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TRIBUNAL DE JUSTIÇA

PODER JUDICIÁRIO
São Paulo

Registro: 2019.0000592158

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº


0080223-92.2004.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante ANA
CLAUDIA REIS DOS SANTOS (JUSTIÇA GRATUITA), são apelados
HOSPITAL INDICLINICA LTDA e MASTER ADMINISTRAÇAO DE PLANOS
DE SAUDE LTDA (MASSA FALIDA).

ACORDAM, em 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de


Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento parcial ao
recurso, nos termos que constarão do acórdão. V. U.", de conformidade com o voto
do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores LUIZ


ANTONIO DE GODOY (Presidente sem voto), FRANCISCO LOUREIRO E
CHRISTINE SANTINI.

São Paulo, 30 de julho de 2019.

ENÉAS COSTA GARCIA

RELATOR

Assinatura Eletrônica
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODER JUDICIÁRIO
São Paulo

Apelação Cível nº 0080223-92.2004.8.26.0100

Apelante: Ana Claudia Reis dos Santos


Apelados: Hospital Indiclinica Ltda e Master Administraçao de Planos de
Saude Ltda
Comarca: São Paulo
Juiz: Laura de Mattos Almeida

Voto nº 2.625

Apelação. Responsabilidade civil. Hospital e plano de


saúde. Morte de menor no intervalo de menos de vinte
dias após realização de cirurgia para retirada de
amigdalas. Falha no atendimento pós-operatório.
Genitora que compareceu com a menor várias vezes
buscando atendimento médico, relatando a progressiva
piora do quadro, sem adoção de medidas adequadas
para constatação do real estado de saúde da paciente.
Realização de um único exame de sangue logo no
primeiro atendimento, sem novas diligências
semelhantes em outras oportunidades em que a paciente
retornou ao hospital com relato de que o quadro de
saúde não melhorava. Ocorrência de hemorragia que
levou ao óbito da paciente. Falta do cuidado necessário
no acompanhamento da paciente. Omissão culpável a
ensejar responsabilização das requeridas.
Dano moral e dano psicológico decorrente da morte de
filho. Inadmissibilidade da reparação autônoma de
dano psicológico, cuja descrição corresponde aos efeitos
do dano moral indenizável por si só.
Morte de filho. Pensão aos genitores. Subsistência da
obrigação em casos nos quais a condição econômica da
família não autoriza presumir que a contribuição dos
filhos seria dispensável. Entendimento do STJ de que a
pensão é devida no valor de 2/3 do salário até a data em
que o filho completaria 25 anos e reduzida à metade a
partir daí, persistindo até a data em que a vítima
completaria 65 anos, extinguindo-se com o óbito do
beneficiário. Pensão tomando por base um salário
mínimo, considerando não se tratar de menor que
exercia atividade laborativa com vínculo formal, não
ensejando inclusão de 13º salário e férias na base de
cálculo. Despesas com funeral que devem ser
ressarcidas.
Recurso da autora parcialmente provido.

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Trata-se de ação de indenização promovida contra


hospital e plano de saúde em razão do óbito da filha da autora após realização de
cirurgia de retirada das amigdalas.

Alega a autora que houve vício na prestação do serviço


e má prática médica, pois a criança apresentava sintomas como febre e vômito,
tendo recebido alta hospitalar no mesmo dia da operação, permanecendo com estes
sintomas nos dias seguintes.

Relata que compareceu várias vezes ao hospital


buscando atendimento, o qual não foi prestado de forma adequada, culminando com
atendimento emergencial no dia em que se deu o óbito da menor.

Apontando existência de erro médico e invocando a


responsabilidade objetiva do hospital e plano de saúde, pretende condenação dos
réus ao pagamento de indenização.

Adotado o relatório da r. sentença (fls. 828/834),


acrescento que a ação foi julgada improcedente.

Recorre a autora (fls. 838/948) buscando anulação do


processo e reforma da sentença alegando que: a) houve cerceamento de defesa, pois
havia solicitado exibição de documentos relativos ao prontuário médico da paciente,
o que foi determinado pelo Juiz, contudo, não houve qualquer manifestação dos
réus, de modo que deveria ser aplicada a presunção de veracidade dos fatos, tal
como regulado no art. 359 do CPC/73. Sustenta que a falta dos mencionados
documentos teria determinado laudo inconclusivo; b) a paciente, logo após a
operação, apresentava febre e vômitos, mas ainda assim teve alta hospitalar. Estes
sintomas permaneceram nos dias seguintes, determinando retorno ao hospital em
vários dias subsequentes para atendimento, sem melhora do quadro; c) os indícios
apresentados permitiam diagnóstico da hemorragia que determinou o óbito da
paciente; d) o tratamento ministrado no dia 23/05/2002, data do óbito, não foi
adequado, não sendo observado o tratamento indicado no laudo pericial; e) o

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hospital tinha obrigação legal de manter a documentação relativa ao prontuário; f)


havia obrigatoriedade de elaboração de termo de consentimento informado do risco
da cirurgia e a falta deste documento implica reconhecimento do risco assumido
pelo hospital, determinante de sua responsabilidade objetiva; g) os documentos que
indica, relativos ao prontuário, são obrigatórios e a sentença não poderia considerar
que a autora não provou sua existência, mesmo porque deveria ser aplicado o art.
359 do CPC/73 em razão da falta de apresentação dos documentos pelos réus; h) o
perito deixou de responder o quesito 9.4, alegando falta de acesso ao exame,
contudo o documento foi juntado aos autos; i) a perita é especialista em
endocrinologia e não na área de otorrinolaringologia, como seria necessário; j)
haveria cerceamento de defesa em razão da não apreciação pela sentença dos
quesitos suplementares, sendo inconclusiva a perícia; l) traz à colação artigos
científicos para demonstrar que uma das complicações possíveis da cirurgia
realizada é a ocorrência de hemorragia; m) a perita se limitou a analisar o índice de
hemoglobina no exame realizado em 10/05/2002, quando a análise dos demais
índices permitiria concluir pela existência da hemorragia; n) a paciente, após a
cirurgia, apresentava nos atendimentos realizados sintomas que permitiriam firmar o
diagnóstico de hemorragia, tais como febre, hematêmese, diurese zero, desidratação,
frequência cardíaca elevada (taquicardia); o) aplicável o Código de Defesa do
Consumidor, devendo ser invertido o ônus probatório, cabendo aos réus a prova da
inexistência do vício do serviço, havendo presunção de veracidade pela falta da
documentação objeto da exibição.

Recurso bem processado e não respondido (fls. 951).

O julgamento foi convertido em diligência para


complementação da prova pericial (fls. 962), com juntada de laudo (fls. 969/970) e
ciência às partes.

Novamente o julgamento foi convertido em diligência


para obtenção de esclarecimentos na prova pericial e realização de prova oral no
juízo a quo (fls. 993/997).

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Esclarecimentos ao laudo às fls. 1.008/1.009 e


1.024/1.032, com ciência às partes. Designada audiência para produção de prova
oral, com depoimento da autora (fls. 1.063/1.064).

É o relatório.

Rejeito as preliminares de cerceamento de defesa.

Há que se distinguir os argumentos que poderiam ser


considerados manifestação de indevida limitação do direito de defesa e outros,
apresentados em conjunto, que constituem verdadeira análise e crítica da prova e de
error in judicando.

Dos vários argumentos apresentados seria possível


qualificar como cerceamento de defesa a questão da qualificação da perita e a falta
de resposta a quesito.

No que toca a este último ponto a questão foi superada


com a conversão do julgamento em diligência e manifestação da perita a respeito
(fls. 970).

Em relação à qualificação da perita, data venia, a


objeção não procede.

A médica que elaborou o laudo, cadastrada no IMESC,


é formada Universidade de São Paulo no ano de 1994, com residência médica em
Pediatria Geral junto ao Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da USP, com título de especialista em Pediatria.

Ademais, como ressaltou a própria apelante (fls. 844),


a perita é especialista em medicina legal, com variados cursos ministrados pelo
IMESC e além de pediatria geral e puericultura pela USP, também é especialista em
endocrinologia infantil pela mesma universidade.

Como se vê, a expert tinha toda habilitação necessária

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para realizar a perícia indireta a respeito do tratamento ministrado no pós-operatório,


verdadeiro objeto da lide.

Diversamente do alegado, para análise das questões


postas não era necessária habilitação específica em otorrinolaringologia, pois o
ponto crucial da lide não está ligado à operação de amigdalas, mas sim a aspectos de
clínica geral relativos ao diagnóstico de hemorragia.

De outro lado, a perita apresentou informações


precisas, embasadas tecnicamente, sobre os pontos indagados, com resposta a todos
os quesitos e refutação precisa das objeções da autora, não se constatando existência
de respostas vagas, como argumentado no recurso.

Sustenta a autora que haveria nulidade da sentença por


conta da não aplicação absoluta da presunção do art. 359 do CPC/73 em razão da
falta de exibição de documentos.

O tema não é de cerceamento de defesa, mas de análise


da prova e dos fundamentos da sentença, de modo que inexiste a nulidade arguida.

Ademais, a sentença não deixou de analisar a questão,


concluindo que os documentos mencionados não seriam imprescindíveis ou
relevantes para o deslinde da causa, de modo que, em última análise, estamos diante
da reanálise da prova e fundamentação da sentença, matéria do mérito do recurso,
que escapa ao plano processual de nulidade.

Por fim, apesar de a parte não ter justificado a ausência


de alguns documentos, o que se constata é que as requeridas apenas dispõem
daqueles que foram apresentados, de modo que questionável o cabimento da
exibição.

O registro inadequado da documentação pode ser


ilícito, contudo, é sempre preciso averiguar de há nexo causal entre esta falta de
documentação e o resultado danoso em relação ao qual se busca indenização.

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No mérito, respeitado o entendimento do MM. Juízo a


quo, o recurso comporta provimento.

Considerado o conjunto probatório é possível afirmar


que houve grave falha na prestação do serviço no pós-operatório, tendo a paciente
comparecido várias vezes, no intervalo de dezessete dias, para obter atendimento,
com queixas recorrentes, sem que fossem adotadas providências adequadas para
identificar a razão do problema, que acabou culminando no atendimento
emergencial e no óbito.

A autora foi submetida a cirurgia para retirada das


amigdalas, o que a própria perícia reconhece que não era cirurgia complexa, a
despeito do risco inerente a qualquer tipo de cirurgia.

A cirurgia, realizada em 7/05/2002, transcorreu sem


problemas, não havendo nenhum questionamento quanto aos procedimentos
realizados ou quanto ao cabimento da intervenção médica.

Sustenta a autora que no momento imediatamente após


a operação a paciente apresentava febre e vômito, argumentando que a alta
hospitalar teria sido prematura.

O argumento foi refutado pela perícia, que não


vislumbrou incorreção no procedimento médico, observando a perita que estes
sintomas são compatíveis com a natureza da intervenção. A perita informou que é
comum o paciente apresentar febre e que a ocorrência de vômito teria origem em
“deglutição de sangue no intra operatório”, não consistindo por si óbice a alta
hospitalar (quesitos 11 e 12 - fls. 489).

A cirurgia foi realizada em 7/05/2002 e a paciente


retornou para atendimento em 09/05/2002, 10/05/2002, 13/05/2002, 16/05/2002 e
23/05/2002.

Em 9/05/2002 apresentava otalgia e febre, sendo

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orientado o uso de medicamento nimesulida.

No dia seguinte, 10/05/2002, a paciente retornou ao


hospital com queixa de hematêmese (vômitos com sangue), ocasião em que o
médico solicitou exame de hemograma, o qual revelou hemoglobina de 11,8.

Segundo informou a perícia este resultado do exame


permitia descartar ocorrência de hemorragia maciça.

Até então nada de anormal se pode imputar no


atendimento realizado.

Consta, ainda, novos retornos em 13 e 16/05/2002,


sendo que o médico realizou atendimento e confirmou que o local da cirurgia não
apresentava problemas.

Segundo o relato da inicial teria ocorrido mais um


atendimento no dia 20/05/2002 e, posteriormente, o atendimento no dia 23/05/2002,
o qual culminou no óbito da paciente.

Ocorre que as rés apresentam informação relevante a


respeito dos atendimentos, contrariando parcialmente o relato da inicial.

Conforme contestação da requerida Indiclinicas, houve


um atendimento na véspera do óbito, realizado no dia 22/05/2002.

Neste dia o médico solicitou hemograma e constatou


anormalidade nos índices, suspeitando que a paciente poderia estar sofrendo de
alguma hemorragia interna.

O relato da contestação merece ser transcrito pela


importância do tema na aferição da alegação de culpa exclusiva da vítima:

“Imediatamente, no mesmo dia, em 22.05.02, o


aludido médico, Dr. Javier Davalos, solicitou realização do exame de endoscopia no
intestino alto, a fim de que a paciente fosse submetida a avaliação de médico
especialista “gastro endoscopista”, acenando para uma hipótese diagnóstica de

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sangramento do intestino alto, conforme resta demonstrado pela solicitação médica


parte integrante do prontuário ora juntado.
“Todavia, a requerente, ao ser informada sobre a
necessidade de tal procedimento, na oportunidade dos fatos, informou ao corpo
clínico da requerida, que enquanto eram realizados os preparativos para a realização
do mencionado exame, “estaria indo tomar um lanche”, ocasião em que foi advertida
que voltasse com brevidade a fim de trazer a sua filha. Ocorre que,
inexplicavelmente, a requerente apenas retornou no dia seguinte, em 23.05.02.
“Entretanto, cabe ressaltar que também
inexplicavelmente, da narrativa dos fatos encontrada na exordial que tão bem
detalha os dias dos atendimentos, não consta aquele inerente ao dia 22.05.05”
(fls. 178).

A mesma alegação aparece na contestação da corré


(item 54 fls. 243).

E mais: consta dos documentos da inicial (fls. 68) o


documento datado de 22/05/02 com determinação de encaminhamento para
“internação e avaliação de gastro + endoscopista”, documento firmado pelo Dr.
Javier Davalos. Também a ré apresentou referido documento (fls. 227).

Trata-se, portanto, de grave acusação formulada pelas


rés contra a autora: afirmaram que no momento de crise, com recomendação médica
de internação de urgência, a autora teria se evadido do hospital e somente retornado
no dia seguinte.

Esta questão, de suma relevância, não estava bem


esclarecida e determinou conversão do julgamento em diligência, até mesmo para
que as partes fizessem prova a respeito.

A autora foi inquirida em depoimento pessoal,


contudo, pareceu estar confusa a respeito das datas.

Da sua narrativa se extrai que ela deu entrada no


hospital no dia em que a filha estava já gravemente enferma e ali permaneceu até
que houve o óbito. Foi negada esta acusação de que teria saído com a menor para
fazer um lanche.

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Porém, a autora relata que no dia 22/05 teria estado


mais uma vez no hospital e que o médico teria receitado um medicamento e a
dispensado. Posteriormente no dia seguinte a filha estava pior e por isso voltou ao
hospital.

Não há na documentação juntada, a despeito da


afirmação da autora, qualquer documento de receita do dia 22/05.

A perita apresentou explicação para o ocorrido que se


mostra acertada e condizendo com os demais elementos de prova.

O documento de atendimento médico, firmado pelo


Javier Davalos (fls. 68, 227), que determinou internação imediata em razão do
resultado do exame de sangue, prescrevendo transfusão de sangue, traz a data de
“22/05”.

Ocorre que o exame de sangue mencionado no


documento foi realizado em 23/05/02 (fls. 224), justamente o dia do atendimento
emergencial que culminou no óbito.

A partir deste dado e do que consta no prontuário de


atendimento no dia 23/05, concluiu a perita, e a meu ver com razão, que houve
algum erro do médico na indicação da data constante do BAM 63217 (fls. 68, 227),
pois ele se refere a exame que somente foi realizado no dia seguinte.

Existe um outro elemento de prova corroborando a


inexistência dos fatos alegados na contestação.

No inquérito policial foi inquirido o Sr. Marco


Antonio (fls. 40/41), companheiro da autora, o qual relatou todo o desenvolvimento
do caso desde a cirurgia e, depois, como se deu o atendimento no dia em que houve
o óbito.

Segundo o depoente a menor estava muito debilitada,

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mal se mantinha em pé, razão pela qual a levou ao hospital por volta das 12:00 hs. O
atendimento foi realizado pelo Dr. Javier Davalos, justamente aquele médico que
firmou o BAM datado de 22/05. O médico pediu exame de sangue.

Informou a testemunha que: “enquanto aguardavam o


resultado, o declarante, bem como Ana Paula saíram para almoçar. Retornaram,
em seguida, ao Hospital, e, quando saiu o resultado, o Médico internou Ana Paula,
lhe aplicando “soro”, bem como pediu a transferência urgente de Ana Paula para
outro hospital, para que se feito em caráter de urgência transfusão de sangue.” (fls.
41).

Este depoimento está bem sintonizado com a


cronologia dos fatos, guardando correspondência com o horário em que a menor deu
entrada na internação, com descrição da prescrição realizada pelo médico Javier, etc.

Cabia às rés a comprovação do fato alegado (evasão do


hospital), havendo inclusive conversão do julgamento em diligência para facultar
produção da prova a respeito, não havendo qualquer manifestação das requeridas.

O que se percebe é que não teria ocorrido atendimento


no dia 22/05, havendo erro de data no BAM. Tudo ocorreu no dia 23/05, quando o
estado se agravou, o hospital foi procurado, o Dr. Javier solicitou o exame de sangue
e constatou o índice extremamente baixo de hemoglobina, determinando a
internação imediata e transfusão de sangue.

A mencionada saída para almoço teria ocorrido no dia


do derradeiro atendimento, enquanto se aguardava o resultado do exame de sangue.

Não é crível que a genitora, que havia comparecido ao


menos 4 vezes no período de duas semanas no hospital em razão de queixa de
anormalidade no estado de saúde da filha, fosse deixar o hospital sem concluir o
atendimento justamente quando o médico diagnosticou grave situação que
determinava urgente internação.

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De outro lado, na documentação juntada não consta


qualquer registro de evasão do hospital, o que seria o mínimo a se esperar,
considerando a gravidade do caso e a expressa recomendação médica de internação
imediata.

Conclui-se, portanto, que a contestação apresentou


versão absolutamente desvinculada da veracidade dos fatos.

Excluída esta indevida imputação de culpa da vítima,


retomemos a análise do atendimento prestado no pós-operatório.

Após a operação havia queixa de que menor não estava


bem e que havia episódios em que vomitava sangue.

Houve atendimento em 10/05/2002 e nesta ocasião foi


solicitado exame de sangue, constando nível normal de hemoglobina, o que seria
sinal de que não havia hemorragia.

Segundo a perícia este diagnóstico era acertado e não


haveria, à luz do exame, razão para duvidar e adotar procedimento diverso.

Ocorre que a situação, segundo relato da autora, não


melhorou e sucederam retornos em 13/05, 15/05 e 20/05.

E neste ponto, data venia, parece que o atendimento


médico falhou.

A autora em seu depoimento informou que a filha


piorava dia-a-dia, que era visível a degradação do seu estado de saúde.

Mesmo sendo descartada a hipótese de hemorragia


com o exame realizado em 10/05, o fato é que havia queixa de que o quadro estava
piorando e num intervalo de 10 dias a preocupada mãe retornou 3 vezes para buscar
atendimento médico.

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E não consta que nestas três outras oportunidades suas


queixas tivessem recebido maior atenção, nem mesmo outro exame de sangue foi
realizado.

Novo exame de sangue somente foi realizado em


23/05, data do atendimento emergencial, quando o nível de hemoglobina já era de
4,3, o que era crítico.

A perícia relata que o exame de sangue era o adequado


para constatação de eventual hemorragia.

Asseverou a perita que a causa da morte seria


hemorragia aguda e de início recente, mas que esta poderia ter sido causada por
ruptura da fibrina da área cruenta do pós-operatório ou por formação de úlcera
gástrica com sangramento pelo uso de anti-inflamatório (fls. 765), de modo que não
descartado nexo com o procedimento da cirurgia de amigdala.

O exame necroscópico indicou a hemorragia e


mencionou cardiopatia congênita, informando a perícia que tal circunstância poderia
ser um fator agravante (fls. 763).

Ora, a menor havia sido submetida há pouco a cirurgia,


não sendo crível que passasse despercebida a existência da cardiopatia.

Várias vezes após o procedimento a mãe da paciente se


queixava de que a filha não estava bem, que expelia sangue, que estava abatida, etc.

No início foi realizado um exame de sangue, que até


justificaria o diagnóstico inicial, contudo, a situação não melhorava e havia relato de
progressiva piora, de modo que nos demais atendimentos o mínimo que se esperava
seria a repetição do exame, tido como necessário para identificar hemorragia, ou o
incremento dos procedimentos disponíveis de investigação, com outros exames.

O caso enseja reconhecimento da culpa por omissão,

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por falta de adoção dos cuidados necessários.

Ainda os momentos extremos do atendimento,


considerando a operação e o atendimento emergencial, não sejam considerados
como incorretos, o fato é que o atendimento neste interregno não foi adequado.

Os sinais eram relevantes de que algo estava errado. A


parte não deixou de procurar atendimento, estando sempre presente no hospital em
curtos intervalos de tempo. A sucessão de atendimentos, sem reconhecimento de
melhora, demandava maior cautela, investigação mais acurada.

Não se tratava de questão de dificílima investigação e


o acompanhamento recente e sem notícia de melhora já apontava na direção de
cuidado especial, destoando o caso da esperada normalidade.

Enfim, está bem caracterizada a falha no atendimento,


que enseja reconhecimento da culpa.

O nexo causal está demonstrado, pois esta sucessão de


omissões levou ao agravamento do quadro a estágio tão acentuado que o desfecho
lesivo foi inevitável.

Assim, devem as requeridas responder pelo dano daí


decorrente.

Passo a fixar a indenização.

Improcede a pretensão de recebimento de indenização


de “dano psíquico” cumulada com indenização de dano moral.

Não se verifica esta categoria autônoma de dano


psíquico, a justificar reparação separadamente do dano moral.

É certo que pode haver lesão à esfera psicológica da


vítima, contudo, necessário aferir qual a repercussão para delimitação da natureza da

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indenização cabível, ou seja, se as consequências são patrimoniais, morais ou


ambas.

A lesão psicológica decorrente da depressão


ocasionada pela morte da filha, como alegado, é típico evento determinante de dano
moral, não se justificando dupla e cumulada reparação.

Inegável o dano moral suportado pela genitora em


razão da morte de sua filha, dano que existe in re ipsa, por força dos vínculos
afetivos decorrentes desta relação, não demandando comprovação.

Ainda que incomensurável a dor sofrida pela genitora,


o valor da indenização reclamada se mostra excessivo, destoante dos padrões usuais
de indenização para eventos desta natureza.

No que toca ao valor da indenização de dano moral,


observo que em casos de morte de filho a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça tem fixado a indenização em 250 salários (Resp. 565.299); 300 salários
(Resp. 435.157); 200 salários para cada reclamante (Resp. 220.234); 500 salários
(Resp. 331.295); 600 salários (Resp. 302.298), tudo a depender, também, das
circunstâncias do óbito.

O valor pleiteado, de 1.500 salários, se mostra


excessivo e fora de parâmetro.

Considerando as circunstâncias do caso, o grau de


culpa, que não é extraordinário; a intensidade e natureza da lesão, que são graves,
fixo a indenização em R$ 100.000,00, o que se aproxima de 100 salários.

Incide correção monetária desde a data do julgamento


do recurso e juros de mora desde a data do óbito.

Há que se consignar que a autora sofreu dano por


ricochete, não mantém relação contratual com as requeridas, de modo que a

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responsabilidade é de cunho extracontratual, repercutindo na fixação do termo


inicial dos juros.

Como já decidiu: “(...) De outro lado, quanto ao termo


inicial dos juros, não há relação contratual que vincule a autora, vítima indireta do
dano, ao réu. A ela não se comunica a relação que a paciente estabelecera com o
Hospital. As vítimas por ricochete, no direito pátrio, atuam alegando direito
próprio, autônomo, assim desvinculado da situação jurídica específica da vítima
direta, pelo que incidiria, inclusive, o enunciado da Súmula 54 do STJ.” (TJSP - 1ª
Câmara de Direito Privado - Ap. 0018277-47.2012.8.26.0292 - Rel. Claudio Godoy
- j. 21/07/2017).

Em relação ao pedido de dano material devem as rés


responder pelas despesas de funeral e luto (art. 948, I do CC), a ser apurada em
liquidação de sentença, com correção monetária e juros desde o desembolso.

O pedido de pensão deve ser acolhido em parte.

Doutrina e jurisprudência reconhecem que a morte de


filho pode acarretar, também, perda patrimonial, consistente no auxílio econômico
com o qual os genitores poderiam contar.

É certo que a Súmula nº 491 do STF, que estabeleceu o


direito à indenização, surgiu antes da Constituição de 1988 e do pleno
reconhecimento da reparabilidade do dano moral, o que levou ao questionamento da
sua subsistência em razão da necessidade de distinguir o que seria perda econômica
do verdadeiro dano moral oriundo da morte de filho.

Porém, ainda hoje tem a jurisprudência reconhecido o


cabimento da indenização pela potencial perda material que a morte do filho
acarreta, especialmente nas famílias de menor renda.

Nesse sentido: “V. É firme a jurisprudência do


Superior Tribunal de Justiça no sentido de que "é devida pensão por morte aos pais

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de família de baixa renda, em decorrência da morte de filho menor, e não é exigida


prova material para comprovação da dependência econômica do filho, para fins de
obtenção do referido benefício" (STJ, AgRg no Ag 1.252.268/SP, Rel. Ministro
HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 18/03/2010). Nesse sentido:
STJ, AgInt no AREsp 1.047.018/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA,
QUARTA TURMA, DJe de 29/06/2017; AgRg no AREsp 346.483/PB, Rel. Ministro
HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/12/2013.VI. Agravo interno
improvido.” (STJ - AgInt no AREsp 1346126/GO, Rel. Ministra ASSUSETE
MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/12/2018, DJe 17/12/2018).

No caso sub judice inexistem elementos para afastar o


pedido formulado pela autora, não se tratando daquela excepcional situação de
família na qual os pais provavelmente jamais dependeriam do concurso dos filhos
para seu sustento. Assim, cabível a indenização na forma de pensão.

Não há fundamento para acolhimento do pedido de


pensão equivalente a 3 salários mínimos.

A menor não trabalhava e nem tinha idade para tanto,


de modo que a pensão deve considerar o valor de 1 salário mínimo.

Ademais, presume-se que nem toda a renda reverteria à


genitora, tendo a filha seus próprios gastos, de modo que a pensão corresponde a 2/3
do salário mínimo.

A respeito do termo final havia controvérsia na


jurisprudência, pois alguns julgados tomavam a data em que o filho completaria 25
anos e possivelmente constituiriam sua própria família, ao passo que outros
consideravam a vida provável da vítima até 65 anos.

O STJ unificou entendimento no sentido de que a


pensão, embora reduzida, continua para além dos 25 anos da vítima.

Na lição de CARLOS ROBERTO GONÇALVES

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(Direito civil brasileiro. Responsabilidade civil, p. 435): “Com a unificação,


assentou-se que a indenização de dano material, paga sob a forma de pensão, em
caso de falecimento de filho, deve ser integral até os 25 anos de idade da vítima, e
reduzida à metade, até os 65 anos. Segundo o mencionado relator, a redução da
pensão, paga aos pais das vítimas, pela metade, deve-se ao fato de as pessoas
normalmente mudarem de estado civil por volta dos 25 anos de idade e assumirem,
assim, novos encargos. É sensato, assim, que, a partir da data em que a vítima
completaria 25 anos, a pensão seja reduzida em 50% do valor fixado, até o limite
de 65 anos”.

Nesse sentido: “Quanto ao pensionamento, cabe


ressaltar que a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de ser esse devido,
mesmo no caso de morte de filho(a) menor. E, ainda, de que a pensão a que tem
direito os pais deve ser fixada em 2/3 do salário percebido pela vítima (ou o salário
mínimo caso não exerça trabalho remunerado) até 25 (vinte e cinco) anos e, a
partir daí, reduzida para 1/3 do salário até a idade em que a vítima completaria 65
(sessenta e cinco) anos. Precedentes. Incidência da Súmula 83/STJ.” (STJ - AgInt
no REsp 1287225/SC, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado
em 16/03/2017, DJe 22/03/2017).

No cálculo do período em que devido o pensionamento


deve ser tomado como termo inicial a data em que a filha completaria 14 anos, pois
antes disso não poderia exercer trabalho remunerado (art. 7º, XXXIII da CF).

O pensionamento cessa com a morte do beneficiário


(autora), se ocorrido antes do termo final supramencionado.

Não se trata de óbito de pessoa com vínculo formal de


emprego, não havendo lugar para cômputo de 13º salário e 1/3 de férias, sendo
devidas apenas doze prestações anuais.

O valor da pensão é convertido em salário mínimo,


afastando incidência de correção monetária. Os juros incidem desde o vencimento

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de cada mensalidade.

Ficam as rés condenadas à constituição de capital para


garantia de pagamento da indenização relativa aos alimentos, nos termos do art. 475-
Q do CPC/73 (art. 533 do CPC).

Deve ser reconhecida a sucumbência recíproca,


considerando que a autora decaiu de parte relevante do pedido, equivalente a 1.000
salários de dano psicológico e o valor da pensão mensal reclamada.

Assim, respondem as rés por 2/3 das custas, despesas


processuais e honorários advocatícios, arbitrados em 20% do valor da condenação, o
que compreende as parcelas vencidas e um ano das parcelas vincendas (pensão),
respondendo a autora pelo 1/3 restante, observada a assistência judiciária.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento parcial


ao recurso.

Enéas Costa Garcia


Relator

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