ofensivo dos bons costumes”. Um negócio celebrado durante a vigência de LA não se tornaria inválido
por ser ofensivo dos bons costumes após o início de vigência de LN, pois esta dispõe sobre o objeto ou conteúdo do
ato, logo só visa os factos novos.
“Leis confirmativas” → LN vem aligeirar condições de validade formal ou substancial de um ato jurídico,
possibilitando que atos inválidos se tornem válidos. Poderá haver retroatividade in mitius tácita?
▪ BAPTISTA MACHADO – Sim, sempre que LN seja mais favorável aos interessados e não se prejudiquem os
interesses da contraparte ou de terceiros. Exemplo: LA – “O negócio celebrado sob coação moral é anulável”. LN –
“O negócio celebrado sob coação moral é válido”. Neste caso, não há retroatividade in mitius porque se prejudicaria o
interesse da pessoa que foi coagida (apesar de ser mais favorável à parte que recorreu à coação).
▪ TEIXEIRA DE SOUSA – Sim, se o ato estiver a ser executado e a invalidade nunca tiver sido decretada. Exemplo: LA
– “A compra e venda de bens imóveis está sujeita a escritura pública”. LN – “A compra e venda de bens imóveis é
consensual”. Não haveria retroatividade in mitius se, por exemplo, o comprador nunca tiver vivido no imóvel nem pago
o preço (o ato de compra e venda nunca foi executado, logo seria inválido ao abrigo de LA).

Artigo 12º/2/2ª parte CC: “mas, quando dispuser sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo
dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que
subsistam à data da sua entrada em vigor”. (NOTA: Por «relações jurídicas», deve-se entender «situações jurídicas»)

PASSO 1 – LN dispõe sobre efeitos instantâneos ou duradouros?


➢ Efeitos instantâneos → 12º/2/1ª parte CC (não se trata de situações jurídicas); caso resolvido.
➢ Efeitos duradouros → ver passos seguintes.

Efeitos instantâneos – verificam-se num único momento → factos constitutivos ou extintivos de situações jurídicas
(exemplo: transmissão da propriedade pela celebração de um contrato de compra e venda).
Efeitos duradouros – a sua produção prolonga-se no tempo → situações jurídicas e seus efeitos após a sua constituição
(exemplos: direitos de personalidade, direitos de crédito, dever de prestar).

PASSO 2 – O conteúdo desses efeitos é determinado pelo facto jurídico que lhe deu origem?
➢ SIM → 12º/2/1ª parte CC (não se abstrai do facto que lhe deu origem); caso resolvido.
➢ NÃO → 12º/2/2ª parte CC (abstrai-se do facto que lhe deu origem); caso resolvido.

Os efeitos que abstraem dos factos que lhe deram origem são os que se encontram de tal modo autonomizados do
facto constitutivo, que não implicam nenhuma valoração desse mesmo facto – de modo que não faz sentido aplicar-
se-lhes a lei que rege o facto constitutivo.

Estados Pessoais (66º CC e ss.)


➢ Constituição de um estado pessoal – facto constitutivo ou condição de validade formal / substancial →
12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera os requisitos da interdição e inabilitação)
➢ Conteúdo de um estado pessoal – efeito que abstrai do facto constitutivo → 12º/2/2ª parte CC (exemplo: LN
altera o regime de administração de bens do inabilitado)

Ex: Resolução de um Contrato de Arrendamento - Rege-se pela lei


nova
- Já a invalidade do arrendamento decorrente da falta de poderes do
loacdor rege-se pela lei vigente à data do ajuste
Responsabilidade Civil Extracontratual (483º CC e ss.) – facto constitutivo (facto ilícito e culposo que gera um dano)
→ 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera a norma sobre a obrigação de indemnizar por danos causados por animais)

Direito das Obrigações – Contratos (762º CC e ss.)


➢ Celebração do contrato – condição de validade formal ou substancial → 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN
altera forma de celebração do contrato de compra e venda de bens imóveis)
➢ Conteúdo do contrato – o critério geral é o da autonomia privada, logo os efeitos não abstraem do facto
que lhes deu origem → 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera os requisitos do direito de resolução após
incumprimento definitivo do contrato → aplicação de LA aos factos passados); mas no caso de norma imperativa

que tutela interesses sociais fundamentais, os efeitos abstraem do facto que lhes deu origem → 12º/2/2ª
parte CC (exemplo: LN altera regras sobre condições de despejo no contrato de arrendamento)

Direitos Reais (1251º CC e ss.)


➢ Aquisição de direitos reais – facto constitutivo → 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera o modo de aquisição
do direito de propriedade)
➢ Conteúdo dos direitos reais – efeito que abstrai do facto constitutivo → 12º/2/2ª parte CC (exemplo: LN altera
os termos em que pode ser feita a plantação de árvores e arbustos pelo proprietário)

Direito da Família (1576º CC e ss.)


➢ Celebração do casamento – facto constitutivo e condições de validade formal / substancial → 12º/2/1ª
parte CC (exemplo: LN altera a norma relativa aos casamentos sujeitos a registo)
➢ Conteúdo das relações jurídico-familiares - o critério geral é o da existência de norma imperativa que tutela
interesses sociais fundamentais, pelo que os efeitos abstraem do facto que lhes deu origem → 12º/2/2ª
parte CC (exemplo: LN altera o regime da administração de bens do casal e dos deveres conjugais – fidelidade,
assistência, etc.); mas quando prevalece a autonomia privada das partes, os efeitos não se abstraem do facto

que lhes deu origem → 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera o regime supletivo de bens do casamento e as
regras de conteúdo da convenção antenupcial)

Direito das Sucessões (2024º CC e ss.)


➢ Sucessão legal (sem testamento) – facto constitutivo (morte do de cujus e consequente abertura da
sucessão) → 12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera o elenco de herdeiros legitimários)
➢ Validade formal do testamento e capacidade para testar – requisitos de validade formal e substancial →
12º/2/1ª parte CC (exemplo: LN altera a capacidade das pessoas coletivas para testar)
➢ Conteúdo do testamento – efeito que abstrai do facto que lhe dá origem (interesses socialmente relevantes
são os do momento da abertura da sucessão e não o da feitura do testamento) → 12º/2/2ª parte CC
(exemplo: LN altera a norma relativa ao legado de coisa pertencente só em parte ao testador)

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