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Inesperado Reencontro

Copyright © Thalita Branco


1ª Edição – Março de 2023

@thalitabrancoautora

Revisão: Thalita Branco


Diagramação: Thalita Branco
Leitura beta: Bianca Maria, Bianca Noronha, Laura Marine e Daia Vitoriano
Assessoria: Vanessa Pavan
Capa: Kevi Designer
Ilustrações: Tácyla Priscila e Carlos Miguel

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes ou
acontecimentos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei de Direitos Autorais 9.610/98 do Brasil, bem como demais leis sobre direitos autorais dos países em que essa
obra for adquirida.
Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio, ou forma, sem a expressa autorização por escrito da autora. Plágio
é crime!
Contato: thalitabrancoautora@gmail.com
Sumário

Sumário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1 – Guilherme
Capítulo 2 – Aurora
Capítulo 3 – Guilherme
Capítulo 4 – Aurora
Capítulo 5 – Aurora
Capítulo 6 – Guilherme
Capítulo 7 – Guilherme
Capítulo 8 – Aurora
Capítulo 9 – Guilherme
Capítulo 10 – Aurora
Capítulo 11 – Guilherme
Capítulo 12 – Aurora
Capítulo 13 – Aurora
Capítulo 14 – Guilherme
Capítulo 15 – Aurora
Capítulo 16 – Guilherme
Capítulo 17 – Aurora
Capítulo 18 – Guilherme
Capítulo 19 – Aurora
Capítulo 20 – Guilherme
Capítulo 21 – Aurora
Capítulo 22 – Guilherme
Capítulo 23 – Aurora
Capítulo 24 – Guilherme
Capítulo 25 – Guilherme
Capítulo 26 – Aurora
Capítulo 27 – Guilherme
Capítulo 28 – Aurora
Capítulo 29 – Guilherme
Capítulo 30 – Aurora
Capítulo 31 – Guilherme
Capítulo 32 – Aurora
Capítulo 33 – Guilherme
Capítulo 34 – Aurora
Capítulo 35 – Guilherme
Epílogo – Aurora
Nota da Autora

Olá, tudo bem com você?


Finalmente chegou a vez do Guilherme Alcântara!
Quem me acompanha há mais tempo talvez se lembre dele em O CEO de Touro (atualmente
removido da Amazon, mas prometo que Lorenzo retorna). Apesar da sua participação ser grande,
os pedidos pelo “Livro do Guilherme” só se tornaram frequentes após o lançamento de Um Bebê
Surpresa Para o CEO Viúvo.
Nosso CEO golden boy sempre esteve no cronograma. Gostaria, inclusive, de tê-lo lançado
antes, mas não deu certo.
Tudo tem o seu tempo, e ele fez bem à Guilherme. A ideia inicial de uma comédia romântica
entre chefe e funcionária ganhou contornos de drama e se tornou mais densa.
Por mais que Inesperado Reencontro caminhe pelo mundo dos sonhos e traga um pouco da
magia do primeiro amor, não foi uma história fácil de escrever. Além dos personagens terem
amadurecido e vindo com temas mais pesados, entregar o livro pedido há tanto tempo tem um
peso diferente, traz um maior senso de responsabilidade.
Coloquei o ponto final com a certeza de que fui fiel a Guilherme e Aurora. Espero de coração
que você possa se encantar por eles da mesma forma que eu me encantei.
Lembrando que esse é um livro recomendado para maiores de 18 anos. Possui gatilhos para
alcoolismo, violência contra a mulher e menção à assédio sexual.
Boa leitura,
Thalita
Prólogo

O SONHO
As imagens são recorrentes. Às vezes, parecem de verdade. Às vezes, não. Eu acordo, e
jamais tenho certeza.
A única certeza é que começam da mesma maneira: com uma menina com o nome do
amanhecer sentada na areia. A cena varia. Às vezes, ela brinca com suas bonecas. Outras, com
panelas de plástico colorido. Ainda há as ocasiões em que apenas encara o mar. Gosto de
encontrá-la assim. Com serenidade estampada no rosto liso, desprovido de qualquer marca.
O semblante em completa paz.
No sonho, deixo de ser um homem adulto e volto a ser apenas um menino. Sinto quando o
coração infantil dispara. Inocente, jovem demais para conter qualquer partícula de malícia. Aos
nove anos de idade, não sei que nome dar aquele sentimento, mas algo dentro de mim sabe como
ele é bom.
A minha versão infantil vem de uma família com muito, mas tem pouco. Sou considerado
pequeno, possuo a saúde frágil e ostento uma timidez incapacitante. Ignorado pelo pai. Às vezes,
até pela mãe.
Tenho um único amigo fiel.
E tenho a menina.
Ela também é minha amiga, mas é algo mais. Não sei bem o que, e não me importo em
descobrir. O menino tem a visão do seu rosto admirando o mar. Para ele, é o que basta.
Em algum momento do sonho, parte da timidez desaparece como em um passe de mágica. O
menino se aproxima com passos vacilantes. Nas mãos, leva uma flor. As cinco pétalas rosadas,
com o centro pincelado de um tom claro de amarelo, perfumam os dedos conforme caminha.
Ele acolhe a flor entre as mãos com delicadeza. Algo sempre me diz que não é a primeira vez
que faz isso. Hesitou em outras ocasiões, mas agora está determinado.
Teme desmanchar a flor.
Teme ter o coração desmanchado.
Mas continua se aproximando, sem hesitar.
Até estar perto o suficiente para a menina notar a sua presença e virar o rosto.
A brisa do mar agita os seus cabelos, fazendo com que as mechas castanhas flutuem em torno
da face bonita. Ela fixa os grandes olhos esverdeados nos dele e uma batida falha dentro do
coração infantil.
O menino fica sem ar, e não é por causa da bronquite ou da insistente asma.
É por causa dela.
A sensação ruim dura menos de um segundo, sendo substituída por uma onda de amor sem
nome. Tão grande, mas tão grande, que quase o afoga. Respira fundo, consegue encher os
pulmões de ar, e sorri. A menina sorri de volta, feliz por vê-lo ali.
Ele se infla de coragem e faz o que tantas vezes hesitou fazer. Estende a flor e os olhos da
menina se arregalam. Devagar, ela ergue o rosto deslumbrado em direção ao dele.
— Para mim?
— Sim.
O sorriso se alarga ao receber a flor. Eles se demoram um pouco, apreciando aquilo que não
entendem de todo. Cientes, mesmo em sua inocência, do sentimento que se avoluma em um
singelo encontro na praia.
Ela ergue a flor na altura dos olhos e observa, pétala a pétala, a perfeição da natureza. Encosta
o nariz sobre a superfície aveludada e inspira o seu doce perfume.
Com delicadeza, afasta uma mecha de cabelo para trás da orelha e posiciona a flor entre os
fios castanhos. Não tem qualquer pressa, apenas quer ficar ainda mais bonita. Ao se dar por
satisfeita, pousa um rápido beijo na bochecha do menino.
— Obrigada.
Ele pisca, maravilhado. O coração agora está cheio de vida. O sentimento sem nome é tão
grande que dribla qualquer obstáculo e escapa antes que seja capaz de segurar. Encara a menina e
diz com uma firmeza que jamais teve:
— Prometo que um dia vou me casar com você.
As bochechas da menina se tornam tão rosadas quanto as pétalas do jasmim-manga e uma
leve risada escapa dos seus lábios. Não é uma risada de escárnio. Pelo contrário. É uma risada
cheia de encanto.
Ela abre a boca e apuro os ouvidos, ansioso para escutar a resposta, mas o barulho do vento e
da arrebentação leva sua voz para longe.
E traz os gritos.
O lúgubre e frenético ecoar dos gritos.
O encantamento é perdido. Eu e a menina nos viramos em direção ao som, a tempo de ver
uma mulher sendo arrastada pelos cabelos. Seus gritos ecoam pela praia e um trio de gaivotas
alça voo, assustadas com a violência que se desenrola na areia.
Os gritos negam.
Os gritos acusam.
A confusão se torna generalizada.
O menino se assusta. Quer ajudar, mas não sabe se é capaz. Seu pai surge e consegue separar
as mulheres. Puxa a sua mãe contra o peito. A outra, joga com força no chão. Uma bolsa
contendo os seus pertences cai pesada ao seu lado.
Ela agarra a alça do objeto e se ergue com dignidade. Longos cabelos castanhos se agitam sob
a brisa enquanto os olhos de esmeralda vertem espessas lágrimas. Ela abre a boca para falar, mas
assim como a filha, não fala. Dá-lhes as costas e caminha resoluta até onde estamos. Agarra a
mão da menina e a puxa para longe.
Eu não tenho tempo de me despedir. Arrastada pela mãe, a menina vira o rosto e olha por
sobre os ombros, as pernas emboladas na saia do vestido cor-de-rosa, incapaz de acompanhar os
passos da mulher adulta. O vento agita os seus cabelos, fazendo com que a flor se desprenda dos
fios macios e deslize vagarosamente até o chão.
É o que desperta o menino. Ele toma impulso para correr, mas é puxado na direção contrária.
Infla os pulmões com o máximo de ar e grita, chamando-a de volta, mas os gritos se misturam ao
grasnar das gaivotas e são levados pela brisa do mar.
Na primeira vez acordei assustado.
Agora, apenas acordo.
Simplesmente abro os olhos e encaro o teto pintado de branco. Sento-me devagar, o lençol
deslizando pelo peito nu até se amontoar na cintura.
Há muito deixei de ser um menino pequeno e com problemas respiratórios que mal conseguia
gritar. Virei um homem forte e alto. Um homem que ostenta a própria riqueza. Um homem que
acorda de um sonho e não sabe se ele foi de mentira ou de verdade.
Porque há outra coisa recorrente: o sentimento de perda. Pungente a ponto de ameaçar trazer a
asma de volta e me sufocar. Não importa quantas vezes eu sonhe, ele estará ali, por mais que eu
não saiba o que perdi.
Capítulo 1 – Guilherme

Aos poucos noto a claridade do quarto mudando. Os raios de sol passam a se infiltrar nas
cortinas, desenhando linhas retas sobre os lençóis. Não sei por quanto tempo fico ali, apenas
pensando.
— Por que sempre sonho com você? — questiono a mim mesmo. A voz sai rouca devido à
falta de uso durante o sono, mas estou desperto.
As engrenagens do meu cérebro trabalham para descobrir quem ela é. Falei sobre o sonho
apenas uma vez, com a minha mãe. Seu olhar de desdém foi o suficiente para que um jovem
Guilherme entendesse que aquele assunto jamais deveria ser trazido à tona.
Sonhos recorrentes? Só loucos tem sonhos assim!
Fecho os olhos e balanço a cabeça com força, em uma tentativa de esquecer de uma vez por
todas as imagens que insistem em me atormentar.
Afinal, de que adianta recordar um suposto amor do passado? Encaro o espaço vazio ao meu
lado. Quero lembrar do amor do presente que, a menos que eu tome uma atitude, também ficará
para trás.
Faz quase seis meses que Evelyn levantou da cama com um único objetivo: desgraçar a minha
vida. O pedido de divórcio veio de supetão. Da noite para o dia, ela simplesmente disse que não
dava mais, pegou as malas de viagem, encheu com as suas coisas e foi embora.
Fui atrás dela. Implorei, tentando entender o que fiz de errado, mas Evelyn jamais falou.
Então tentei entender por mim mesmo. Sei que passava tempo demais no trabalho. As
demandas como CEO da Alcântara Mineração sempre me fizeram chegar tarde em casa.
Mesmo assim, eu me esforçava para ser um homem presente. Jamais esqueci um aniversário.
Reparava em novos cortes de cabelos e nos vestidos recém comprados. Pagava jantares nos
melhores restaurantes da cidade. Presenteava com joias de grife. Mandava mensagens ao longo
do dia, apenas para saber se estava bem. Todo o meu tempo livre era dedicado única e
exclusivamente a ela. Fazia questão de amar Evelyn sem qualquer reserva.
Então por que ela foi embora?
Acostumado em assinar tudo quanto é tipo de contrato, reluto em assinar o divórcio. Não que
ela precise da assinatura. Há tempos poderia ter entrado com um processo de divórcio litigioso e
resolvido a questão.
Isso só pode dizer uma coisa: ainda tenho uma chance.
Com sonho ou sem sonho, acordo todos os dias com uma única certeza: ainda a amo. Preciso
saber o que fiz de errado. Preciso saber o que faria Evelyn voltar para mim.
Ela não vai voltar, a voz da negatividade sussurra no meu ouvido. Balanço a cabeça de novo.
Talvez ela volte.
Afasto os lençóis enrolados em torno da cintura e giro o corpo, pronto para sair da cama.
Basta que os meus pés encostem no tapete macio para Quindim uivar e começar a arranhar a
porta da suíte. Fecho os olhos e respiro fundo. Preciso lembrar de pedir para a secretária
encontrar um bom adestrador para o cachorro.
Só de cueca, caminho até a porta e deixo-o entrar.
— O que foi, seu sem-vergonha? — pergunto, olhando para a bolinha amarela que pula ao
meu redor.
Ele pode ter destruído a porta, comido metade dos meus sapatos italianos e uivar alto o
suficiente para os vizinhos três andares abaixo escutarem, mas se tornou o principal motivo que
me faz levantar todas as manhãs. Quindim, o mais destruidor filhote de golden retriever que
jamais imaginei ter, se limita a latir o seu bom dia e pular sobre a cama.
Estalo a língua em desaprovação.
— Não, não e não! Desça já daí!
Ao invés de obedecer, ele se enfia entre os lençóis, alcança os travesseiros e empurra metade
deles para fora. Solto um suspiro e deixo o pequeno furacão fazer o que bem entender, enquanto
penso em como encontrar uma maneira de conversar cara-a-cara com a Evelyn.
Desde que ela foi embora, nos encontramos duas ou três vezes. Em todas as outras, ela me
ignorou. As conversas se deram pelo telefone e, mesmo assim, foram monossilábicas. Evelyn se
limita a perguntar se assinei o divórcio. Toda tentativa de expandir o diálogo é rechaçada com
cortes bruscos ou o odioso tu-tu-tu de uma linha desligada.
Escuto o som de algo se rasgando. Olho por sobre o ombro e encontro Quindim abanando o
rabo ao puxar o tecido da fronha do travesseiro da mulher. Adianto-me para contê-lo, mas seus
dentinhos afiados são mais rápidos. Alcançam o interior macio e espalham penas entre rosnados
animados.
— Chega! — engrosso o tom, chamando a atenção do cachorro.
Ele para onde está, orelhas erguidas, e pula com tudo na minha direção. Daqui a pouco estará
grande demais para isso, mas pego-o no ar e o levo em direção a sala de estar. A sua própria
cama, e a tigela de comida, ficam ali.
Sua barriga ronca contra os meus braços, então coloco-o no chão, encho a tigela com ração e
caminho de volta ao quarto. Escuto o croc-croc da sua mastigação enquanto uma ideia se forma
na minha cabeça.
Evelyn sai às nove horas da manhã para trabalhar. Pego o celular sobre a mesinha de
cabeceira e confirmo: é cedo o suficiente para que eu possa me aprontar e surpreendê-la.
Sigo decidido até o banheiro, disposto a surpreendê-la com o meu melhor. Tiro a cueca, abro
o chuveiro e deixo que a água morna lave toda a negatividade. Ensaboo o corpo e os cabelos com
cuidado. Ao sair, enrolo a toalha branca na cintura e faço a barba, deixando o rosto liso como
Evelyn gosta.
Termino de me secar e vou até o closet, quase tropeçando no cachorro. Quindim comeu o café
da manhã e se esparrama de barriga para cima no meio do quarto. Recupero o equilíbrio e me
enfio entre os cabides cheios de camisas sociais e ternos bem passados.
Decido por uma combinação de camisa branca e calça escura. Ajeito os punhos, conferindo o
meu aspecto no espelho de corpo inteiro. A eminência do divórcio fez com que eu emagrecesse
alguns quilos, mas continuo apresentável.
Quindim entra no closet e passa a língua rosada pelos lábios ao me ver calçando um par de
sapatos novos. O sem-vergonha sabe que o couro está intacto, prontinho para ser mastigado.
Coloco-o para fora e retorno ao banheiro. Capricho na loção pós barba, molho o pescoço com
perfume e ajeito os cabelos. Alguns fios castanhos se rebelam, mas deixo como estão.
— O que acha, Quindim? — pergunto ao filhote.
Ele vira a cara de lado e solta um latido. Tomo como aprovação. Faço um cafuné na sua
cabeça, pego o celular e caminho em direção a sala.
Sim, ele comeu a ração, e metade da tigela plástica também. Detesto deixar a sala bagunçada,
mas se eu não me apressar, vou me atrasar. Deixo o meu próprio café da manhã para depois e
saio da cobertura. Quindim grunhe, mas dessa vez preciso ignorá-lo.
Em instantes, desço com o elevador privativo até a garagem, avistando o Audi Q8 prata. Eu
poderia chamar o motorista particular, mas dessa vez prefiro dirigir por mim mesmo.
O caminho entre a cobertura e a atual morada da Evelyn é relativamente curto. Tento não me
ressentir pelo fato dela ter comprado o apartamento sem me consultar, ou ter chamado um amigo
para ajudar a mobiliá-lo. Talvez ela só quisesse manter a própria privacidade, e está tudo bem.
Mas ela era a sua esposa.
Ela é a minha esposa!
Estou quase chegando, quando decido desviar do caminho para passar em uma floricultura. A
vendedora ainda abre as portas envidraçadas, mas é solícita em me oferecer um buquê de rosas,
as favoritas da Evelyn. Pago pelas flores e retorno ao carro, a expectativa crescente no peito.
Em poucos minutos, estaciono diante do prédio. Desço do Audi e ergo os olhos para a
ostensiva construção. Ela jamais passou o endereço por conta própria. Apenas sei qual é o
número do seu apartamento por causa da troca de correspondência entre os advogados
envolvidos no divórcio.
Limpo a garganta e me aproximo da portaria. Os vidros escuros impedem que eu veja a face
de quem me atende.
— Bom dia. O meu nome é Guilherme Alcântara. Vim visitar a Evelyn, no apartamento
número 15.
— Ela está te esperando?
Engulo em seco.
— Ah... não.
— Só um minuto.
Assinto em concordância, segurando o buquê com mais firmeza. Verifico as horas no relógio
de pulso. Cinco minutos. Já se passaram cinco minutos, e nada. O anúncio de um visitante jamais
deveria levar tanto tempo.
— Ela está descendo — o porteiro avisa.
Abro a boca para perguntar por que não posso subir, mas mantenho-me calado. Em instantes
Evelyn estará aqui embaixo.
Os instantes tornam-se mais uma somatória de longos minutos. Evito olhar o relógio, mas
algo me diz que é de propósito. Que a demora é friamente calculada para me fazer ir embora.
Passo o punho da camisa social sobre a testa suada. Daquele jeito não estarei apresentável
quando ela aparecer.
E ela aparece. Sai do saguão de entrada do prédio com toda a calma, como se deslizasse por
uma passarela. O conjunto de saia lápis e blusa justa parece escolhido apenas para me torturar.
Se essa era a intenção, parabéns. Conseguiu.
Estou praticamente sem fôlego no instante em que Evelyn cruza o imenso portão, joga o
cabelo comprido para trás e para com o nariz empinado na minha frente. Uma nuvem de perfume
floral a acompanha, anestesiando os meus sentidos.
— A menos que tenha trazido o divórcio assinado, não vejo qualquer motivo para você estar
aqui.
— Bom dia, Evelyn — ignoro, oferecendo as flores. Ela olha para as rosas como se eu lhe
oferecesse um punhado de vermes. A voz sai quase como uma súplica. — Será que podemos
entrar e conversar?
— Depende — ergue os olhos em direção aos meus, as íris azuis inflamadas de raiva. — Você
vai entrar para assinar o divórcio?
— Evelyn...
— Evelyn, nada! Tudo o que eu quero é seguir com a minha vida, mas você não deixa!
Acredite, Guilherme, a paciência está acabando! Há meses tento resolver isso de forma amigável.
Garanto que a próxima intimação do meu advogado será tudo, menos amigável!
Isso não está saindo como o planejado.
— Eu só queria conversar — insisto. — Eu...
A voz falha. Abaixo a cabeça e respiro fundo. Um estranho pressentimento começa a rastejar
pelos meus tornozelos, ameaçando se embrenhar pelas pernas e tomar todo o meu corpo.
— Eu o quê?
— Eu só queria entender por que você foi embora — ergo os olhos. — O que fiz de errado,
Evelyn? Seja lá o que for, posso consertar. Posso te fazer feliz. Só me dê uma chance.
Os seus ombros se encolhem e o semblante vacila pela primeira vez desde que saiu
empertigada do saguão. Sem perder a altivez, balança a cabeça de um lado para o outro em uma
clara negativa.
— Não há o que consertar, porque você não fez nada de errado. E não há como me fazer feliz,
porque eu não te amo.
O coração massacrado pela sua ausência se comprime dentro do peito.
— Você não...
— Não — é enfática. — Não amo.
Evelyn me encara com profundidade. O bonito rosto levemente ovalado é empático. Morde os
lábios tingidos de vermelho, os mesmos que tanto gostava de beijar, sem saber como continuar.
Um novo pressentimento me domina.
De alguma forma, sei que as palavras prestes a saírem da sua boca irão me destruir.
Preciso ser mais rápido que ela.
— Podemos fazer terapia de casal — começo, subitamente animado. — Ou, quem sabe, viajar
juntos! Você sempre quis ir para as Maldivas. Posso ajustar os afazeres no trabalho e dar um
jeito. A empresa não irá desmoronar se eu passar alguns dias fora e...
— Eu te traí, Guilherme.
O corte é afiado. Certeiro. Passa pelas costelas, penetra o peito e atinge o coração em meio a
uma batida. Ele falha. Ele sangra. O líquido vermelho e quente começa a inundar o meu tórax,
mas não quero acreditar. Solto uma risada, nervosa e desprovida de humor, na tentativa de
apaziguar a constrangedora situação.
— Desculpe, mas acho que não ouvi direito. Você o quê?
— Te traí — repete, sem piedade. — Conheci outro cara e te traí.
Arregalo os olhos enquanto ela me encara, impassível. Sabe que precisa me destruir por
completo para atingir o seu objetivo.
— Por quê? — balbucio, ainda sem acreditar.
— Eu já disse: porque não te amo. No fundo, nunca amei. — O meu queixo cai e ela
acrescenta: — Gostava de você quando nos casamos. Um homem gentil, educado e bonito.
Impossível não gostar. Aceitei o seu pedido, mas só descobri o que é amor de verdade ao
conhecer o Heitor.
Todos os pelos do meu corpo se arrepiam. O nome não é estranho. Tento puxar na mente, sem
sucesso, até que ele surge em um clarão e domina todo o meu cérebro.
Uma onda de amargura se mistura ao sangramento no peito.
— Heitor, o seu advogado? — pergunto. Evelyn assente.
— Ele mesmo. Não foi minha intenção, juro que não foi! Mas... aconteceu — dá de ombros,
como se os votos trocados no altar não fossem nada. — Eu finalmente me apaixonei por
completo. Foi tão diferente, Guilherme. Intenso de uma forma que nunca foi com você.
Para mim, foi!, quero gritar, mas não consigo. Estou atordoado demais para assimilar
qualquer coisa.
Evelyn me... traiu?
A lâmina penetra mais fundo e a hemorragia se expande, me enchendo de clareza. Uma
desconhecida frieza me domina conforme as lembranças inundam o corpo. As declarações de
amor existiam apenas de uma parte. Eu sempre cuidei dela, mas ela nunca cuidou de mim.
Deixou-me sozinho na cobertura quando ardi em febre na última vez em que fiquei gripado,
saindo com a desculpa de ter uma reunião inadiável no trabalho.
Deve ter me deixado sozinho para foder com o advogado em algum motel barato.
A palavra mentira ecoa acusatória em meus ouvidos.
— E por que não contou antes? — pergunto.
Algo em meu tom de voz a assusta, fazendo com que Evelyn recue um passo. Apesar disso,
não perde a postura.
— Porque sabia que você ficaria transtornado, então quis te poupar. Esperei todos esses
meses, com a esperança de que assinasse o divórcio e essa conversa não fosse necessária.
— Se você tivesse me contado antes...
— Mas não contei. E então: vai assinar o divórcio? — O celular vibra e ela encara a tela. —
Preciso ir. O meu namorado está lá em cima, esperando que a nossa conversa termine para descer
e me levar ao trabalho. — Seu tom se torna sombrio ao continuar: — A paciência dele também
está acabando. Se você não assinar, iremos entrar com o processo de divórcio litigioso. Garanto
que ele será longo e cansativo.
A lâmina parte o meu coração em dois. O sangue amargurado torna-se tóxico ao se espalhar
por todo o meu corpo. Encaro a mulher, quase sem acreditar, mas acredito. Claro que acredito.
As lembranças vêm com tudo. Invadem a minha alma. Fazem com que eu me recorde de cada
pequeno momento em que jamais tive o meu amor retribuído.
— Eu pensei que teria uma família com você — solto, acusatório.
— E eu pensei que, um dia, poderia te amar. Eu me esforcei para isso, Guilherme. Juro que
me esforcei. Mas não pude — engole em seco. Os olhos azuis demonstram um mínimo
arrependimento ao mirar os meus. — Sinto muito.
Não respondo. A palavra mentira ecoa até misturar-se ao veneno puro que circula nas veias.
O desejo pelo líquido que entorpece os meus sentidos e acalenta o meu ser aflora com força.
Recuo, devagar, até bater com as costas na lataria prateada do carro. Aperto o buquê com mais
força, um espinho penetrando fundo no polegar. Evelyn percebe o esgar em meu rosto antes que
eu me vire e entre no veículo.
— Guilherme? — chama, fazendo com que eu a encare.
Um fiapo de esperança faz o meu coração voltar a bater. Talvez toda aquela conversa seja
fictícia. Uma historinha que ela criou apenas para dizer, em alto e bom som, o quanto me ama.
Parte de mim quer acreditar nisso. Parte, quer apenas ir embora e encher a cara.
— Diga.
— Eu odeio rosas.
Ela dá as costas e cruza os portões do prédio, desfilando em direção ao saguão. Entro no
carro, jogo as rosas de qualquer jeito sobre o banco e dou a partida. Aciono o assistente de voz
assim que o painel se acende. Em seguida, ligo para a secretária e aviso que estou doente.
O que é mais uma mentira quando a maior parte da minha vida adulta foi baseada nela?
Capítulo 2 – Aurora

Encosto as costas no azulejo azul-claro e encaro o teste rápido posicionado na palma da mão.
Duas linhas confirmando o que eu já sabia.
Estou grávida.
Mordo os lábios e tento conter o misto de emoções. Não desconfiei no início, quando a
menstruação atrasou. Ela sempre foi irregular, então era comum que atrasasse uma ou duas
semanas. Houveram ocasiões em que atrasou um mês, apenas para retornar no período seguinte
como se nada tivesse acontecido.
Comecei a desconfiar com a chegada dos enjoos matinais. Eles vinham apenas durante as
primeiras horas do dia, fortes a ponto de me impedirem de tomar o café da manhã. Por sorte o
meu marido sai cedo de casa. Estremeço só de pensar no que ele faria caso me visse
desperdiçando a comida conquistada com o suor do seu trabalho na porcelana branca do
banheiro.
Mas, tão rápido como vieram, os enjoos desapareceram. Dei de ombros. Talvez fosse um
simples refluxo, fruto das constantes ondas de ácido que acometem o meu estômago nervoso. Em
breve, a menstruação voltaria.
Mais três meses se passaram, e ela não voltou. Em seu lugar, surgiu uma leve ondulação na
barriga lisa.
Eu não precisava de nenhum teste, mas precisava de uma certeza. E ela está ali. Fecho os
olhos, tentando conter a vontade de chorar. Tanto de alegria, quanto de tristeza. Ser mãe é um
sonho antigo. Pela primeira vez desde que vi as duas linhas, o meu coração se acelera pelo
motivo certo.
O meu sonho vai se realizar.
Mas e ele?, penso agoniada, encarando a porta fechada. Apuro os ouvidos, mas a casa
permanece silenciosa. Cada fibra do meu corpo antecipa o momento em que os passos arrastados
cortarão a quietude e ativarão todos os meus alarmes internos.
Estou acostumada com as ondas de cortisol provocadas pela mínima alteração na respiração
do homem que chamo de marido. O suor frio aparece a mera visão do seu corpo grande. Toda a
pele estremece ao erguer da sua voz invocada. Os músculos enrijecem, apenas aguardando o
inevitável.
Ele é brutal. Acerta, em pontos estratégicos, para não deixar marcas onde a roupa é incapaz de
cobrir.
A tensão desaparece em uma única ocasião: quanto os passos são firmes. Confirmam que a
bebida se manteve longe. Nessas noites sei que posso servir o jantar em segurança. Ele comerá
em silêncio, se levantará da mesa em silêncio, irá para o quarto em silêncio. Arrumarei a cozinha
e o encontrarei ou dormindo, ou me esperando. Ele se enfiará entre as minhas pernas e, em
menos de dois minutos, permitirá que eu durma em paz.
Pelo menos até o sol raiar e o ciclo recomeçar. Ele sairá sóbrio para trabalhar, mas ninguém
sabe como voltará.
Giro o teste entre os dedos, vendo a fina aliança de ouro faiscar. Houve apenas uma ocasião
em que a violência surgiu quando a sobriedade esteve presente. Sem aguentar mais, pedi o
divórcio e passei um dia inteiro na cama. Dessa vez, ele não se importou onde as marcas
estariam. Açoitou a minha alma com os seus gritos de: “Você é minha, está entendendo? Apenas
minha!”.
Abraço a mim mesma, os olhos cheios d’água, pensando como a vida poderia ser diferente se
o destino não tivesse escolhido a mim e a mamãe para pregar peças.
Ela era uma mulher saudável, até descobrir um câncer no ovário. Aos dezenove anos,
interrompi os planos para entrar na faculdade, arregacei as mangas e assumi o seu trabalho como
empregada doméstica. Ela não gostava. Dizia que eu deveria focar em estudar e ter uma vida
melhor, não em limpar a casa das patroas. Convencida de que seria por pouco tempo, permitiu
que eu assumisse a clientela enquanto seguia com o tratamento.
Mas o tratamento se transformou em uma batalha. Por cinco anos, trabalhei em casas de
família e cuidei da saúde da minha mãe. Foi quando Osvaldo entrou em nossas vidas. Conhecido
como o faz tudo da cidade, era um homem honesto sempre disposto a ajudar com pequenos
reparos que não podíamos pagar.
Sei que não estava nos planos da mamãe pedir que eu me casasse com ele, mas consigo ouvir
sua voz fraca dizendo que eu não ficaria desamparada. Teria um teto, e um homem capaz de me
proteger. Talvez ele até pagasse a minha faculdade. Podia não amá-lo agora, mas com o tempo,
me afeiçoaria a ele.
Relutei. Algo em meu íntimo pedia para que eu não me casasse. Fazia com lembrasse de um
menino gentil que me presenteou com uma flor e uma promessa. A primeira caiu na areia. A
segunda, se perdeu ao longo do tempo. Mas o menino, não. Ele permaneceu na memória, por
mais difusas que as suas feições sejam.
Eu devia esperar. Devia esperar por ele.
Mas esperar até quando?
Eu sabia pouco sobre o menino, mas o suficiente para perguntar. Desde pequenininha,
acompanhei a minha mãe no trabalho. Algo me dizia que ele era filho de uma das suas patroas,
então questionei quem ele era.
A pergunta mudou o seu semblante e a abateu por completo. Limitou-se a dizer que o nome
do menino era Guilherme, mas que eu deveria esquecê-lo. Insisti, mas ela pediu que não voltasse
a tocar no assunto. A minha mãe estava em seus momentos finais, não queria perturbá-la.
Ela morreu, levando consigo uma história, deixando comigo apenas um nome. O passar dos
anos transformaram o menino em um homem, mas eu não podia esperá-lo para sempre.
Ah, que saudades da minha mãe! Como ela ficaria feliz ao descobrir que seria avó!
E também ficaria feliz se eu tomasse uma atitude. Volto a encarar o teste. É um menino. Por
algum motivo, sei que é um menino. A determinação cresce dentro do meu peito. A ideia é
antiga, mas se não tiver coragem para colocá-la em prática por mim, preciso ter coragem para
colocá-la em prática pelo meu filho.
A minha mãe me criou sozinha. Se ela conseguiu, eu também consigo.
A dúvida que fica é: quando?
Agora, a voz da determinação grita nos meus ouvidos.
A porta principal é aberta com um estrondo e pés pesados se arrastam em direção ao interior
da casa. Levanto de um salto, assustada, fazendo com que o teste de gravidez escape dos dedos e
caia com estardalhaço no chão. Observo o pedaço de plástico azul e branco como se visse um
fantasma. Osvaldo não pode, de forma alguma, saber que estou grávida!
E se o farmacêutico contar? Todo mundo se conhece nessa cidade minúscula e,
consequentemente, divide garrafas de cachaça no bar. É questão de tempo até que os dois
homens se encontrem e o meu segredo seja revelado.
Se vou mesmo fazer isso, preciso fazer rápido!
— Aurora!
O nome soa como um trovão na voz arrastada enquanto encolho-me em mim mesma.
— Já vou — respondo.
Abaixo-me em direção ao chão e, com as mãos trêmulas, recolho o teste. Não posso jogá-lo
no balde de lixo, tampouco enfiá-lo no armário. Cedo ou tarde, ele irá encontrá-lo.
Enfio tudo dentro da caixa, abro a porta e corro em direção ao quarto. Pelo barulho do arrastar
dos passos, ele ainda está na sala. Tenho alguns instantes antes dele perceber que não apareci.
Tentando controlar os tremores que acometem todo o meu corpo, abro a porta do guarda-
roupas, pego a bolsa e enfio tudo de qualquer jeito lá dentro. Aliso a frente da blusinha sem
mangas, ajeito a saia rodada e respiro fundo, tentando me controlar. A última coisa que desejo é
levantar suspeitas. Respiro fundo uma última vez e saio do quarto.
Caminho com cautela em direção a sala de estar, vendo a sombra do homem se avolumando
conforme me aproximo.
Osvaldo Cardoso me encara do alto dos seus um metro e oitenta. Dilata o nariz e fareja o ar
com força, sentindo o cheiro do meu medo. Mantenho-me firme quando, cambaleante, ele estica
o braço e alcança o interruptor, iluminando nós dois com a luz amarela. Um leve odor azedo
rodopia em torno do seu corpo.
— Onde você estava? — pergunta, encarando-me com suas escleras avermelhadas.
— No banheiro — abaixo os olhos, contida.
— Cadê o meu jantar?
— Já vou preparar.
— Ainda vai preparar? — a voz soa mais aperreada. Perco o controle e estremeço de leve. —
O que você ficou fazendo nesta casa o dia inteiro, sua vagabunda?
Pensando no que fazer ao descobrir que estou grávida de um monstro como você!
Guardo os pensamentos para mim. Sem lhe dar as costas, caminho em direção a cozinha.
Passos arrastados me seguem, até o corpanzil cair com um baque sobre a cadeira de madeira.
Osvaldo é grande. Dono de ombros bem desenvolvidos, peitoral largo e braços fortes, atarracado
e musculoso como um buldogue mal-humorado.
Tento manter a respiração firme, mesmo que o cheiro azedo da bebida empesteie a cozinha.
Não posso deixar que o aroma do medo se misture a ele. Acendo as bocas do fogão e coloco o
arroz e as batatas cozinhas para esquentar. A salada já está pronta na geladeira. Falta apenas
fritar o bife.
Encho a frigideira de banha de porco e aguardo até que a gordura comece a chiar. Osvaldo
liga o rádio na estação esportiva e resmunga consigo mesmo, mas finjo que não escuto. Coloco
duas fatias de carne sobre a banha e deixo que atinja o ponto correto antes de virar. O meu
pedaço é o menor. O dele, o maior.
Com o canto do olho, vejo-o tirando uma pequena garrafa do bolso. Gira a tampa e leva o
gargalo aos lábios, sorvendo um longo gole. Cachaça, na certa.
— Estou com fome, porra! — grita, me sobressaltado. Bate com a garrafa na mesa e o baque
seco ecoa pela cozinha. — Vagabunda imprestável. Você serve para o que, mulher?
Estremeço da cabeça aos pés, a onda de puro pânico ameaçando me afogar, mas não posso
demonstrar. Abaixo ainda mais a cabeça e sirvo o seu prato com porções generosas. Coloco-o
sobre a mesa e me viro para servir o meu. O estômago está enjoado, longe de sentir qualquer
fome, mas preciso comer pelo menos um pouquinho pelo bem do bebê.
Estou prestes a me sentar quando ele fatia a carne e faz uma careta. Ajusto a cadeira e uma
mão gigantesca agarra o meu crânio e prensa a lateral do meu rosto contra a toalha de mesa.
Encaro o bordado cheio de frutinhas coloridas e lembro da música que mamãe cantava nas
noites em que eu acordava com medo do bicho-papão. Com toda a paciência, ela se sentava na
beirada da cama e começava:
Numa folha qualquer
Eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo
Com a sua ajuda, a folha livre de rasuras da minha imaginação desenhava um imenso sol
sorridente, capaz de levar as trevas para longe. O castelo se tornava uma fortaleza onde o bicho-
papão me deixaria dormir em paz. As próximas noites seriam tranquilas, até que os desenhos
fossem esquecidos e começássemos tudo de novo.
O bicho-papão se transformou em outro tipo de monstro. Que pergunta, aos berros, se estou
vendo o bife mal-passado. Canto sem emitir qualquer som. A música flui em meus ouvidos, me
levando a um mundo colorido, onde um barco a vela branco navega sobre o mar e um avião rosa
e grená corta as nuvens, sereno e lindo, sem intenção de pousar.
Osvaldo insiste que já falou, vezes sem conta, que não come carne mal-passada. Continuo
sem ouvir. Continuo sem responder. Nenhuma resposta será capaz de impedi-lo de fazer o que
tem que fazer, então me mantenho calada. O tum-tum-tum do meu coração se junta à letra da
música que sei de cor.
Mas a dor toma conta, e começo a ficar desesperada. Agora, não canto apenas por mim. Canto
pelo meu bebê. Preciso fazê-lo parar.
— Vou fritar mais um pouco — digo, tentando soar firme.
É claro que não consigo. Lábios rachados entram no meu campo de visão, o hálito podre
sobrepujando as cores ao envolver os meus sentidos.
— Você não presta nem para fritar um bife!
Volto a cantar, mas é tarde demais. O pânico aflora. Remexo-me conta o seu aperto, o que o
faz me apertar ainda mais. De repente, sou puxada para trás e jogada no chão. A cadeira
acompanha a queda, se embolando nas minhas pernas. O bebê!, mas não tenho tempo de pensar,
quanto mais me mexer.
Em segundos estou de pé, sendo forçada a encarar o meu marido. Aquele que jurou me amar
na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, mas tudo o que faz é me odiar.
— Imprestável, está entendendo? É isso o que você é, Aurora. Uma vagabunda imprestável.
Osvaldo me solta e volto a cair no chão. Arrasto-me para longe, até alcançar o canto mais
distante da cozinha, encolhendo-me em mim mesma.
— Vou fritar mais um pouco — repito.
— Eu já jantei — diz, dando-me as costas e desligando o rádio. Os pés se arrastam em direção
ao quarto. Mais vacilantes, dessa vez, mas com firmeza o suficiente para lembrar como não devo
testá-lo.
Abraço-me com mais força. Devagar, deslizo as mãos em direção a barriga. Consigo senti-lo
ali. Uma pequena centelha de esperança. Ainda ali.
Levanto-me com uma decisão tomada. Não sou acometida por uma densa onda de coragem.
Talvez, no fundo, nem ao menos saiba o que estou fazendo. Só sei que preciso fazer.
Encaro o jantar intacto sobre a mesa, mas perdi a mínima vontade de comer. Guardo a comida
no forno e limpo a cozinha. Deixo tudo impecável, como minha mãe me ensinou a ser. Ecos da
música percorrem o meu cérebro, mas me mantenho na realidade cinzenta. Preciso de toda
clareza para pensar.
Pé ante pé, me aproximo do quarto, torcendo com todas as forças para que Osvaldo esteja
dormindo. Não irei suportar se ele tentar me tocar, mas ele dorme. É curioso como, dormindo,
ele não parece tão mal.
Deixo-o como está e sigo até o guarda-roupa. A porta range ao ser aberta. Olho por sobre o
ombro, assustada, mas o sono do homem continua pesado. Pego a bolsa e uma mochila velha.
Não presto atenção em quais roupas estou levando, apenas pego o que vejo pela frente,
enchendo-a até que o zíper fique estufado. Seguro o velho celular entre os dedos, mas decido
deixá-lo. Não sei se Osvaldo conseguiria instalar um aplicativo capaz de me rastrear, então é
melhor evitar dar sorte para o azar.
Ajusto as alças nas costas, passo a bolsa pelos ombros, e olho para o meu marido pela última
vez.
Realmente, não parece tão mal.
Parece... inofensivo.
Ainda dá tempo de desistir, Aurora. Ele parece inofensivo agora, mas você sabe o que ele irá
fazer se te encontrar.
Sei, e não desisto. Com a lateral da cabeça doendo, estou entorpecida demais para desistir.
Deixo-o como está e caminho para fora do quarto. Fecho a porta com cuidado, trancando à
chave. Não impedirá a sua fúria, mas pelo menos o atrasará.
Na sala, vejo sua mala de trabalho jogada no chão. Não penso duas vezes. Ajoelho-me diante
da lona suja e procuro a carteira. Conto as notas, uma a uma. Mil reais. Pelo visto, hoje foi dia de
pagamento.
Também pego o dinheiro da lata de biscoito da cozinha, aquele usado para os gastos rotineiros
da casa. Ajeito as notas antes de guardá-las na bolsa, sem abandonar um real. Por enquanto, será
o suficiente para ir até a rodoviária e comprar uma passagem para longe.
Mas para onde?
A resposta vem antes que eu seja capaz de pronunciar. Eu e minha mãe moramos em muitos
lugares antes dela decidir voltar para Pernambuco. Antes daqui, só houve um lugar em que me
senti em casa. Um lugar onde, se o menino quiser, poderá me encontrar.
Retorno para a sala e olho ao redor. A coragem ameaça se esvair, mas dou um passo adiante e
ela permanece firme. Levo as duas mãos à barriga. Se não for por mim, que seja por ele.
Sem vacilar, abro a porta e coloco o pé para fora. Inspiro fundo, absorvendo o frescor da
noite. Começo a caminhar com um único propósito, focada em apenas uma direção. Não sei o
que fez mamãe fugir de lá, mas sei o que me faz surgir daqui.
Pego um táxi, mas desço muito antes. Sigo caminhando, mesmo que a sandália de couro
ameace cortar o meu pé. Uma ou duas bolhas surgem. As pernas se cansam e as costas doem.
Vez ou outra, olho por sobre o ombro, temendo que ele esteja me seguindo, mas sigo em frente.
Sempre em frente.
Quando chego na rodoviária e paro diante do guichê, estendo o dinheiro e digo em alto e bom
som.
— Quero uma passagem para São Paulo.
Capítulo 3 – Guilherme

Sinto o olhar avaliativo do meu advogado no momento em que inclino o corpo para assinar o
divórcio. Rabisco qualquer coisa sobre a linha indicada, sem vontade de caprichar na assinatura.
— Você está bem? — Alexandre Meyer pergunta assim que volto a me endireitar. Solto um
riso amargo.
— Por meses, você insistiu para que eu assinasse esse documento — empurro a pilha de
papéis sobre a mesa em sua direção. — Agora parece em dúvida se eu devo assiná-los, ou não.
Ele crava os olhos, azuis como geleiras, nos meus.
— Você não parece bem.
— Estou ótimo! — retruco, meio brusco.
É mentira. Mais uma mentira.
A cabeça lateja a ponto de me incentivar a batê-la com força contra a parede. O estômago se
remexe, enjoado de tal forma que duvido que algo mais forte que água se manterá parado no
suco gástrico semelhante a lava. As luzes brilhantes ardem os olhos, fazendo com que eu lamente
o esquecimento dos óculos de sol. Há tempos não passava por uma ressaca tão brava.
Estou péssimo. Desejando apenas morrer.
Arrasto a cadeira para trás, pronto para me levantar. Alexandre apenas observa. Um dos
maiores méritos do meu amigo é saber a hora certa de pressionar. Não insistirá se eu me
mantiver calado. Apenas me observará com atenção, indicando que estará ali, todo ouvidos, no
momento em que eu decidir abrir a boca. Talvez isso o faça um advogado tão bom.
Continuo sentado, cheio de indecisão. Por mais que o coração ainda sangre e a mera ideia de
expor o que aconteceu no dia anterior me faça contorcer de dor e humilhação, quero contar.
O problema é: para quem?
Alexandre tem uma bebê recém-nascida em casa. As leves olheiras debaixo dos olhos
denunciam que a noite anterior não foi fácil. Já Lorenzo mora em Goiânia. Foi receptivo ao me
receber por alguns dias, mas nenhum dos dois dispõe de tempo para ouvir as lamentações de um
homem traído e detesto a sensação de que estou incomodando.
— Guilherme? — Alexandre murmura. Ergo os olhos em direção aos dele. — Você sabe que
estou aqui, não sabe?
Assinto, os lábios tremendo. No dia anterior, o álcool entorpeceu os meus sentidos. Cheguei
na cobertura, dispensei a empregada e me dediquei a uma única missão: dar fim em tudo o que
lembrasse a Evelyn.
Em mais um indício, notei os poucos registros da nossa vida. Ela alegava que não gostava de
aparecer em fotos. Agora, percebo que não gostava de aparecer em fotos comigo.
Uma das únicas, em lugar de destaque na sala de estar, era a foto de casamento. Juntos, no
altar, fazendo votos falsos e sem qualquer valor. Olhei para a imagem eternizada em uma mentira
e não chorei. Simplesmente não tive a mínima vontade de chorar.
Apenas de beber, beber e beber.
Assim o fiz. Larguei tudo e segui para a cozinha. A garrafa de vinho tinto seria insuficiente.
Eu precisava de algo mais forte. Algo capaz de me derrubar para nunca mais levantar.
Sobrou para a garrafa de vodca.
Enchi um copo com líquido transparente e entornei como se bebesse água. A garrafa estava
pela metade quando, trôpego, a peguei pelo gargalo e caminhei até o quarto. Os destroços do
travesseiro ainda jaziam sobre a cama. Atirei-me sobre ele e terminei o que o cachorro não foi
capaz de concluir. Ouvi Quindim grunhindo de algum canto, assustado, mas não lhe dei atenção.
O que dei foi um novo gole na garrafa. E mais outro. E outro. Até que a vodca acabasse. De
repente, o vinho tinto se mostrou mais apetitoso que outrora. Entornei a garrafa, também. Não sei
o quanto bebi. Só sei que bebi até perder os sentidos e cair largado em um canto da sala.
Acordei horas mais tarde com as lambidas frenéticas de Quindim, os olhinhos castanhos
implorando para que eu estivesse bem. Grogue, acalmei e alimentei o cachorro. Minutos depois,
ao procurar algo com o que me alimentar, descobri uma nova garrafa da bebida russa escondida
no fundo do armário.
Entornei ela, também.
— Era mentira — digo, sem querer lembrar do estado que deixei a cobertura com penas de
travesseiro espalhadas por todo o lado. Recolhi apenas as garrafas, com medo de que Quindim se
machucasse ao quebrá-las. O advogado franze o cenho. — O meu relacionamento com a Evelyn.
Era mentira.
— Como assim?
— Ela se casou comigo, mas nunca me amou. Pensou que, com o tempo, pudesse me amar de
verdade. Aposto que continuaria comigo, se não tivesse se apaixonado por outro — ergo os
olhos. — Ela me traiu com o advogado. Disse que se apaixonou por ele, de um jeito que nunca se
apaixonou por mim, e me traiu.
O queixo de Alexandre desaba. Deixa-se cair de costas na imensa cadeira estilo presidente e
me encara sem piscar, até que balança a cabeça para o lado, como se não quisesse acreditar.
Confirmo com um aceno.
Pelo menos isso é verdade.
— Jamais pensei que pudesse me sentir tão enganado — continuo, abraçando a mim mesmo.
Para alguém que não queria falar, agora sinto um desejo avassalador de colocar tudo para fora.
— Faz sentido, sabe? Depois que ela confirmou, tudo faz sentido.
— Tudo o que? — pergunta baixinho.
— Tudo. As vezes em que fazia um carinho em seu cabelo, e ela se afastava. Quando a
abraçava, e ela se desvencilhava. Os eu te amo jamais retribuídos. As conversas sobre formar
uma família ignoradas. Tudo o que eu fazia era insuficiente. Eu tentava provar o quanto gostava
dela, mas sempre parecia faltar. Sempre
Algo no meu rosto denuncia o turbilhão que se agita no peito cheio de amargura. Alexandre se
ergue, mas faço um sinal com a mão, pedindo para que se mantenha onde está.
Não quero que ele me console. Só quero que ele me escute.
— Sabe o que é pior? — nega com a cabeça. — A sensação de que, talvez, eu a enojasse. Que
os meus toques eram recebidos com repugnância. O sonho de ser pai ser tratado com escárnio —
a voz finalmente falha. Engulo em seco e me forço a continuar. — A certeza de que para ela foi
uma mentira, enquanto para mim tudo foi verdade — olho para o outro lado, incapaz de encará-
lo. — Descobrir que a minha mulher estava fodendo outro foi horrível, mas a maior traição foi
descobrir que tudo, absolutamente tudo o que tivemos, foi uma mentira.
Começo a tremer com violência. Alexandre vem em meu socorro, mas faço um novo sinal,
pedindo que mantenha distância. A contragosto, ele o faz, próximo o suficiente para me socorrer
caso escorregue da cadeira e caia no chão.
Mas não caio. É incrível como, de uma hora para outra, somos capazes de mudar. Há meses
lamentava a partida da Evelyn. Agora, não suporto a ideia de revê-la. Desde ontem, uma estranha
frieza domina o meu corpo, como se todo o sangue que fluiu do meu coração partido tivesse se
solidificado em incontáveis placas de gelo.
Endureço a postura e envio os tremores para longe. Algo em minha expressão acende um
alerta no advogado, mas ele desiste de se aproximar. Abre a boca para perguntar alguma coisa,
mas volta a fechá-la. Agradeço mentalmente. Detestaria que perguntasse o quanto eu bebi.
Ele decide ser prático.
— Com a assinatura, o divórcio sairá em poucos dias.
— Tudo bem — acabo por levantar. A aliança de ouro faísca em meu dedo. Contenho a
vontade de tirá-la e jogá-la pela janela. — Então é isso, certo?
Alexandre assente. Abre a boca de novo, e dessa vez sei o que vai falar.
— Eu sinto muito, Guilherme.
Encolho os ombros, sem saber como responder. Ele finalmente se aproxima e dá um
acolhedor tapinha nas minhas costas. Aprecio o cuidado, mas me sinto tão vazio que sou incapaz
de retribuí-lo.
Eu e Alexandre nos conhecemos desde o ensino fundamental. Estudamos juntos até o final do
ensino médio, quando trilhamos caminhos diferentes na universidade. Ele fez o curso de direito,
eu o de administração. Passamos por muitas coisas juntos e, mais que um amigo, considero-o um
irmão.
— Talvez — continua, dessa vez sondando o terreno —, daqui algum tempo, você encontre
outra pessoa.
— Não — sou categórico. — Eu não quero.
— Mas...
Dou um passo para trás.
— Eu não quero — repito. — Fui enganado uma vez, não serei enganado de novo. Passarei o
resto da vida sozinho, Alexandre.
— Eu também pensava assim— um pequeno sorriso ilumina o seu rosto cansado —, mas se
eu consegui seguir em frente, abrir o coração e voltar a me apaixonar, você também conseguirá.
Nego com a cabeça. O caso dele é diferente. A esposa morreu, vítima de um aneurisma
cerebral. Alexandre se enfiou em um luto profundo, em que ninguém parecia capaz de resgatar.
Pelo menos, até conhecer Beatriz Rossetti, a simpática babá das suas filhas. A convivência
derreteu o coração de gelo do advogado. Eles se apaixonaram e a família cresceu.
O meu amigo reencontrou a felicidade.
Eu? Duvido que irei encontrá-la.
Enganado. Traído. A maior parte da minha vida adulta foi uma grande mentira. O meu
coração sagrou tudo o que tinha para sangrar. No lugar ficou apenas uma casca vazia de qualquer
sentimento.
— Não, não conseguirei — enfatizo. — O mais provável é que eu me torne um desses
executivos que fazem questão de se deitar com uma mulher diferente por noite.
Alexandre sabe que aquela é outra mentira. Eu, nem ele, somos caras de fazer esse tipo de
coisa. Sempre fizemos parte da rara espécie de homem que prefere manter um relacionamento e
sonha construir uma família.
De repente, tudo o que eu quero é ir embora. Olho para o relógio de pulso.
— Preciso ir. Tenho uma reunião marcada às dez horas. Não posso me atrasar.
Outra mentira. Estou ficando bom nisso.
Ele entende a deixa. Dá um último tapinha e se afasta, liberando a porta. Dessa vez retribuo o
cumprimento e sigo adiante, ansioso para sair dali. Estou longe, mas sua voz ecoa em meus
ouvidos.
— Lembre-se: se precisar de alguma coisa, é só ligar!
— Pode deixar — falo por sobre o ombro, quase atropelando a secretária. Judite me lança um
olhar de censura.
— Pelo visto você está com pressa!
— Estou sim — beijo a sua bochecha, arrancando uma onda de risadinhas dos seus lábios. —
Tchau, Judite.
Ela acena um rápido adeus, ajeita a prancheta diante do busto e segue a passos decididos em
direção a sala do advogado.

Em instantes estou dentro do Audi, rumo a Avenida Paulista, endereço da sede administrativa
da Alcântara Mineração.
Fundada pelo meu avô, a empresa deixou de ser uma pequena mineradora de brita para
construção civil e se tornou uma gigante no estado. A escavação evoluiu e somos responsáveis
por fornecer areia, calcário e argila para fábricas de cimento e concreto. Hoje, quase todo prédio
sendo erguido na cidade possui uma porcentagem de matéria-prima extraída pela Alcântara
Mineração.
O meu avô desceu de um navio abarrotado de imigrantes portugueses no Porto de Santos e
deu o pontapé inicial para a criação da empresa. Já o meu pai foi a mente inspiradora capaz de
gerir sua expansão. Após a sua trágica morte, eu me tornei o responsável por seguir com o
legado da família.
É sempre um deleite entrar na Avenida Paulista. Admirar o corredor cercado de prédios
reluzentes e as pessoas indo e vindo cheias de pressa. Um símbolo da cidade repleto de espaços
culturais, restaurantes e lojas de todos os tipos.
Mas, dessa vez, não estou com humor para admirar nada. Ignoro qualquer atrativo que a
avenida possa me oferecer e sigo reto em direção a garagem do prédio.
Estaciono na vaga demarcada, saio do veículo e caminho até o elevador. Àquela hora da
manhã, a maioria dos colaboradores já chegou, então agradeço aos céus pela oportunidade de
subir sozinho.
O elevador chega no andar e continuo caminhando em direção a recepção. Pelo visto, a
recepcionista faltou de novo. Solto um longo suspiro, ciente de que preciso falar com o setor de
recursos humanos. É da minha índole ser paciente com os funcionários, mas tudo tem limite. A
jovem colaboradora começou a trabalhar conosco há um mês, mas falta por qualquer motivo. Em
seu último atestado médico, passou em uma consulta por causa de uma unha encravada.
Dolores, minha secretária, arregala os olhos assim que coloco os pés no escritório.
— Meus Deus! O que aconteceu com você?
Deslizo as mãos pelo rosto, espalhando suor frio em direção a raiz dos cabelos.
— Acho que foi uma virose — invento, aumentando a pilha de mentiras —, mas já estou
melhor.
Ela corre os olhos escuros por todo o meu corpo.
— Não parece — declara, com sua voz potente.
Em outra ocasião eu brincaria. Diria que com essa voz, ela poderia fazer sucesso cantando
ópera no Teatro Municipal. Hoje, não. Limito-me a assentir e sigo para a sala da presidência. A
minha cabeça está começando a doer. Quero me fechar entre as persianas e esperar o dia acabar.
Ao cruzar as portas, sigo em direção às janelas. A Alcântara Mineração ocupa os últimos
andares de um moderno prédio envidraçado incrustado no coração da avenida, conferindo uma
vista privilegiada dos dois lados da via.
Sem olhar para qualquer um deles, abaixo as persianas, instantaneamente me sentindo mais
confortável dentro do casulo escurecido. Sento-me na cadeira e fecho os olhos, tentando aplacar
a dor que ameaça rachar a cabeça. Talvez haja uma cartela de dipirona na caixinha de primeiros
socorros que mantemos no andar.
Ao tornar a abrir os olhos, dou de cara com uma segunda foto do meu casamento. Nela,
Evelyn sorri apaixonada para mim. Retiro a imagem da moldura e observo cada centímetro do
seu rosto. Mentira, tudo mentira. Sem pensar duas vezes, a coloco sobre os dentes da trituradora
de papel. O som da mastigação mecânica invade o escritório no instante em que Dolores dá dois
toquinhos na porta.
— Pode entrar.
Ela assim o faz. Percebe o ambiente escuro e repara no porta-retratos vazio, mas não diz nada.
Durante todos os anos que trabalhou com o meu pai, a secretária sempre foi discreta. Continua
sendo ao trabalhar para o filho dele.
— Os relatórios de ontem. Mandei para o seu e-mail, junto com a agenda, mas achei que
gostaria de ter uma versão impressa.
Assinto com a cabeça.
— Mais alguma coisa que eu precise saber?
— Sim. O RH demitiu a recepcionista. Ela chegou com um novo atestado. Dessa vez,
alegando estar com o vírus de uma gripe estranha.
— Que gripe?
— Não sabíamos. Pesquisamos no Google e descobrimos que a gripe não existe. Consultamos
um médico e ele confirmou a informação.
Solto um longo suspiro.
— Tudo bem. Podem colocar um anúncio para contratar outra recepcionista.
Dolores assente.
— Também precisamos de duas novas auxiliares de limpeza. Segundo o RH, é mais vantajoso
contratar através de uma empresa terceirizada e...
— Não — corto. — Você sabe que não confio nessas empresas. Se é para trabalhar na
Alcântara Mineração, que trabalhe por inteiro, com todos os benefícios que podemos oferecer.
Diga ao RH que independente do custo, quero que as auxiliares sejam contratadas por nós
mesmos.
Ela assente de novo, contente com a decisão.
— Farei isso agora. Mais alguma coisa, Sr. Alcântara?
— Sim — remexo-me sobre a cadeira, desconfortável. — Preciso que encontre um bom
adestrador para o Quindim. Daqui a pouco o cachorro terá comido metade da cobertura.
Dolores morde os lábios, contendo a vontade de rir. Respira fundo antes de responder.
— Pode deixar.
— Obrigado, Dolores.
Aguardo que a secretária se retire para encarar a pilha de relatórios. Devagar, deslizo uma
mão pela mesa de madeira e alcanço uma pequena chave escondida dentro do porta-lápis. Desço
os dedos em direção a terceira gaveta, a única que mantenho trancada. Insiro a chave e, em dois
giros, destravo a área. Afundo a mão em seu interior, até alcançar um cantil metálico.
Abro a tampa e levo o bocal aos lábios, permitindo que a vodca se derrame pela garganta e
aqueça o peito. O efeito é fugaz, mas o suficiente para me fazer perceber que a casca de algo
ainda bate ali dentro.
Por quanto tempo, eu não sei.
Capítulo 4 – Aurora

Após quase quatro longos dias na estrada, o motorista finalmente anuncia que estamos
chegando em São Paulo. Afasto a cortina do ônibus e olho para fora. Uma fria trilha de medo
percorre todo o meu corpo. A cidade é muito maior do que eu me lembrava.
Grande o suficiente para Osvaldo jamais me encontrar.
Poderíamos ter chegado antes. Uma viagem do interior de Pernambuco até a metrópole leva,
em média, três dias. Mas uma sucessão de desventuras acometeu o ônibus durante o trajeto.
Primeiro, um dos pneus dianteiros furou. A dupla de motoristas, acompanhada de alguns
passageiros ávidos para chegar logo em seu destino, o trocou.
Depois, uma idosa passou mal, fazendo com que a rota fosse desviada até o hospital mais
próximo. O problema é que, no meio da estrada, nenhum hospital era próximo. Foram
necessárias algumas horas até que conseguíssemos chegar em um pronto-socorro apto a atendê-
la.
Eu não estava muito melhor. Os enjoos da gravidez decidiram retornar. Talvez pelo
movimento do ônibus, talvez pelo nervosismo. Não sei. Só sei que eu ia e voltava do pequeno
banheiro para colocar os bofes para fora mais vezes do que sou capaz de contar.
Ainda havia as paradas obrigatórias, para comer alguma coisa e esticar as pernas. Ou encher o
corpo de tensão, como era o meu caso. Olhava por sobre o ombro a cada uma delas, temendo que
Osvaldo surgisse sobre o asfalto para me agarrar pelo pescoço e arrastar de volta para casa.
Sei o que ele fará se me encontrar.
Então preciso garantir que não me encontre.
O murmurinho dentro do ônibus cresce conforme o ônibus se aproxima da rodoviária. Viajo
ao lado de uma mulher de semblante fechado e poucas palavras, mas tantas horas juntos são
capazes de criar familiaridade. Sei que o avô e o netinho voltam de suas primeiras férias. Que o
homem alto veio visitar a mãe que não vê há cinco anos. E o jovem com espinhas no rosto
enche-se de expectativa para conhecer a namorada.
Fiz como a minha companheira de viagem: contive a língua, limitando-me a dizer que estava
de férias. Um ou outro passageiro franziu o cenho. Quem, em sã consciência, sai das
maravilhosas praias do nordeste para passar férias na selva de pedra?
O veículo estaciona e as pessoas se amontoam para descer. Apesar de ansiosa, aguardo
sentada. O que são alguns minutos depois de tantas e tantas horas? Levanto-me depois que a
maioria das pessoas foram embora. Não tenho mala guardada no bagageiro, então pego a
mochila, passo a bolsa sobre os ombros e saio.
O zum-zum-zum da rodoviária atinge os meus ouvidos com força. Pisco, atordoada com o vai
e vem de pessoas. A maioria está cheia de pressa, uma ou outra segue com um pouco mais de
tranquilidade. Começo a caminhar enquanto absorvo as lembranças que invadem o meu cérebro.
Foi nessa mesma rodoviária que eu e minha mãe nos despedimos da cidade. Os meus olhos se
enchem d’água. Jamais pensei que voltaria sozinha.
— Sozinha, não — acaricio a barriga com a mão livre. — Voltei com você.
Olho para os lados, tentando levar o atordoamento para longe. Tive bastante tempo para
pensar sobre o que fazer no momento em que chegasse a São Paulo, mas todos os meus planos se
esvaem conforme sigo em direção a saída.
Qual é o destino de quem não tem para onde ir?
— Uma pensão — digo para mim mesma. — Preciso encontrar uma pensão. Depois, procuro
um emprego.
Saio para a rua, sendo atingida pelo barulho incessante de motores e buzinas. O calor do meio
da tarde é avassalador. Pisco, tentando absorver a claridade, e perco o fôlego quando os meus
olhos se acostumam.
Na minha cidade, bastaria perguntar a qualquer pessoa sentada na praça da igreja onde
encontrar uma pensão. Aqui é diferente. São tantas pessoas, com tanta pressa, que nem ao menos
consigo raciocinar.
— Está perdida, boneca?
O tom de voz malicioso faz com que cada pelinho da minha nuca se arrepie. Finjo que não
escuto, mas o homem é insistente. Desliza a mão pelo meu braço e segura o cotovelo, obrigando-
me a encará-lo. Faltam pelo menos três dentes no sorriso presunçoso.
— Não estou, não — dou um passo para trás, mas ele continua me segurando.
— Pois parece — os olhos escuros percorrem todo o meu corpo como se me desnudasse em
via pública. O polegar calejado circula o meu cotovelo. — A cidade é perigosa para uma jovem
sozinha. Ainda mais se ela for bonita como você. Posso te ajudar.
— Não preciso de ajuda!
Ele nota o pânico contido em minha voz e o aperto se torna mais profundo. Tento me
desvencilhar de novo, mas não consigo. As batidas do meu coração ecoam desesperadas no
ouvido. Acabei de me libertar de um monstro, não posso cair nas garras de outro.
— Eu já disse que não preciso de ajuda!
O rosto se transforma e a falsa animosidade desaparece. Ele me puxa contra si. Resisto,
puxando no sentido contrário.
— O que está acontecendo aqui?
O homem solta o meu braço e dá um passo para trás. O policial tem entre quarenta ou
cinquenta anos, é difícil definir, mas possui olhos honestos e uma voz firme. É o que basta.
— Não está acontecendo nada, senhor.
Ele o ignora e me encara.
— Esse homem está te importunando?
Engulo em seco, sem saber o que fazer. Acabo negando com a cabeça. Seu rosto de pedra não
mostra qualquer reação, e o homem respira aliviado. Dá outro passo para trás e, em um piscar de
olhos, desaparece entre as pessoas que saem pela porta da rodoviária.
— Você precisa tomar cuidado — o policial declara. — A cidade está cheia de espertalhões
dispostos a tirar proveito de uma recém-chegada. — Algo no meu semblante perdido faz com
que amenize a dureza da voz. — Tem para onde ir?
Torno a negar com a cabeça, me esforçando para conter as lágrimas. E se eu contasse a ele
que estou fugindo do meu marido violento? Em um lugar pequeno onde todos se conhecem e têm
regras claras quanto a se meter em casamentos alheios, eu jamais seria acolhida, mas talvez seja
aqui. O policial parece um homem íntegro. Poderia me ajudar.
E se ele não puder?
— Não tenho — respondo em voz alta. — Estou em busca de uma pensão, de preferência que
só aceite mulheres. O senhor sabe onde posso encontrar uma?
Ele ergue uma sobrancelha.
— Uma pensão?
— Sim. É o que posso pagar no momento.
Ele coça a barba curta enquanto pensa por um momento.
— Sei que existem algumas por aqui, mas são todas para rapazes. Ei, Dona Maria! — chama,
fazendo sinal para uma senhora com um cesto cheio de brigadeiros. Ela se aproxima. — Sabe
dizer se existe uma pensão feminina por aqui?
Ela não precisa pensar.
— Existe a da Dona Clotilde. E não pense em dizer que ela se parece com a Bruxa do 71 —
brinca, bem-humorada. — Porque ela parece, mesmo.
Respiro fundo, os olhos voltando a se encher d'água. Eu não preciso lembrar das tardes em
que assistia Chaves com a minha mãe. Não agora.
— Fica muito longe?
— Não, fica a algumas quadras de distância — aponta a direção. — É só seguir reto e dobrar
a esquerda ao chegar no supermercado.
Assinto. Passei quatro dias sentada e as bolhas estouradas ardem, mas consigo andar alguns
poucos quilômetros. Viro-me em direção ao policial.
— Obrigada, senhor. Por tudo.
Ele leva a mão à boina.
— Não há de que.
Também dou um adeus a Dona Maria e sigo o caminho indicado. Mantenho-me alerta, com
medo de voltar a ser abordada, mas não vejo qualquer sinal do importunador.
A vendedora foi generosa ao dizer que eram apenas algumas quadras. As sandálias de tiras
cortavam as laterais dos meus pés e formam novas bolhas quando o sol começa a se pôr e, enfim,
encontro o supermercado.
Viro à esquerda e continuo, dando-me conta de que não peguei nenhuma informação extra.
Qual é o aspecto da pensão? É uma casa térrea ou um sobrado? Percorro a rua, cada vez mais
frustrada. A vontade de chorar volta. Cair sobre a calçada, abraçar os joelhos e deixar as lágrimas
me inundarem.
Uma senhora dobra a esquina. Meu Deus, ela parece mesmo a Bruxa do 71! Com cabelos
grisalhos presos em um firme coque e um caminhar empertigado, segue em linha reta até um
portão de metal.
Acompanho os seus movimentos e uma luz se acende no peito. O sobrado antigo e cheio de
plantas é grande o suficiente para ser uma pensão. Ignoro a coincidência e sigo-a sem pensar
duas vezes.
— Senhora? — chamo. Ela fecha o portão e me encara com atenção. Encontro energia para
abrir um sorriso. — Boa tarde. Por favor, estou procurando vaga em uma pensão.
Seus olhos são ágeis em percorrer o meu corpo. O rosto não transparece qualquer julgamento,
mas a voz é dura.
— Estou sem vagas.
Não, não e não!
— Por favor — imploro, agarrando as grades. — Cheguei em São Paulo agora. Preciso de um
quarto.
— Estou sem vagas — repete, mais firme dessa vez.
Os meus joelhos fraquejam. Ainda segurando o portão, deslizo até o chão. O que irei fazer
agora? A noite cairá em breve. A última coisa que quero é estar na rua quando a lua surgir.
Uma sombra alongada cobre o meu corpo.
— De onde você vem? — questiona, tão dura quanto o policial, farejando em volta como um
cão de caça. — Seja lá de onde vem, tudo em você cheira a encrenca!
Olho para cima e nego com a cabeça.
— Eu só quero um quarto onde possa descansar. Mais nada.
Omito de onde venho e qual o meu objetivo ali. Ela mantém-se calada conforme torno a me
erguer e encaro as suas íris cinzentas. Estou cansada. A barriga ronca de fome e os meus pés
doem. Já passei por humilhação demais na vida. Se ela não me deixar ficar, darei um jeito de
encontrar quem deixe.
— E o que fará quando o bebê nascer?
Arregalo os olhos.
— Oxe! Como você...
— Responda a pergunta!
— Eu... — engulo em seco. As lágrimas ameaçam desabar, mas forço-as a se manterem onde
estão. Encolho os ombros. — Eu não sei.
Ela solta um suspiro desgostoso, balança a cabeça e destranca o portão.
— São quinhentos reais mensais, com luz, água e internet incluídas. Pagamento adiantado. O
banheiro é coletivo, e estarei de olho caso passe mais de dez minutos enrolando no chuveiro.
Sem palavrões. Sem barulho. Sem visitas masculinas. Isso aqui é uma casa de respeito. Estamos
entendidas?
— Estamos — ajusto a mochila nas costas e cruzo o portão, quase desmaiando de alívio.
A proprietária faz um sinal para que a siga em direção ao interior da casa. Reparo que o andar
térreo é simples, composto basicamente por uma cozinha e uma sala de estar. Ouço o barulho do
chuveiro, mas não consigo entender onde o banheiro fica.
— O seu quarto é aquele ali — chegamos ao andar de cima e ela aponta para a última porta.
Tira uma chave do bolso, mas não a entrega. Entendo a deixa. Pego a carteira escondida no
fundo da bolsa e separo cinco notas de cem reais. Ela confere uma a uma antes de entregar a
chave. — Cuide do quarto como se ele fosse seu. Qualquer dano será cobrado à parte.
— Tudo bem — murmuro, estendendo os dedos em direção a chave. Ela fixa o olhar afiado
em meu rosto.
— Pode usar o computador da sala para procurar emprego. E lembre-se: não quero saber de
encrenca.
— Pode deixar. Obrigada, dona...
— Não me venha com dona! — rosna, profundamente irritada. — Me chame de Soraia!
Apenas Soraia! Agora, se me der licença, tenho mais o que fazer.
Agradeço com um aceno de cabeça e aguardo até que desça as escadas. Um degrau range.
Ótima forma de saber quando decidirá voltar.
Coloco a chave na fechadura e destranco o quarto, inspirando o ar parado e levemente
empoeirado. É tão simples quanto o resto do sobrado. Apenas um guarda-roupa minúsculo, uma
escrivaninha e uma cama de solteiro. Sento-me na beirada e aliso os lençóis azul-claros.
Levantarei apenas no dia seguinte se me permitir deitar.
Não posso. Quase metade do dinheiro já foi. Tenho abrigo por um mês, e só. Preciso
encontrar um emprego urgente!
Mas o lençol é convidativo demais. Estou tão, mas tão cansada, que decido arriscar. Estico-
me sobre a maciez perfumada, pela primeira vez tranquila desde que abandonei o meu marido e
sai de casa. Apesar da falta de simpatia, algo me diz que Soraia é confiável. Sinto-me segura sob
o seu teto. Sinto que posso dormir em paz.
Capítulo 5 – Aurora

Os raios de sol entram pela janela aberta. Pisco, desorientada. Esse não parece em nada com o
meu quarto, tampouco lembra o ônibus onde me mantive sentada por vários dias.
Solto um longo bocejo, lembrando que estou no quarto da pensão. Pelo visto, o esgotamento
veio com força. Minha intenção era tirar um rápido cochilo, mas estava tão cansada que caí na
cama e apaguei.
Ajeito-me sobre os lençóis, percebendo que dormi com as sandálias de tiras afiveladas aos
pés. Caminhei tanto que estão em carne viva. Preciso de um banho. Lavar as feridas com
sabonete e encontrar em uma farmácia para comprar antisséptico.
O meu estômago se remexe, chamando atenção para si. Uma leve onda de preocupação
percorre a minha espinha. Há quanto tempo não me alimento? Tirando o salgado com suco de
laranja que me forcei a engolir na última parada do ônibus, não comi mais nada.
Preciso ficar mais atenta. Consigo passar horas sem me alimentar, mas um bebê cresce no
meu ventre. Soraia se esqueceu de mencionar se posso fazer uso da cozinha, mas acredito que
sim.
Vasculho a mochila jogada ao pé da cama e encontro uma barrinha de cereal. Duvido que seja
o suficiente para aplacar a fome, mas é o que tenho para o momento. Não há a mínima condição
de sair para tomar café da manhã sem me banhar.
Mastigo a barrinha amassada enquanto separo sabonete, xampu e condicionador. Com a
toalha debaixo do braço, saio do quarto e caminho pé ante pé até o banheiro no térreo. A casa
está silenciosa e temo acordar minhas vizinhas de quarto.
Soraia mencionou que os banhos deveriam durar apenas dez minutos, mas torço para que ela
releve.
Entro no chuveiro e deixo que a água morna lave a poeira acumulada da viagem. Ensaboo os
cabelos compridos com gosto, massageando mecha por mecha com o condicionador. Depois, tiro
toda a sujeira dos pés, deixando-os prontos para receber uma boa dose de medicamento. Enrolo-
me na toalha e, ao sair, encaro o imenso relógio da cozinha. No fim, gastei apenas quinze
minutinhos.
— Bom dia! — uma voz animada corta o silêncio.
Dou um pulo no mesmo lugar, sobressaltada ao ver uma jovem sentada na mesa. Estava tão
preocupada com o tempo gasto no banho que não percebi sua presença. Um sorriso sincero
preenche o rosto bonito.
— Bem que eu falei para a Matilde! Tem gente nova morando na pensão. Prazer, meu nome é
Clarice.
Estende a mão pequenina. Ajusto a toalha ao redor do corpo e aceito o cumprimento.
— Aurora, prazer.
— O prazer é todo meu! Que sotaque lindo! De onde você é?
Como farei para me esquivar das perguntas? Não desejo viver como uma foragida, mas
também não quero sair contando a minha vida para todo mundo. Duvido que Osvaldo conseguirá
me encontrar em São Paulo, mas um homem como ele não aceita a fuga da mulher sem revidar.
— De Pernambuco — resumo.
— Ah, bem que imaginei. Ele é fraco, mas dá para notar. Morou em São Paulo antes de ir
para lá?
Assinto, mais uma vez, sem entrar em detalhes. Clarice se satisfaz com a pouca informação e
abre os braços de um jeito convidativo.
— Seja bem-vinda a pensão! Ninguém aqui tem uma história feliz, mas encontramos forças
para seguir em frente. Está vendo aqueles armários? — aponta. — Dentro deles há cestas
plásticas em que você pode guardar a sua comida. Ninguém mexe na comida da outra. Já houve
quem fizesse isso, mas um pudim banhado com laxante resolveu o problema — torna a rir, sem
se importar em acordar as demais habitantes do sobrado. — Vez ou outra, a Soraia acorda
inspirada e nos presenteia com um bolo de chocolate, mas não espere isso com frequência.
— O que está falando de mim, sua linguaruda?
— Só a verdade.
Soraia caminha resoluta em direção a cozinha e me encara com seriedade.
— Não é porque convivemos entre mulheres que aceitamos ver as outras perambulando nuas
pela casa. Vá se vestir e venha tomar café.
Clarice revira os olhos, claramente achando a regra ridícula, mas regras são regras. Temendo
desagradar Soraia, corro para o meu quarto. A mochila está uma bagunça, cheia de roupas
amassadas, mas consigo encontrar um short e uma blusinha em condições de serem usadas.
Ao retornar à cozinha, noto que Soraia se adiantou na preparação do meu desjejum. Faz um
sinal pedindo para que eu me sente diante de duas torradas de pão integral, uma porção de ovos
mexidos e um pote de geleia de morango. A boca saliva. Agradeço com um aceno da cabeça e
me ponho a comer com gosto.
Mais moradoras aparecem. Matilde é uma senhora baixinha e roliça de aspecto simpático, tão
tagarela quanto Clarice. Apesar da diferença de idade, ambas parecem ser ótimas amigas.
Já Teresa é séria e de ar invocado. Os olhos endurecidos e as profundas marcas de expressão a
fazem parecer mais velha do que efetivamente é. Clarice menciona que ela é do tipo que demora
para se abrir, mas quando o faz, é divertida de um jeito bastante sarcástico.
A última a descer é Rosana, uma negra alta de aspecto sábio com uns quarenta ou quarenta e
cinco anos. De poucas palavras, limita-se a cumprimentar todas com um leve aceno de cabeça
antes de começar o desjejum.
É estranho, mas logo me sinto acolhida entre mulheres tão diversas. Com exceção da curiosa
Clarice, nenhuma delas pergunta de onde vim, muito menos para onde quero ir. Todas carregam
cicatrizes e parecem pouco dispostas a reabrir feridas.
Mas mostram-se animadas quando comento sobre o bebê crescendo em meu ventre. É a
primeira vez que uma mulher grávida divide o espaço da pensão. Clarisse se mostra ansiosa para
acompanhar cada mínimo detalhe da gestação.
Continuo comendo, aliviada ao notar que o meu estômago faminto aceita bem o alimento.
Agradeço a Soraia e me ponho a lavar toda a louça. Ela aprecia o meu gesto, mas enfatiza que ali
cada uma cuida do que é seu e ninguém é empregada de ninguém.
Com a tarefa concluída, retorno ao quarto. Estou ansiosa para me sentar na frente do
computador e procurar por uma vaga de emprego, mas antes preciso ajeitar o espaço. Arrumo a
cama e separo as roupas limpas das sujas, guardando os meus pertences dentro do armário. Olho
em volta, contente com a arrumação. O quarto continua com um aspecto estéril, mas com o
tempo farei com que tenha a minha cara.
Enquanto a máquina de lavar trabalha em seu cantinho na lavanderia, vou até a sala e encaro o
computador. Um aficionado por antiguidades ficaria encantado por ele. O monitor de tubo,
amarelado pelo tempo, está enfeitado com incontáveis adesivos de florezinhas. Não sei por que,
mas algo me diz que é obra da Clarice.
Ligo a CPU também amarelada e ouço um furacão tomando posse do espaço. Estendo a mão
para a tomada, pronto para desligá-lo, mas o campo esverdeado, tradicional do Windows mais
antigo, toma conta da tela inicial.
Puxo a cadeira, ajeito-me diante do monitor e começo a busca.
O problema é... por onde começar?
Osvaldo não gostava que eu trabalhasse fora, então vivi cinco anos como dona de casa. Fiz
alguns cursos online antes que o meu computador quebrasse, mas não tenho nenhuma
experiência ou habilidade especial. Entro em um site de vagas gratuitas e encaro as
especificações. Só sei digitar catando milho. Entendo o básico de inglês. Ninguém me contratará.
O pânico ameaça aflorar. Fecho os olhos por um momento. Tenho vinte e nove anos. Farei
trinta, dali alguns meses. Esforço-me para manter o otimismo, mas jamais imaginei que chegaria
nessa idade sem possuir... nada. Foragida, desempregada e com pouco mais de quinhentos reais
na carteira surrada enquanto carrego um bebê no ventre.
— Eu só queria ter me casado com um homem bom — murmuro para mim mesma. — Um
homem que me desse uma família e me fizesse feliz — sinto a lágrima vindo, mas a contenho. —
Oh, Deus. Quando o meu sonho se tornou um pesadelo?
Não obtenho resposta. Em seu lugar, surge a imagem da minha mãe com seus longos cabelos
ondulados cobertos por um lenço florido. O sorriso no rosto, mesmo diante das adversidades.
Ela me criou como faxineira e empregada doméstica. Por anos assumi a sua clientela e
desempenhei o seu trabalho. Sei limpar, lavar e passar. É assim que irei começar. Digito
“auxiliar de limpeza” no Google e começo a procurar.
— Esse site é ruim — Clarisse diz as minhas costas. Toma a frente e digita o endereço de
outro site no navegador. — Tente esse aqui. Possui vagas melhores, inclusive em multinacionais.
— Mas esse é pago.
— É, mas os primeiros sete dias são grátis — pisca. — Já tem um currículo?
Nego com a cabeça.
— Irei fazer agora.
— Então deixa que eu te ajudo!
— Você não precisa ir trabalhar?
A jovem faz um gesto como se esse fosse um detalhe inconveniente.
— Fiquei na loja até mais tarde ontem, então posso chegar mais tarde hoje.
Ela se enfia no espaço entre a cadeira e o monitor e cria uma cópia do próprio currículo.
Começa a mudar as informações do cabeçalho com agilidade ímpar, fazendo com que eu franza
o cenho para algumas delas.
— Não tenho como comprovar experiência.
— O seu empregador não precisa saber.
Aponto para um detalhe no centro do documento.
— Talvez esteja ficando rebuscado demais...
— Claro que não! Olha só para mim, Aurora! Acha que consigo emprego como?
Mordo os lábios, tentando conter uma risada. Clarice não se faz de rogada. Libera a sua,
ecoando alegria por toda a casa. Conferimos o currículo juntas e, com tudo certo, ela me mostra
as funcionalidades do site e se despede para ir ao trabalho.
Em minutos, o envio para diversas vagas de auxiliar de limpeza. Há empresas grandes,
inclusive multinacionais, cheias de benefícios que viriam a calhar.
Com essa missão cumprida, desligo o computador e decido ir à farmácia e ao mercado. Soraia
foi gentil em preparar o meu café da manhã, mas não quero abusar da sua boa vontade.
Cruzo o portão e noto como o bairro é bem servido de restaurantes e lojas. Uma delas anuncia
que compra objetos de ouro. Paro onde estou e ergo a mão em direção aos olhos. A aliança é
fina, mas deve valer alguma coisa. Sem pensar duas vezes, entro na loja.
Um senhor avalia a joia com precisão antes de dar o seu preço. Gostaria de ser uma
negociadora melhor, mas considero o valor justo. Com o dinheiro em mãos, vou à farmácia e ao
mercado.
Ao retornar, a dona da pensão me aguarda diante do portão.
— Uma empresa ligou, querendo saber se você tem disponibilidade para uma entrevista
amanhã de manhã. Eu disse que sim — diz, pensando por um instante. — Esqueci o nome, mas é
alguma coisa mineração.
Arregalo os olhos. Lembro daquela empresa! Não pensei que responderia, tampouco que seria
tão rápido! É uma das melhores vagas, cheia de benefícios mesmo para uma simples faxineira.
Soraia parece pensar o mesmo que eu.
— Tire o dia para ajeitar a sua vida. Se não tiver roupa social, peça emprestado para a Clarice.
Ela vai ajudar. E trate de arrasar nessa entrevista amanhã.
— Pode deixar! — respondo, empolgada como há muito não me sentia.

Clarice não só me empresta a roupa, como me ensina a chegar na Avenida Paulista. Preferia ir
de ônibus, mas ela faz questão de me acompanhar por metade do caminho de metrô. São uma
maravilha, repete sem parar. Não duvido, apesar da apreensão ao deixar a esquerda livre nas
extensas escadas rolantes ou dar um pulo para longe ao ver o trem chegando em alta velocidade.
Vinda de uma cidade onde a maioria das pessoas anda de bicicleta, o metrô se mostra um desafio
e tanto.
Torço para me acostumar logo. Por enquanto, a multidão apressada e as diversas linhas que
cortam a cidade me deixam extremamente confusa.
E enjoada.
Não sei se é o ar parado, as curvas do percurso ou a quantidade de pessoas amontoadas no
vagão. Subo as escadas para fora da estação e o meu estômago se contorce, ávido para despejar o
café da manhã na calçada. Ergo o rosto e respiro fundo, permitindo que a brisa matinal seque o
suor acumulado pelo nervosismo.
Uma mulher esbarra em mim, reclamando que estou no meio do caminho. Peço desculpas,
baixinho. O enjoo persiste, mas não posso ficar parada. Começo a caminhar, parando diante de
um imenso prédio envidraçado.
Engulo em seco, ajusto o terninho emprestado e sigo em direção ao saguão de entrada. Disse a
Clarice que a roupa era incrementada demais para uma vaga como faxineira, mas ela me colocou
diante do espelho e insistiu em apresentar o meu melhor. Anos e anos sendo chamada de
imprestável mitigaram a maior parte da autoestima, mas naquele momento me senti poderosa.
Tento reaver parte da sensação ao me apresentar na recepção, ter a chegada informada e ser
liberada para subir até a Alcântara Mineração. Agradeço com um aceno de cabeça e me
encaminho para o elevador. É cedo, e vários colaboradores aguardam a sua vez para entrar.
Precisarei seguir até o topo do prédio, então me acomodo no cantinho, tentando passar
despercebida.
A caixa metálica começa a se mexer e o estômago dá uma cambalhota. O ambiente fechado,
aliado a cacofonia de vozes das pessoas espremidas, fazem o enjoo retornar. Passo as costas da
mão na testa, limpando parte do suor frio. Ainda bem que nem eu, nem Clarisse, abusamos da
maquiagem.
Um a um, os demais ocupantes do elevador descem em seus destinos. Continuo subindo,
chegando sozinha no meu andar. Respiro fundo e dou um passo adiante, tentando não me
espantar com a elegante fachada da recepção. Seria um sonho, e um excelente presságio,
conseguir trabalhar aqui!
— Bom dia! — uma mulher cumprimenta com sua voz profunda. Os cabelos crespos,
penteados em estilo black power, chamam atenção no rosto bonito. Lábios pintados de vermelho-
escuro sorriem. — Você deve ser uma das candidatas à vaga de recepcionista!
Pisco, confusa.
— Desculpe, mas não sou. Fui chamada para uma vaga como faxineira.
A mulher me encara com mais atenção. Não há nenhum julgamento nos olhos castanho-
escuros, apenas a mais pura curiosidade. Encolho os ombros. Apesar da simpatia, há algo de
intimidante em sua presença. Não faço ideia de qual seja a sua função dentro da empresa, mas
com certeza é superior à que ocupa agora.
Ao se dar por satisfeita, olha para o moderno monitor sobre a bancada da recepção.
— Aurora Silva, correto? — confirmo com a cabeça. — Prazer, o meu nome é Dolores Dutra.
Não quis ofender — adianta-se em dizer, fazendo um sinal para que eu a siga em direção ao
interior da empresa —, mas estamos desesperados em busca de uma nova recepcionista e, de
bater o olho, achei que seria uma excelente candidata para a vaga.
— Ah... — deixo escapar, sem saber como responder.
Como dizer que me sinto lisonjeada, mas não tenho os pré-requisitos mínimos para sequer me
candidatar a vaga?
A mulher não tece maiores comentários. Ao entrar na empresa, vejo uma sala envidraçada
com as persianas levantadas, mas ninguém se encontra sentado diante da imensa mesa de
madeira. Uma sala semelhante, bastante maior, parece ser reservada para reuniões. Por todo o
espaço, predominam baias com colaboradores vestidos com trajes sociais e expressões
atarefadas.
Cumprimento um ou outro com um aceno de cabeça, mas sou ignorada. Não posso culpá-los.
É visível o quanto estão imersos em seus trabalhos.
Dolores para diante de uma sala nos fundos. Essa, não é envidraçada. A porta de madeira se
mostra intimidadora quando ela dá dois toques com os nós dos dedos. Um masculino “Pode
entrar!” soa do interior, convidando a mulher a abrir a porta.
— Jorge, essa é Aurora Silva, a primeira candidata para a vaga de auxiliar de limpeza. Você
disse para trazê-las aqui, conforme forem chegando.
Ele confirma com um aceno de cabeça. Pelo visto, não é um homem de muitas palavras.
Dolores se afasta o suficiente para que eu dê uma olhada no jovem recrutador. Ele tem cara de
quem acabou de sair da universidade e ar de quem se acha o dono do mundo. Vi poucos tipos
como ele na cidade onde morava, mas convivi com o meu marido o suficiente para aprender a
identificar uma alma sebosa.
— Auxiliar de limpeza, é? — seus olhos claros percorrem o meu corpo de cima a baixo.
Todo o empoderamento trazido pelo terninho desaparece. Algo dentro de mim sabe que
deveria ter me vestido de forma menos presunçosa. Troco o peso de um pé pelo outro. Detesto
demonstrar insegurança para ele, mas me sinto muito insegura.
— É — Dolores rebate. A minúscula palavra é o suficiente para dar a entender que o
recrutador está longe de ser uma das suas pessoas favoritas na empresa. Ela se vira para mim e
sorri, encorajadora. — Boa sorte!
— Obrigada — respondo baixinho, se forma que só ela escute, antes de dar um passo adiante
e entrar na sala.
Jorge faz um sinal pedindo para que eu me sente e, sem me dar maior atenção, começa a ler
algo no monitor. Seu cenho logo se franze.
— Você tem vinte e nove anos e nunca trabalhou com carteira assinada?
O estômago dá uma nova cambalhota. Agora, não!, imploro. Aquela é umas das melhores
vagas que me candidatei, não posso passar mal! Endireito a postura e me forço a encará-lo nos
olhos.
— Trabalhei como empregada doméstica até os vinte e quatro — respondo. — Depois disso,
me casei e me tornei dona de casa.
É uma meia verdade. Trabalhei alguns meses após o casamento, quando as crises de ciúmes
começaram. Osvaldo detestava que eu trabalhasse fora. Talvez algo em seu íntimo suspeitasse
que, cedo ou tarde, eu arrumaria as malas e fugiria. Desisti do emprego antes que as brigas se
intensificassem.
É claro que aquilo não adiantou nada, mas o recrutador não precisa saber os detalhes.
O seu olhar deixa transparecer o desdém pela minha falta de experiência. O meu estômago
continua se movimentando, forte o suficiente para liberar uma indigesta onda ácida em direção a
garganta. Foco na entrevista! Talvez a sensação ruim vá embora se eu mantiver o foco na
entrevista!
O recrutador olha, ou finge olhar, mais alguma coisa no monitor antes de disparar:
— Você tem filhos?
— Não.
— E está grávida?
A pergunta é como uma punhalada, daquelas capazes de atingir órgãos vitais e matar. Penetra
pelo vão entre as costelas e atinge o pulmão esquerdo. Respiro fundo, precisando mais do que
nunca de ar, mas a lâmina corta a respiração. Péssimo momento para o estômago resolver dar
uma nova cambalhota.
Ergo-me de um pulo e corro para fora da sala.
Um banheiro, preciso de um banheiro! Caminhei imersa em tamanha tensão até o recrutador
que, prestei atenção em tudo, menos onde fica o banheiro!
Levo a mão à boca e corro pelo corredor com gotas de suor nervoso pingando sobre os olhos
arregalados. Uma mulher me vê e aponta adiante. Dessa vez, sou eu quem não lhe dou maior
atenção. Empurro a porta com uma plaquinha indicando o banheiro feminino e mal tenho tempo
de me debruçar sobre o vaso sanitário. O jato quente atinge a porcelana tão logo a porta se fecha
as minhas costas.
Consigo puxar o ar, mas um segundo jato sobe pela garganta e coloca todos os meus bofes
para fora. Aperto a descarga, ofegante, tentando conter as lágrimas.
Que desastre!
— Você está grávida, não está? — Jorge abre a porta. Lá fora, alguém ordena que saia do
banheiro, mas ele não escuta. Os olhos são triunfantes. — Ah, claro que está! A minha intuição
nunca falha! Sabia, desde que pisou na sala, que havia algo de errado com você!
— Não há nada de errado comigo — consigo dizer, me levantando. Ele dá um passo para trás,
enojado. Pego um punhado de papel higiênico e limpo a boca. — Estou sim, grávida, mas isso
não me impede de trabalhar aqui.
— Sou eu quem decide o que te impede, ou não, de trabalhar aqui!
— Mas...
— Sem mas! — corta. Ajusta a postura e arruma o terno em torno do corpo magro. — Sinto
muito, Srta. Silva, mas você está dispensada.
O sangue se esvai do meu rosto.
— Por quê?
Sua risada de escárnio preenche todo o banheiro.
— Ainda tem o descaramento de perguntar o porquê? Você mentiu durante a entrevista! — a
crueldade em seu olhar se torna mais acentuada. — E o que te faz pensar que contratarei uma
mulher grávida? Precisamos de colaboradoras comprometidas com a empresa, não de
interesseiras ávidas pela licença maternidade. Sinto muito, mas não há vagas para você.
Nego com a cabeça, sem acreditar. A entrevista durou menos de cinco minutos! Sei que correr
para vomitar está longe de ser uma atitude condizente com uma candidata a vaga de emprego,
mas ele nem me deu uma chance!
Sem dispensar um novo olhar, afasta-se o suficiente para que eu saia do banheiro. A vontade
de chorar vem com tudo, mas não lhe dou esse prazer. Seguro as lágrimas, abaixo a cabeça e
cruzo a porta. Os colaboradores podem estar ocupados demais para responder bom dias, mas não
para ficarem por dentro do novo fuxico. Avanço pelo corredor, ansiosa para alcançar a saída.
Dolores não se encontra na recepção. Agradeço mentalmente por isso. Seria horrível precisar
me explicar para a mulher bem-sucedida enquanto contenho um soluço e aperto o botão do
elevador. Ele começa a subir, mas a emoção fala mais alto.
Dou alguns passos para trás, batendo com as costas na parede oposta. Abraço a mim mesma e
deslizo em direção ao carpete avermelhado. O choro vem com tudo, compulsivo a ponto de
chacoalhar o meu corpo inteiro. Deslizo as mãos em direção a barriga.
— Você não é algo de errado — digo baixinho, antes que as lágrimas fechem os meus olhos e
carreguem a minha voz.
Tantos e tantos anos de humilhação, para ser novamente humilhada em uma entrevista de
emprego. Osvaldo tem razão. Não passo de uma imprestável. Jamais conseguirei sobreviver em
uma cidade como São Paulo. Talvez seja melhor que ele me encontre e acabe com o meu
martírio de uma vez por todas.
Ouço o barulho do elevador chegando, mas não consigo levantar. Passos vem em minha
direção e uma sombra cai sobre o meu corpo. O perfume me envolve. Tem um toque
amadeirado, mas de alguma forma remete ao frescor do mar. Como um tronco que por anos e
anos moldou-se entre as ondas, até finalizar a sua jornada entre as finas areias de uma praia.
Abro os olhos e o meu coração falha uma batida conforme o homem encolhe as pernas
compridas e posiciona o corpo atlético. Pisco, incrédula, mas é ele.
O rosto endureceu. Uma barba curta, tão castanha quanto os cabelos ondulados, encobre a
maior parte do maxilar forte. Nem os olhos são os mesmos. Conservam a bonita tonalidade cor
de chocolate, mas sem qualquer calor. Frios e expressivos, distantes da inocência do passado.
Ele perdeu todos os traços de menino, mas eu o reconheceria em qualquer lugar.
— Guilherme? — pergunto, insegura. — É você?
Ele franze o cenho, mas logo a sua expressão muda. Parte da dureza vai embora.
Um pouco do menino que me presenteou com uma flor retorna.
E sei que ele também me reconhece.
Capítulo 6 – Guilherme

Um estranho pressentimento se apossa do meu corpo no instante em que coloco os pés no


elevador. Aperto o botão para subir, incomodado com a sensação, mas não dou maior atenção. O
dia será cheio. Tenho zilhões de coisas para fazer e nenhuma delas envolve investigar por que os
pelos do meu braço e os cabeços da nuca estão arrepiados.
Escuto o choro desesperado antes que as portas se abram. Encaro a mulher encolhida do outro
lado do saguão. É automático. Dou três ou quatro passadas largas em sua direção e, sem pensar,
agacho-me na altura do seu rosto.
O pressentimento retorna. Se antes não lhe dei maior atenção, agora dou. A mulher ergue a
face emoldurada por uma massa de ondas castanhas e fico sem ar. Pisco, mais confuso do que
nunca, quando ela fixa os olhos esverdeados nos meus.
— Guilherme? — pergunta, insegura. — É você?
Franzo o cenho. Por algum motivo, sua voz doce é familiar. Mais madura, mas ainda assim
familiar. A voz que escuto nas noites em que o mundo dos sonhos prega peças e leva a mente
para uma praia distante, onde um menino tímido caminha com uma flor.
O coração martela o meu peito com tamanha força que, por um instante, temo que vá romper
as costelas. Estendo a mão, ávido para tocar uma mecha do seu cabelo, mas me contenho. Não
preciso tocá-la para saber que é real.
A menina dos meus sonhos se tornou uma belíssima mulher.
E o seu nome, que tanto me esforcei para lembrar, surge com toda a força, como se eu nunca
o tivesse esquecido.
— Aurora? — pergunto, completamente rouco.
Seus olhos esverdeados cintilam como se preenchidos por vaga-lumes. Encaramos um ao
outro, paralisados, até que ela ajeita o corpo e faz menção de me abraçar. Mas, por algum
motivo, hesita. Não sei se é algo na minha postura, ou o que, mas hesita.
As imagens, que sempre esqueci ao acordar, agora se mostram nítidas como se exibidas por
uma tela de alta definição. A profusão de cores, aliadas à estranheza da situação, torna difícil
pensar com coerência. Mais e mais dúvidas pipocam na mente enquanto as imagens continuam
vindo com força o suficiente para causar vertigem.
Por que ela saiu de forma tão abrupta da minha vida?
Onde passou todos esses anos?
E a mais importante:
— O que você está fazendo aqui?
Sua voz se mistura à minha. Sem nem notar, fazemos a mesma pergunta. Seria cômico, mas
estamos abalados demais para dar risada. Nem ao menos esboçamos um sorriso. Continuamos a
encarar um ao outro como se fossemos aparições místicas.
Tomo a dianteira.
— Eu trabalho aqui — consigo dizer, até que me lembro das entrevistas. — Você se
candidatou para a vaga como recepcionista?
— Não — engole em seco. De repente, tudo o que Aurora deseja fazer é desaparecer. Olha
para os lados, em busca de uma rota de fuga, antes de se dar por vencida e encarar o chão. — Eu
vim para uma das vagas como auxiliar de limpeza, mas não deu certo...
Franzo o cenho.
— Por que não?
Ela respira fundo e volta a olhar para os lados. Faz menção de se levantar, mas não consegue.
Caída no chão, Aurora se encolhe e volta a chorar de forma compulsiva. Estendo a mão, mas
ainda não consigo tocá-la.
O Guilherme de antes conseguiria. A puxaria para um abraço apertado e a consolaria, mas o
Guilherme de agora está quebrado. O sangramento parou, deixando-o com ferimentos expostos,
longe de cicatrizar. Falho em ser caloroso, e tampouco encontro energia para tal. Sinto-me oco
de sentimentos. Vê-la ali, em tamanha comiseração, incomoda profundamente, mas não sei o que
fazer para ajudá-la.
Ainda estou pensando no que fazer quando passos apressados tomam o saguão. Dolores para
diante da recepção e nos encara, boquiaberta. Balbucia qualquer coisa, incapaz de falar. Olho de
uma para a outra, sem entender nada.
— O que aconteceu? — pergunto.
Aurora toma a palavra com a voz baixa e sofrida.
— Já sai do metrô enjoada. Não estou acostumada, e acho que ele me deixou enjoada — diz,
como se isso explicasse tudo. — Começamos a entrevista, fiquei nervosa e precisei correr para o
banheiro. O metrô... e os enjoos matinais... enfim... o Jorge foi atrás de mim e disse que não
poderia me contratar porque...
— Porque... — incentivo.
Ela morde os lábios antes de continuar.
— Porque não passo de uma golpista interesseira por procurar emprego grávida.
Caio de bunda sobre o carpete. Não sei o que me deixa mais chocado. Saber que o setor de
recursos humanos cometeu tamanha atrocidade, ou descobrir que ela carrega uma criança no
ventre. Os meus olhos vão de encontro a sua barriga. Pela forma como está plana, deve ter
descoberto a gravidez há poucas semanas.
Olho de soslaio para Dolores, que confirma a informação.
Estou longe de ser violento. Gosto de resolver tudo na base da conversa, como um homem
civilizado. Mas, naquele instante, sinto uma vontade insana de pegar Jorge pela gola da camisa
social com a exclusiva intenção de quebrar a sua cara.
Ergo-me de um pulo e estendo a mão para a mulher sentada no chão. Ela limpa a face
molhada com a manga do terninho e aceita a gentileza. Reparo que não usa aliança, mas o círculo
de pele desbotada em torno do dedo denúncia que já usou.
Basta que os seus dedos macios encostem nos meus para que uma corrente elétrica suba com
força pelo braço. Puxo-a para cima, tentando disfarçar, mas parece que enfiei mão em uma
tomada de duzentos e vinte volts.
Aurora me encara. O rosto não transparece nada além de tristeza. Novas rachaduras cortam o
meu peito e a curiosidade ameaça tomar conta. O que aconteceu em sua vida para que me
encarasse como uma corça desprovida de rumo, perdida em uma imensa floresta de desilusões?
Parte de mim quer descobrir. Anseia por perguntar. Quer se envolver.
Parte quer apenas distância.
Tudo o que posso fazer é lhe dar um emprego.
— Ainda quer trabalhar aqui?
— Sim — confirma, com os olhos baixos e a voz sumida. — Se não houver problema, eu
gostaria, sim.
Isso me destrói. A coitada da mulher está arrasada. Que tipo de humilhação Jorge a fez passar
para que nem ao menos consiga me encarar? Mais um pouco e ela se ajoelha, implorando por
trabalho.
Tomado por uma nova onda de fúria, faço um sinal para que me acompanhe. Dolores percebe
as ondas de raiva emanando do meu corpo e dá passagem, também nos seguindo.
Sua voz enfim retorna. Menciona que estava imersa no próprio trabalho quando ouviu os
gritos. Ao tentar ajudar, descobriu que Aurora já havia ido embora. Acredito nela. Dolores é uma
das mais antigas colaboradoras da Alcântara Mineração. Seu profissionalismo é exemplar. A
honestidade, inabalável. Confio minha vida em suas mãos.
Mas não confio nos demais colaboradores, e eles sabem disso. Claro que sabem. Um ou outro
ainda tem a decência de baixar o olhar ou encolher os ombros de vergonha ao nos verem passar.
Tornaram-se culpados a partir do momento em que nenhum deles ergueu o dedo para defender
uma mulher grávida.
Abro a porta da sala de recrutamento sem bater, fazendo com que Jorge dê um pulo na cadeira
e derrube o Iphone de última geração. A inconfundível musiquinha do Candy Crush invade o
espaço. Encaro a tela colorida com desdém.
— Até onde sei, você foi registrado como coordenador de recursos humanos. Não sabia que
jogar bobagens durante o expediente e humilhar candidatas a vaga de emprego fazem parte das
suas funções.
O rosto do rapaz se torna lívido.
— Sr. Alcântara, eu posso explicar e...
— Cale a boca! — berro. Ele se encolhe na cadeira enquanto as mulheres as minhas costas se
sobressaltam, assustadas. — Não há o que explicar, Jorge! A sua atitude foi desumana!
O recrutador engole em seco, mas não vacila.
— Desculpe, senhor. Só fui sincero. Para que contrataria essa moça, se daqui seis meses
precisaremos fazer uma nova seleção? Com todos os custos envolvidos, sem contar que ela...
Aurora solta um soluço. Olho por sobre o ombro e fico feliz ao ver que Dolores faz o que não
fui capaz de fazer: estende as mãos e a abraça. A mulher a abraça de volta, balbuciando coisas
como “Não precisa, é melhor eu ir embora!” enquanto chora.
Ainda não sei por qual motivo estamos passando por aquele inesperado reencontro, mas sei
que nunca mais quero que ela vá embora.
Volto a encarar Jorge e ignoro a forma como a minha visão se torna rubra. Nunca senti tanta
raiva. Raiva a ponto de precisar me segurar. Porque a vontade de pular por sobre a mesa e
agarrar o colarinho daquele filho da puta predomina.
— Sem contar que ela, o que? — rosno.
O tom assusta Jorge. Ele se encolhe e dou um passo adiante. Chego perto o suficiente para
sentir o aroma do medo contido em seu suor. Encaro-o do alto. Céus, onde eu estava na cabeça
quando dei o sinal verde para contratar tamanho boçal?
— Eu fiz uma pergunta.
— Ela... — balbucia. Dou mais um passo e ele vai com a cadeira para trás. Um crec preenche
a sala. Não preciso olhar para o chão para descobrir que uma das rodas passou por cima da tela
do celular. Isso parece despertá-lo do seu estupor. — Ela... mentiu.
— Ela mentiu sobre o que?
— Sobre a gravidez.
— É óbvio! — ergo as mãos para cima. — Olha só tudo o que você está fazendo uma mulher
passar, só porque ela admitiu estar grávida! Até eu mentiria!
— Mas os custos...
— É, os custos! Eu deveria diminuí-los mandando você embora!
A palidez de Jorge se acentua, o corpo estremecendo da cabeça aos pés.
— Não, por favor, eu...
— Sr. Alcântara? — Dolores chama baixinho. Viro-me em direção a ela. — Estamos com um
quadro diminuído de funcionários. Talvez não seja o melhor momento de demitir o Jorge —
acrescenta de má vontade.
Deslizo a mão pelo rosto, bagunçando os cabelos, e solto o ar com força. O meu cérebro até a
mil, mas preciso tomar uma atitude. A minha voz sai cortante como uma navalha.
— Você fica, mas saiba que é a sua última chance.
O alívio do recrutador é palpável.
— Obrigado, Sr. Alcântara. Eu...
— E dê continuidade ao registro da Aurora como recepcionista.
— Mas ela se candidatou para a vaga de auxiliar de limpeza!
O meu olhar é assassino. Dou mais um passo e me debruço sobre a mesa. Jorge se encolhe de
tal forma que penso que vá se fundir ao chão e desaparecer.
— Eu não vou conceder uma vaga de auxiliar de limpeza para uma mulher grávida! Também
precisamos de uma recepcionista, não precisamos? — ele assente. — Ótimo! A partir de agora, a
vaga pertence a Aurora. Mais alguma pergunta, Jorge?
— Não.
— Perfeito!
Viro-me para sair da sala e dou de cara com as duas mulheres. Dolores assente, aprovando o
meu arranjo, enquanto Aurora me encara assombrada.
— Qual é a sua função aqui? — pergunta baixinho.
— A minha? — rio sem qualquer humor. — Sou o CEO. Teoricamente, sou eu quem manda
aqui.
Seus olhos se arregalam de tal maneira que, por um instante, temo que pulem pelas órbitas e
rolem em direção ao chão.
— Eu... — começa. Sei o que ela vai fazer, mas não quero que o faça.
— Por favor, não me agradeça. — Ela faz menção de insistir, mas nego com a cabeça. — O
que aconteceu aqui foi inadmissível. Sou eu quem precisa agradecê-la por, depois de tudo isso,
aceitar a vaga.
— Está tudo bem.
— Não, não está. E não vou tolerar esse tipo de comportamento — elevo a voz, de forma que
a maior parte do escritório escute. A outra escutará por meio dos fofoqueiros de plantão. — Eu,
em nome de toda a equipe, peço desculpas.
— Está tudo bem — repete. — De verdade.
Ela se afasta da secretária e estende a mão. O gesto é automático. Estendo a minha, sendo
acometido mais uma vez pelo choque de duzentos e vinte volts que sobe pelo meu braço e se
espalha pelo meu corpo.
— Obrigada, Gui... — engole em seco, sem saber como prosseguir. — Obrigada, Sr.
Alcântara.
Meneio a cabeça em sua direção.
— Eu que agradeço
Prefiro, assim. Que tenhamos distância. Pelo menos até conseguir entender o que aconteceu
para que a menina dos meus sonhos se materializar na opressora realidade.
Capítulo 7 – Guilherme

Uma película de suor cobre todo o meu rosto quando vou para a minha sala. Confiro se as
persianas estão bem fechadas e me deixo cair sobre a cadeira de couro. Odeio me alterar com os
colaboradores, mas não teve jeito. Jorge passou de todos os limites. Não se trata mulher alguma
assim.
Muito menos a que preenche os meus sonhos.
Solto um gemido angustiado e abro a terceira gaveta da mesa. O brilho do cantil de aço inox
reluz em minha direção. Nem ao menos penso. Destampo o objeto e levo o gargalo à boca,
sorvendo um longo gole de vodca. A bebida queima a garganta e ameniza um pouco da
confusão. Pelo menos, por hora. Por melhores que sejam, aprendi que os seus efeitos duram
pouco.
Hoje, nem fazem cócegas. Bebo um novo gole e jogo a garrafa de volta a gaveta, frustrado.
Por anos desejei descobrir se a interação no sonho era verdadeira ou falsa. Pelo visto, era
verdadeira. A menina existe, e se tornou uma belíssima mulher.
Então porque estou me debatendo em uma agonia interna ao invés de ficar feliz?
Parte de mim anseia por saber mais de Aurora. Chamá-la para conversar. Descobrir o que
aconteceu para termos nos distanciado e o que fez depois disso. Pelo visto, também foi casada.
Não há anel em seu dedo, mas o aro de pele desbotada é prova suficiente para saber que, algum
dia, foi.
O bebê é dele, ou de outro? Uma incômoda uma sensação percorre o meu corpo da ponta dos
pés ao último fio de cabelo, como se o fato me causasse ciúmes.
Isso é ridículo! Há meia hora eu não lembrava do maldito sonho! Agora estou enciumado por
causa de uma mulher que nem sabia se existia?
A visão dos olhos esverdeados toma a mente de assalto. Muito diferente do que vi na idílica
praia, observando o mar. Os olhos infantis eram inocentes. Os adultos são repletos de dor.
Seja lá como tenha sido a sua vida nos últimos anos, com certeza não foi gentil. Aurora se
encolhe ao mínimo gesto. Parece acuada, fugindo de alguma coisa perigosa.
O sotaque entrega que passou os últimos anos no Nordeste. Fazendo o que? Não sei. Pelo
visto, não tem qualquer experiência. Não estudou, nem trabalhou.
Eu poderia chamá-la para conversar.
E para descobrir por que voltou grávida de outro homem.
Mas a minha outra parte anseia por distância. Quer se envolver o mínimo possível. Usar a
razão, ao invés da emoção.
Essa parte se lembra das palavras duras ditas por alguém que mentiu ao jurar me amar. Fui
traído. Feito de palhaço ao me entregar por completo, recebendo de volta apenas o mais puro
desdém.
O meu coração se tornou uma casca vazia, envolta em camadas e camadas de gelo.
Péssima hora para a menina dos meus sonhos retornar.
Ajudarei Aurora no que for possível, mas não vou me envolver.
Só há outra mulher capaz de explicar o que aconteceu: minha mãe. Venho adiando o seu
convite para almoçar, mas as desculpas estão acabando. Talvez seja o momento de encontrá-la.
Volto a abrir a gaveta, precisando de um novo gole. A garrafa está quase vazia, mas ainda
contém álcool o suficiente para encher a boca e queimar a garganta.
Finalmente ele começa a fazer efeito. Relaxo sobre a cadeira, sentindo o corpo mais leve.
Parte das preocupações se dissipa. A discussão perde importância. Aurora volta a ser o que
sempre foi: um sonho distante.
Ligo o computador e encaro as pilhas de papéis sobre a mesa. Elas rodopiam diante dos meus
olhos, mas ignoro. Estou acostumado. Aprendi a trabalhar em meio a um redemoinho de
emoções.
Jogo a garrafa de volta ao seu lugar a tempo de ouvir dois toques secos na porta.
— Pode entrar — firmo a voz. Estou longe do estado de embriaguez, mas não quero causar
suspeitas.
Dolores se esgueira para dentro da sala. Os cachos do cabelo black power se remexem como
pequenas molas quando ajusta a postura ao me encarar.
— Mandei uma estagiária acompanhar a Aurora na consulta admissional. Ela se mostrou
insegura em ir sozinha — assinto em concordância, aprovando a sua atitude. A mulher continua,
pensativa. — Não sei por que, mas estou com a impressão de que ela chegou na cidade há
pouquíssimos dias.
— Estou com a mesma impressão.
A secretária troca o peso de um pé pelo outro. Está doidinha para perguntar e, a conhecendo
bem, escuto a pergunta antes que ela saia dos lábios pintados de vermelho-escuro.
— Vocês se conhecem?
Engulo em seco. Não quero contar a verdade. Como Dolores reagirá se eu disser que sim, a
conheço de um sonho recorrente? Preocupada como é, sairia da sala direto para o telefone e em
menos de meia hora receberíamos a visita dos homens de jaleco branco. Eu seria colocado dentro
de uma camisa de força e encaminhado para o manicômio.
Mas também não quero mentir.
— Mais ou menos — digo, torcendo para que baste. A secretária ergue uma sobrancelha e
solto um longo suspiro. Decido contar uma meia mentira. — Eu a conheci na infância. Não
lembro ao certo, mas tenho a sensação de que sua mãe foi empregada doméstica da minha. Por
algum motivo elas brigaram e nos separaram.
— Ah! Será que a sua mãe se lembra?
Solto uma risada desprovida de humor.
— Claro que se lembra.
A memória da minha mãe pode ter se tornado falha para um monte de coisas, mas quando se
trata de desavenças ou questões do seu interesse, é precisa como a memória de um elefante.
Dolores ajusta a postura e decide ser prática.
— Aurora deve voltar pouco depois do almoço. Parece ansiosa para começar a trabalhar, mas
suspeito que esteja totalmente crua.
As palavras saem antes que eu possa segurá-las.
— E suspeito que a vida não foi muito gentil com ela.
— Não foi — confirma. — Tenho certeza de que não foi. Ainda chega aqui e é destratada
pelo babaca do Jorge! Que vontade de...
A secretária se contém. Acabo rindo, dessa vez de verdade.
— O sentimento é recíproco, mas enquanto não ajustarmos o quadro de funcionários, não
posso mandá-lo embora. Temos uma encomenda grande do novo shopping center da Green Maxi
Construtora. Detesto a ideia de colocar esse contrato em risco — a minha voz se torna sombria.
— Mas não vou tolerar esse comportamento uma segunda vez. Ao mínimo vacilo, Jorge estará
na rua.
— Infelizmente, é a decisão mais acertada. — Dolores começa a se afastar em direção a porta,
mas para no meio do caminho. Reflete por alguns segundos antes de continuar: — Algo me diz
que a nova recepcionista precisa de proteção. Não sei se estou interessada em descobrir do que,
mas estou disposta a ajudá-la.
Confirmo com a cabeça, grato por ter uma secretária como Dolores. E por ela ser capaz de
definir os meus sentimentos com precisão. Posso não querer me envolver com Aurora, mas
também vou ajudá-la em tudo o que puder.

O dia transcorre sem maiores percalços. Pouco a pouco a pilha de trabalho diminui, até
restarem apenas dois ou três relatórios. Pedi o meu almoço, que comi junto de uma nova dose de
vodca. Não gosto de manter as garrafas de vidro à vista, mas não teve jeito. Só assim para ter
ânimo o suficiente para conseguir chegar ao fim do dia.
Às vezes tenho a sensação de que caí em depressão. Alexandre sugeriu, em mais de uma
ocasião, que eu me consultasse com um terapeuta ou fosse em um psiquiatra.
Não fui. Justo eu, que por tanto tempo insisti para que ele fizesse o mesmo. Meu melhor
amigo passou por maus bocados após a perda da primeira esposa. Conseguiu se recuperar com
ajuda da terapia, e com o amor da segunda mulher.
Não tenho nada contra a terapia, mas não estou disposto a agendar um horário e gastar uma
fortuna para contar a um desconhecido que fui traído. O álcool faz com que o vazio tome conta,
anestesiando os meus sentidos e me fazendo sentir... nada. Duvido que seja bom a longo prazo,
mas é melhor do que sentir apenas dor.
E, no fundo, pouco me importo.
Um novo toque ecoa pela sala fechada. A porta se abre antes que eu erga a cabeça e permita a
sua entrada. É Dolores de novo, dessa vez acompanhada da Aurora.
Se não estivesse tão incrustada no semblante da nova recepcionista, eu poderia dizer que a
tristeza foi embora. A mulher sorri, quase radiante, ao me ver. Os músculos da face reagem de
forma automática. Talvez de um jeito mais contido, mas um sorriso é um sorriso. E o que basta
para que ela se aproxime enquanto Dolores nos deixa a sós.
— Desculpe incomodar, mas só queria agradecer por tudo o que fez por mim. Nunca foi a
minha intenção chegar na sua empresa e causar tanta confusão — diz, acanhada. O rosto bonito,
agora sem qualquer mancha proporcionada pelas lágrimas, adquire um adorável tom cor-de-rosa.
— Eu nem ao menos imaginei que a empresa fosse sua. Ou, melhor, que te encontraria nela.
— Você se lembra do que?
A pergunta sai antes que eu possa contê-la.
Porra, Guilherme! Não é para se envolver!
Aurora assente, mas fica em dúvida. As palavras que saem dos seus lábios são hesitantes:
— De pouca coisa. A minha mãe trabalhava com a sua e, de vez em quando, brincávamos
juntos na praia.
E eu te dei uma flor. Logo em seguida, você foi tirada de mim.
Não. Vou. Me. Envolver.
— Lembro disso, também — resumo.
Encaramo-nos por cima da mesa. Eu, sentado na cadeira da presidência. Ela, de pé, torcendo
os dedos das mãos na frente do corpo. Acabo levantando. Seus olhos acompanham o movimento,
absorvendo toda a minha altura. Recua um passo, mas não parece assustada. Parece algo que está
acostumada a fazer.
Ao mesmo tempo que recua, mostra-se ávida para se aproximar. Dou a volta na mesa, enfio as
mãos no bolso da calça e paro a sua frente. Aurora ergue o rosto em direção ao meu, as íris
esverdeadas cintilantes.
Assim como eu, quer perguntar. Descobrir mais sobre o desenrolar da nossa vida durante o
tempo em que ficamos afastados. Sanar todas as dúvidas. Desvendar os mistérios acerca da
mútua infelicidade.
Por mais que esteja nítido o quanto não quer se envolver, ela se sente atraída. Torna a sorrir,
mais tímida dessa vez. Faço menção de me adiantar para abrir a porta, mas ela é mais rápida. Ao
invés de sair, decide me abraçar.
Ainda estou com as mãos nos bolsos quando os braços finos envolvem o meu tronco. Pego de
surpresa, respiro fundo, sentindo o corpo quente se aproximando até se fundir ao meu. Fico
parado, desprovido de reação enquanto Aurora encosta o rosto em meu peito. O toque é fugaz,
mas forte o suficiente para extinguir todo o ar dos meus pulmões.
— Obrigada — murmura, se afastando na mesma velocidade com a qual se aproximou.
Permaneço parado feito um imbecil. Ela abaixa o rosto, trêmula como uma menina pega
fazendo algo de muito errado.
Ou como uma mulher esperando por uma injusta punição.
Adianto-me em tranquilizá-la.
— Não há o que agradecer — toco em seu braço, para enfatizar. Aurora se retrai de leve, mas
ergue o rosto. — E quero que você faça uma promessa.
— Qual promessa?
— De que avisará a mim, ou a Dolores, caso Jorge ou qualquer outro colaborador lhe falte
com respeito.
Ela ri. O som é cristalino como o soar de sinos dos ventos.
— Espero que isso não aconteça.
— Também espero, mas quero estar ciente se acontecer.
— Pode deixar. Até amanhã, Sr. Alcântara.
Guilherme. Por favor, me chame de Guilherme.
NÃO. VOU. ME. ENVOLVER.
— Até amanhã.
Capítulo 8 – Aurora

Ainda é cedo quando saio da Alcântara Mineração e caminho em direção a estação de metrô.
Segundo Dolores, falta uma ou duas horas até que o metrô entre no horário de pico e as estações
fiquem lotadas. O desafio diário do paulistano dependente do transporte público, acrescentou
bem-humorada.
Só consegui pensar: mais um desafio?
Por favor, chega! Estou repleta deles!
Tento me concentrar enquanto atravesso a catraca e vou para o lado correto da plataforma,
mas não consigo. O cheiro do perfume de Guilherme ainda atordoa os meus sentidos. Não sei de
onde surgiu a ideia de abraçá-lo. Simplesmente o abracei, em uma tentativa de enfatizar a minha
gratidão.
E para descobrir se ele é mesmo real.
O menino tímido com quem brincava na praia se tornou um homem bonito, alto e imponente.
Não é necessária concentração para sentir a firmeza dos músculos do seu tórax contra o meu
peito. Aposto que existem pelo menos seis deliciosos gominhos no centro da sua barriga plana.
Uma pequena ventania anuncia a chegada do trem, mas dessa vez não me assusto. Estou
distraída demais pensando na coincidência de reencontrar Guilherme. Jamais imaginei que o
encontraria na empresa! Ou melhor, que o encontraria em qualquer lugar, muito menos que me
sentiria atraída por ele.
Acabei de fugir do meu marido, não é possível que já esteja pensando em outro homem!
Mas não é qualquer outro homem. É ele. Quem eu, inconscientemente, esperei. O primeiro
amor de uma menina. O único, em toda a minha vida, que me presenteou com uma flor.
Os inocentes sonhos de menina se transformaram em ardentes desejos de mulher. Carentes a
ponto de imporem sua vontade contra qualquer racionalidade. Acabei de chegar na cidade e já
estou atiçada com o mínimo de gentileza masculina!
Gentileza que preciso ignorar. Guilherme se mostrou surpreso ao me ver. Cordial em suas
ações e... só. Pode ter agido como um herói ao garantir a minha permanência na empresa, mas
qualquer patrão decente faria isso. Deixou de retribuir o abraço e fez questão de manter o
máximo de distância. Não há aliança em seu dedo, mas há um pequeno aro de pele mais clara.
Em algum momento, ele também foi casado.
Parece haver uma tristeza inerente em seu ser. Profunda e dolorosa. Algo o endureceu, mas
não fui contratada para fuçar na sua vida. Seja lá o que tenha acontecido, é assunto particular
dele.
Esperava mais emoção desse reencontro? Esperava, mas convivemos por poucos meses antes
de nos separarmos por longos anos. E, sendo bem realista, eu não passava da filha da empregada.
Provavelmente jamais pensou em mim.
Eu sou uma romântica tola.
O metrô dá um tranco, me assustando e tirando dos devaneios. Seguro a barra metálica com
mais força e agradeço mentalmente pela oportunidade dada por Guilherme. Ou melhor, dada pelo
meu chefe. É assim que irei enxergá-lo a partir de agora. O que aconteceu no passado, ficou no
passado. Preciso manter o foco no presente.
O retorno para casa é tranquilo. Enjoo um pouco, mas longe da expectativa de passar pelo
escrutínio de uma entrevista, logo me recupero.
Chego na pensão e dou de cara com Soraia. Ela está sentada em uma das cadeiras de vime do
jardim, fumando um cigarro em uma longa piteira. A mulher tem a elegância de uma beldade
hollywoodiana dos anos vinte.
— Prometo parar de fumar até o nascimento do bebê — aponta a piteira para a minha barriga
e apaga o cigarro nas pedras do chão. — Há anos quero parar. Talvez esse seja um bom
incentivo.
— Obrigada pela consideração — sento-me ao seu lado
— E então, como foi?
Mordo os lábios, sem saber como prosseguir. Posso contar a versão completa, em que fui
humilhada por um colaborador babaca antes de ser salva pelo amigo de infância que se
transformou no meu atraente patrão, ou a versão resumida, em que consigo o emprego sem
maiores complicações.
Algo me diz que Soraia merece a versão completa. Seus olhos cinzentos me observam com
atenção enquanto narro toda a história. Ao fim, estou exausta. Ela gira a piteira entre os dedos,
pensativa, mas não faz maiores considerações.
Permanecemos sentadas, lado a lado, como se fôssemos velhas amigas, até que o sol começa a
se pôr e a trazer as demais moradoras da pensão. Rosana é a primeira, seguindo para o interior do
sobrado sem emitir mais que um boa noite. A segunda é Clarice, que sorri de orelha a orelha ao
me ver. Sorrio de volta. Em tão pouco tempo, sinto que já tenho uma amiga.
Para uma mulher que foi obrigada a cortar relações femininas ao se casar, isso é uma coisa e
tanto.
— E aí, conseguiu o emprego?
— Consegui! E o melhor, consegui uma vaga como recepcionista!
Ela solta um gritinho e me abraça. Abraço-a de volta, as pernas se embolando ao começarmos
a girar. Soraia bufa.
— Desse jeito, vocês vão cair! Já adianto que não vou perder tempo chamando uma
ambulância!
— Ninguém vai cair. — Clarice me solta. — Pode usar o meu terninho, até comprar roupas
novas.
— Você não vai precisar dele?
Ela nega com a cabeça.
— E posso te dar uma dica?
— Claro.
— O brechó da esquina tem peças ótimas! — tira o celular da bolsa e consulta as horas. —
Ele vai fechar daqui meia hora. O que acha de irmos até lá?
Hesito, lembrando de algo que minha mãe dizia ao ganhar roupas das patroas. Jamais se
incomodou em vestir peças usadas, mas não gostava de roupas de brechó. Causava-lhe arrepios
saber que podiam ser “roupa de gente morta”.
O que me arrepia é saber que não tenho roupas sociais para trabalhar. Reparei nos preços das
lojas da Avenida Paulista. Ganharei um salário maior como recepcionista, mas estarei longe de
poder esbanjar. Preciso poupar para o enxoval do bebê e pagar um bom advogado para dar
entrada no pedido de divórcio. Assinto para Clarice e vamos para lá.
Ela tem razão. O brechó surpreende e, com a sua ajuda, compro três camisas sociais, duas
calças tinindo de novas e uma saia lápis com a etiqueta pendurada. A vendedora se empolga e
nos mostra peças recém-chegadas, incluindo um blazer e um scarpin preto. Fico com tudo,
impressionada com o valor da compra.
Clarice não resiste e compra uma camisa. Antes de retornar a pensão, decidimos jantar na
padaria do bairro. Fazemos os nossos pedidos e a conversa se expande. De cara, minha amiga
fica impressionada ao saber que não tenho um celular. Abstenho-me de dizer que o deixei com o
meu ex, temendo que ele tivesse instalado um aplicativo espião e descobrisse o meu paradeiro.
Talvez um dia me sinta confortável para contar tudo o que passei, mas, por enquanto, prefiro
guardar os detalhes comigo. Clarice, por outro lado, não se faz de rogada. Conta como ficou órfã
aos dezessete anos. Sem ter para onde ir, foi acolhida por uma tia distante. A convivência não
deu certo. Ao completar dezoito, decidiu viver por si mesma. Encontrou a pensão e fez dela um
lar.
Ao chegarmos, o volume da televisão é tão alto que impede a formação de conversas
paralelas. Pelo visto, Soraia, Matilde e Teresa são apaixonadas por novelas. Comentam sobre os
personagens como se eles existissem de verdade, irritadas com o mocinho que abandonou a
esposa grávida.
Clarice sai correndo, retornando instantes depois. Nas mãos, um smartphone antigo, daqueles
com pouquíssimos recursos. Lembro que minha mãe teve um igual. Mordo os lábios e tento
engolir a emoção. Tanto pela lembrança, quanto pela gentileza.
— Sei que está longe de ser moderno — a jovem ri —, mas funciona. A sua barriga está
começando a crescer, mas será bom ter um celular quando a gravidez estiver mais avançada.
As demais mulheres murmuram em concordância. Aceito o aparelho e olho para todas elas.
Mesmo Teresa com seu ar de poucos amigos ou Rosana com sua seriedade e silêncio se mostram
aliviadas ao saber que tenho como me comunicar. A vontade de chorar aumenta, mas me
contenho, por mais que dessa vez as lágrimas sejam de felicidade.
— Obrigada — digo baixinho. — Obrigada a todas vocês.
Elas assentem e, segundos depois, voltam aos seus afazeres. Encaro o celular por alguns
instantes e me levanto. Quero tomar um banho quentinho e dormir cedo. Amanhã, começo o meu
primeiro dia de trabalho.
Saio da estação do metrô e caminho apressada em direção ao prédio da Alcântara Mineração.
Deitei cedo, mas demorei a pegar no sono. Imaginava a reação de Osvaldo ao descobrir que fui
embora com todo o seu dinheiro. O homem deve ter ficado furioso a ponto de quebrar toda a
casa.
E também pensava nos tristes olhos cor de chocolate do Guilherme. Eu não deveria. O mais
sensato seria fingir que o nosso reencontro jamais aconteceu. Enterrar as lembranças e afastar
todo e qualquer sentimento, mas porque o meu coração se agita e um delicioso calor preenche o
corpo ao pensar na versão adulta do menino na praia?
Chega a ser vergonhoso. Acabei de abandonar o meu marido! É cedo demais para nutrir
qualquer sentimento por outro homem!
As horas adentraram a madrugada quando enfim cai no sono. Para piorar, configurei alguma
coisa errada e o novo celular não despertou. Deixei Clarice aflita e sai correndo da pensão. É o
meu primeiro dia de trabalho! Não posso chegar atrasada!
E não posso vomitar. Maldito enjoo! Pelos meus cálculos, estou grávida de quatro ou cinco
meses. Até onde sei, os enjoos são frequentes apenas durante os primeiros três. Só pode ser culpa
do “desafio diário” que preciso enfrentar. Sei que em pouco tempo me afeiçoarei ao metrô, mas
por enquanto ele não colabora com a minha condição.
Deixo a questão temporariamente de lado, cruzo o saguão a passos largos e chamo o elevador.
Dou sorte! Ele vem do subsolo, apenas um andar abaixo. Troco o peso do pé pelo outro, tiro o
celular da bolsa e confiro as horas. Preciso bater o ponto em cinco minutos. Vai dar tempo!
Um apito anuncia a chegada do elevador. Olho para a frente, pronta para entrar. As portas se
abrem e perco o ar.
Guilherme ergue o rosto do próprio celular e me encara de volta. Se ontem ele estava lindo
usando apenas uma camisa branca e uma calça social, hoje está magnífico em um terno
completo.
É automático. Desço os olhos pelo seu corpo, admirando toda a sua altura, o tecido caro com
corte bem alinhado falhando em esconder os músculos dos braços e das coxas. Franzo o cenho
ao chegar aos seus pés. Um cachorro mastigou a lateral dos seus sapatos?
Pouco importa. Ele continua magnífico, com sapatos comidos ou não!
O perfume fresco como a brisa marinha invade as minhas narinas. Inspiro fundo. Não sei se
em busca de ar, ou se em busca de guardar o aroma para sempre na memória.
Ele sorri meio de lado, mas não há qualquer humor nos lábios. O semblante continua triste,
como se algo muito doloroso massacrasse a sua alma.
— Não vai entrar?
— Oxe! Vou sim — dou um passo adiante. Ele segura a porta, permitindo que entre em
segurança. Agradeço, meio acanhada. — Obrigada.
Guilherme não responde. Espera até que eu esteja no centro do elevador para liberar a porta e
apertar o botão do vigésimo andar. Só então seus olhos caem sobre o aparelho celular em minhas
mãos.
— Ah, uma amiga me emprestou — adianto-me em dizer, quase em tom de desculpas.
Quando dou por mim, estou falando sem parar. — Achei melhor deixar o meu em casa. Não
aqui. Não tenho casa aqui. Estou morando em uma pensão. Quis dizer na minha casa em
Pernambuco, mas que agora não é mais a minha casa. Talvez nunca tenha sido a minha casa.
A última frase sai em um sussurro. O cenho de Guilherme se franze. Quase consigo ouvir as
engrenagens do seu cérebro tentando juntar as peças do meu quebra-cabeça particular, mas é
claro que elas não se juntam. Sua curiosidade de menino é palpável, mas é a razão do homem
que toma a dianteira.
— Sinto muito.
Assinto com a boca fechada. O elevador sobe em direção ao topo do prédio, assim como a
vontade de vomitar. Preciso ir ao posto de saúde e marcar uma consulta. A médica saberá como
me medicar para evitar que os enjoos continuem.
Em uma tentativa de me distrair, olho de soslaio para o meu chefe. Péssima ideia.
Concentrado, ele encara as portas metálicas sem piscar. Uma mecha de cabelo ondulado se
desprendeu do gel, pomada, ou seja lá o que tenha passado nos fios para mantê-los no lugar, e cai
sobre a lateral da testa. A concentração é tamanha que não parece se incomodar. Já os meus
dedos? Ah, eles coçam de vontade de colocar aquele cacho no lugar.
Pare de pensar em homem!, o meu cérebro grita, indignado. Mas penso apenas nele. Talvez
eu esteja autorizada a pensar em um só!
Anos e anos de um casamento sem amor me fizeram carente de... amor. O histórico da minha
família deveria bastar para me fazer odiar espécies do sexo masculino. Mamãe foi abandonada ao
anunciar a gravidez. Passei por um casamento violento. Nunca encontramos um único homem
capaz de estender a mão e nos ajudar sem segundas intenções.
Adoraria desprezá-los. Dizer em alto e bom som que posso viver sozinha, mas não é isso que
eu quero. Ainda desejo ter a minha família. E sei que, em algum lugar, existe um homem bom
para mim. Talvez seja esse ao meu lado. Talvez seja outro. Basta ter paciência. Ele está
escondido. Perdido, em algum lugar. Cedo ou tarde, irá se revelar.
Isso me torna uma romântica incurável? Não sei.
Só sei que quero ser amada.
Mereço ser amada.
Ou, simplesmente, esteja com os hormônios à flor da pele. E um homem alto, com porte
atlético e um cacho de cabelo caindo sobre a testa seja o suficiente para ativar a libido que eu
nem imaginava ter.
Olho para o painel. Faltam apenas dois andares. Graças a Deus! A intensidade da presença de
Guilherme está causando o princípio de uma enxaqueca. O enjoo vem mais forte. Respiro fundo,
repetindo o mantra: agora não, agora não, agora não.
Não funciona. As portas se abrem e preciso correr para fora. Guilherme exclama alguma coisa
às minhas costas, mas não escuto. Irei colocar os bofes para fora aos seus pés, se parar para
escutar. Passo pela recepção e corro pelos corredores, em busca do banheiro. Tanto faz se for
masculino ou feminino. Eu só preciso de um banheiro!
Mal tenho tempo de me debruçar sobre a porcelana. Ao terminar, dou a descarga, contendo a
vontade de chorar. Que vexame! Não posso deixar que isso aconteça todo dia.
— Você está bem? — uma voz grave pergunta.
— Estou — olho por sobre o ombro, mais acanhada do que nunca. — Desculpe.
Guilherme me observa de cima, o semblante tomado por pura preocupação. Hesita de leve,
mas estende a mão. Pouso os dedos sobre os seus, atordoada, mas ainda capaz de sentir a
corrente elétrica que sobe pelo braço e se espalha por todo o corpo.
Solto a mão, viro-me em direção a pia, faço um bochecho e lavo a boca. Preciso lembrar de
comprar um kit com escova e pasta de dente. Ou, quem sabe, conseguir um novo emprego, longe
de um homem capaz de me atordoar a mínima gentileza.
— Não precisa se desculpar — ele diz, solicito. — Quer tirar o dia de folga? Talvez seja
melhor ir ao médico.
Sou rápida em negar com a cabeça.
— Não. Já passou — sorrio, sem graça. — Quero trabalhar.
Guilherme gasta um ou dois minutos me analisando.
— Tudo bem. Mesmo assim, marque uma consulta. Acredito que ainda levará alguns dias
para finalizarem a sua inclusão no plano de saúde, mas irei pagar.
— O-obrigada — balbucio, encantada.
Ele me observa por mais alguns instantes antes de assumir o tom profissional de sempre.
— A Lia será a responsável pelo seu treinamento. Pode me procurar caso tenha qualquer
problema — assinto em concordância e ele ajeita a postura. — Tenha um bom dia, Aurora.
Não tenho tempo de responder. Guilherme sai do banheiro e, em seu lugar, Lia aparece. A
estagiária é cortês, mas não simpática. Foi bastante profissional no dia anterior, mas sempre
escondendo algo abaixo da expressão neutra, digna de uma esfinge.
Sigo a jovem de cabeça baixa, envergonhada demais para encarar os outros colaboradores. Lia
abre a boca apenas ao chegar na recepção. Liga o computador e começa a apresentar o sistema da
empresa com um tom de voz robótico. Tento acompanhar, mas é muita informação. Noto uma
ligeira irritação ao pedir para repetir, então mantenho-me calada durante o restante da
apresentação.
Não demora para os acionistas começarem a chegar. Pelo visto, o meu primeiro dia de
trabalho coincide com uma importante reunião. Com a sombra julgadora de Lia às minhas costas,
digito catando milho e dou o meu melhor para checar os nomes no monitor, receber os
convidados e encaminhá-los à sala correta. Eu me atrapalho um pouquinho, mas contenho o
nervosismo. Pelo menos, o enjoo foi embora.
A estagiária me deixa sozinha apenas quando o último acionista é acomodado. Com tudo
ajeitado, volto ao meu posto diante da recepção. No meio do caminho, escuto alguém dizer, bem
baixinho, algo como “Ela não vai durar”. Sei que as palavras são direcionadas a mim.
Os meus olhos se enchem d’água, mas sigo em frente, fingindo que não ouvi. Eu precisava
mesmo ter conseguido trabalho em um local onde sofra uma irresistível atração pelo meu chefe e
os colaboradores parecem me odiar? Pelo visto, o transporte público não será o meu único
desafio.
Capítulo 9 – Guilherme

Hoje é um péssimo dia para a nova recepcionista começar a trabalhar. Dez importantes
acionistas foram convidados para uma reunião na Alcântara Mineração. Geralmente fazemos
esse tipo de reunião online, mas dessa vez preferiram vir até a empresa.
De onde estou, vejo pouco da recepção, mas vejo Aurora surgindo com o primeiro convidado,
recepcionando-o até a sala envidraçada. A pele pálida denuncia todo o seu nervosismo, mas ela
se sai bem. Ri, educada, de uma piada idiota feita pelo homem mais velho. Após acomodá-lo,
retorna ao seu posto com visível alívio.
Encaro os relatórios sobre a mesa. Preciso me preparar para a reunião, não ficar pensando na
nova colaboradora. Já foi uma tortura dividir o elevador com ela. O sutil aroma de flores presente
nos seus cabelos, provavelmente vindo de um xampu ou condicionador barato, foram o
suficiente para me atiçar.
Despertar sentimentos antigos. Transformá-los em novos. Mais primitivos e muito menos
inocentes.
Uma vontade insana de aproximar o nariz dos seus cabelos ondulados e inspirar fundo, até me
embriagar com o seu cheiro, tomou conta do meu corpo. Mas me mantive parado feito uma
estátua, olhando para as portas de aço inox como se algo de muito interessante estivesse gravado
nelas. Pensando, com toda a ênfase, que esse desejo insano não passa de falta de sexo. Meses
sem dividir a cama com um corpo feminino são capazes de levar um homem adulto à loucura.
E a vontade de protegê-la? Cada vez que olho para Aurora, me convenço que está fugindo de
algo grande e perigoso a ponto de pôr em risco a sua vida, e a do seu filho.
Tudo isso porque ela me abraçou. Tenho certeza de que os sentimentos continuariam secos
como um graveto se a mulher não tivesse se aproximado e me abraçado.
O contato foi curto, mas longo o suficiente para me fazer passar a noite insone, sentindo as
curvas dos seios pressionando o meu peito liso. O corpo quente colado no meu. O maldito aroma
floral impregnado na pele, mesmo após um longo banho.
Até ontem nem ao menos sabia o nome da menina. Hoje a mulher invade a minha alma com a
intensidade do nascer do sol.
E eu não sei o porquê!
Balanço a cabeça com força. O amor infantil morreu. Os sentimentos do homem que poderia
amá-la, também.
Preciso encontrar um hobby com o que me distrair. Ou, quem sabe, levar Quindim com mais
frequência para passear e intensificar os treinos na academia. Qualquer coisa que seja capaz de
aplacar a curiosidade pela vida da recepcionista. A minha única responsabilidade é garantir que
trabalhe em um ambiente seguro e receba o seu salário em dia. Nem ao menos deveria ter me
oferecido para pagar o seu médico!
Manter o máximo de distância. Me envolver o mínimo possível.
Você não é assim, Guilherme, a voz da consciência sussurra no meu ouvido.
— Agora eu sou — digo em voz alta.
Enquanto a distração não surge, abro a terceira gaveta da mesa e pego o cantil. Pelo peso, sei
que esqueci de abastecê-lo antes de ir embora na noite anterior. Solto um grunhido frustrado.
Terei que participar da reunião completamente sóbrio.
A maior parte dos acionistas são da época do meu pai, homens com pensamentos antiquados e
fortíssimo repúdio à palavra meio ambiente. Prezo para que a mineradora seja respeitosa com o
espaço a sua volta, mas eles só prezam pelo lucro.
Estou pensando no cabo de guerra que terei que enfrentar dali a poucos minutos quando o
celular vibra dentro do bolso do paletó. Estendo a mão, sabendo quem é a autora da mensagem
antes de desbloquear a tela.
Minha mãe. Outro assunto que preferia lidar com um pouco de álcool circulando nas veias.
Passo os olhos pelo amontoado de palavras. Inês quer me encontrar para almoçar. E o que
Inês quer, ela tem. Parte de mim adoraria adiar mais uma vez, mas parte quer ir. Com exceção de
Aurora, ela é a única pessoa que sabe o que aconteceu naquela tarde na praia. Talvez o meu
interesse pela recepcionista desapareça assim que a curiosidade for aplacada.
Dolores bate à porta. Respondo Inês com um curto OK e peço para a secretária entrar.
— Todos chegaram, Sr. Alcântara. Se desejar, pode antecipar a reunião em alguns minutos.
— Ótimo — ergo-me da cadeira. — Irei fazer isso.
Ela assente e me deixa sozinho. Respiro fundo e me encaminho para a sala envidraçada,
ansioso para finalizar a reunião que ainda não comecei.

Duas horas depois, despeço-me dos acionistas ao acompanhá-los até a saída. Aurora ergue o
rosto ao me ver. Sorri simpática para os convidados e faz menção de se levantar, mas sinalizo
que não é necessário. Levo-os ao elevador e, quando o último se vai, consulto a hora. Ainda falta
um pouco para o horário de almoço, mas se eu não correr, irei me atrasar.
Inês almoça meio-dia em ponto, e aí de quem contestar. Não preciso dar satisfação para a
recepcionista, mas por algum motivo, me vejo dando.
— Irei sair mais cedo. Não se esqueça de almoçar.
— Pode deixar — Aurora torna a sorrir.
Temendo que aquele sorriso se transforme na minha ruína, limito-me a assentir com a cabeça
e chamar o elevador. Volto a encarar as portas metálicas, me esforçando ao máximo para ignorar
a mulher sentada a poucos metros de distância. Quase dou graças a Deus quando o elevador,
enfim, chega no meu andar.
Enquanto desço, mando uma mensagem ao motorista particular. Ele me aguarda assim que
chego no subsolo. Entro no carro e lhe dou o endereço do restaurante. Nem precisaria. Inês
insiste em almoçar sempre no mesmo lugar.
Avisto a sua figura a metros de distância. A minha mãe é uma mulher que, apesar de rir diante
da ideia de se casar de novo, não se deixa abater pelo precoce falecimento do meu pai. Elegante,
se esforça para manter o corpo em forma mesmo dentro dos seus quase sessenta anos. Adora
dizer em alto e bom som que está viúva, mas não morta.
Peço para o motorista me buscar dali uma hora e meia e desço do carro. Inês me olha de cima
a baixo.
— Está abatido, meu filho. E perdeu peso.
— Boa tarde para a senhora também — digo, beijando a sua face.
Ela revira os olhos, mas retribui o cumprimento. Sei qual é o assunto do almoço, assim como
sei que está se segurando para anunciá-lo. Talvez tema que eu chame o motorista de volta e fuja
em alta velocidade ao fazê-lo.
Uma jovem hostess nos acompanha em direção a mesa enquanto Inês cumprimenta
conhecidos pelo caminho. Suspeito que um ou dois homens mais velhos façam parte dos seus
contatinhos. Endinheirados com quem sai apenas para se divertir, ricos o suficiente para manter o
seu constante suprimento de roupas e joias valiosas.
Tento não pensar nisso quando nos sentamos no centro do restaurante. Mal tenho tempo de
ajustar a cadeira e ela começa:
— Soube que assinou o divórcio.
— Ah, claro que soube — retruco.
— Não use esse tom, Guilherme! O deboche não lhe cai bem!
— O que cai, não é mesmo? — faço um sinal para o garçom. Ele coloca o cardápio sobre a
mesa, mas ignoro. — Uma dose de vodca pura, por favor.
— Beber logo cedo também não — diz baixinho.
— Só bêbado para aguentar certas conversas.
— O que disse?
— Nada — pego o cardápio, folheando as páginas sem muito interesse. Já sei o que vou pedir.
— Como a senhora está?
— Bem — ajeita-se sobre a cadeira, ajustando a echarpe no pescoço. Um par de brincos de
diamantes cintila nas orelhas, enquanto as mãos repletas de anéis de ouro gesticulam,
displicentes. Tento adivinhar qual dos homens que cumprimentou deu-lhe presentes tão caros. —
Mas estaria melhor, se o meu filho continuasse casado.
Solto um longo suspiro. O garçom retorna com a bebida. Agradeço com um aceno e faço o
meu pedido. O prato da casa, e mais uma dose de vodca. Minha mãe me imita, trocando o
destilado russo por uma gin tônica.
Aguardo até que o homem se afaste para entornar o copo. O líquido transparente desce
rasgando a garganta e aquecendo o peito. Com o efeito de um bom placebo, sinto-me revigorado
para continuar a conversa.
— E eu estaria casado. Se Evelyn me amasse e, principalmente, não tivesse me traído.
Ela dá de ombros.
— Talvez ela ainda te amasse, se você não tivesse sido negligente.
Uma veia pulsa na minha testa.
— Como é, que é?
— Ah filho. Todos nós sabemos o quanto você deixou a Evelyn de lado após o casamento.
Horas e horas trabalhando, dando pouca atenção a esposa. Isso mina o amor de qualquer uma.
— Deixei de lado? — ergo a voz. Inês me lança um olhar de advertência, mas o ignoro. — O
meu tempo livre era dedicado a dar atenção a ela! Sim, vez ou outra chegava tarde em casa por
conta das demandas do trabalho, mas não mais que ela própria. Eu a amava de todo o coração,
mãe! E para que? — rosno, com raiva. — Para ela dizer sem qualquer remorso que nunca me
amou? Que me traiu com o advogado? Ah, me polpe!
Algumas cabeças se viram em nossa direção, mas as ignoro. Não a minha mãe. Ela faz um
gesto apaziguador, sinalizando que o filho está desnecessariamente alterado. O sorriso morre no
instante em que o rosto se volta para mim.
— Contenha-se. As pessoas estão olhando.
— Foda-se se estão olhando — levo a mão ao copo. Esqueci que ele está vazio. Bato-o com
força contra a madeira. Só queria que o garçom voltasse com uma nova dose.
Ou com a garrafa de vodca inteira.
Inês agarra o meu punho. Seu aperto é firme, fazendo valer as horas que passa treinando na
academia. Debruça o corpo sobre a mesa e me encara. As íris azuis, tão diferentes das minhas e
do meu pai, ardem em chamas enfurecidas.
— Não fale palavrões! Foi essa educação que te dei, Guilherme?
Fecho os olhos e respiro fundo.
— Não.
— Ótimo — volta a se sentar. — Acho que você deveria dar uma segunda chance a Evelyn.
Pisco, incrédulo. Não pode ser que ouvi o que acho que ouvi. Minha mãe me olha, impassível,
e solto uma risada amarga.
— A senhora só pode estar brincando.
— Não estou! A Evelyn é de boa família. A melhor esposa que poderia ter. Você emagreceu,
mas continua bonito. Use o seu charme. Tenho certeza de que conseguirá reverter o divórcio com
o mínimo esforço.
— Eu não quero.
— O quê?
— Eu não quero. — Inês torce o nariz. É a minha vez de me debruçar em sua direção. — Qual
parte do ela me traiu a senhora não escutou? Perdoaria muita coisa em Evelyn, mas isso, eu não
consigo perdoar!
Ela dá de ombros.
— Isso acontece nos melhores casamentos. E, quando acontece, indica que a parte traída não
fez o suficiente. Basta perdoar, corrigir os erros e seguir em frente.
O meu sangue entra em ebulição.
— É assim que a senhora justifica todas as traições do meu pai?
O tapa não vem, mas sinto-o atingindo o meu rosto com força. Seus olhos azuis flamejam em
pura fúria, mas minha mãe não ergue a mão, tampouco a voz. Almoça no restaurante com
frequência. A última coisa que deseja é causar rebuliço e chamar atenção desnecessária para a
sua presença.
— Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter o casamento com o seu pai.
Consegui, ou você se esquece que apenas nos separamos quando ele morreu?
— Desculpe. Eu...
— Você deveria fazer o mesmo pelo seu casamento. Sacrifícios, Guilherme. Um bom
casamento demanda sacrifícios.
Fecho os olhos e me abstenho de responder, sendo salvo pelo retorno do garçom. Ele serve as
bebidas antes da refeição. Entorno a segunda dose de vodca antes que o prato pouse sobre a
mesa.
— Traga mais uma, por favor.
Ele assente e se afasta. Encaro o risotto de lagosta com aspargos sem qualquer apetite. Minha
mãe, por outro lado, permanece com o apetite intacto.
Comemos em silêncio. A terceira dose de vodca chega, mas mantenho-a sobre a mesa. Sei
que o assunto sobre o meu divórcio retornará, então decido mudá-lo antes que isso aconteça.
— A senhora se lembra da Aurora Silva? — pergunto.
Inês ergue o rosto. A expressão assustada desaparece em segundos, mas esteve lá. Posso estar
meio embriagado, mas não estou vendo coisas.
— Que Aurora?
— Uma amiga de infância. Não lembro ao certo, mas acho que ela era filha de uma das nossas
empregadas domésticas.
— Depois de tantos anos, por que está me perguntando?
— Porque quero lembrar. E porque Aurora apareceu na empresa em busca de uma vaga de
emprego.
Seu rosto se torna lívido.
— Ela apareceu? Ah, faça-me o favor! Não me diga que deu uma vaga a ela!
Abstenho-me de responder. Inês se remexe sobre o assento, desconfortável, mas a expressão
imperturbável logo retorna à face.
— Lembro apenas de uma empregada que insistia em trabalhar em companhia da filha. Nunca
vi tamanha falta de profissionalismo! Ela que deixasse a criança na creche! — bufa alto, antes de
continuar. — Só permiti que trabalhasse conosco por causa do seu pai. Ele insistiu, dizendo que
deveríamos ser caridosos com a situação da mulher. Insistiu, inclusive, que a levássemos durante
uma viagem à praia! Onde já se viu? Levar domésticas à praia!
Ignoro todo o seu desdém e contínuo.
— E o que aconteceu com ela?
Inês dá de ombros e espanta o ar com a mão, como se espantasse uma incômoda mosca.
— Sei lá. Sumiu, como tantas antes. Você tem funcionários, filho. Sabe como podem ser mal-
agradecidos. — O tom se torna mais sombrio. — E te aconselho a manter distância dessa Aurora.
Nada de bom virá da sua companhia.
Tamborilo os dedos sobre a mesa, sem responder. A informação não bate com o meu sonho,
tampouco é suficiente para aplacar a curiosidade. Algo me diz que a minha mãe não irá contar.
Se eu quiser ter qualquer chance de saber a verdade, precisarei perguntar a Aurora.
Deslizo a mão em direção ao copo de vodca. Como não irei perguntar, morrerei na
curiosidade. Bebo mais uma dose e sigo com o almoço. Minha mãe pede a sobremesa. Petit
gâteau, com calda extra de chocolate, a única extravagância gastronômica que se permite fazer.
Eu? Peço uma quarta dose de vodca.
Ao sairmos do restaurante, dou graças a Deus por não estar dirigindo. A cabeça rodopia, mas
consigo manter o corpo firme. A ideia de dirigir alcoolizado e pôr a minha própria vida em risco
não me causa o mínimo temor, mas odeio pensar que posso causar um acidente e tirar uma vida
inocente.
Se Inês percebe a minha alteração, não comenta. Chama o próprio motorista e dá um beijinho
de despedida nas minhas bochechas. Antes de se afastar, cochicha no meu ouvido.
— Diamantes, meu filho. Mulheres gostam de diamantes. Compre um para Evelyn. Tenho
certeza de que ela voltará correndo para os seus braços.
Encaro o seu rosto, impassível. Não gastarei um real com a Evelyn. Se ela quiser ganhar joias
revestidas com diamantes, peça ao atual. De mim, ela só receberá desprezo.
Minha mãe vai embora. Em seguida, o meu motorista chega. Entro no carro e deixo que ele
nos conduza pelos poucos quilômetros que separam o restaurante da Avenida Paulista. Ao
chegar, preciso me apoiar na lataria para não cair. Fecho os olhos com força. Estou no meio do
expediente. Não deveria ter bebido tanto.
— O senhor está bem?
— Estou ótimo — firmo a voz. — É só uma vertigem, irá passar.
Ele aguarda que eu me endireite para manobrar o carro. Sigo para o elevador, ansioso para
entrar na minha sala. Baixarei as persianas e pedirei para Dolores avisar a todos que não quero
ser perturbado.
Saio da caixa metálica e caminho em direção a recepção. Aurora sorri ao me ver. Os meus
lábios tremem. Estão um pouco enferrujados, mas ainda são capazes de sorrir de volta. Não o
faria, se estivesse sóbrio. Bêbado? Sorrio feito um bobo.
E a expressão de Aurora muda. O sorriso murcha, como uma flor abandonada ao sol. Uma dor
aflitiva cruza o rosto simpático e ela vai com a cadeira para trás, até bater com as costas na
parede. Paro onde estou, sem entender o que está acontecendo.
Até que vejo o terror nos seus olhos.
Aurora está com medo de… mim?
Capítulo 10 – Aurora

Encaro o homem à frente, sem acreditar. O sorriso é espontâneo ao vê-lo saindo do elevador.
Sinto que poderia sorrir, sem parar, toda vez que visse Guilherme saindo de onde quer que seja.
Mas escuto o arrastar dos pés. O inconfundível som do arrastar dos pés. E uma sirene apita,
frenética, na minha cabeça. Ele cambaleia. Não a ponto de precisar se segurar na parede, mas
cambaleia. Sorri de volta, mas é um sorriso bêbado.
O cheiro de álcool chega até mim, trazido por uma brisa maligna. É instintivo. Vou com a
cadeira para trás, batendo as costas na parede. De repente, tudo o que mais desejo é fugir.
Desaparecer da Alcântara Mineração para nunca mais voltar.
Guilherme para onde está e franze o cenho. Pisco, e não é Guilherme quem vejo ali. É
Osvaldo. O franzir do cenho transforma o rosto em uma carranca enquanto o corpo exala ódio.
Dá um passo adiante, abrindo e fechando os dedos, pronto para agarrar o meu pescoço e apertá-
lo até me deixar sem ar.
Solto um gemido e ergo a mão, pedindo para que não se aproxime. O gesto nunca o impediu
antes, mas talvez impeça agora. O coração martela o peito. A sirene interna não para de apitar.
Alta a ponto de me enlouquecer. Tento substituí-la pela música, mas não há sol amarelo ou
castelo capaz de me acalmar. Começo a hiperventilar. Já passei mal de manhã! Não posso passar
mal de novo!
O homem dá um novo passo. Não sei mais se é Guilherme ou Osvaldo. Só quero que ele vá
embora. Desapareça da minha frente. Suma da minha vida. Simplesmente me deixe em paz.
— Sr. Alcântara? — a voz profunda de Dolores chama.
Pisco, e Guilherme torna a se materializar. Ele também pisca, me encarando com
preocupação.
E com dor, muita dor.
— Estou aqui — responde, com a voz arrastada. Engole em seco, ciente da própria condição,
e tenta de novo: — Estou aqui! Algum problema?
— Sim! Houve um pequeno acidente na nova mina. O responsável está na linha e deseja falar
com você.
Ele fecha os olhos com força. Por um instante, Guilherme parece dez anos mais velho do que
é. Tão bonito e cheio de charme quanto agora, mas detonado pela bebida.
O homem dos meus sonhos se tornou um pesadelo.
E não me atrai mais.
Ele se afasta e cambaleia em direção ao escritório. Ouço-o pedindo para Dolores transferir a
ligação para a sua sala. Viro o pescoço, acompanhando o seu caminhar até onde a vista alcança.
Consegue firmar as passadas. Chega em sua sala cheio de dignidade, por mais que esteja bêbado
feito um gambá.
Encolho os ombros e ajusto a cadeira. O meu instinto de sobrevivência implora para que eu vá
até o setor de recursos humanos, peça demissão e fuja. Deixe toda e qualquer lembrança da
Alcântara Mineração para trás.
Mas não posso. O salário, e os benefícios, são bons demais para abrir mão. Com a minha
experiência, jamais conseguirei um emprego semelhante. Preciso me afastar de Guilherme, e
preciso ficar. Respiro fundo e volto a estudar o sistema operacional da organização.
O restante do expediente segue com tranquilidade. Por mais que o escritório não pare, a
empresa recebe visitantes com pouca frequência. Descubro um site para aprender digitação de
forma gratuita e uso o tempo livre para treinar até que o meu primeiro dia de trabalho termine.
Entre conversas e risadas, os colaboradores batem ponto e vão embora. Aguardo sem pressa.
Poucos permanecem na empresa, resolvendo as questões referentes à mina. Quero perguntar se
alguém se machucou, mas ninguém parece disposto a conversar ou rir comigo. Vou para o final
da fila, bato o ponto e me encaminho para fora.
Antes de sair, olho por sobre o ombro. A sala envidraçada de Guilherme permanece fechada,
as persianas abaixadas como uma muralha fortificada. A luz acesa transparece apenas a sua
silhueta. Ele fala ao telefone e caminha de um lado para o outro. Parece firme. Parece sóbrio. Por
um instante, permito-me sentir-me atraia.
Mas no instante seguinte lembro do que vi.
E decido manter completa distância.

Os dias passam e, aos poucos, descubro alguma coisa. Duas pessoas se feriram na mina, mas
sem gravidade. O CEO parece ter percebido o meu desconforto, e mantém distância. Ninguém na
empresa mostra-se disposto a ser meu amigo. Com exceção de Dolores, todos ignoram a
recepcionista recém-chegada.
Amigas mesmo, só as da pensão. Mesmo Teresa e Rosana se abrem, mostrando-se gentis. A
primeira trabalha como segurança de um supermercado. A segunda, como atendente em um
posto de saúde. Ambas recebem o suficiente para morar sozinhas, mas se acostumaram tanto em
ter companhia, que preferem viver ali.
Em sua voz calma e contida, Rosana pergunta se já comecei o pré-natal. Ao saber que não, se
oferece para agendar uma consulta. Aceito. Haverá um período de carência no plano de saúde da
empresa, então concordamos que serei melhor atendida pelo SUS.
Dou sorte. Consigo a primeira consulta em um sábado. Feliz por não precisar faltar no
trabalho, aguardo na sala de espera com outras gestantes. Clarice se ofereceu para vir comigo,
mas foi chamada com urgência no trabalho. Sozinha, tento não reparar nas mulheres
acompanhadas por amigas, familiares e principalmente pelos companheiros.
É estranho ter um sonho realizado pela metade. Ou, talvez, ser imaginativa demais. Sempre
pensei que, quando o momento chegasse, estaria acompanhada pelo meu marido no primeiro
ultrassom do bebê. De mãos dadas, pernas se remexendo em expectativa, o amor circulando
entre nós, ajudando a nutrir o pequeno ser em meu ventre.
A minha imaginação pode me levar para longe. Se mostrar cheia de desenhos e cores
fabulosas. Preencher todo o meu peito com fantasias, antes de me trazer para a realidade dura e
cinzenta.
As mulheres ali têm sorte. Com exceção de um homem mais fechado, os demais parecem tão
cheios de expectativa quanto eu. O mais jovem fala sem parar, feliz diante da expectativa de
descobrir o sexo do bebê, ainda que isso não seja possível no primeiro ultrassom. Sua
companheira fica pálida ao ouvi-lo dizer que não tem preferência, mas adoraria que fossem
gêmeos. Um menino, e uma menina.
Aguardo com a senha em mãos, tão ansiosa quanto ele. Leva um longo tempo até que o meu
número apareça no painel. A ginecologista não fica contente ao descobrir que aquela é a minha
primeira consulta.
Talvez a desaprovação sumisse do seu semblante se eu revelasse os meus motivos, mas
limito-me a dizer que descobri a gravidez tarde. Mesmo assim, ela mantém o profissionalismo.
Suas mãos são gentis ao medir a pressão e auscultar o meu coração, seguindo para os exames
ginecológicos. Satisfeita, me encaminha para uma bateria de exames clínicos e pede que eu
retorne quando todos estiverem prontos.
Após coletar o sangue, a enfermeira avisa que tentará me encaixar no ultrassom. Ela
consegue. Com o coração aos pulos, sigo para a sala, ansiosa diante da expectativa de ver o
rostinho do meu filho pela primeira vez.
A ultrassonografista também se mostra surpresa com a consulta tardia. Simpática que só, ri
diante da minha ansiedade, pede que eu mantenha a calma e enche a barriga com gel.
Os meus olhos ficam marejados antes que o transdutor encoste na pele. Em instantes, uma
imagem escura, enevoada e sem qualquer definição preenche o monitor.
E o meu bebê aparece.
— Você disse que está grávida de dezoito ou dezenove semanas, correto? — a profissional
pergunta. Faço as contas de cabeça e confirmo, incapaz de responder com palavras. Ela toma
algumas medidas e assente. — Pelo tamanho do bebê, é isso mesmo. Por volta de quatro meses
de gestação.
Estico o braço e, com a ponta do dedo, toco o monitor.
— Dá para saber se é menino ou menina?
— Daria, se ele não estivesse com as perninhas fechadas — brinca. Afasto a mão e ela desliga
o ultrassom. Pega um punhado de papel para limpar o gel da minha barriga e pisca, bem-
humorada. — Um bebezinho tímido! Só podemos torcer para ele mudar de posição na próxima
vez. Você tem preferência?
— Não, mas sinto que é um menino.
— Então tomara que seja.
Agradeço, pego o resultado do exame e volto caminhando para a pensão. O pôr do sol toma
conta e uma brisa suave remexe os meus cabelos, trazendo uma leve sensação de paz ao
turbilhão de pensamentos que tomam a minha cabeça.
Ao cruzar as portas do sobrado, todas me aguardam reunidas na sala, cheias de expectativas.
Só não estão mais preocupadas porque mandei uma mensagem para Clarice, avisando que iria
demorar. Abro o envelope e lhes mostro as primeiras imagens do meu bebê. Assim como
aconteceu comigo, se emocionam diante da foto preto-azulada. A imagem é quase indiscernível,
mas todas concordam: ele é lindo.
Para comemorar, Soraia pede pizza. Clarice brinca, dizendo que nunca viu a dona da pensão
tirando o escorpião do bolso para pedir comida. A outra retruca, brava que só, lembrando que
também pediu pizza no seu aniversário. Caímos na gargalhada. A alegria tem gosto de queijo,
molho de tomate e muita risada.
Mas falta algo. Por mais que eu seja grata pelas meninas, falta algo. Um abraço mais caloroso.
Palavras sussurradas com uma voz suave, mas grave. O inconfundível perfume com cheiro de
mar. Algo idealizado em uma imaginação deveras colorida. Falta o que eu jamais tive, e que
talvez jamais venha a ter.
Uma pontada de tristeza se aloja no centro do meu coração. Por mais que eu gargalhe até
chorar, permanece ali. A espreita. Pronta para avançar ao mero sinal de alegria. Lembrar que, no
fundo, não passo de uma imprestável cheia de sonhos tolos.
E os dias passam. Aos poucos, esqueço-me de olhar para trás toda vez que saio da pensão,
com medo de que Osvaldo tenha descoberto o meu paradeiro. Suas feições se tornam difusas.
Esquecíveis. Guardo as agressões fundo na mente, em um canto escuro, longe o suficiente para
que jamais precise lembrar delas.
A ginecologista receitou um remédio para o enjoo, então faço as pazes com o metrô. Passo a
chegar disposta no trabalho, sem a mínima vontade de vomitar. Aprendo a lidar com o sistema da
empresa. Aprendo até a digitar. Estou feliz, por mais que algo continue faltando.
Nunca mais dividi o elevador com Guilherme. Ele é cortês ao me ver. E hábil em se manter
afastado, como os seus funcionários. Prefiro que seja assim. O mais profissional possível. Sem
oferecer consultas médicas. Sem me lançar olhares cheios de preocupação. Sem se dar conta que
existo.
Quando dou por mim, estou há um mês longe do meu marido. Pouco depois, completo um
mês de trabalho na Alcântara Mineração. Não comemoro. Não faço nada. Descubro que, aos
pouquinhos, tenho forças o suficiente para ser livre.
Talvez eu passe a vida inteira com a sensação de que falta algo, ao mesmo tempo em que
impera a sensação de que não falta... nada.
Capítulo 11 – Guilherme

Um mês. Um maldito mês me esforçando para ignorar a presença da Aurora. E para que? Para
chegar ao trabalho e dar de cara com ela na recepção, vestida com uma camisa social branca e
uma calça de alfaiataria, exibindo sua barriga com cinco meses de gestação. A face corada,
emoldurada por longos cabelos ondulados, uma crescente confiança estampada no rosto.
Linda.
Deslumbrantemente linda.
— Bom dia — digo feito um bobo, torcendo para que ela retribua o cumprimento com um
sorriso.
Vamos Aurora, apenas um sorriso. Só preciso de um sorriso para iluminar esse dia
miserável.
Dessa vez, não fui acordado por um sonho ou um despertador. Tampouco pelo sem-vergonha
do Quindim. Minha mãe, que jamais se dignifica a ligar, decidiu que seria uma ótima ideia falar
com o filho.
Às quatro da manhã.
Acordei assustado, pensando que ela estava passando mal ou havia sofrido algum acidente,
mas nada disso. Ela decidiu tirar férias da vida como socialite em São Paulo e foi gastar a
herança do meu pai ou de qualquer outro homem em Paris. Ligou para avisar que viu um
lindíssimo par de brilhantes em uma joalheria na Galeria Lafayette que combinariam com as
orelhas da Evelyn.
Tomado por um emputecimento inigualável, desliguei o telefone na sua cara. Foi o suficiente
para que ligasse mais duas vezes. Na última, deixei que proferisse o seu sermão à mesinha de
cabeceira. Passei o restante da madrugada insone, rolando suado de um lado para o outro dos
lençóis, até levantar. Bastou colocar os pés sobre o tapete para Quindim começar o seu arranhar.
Dolores não encontrou apenas um bom adestrador para ele. Encontrou uma creche! Eu nem
sabia que existiam creches para cachorros! Segundo suas pesquisas, não é saudável para um
bicho cheio de energia passar tanto tempo sozinho, e um golden retriever precisa de mais que um
passeio ao fim do dia. Concordei e pedi que o matriculasse. A creche, com toda a certeza, seria
uma excelente opção.
Se ele não tivesse sido expulso cinco dias depois.
Segundo a proprietária, Quindim é um agente do caos. Se impõe diante dos cachorros
menores, sentindo-se o dono do pedaço. Avança nos maiores, como se já tivesse tamanho o
suficiente para enfrentá-los. Late sem parar, dispersa a turma nas sessões de adestramento, rouba
a ração alheia e, de quebra, mastiga os sapatos da equipe disciplinar.
A secretária encontrou uma nova creche. Refiz a matrícula, crente de que dessa vez ele se
adaptaria. Tirava-o do carro para o primeiro dia de “aula” quando o adestrador barrou a entrada e
o expulsou antes mesmo que começasse. A fama de Quindim o precedeu. Pelo visto, meu filhote
de cruz-credo, digo, filhote de golden retriever, permanecerá inadestrável.
Sentindo-me dentro de uma versão bizarra do Marley & Eu, voltei com o cachorro para a
cobertura e segui em direção ao trabalho, torcendo para que ele não invada o meu closet e
termine de comer os meus sapatos.
Eu já chegaria atrasado de qualquer forma, mas não esperava que um dos pneus do Audi
furasse. Mais irritado do que nunca, arregacei as mangas da camisa social e comecei a trocá-lo,
apenas para descobrir que o estepe estava murcho. Sem nenhum borracheiro ou posto de gasolina
à vista, foi necessária mais uma hora até que o seguro enviasse alguém para me ajudar.
Como dizem no jargão popular: o que é um peido para quem já está cagado? A frustração
bateu forte junto de uma insana vontade de gritar até rasgar as cordas vocais.
Ao chegar no trabalho, desejo apenas duas coisas:
Um gole de vodca.
E um sorriso da minha recepcionista.
Sei que encontrarei o primeiro na terceira gaveta da sala.
O segundo? Está desaparecido.
Aurora retribui o meu cumprimento, mas não sorri. Algo mudou desde que me flagrou bêbado
após o desastroso almoço com a minha mãe. Por quê? Eu não sei. Peguei-me pensando a respeito
disso ao longo daquelas semanas. Tenho certeza de que não fiz nada de errado, mas ao mesmo
tempo parece que fiz tudo de errado. Por algum motivo, ela decidiu erguer uma barreira entre
nós.
De início achei ótimo. Ardia de curiosidade para saber mais sobre ela, mas no fundo, era o
certo a se fazer. A promessa feita durante o sonho não passa de uma promessa vazia. Duvido que
a Aurora de carne e osso se lembre das minhas palavras. Para que ficar me martirizando? Já a
ajudei com um emprego.
Em troca, Aurora me retribui com o seu trabalho. Dolores mencionou, em mais de uma
ocasião, o quanto ela é esforçada. Chega pontualmente no horário e às vezes fica até um pouco
mais tarde. Talvez esteja passando por dificuldades para se enturmar, mas fora isso, é uma
colaboradora exemplar. O que mais eu poderia esperar?
Mas os dias passaram e eu esperei por mais. A curiosidade se tornou uma obsessão. Não
ardia: queimava. Desesperada. Consumindo o que sobrou de sanidade. O racional e o emocional
passaram a discutir com uma ênfase avassaladora. Invadindo os pensamentos a todo momento,
tomando a minha paz.
Uma parte de mim preza por distanciamento. A outra implora para que volte a sorrir.
Ao invés disso, ela troca o peso de um pé pelo outro, visivelmente nervosa ao me ver chegar.
Sou tomado por um péssimo pressentimento. Solto um grunhido baixinho antes de perguntar:
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. A Dolores acabou de ligar. Passou mal durante a noite, chegando aos trinta e nove
graus de febre. Achou que seria melhor ir ao pronto socorro.
Respiro aliviado. Isso é ruim, mas não tão ruim.
— Tudo bem. Do que me lembro, não há nada na agenda. O dia promete ser tranquilo.
Aurora morde os lábios e o pressentimento aumenta.
— O telefone tocava sem parar, então tomei a liberdade de atendê-lo. Aconteceu um segundo
acidente na mina.
Um arrepio sobe pela espinha. Ajeito a postura, entrando em alerta.
— E...?
— Dessa vez, uma pessoa se machucou. A ligação estava ruim, mas pelo que entendi, o
estado é grave. O gerente falou algo sobre uma cirurgia, mas não deu maiores detalhes.
Deixo Aurora falando sozinha e sigo correndo para a minha sala. O que mais falta acontecer
nesse maldito dia? Aperto o botão power do computador e aguardo, impaciente, enquanto a
máquina é ligada. Preciso acessar o sistema, pegar o número de telefone e descobrir como o
colaborador está.
Seguimos as regras de segurança com rigidez, mesmo assim, acidentes acontecem. Nascido e
criado em outra época, o meu pai era frio em lidar com eles. Via as pessoas como máquinas. As
“defeituosas” eram substituídas. Acidentes fatais não eram lembrados.
Não consigo ser assim. Os colaboradores confiam em mim ao descer metros e mais metros
abaixo do solo. É minha responsabilidade garantir que retornem em segurança para a superfície.
Ao longo da gestão como CEO, tive apenas uma perda. Ela tirou o meu sono por noites a fio.
Por mais que haja uma equipe especializada em gerenciamento de risco, é difícil deitar a cabeça
no travesseiro sabendo que uma pessoa teve a vida tirada por um punhado de areia e pedra.
Cada vez mais nervoso com a situação, erro a senha do computador. Solto um palavrão e
tento de novo, mas o meu cérebro parece ter sido tomado por um nevoeiro. Bufo alto, quando
escuto dois toquinhos na porta.
— Sr. Alcântara? — a voz feminina pergunta. Ergo o rosto e dou de cara com uma hesitante
Aurora. — Desculpe incomodar, mas aqui está o número de telefone.
Ela dá alguns passos e estende um papel dobrado. Solto o ar que nem notei estar prendendo.
— Obrigado. Vou ligar para ele agora.
— Tudo bem. Caso precise de alguma coisa, é só chamar.
Um sorriso, Aurora. Eu só preciso de um sorriso!
Ela ameaça, mas não o dá. Mais frustrado do que nunca, aguardo até que saia da sala para
pegar o telefone e discar os números anotados. Reparo em como a sua letra é bonita, daquelas de
caderno de caligrafia. Doce e delicada, igual a quem a escreveu.
Resisto à tentação de abrir a terceira gaveta. Por mais que seja um assunto desagradável, ele
requer total atenção, então deixo para beber mais tarde. O gerente atende à ligação e me põe a
par da situação.
Para total alívio, o rápido atendimento dos bombeiros e da equipe médica salvou a vida do
meu colaborador. Fiquei emocionado ao ouvir sua mulher ao telefone, desejando saber sobre o
estado de saúde do marido. Garanti que ele ficará bem. Alguns meses afastado, mas bem.
Também garanti que ela e a sua família não ficarão desamparados. Pelo choro ao fundo do
telefone, um bebê bastante pequeno precisa de cuidados. Estremeço da cabeça aos pés ao
imaginar a hipótese em que ele se veria separado do pai.
Deixo que a equipe de gerenciamento de risco cuide do restante da situação e foco nos demais
afazeres da empresa. As sextas-feiras costumam ser tranquilas, mas não essa. A falta de Dolores
mostra como a presença da secretária é inestimável. Eu me perco na agenda, nas ligações, em
absolutamente tudo. Aurora tenta ajudar, mas precisa cuidar da recepção.
Nem ao menos noto quando a hora do almoço chega, tampouco quando vai embora. Sigo
tarde adentro, a todo momento recebendo informações sobre a mina. Horas após o acidente, parte
dela desmorona, o que demanda ainda mais atenção.
Também falo com a secretária. Ela foi ao médico e, segundo ele, tudo não passa de uma
virose. Um final de semana em completo repouso será o suficiente para Dolores ficar bem.
O dourado da tarde se transforma no arroxeado cinzento do crepúsculo. Aos poucos, o
escritório silencia, confirmando que os colaboradores encerraram o expediente e foram embora.
Termino o que tenho para fazer e caio de costas sobre o couro da cadeira. O cansaço bate com
força. Olho para a mesa na mais completa bagunça, sem qualquer energia para arrumá-la.
Deixo para pensar nisso na segunda-feira. Ajeito-me sobre a cadeira e abro a terceira gaveta.
O cantil me observa, reluzente, do seu esconderijo no fundo dela. Seguro o metal frio entre os
dedos, abro a tampa e tomo um longo gole. A bebida não relaxa os meus músculos, mas me
aquece por inteiro. Por hora, é o suficiente.
Estico o braço livre, pronto para desligar o computador, mas sou acometido por ela: a maldita
curiosidade. Porra, como não pensei nisso antes? Há outro jeito de saber mais sobre Aurora
Silva! Pesquisando sobre a sua vida na internet!
Ciente de que talvez ela não tenha um perfil nas redes sociais e que essa seja a conduta de um
stalker, digito o endereço do site do Instagram. O meu próprio perfil não é dos melhores. Meia
dúzia de fotos, todas acompanhado por Evelyn. Encaro o monitor, impassível, deletando uma a
uma. Se eu tivesse lembrado, teria deletado antes.
O meu dedo para sobre a última. Estamos em um suposto jantar romântico e Evelyn me
presenteia com um sorriso. Daqueles que não chegam aos olhos. Tão falso e mentiroso quanto
tudo o que veio dela.
Deleto a foto, mas uma curiosidade se sobrepõe a outra. O velho pressentimento retorna, mais
forte do que nunca, mas o ignoro. Clico na pequena lupa, digito o nome de Evelyn e acesso o seu
perfil.
A primeira foto esmurra o meu peito. Por sorte, não há nada mais a sangrar, senão eu teria
uma completa hemorragia. De forma automática, clico sobre a imagem, deslizando os olhos por
cada minúsculo pixel dela. Não, não e não!, a minha mente sussurra ao mesmo tempo em que
brada: Sim, sim e sim!
Na imagem de corpo inteiro, uma Evelyn vestindo apenas um top magenta e uma calça preta
soltinha encara o namorado. Ele é tão alto quanto eu, capaz de encará-la de cima. Dessa vez, o
sorriso da mulher é sincero. Encharca os olhos emocionados. Olhos que jamais me olharam com
tamanha paixão.
Eu deveria fechar o site e desligar o computador, mas não. Permaneço dentro da rede social.
Deixo que me intoxique mais um pouco. Desço os olhos pela imagem, até alcançar as mãos
entrelaçadas sobre a discreta curva na barriga. Quase imperceptível, mas ali. Enfatizada pela
polaroid de um ultrassom. Como se não bastasse, leio a legenda.
Grávida.
Após permanecer anos dizendo que preferia focar na carreira, Evelyn conhece outro homem e
instantaneamente está grávida. Apoio os cotovelos sobre a mesa, afundando o rosto nas mãos,
contendo a vontade de gritar.
Ela está pronta para formar sua família com outro.
Eu permaneço sem a minha.
Começo a tremer. Com tanta violência que chacoalho a mesa. Nesse momento, não existe
altruísmo capaz de me fazer sentir felicidade por ela. Anos e anos em que vi as pessoas a volta
casando e tendo filhos. Vivendo o que sempre desejei. A dolorosa recriminação por segurar o
bebê do seu melhor amigo e pensar: gostaria de ter um igual. Saber que era apenas questão de
tempo. Que em breve, chegaria a minha vez.
Mas ela nunca chegou.
Volto a me endireitar e respiro fundo. O gosto amargo da frustração inunda a boca. Duvido
que será sobrepujado por outro, tão marcante quanto, mas preciso tentar. Um gole não foi o
suficiente. Preciso de mais. Muito mais.
Volto a segurar o cantil e bebo todo o seu conteúdo em longos e frenéticos goles. Sem me
importar com nada, a não ser esquecer esse maldito dia de merda.
Capítulo 12 – Aurora

Caminho de um lado para o outro da recepção. Todos os colaboradores foram embora. A


menos que haja alguém escondido dentro das inúmeras salas em plena sexta-feira, só restou eu e
Guilherme.
Eu também poderia ter ido, mas preferi ficar além do expediente. Desdobrei-me em duas para
dar conta do trabalho da secretária executiva. Cheguei a ligar para Dolores, pedindo orientação.
Sentindo-se melhor após ser medicada, prontamente me ajudou. O dia teria sido tranquilo, não
fosse o acidente ocorrido na mina.
Tiro o celular da bolsa e confiro as horas. Quase oito da noite. Avisei na pensão que iria
demorar, mas não pensei que fosse demorar tanto. O telefone da empresa se mantém silencioso
há pelo menos uma hora. Talvez tenha chegado o momento de me despedir de Guilherme e ir
para casa.
Caminho em direção a sua sala, estranhando a quietude vinda dela. As persianas abaixadas
escondem o seu interior, mas a silhueta do CEO pôde ser vista durante todo o dia caminhando de
um lado para o outro. Sua voz grave soava aflita pela porta. Não deve ser fácil receber a notícia
que um colaborador sofreu um acidente sob sua responsabilidade.
Bato na porta e aguardo, estranhando o absoluto silêncio vindo do outro lado. Um arrepio
percorre todo o meu corpo e o alarme interno começa a soar. Baixo, mas com potencial para
explodir ao mínimo sinal de perigo.
Bato de novo, e o arrepio se torna mais acentuado. E se aconteceu alguma coisa com o
Guilherme? Fecho os dedos sobre a maçaneta, indecisa entre abrir a porta ou chamar a polícia.
Mas, para chamá-la, primeiro preciso saber o que aconteceu.
Não aconteceu nada, penso. Ele só está ocupado. Concentrado no trabalho a ponto de nem me
ouvir bater. Respiro fundo e giro a maçaneta. A porta se abre devagar, sem emitir qualquer ruído.
Espicho o olho em direção a mesa e o coração falha uma batida.
Guilherme está caído com os braços esticados sobre a madeira escura. Os cabelos em
desalinho e o rosto afundado em uma pilha de papéis impede que eu veja a sua expressão, mas
ele parece estar dormindo.
Ou morto.
Oxe, pare de ser tola! O dia foi tão estressante que ele adormeceu sobre a própria mesa! Só
isso!, digo a mim mesma. Basta acordá-lo e pronto!
Adianto-me alguns passos para fazer isso, mas sinto os sinais. O inconfundível cheiro de
álcool. Azedo. Pungente a ponto de fazer o meu estômago revirar. Paro onde estou, sem
acreditar, e vejo a garrafa.
Ou melhor, as garrafas.
Uma é pequena. Um cantil de aço inox, virado sobre as canetas espalhadas em torno do corpo
inerte de Guilherme. A outra é maior. De vidro e com aspecto caro, com uma pequena poça de
bebida esquecida em seu interior. Guilherme devia estar bebendo quando caiu sobre a mesa e ela
escorregou dos seus dedos. Toco a garrafa com a ponta do sapato. Em letras azuis, grandes o
suficiente para que qualquer pessoa possa ler, está escrito vodca.
O alarme soa com força e o instinto faz com que eu dê um passo para trás. Pronta para me
virar e desaparecer. Talvez, para nunca mais voltar.
Mas paro no meio do caminho. E se o Guilherme não estiver mesmo dormindo? Encaro o seu
corpo com atenção. As costas largas sobem e descem bem devagar. Vivo ele está, só não sei por
quanto tempo.
O barulho dentro da minha cabeça se torna insuportável. Encaro o meu chefe, sem saber o que
fazer, mas ciente de que não posso deixá-lo assim.
A primeira opção é ligar para a emergência, mas algo me diz para não fazer isso. Corro os
olhos pela mesa, em busca do seu celular. Tentarei encontrar algum amigo ou familiar que possa
ajudar.
Encontro o aparelho debaixo do seu antebraço. Estico os dedos, pronta para puxá-lo, mas
Guilherme se mexe. Ergue a cabeça, os olhos injetados completamente fora de foco, e todas as
péssimas lembranças ressurgem em um turbilhão.
Dou um passo para trás.
E Guilherme sorri.
— Oi, moça bonita! — diz, tentando se ajeitar na cadeira. Bêbado como está, as palavras
soam mais como um “Oieee, mouuuça buniiita”. Franzo cenho e ele ri antes de continuar. —
Tudo bem?
— Ah... — engulo em seco, o cérebro atordoado diante da sua expressão abestalhada. —
Tudo, e com você?
— Tudo ótimo! — ele vibra, animado.
Até que a mudança acontece.
É tão brusca que chega a ser inacreditável. De um segundo para o outro, o rosto sorridente se
contorce em um doloroso esgar. Um gemido sofrido cruza o escritório, mas ele logo volta a
sorrir. O álcool contido em sua respiração envolve-nos em uma densa névoa, fazendo os meus
olhos lacrimejarem. Dou um novo passo para longe. Ele acompanha o meu movimento e encolhe
os ombros.
— Ninguém me ama, moça bonita — sussurra de forma quase ininteligível. — Ninguém,
absolutamente ninguém.
O instinto pede que eu me afaste ainda mais, mas não consigo.
— Ama, sim — tento consolá-lo.
Guilherme endireita o corpo e olha fundo nos meus olhos. Suas íris castanhas, sempre tão
quentes quanto chocolate derretido, encheram-se de opacidade. Ele pisca, e um par de lágrimas
desliza pelo rosto, até se esconder na barba curta e bem cuidada.
— Não, não me ama.
O tom de voz é categórico. Firme, como se estivesse sóbrio. Triste, como se estivesse com o
coração partido. Abro a boca, mas me faltam palavras. Nos últimos dias venho me sentindo
exatamente como ele. Pequenos momentos sombrios em que me pergunto: será que encontrarei o
meu felizes para sempre, ou fui colocada na terra apenas para sofrer?
De repente, tão rápido quanto veio, o choro desaparece e Guilherme volta a sorrir.
— Oi, moça bonita!
Misericórdia, eu preciso de ajuda!
Pego o celular e, por sorte, preciso apenas de uma digital para desbloquear a tela.
Mas, para isso, precisarei chegar próximo o suficiente para segurar a sua mão. Eu deveria ter
ligado para a emergência, não insistido nessa bobagem. Poderia estar sentada na recepção,
esperando por ajuda, não aqui, lidando com um bêbado.
Guilherme apenas me observa. Uma leve curiosidade infantil toma conta do seu rosto. Ele
nem ao menos parece alcoolizado. Parece apenas um homem... comum. Respiro fundo e me
aproximo, estendendo o celular.
— Desbloqueie, por favor.
Ele encara o aparelho e começa a rir.
De súbito, seguro a sua mão e, dedo a dedo, tento desbloquear o celular. Consigo com o
polegar. Tão logo o acesso é liberado, me afasto e clico sobre o ícone do WhatsApp, procurando
entre os contatos. Preciso de alguém com quem mantenha uma conversa constante e, de alguma
forma, pareça seu amigo.
A foto de um cara loiro chama a minha atenção. Como não chamar? Mesmo em miniatura, o
homem parece o ator que interpreta o Thor!
Ergo a cabeça ao ouvir um estrondo. O meu chefe tentou se levantar, e pelo visto, não
conseguiu. Pisca onde está, sentado meio desajeitado sobre a cadeira estilo presidente, e volta a
rir feito um lunático.
Afasto-me mais um pouco e invado a sua privacidade. O tal do Alexandre fala sobre
marcação de jogos de tênis, manda uma ou outra foto das filhas e o convida para jantares com a
família. Se aquela não é uma conversa entre amigos, eu não sei o que é. Sem pensar mais, clico
sobre o desenho do telefone e inicio a chamada. Ela é atendida instantaneamente.
— Oi, Guilherme! Estava para te ligar e...
— Desculpe, mas não sou o Guilherme — corto, tentando conter o desespero. Alexandre para
de falar na mesma hora. — O meu nome é Aurora Silva. Sou a nova recepcionista da Alcântara
Mineração.
— Aconteceu alguma coisa com ele? — toda a vivacidade desaparece. Encaro o homem
bêbado à minha frente. Agora, ele balbucia palavras desconexas.
— Aconteceu, mas não sei bem o que. Só sei que ele está bêbado.
— Ele o que?
— Está bêbado — repito. Guilherme volta a rir, apenas para enfatizar. — Tem uma garrafa de
vodca vazia no chão. Acho que ele bebeu tudo.
— Eu não acredito nisso! — Alexandre resmunga, soltando o ar com força. — Estarei aí em
quinze minutos.
E desliga, sem se despedir. Travo a tela do celular e encaro o meu chefe. Ele me encara de
volta com o semblante doce.
Mesmo assim, não estou disposta a vacilar. Devagar, um passinho por vez, recuo até chegar
próxima a porta. Guilherme me observa, inquieto.
— Eu já volto. Só vou buscar um copo d’água — tento tranquilizá-lo. Ele sorri e assente.
Cruzo o batente e, com cuidado, retiro a chave pendurada do lado de dentro da fechadura antes
de trancar a porta.
Os indícios estavam todos ali. Desde o dia em que o vi chegando alterado após o almoço.
Assim como o meu marido, Guilherme também é um alcoólatra.
Ao invés de voltar para a recepção, fico andando de um lado para o outro em frente a sua sala.
Não consigo ver o que faz lá dentro, mas as risadas cessaram, fazendo com que um silêncio
sepulcral caia sobre o escritório.
Estou quase abrindo a porta para verificar como ele está quando o elevador apita de leve,
avisando que chegou no andar. Corro até a recepção e prendo o fôlego.
O amigo de Guilherme realmente parece o Thor!
Ele sai da caixa metálica com o ar decidido. Alto e imponente dentro de um terno escuro,
chega onde estou em três passadas largas. As frias íris azuis, claras como geleiras, não perdem
tempo me avaliando. É visível o quanto está irritado com o amigo.
— Onde ele está?
— Dentro da sala — encolho os ombros. — Eu fiquei com medo e o tranquei lá.
Isso o desarma.
— Mas o Guilherme não faz mal para ninguém...
— Desculpe, mas não quis arriscar.
O homem, enfim, decide se demorar sobre o meu rosto. A intensidade do olhar é tamanha que
parece ver partezinha de pele exposta como se lesse a minha alma.
— Não tem problema — diz, por fim. — Você poderia abrir a porta?
Faço que sim e, juntos, nos dirigimos até a sala da presidência. Coloco o pequeno objeto de
metal na fechadura e giro a maçaneta. Para o meu alívio, Guilherme está do jeitinho que o deixei.
Os seus lábios se abrem em um sorriso ao me ver.
— Oi, moça bonita! — O semblante endurece assim que Alexandre dá um passo adiante. A
voz, outrora simpática, se torna pouco amigável. — Quem é você?
— A situação está pior do que eu imaginava — Alexandre reclama baixinho. Passa a mão
pelo rosto, bagunçando os cabelos loiros. — Sou eu, Guilherme. Vamos para casa?
— Não.
O homem revira os olhos.
— Vamos, sim! — diz, meio impaciente, agarrando o seu braço.
A reação é instantânea. Com uma agilidade impressionante para quem tomou uma garrafa
inteira de vodca, Guilherme avança sobre Alexandre.
Mas o movimento possui pouca coordenação motora, fazendo com que a cadeira vá para trás.
Guilherme cai, batendo com a lateral da cabeça na madeira. Solto um grito estridente quando o
sangue escorre e os homens caem um por sobre o outro. Seus gritos se misturam aos meus. Um
de dor, o outro de raiva.
A voz de Alexandre sobressai:
— Me solta! — diz, se erguendo. — Vamos logo para casa!
— Não! — Guilherme repete, tentando se endireitar. Sua cabeça surge por cima da mesa,
metade da face coberta por fios de sangue. — Não vou!
— Vai sim! — o outro retruca, conseguindo se levantar. — Olha só para você, bêbado de
novo!
— Eu não estou bêbado — resmunga, apoiando os braços. Tenta se içar, mas não consegue,
caindo de bunda no chão.
A cena é patética. Causa a mais pura aflição. Não só em mim, mas também em Alexandre. Ele
coloca as duas mãos na cintura e observa o amigo caído. Guilherme tenta se levantar de novo,
sem sucesso.
Para a minha surpresa, ele também parece incomodado com a situação. Tenta de novo e de
novo, sempre voltando ao chão. Sua risada desapareceu. No lugar, grunhidos frustrados. Respira
fundo entre uma tentativa e outra, mas falta-lhe ar. Cansado, abaixa a cabeça e desiste.
Alexandre abre a boca. Não sei se para insistir no retorno para casa, ou se para fazer um
sermão. Ele parece ser o tipo de cara sério o suficiente para sempre fazer um longo sermão.
Porém, suas palavras são atropeladas por outras. Bastante límpidas para quem, a pouco, enrolava
a língua ao emitir uma simples frase.
— Ela está grávida.
Alexandre olha de soslaio para mim.
— Sim, eu percebi.
— Ela está grávida — repete. O homem me olha com mais atenção. Encolho os ombros, sem
entender. Guilherme sabe que estou grávida e isso nunca foi um problema.
Uma luz se acende nos límpidos olhos azuis. Devagar, Alexandre mira o monitor do
computador. Uma luzinha laranja pisca na lateral da tela, indicando que ele está ligado. O
homem move o mouse, inundando o espaço com a imagem de um casal segurando a imagem de
um ultrassom.
— Ah, meu Deus — murmura. Aos seus pés, Guilherme começa a chorar.
— Quem são eles? — espio pela lateral do seu braço.
— O homem eu não sei — solta um longo suspiro. — Mas a mulher é a ex-esposa do
Guilherme.
Capítulo 13 – Aurora

Alexandre volta a sondar o meu rosto, tentando decidir até onde pode contar. Ou não me acha
confiável o suficiente, ou decide manter o segredo do amigo consigo. Gosto ainda mais dele por
isso. Odiaria que uma amiga querida contasse o meu segredo a alguém.
Isso confirma o que eu sempre suspeitei: Guilherme foi casado. E a mensagem é clara. Só um
homem apaixonado chora compulsivamente pela mulher que o abandonou para engravidar de
outro. Não sei o que aconteceu. No meu íntimo, talvez não queira saber.
Mas sei que ele ainda a ama.
Sou preenchida por uma sensação estranha. Estremeço só de pensar em me relacionar com
outro homem que bebe ao ponto de perder os sentidos sobre a mesa do trabalho, mas a sensação
de ciúmes pelo que nunca tive predomina.
Alexandre estende a mão, tentando erguer Guilherme. Dessa vez, ele aceita a ajuda. Com um
último grunhido, se põe de pé, sem forças para se manter assim. Está caindo de novo quando o
amigo passa o braço por debaixo das suas axilas e o mantém ereto.
— Você se incomoda em me acompanhar até o carro? — pergunta.
Penso por um instante. Quero ir embora para descansar durante todo o final de semana e
pensar na empresa apenas na segunda-feira, mas não consigo ser tão fria. Alexandre jamais lidará
com a situação sozinho. Alguém precisa fechar portas, segurar elevadores e ajudar.
Esse alguém precisa ser eu.
Nego com a cabeça, indicando que não me incomodo. O alívio é palpável. Devagar, começa a
arrastar Guilherme para fora. O bom-humor voltou, fazendo com que sua risada se espalhe por
todo o escritório. Lanço um último olhar para a sala.
— Vamos deixá-la assim?
— Ah, vamos! — Alexandre diz sem nem pensar. — Ele que lide com isso depois.
Sigo-o, fechando portas e desligando luzes. Guilherme hesita diante do elevador, mas a
paciência do loiro está acabando. Empurra o amigo para o interior da caixa metálica, ignorando
seus protestos. Agora sou eu quem hesito, sem saber se quero dividir o espaço com um homem
tão bêbado, mas Alexandre me lança um olhar suplicante. Respiro fundo e o acompanho.
Ao chegarmos na garagem, indica um imenso carro com o queixo. Adianto-me para abrir a
porta, temendo que o alarme soe por todo o espaço, mas ele está desligado. Guilherme faz
menção de fugir, mas é empurrado para dentro do banco traseiro e reclama quando o amigo
passa o cinto de segurança pelo seu peito.
— Não precisa disso.
As palavras saem como “Naummm precisa diussooo”, mais arrastadas do que nunca ao
destravar o fecho do cinto. Penso que Alexandre vai dar um tapa na sua mão, mas ele se contém.
Respira fundo e o prende de novo. Guilherme repete o gesto, soltando o cinto. O rosto pálido do
homem sóbrio é tomado por um tom escuro de vermelho.
Desse jeito ele não lhe dará um tapa.
Dará um soco.
— Chega, Guilherme! — digo, firme. De onde essa firmeza saiu? Não faço a mínima ideia.
— Tire a mão daí, agora!
O meu chefe encara o meu rosto e... sorri. Os dedos em torno do cinto se afrouxam sobre o
colo, entrelaçando as mãos como um menino comportado. Dessa vez, o cinto permanece preso.
— Ótimo! — Alexandre resmunga, fechando a porta. — Você vai me pagar, Guilherme! Vai
me pagar muito caro!
— Ele sempre faz isso? — pergunto.
O meu chefe tomba a cabeça de lado, batendo a cabeça no vidro fechado, mas não cai no
sono. O filete de sangue secou, não antes de manchar parte da camisa branca. Reparo que o terno
de Alexandre também está manchado, mas não sou eu quem irá avisá-lo disso.
— Desse jeito, é a primeira vez. Eu não sei nem ao menos o que fazer. Pensei em levá-lo para
casa, mas não quero que as minhas filhas vejam o tio nessa situação. Preciso levá-lo para a
própria cobertura — olha para mim, suplicante. — Sei que está ficando tarde, mas você poderia
me acompanhar? Estou com a sensação de que ele não vai colaborar se eu for sozinho.
Hesito. Por mais confiável que Alexandre pareça, não o conheço. Independente disso, já lidei
com homens bêbados o suficiente para uma vida inteira. Só quero ir para a pensão e esquecer
essa sexta-feira.
O sentimento de retribuição predomina. Ele, e um outro. Que sempre esteve ali, à espreita.
Capaz de agitar hormônios de despertar libidos adormecidas, mas mais poderoso. Que não se
preserva, nem diante de uma ameaça. Forte o suficiente para me fazer suspirar e confirmar com a
cabeça.
— Posso sim. Só preciso avisar em... casa.
Quase digo pensão. Não haveria vergonha nisso. Pelo contrário. Fico feliz em perceber que
sinto como se o espaço fosse, de fato, a minha casa. Só não quero que um homem desconhecido
saiba disso.
— Tudo bem. — Ele abre a porta da frente, o alívio estampado no rosto bonito.
Agradeço a gentileza e me sento no banco do passageiro. Logo Alexandre toma o seu lugar
diante do volante e acelera para fora do prédio. Segundo ele, são apenas quinze minutos até a
cobertura. Tiro o celular da bolsa, assustada com a quantidade de mensagens preocupadas de
Clarice, Matilde e até da Soraia. Acalmo a todas, avisando que estarei na pensão em breve.
No tempo exato, chegamos no prédio que abriga a cobertura do meu chefe. Ergo o rosto para
cima, tentando não me assustar com a opulência do lugar.
Pelo visto, a presença de Alexandre também é constante ali. Basta uma rápida conversa para a
entrada do veículo ser liberada. Ele sabe qual é a vaga do amigo, estacionando ao lado de um
elevador. Respira fundo antes de sair do carro, sabendo o martírio que o espera.
Para a nossa sorte, Guilherme se mostra dócil. Trôpego e sem conseguir se manter em pé
sozinho, mas dócil. Cantarola baixinho ao ser puxado para fora, entrando no elevador sem causar
estardalhaço.
Subimos direto, saindo em um saguão privativo. Alexandre digita uma sequência de números
na fechadura eletrônica e, com um aceno de cabeça, pede que eu abra a porta.
Para mim, é como entrar em um universo visto apenas nas novelas favoritas das minhas
colegas de pensão. Encaro a sala, embasbacada com os sofás cheios de almofadas, o tapete de
aspecto macio, a televisão do tamanho de uma tela de cinema. Cortinas brancas farfalham ao
fundo, expondo a vista noturna de toda a cidade.
Um latido corta a quietude do espaço e um cachorro sai debaixo das almofadas do sofá,
avançando em nossa direção. Parece um filhote, mas é grande como um adulto. Dou um passo
para trás, esbarrando em Alexandre. Ele, por outro lado, não está alarmado.
— É o Quindim. Pode ficar tranquila, ele é bonzinho.
Para provar, o cachorro se senta e abana o rabo freneticamente. Estendo a mão, permitindo
que ele a cheire, mas Quindim pula essa etapa. Lambe os meus dedos com vontade, enfiando a
cabeça entre eles, pedindo carinho.
Eu me apaixono no mesmo instante.
— Esse cachorro é um sem-vergonha. — Guilherme resmunga, caindo na risada. Olha para
Alexandre. — Você também é um sem-vergonha? Aposto que é.
O coitado do homem volta a ficar vermelho. Se antes de raiva, agora de vergonha. Sem dizer
nada, continua arrastando o amigo. Sigo-os, acendendo luzes e abrindo portas arranhadas.
Quindim, pelo visto, não gosta de ficar sozinho na sala.
Tento não reparar na opulência da suíte do meu chefe, principalmente em como a cama é
grande, os lençóis parecem sedosos e os travesseiros macios. Guilherme começa a se remexer.
Alexandre é um pouco mais corpulento, mas carregar um homem adulto por tanto tempo está
cobrando seu preço.
Ele o arrasta para o box do banheiro, mas é arrastado de volta. Guilherme balbucia coisas
ininteligíveis. Mantenho-me afastada, temendo que ambos se tornem agressivos. Quindim se
aconchega na lateral da minha perna e geme baixinho. Algo me diz que ele está acostumado a
encontrar o dono assim.
— Porra, Guilherme! Colabora! — Alexandre, enfim, perde a paciência. — O que você quer?
— Estou enjoado.
Eu e o loiro nos entreolhamos. Em questão de segundos, o meu chefe cai de joelhos e se
debruça sobre o vaso sanitário. Alexandre olha para o outro lado, enojado. Eu só consigo sentir
pena.
— Acabou? — pergunto, quando os sons cessão e ele ergue a mão trêmula para dar a
descarga.
Guilherme faz que sim e tenta se levantar. Está quase caindo, mas Alexandre o segura pelo
colarinho da camisa ensanguentada e o arrasta para o box.
Sem a mínima pena, posiciona o amigo debaixo do chuveiro e abre a água gelada. Guilherme
grita e tenta se afastar, mas não consegue. Sua energia parece ter sido levada pelos resíduos na
privada.
Por mais caótica que a situação seja, tento não reparar na camisa colada em seus ombros
largos, no peitoral forte ou nos gominhos do seu abdômen, mas a tarefa se mostra impossível.
Ainda mais quando Alexandre começa a tirar a sua roupa.
— Acho que é me-melhor pegar um pi-pijama— balbucio, sem saber muito bem o que fazer.
O homem é hábil em notar o meu constrangimento.
— Dará muito trabalho vesti-lo. Só pegue duas ou três toalhas no closet, por favor.
Com Quindim em meus calcanhares, vou ao quarto e abro a porta que suponho ser do closet.
Tento não reparar que metade dele esteja vazio e procuro as toalhas. Volto correndo para o
banheiro, em tempo de ver os dois lutando com a calça molhada. A curiosidade pede que eu
fique e ajude, mas o bom senso predomina. Retorno ao quarto e espero que saiam.
Alexandre surge ensopado da cabeça aos pés, carregando Guilherme enrolado nas toalhas.
Afasto os lençóis, dando-lhe espaço para se deitar.
O homem cai, largado como um saco de batatas. A pele pálida tomada por minúsculas
gotinhas e os cabelos molhados ameaçam encharcar o travesseiro. Sem nem pensar, adianto-me
em secá-los, preocupada que pegue um resfriado. O seu gemido preenche o quarto ao passar a
toalha pelo corte na lateral da testa.
— Será que precisará de pontos... — começo a dizer, quando dois dedos tocam o meu rosto.
O alarme volta a soar. Mais alto do que nunca, tornando-me surda para qualquer outro som.
Estremeço, pronta para fugir, porém continuo parada.
Os dedos não açoitam. Eles acariciam a lateral do meu rosto com ternura e curiosidade.
Guilherme me encara nos olhos. Parte de névoa se dissipou, devolvendo o bonito tom castanho
das suas íris.
— Um sorriso, moça bonita. Só peço que me dê um sorriso.
Franzo o cenho, ainda alarmada, incapaz de acatar o seu pedido, mas ele não parece se
importar. Fecha os olhos, vira para o lado e cai no sono.
— O que foi isso? — sussurra Alexandre.
Afasto-me da cama, levando as mãos ao local onde Guilherme me tocou.
— Eu... não sei.
Ele me encara, mas não tece maiores comentários. Parece exausto, saído de uma batalha. Pelo
visto, tem esposa e filhos. Ele, nem ninguém, deveria passar por isso. Muito menos o próprio
Guilherme.
— Você mora longe? — pergunta, tomando uma toalha para si. Seca os cabelos enquanto faço
que sim, depois que não, depois que sim.
— Na realidade, não sei dizer.
— Não tem problema. Eu te levo para casa.
— Mas e o Guilherme?
Seu olhar azul cai sobre o amigo inerte entre os lençóis.
— Seria melhor que alguém ficasse com ele, mas preciso ir. As minhas filhas estão resfriadas.
Uma delas é uma bebê de colo. Não posso deixar a minha esposa sozinha com elas.
Também olho para Guilherme. Pelo visto, ele acordará só de manhã. Mesmo assim, não acho
seguro que fique sozinho. Troco o peso de um pé para o outro, sem saber o que fazer.
Alexandre percebe.
— Você não tem obrigação.
— Eu sei... — encaro o seu rosto —, mas vou ficar. Posso dormir no sofá. Ele parece grande o
suficiente para me abrigar.
Quindim late, como se dissesse “A mim também!”.
Alexandre me encara de volta. Tento me manter firme, mas é difícil fazer isso quando íris tão
azuis analisam a sua alma. O olhar para sobre a minha barriga. Gostaria de desvendar o que se
passa na sua cabeça, mas não consigo.
— Você tem certeza? — pergunta baixinho.
— Tenho. Eu só... — engulo em seco, sem saber como continuar. — Eu só preferia que o
Guilherme ficasse trancado no quarto.
Ele assente, sem qualquer julgamento.
— Faça isso. E fique no quarto de hóspedes, não no sofá.
Deixamos Guilherme dormindo e trancamos a porta do lado de fora. Confiro três vezes, todas
sob uma intensidade gélida, e sigo Alexandre até o quarto ao lado. É menor que a suíte principal,
mas ainda imenso. Quindim se antecipa e pula na cama, o rabo abanando de um lado para o
outro. Solto uma risadinha e faço um cafuné na cabeça do cachorro.
— Ele é muito fofo!
Pela primeira vez, o homem esboça um sorriso.
— Ele é — pega uma caneta e um bloquinho de papel sobre o aparador e anota um número.
— Tome. Esse é o meu número pessoal. Se o Guilherme acordar no meio da noite, me ligue. Não
importa a hora, apenas me ligue.
— Pode deixar.
— Obrigado, Aurora — começa a sair do quarto, mas olha por sobre o ombro e diz, bem
baixinho: — O Guilherme tem sorte em ter você.
Ele não acrescenta o “como recepcionista”. Mantém a frase em aberto, como se a sorte
englobasse todo o meu ser.
Não respondo. Não sei o que responder. Apenas espero que vá embora para me trancar na
cobertura. Quindim acompanha os meus passos como uma simpática sombra, até que percebo
que o coitado do cachorro deve estar morrendo de fome.
Encho a sua tigela de ração e envio uma nova mensagem para a pensão. Todas se mostram
preocupadas, mas garanto que ficarei bem. Amanhã de manhã, estarei de volta a minha casa.
O meu estômago ronca, enfatizando que também preciso me alimentar. Vasculho a geladeira e
o armário da cozinha de Guilherme, surpresa com a variedade de comida disponível em sua
cobertura. Eu me atentaria ao básico, não fosse o pote de geleia de laranja-cravo.
A vontade vem com tudo. Com dificuldade, abro a tampa metálica e inspiro o delicioso aroma
cítrico. Passo generosas porções em duas fatias de pão integral, faço uma rápida refeição e vou
para o quarto de hóspedes, deixando o pote pela metade.
Antes, passo pela suíte. Encosto o ouvido na porta, mas nenhum som sai dela. O meu chefe
continuará apagado até a manhã seguinte.
Quindim me acompanha. Pula sobre a cama e aguarda com o rabo abanando. Deito sobre os
lençóis e ele se enfia entre os meus braços. Rio, encantada com tamanha doçura, e me aconchego
em seu pelo macio. Fecho os olhos, ciente de que também só acordarei na próxima manhã.
Capítulo 14 – Guilherme

Pisco, sentindo o raio de luz como um laser sobre o meu rosto. Encolho-me entre os lençóis e
um gemido escapa dos lábios rachados. Parece que fui atropelado por um caminhão e largado
para morrer no meio do deserto. A língua se transformou em uma imensa esponja seca e a
garganta se esqueceu do límpido sabor da água. Todo o meu corpo dói.
O leve bater metálico do lado de fora do quarto soa como o estrondo de um trovão. Volto a
me encolher. Há meses convivo com os efeitos adversos de se beber tanto, mas poucas vezes
acordei com tamanha ressaca.
As lembranças do dia anterior tomam forma no meu cérebro letárgico. Enfio-me mais fundo
entre os lençóis. Todo o amor que um dia senti por Evelyn morreu no momento em que ela
confessou a traição. Vê-la com o namorado não me machuca, mas vê-la grávida sim. O sonho
que foi negado a mim, compartilhado em tempo recorde com outro. Mais uma prova de que tudo
o que vivemos ao longo de anos de casamento não passou de uma farsa.
Eu só queria poder fazer igual aquele filme do Jim Carrey. Retirar Evelyn e todas as
lembranças relacionadas ao meu casamento da memória para começar de novo com a mente
limpa, sem mágoas e desilusões.
Um novo estrondo penetra no meu cérebro e enfatiza que a realidade é cem vezes mais dura
que a ficção. Eu nem ao menos faço ideia de como cheguei em casa. Só sei que bebi todo o
conteúdo do cantil. Depois, a garrafa de vodca que mantinha de reserva. Em algum momento ela
caiu da minha mão, e cai junto dela. De resto: nada.
Aos poucos a razão começa a tomar conta. Franzo o cenho, o rosto ainda escondido nos
lençóis. O som parece o de uma panela batendo contra a boca de um fogão. O meu cachorro é
esperto, mas não a ponto de se erguer sobre as patas traseiras e cozinhar o café da manhã. Há
alguém, além de mim, na cobertura.
A questão é: quem?
Não é a minha mãe. Ela jamais se dignificaria a tal. Talvez seja o Alexandre. Ele tem as
senhas das fechaduras eletrônicas, assim como tenho cópias das chaves da sua casa. Caso um de
nós precise de ajuda, e o outro esteja impossibilitado de atender a porta. Mas por que ele estaria
na cozinha? Não faz o mínimo sentido.
Um terceiro estrondo, seguido de um latido. Decido me levantar. Com um doloroso gemido,
coloco os pés para fora da cama. Enrolo-me melhor nos lençóis e, pelado mesmo, caminho em
direção a porta.
Abro-a o suficiente para espiar. Uma voz feminina conversa com Quindim, que torna a latir.
Inspiro fundo, sentindo o delicioso aroma de café forte e ovos mexidos.
Saio do quarto e a luz castiga o meu cérebro, penetrando fundo como ameaçadoras agulhas,
mas ignoro a dor. Continuo caminhando, pé ante pé, até chegar na cozinha.
Pisco, embasbacado. Aurora vira a frigideira, fazendo com que a panqueca dê um giro
completo no ar. Quindim pula a sua volta, feliz com a brincadeira, e com a possibilidade de
ganhar uma panqueca inteirinha. A mulher ri, espalhando sua alegria pela cobertura cinzenta.
Reparo que usa a mesma roupa do dia anterior, os cabelos compridos presos em um coque
frouxo. Mesmo assim, mostra-se descontraída, como se pertencesse ao meu lar.
Ela coloca a panqueca pronta sobre uma pilha ordenada e joga mais massa na frigideira. O
cachorro continua rodeando o seu corpo, ávido para comer qualquer coisa que caia no chão. A
mulher espera, paciente, até o momento em que a massa fique pronta para virar. Espero também,
como um maldito stalker. A visão é encantadora demais para ignorar.
Ao chegar no ponto correto, Aurora segura o cabo da frigideira e impulsiona a mão, fazendo
com que a massa gire no ar. Seus olhos esverdeados acompanham o movimento, fixando-se nos
meus assim que a panqueca atinge o fundo de cerâmica.
— Você acordou! — sorri de orelha a orelha.
É como ser atingido por um tiro. Dou um passo para trás, batendo com as costas na parede. O
impacto faz com que as mãos soltem os lençóis. Eles deslizam suaves ao redor do corpo,
expondo a minha completa nudez.
O queixo de Aurora cai. Piscamos um para o outro, ambos paralisados. Ela bem que tenta
manter os olhos fixos nos meus, mas não consegue. Assim como inspecionei a sua aparência, ela
inspeciona a minha. Com cuidado, diria até que com cobiça. A face está vermelha quando os
olhos voltam a se fixar no meu rosto, mesmo assim ninguém se mexe.
Até que duas coisas acontecem: Quindim avança, puxando os lençóis e os levando para longe,
e o cheiro de panqueca queimada se espalha pela cozinha.
Acordamos do nosso estupor. Puxo o lençol de volta, desesperado para me cobrir, enquanto a
mulher desliga o fogo.
— Desculpe, eu... — começo, virando-me de costas. Pelo calor que atinge o meu rosto, aposto
que estou tão vermelho quanto ela.
— Está tudo bem, sou eu quem peço desculpas. — Aurora devolve, acanhada.
Enrolo o lençol em volta do corpo, prendendo as pontas com uma mão.
— Já volto. Só vou colocar uma roupa.
— Não quer comer primeiro? — pergunta, ajeitando as panquecas prontas. — Estão
quentinhas. Já iria te acordar, se você não tivesse aparecido.
— Você não se incomoda? — indico os lençóis com o queixo. Ela faz que não.
Temendo desagradá-la, ajusto o tecido em torno do corpo e me sento em uma das banquetas
da ilha central. Passo as mãos pelos cabelos bagunçados, tentando lembrar alguma coisa da noite
anterior, mas paro sempre no mesmo lugar.
— Eu te encontrei caído no escritório — Aurora lê os meus pensamentos, gentil em não dizer
o motivo pelo qual estava caído. — Não sabia o que fazer, então liguei para o Alexandre. Ele me
ajudou a te... socorrer.
Faço uma careta, antecipando o sermão que ouvirei do advogado.
— Imagino que ele saiu possesso daqui.
— Não — coloca a última porção de massa na frigideira. — Só cansado. Ele temia te deixar
sozinho, mas as filhas estavam resfriadas. Eu me ofereci para ficar.
Assinto, sem saber muito bem como responder. O meu próprio inconsciente começa com a
bronca. Olha só onde a sua bebedeira está te levando! Atrapalhando a vida do seu melhor
amigo, e da sua nova funcionária. Você não tem vergonha na cara?
Talvez eu seja tão sem-vergonha quanto o cachorro.
— Desculpe.
— Oxe, não há o que desculpar. — Aurora torna a sorrir, mas dessa vez não é tão espontâneo.
Está mais para um sorriso nervoso. — O importante é você estar bem.
Bem? Ah, Aurora. Estou muito longe de estar bem.
Guardo isso para mim. Ela é tão gentil, não quero chateá-la com palavras amargas capazes de
escurecer a manhã ensolarada. O meu estômago ronca, enjoado, anunciando que não será capaz
de degustar todas as delícias preparadas sobre a ilha. Além dos ovos e das panquecas, ela
também fez torradas. Lanço um olhar curioso a pilha de pão e a fileira de potes de geleias
distribuídas sobre o mármore claro. Um deles está vazio.
Ela acompanha o meu olhar e encolhe os ombros, mas a voz se mostra empolgada.
— Ontem à noite, bati o olho no pote de geleia de laranja-cravo e fiquei com vontade. Iria
comer só uma colherinha, mas...
Solto uma risada. É tão leve, e bem-humorada, que me soa até estranha.
— Não tem problema. Pode comer o quanto quiser — encaro o seu rosto com curiosidade. —
Do que chamou a mexerica?
— Laranja-cravo. É assim que a chamamos em Pernambuco.
— Passou os últimos anos lá?
— Passei.
Ela morde os lábios, ciente de que falou demais. A tranquilidade da mulher desaparece.
Ajusto o lençol em torno do peito e faço um gesto com as mãos, indicando que está tudo bem,
mas suas defesas continuam erguidas.
Anseio por fazer mais perguntas, mas respeito o seu espaço e mantenho-me calado. Não quero
dividir uma refeição com uma mulher amedrontada. Quero a Aurora vivaz, que ri ao girar
panquecas em companhia do meu cachorro.
Ela começa a se servir, enchendo o prato com um pouco de tudo. Uma refeição e tanto, para
uma mulher tão pequena. Também enche uma caneca com café até a borda. Com tudo a seu
contento, empurra o prato e a caneca para mim.
Afasta-se de cabeça baixa, sem fazer menção de dividir a refeição comigo. O meu cérebro
está a ponto de explodir de dor, mas as engrenagens ainda são capazes de trabalhar. Se não a
todo vapor, na velocidade necessária para encaixar algumas peças desse quebra-cabeça.
— Aurora? — chamo baixinho.
Ela ergue o rosto devagar. Céus, porque de um momento para o outro, a mulher se tornou tão
submissa?
Não pergunte! Não se envolva!
Chega! Eu vou me envolver, sim!
— Do que você está fugindo?
Seus olhos se arregalam. Agora, é ela quem dá um passo para trás, pisando no cachorro no
meio do caminho e batendo com as costas na geladeira. Morde os lábios e nega com a cabeça,
mas a verdade estampada nas íris esverdeadas confirmam o que é incapaz de falar.
Ela está fugindo. Do que? Só vou descansar após descobrir.
— De ninguém — murmura.
— Eu sei que é mentira — respondo no mesmo tom. — E acredite, Aurora: estou cansado de
mentiras.
Todo o corpo estremece. Começo a me assustar com a possibilidade de ela passar mal.
Devagar, desço da banqueta e me aproximo. Aurora me acompanha com o olhar, mas não torna a
se afastar quando paro a sua frente e, com delicadeza, seguro a sua mão. Ignoro a corrente
elétrica que toma os meus dedos, sobe pelo pulso e alcança todo o braço, e a puxo com cuidado
até a ilha central.
Permito que se sente e começo a servi-la com duas panquecas. Passo o restante da geleia de
mexerica, até raspar o pote. Adoraria ir até a dispensa pegar outro, mas não quero deixá-la
sozinha. Pelo menos, não agora. Empurro o prato em sua direção e encho uma caneca.
— Algo me diz que você gosta de café adoçado.
Um minúsculo sorriso cruza o seu rosto.
— Gosto.
Adoço a bebida com duas colheres de açúcar, oferecendo-a em seguida. Aurora segura a
caneca com as mãos, inspirando fundo antes de beber um gole curtinho, como se o estômago
também não estivesse em seu melhor.
Ao invés de me sentar do outro lado da ilha, puxo o meu prato e me sento ao seu lado. Provo
uma torrada e permaneço calado. Estou pronto para ouvir, se ela quiser contar, mas não vou
pressioná-la. O silêncio é verdade o suficiente.
Aurora pousa a caneca sobre o mármore, observando o líquido escuro como se fosse um
profundo buraco em que pudesse se esconder. Não sei quanto tempo leva até que volte a me
encarar.
O silêncio pode ser verdade o suficiente para mim, mas não é para ela.
— Estou fugindo do meu marido — murmura. — Ele me...
Respira fundo, hesitante. Volto a estender os dedos em direção a sua mão. Ela prontamente
entrelaça os dedos dos meus com força o suficiente para quebrá-los.
— Ele o que? — pergunto.
— Ele me batia.
Todos os pelos do meu corpo se eriçam. A raiva, a nova constante na minha circulação
sanguínea, ameaça aflorar. Não contra ela. Jamais contra ela. Contra qualquer filho da puta capaz
de erguer a mão para uma mulher.
Ainda mais uma mulher grávida!
Enquanto tento me controlar, olho bem para Aurora. Ela é magra, de constituição delicada.
Um homem não precisa de muito para subjugá-la.
A mera visão de uma mão erguida em sua direção, descendo com força para machucar a
mínima parte do seu corpo, faz o meu sangue entrar em erupção, transformando a raiva em puro
ódio.
Travo o maxilar e respiro fundo, o corpo tenso.
— Com que frequência? — ouso perguntar.
Aurora hesita de novo. Talvez, dessa vez, eu tenha ido longe demais. Abro a boca, pronto para
me desculpar, quando ela toma coragem para continuar.
— Sempre que bebia — pensa por um curto instante. — Pelo menos duas vezes na semana.
A voz sai tão baixa, mas tão baixa, que quase não escuto. Encaro a mulher encolhida,
boquiaberto. A raiva ainda domina o meu corpo, mas outra sensação ameaça empurrá-la para
longe. Em um rompante, sou tomado pela vergonha.
Mesmo tendo convivido com um bêbado violento, Aurora ficou no escritório e me... ajudou?
Poderia ter ido embora, me abandonado lá, mas não só ajudou, como fez questão de dormir na
cobertura, temendo que eu passasse mal durante a noite. Acordou cedo para preparar o meu café
da manhã. Ninguém antes dela acordou em qualquer horário para fazer panquecas para mim.
Estou longe de ser violento, mas um bêbado é um bêbado. A mera ideia de encher a cara a
ponto de encostar em um único fio de cabelo feminino me assusta.
— Eu...
— Isso não tem nada a ver com você — encolhe os ombros e continua, com a voz embargada.
— Mesmo sóbrio, ele não era um cordeiro. Não batia só porque bebia. Batia porque queria —
ergue os olhos cheios de lágrimas. — Aguentei isso por cinco anos, e talvez aguentasse por toda
a vida, se não tivesse ficado grávida.
Desço o rosto em direção a sua barriga.
— Ele sabe?
— Não — limpa o rosto com as costas das mãos, mas as lágrimas permanecem ali. — E não
pode saber.
Assinto, sem saber como continuar, mas uma nova dúvida surge no meu cérebro atordoado.
— Você deu parte dele na polícia?
— Polícia? — devolve a pergunta, a voz um pouco mais firme. — De jeito maneira! Todos se
conhecem na cidade. Talvez os policiais me ajudassem, mas os moradores compartilham a
crença de que em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Sempre tive planos de fugir,
mas nunca tive coragem. Bastou que o teste de gravidez desse positivo para ela surgir com toda a
força. Não pensei em nada. Simplesmente juntei os meus pertences e vim para cá.
Aurora se agita, tremendo de leve. Volto a segurar a sua mão, temendo que tenha uma crise
nervosa.
— Calma. Está tudo bem.
— Não está tudo bem — arqueja. — Sei que ele virá atrás de mim. Osvaldo não é homem de
aceitar desfeita calado. Ele virá atrás de mim e, se eu não tomar cuidado, irá me encontrar! — Os
tremores aumentam. — E eu não gosto nem de imaginar o que ele fará se me encontrar. Com
sorte, apenas me arrastará de volta para casa, mas não quero criar o meu filho em um ambiente
violento. Não quero criar o meu filho com ele.
Escuto as palavras com atenção, mas apenas uma informação se fixa na minha mente. A
curiosidade domina, fazendo com que a pergunta saia antes que eu seja capaz de contê-la.
— É um menino? — pergunto feito bobo.
Um esboço de sorriso cruza o rosto bonito de Aurora.
— Ainda não sei, mas sinto que é.
Sorrio de volta, encantado, mas a alegria da mulher se esvai com um estremecimento. As
lágrimas escapam e o choro toma a cozinha. Quindim senta-se ao pé da sua banqueta,
choramingando como se absorvesse a sua dor. Levanto-me da minha e, sem pensar que estou
vestido apenas com um lençol, tomo Aurora nos braços.
Ela não resiste. Deita a cabeça no meu peito e me abraça de volta. O seu agarre é firme. Faz
com que eu me sinta como alguém em quem ela pode confiar.
Forço-me a ignorar o calor do seu contato. As curvas macias, que se encaixam perfeitamente
nos músculos retos do meu corpo. Aperto-a com força, tentando transmitir toda a segurança que
precisa. Absorvendo toda a segurança que ela pode me dar.
— Eu vou te proteger, Aurora — digo baixinho. Os seus cabelos se soltam do coque, caindo
como cascata sobre a minha mão. Tomo a liberdade de acariciá-los. — Está me ouvindo? Eu vou
te proteger. Aconteça o que acontecer, o seu ex não vai chegar perto nem de você, nem do seu
filho.
— Você não o conhece, Guilherme.
— Não, e nem quero conhecer. Eu só quero que ele fique longe de você. — Ela não parece
convencida. Acaricio a lateral do seu rosto enquanto peço: — Por favor, olhe para mim.
Sem se afastar, Aurora ergue as íris esverdeadas. Úmidas como estão, parecem duas lagoas
profundas cheias de dor. A raiva volta a pulsar, mas é sobrepujada pela dor do meu coração se
partindo mais um pouquinho. Descubro que odeio, com todas as forças, vê-la triste.
— Prometo que não vou deixar que nada aconteça com você — enfatizo, muito sério.
— Promete?
— Prometo.
Dessa vez, ela acredita. Novas lágrimas tomam os seus olhos antes que volte a me abraçar.
Acaricio os seus cabelos, pensando em maneiras de protegê-la, quando sua voz abafada soa em
meu peito.
— Eu quero o divórcio — murmura. — Sinto que só conseguirei seguir em frente após o
divórcio.
— Você quer, e terá. Não sei se o Alexandre falou, mas ele é advogado. — Ela volta a me
encarar e sorrio de leve. —Tenho certeza de que conseguirá resolver a situação.
— O Osvaldo não precisa assinar?
Faço que não, envergonhado pelo tempo em que demorei para assinar o meu próprio divórcio.
— Ele pode entrar com um processo de divórcio litigioso. É mais demorado, mas é possível.
Vou marcar uma reunião com ele, tudo bem?
— Não posso pagar, Guilherme — desvia os olhos, envergonhada.
— Eu vou pagar — abre a boca para retrucar, mas sou irredutível. — Está decidido: eu vou
pagar.
Ela sorri. Tão sincera. Tão bonita. O sorriso que desejei receber por dias ali, radiante na
minha cozinha. Só para mim.
Deslizo os dedos pela sua face, desfrutando a textura macia da pele aveludada, ciente de que
em pouco tempo constrangerei nós dois com uma incômoda ereção se continuar tão próximo a
ela.
Mas reluto em me afastar. Não sei quando receberei um abraço de novo, então quero desfrutá-
lo ao máximo
Os dedos de Aurora também tomam a minha face. Seguro um suspiro conforme eles deslizam
pela barba curta e alcançam um ponto dolorido na lateral do meu rosto.
— O corte é menor do que imaginei — diz, baixinho. — Ainda assim, é bom limpar.
Ela se afasta, deixando um vazio no lugar onde as curvas estavam. Roda pela cozinha como se
conhecesse cada metro quadrado dela. Pega um punhado de papel toalha, molha na torneira e o
desliza com cuidado sobre o machucado. Fecho os olhos. Ela está cuidando de mim, assim como
estou cuidando dela.
Tomar ciência disso leva parte da raiva embora. Algumas fibras do coração partido se
recuperam e o seu interior oco se enche de esperança. Faz com que eu volte a acreditar que posso
amar e ser amado.
Aurora começa a se afastar, mas seguro sua mão, mantendo-a mais um pouquinho sobre o
meu rosto.
— Obrigado — murmuro.
— Sou eu quem agradeço — murmura de volta.
Encaramo-nos a poucos centímetros de distância. Próximos o suficiente para que eu consiga
sentir o fluir da sua respiração. Tem cheiro de mexerica. Ou melhor, laranja-cravo. É fresca
como a manhã. Deliciosa como um despertar.
Faz com que eu deseje Aurora como nunca desejei outra mulher.
Capítulo 15 – Aurora

As panquecas e o café estão mornos quando voltamos a nos sentar para comer, mas ninguém
se importa. Guilherme faz uma careta diante do amargor da bebida, mas toma tudo sem reclamar.
O clima se torna mais leve. Eu me torno mais leve. Jamais gostei que outras pessoas carregassem
fardos que são apenas meus, mas é bom ter alguém para ajudar.
Ainda mais alguém como o Guilherme.
Mesmo com o semblante abatido pela ressaca, o homem continua deslumbrante. Algo me diz
que iriamos nos beijar se tivéssemos nos mantido abraçados por mais alguns segundos.
Eu acharia de todo ruim? Não. Descobri que algumas mulheres grávidas perdem a libido.
Outras, a têm aumentada. Estou na segunda categoria. Seria algo facilmente controlado se eu não
estivesse tão próxima de Guilherme. A mera lembrança da beleza da sua nudez, a firmeza do
corpo musculoso e do volume entre as suas pernas são o suficiente para fazerem a minha
umidade escorrer.
Tudo nele me atrai. Apenas uma coisa me afasta.
Por que o meu coração precisa bater mais forte por um homem que bebe a ponto de falar
coisas desconexas e ser carregado escritório afora pelo amigo? Preciso resistir aos seus encantos.
Aceitar a sua ajuda, mas deixar de suspirar diante de qualquer gentileza. Fingir que trabalho com
um homem comum, não um tão atraente quanto um galã de novela.
Então ignoro o quanto adoraria tirar um cacho ondulado da sua testa e me concentro no café
da manhã. Quindim rodeia as nossas banquetas, em busca de farelos de comida. Resisto à
tentação de lhe dar um pedaço de panqueca, mas Guilherme percebe.
— Pode dar — diz, ele mesmo jogando um pedaço. O bicho o pega no ar. Separo um segundo
pedaço e encaro Quindim.
— Senta — peço, com a voz firme. O cachorro obedece, sentando-se quietinho a poucos
centímetros de distância. — Bom menino! — acrescento, me abaixando para entregar a comida.
Ao me ajeitar, vejo que Guilherme me encara com a boca aberta. — Desculpe, fiz algo de
errado?
— Não! Você fez algo maravilhoso! — sorri de orelha a orelha. — Esse sem-vergonha foi
expulso não de uma, mas de duas creches para cachorro! Inadestrável, disseram. Você chega
aqui e o... adestra!
É a minha vez de sorrir. Não sei por que, mas os olhos de Guilherme cintilam toda vez que
sorrio.
— Só pedi para ele sentar.
— Sempre peço para ele fazer um monte de coisas. Obedece? Não.
— Talvez ele goste mais de mim — brinco.
— É. Talvez.
Sua voz soa sonhadora. Solto uma risadinha, como uma adolescente encabulada.
Misericórdia! Sou uma mulher adulta, com quase trinta anos nas costas, e estou dando risadinhas
para o último tipo de homem que devo me apaixonar. Guilherme me acompanha, a risada grave
preenchendo a cozinha e arrepiando cada pelinho do meu corpo.
Somos interrompidos pelo toque estridente do seu celular. A risada morre e ele fecha os olhos
com força, como se sentisse uma profunda pontada de dor.
— Não vai atender? — pergunto.
— Eu sei quem é.
— Mesmo assim, não vai atender?
Ele torna a abrir os olhos e, como um robô, retorna à suíte. Ouço-o atendendo, assim como
ouço a voz de trovão ecoando do outro lado da linha. Guilherme tenta desligar o viva voz, mas é
tarde demais.
— Acordou, é? — Alexandre berra através do celular.
— Acordei. Obrigado por me ajudar e...
— Obrigado, nada! Estou subindo.
— Não precisa!
— Precisa, sim!
Guilherme desliga o telefone e me encara.
— Talvez seja um ótimo momento para trocar as senhas das minhas fechaduras eletrônicas.
— O seu amigo parece legal — passo um dedo pelo interior do pote de geleia vazio. O CEO
acompanha os meus movimentos, os lábios entreabertos enquanto enfio o dedo na boca e sugo
com força.
— Ele é legal — confirma, meio hipnotizado. — Até o momento em que não é mais.
Em instantes, ouvimos o elevador privativo chegando no saguão. Alexandre irrompe
cobertura adentro com tamanho ímpeto que Quindim solta um gemido e corre para se esconder.
O rosto do advogado suaviza ao me ver. Acena com a cabeça, mas volta a endurecer assim
que encara Guilherme. Os olhos de gelo percorrem todo o seu corpo com desdém.
— Que indecência é essa!
O meu chefe ajusta o lençol.
— As panquecas estavam esfriando, Alexandre. Ninguém gosta de comer panquecas frias.
Mordo os lábios, segurando o riso, ainda mais quando o outro parece prestes a estrangular o
amigo.
— Eu preciso conversar com você! — rosna. Guilherme me lança um olhar de esguelha.
— Não podemos fazer isso mais tarde?
— Não! Você passou de todos os limites ontem à noite! — Alexandre começa, furioso a
ponto de cuspir pequenas partículas de saliva sobre o tampo de mármore. — Aposto que faltou
isso aqui — aproxima o indicador do polegar, quase esfregando os dois dedos na cara do meu
chefe. — Para você entrar em coma!
— Ah, não exagere!
— Não sou eu quem está exagerando! Assuma, Guilherme: você se tornou um alcoólatra!
Desço da banqueta e dou um passo para trás. O movimento faz com que os dois olhem para
mim. Guilherme, com pena. Alexandre, com curiosidade. O primeiro vira para o amigo, ainda
em negação.
— Eu estava bem, mas vi a foto da Evelyn e...
— E o que? — bufa, batendo com as mãos na lateral do corpo. — Depois de tudo o que
aconteceu, você ainda a ama?
Guilherme é resoluto.
— Não.
Uma estranha onda percorre o meu corpo. Só não sei se de alívio, ou de calor.
— Então qual é o problema? — O advogado questiona.
Por um instante, penso que Guilherme não irá responder. É nítido o quanto o assunto faz com
que sangre por dentro. Não quer falar, mas assim como eu, precisa falar.
Ao contrário de mim, ele não consegue. Encolhe os ombros e vira o rosto para o lado.
— Você sabe que a questão não é essa.
Alexandre não demonstra a mínima pena.
— Sei! E sei que, se continuar bebendo como está, você irá se matar!
— Ah! — Guilherme bufa, se levantando. — Você fala como se eu bebesse todos os dias!
— E não bebe? — a voz de Alexandre se torna calma. Analítica, como se sondasse um
suspeito diante do tribunal. Ele se aproxima, ficando a poucos centímetros de distância. —
Aposto que o cantil que eu e Aurora encontramos na mesa vive cheio de vodca. Que mantém
pelo menos uma garrafa estocada aqui, e outra no escritório. Bebe sim, todos os dias. Alguns dias
mais, outros menos, mas bebe.
Guilherme não responde. Ajusta o lençol em torno do corpo, puxando-o de forma a cobrir até
a cabeça. O rosto vermelho, não sei se de raiva, ou se de vergonha. Alexandre toca o seu braço e
continua.
— Você precisa de tratamento.
— Alexandre... — é a sua vez de dar um passo para trás.
— Pesquisei algumas clínicas de recuperação e...
— Não! — a voz de Guilherme é tomada pelo terror. — Eu não vou me internar em uma
clínica! Eu estou bem! Foi um caso isolado. Garanto que...
Ele me encara e a voz morre. Sabe que ouvi o arrastar dos seus pés ao flagrá-lo saindo bêbado
do elevador. Que sinto o cheiro de álcool impregnado em suas roupas, misturado com o perfume
caro, mas incapaz de mascarar o aroma da bebida. Sabe que está prestes a mentir, mas está
cansado de tantas e tantas mentiras.
—Você poderia ter colocado a própria vida em risco — Alexandre continua. — Precisa sim,
de tratamento. Se não quer ir para uma clínica, vá ao alcoólicos anônimos.
— Eu não sou alcoólatra — murmura, ainda me encarando.
Parece implorar para que eu confirme, mas permaneço calada. Na minha concepção ele é.
Algo transparece no meu rosto e Guilherme se encolhe. Fecha os olhos com força, dando um
novo passo para trás, fugindo para o seu quarto. Alexandre solta um longo suspiro.
— Isso será mais difícil do que eu imaginei...
— Talvez ele precise de tempo — digo, começando a recolher os pratos e talheres.
O advogado nega com a cabeça.
— Ele precisa ser colocado na linha.
Dito isso, Alexandre sai da cozinha e segue em direção ao quarto. Permaneço onde estou e
escuto Guilherme gritando. Seu amigo grita de volta, iniciando uma discussão. Limito-me a
encolher os ombros e recolher a louça suja. Assim que terminar, irei me despedir deles e voltar
para casa.
Quindim sai debaixo das almofadas e me acompanha. Abro a torneira da pia e cantarolo os
primeiros versos de Aquarela dentro da cabeça. Desenho o sol. Tento imaginar o castelo onde
sou uma princesa vestida em sedas esvoaçantes, pronta para encontrar um príncipe que aceite a
mim, e ao meu filho. Ele surge como um homem alto e com olhos castanhos gentis.
Os gritos aumentam. As vozes são poderosas demais. Sobrepujam qualquer cantoria e levam
consigo a visão encantada. Demonstram que os homens estão ficando cada vez mais irritados.
Quindim choraminga aos meus pés. O que farei se eles se pegarem no soco? Enxáguo a mão
cheia de sabão e abaixo-me para acariciar o vão entre as orelhas do animal, pensando que só
conseguirei jogar um balde cheio de água fria, como se faz para aplacar uma briga de cães
furiosos
— Eu não vou para essa clínica! — a voz de Guilherme toma a cobertura.
— Você precisa ir para algum lugar! — o outro insiste. — Eu deveria ter filmado, talvez
assim acreditasse! Você não sabia nem onde estava! Precisei te carregar do escritório até o carro,
depois do carro até aqui. Poderia ter machucado a si mesmo. Ou pior, machucado a Aurora!
O silêncio toma conta. Ergo-me devagar, apoiando a barriga com a mão. Pé ante pé, caminho
em direção a porta aberta da suíte. Mesmo do lado de fora, consigo ver o rosto chocado de
Guilherme. Aos poucos, uma nova percepção preenche o rosto do meu chefe. Um misto de
sentimentos tão grande que se tornam difíceis de discernir. Um se sobressai. Tão tímido quanto o
menino que conheci na praia, mas se sobressai.
A esperança.
— Eu posso ir com você — pego-me dizendo.
— Aonde, Aurora? — Guilherme pergunta baixinho.
— No alcoólicos anônimos.
Seus olhos se fecham com força.
— Não quero que você vá lá.
— Mas eu quero ir. — O lençol deslizou até a sua cintura, então toco em seu ombro nu,
tentando ignorar a firmeza dos músculos sob a pele. — Por favor, deixa eu te ajudar.
— Você tem certeza?
A pergunta é quase inaudível. Acabei de contar o que o meu marido fazia. Ele não quer, de
maneira alguma, ser comparado a tamanho monstro. E não vai. O álcool colaborava com a
violência de Osvaldo, mas suas ações não eram limitadas pelo conteúdo de uma garrafa.
Ele me agredia porque se satisfazia em causar dor. Guilherme não se satisfaz com tão pouco.
— Tenho — digo, firme.
— Então eu vou — encara o meu rosto com firmeza. — Por você, eu vou.
Alexandre ergue uma sobrancelha, mas não diz nada. Também permaneço calada. Estou
emocionada demais para dizer qualquer coisa. A esperança se estende a mim, mas não quero
alimentá-la antes da hora.
Encaramo-nos por um longo tempo. A esperança ali, circulando entre nós, até Guilherme
cortar o vínculo e se virar para o amigo.
— Há outro assunto que precisamos conversar.
— Qual? — Alexandre pergunta.
— Aurora quer se divorciar do marido.
— Tudo bem. Irei entrar com o processo. Assim que ele assinar, nós...
— Ele não vai assinar — murmuro. Guilherme segura a ponta dos meus dedos, concedendo
um pouco de força. Agradeço o gesto e continuo: — Eu... estou fugindo dele. Ele me agredia.
Fugi de casa ao descobrir a gravidez.
Assim como aconteceu mais cedo, o rosto de Alexandre se torna lívido. Fecha os olhos e
respira fundo, tentando se acalmar. Parte de mim fica contente. É bom ver que ainda existem
homens que acham um absurdo erguer a mão para uma mulher.
— Nesse caso, podemos entrar com uma medida protetiva e com o divórcio pela Lei Maria da
Penha — consegue dizer ao se recuperar. — Assim é mais rápido, e você fica resguardada de
todas as formas pela lei.
— Como faço para pagar e...
— Eu já disse que vou pagar! — Guilherme corta.
— Ninguém vai pagar. — Alexandre determina, sorrindo de leve ao me encarar. — Pode ficar
tranquila, terei o maior prazer em ajudar.
— Obrigada — sorrio de volta. O advogado troca o peso de um pé pelo outro, como se não
fosse nada. Já Guilherme parece se desmanchar. De repente, me sinto sem graça junto a eles. —
Ah, vou terminar de arrumar a cozinha, e ir para casa.
— Eu te levo! — os dois dizem, juntos. O mal humor retorna ao semblante de Alexandre.
— Como? Talvez tenha se esquecido, mas o seu carro ficou na garagem da Avenida Paulista.
Guilherme solta um gemido frustrado.
— Mas que merda... — lembra-se da minha presença e se adianta: — Desculpe!
Faço um gesto indicando que está tudo bem.
— Posso ir embora de ônibus. É só indicar onde fica o ponto e qual linha leva a estação de
metrô mais próxima — estufo o peito, orgulhosa. — Aos poucos, estou conhecendo todas as
linhas de metrô da cidade.
Os dois se entreolham, confusos.
— Eu te levo — o meu chefe oferece. — Só preciso que Alexandre me dê uma carona até a
Alcântara Mineração. Não quero incomodar o motorista da empresa em pleno final de semana.
O amigo ergue uma sobrancelha loira, deixando claro que, de certa forma, alguém está sendo
incomodado, mas acaba por assentir com a cabeça. Fico curiosa para saber mais sobre os dois.
Deixamos Guilherme sozinho no quarto e vamos para a cozinha. Alexandre se senta em uma
das banquetas da ilha central e sana a minha curiosidade. Eles se conheceram na escola, ainda no
ensino fundamental. Segundo ele, Guilherme era uma criança pequena, propensa a ataques de
asma e bronquite. Sofria bullying quando o colega de classe cansou de vê-lo sendo humilhado e
o defendeu com um soco.
Aquilo os levou a direção da escola, e os uniu por toda a vida. Como em um casamento,
estiveram juntos na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Alexandre não entra em detalhes,
mas é nítido que já foi bastante ajudado pelo amigo.
Logo Guilherme sai da suíte. No lugar do lençol, veste uma camisa branca sem mangas e uma
bermuda caqui. Minúsculas gotas d’água escorrem dos cabelos ainda úmidos do banho. Nas
mãos, uma caixinha de óculos de grife. Coloca o objeto sobre os olhos e abre os braços.
— Estou pronto.
E está lindo!
— Então vamos — Alexandre se levanta, caminhando em direção a porta.
Quindim faz menção de nos acompanhar, mas seu dono barra a passagem. Segura a porta,
esperando que eu passe, mas não posso ir sem me despedir. Abaixo-me com a intenção de coçar
as orelhas peludas do filhote, mas não resisto a abraçá-lo. O cachorro abana o rabo, feliz da vida.
— Seja bonzinho com o Guilherme — brinco, fazendo um último carinho no topo da sua
cabeça. Ele ergue o focinho, lambendo os meus dedos.
— Ele realmente gostou de você — o homem comenta.
— E eu gostei dele. Tchau, Quindim.
O bicho choraminga, mas fica onde está. Despeço-me com um último tchauzinho e Guilherme
fecha a porta.
Saímos do prédio em direção à Avenida Paulista. Vou quietinha no banco de trás, ouvindo a
conversa dos homens sentados na frente, impressionada com a amizade dos dois. Em um instante
discutem a ponto de elevarem a voz, no outro conversam como se nada tivesse acontecido.
O carro faz a curva e olho, embasbacada, para a dimensão da avenida ao nosso redor. Sempre
saio do metrô e caminho apressada em direção ao prédio da Alcântara Mineração. Isso me faz
pensar que preciso muito tirar um dia apenas para conhecer os pontos turísticos da cidade.
Alexandre manobra o carro para dentro da garagem subterrânea e estaciona diante de um
Audi cinza, tão grande quanto o próprio veículo. Guilherme se despede e desce, abrindo a minha
porta. Sorrio para a sua gentileza, mas uma mão segura o meu ombro e impede que eu me mexa.
— Quero entrar com o processo na segunda-feira — o advogado diz, com firmeza. — Você
tem o meu número. Mande um Oi que, ao chegar em casa, enviarei a documentação necessária.
Assim consigo adiantar alguma coisa no final de semana.
Confirmo com a cabeça, mas lembro que o homem tem esposa e filhos.
— Eu não quero te dar trabalho...
Ele me solta, fazendo um gesto indicando que não é trabalho algum.
— Nós vamos resolver isso, Aurora — as íris azul-claras estão cobertas de determinação. —
Em breve, você estará livre do seu marido.
Livre.
Uma palavra tão pequena, mas ao mesmo tempo tão grande. Volto a confirmar com a cabeça,
feliz em poder contar com a sua ajuda, e desço do carro. Guilherme bate a porta e, mais uma vez,
se despede do amigo. Espera que ele vá embora antes de acionar o alarme do próprio veículo.
— Não quer mesmo que eu vá de metrô? — pergunto.
Ele apruma o corpo, ultrajado, e abre a porta do Audi.
— Depois de tudo o que você fez por mim? Não. Faço questão de te deixar em casa. É só
passar o endereço.
Entro no carro, afundando no banco macio. Guilherme dá a volta e, em instantes, manobra
garagem afora. Não esboça a mínima reação quando lhe dou o meu endereço. E, ao contrário do
que aconteceu no carro do amigo, mantém-se calado durante todo o trajeto.
Estamos chegando e Guilherme decide falar.
— Desculpe.
— Oxe, pelo quê? — viro-me para ele.
— Desculpe. Eu não precisava ter feito você passar por tudo isso — encolhe os ombros,
agoniado. — Ainda mais depois de tudo o que você já passou.
— Você não tinha como saber.
— Mesmo assim...
— Eu te desculpo — digo, apenas para aliviar a sua tensão. Seu corpo relaxa no mesmo
instante.
— Obrigado. E obrigado também por dividir a sua dor comigo.
— Eu que agradeço. A você, e ao Alexandre.
Ele faz uma careta bem-humorada.
— Prefiro que agradeça apenas a mim.
Hum, será que temos um homem ciumento aqui?
— Então obrigada, G-u-i-l-h-e-r-m-e.
Ele ri e acabo rindo junto. Quando me senti tão leve?
— Saiba que — continuo, ainda virada em sua direção — estarei aqui se quiser dividir a sua
dor com alguém.
O carro para em um semáforo. Devagar, ele se vira para mim. Ergue o óculos de sol, fixando
as íris castanhas em meu rosto. É instantâneo. Ondas de calor percorrem as minhas bochechas.
Aí está um homem pelo qual eu não posso me apaixonar.
Então por que estou apaixonada por ele?
— Obrigado, A-u-r-o-r-a — sorri.
Os minutos restantes são leves. Guilherme estaciona diante da pensão e espicha o pescoço,
curioso. Rostos femininos fazem o mesmo por trás das cortinhas. Mesmo a distância, consigo
ouvir Clarice ofegando diante da opulência da minha carona. Provavelmente passarei o dia sendo
interrogada.
Agarro a maçaneta, pronta para sair e me despedir sem maiores cerimônias, mas ela continua
travada. Guilherme desce e dá a volta no Audi, abrindo a porta e estendendo a mão como um
perfeito cavalheiro.
Pisco, abobalhada, e aceito o seu gesto. Basta que os nossos dedos encostem para que a onda
de calor se espalhe por todo o meu corpo. Ele apoia a minha saída com uma expressão solene,
sem tirar os olhos dos meus.
— Tenha um bom dia, Aurora.
— Você também.
Um pequeno sorriso cruza o rosto bonito. Retribuo, mas preciso me apressar. Caso contrário,
não duvido que Soraia marche porta afora, seguida de todas as outras, para saber quem raios é
aquele visitante desconhecido.
Ele espera enquanto abro e fecho o portão. Aceno ao chegar na porta do sobrado, ele acena de
volta e retorna ao Audi.
Entro sem olhar para trás, sendo bombardeada por perguntas sem resposta. Tento me
desvencilhar delas. As meninas não acreditam no tipo de ajuda que prestei ao meu chefe. Dão
risadinhas. Fazem troça. Apenas Soraia pede para que eu tome cuidado e me mantenha alerta.
Leva um tempo até que eu escute o carro indo embora. Mais tempo ainda para que o meu
coração se acalme e todo o calor se dissipe do meu corpo.
Capítulo 16 – Guilherme

Pela primeira vez em muito tempo, passo o sábado com o pensamento longe do compilado de
mentiras que se tornou a minha vida. Eles são substituídos por ondas de cabelos macios, olhos
esverdeados sinceros e sorrisos bonitos capazes de iluminar o mais transtornado coração.
Aurora simplesmente domina a minha mente.
Ela, e a vontade de beber.
A ferida ainda existe. Enquanto estiver ali, continuará a pedir pelo único remédio capaz de
aplacar a dor. Passo o dia sóbrio. A noite, rolo de um lado para o outro na cama, firme em
resistir.
Acabo dormindo após abrir a porta e permitir que Quindim entre no quarto. Abraço o
cachorro com força, afundando o rosto em seu pelo macio. Ele dá uma ou duas patadas na minha
cabeça, mas logo pega no sono. Acompanho o ressoar, acordando horas depois com as duras
palavras de Alexandre ecoando nos ouvidos.
Deixo Quindim roncando ao meu lado, encaro o teto e assumo para mim mesmo.
Eu sou um alcoólatra.
A palavra é familiar desde a infância. Foi proferida incontáveis vezes em discussões entre a
minha mãe e o meu pai. Talvez por isso ela me irrite tanto. Os momentos mais tristes da
juventude envolveram gritos enrolados em palavras desconexas, garrafas vazias quebrando em
quinas de paredes, choros femininos questionando quando aquele inferno iria acabar.
Acabou com o acidente de carro do meu pai.
Não pensei sobre isso na época, mas hoje tenho certeza de que ele estava bêbado. Só assim
para alguém perder o controle do carro em uma avenida reta. Por sorte, ninguém além dele se
envolveu no acidente. Era madrugada. O que o meu pai fazia fora de casa, sozinho, em plena
madrugada? Minha mãe nunca contou.
Eu bebia socialmente. Vez ou outra, ao me estressar no trabalho. Passei a beber todos os dias
após o pedido de divórcio.
— É isso o que eu quero para mim? — pergunto para ninguém em particular.
Até ontem, passaria a vida sem encontrar uma resposta. Ou melhor, sem me importar com ela.
Agora, decido que não quero.
Quindim acorda e lambe o meu rosto. Tento afastá-lo, mas o bicho é insistente. Dou risada e o
empurro para fora da cama. Ele pula de volta e faz menção de rasgar o meu travesseiro. Claro
sinal de que, se não gastar energia, irá destruir a cobertura inteira.
Carrego-o para fora, encho a tigela com comida e retorno à suíte. Preciso me distrair. Ao
longo dos dias, não consegui pensar em nenhum hobby. Talvez pudesse ir ao clube jogar tênis,
mas me lembro do bar próximo às quadras. Melhor me manter longe da tentação.
Aurora é outra tentação, cuja distância não conseguirei manter.
A manhã encontra-se pela metade quando decido fazer uma caminhada. Coloco a coleira e a
guia em Quindim e saímos. O dia está ameno. As ruas, pouco movimentadas. Seguimos sem
rumo, até beirarmos a exaustão. Paro apenas para tomar água e comprar o almoço. Ao chegar na
cobertura, tomei outra decisão.
Deixo o cachorro estatelado na sala e sigo decidido para a cozinha. Separo todas as garrafas,
me surpreendendo com a quantidade, ciente de que tomaria todas elas em menos de uma semana.
Aproveito que estou cansado demais para raciocinar direito e, uma a uma, puxo as rolhas e
despejo o seu conteúdo na pia.
Sinto-me leve ao terminar, mas falta fazer o mesmo com as garrafas do escritório.

É cedo o suficiente para que o prédio que abriga a Alcântara Mineração esteja vazio. Sem
acender qualquer lâmpada, rumo decidido em direção a minha sala. O meu rosto se torce em uma
careta repugnada tão logo abro a porta e sou atingido pelo odor de bebida rançosa.
Pego a garrafa largada no chão e o cantil escondido entre as páginas e mais páginas de
relatórios e jogo tudo fora. Estou ajeitando a mesa quando escuto um breve toc-toc na porta.
Ergo os olhos e dou de cara com Aurora.
— Vim um pouco mais cedo. Pensei que precisaria de ajuda com isso — indica a mesa com o
queixo e sorri.
O meu coração dispara, espalhando uma onda de calor por todo o fluxo sanguíneo. Tento não
reparar em como está linda usando uma simples camisa social branca e uma saia lápis. A barriga
desponta sob o tecido, conferindo deliciosas curvas ao corpo esguio.
O calor atinge um ponto bastante sensível entre as pernas, ameaçando causar uma
constrangedora ereção. Ajeito-me sobre a cadeira e sorrio de volta.
— Obrigado por se preocupar, mas consegui dar conta de tudo.
Ela assente, reparando na silhueta da garrafa de vodca dentro do saco de lixo.
— Você e o Quindim passaram o final de semana bem?
A pergunta é mais profunda do que aparenta. Encaro os seus olhos verdes, sentindo um novo
pulsar entre as pernas.
— Passamos. Digamos que a cobertura recebeu uma limpeza semelhante.
Não sei como é possível, mas o sorriso se torna ainda mais radiante.
— Saber disso me deixa muito feliz!
Um novo pulsar e pronto, estou completamente duro só porque a recepcionista sorriu para
mim.
Sou salvo pela chegada de Dolores. Ela encara as sacolas com aprovação e, prática como só,
pede para que a coloquemos a par de tudo o que aconteceu na sexta-feira. Recuperada, segue
para a sua mesa e começa o expediente, a deixa para que todos nós comecemos a trabalhar.
Logo descobrimos que a recuperação do colaborador acidentado na mina não segue pelo
mesmo caminho.
Admito, envergonhado, que passei o final de semana inteiro sem pensar nele. A imprensa se
envolveu, relatando o ocorrido por completo nos telejornais sensacionalistas, me fazendo pensar
que alguém dentro da própria mina repassou informações confidenciais.
Dolores e o setor de gerenciamento de crise são ágeis em tentar resolver a situação, mas não
estou preocupado com a imagem da empresa. Estou preocupado com a saúde do colaborador.
A situação me deixa nervoso e com vontade de beber. De forma automática, abro a terceira
gaveta em busca do cantil de aço inox. Por um instante, o meu cérebro entra em curto-circuito ao
não encontrá-lo ali. Até lembrar que, horas antes, eu mesmo o joguei fora.
Bebo água, tentando aplacar a vontade, mas ela é insuficiente. Os meus dedos começam a
tremer. De tal forma, que Dolores percebe. Pergunta, mais de uma vez, se estou bem. Confirmo
com a cabeça, incapaz de falar sem me denunciar.
É hora do almoço quando outra pessoa surge na sala com o mesmo questionamento. Deixei a
porta aberta, então Aurora não tem qualquer barreira ao descer os olhos para as minhas mãos. Os
ombros se encolhem e o rosto é tomado por pena.
— Posso fazer alguma coisa para ajudar? — pergunta com a sua voz doce. Nego com a
cabeça.
— Acho que é o tipo de coisa que apenas o tempo será capaz de ajudar.
— Bom... — hesita ao trocar o peso de um pé pelo outro, levemente em pânico. — E se
formos em uma reunião do AA?
É a minha vez de sentir pena. Será que ela fez sugestão semelhante ao marido, sendo recebida
com violência? Fico curioso, mas não a ponto de perguntar. Só há um motivo para ajudar a mim
mesmo, e ele envolve a mulher à frente. Preciso me manter sóbrio se quiser ter qualquer chance
com ela.
Mas também preciso ser sincero.
— Não sei se quero ir — desvio os olhos, incapaz de encará-la. — Pesquisei como são as
reuniões. Tenho dificuldades em conversar com amigos. Detesto a ideia de contar detalhes da
minha vida pessoal a completos desconhecidos.
Aurora murcha por completo. Se antes a sua presença me encheu de calor, vê-la assim volta a
congelar o meu coração.
— Ah... pensei que você quisesse tentar — hesita de novo, mas decide continuar. — Descobri
que há uma reunião aqui perto, às dezenove horas. Daria tempo de chegar.
Não resisto a sorrir.
— Você também está fazendo pesquisas.
— Estou — assume, sem qualquer cerimônia. De repente, a mulher se enche de coragem. —
Fui sincera ao dizer que quero te ajudar, mas você precisa querer ajudar a si mesmo.
Sem dizer mais nada, dá um passo para trás, pronta para sair da sala. Encaro as suas costas,
embasbacado com tamanha sinceridade. A certeza de que a perderei me enche com o mais puro
pânico. De um pulo, ergo-me da cadeira.
— Eu vou! — digo, firme. Aurora para onde está e se vira em minha direção. — Mas tenho
uma condição.
— Qual?
— Não irei voltar se não me sentir confortável. — Ela cruza os braços e ergue uma
sobrancelha, insatisfeita. — Porém, prometo procurar outro tipo de ajuda.
O sorriso volta a iluminar a sala. Com tanta força, é como se o sol tivesse nascido ali dentro.
A mulher se aproxima e estende a mão.
— Promete?
— Prometo — aperto a sua palma, sentindo a familiar descarga elétrica subindo pelo braço.
Pelo cintilar dos olhos da recepcionista, ela sente o mesmo.
O restante do dia segue movimentado. Chegamos ao consenso de que será bom passar um ou
dois dias nas instalações da mina. Além da vontade de visitar o colaborador pessoalmente, a
minha presença deixará os acionistas, e os jornalistas, felizes. Um combo completo do intrincado
jogo de poder empresarial.
O fim do expediente chega. Todos os colaboradores vão embora, com exceção de Aurora. Ela
me aguarda na recepção, animada como ainda não vi. Confesso que um pouco da sua animação
me contagia. É bom notar que, de alguma forma, a minha atitude em buscar ajuda representa
tanto para alguém.
— Esse é o endereço — adianta-se em dizer. Encaro o post it amarelo. O lugar fica a duas ou
três quadras daqui. — Olhei no Google Maps. Se quiser, podemos ir andando.
Chamo o elevador e sorrio.
— Daqui a pouco você conhecerá São Paulo como a palma da mão.
— Conhecerei, sim — estufa o peito, orgulhosa. — Posso te confessar uma coisa?
— Claro.
— Ao chegar, pensei que não me daria bem. A cidade é grande demais. Por um lado, é bom
que ninguém me conheça. Por outro... — encolhe os ombros — faz com que eu me sinta muito
sozinha. O curioso é que eu também me sentia sozinha lá.
Parte da animação evapora. Aperto o botão do subsolo e a encaro, decifrando mais um
pedacinho da sua vida. Ela mencionou que morava em uma cidade pequena. Minúscula a ponto
de não conseguir denunciar o marido às autoridades. Todos se conhecem em cidades assim.
Todos são cúmplices dos crimes uns dos outros. Por anos, ela se manteve calada, ciente de que
suas queixas jamais seriam ouvidas.
Quero que a sua animação volte. Que ilumine o elevador, assim como iluminou a minha sala.
— Precisarei passar um ou dois dias fora, mas assim que voltar, marcaremos uma reunião
com o Alexandre.
— Eu já mandei os documentos para ele.
— Ótimo! Então ele estará adiantado quando eu voltar.
Aurora assente, um pouco melhor. É assim que gosto de vê-la. Como um raio de sol, jamais
encolhida em direção às sombras.
Saímos do elevador e entramos no Audi, chegando em poucos minutos no local da reunião.
Hesito ao descer do carro. Não sei o que esperava, mas não era algo tão... mundano.
A reunião acontece em um simples casarão antigo, rodeado de plantas com largas folhagens
exuberantes. Um homem com cabelos grisalhos, no auge dos seus setenta ou setenta e cinco anos
de idade, nos encara do portão. O semblante é simpático, mas me arrepia por inteiro. Tudo o que
eu quero é meter o pé fundo no acelerador e ir embora.
Mas não posso fazer isso, não com Aurora abrindo a porta e descendo saltitante do carro.
Solto um longo suspiro e a sigo. Prevendo o meu ímpeto de fuga, o homem se adianta em nos
receber, sorrindo com carinho para a mulher.
— Que benção! Está grávida de quantos meses?
— Cinco. Indo para seis — sorri de volta. Tento ignorar a pontada de ciúmes, mas não há a
mínima necessidade.
Pela forma como o homem nos olha, pensa que somos um casal.
— Acredito que o tratamento seja para o senhor — ele se vira para mim com a mesma
gentileza.
Limito-me a assentir, incapaz de abrir a boca. A ânsia de fugir dali aumenta. Respiro fundo, o
suor frio impregnando minha camisa social. Aurora me lança um olhar preocupado e dá a mão.
Seu toque me enche de força. Só consigo entrar por causa dele.
O homem se apresenta. Getúlio, livre do álcool há mais de trinta anos. Ele não pergunta os
nossos nomes, e também não dizemos. Com uma paciência professoral, explica como as reuniões
funcionam e enfatiza que a irmandade não tem qualquer cunho ideológico ou político.
Tudo parece bastante simples, permeado por um sentido de união estendido a completos
desconhecidos, mas ainda não me sinto à vontade. Menos ainda quando entramos em uma sala
com cadeiras posicionadas em semicírculo. Os demais integrantes nos cumprimentam, mas só
consigo acenar com a cabeça. Cabe a Aurora ser simpática.
Sem soltar a minha mão, ela me puxa para uma cadeira e senta-se ao meu lado. Tento não
reparar nas pessoas à nossa volta. A maioria parece bem-sucedida, sem qualquer motivo aparente
para estar ali.
— Ei, vai dar tudo certo — ela enfatiza. Tento sorrir, mas não consigo. Estou nervoso demais
para isso.
Logo a reunião começa. Getúlio pede que todos leiam um quadro pregado ao lado da porta em
voz alta. Nele estão descritos Os Doze Passos do Alcoólicos Anônimos.
Eles me incomodam. Expõem fraquezas e escancaram falhas. O aperto em minha mão se
torna mais pronunciado. Fecho os olhos e tento internalizar aquela força. Uma mulher que já
passou por tanto, que talvez escute histórias que tragam lembranças dolorosas, mas se dispõe a
me ajudar. Eu preciso ficar. Mostrar a ela que vou mudar.
Getúlio pergunta se alguém deseja começar. O seu tom, sempre gentil, é um convite. Tenho
certeza de que não serei obrigado a falar, mas serei obrigado a ouvir. E o primeiro a falar tem
uma história tão parecida com a minha que perco o ar.
O seu pai também bebia e vadiava pela madrugada, largando a sua mãe e os seus irmãos
sozinhos em casa. Ele morreu, mas ao contrário do meu, não deixou qualquer herança.
A descrição de como ele, e os irmãos, se afundaram no álcool é lamentável. Encho-me de
angústia ao notar como a minha vida poderia ter sido. De repente, isso se torna demais. O fardo
do outro se transforma no meu. Ergo-me de supetão, tão rápido, que a mão de Aurora escapa.
Em segundos estou do lado de fora. Apoio o corpo no carro, ofegante como se tivesse corrido
uma maratona, incapaz de olhar para trás.
Não sei quanto tempo leva até que dedos delicados toquem o meu ombro. Ergo o rosto e
Aurora me encara de volta, preocupada. Estou pronto para ser submetido ao seu julgamento, mas
os seus olhos transmitem apenas gentileza.
— Sente-se melhor?
— Sim — confirmo com a cabeça. — Desculpe, eu...
— Não há o que desculpar — sorri, compreensiva. — Você pelo menos tentou.
Não respondo. Aurora acaricia o meu ombro e estende um livro. Encaro a capa sem qualquer
animação.
— O Sr. Getúlio pediu para te entregar. Disse que pode ajudar. E disse também que você será
muito bem-vindo, quando quiser voltar.
Mesmo sem nenhuma vontade, seguro a obra entre os dedos.
— Obrigado.
— De nada — um leve ronco toma o ar a nossa volta, audível graças à rua silenciosa. Aurora
ri, sem graça. — Acho que estou com fome.
Meu Deus! Deixei que uma mulher grávida ficasse faminta a ponto de o estômago roncar.
Isso é inadmissível. Destravo o carro e abro a porta, convidando-a a entrar.
— Vem, vou te levar para jantar.
Os olhos esverdeados brilham, visíveis graças ao facho de luz sobre nós.
— Está falando sério?
— Claro. Por que não estaria?
— Porque nunca fui convidada para jantar.
O meu queixo cai. E eu pensando que nada mais me surpreenderia nessa noite tenebrosa.
— Nem pelo seu... marido?
— Nem por ele — dá de ombros, entrando no carro. Dou a volta e entro também. Ela vibra
como uma menina quando dou a partida e saio. — Aonde vamos?
Penso um pouco. Aurora parece ser do tipo de pessoa que come de tudo. Existe um excelente
restaurante italiano próximo daqui. Há também o francês, recém-inaugurado e cheio de
excelentes críticas. Ou, quem sabe, ela goste de comida japonesa. Conheço um lugar a poucas
quadras de distância.
Decido perguntar:
— Você gostaria de comer o que?
Ela nem ao menos pensa.
— Um hambúrguer.
— Boa ideia! — tento puxar uma hamburgueria na memória, lembrando de uma que fica no
bairro dos Jardins. Um ambiente íntimo e silencioso. Tudo que preciso agora.
Ajusto o GPS, pronto para seguir até lá, mas Aurora aponta uma propaganda na rua.
— Quero um daquele dali!
Franzo o cenho. Ela quer ir ao... McDonald’s?
— Você tem certeza?
— Tenho! — a mulher só falta salivar. — Estou com vontade desde que cheguei à cidade,
mas ainda não consegui ir até lá.
Incrédulo, me lembro do seu comentário sobre ter vindo de uma cidade pequena. A rede de
lanchonetes se expandiu, mas não chegou as mais afastadas. Temendo que o seu bebê nasça com
cara de BigMac, sigo em direção à unidade mais próxima.
À distância, consigo ver pessoas se amontoando diante dos totens eletrônicos, as filas saindo
porta afora. O zum-zum-zum das conversas frenéticas é audível mesmo do interior fechado do
carro e as luzes fortes parecem tudo, menos convidativas. Não quero comer em um lugar tão
agitado, tampouco quero continuar procurando. Aurora já está com fome. Demorar mais pode ser
prejudicial para ela, e para o bebê.
— Podemos comer dentro do carro — diz, pressentindo o meu desconforto. Os olhos
deslizam pelo interior requintado do Audi, e é a sua vez de ficar desconfortável. — Se você não
se importar, é claro.
— Não me importo — respondo, entrando no drive-thru. Olho para a lista de hambúrgueres.
— Qual você quer?
— Esse — aponta para o combo com o BigMac. — Posso pedir um sorvete também?
Dou risada.
— Peça o que quiser, Aurora.
E ela pede. Um combo com o BigMac duplo, batata e refrigerante grande e um sorvete de
baunilha com calda extra de chocolate. Peço o mesmo, encantado com a sua simplicidade. Nunca
que a minha ex-mulher aceitaria jantar em um restaurante que não tivesse no mínimo uma estrela
Michelin.
Ao recebermos a comida, manobro o carro em direção ao canto mais distante do
estacionamento, longe o suficiente para escutarmos apenas o ressoar do tráfego indo e vindo na
avenida movimentada. Desligo o motor e olho para o lado. Aurora já está devorando as suas
batatinhas.
— São muito boas! — elogia, enchendo a boca delas. — O que será que colocam nelas?
— Sal?
Ela nega com a cabeça.
— Nenhuma batata fica tão boa apenas com sal. Tem que haver algum segredo!
Acendo a luz do teto e deixo que ela investigue o tubérculo frito de ponta a ponta, cheirando e
apertando a tira crocante por fora, mas macia por dentro. Dou risada, levando uma batatinha na
boca.
— Acho que não como uma dessas desde a época em que era estudante.
— Como você sobreviveu ao longo de todos esses anos? — questiona, pegando o
hambúrguer. Abre a embalagem e dá uma dentada. Um hummm preenche todo o carro. —
Misericórdia, é muito bom!
Continuo nas batatas, observando-a mastigar com gosto. Com a vontade sanada, as próximas
dentadas são mais contidas, saboreando o hambúrguer como se ele fosse uma iguaria fina. Não
sei por que, mas a sua imagem traz imensa paz.
E leva embora qualquer vontade de beber. Aurora nota a minha observação, abaixa o
hambúrguer e me encara.
— Está tudo bem?
Sorrio, tentando tranquilizá-la.
— Está, sim.
Uma gotinha de molho especial escapou dos seus lábios, manchando o canto da boca. Nem ao
menos penso. Apenas estendo o dedo para limpá-la. Ela fecha os olhos, apreciando o meu
contato.
— Obrigada — diz, baixinho.
— Pelo que?
— Por me proporcionar isso.
Uma nova risada escapa.
— Isso o que? — olho em volta, confuso. Ela cobre a minha mão com a sua.
— Isso.
O sangue que corre em minhas veias se agita. A mágoa vem sendo filtrada por um coração
que aos poucos encontra motivos para se encher de um sentimento que ainda não quero nomear.
Talvez, no fundo, eu sempre soube que a minha metade foi levada à força, arrastada pelas areias
finas de uma praia.
Levada por um infortúnio, devolvida por outro.
Desço os olhos em direção a mancha de molho que não existe mais. Os meus lábios tremem
de vontade de puxar o seu rosto e roubar um beijo. Deslizar a língua pela boca carnuda, descobrir
o seu gosto. Não importa que ela esteja devorando um hambúrguer. Sei que ele será doce. Sei
que me fará prová-la até mitigar todo o ar à nossa volta.
Aurora parece desejar o mesmo. Entreabre os lábios, pronta para me receber, mas de repente
recua. Piscamos, como se acordássemos de um estupor, e nos ajeitamos sobre o banco de couro
macio.
Ela é minha recepcionista! Acabou de sair de um relacionamento fracassado! Duvido que
queira se envolver com outro homem em tão pouco tempo.
Você também acabou de sair, mas está doidinho para se envolver com ela.
Balanço a cabeça. Estou, sim. Mas também estou ciente de que Aurora merece alguém
melhor. Por mais que anseie pela sua ajuda, não quero pôr o peso dos meus problemas em suas
costas. Ela já passou por um marido alcoólatra. Não precisa de outro.
Meu Deus, já estou pensando em casamento!
A promessa, feita há tantos anos, vem com força. Encaro a mulher acanhada, sentada a
centímetros de distância. Ela sorri e dá uma nova mordida no hambúrguer. Sorrio de volta e
mordo o meu. Sim, ela merece alguém melhor. E estou disposto a me tornar alguém melhor por
ela.
— Precisarei passar um ou dois dias viajando — digo, após engolir. — Vou levar o livro
comigo.
— Ah, isso é ótimo! — vibra. — Tenho certeza de que ajudará!
Eu não tenho tanta, mas preciso começar de algum lugar.
— E, quando voltar, vou me consultar com um terapeuta — continuo. — Acho que me
sentirei mais à vontade contando sobre a minha vida para uma pessoa só.
O peito de Aurora infla de orgulho. Tento não olhar, cada vez mais ciente do tamanho dos
seus seios. Nem pequenos demais, nem grandes demais. Perfeitos para se agarrar com uma mão e
apertar. Afundar o rosto ao morder um mamilo, apreciando toda a sua maciez e...
Pronto, estou ficando duro de novo.
— Sabe que também posso ajudar, não sabe? — ela pergunta, tomando um longo gole de
refrigerante. Ajusto o paletó, tentando esconder a movimentação crescente em minha virilha.
— Sei, mas...
— Me ligue — enfatiza. — Se sentir vontade de beber durante a viagem, me ligue.
— Detesto incomodar, Aurora...
— Não vai incomodar — enfatiza. — Por favor, Guilherme. Prometa que irá ligar!
Os olhos suplicam. A voz implora. Não tenho qualquer alternativa a não ser concordar. E ter
ciência de que, se eu não beber, não precisarei incomodar ninguém.
— Prometo — digo por fim.
Ela sorri. O sorriso mais belo que já me deu. Ilumina o carro e penetra em cada poro do meu
corpo, me enchendo com uma nova onda de esperança.
Não tenho tempo de retribuir a gentileza. A sua expressão muda em um piscar de olhos,
substituída pela surpresa. Aurora coloca o refrigerante no console do carro e leva as duas mãos à
barriga.
— Ele chutou.
— O que?
— O bebê. Ele chutou — ergue o rosto, o sorriso maior do que nunca. Ri, quando um novo
chutinho acontece. Aprecia o momento e agarra a minha mão, a colocando ao lado da sua. —
Aqui! Consegue sentir?
Começo a negar com a cabeça, quando ele chuta de novo.
Arregalo os olhos, chocado com a sua força. O meu coração bombeia mais rápido, enchendo o
meu corpo com uma emoção indescritível. Lágrimas se formam no canto das pálpebras e começo
a rir feito bobo. Aurora me acompanha, também rindo e chorando. Mantenho a mão ali,
encantado demais para me mexer, esperando que o bebê chute de novo.
— Já decidiu o nome? — pergunto, com a voz embargada.
— Ainda não — responde, limpando o canto dos olhos.
Faço um leve carinho na sua barriga e me afasto. Eu quero melhorar. Eu vou melhorar. Se não
por mim, por nós três.
Capítulo 17 – Aurora

A súbita viagem de Guilherme me encheu de uma estranha expectativa. A ânsia para que ele
não precisasse me ligar, ao mesmo tempo em que desejava que ligasse. Ouvir o timbre da sua
voz grave, para compensar os dias em que não escutaria os seus passos saindo do elevador.
Espero durante todo o expediente, mantendo o celular perto caso precise, mas o objeto se
mantém inativo durante o primeiro dia. Ao chegar na pensão, vou dormir cheia de saudade, mas
feliz. Se ele não ligou, é porque conseguiu resistir.
Ou porque bebeu o suficiente para cair inconsciente e nem ao menos lembrar que existo.
Um estranho pressentimento me acompanha ao longo do expediente do segundo dia. Os dedos
coçam para mandar uma mensagem, apenas para saber se ele está bem, mas reluto. Não temos
uma simples relação de chefe e funcionária, mas também não sei se somos amigos. Somos uma
coisa meio indefinida, que me faz pensar o quanto devo me envolver.
Mesmo assim, passo o dia preocupada. Temo que ligue quando estiver no metrô, onde o sinal
é ruim. Caminho em direção à pensão com o celular na mão, ciente de que é perigoso, mas o
maior medo é perder a sua ligação. Janto em companhia das demais mulheres, ouvindo piadinhas
sobre estar apaixonada a ponto de não desgrudar do aparelho.
Com o celular sempre próximo, ignoro as roupas no varal e sento com as meninas no sofá. A
novela das nove acabou mais cedo por causa de uma partida de futebol, então Clarice tem a ideia
de assistirmos Cinquenta Tons de Cinza.
— Não acredito que você nunca assistiu! — diz, surpresa.
Encolho-me entre as almofadas enquanto as piadas aumentam. Tento não estragar a noite
pensando o que Osvaldo faria se chegasse em casa e desse de cara com a esposa assistindo ao
filme, mas é inevitável. A sensação só desaparece quando Christian Grey toma a tela, trazendo
consigo uma leva de pensamentos impuros.
Elas começam a me azucrinar, querendo saber se o meu chefe se assemelha ao personagem do
filme. O meu rosto se enche de calor. O centro das pernas? Torna-se encharcado. O quarto
vermelho não faz o meu estilo, mas a mera ideia de Guilherme me encarando com seus intensos
olhos castanhos e tomando o meu corpo com a mesma vontade dominadora faz um gemido
escapar dos lábios.
Soraia permanece na sala até o início das cenas apimentadas. Com reclamações de “Isso é
uma pouca vergonha!”, se retira com um boa noite que mais se assemelha a um rosnado. O
restante de nós continua assistindo, sem se preocupar em acordar cedo no dia seguinte. Mesmo a
contida Rosana suspira ao término do filme. Eu estou com os hormônios prestes a entrar em
erupção.
Entre risos, subimos em direção aos nossos quartos. Abro a porta do meu, surpresa ao notar
que Soraia recolheu a roupa seca e a colocou sobre a cama. Separo o que precisarei passar e
ajeito o restante em uma das gavetas do guarda-roupas, deixando um cantinho reservado para as
roupinhas do bebê. Quero descobrir o sexo antes de começar o enxoval. Tenho um forte
pressentimento de que é um menino, mas caso seja menina, quero um enxoval todo cor-de-rosa.
Começo a me deitar e o celular toca. Olho para a tela, confirmando o óbvio: é Guilherme.
Com o coração aos pulos, adianto-me para atender. A voz soa desesperada do outro lado da
linha.
— Aurora?
— Sim, sou eu — confirmo, assustada. — Você está bem?
— Estou. Ou melhor, acho que estou...
Quero bombardeá-lo de perguntas, mas recosto-me na cabeceira da cama, dando-lhe tempo,
pronta para ouvir o inevitável, quando sua voz retorna fazendo com que eu me arrepie inteira.
— Eu consegui.
Sorrio sozinha dentro do quarto.
— Eu sabia que conseguiria!
— Não há o que comemorar — continua, soturno. — A minha boca está seca. As mãos
tremem. Está faltando pouco para levantar da cama e ir até o bar do hotel.
— Não faça isso — peço. — Lembre-se: um dia de cada vez.
— Estou tentando lembrar — suspira, parecendo muito cansado. — Pena que alguns dias são
mais difíceis do que outros.
Ajeito-me entre os lençóis com o coração apertado. Pelo tom de voz, Guilherme necessita de
um abraço.
— Como o colaborador está?
— Ah, ele está bem. Melhor do que eu esperava, confesso. Terá alta do hospital amanhã.
— Então o que está te incomodando?
A linha fica em silêncio. Escuto apenas o leve ruído de uma respiração entrecortada. Uma
ideia insana percorre a minha mente, mas não sei se sou capaz de colocá-la em prática.
Talvez, o que incomode a ele, seja o mesmo que incomode a mim.
— Aurora?
— Estou aqui.
— Por favor, me distraia com qualquer coisa.
Deslizo a mão pela coxa, erguendo a barra da camisola. É o que basta para me acender por
inteira. Oxe, onde estou com a cabeça? Jamais fiz algo parecido! Nem sei como começar! Mas
algo já começou. Guilherme quis me beijar dentro do carro e oh céus, como eu quis beijá-lo de
volta!
Não fosse o bebê dando os seus primeiros chutinhos, tenho certeza de que teria acontecido. A
razão grita, lembrando o quanto o homem do outro lado da linha é problemático, enquanto a
emoção enfatiza que ele é tudo o que eu quero.
Mando tudo às favas e tomo uma atitude.
— O que está vestindo?
A linha torna a ficar em silêncio. Quase consigo ouvi-lo pensando, mas me mantenho firme.
Ao retornar a falar, noto uma ligeira confusão no seu tom de voz, mas também uma certeza.
Ele sabe onde quero chegar.
— Uma camisa branca e uma calça social cinza-escura.
— E o paletó?
— Esse eu já tirei.
— O que mais está disposto a tirar?
— Depende, Aurora — o desespero some, deixando apenas a gravidade da sua voz. — O que
você está vestindo?
— Uma camisola — ergo a barra um pouco mais.
Um gemido escapa, viajando quilômetros até mim.
— Como é essa camisola?
Uma leve rouquidão impregna as suas palavras. Encho-me de coragem e solto uma pequena
risada, gostando cada vez mais daquele jogo. Eu poderia mentir. Dizer que visto uma camisola
fina, fabricada com a mais pura renda vermelha, mas lembro que Guilherme está cansado de
mentiras. Atenho-me a verdade.
— É simples. De algodão branco, com algumas rendinhas cor-de-rosa na barra.
— Ela é transparente?
Minha nossa!
— Não muito — admiro, levando uma mão ao seio. Estremeço da cabeça aos pés ao tocar no
bico intumescido. — É bem simples, na realidade. Não há nada de especial nela.
— Há sim, algo de muito especial nela — comenta, mais rouco. — Está disposta a fazer algo
por mim, Aurora?
Ofego algo.
— Depende. O que?
— Algo que talvez condene a nós dois — sussurra, arrepiando todos os pelos do meu corpo.
Naquele momento, estou queimando a ponto de fazer qualquer coisa por ele.
— Estou.
— Tem certeza?
— Tenho. E você?
— Tenho — confirma, sem hesitar. — Erga a barra da sua camisola.
Não é um pedido. É uma ordem. Dita por uma versão do Guilherme que ainda não tive o
prazer de conhecer.
Mas talvez conheça agora.
— Erguer até onde?
— Até expor a barriga.
Agarro a barra rendada e faço como ele ordena. A pele se arrepia.
— Ergui.
— Tire a calcinha.
— Estou sem calcinha.
O homem ofega alto. Sorrio para mim mesma, gostando de descobrir essa nova Aurora.
Decido ser um pouco mais ativa no jogo.
— Quero que tire a sua camisa.
— Estou abrindo botão a botão.
Fecho os olhos e visualizo a cena. Guilherme esparramado entre os lençóis macios da cama,
abrindo a camisa sem qualquer pressa, expondo o peitoral e o abdômen cheio de gominhos. Ele
parece ter poucos pelos. No máximo, uma trilha tão castanha quanto os seus cabelos, partindo do
umbigo em direção ao...
— Agora estou tirando o cinto, Aurora — sussurra, de forma tentadora. Ouço o couro
deslizando com um zunido pelas alças da calça. Depois, o zíper puxado para baixo. — O que
mais você quer que eu tire?
Imagino ele empurrando o tecido caro pelos quadris, passando pelas coxas firmes até se
manter apenas de cueca. O cérebro vira gelatina. Perdi qualquer noção do que eu quero, ou
poderia querer. Na cobertura, tive um rápido vislumbre do seu corpo nu, mas aquela era outra
situação.
Agora, a situação é completamente nova.
— Não. Quero que a mantenha aberta. Tire apenas o seu...
Engulo em seco, incapaz de falar. Quase consigo vê-lo sorrindo.
— O meu o que?
O meu rosto enrubesce. Eu nunca disse aquela palavra em voz alta. Nunca. É um pouco difícil
dizer agora.
— O seu... negócio.
A linha fica muda por um instante, até que ele gargalha alto. Encolho os ombros, torcendo
para não ter cortado o clima e arruinado a noite.
Basta que ele volte a falar para eu descobrir que não cortou. Pelo contrário, o homem parece
ainda mais atiçado.
— Tirei o meu negócio — volta a sussurrar, deixando um gemido escapar pelos lábios.
Engulo em seco. Ele permanece calado, mas sei que está movimentando a mão para cima e
para baixo por todo o seu comprimento. Sinto a umidade empoçando no meio das pernas e volto
a acariciar um mamilo, sem saber muito bem como prosseguir.
Guilherme toma o comando.
— Aposto que já está molhada — a rouquidão se acentua, fazendo com que um gemido
escape dos meus lábios. Quase consigo ver o sorriso safado nos seus. — Ah, está sim. Quero que
abra as suas pernas e enfie dois dedos fundo em sua boceta.
O tom obsceno da palavra me pega de surpresa.
— Enfie e... faça o que? — deixo escapar, só depois percebendo como soa idiota. Ele não
parece se importar.
— E os movimente, para frente e para trás.
— Você está fazendo o quê?
— Acabei de fechar a mão em torno do meu pau. Estou subindo e descendo, espalhando toda
a lubrificação que escapa da ponta, imaginando os seus dedos delicados socando forte em sua
boceta.
Por um instante, penso que ele vá acrescentar algo como: “da mesma forma que adoraria
socar o meu pau”, mas Guilherme se contém. Pode ter se transformado em um safado, mas ainda
é um cavalheiro.
Com o corpo quente a ponto de entrar em combustão, deslizo os dedos sobre a curva da
barriga em direção a virilha, descendo o suficiente para alcançar os grandes lábios. Exploro a
região devagar, sem pressa de descobrir sensações que ninguém antes teve curiosidade de
despertar. Fico impressionada com a umidade viscosa e quente que impregna os meus dedos.
Ao invés de enfiar dois, enfio apenas um. Mesmo durante a adolescência, nunca fui de
explorar o meu corpo. Minha mãe dizia que eu deveria me manter casta, o mais inocente
possível. Não havia pressão em seu tom. Havia apenas um pedido cheio de sabedoria de quem
não ouviu a própria mãe, e de alguma maneira se arrependeu disso.
Obedeci, ciente de que era como as coisas deveriam ser. Foi assim que me casei virgem, com
um homem que jamais fez menção de me agradar.
— Eu quero os dois dedos — a voz de Guilherme me tira dos devaneios. — Não um, os dois.
— Eu nunca fiz isso antes — deixo escapar.
— Faça agora.
Respiro fundo e insiro mais um dedo, começando os movimentos de vai e vem. Arrepios
dominam o meu corpo. O homem geme do outro lado da linha, como se acompanhasse os meus
movimentos.
— Estique o polegar. Tente, ao mesmo tempo em que insere os dedos, massagear o seu
clitóris. Com força — acrescenta. — Quero te ouvir gritar.
— Não sei se consigo...
— Consegue. Sei que consegue.
Espalho a lubrificação e sigo a sua ordem. Desajeitada, de início. Os dedos escorregam, mas
logo consigo manter um ritmo.
E é como descobrir um novo mundo.
Volto a estremecer. Dessa vez, de forma mais profunda. Um gemido escapa da garganta,
fazendo com que o celular deslize do meu ouvido e caia no ombro. Resisto à tentação de colocá-
lo no viva-voz, dando mais motivo para as meninas tirarem sarro da minha cara.
— Soque forte, Aurora. O mais fundo que os seus dedos conseguirem ir.
— Estou socando — consigo dizer, ajeitando o celular no ouvido com a mão livre. Adoraria
deslizá-la pelos meus seios, apertando os bicos doloridos de tão rígidos.
— Ótimo — grunhe, ofegante. — Aperte o seu pontinho de prazer com a ponta do polegar.
Aperte-o enquanto vai fundo. Bem fundo.
Assim o faço. Aos poucos, algo desconhecido começa a se avolumar no meu âmago. Ajusto
os dedos e aumento a velocidade dos movimentos.
— Acho que vou... — começo a dizer, mas ele interrompe.
— Agora, rebole contra a sua mão!
A ordem é imperativa, mas ao contrário das recebidas em casa, não quer me diminuir. Quer
me engrandecer. De tal forma, que só me resta obedecer.
Rebolo, sentindo o controle se esvaindo conforme as minhas paredes internas se fecham em
torno dos dedos enfiados até o fundo. A onda de prazer me pega de surpresa, fazendo com que o
meu corpo sofra um espasmo. Perco o controle, arqueio o pescoço contra o travesseiro e grito,
completamente tomada pelo orgasmo.
Desfaleço contra os lençóis, satisfeita como nunca me senti. O telefone voltou a cair do
ouvido, mas ouço Guilherme. Os movimentos de vai e vem de sua mão escapam pelo aparelho,
liberando o próprio prazer com uma sucessão de gemidos roucos.
Permanecemos calados, o silêncio cortado apenas pelo nosso ofegar. Tento não imaginar os
gominhos da sua barriga cheio de jatos esbranquiçados, o peitoral firme subindo e descendo
conforme respira. Ou melhor, tento não pensar em como encararei o seu rosto amanhã, ao sair do
elevador e caminhar em minha direção. Engulo em seco, finalmente ciente da insanidade que
acabamos de cometer.
Estamos condenados. Deliciosamente condenados.
— Aurora? — sussurra.
— Estou aqui.
Aguardo, ansiosa, que ele fale. Que admita que foi um erro, que jamais irá se repetir. Que na
manhã seguinte, fingiremos que nada disso aconteceu. Voltaremos a manter distância. Sim,
manter distância. É o mais seguro para nós. Talvez o mais seguro seja desligar e fingir que não
demos prazer um ao outro a quilômetros de distância.
— Obrigado — Guilherme corta os meus pensamentos.
— Ah, não foi nada...
— Não — corta de novo, suave. — Por melhor que tenha sido, não estou agradecendo por
isso.
E desliga.
Encaro o telefone, tentada a retornar a ligação, mas dou-lhe tempo. Eu mesma preciso de
tempo. Fecho as pernas e abaixo a camisola, a sensibilidade de cada terminação nervosa
prolongando o que acabamos de fazer. Preciso ir ao banheiro, mas antes, preciso me certificar
que todas na casa estejam dormindo. Detestaria que alguma delas descobrisse e...
— Está tudo bem aí? — Clarice bate na porta. — Pensei ter ouvido um grito.
— Estou ótima! — adianto-me em dizer. — Ótima como nunca estive!
É o que basta para que a minha amiga solte uma gargalhada.
— Dá para notar! — brinca, se afastando da porta. Passo a mão pelo rosto. Pronto, elas já
descobriram.

Tomo o café da manhã rápido, tentando me livrar das piadinhas sobre o meu contatinho
misterioso. Mantenho-me calada, alimentando a imaginação fértil do grupo de mulheres.
Matilde aposta que é o homem do Audi, enquanto Clarice acredita que mantenho não um, mas
dois contatos. Tereza é curta e grossa ao dizer que, seja lá quem for, que seja um gostoso de pau
grosso. Isso arranca gargalhadas estridentes até de Rosana, a mais contida. Soraia enfatiza que só
namora com as suas “meninas” se for até à pensão pedir autorização.
Ao chegar mais cedo no trabalho, ocupo o meu lugar na recepção com certa expectativa. A
maioria dos colaboradores passam por mim como sempre passam: fingindo que não existo. Jorge
ergue uma sobrancelha, talvez sentindo algo diferente no ar. É Dolores quem percebe. O quê?
Não sei, mas uma mulher consegue captar quando a outra dormiu plenamente satisfeita.
O elevador apita de novo, anunciando a última chegada. Ele sai com suas passadas largas,
impecável no terno de grife bem cortado. Ergue o rosto em minha direção e, como um menino
tímido, enrubesce por completo, até o sorriso tomar conta do rosto.
É um sorriso de bom dia, mas é um sorriso de algo mais. Um sorriso com um quê safado.
Repleto de segredos, segundas intenções e promessas pecaminosas. Não importa o tipo de
sorriso. Apenas sorrio de volta.
— Dormiu bem? — pergunto, como quem não quer nada.
Ele se aproxima, parando a poucos centímetros de distância.
— Muito — sussurra. Cinco míseras letras que não querem dizer nada, ao mesmo tempo
dizem tudo. O suficiente para arrepiar todos os pelinhos do meu corpo. — E você? Como passou
a noite?
— Bem. Muito bem.
— Ótimo — encara-me nos olhos, sem piscar, o castanho tom de chocolate cintilando como
uma densa calda derretida. — Há algo que eu gostaria de te mostrar.
— O que?
Ele abre a pasta e olha para os lados, querendo se certificar que ninguém presta atenção na
conversa. Meu Deus, será que ele vai me mostrar alguma sacanagem? Espero que sim.
Ele tira um livro e o coloca em cima da mesa. O meu coração bate com força total.
— Li. Inteiro. E decidi voltar às reuniões.
— Sério? — vibro, resistindo a tentação de dar pulinhos de animação. Ele confirma com a
cabeça. — Isso é ótimo, Guilherme!
— Também acho que é — assume, um pouco acanhado. — Esses dois dias me fizeram pensar
em muita coisa, Aurora.
Ele não continua, mas consigo ler o seu rosto. Consigo ouvir o que os seus lábios querem
dizer:
E uma delas, é você.
— Também pensei em várias coisas — admito.
— Que bom —torna a se aproximar o suficiente para que eu possa escutar o ruído da sua
respiração. — Ontem provamos que podemos ter vários tipos de pensamentos em conjunto.
Não estou apenas arrepiada. Estou quente. Provavelmente vermelha feito um pimentão.
Esfrego a coxa uma contra a outra, tentando conter a umidade prestes a arruinar a calcinha, mas o
arrependimento é instantâneo. O movimento só serve para aumentar a lembrança do que fizemos
na noite anterior.
— Deu tudo certo na... na... viagem? — consigo perguntar.
Guilherme se afasta o suficiente para me encarar, ainda com um sorriso no rosto.
— Graças a você, deu. Inclusive, trouxe um presente.
Primeiro, olha para os lados e guarda o livro de volta à pasta. Depois, pega um saco pardo.
Mantive-me tão concentrada em sua aparência que nem ao menos percebi algo extra em sua mão.
Ele o coloca sobre o balcão, pedindo silenciosamente que o abra. Assim o faço, soltando um
grito tão logo vejo o seu conteúdo.
— Eu não acredito! Onde você conseguiu? — pergunto, puxando um pote de geleia de
laranja-cravo.
— Em uma loja de produtos naturais próxima ao hotel.
— E são todas minhas? — encaro os quatro potes, encantada. Ele confirma com a cabeça.
— São. Comprei algumas para mim. Caso... — engole em seco, um novo tom rosado subindo
pelo pescoço e tomando o seu rosto. — Caso também sinta vontade de comer.
Solto uma risadinha.
— Obrigada, Guilherme.
Ele volta a se aproximar. Por um instante, penso que vá beijar a minha boca. Desejo
ardentemente que beije a minha boca. Ao invés disso, ele segura a minha mão livre e leva aos
lábios.
O contato é sutil a ponto de parecer um sonho. Um casto beijo de despedida, forte o suficiente
para me condenar por inteira. Firme o suficiente para incendiar a minha sanidade por completo.
— Já disse, Aurora — ergue os olhos. — Sou que quem agradeço.
Então ele me solta. Caminha a passos largos em direção ao escritório, cumprimenta os demais
colaboradores e entra na sua sala. Permaneço onde estou. Incerta sobre tantas coisas relacionadas
ao meu futuro. Cada vez mais certa sobre o meu presente.
Capítulo 18 – Guilherme

Aos poucos, tudo passa. Até mesmo, a vontade de beber.


Cumpro a promessa de procurar ajuda. Retorno à reunião do alcoólicos anônimos, mesmo que
seja apenas para ficar sentado quieto em um canto fora do círculo principal, ouvindo a história de
outros, sem nenhuma vontade de compartilhar a minha.
Dolores encontra um bom terapeuta e marca a primeira consulta. É difícil falar de mim
mesmo, mas consigo. Descubro uma leve depressão. Confirmo a tendência ao alcoolismo. E, aos
poucos, entendo os fatores que estavam me levando à própria ruína.
Alguns dias são mais difíceis que outros, cheios de suores frios e mãos trêmulas, mas não
estou mais sozinho. Tenho ajuda de várias formas.
Tudo passa. Aos poucos, tudo passa.
Menos a vontade dela.
Um vício substituído por outro. Mais belo. Cheio de vida. A menina dos sonhos se torna a
mulher do meu despertar.
Aurora é uma obsessão.
Em um primeiro momento, não entendi o que insinuou durante a ligação. A viagem foi mais
tranquila do que imaginei, mas ainda cheia de percalços. Estava esgotado ao chegar no hotel,
pronto para espantar o estresse com a maior quantidade de álcool que conseguisse beber.
Quando lembrei da vontade de melhorar, se não por mim, por ela. Liguei sem olhar as horas
ou lembrar como detesto incomodar, ansiando me embebedar em sua voz. E ela veio. Tímida de
início, sugerindo uma brincadeira nada infantil entre dois adultos. Enfim entendi, e decidi entrar
no jogo.
O meu pau endureceu assim que ela mencionou a camisola branca, com renda cor-de-rosa,
sem nada por baixo a não ser pele nua. Rígido a ponto de doer. Rígido como há muito não ficava.
A movimentação no meu baixo ventre praticamente se extinguiu desde a separação. Com
Aurora, voltou com força total.
Imaginar as magníficas curvas do seu corpo deitado sobre os lençóis, com os dedos indo e
vindo da sua pulsante umidade, foi o suficiente para me fazer esquecer qualquer vontade de
beber. Só uma vontade prevaleceu: a que fosse eu a socar fundo em sua boceta, até fazê-la gritar
de tanto prazer.
Retornar ao trabalho e não poder tocá-la, fingindo que é apenas uma mera colaboradora. A
recepcionista sorridente e gentil, elogiada por todos que chegam de fora, tornou-se uma deliciosa
tortura.
Quero tocá-la. Deixar o fingimento de lado e permitir que os meus sentimentos aflorem.
Tornar os seus sorrisos apenas meus.
Mas ainda é cedo. Tanto para mim, quanto para ela. Marcamos a reunião com Alexandre, e os
trâmites do processo de divórcio se iniciaram. Nesse meio tempo, não tive nenhuma recaída, mas
a vontade continua ali. A espreita. Ameaçando me arrastar para as profundezas do vale da
amargura.
Preciso esperar. Fazer o melhor para, em todas as manhãs, segurar a vontade de pular sobre o
balcão da recepção e tomá-la nos braços. Descobrir o quão doce é a sua boca, antes de descobrir
o sabor da sua...
— Bom dia, Guilherme! — Aurora sorri, parada diante da porta aberta da sala. — Posso falar
um minutinho com você?
Pisco, colocando-a em foco, salivando de vontade de provar o seu sabor. Engulo em seco e
me ajeito sobre a cadeira, tentando interromper a agitação entre as pernas.
— Pode, claro que pode — recomposto, abro um pequeno sorriso.
Ela fecha a porta e se aproxima, acanhada. Adoraria saber se ela ficaria acanhada com a
minha língua entre as suas...
Pigarreio alto.
— Como posso te ajudar? — insisto.
— Eu poderia sair depois do almoço? Preciso ir ao posto de saúde. Iria pedir para o Jorge,
mas...
— Não peça nada a ele — interrompo, um pouco irritado ao lembrar da vergonhosa recepção
do coordenador do setor de recursos humanos. O homem pelo menos teve a decência de pedir
desculpas. A cena foi constrangedora. Nem ele, nem Aurora, sabiam como agir e responder. —
Sempre que precisar de alguma coisa, peça diretamente a mim.
— Pode deixar.
A curiosidade, ahhh a curiosidade, aflora como sempre gosta de aflorar.
— Está tudo bem? — pergunto, analisando o seu corpo de cima a baixo.
Péssima ideia. A visão das suas curvas é tudo o que outra parte do meu corpo precisa para
pressionar o tecido da cueca de forma desconfortável.
— Está sim — o sorriso aumenta. — Apenas rotina do pré-natal. Ultrassom seguido de
consulta com a obstetra.
Arregalo os olhos e encaro a sua barriga.
— Você já está grávida de quantos meses?
— Seis — diz, orgulhosa. — Quase sete.
— E o bebê continua chutando?
A pergunta simplesmente escapa. A vontade de tocá-la prevalece sobre qualquer outra
vontade. De sentir, mais uma vez, a vida crescendo dentro do seu ventre. Para a minha surpresa,
Aurora solta uma risadinha bem-humorada.
— Continua. Está chutando agora. Por algum motivo, ele, ou ela, parece gostar do som da sua
voz.
O seu rosto se torna rubro. O coração bate forte, preenchido com uma gigantesca dose de
ansiedade. Deletei todas as minhas redes sociais, para não precisar acompanhar a gravidez alheia.
Mas sei que, nesse ponto da gestação, é possível descobrir o sexo do bebê.
De repente, tudo o que eu mais quero na vida é descobrir junto dela. Pego o telefone e disco o
ramal da secretária.
— Dolores? Por favor, desmarque todos os compromissos do período da tarde.
— Está tudo bem? — A secretária pergunta, assustada.
— Está, sim. Surgiu um compromisso inadiável.
— Tudo bem. Vou reorganizar a agenda.
— Obrigado — desligo o telefone e olho para a recepcionista, tão assustada quanto. — Eu
vou com você.
Ela pisca.
— Aonde?
— No ultrassom — abro um novo sorriso, só então me dando conta que, desse jeito, pareço
mesmo um stalker. Preciso de uma desculpa válida, e solto a primeira que vem à mente. — A
sua gravidez está em um estágio avançado. Não é seguro ir sozinha de metrô.
— Já vi incontáveis mulheres com barrigas maiores que a minha indo e vindo pelo transporte
público — brinca. — E o posto de saúde é próximo da pensão. Eu não quero incomodar.
A mentira. Ah, a mentira. Está escrita em cada diminuta linha de expressão presente no rosto
bonito. Cintila nos olhos esverdeados como estrelas de uma galáxia distante. Aurora anseia pela
minha companhia no ultrassom.
— Não é incomodo algum. Pelo contrário, será um imenso prazer.
Ela pisca de novo, mais confusa do que nunca. Adianto-me em dizer.
— A menos, é claro, que você não queira — é a minha vez de ficar acanhado. Talvez eu tenha
interpretado mal. A euforia de acompanhá-la se tornou tão grande que nem pensei que, talvez,
ela deseje guardar esse momento para si. — Eu entendo, caso não queira, mas mesmo assim...
— Eu quero — confirma. — Ah, Guilherme, você não faz ideia de como eu quero.
Uma onda de adrenalina percorre todo o meu corpo.
— Então eu vou.
O sorriso ilumina toda a sala. Sorrio de volta, pego no flagra pela secretária. Ela entra na sala
olhando de um para o outro, desconfiada, até que um sorrisinho surja no seu rosto.
— Desculpe, não sabia que estava aqui — dirige-se a Aurora com simpatia. A recepcionista
dá um pulo.
— Já vou embora — olha para mim e faz mímica com os lábios. — Preciso estar lá às quinze
horas!
Confirmo com um leve aceno da cabeça. Já que iremos de carro, é tempo o suficiente para
almoçarmos, colocarmos a tarde em ordem e sairmos. Aurora volta ao seu lugar na entrada da
empresa enquanto Dolores me lança um olhar engraçado.
— Aposto que o seu compromisso inadiável envolve a nova recepcionista.
— Ela está aqui há meses — tento disfarçar. — Não é tão nova assim.
— Não, não é — a mulher ri. — E se me permite o atrevimento, ela te faz bem.
Limito-me a ficar em silêncio, analisando a agenda. A secretaria foi hábil em reorganizar a
minha vida em pouquíssimos minutos.
— Você é incrível, Dolores.
— Eu sei — estufa o peito e os cachos balançam no topo da cabeça. — E lembre-se de mim
sempre que tiver novos compromissos inadiáveis.
Reviro os olhos, mas ela não se importa. Sai da sala, rindo ainda mais.

O meu compromisso inadiável me aguarda na garagem, diante do Audi Q8. Para não levantar
suspeitas, preferimos descer separados. Desde o divórcio aprendi a lidar com o falatório, mas não
quero Aurora envolvida em fofocas desnecessárias. Por mais que a gestação siga sem percalços,
considero sim a condição delicada. Nada pode prejudicar a sua gravidez.
Seguimos trocando amenidades até o posto de saúde a poucas quadras da pensão. Incomoda
saber que ela precisa dividir a casa com outras pessoas para ter onde morar, mas a forma
carinhosa como fala das colegas, sobretudo sobre uma tal de Clarice, me faz notar que é feliz
vivendo com elas.
Preferia que ela vivesse no conforto da minha cobertura?
Preferia.
Ainda é cedo, Guilherme!
Chegamos, e algumas pessoas olham curiosas para o carro, ainda mais quando desço e faço
questão de abrir a porta para Aurora. Ela me presenteia com um dos seus sorrisos, mesmo que
pareça nervosa. Mãos se mexem na frente do corpo, inquietas. Resisto à tentação de segurá-las
entre as minhas e a acompanho em direção ao interior do posto de saúde.
Retiramos uma senha e aguardamos. Lembro de Alexandre me contando uma cena parecida,
ao acompanhar Beatriz no ultrassom. Na ocasião, ele foi confundido com um político. Aqui,
ninguém me confunde com ninguém, por mais que reparem no terno caro e nos sapatos mordidos
por Quindim.
Aurora repara, também.
— Como ele está? — pergunta, indicando o couro mastigado com o queixo. Encolho os
ombros e dou risada.
— Tão inadestrável quanto antes.
E morrendo de saudades de você.
— Ele é um amorzinho. Você só precisa ter paciência.
— Mais paciência? Eu me torno um monge budista próximo daquele cachorro! Muitos o
teriam colocado para fora por metade do que já fez.
O tom é bem-humorado. Deixa claro que eu jamais faria isso, por mais que o bicho esteja
devendo milhares de reais em sapatos italianos. Mesmo assim, o seu semblante murcha um
pouco. A língua coça para perguntar se ela já teve um cachorro. Que, provavelmente, foi expulso
pelo ex após comer um mísero chinelo de dedo, mas me contenho. Não quero lembrar dele. Ela,
pelo visto, também não.
— É só uma fase de filhote — comenta, tentando se animar. — Daqui a pouco ele cresce, e se
torna mais calmo.
— Duvido. Nem a castração foi capaz de acalmá-lo. De todos os filhotes que poderia
escolher, acho que adotei a versão peluda do Marley.
Aurora ri, atraindo atenção das mulheres à volta. Algumas, acompanhadas pelo namorado ou
marido, desviam o rosto rapidamente. As sozinhas nos encaram com nítida inveja.
O número da senha surge no painel, fazendo com que o meu coração dê um salto no peito,
mas por enquanto Aurora precisa apenas abrir ficha e confirmar seus dados na recepção.
Aguardamos mais um pouco, até sermos chamados em uma sala escura. A médica sorri para a
sua paciente, e arregala os olhos de surpresa ao me ver.
— Que ótimo! Dessa vez você trouxe o pai — comemora, indicando uma cadeira onde eu
possa me sentar próximo a Aurora.
Ela abre a boca. Pelo semblante assustado, para desmentir o equívoco da médica. Faço um
sinal indicando que está tudo bem. E está, mesmo. Nem o mínimo incômodo se apoderou do meu
corpo ao ser citado como pai do bebê.
Mesmo sob a luz difusa, o seu olhar enche-se de significado. Aurora segue as instruções da
ultrassonografista e se deita sobre a maca, desabotoando a camisa social. Sou rápido em afastar o
olhar da barriga inchada e do sutiã simples. A mulher tem a capacidade de me atiçar com o
mínimo gesto, por mais que não haja nada de erótico nele.
Volto a olhar no momento em que a médica passa o gel e aponta o transdutor do ultrassom.
Admiro a barriga redonda, a pele lisa, marcada por pequenas estrias, indicando o mapa do
crescimento do bebê. Os meus dedos coçam de vontade de tocá-la. Sentir cada centímetro da sua
gravidez enquanto converso com o pequeno ser em seu interior, torcendo para que ele chute a
minha mão, confirmando que ouviu cada palavra dita por mim.
A minha atenção é desviada pelas imagens azuladas no monitor. Está longe de ser um
ultrassom moderno, daqueles capazes de mostrar os mínimos detalhes, e talvez por isso tenha
ainda mais encanto. Há uma aura de mistério no contorno do bebê, como se ele fosse feito da
mais plena luz.
— Ele parece tão grande! — Aurora comenta, fazendo a médica rir.
— Comparado ao último ultrassom, parece mesmo. Vocês gostariam de ouvir o coração?
Assinto, rápido, o meu próprio coração martelando no peito. Por um minuto inteiro, não
escutamos nada, até que o poderoso tum-tum-tum toma a sala.
A garganta se fecha, tamanha emoção. Tento respirar, mas não consigo. Por um instante,
penso que vou desmaiar. Venho dar apoio a mulher grávida, mas acabo dando trabalho para toda
a equipe médica, virando motivo de piada até a próxima geração de funcionários no posto de
saúde.
A vista escurece e o pensamento se torna uma certeza: eu vou desmaiar. Começo a entornar
no corpo, caindo em direção ao chão, quando uma mão firme segura a minha. Aprumo a postura
e encaro, de forma límpida, a mulher deitada na maca.
— Está tudo bem?
— Está — consigo dizer, com a voz embargada. — Eu só... — engulo em seco. — Eu só
fiquei emocionado.
— Calma aí, pai — a médica brinca. — Talvez você fique mais emocionado agora — olha
para nós, fazendo suspense. —Não conseguimos ver o sexo do bebê na última consulta, certo?
— Certo — Aurora confirma, com uma leve risada. — Você disse que ele estava tímido.
— Hoje ele não está nem um pouco tímido. Posso revelar, ou vocês preferem manter o
suspense?
Eu e Aurora nos entreolhamos. O aperto em meus dedos se torna mais pronunciado.
— Pode revelar.
— Então parabéns — vibra. — Vocês estão esperando um lindo menininho!
Ah, pronto! A vista volta a escurecer. É agora que eu vou desmaiar. No fundo, jamais tive
preferência. Sempre pensei que meninas podem fazer as mesmas atividades que meninos, e vice-
versa. A emoção se dá mais por saber que o pressentimento de Aurora estava certo.
E em saber que, se tudo continuar bem, poderei assumir o desejo crescente em meu peito. Um
desejo tão grande que me faz suprir a vontade de assumi-lo agora, por mais que ainda seja cedo.
— Eu sabia! — Aurora vibra.
Rio, contagiado pela sua alegria. O ar torna a faltar e, de novo, me sinto caindo. A risada da
médica toma conta da sala e mãos fortes agarram os meus ombros, me mantendo no lugar.
— Não vá desmaiar!
A futura mãe se junta ao coro, apertando a minha mão com mais força. Acabo rindo, também.
— Você esteve certa durante esse tempo todo — consigo dizer, voltando a me endireitar sobre
a cadeira.
— Estive! — estufa o peito, elevando os seios dentro do sutiã.
A médica, curiosa, interrompe o nosso interlúdio.
— Já pensaram em um nome?
Juntos, em perfeita sincronia, fazemos que não. Olhamos um para o outro e caímos na risada.
Eu poderia jurar que Aurora já tinha uma ou duas opções de nomes, mas não a julgo. Apesar de
ser um sonho antigo, nunca parei para pensar em nomes. Sempre acreditei que, quando o
momento chegasse, o nome do meu filho chegaria junto com ele.
Ele não é o seu filho, a velha onda de negatividade surge das profundezas da mente. Noto,
com alegria, que não preciso de muito para afastá-la. A terapia, pelo visto, está fazendo efeito.
A médica desliga o aparelho de ultrassom e acende a luz. As duas mulheres me encaram
assim que o ambiente se ilumina. Franzo o cenho, sem entender, quando Aurora exclama:
— Você está chorando!
Só então sinto a trilha de lágrimas molhando o rosto antes de penetrar na barba curta. Rio de
novo, mais rouco dessa vez, ao apontar com o queixo para a mulher deitada na maca.
— Você também está.
— Claro que estou! — devolve a risada. — Mas, pelo menos, não desmaiei.
— Eu também não! — levo as mãos à cintura. — Quase, mas não desmaiei.
As risadas de Aurora aumentam enquanto aguarda que a ultrassonografista limpe a barriga
para, com camisa aberta e tudo, me abraçar.
Abraço de volta, afundando o nariz nas ondas de cabelos castanhos. O perfume floral me
embriaga como nenhuma dose de vodca foi capaz de fazer. Acaricio as suas costas, sentindo a
barriga curva roçando a minha. Sem conseguir aguentar mais, desço uma das mãos em direção a
pele estendida.
— Ei, pelo visto, está tudo bem ai — murmuro, aumentando a carícia.
Dessa vez, o bebê não chuta. Permanece quietinho, ciente de que se exibiu demais por um dia
só. A médica pigarreia, chamando a nossa atenção. Permanecemos abraçados sem nos darmos
conta do tempo.
— Aqui estão as imagens — diz, com um sorrisinho tão sacana quanto o da secretária horas
mais cedo. — É só aguardar do lado de fora. A obstetra irá chamar daqui alguns minutos.
Aurora volta a se vestir e, de mãos dadas, saímos da sala. Basta por os pés de volta à recepção
para o meu celular tocar. Com um olhar de desculpas, tiro-o do paletó e encaro a tela. É do
escritório.
— Oxe, não vai atender?
— Não — digo, colocando-o no silencioso. — Os meus colaboradores são capazes de
resolver quaisquer problemas sozinhos.
— Mas...
— Você é o meu compromisso inadiável, Aurora — enfatizo, voltando a segurar a sua não. —
Não quero saber se o escritório está pegando fogo. Quero saber apenas de você e do bebê.
Seus olhos se enchem d’água. Com a mão livre, pego um lenço de seda dentro do bolso
interno do paletó e o estendo em direção à sua face, secando lágrima a lágrima. Ela toma o
pedaço de tecido e faz o mesmo, percorrendo todo o meu rosto com delicadeza. Próxima o
suficiente para que eu possa ouvir o som da sua respiração, inspirar o frescor do seu hálito,
desejar mais do que nunca beijar a sua boca até deixá-la sem ar.
Foda-se se ainda é cedo. Foda-se se estou em um posto de saúde, rodeado de pessoas
estranhas. Simplesmente foda-se.
Desço os olhos em direção aos seus lábios, ciente de que ela faz o mesmo movimento em
direção aos meus.
Quando o painel apita, chamando a nossa senha.
Endireitamos o corpo e soltamos uma leve risada antes de seguirmos em direção a sala da
obstetra. Ela é séria, ao contrário da ultrassonografista. Não faz questão de saber quem sou e
atenta-se à prática médica, que domina com exatidão. Faz perguntas. Anota as suas respostas.
Mostra-se contente com a evolução da gravidez. Prescreve algumas vitaminas e, com tudo certo,
libera Aurora para ir embora.
Desvio da rota para pararmos em uma farmácia. A minha recepcionista insiste que não é
necessário, mas faço questão de pagar pelas vitaminas. De volta ao carro, abraça o saco plástico
com carinho, contente com o meu gesto.
Estaciono diante da pensão, ciente de que talvez estejamos sendo observados, mas não me
importo. As mulheres que dividem a casa com Aurora parecem ser do tipo que gostam de
transmitir apenas as fofocas do bem. Ela se vira para se despedir, e a pergunta sai dos meus
lábios antes que eu possa contê-la.
— Você está livre no domingo?
Aurora arregala os olhos.
— Estou. Por quê?
— Porque o Alexandre dará um churrasco na sua mansão. Não é nada especial, apenas um
churrasco em família. Com bebês, crianças. Até cachorros — rio, meio sem graça. — Gostaria
muito que você me acompanhasse.
Os olhos se arregalam ainda mais.
— Está falando sério? — pergunta, bem baixinho.
— Estou, claro que estou.
— E o Alexandre e a sua família não irão se importar?
— Não, pelo contrário. Tenho certeza de que ficarão felizes com a sua presença.
Ela pensa um pouco, visivelmente em dúvida. O desespero ameaça me dominar.
— O Quindim também vai — insisto.
A gargalhada preenche todo o carro. Sincera a ponto de fazê-la lagrimejar. Não resisto a
acompanhá-la, ciente do quão patético o meu argumento é.
— Pelo menos haverá mais alguém que eu conheço.
— Sim — rio mais um pouco antes de perguntar: — E então? Aceita o convite?
— Aceito!
Sorrio, feliz da vida.
— Posso te buscar ao meio-dia?
— Pode.
— Perfeito!
Aurora sorri de volta, parecendo tão feliz quanto eu.
É CEDO DEMAIS.
Mas...
Foda-se.
Entrelaço os dedos em uma mecha de cabelo, até alcançar a lateral do seu rosto. Minha mão
se fecha sobre ele com perfeição, como se esculpido apenas para caber entre os meus dedos.
Com delicadeza, puxo-a para mim.
Resisto, com todas as forças, a beijar os seus lábios. Beijo apenas a lateral da sua bochecha,
encantado com a maciez da pele.
Aurora suspira. Ao encará-la, vejo as íris esverdeadas cintilando. Sem qualquer cerimônia, ela
beija a minha própria bochecha, bem próximo a boca. Mesmo com a cobertura da barba, consigo
sentir o calor dos seus lábios se alastrando como fogo pela pele.
— Até domingo — sussurra, se afastando.
Abre a porta do Audi e, com um pequeno pulo, desce do carro. Observo-a se afastando,
ansioso para o final de semana. Ciente de que talvez não seja cedo demais.
Capítulo 19 – Aurora

— Como estou? — ajeito a frente da blusinha e me viro para Clarice. Ela me olha de cima a
baixo e assente em aprovação.
— Está linda!
— Tem certeza? — volto a me virar em direção ao espelho de corpo inteiro. — Não estou...
muito simples?
O convite de Guilherme me pegou desprevenida. Se por um lado me encheu de felicidade, por
outro encheu de preocupação. Ele garante que será apenas um almoço entre amigos, mas não
estou convencida. Talvez haja mais pessoas. Ricas o suficiente para ostentarem roupas de grife
enquanto estarei vestida com as últimas aquisições do brechó.
Clarice me avalia mais um pouco. Ergue-se da cama e corre em direção ao próprio quarto.
Retorna com um colar e um par de brincos de argola. Passa o primeiro sobre a minha cabeça,
ajeitando-o diante do meu busto. Depois, retira os meus brincos, pequenos como pontos de luz, e
passa o fecho das argolas pelos furos. Para finalizar, puxa algumas mechas do meu cabelo para a
frente, deixando-o mais volumoso. Confere tudo e assente mais uma vez.
— Agora você está muito linda!
Solto uma leve risada. O efeito realmente impressiona. Continuo simples, mas agora com um
toque de elegância.
— Gostei! Obrigada, Clarice.
— De nada — sorri, batendo palmas. — Ah, estou tão animada!
Sorrio de volta. Confesso que também estou. Nervosa a ponto de ter comido pouco no café da
manhã, apenas uma torrada com geleia de laranja-cravo, o único alimento capaz de se acomodar
entre o suco gástrico do estômago sensível.
Eu e Guilherme sabemos que ainda é cedo, assim como sabemos que talvez não seja tão cedo
assim. Os sentimentos estão crescendo. Em breve, não conseguiremos mais segurar.
O meu celular vibra. Não preciso pegá-lo para saber que o homem chegou. Com risinhos
assanhados, Clarice me ajuda a calçar a sapatilha e me joga para fora do quarto.
Descemos as escadas feito adolescentes ansiosas por um primeiro encontro. Soraia, de braços
cruzados, espia pela janela.
— Onde você vai? — pergunta, muito séria.
— Ah... Em um churrasco, na casa de um amigo do Guilherme — hesito, sem entender por
que está fazendo essa pergunta.
— Quero conhecer esse Guilherme.
Sem dizer mais nada, abre a porta de supetão e marcha como uma general. Eu e Clarice nos
entreolhamos antes de segui-la.
Guilherme aguarda do lado de fora do carro. Ele ergue os olhos e perco o fôlego. A camisa de
manga curta, com dois ou três botões abertos no peito mostra um vislumbre de pele nua. É
incrível como consigo me encantar com um detalhe tão pequeno, capaz de me atiçar de forma
avassaladora.
Está quente, então a calça social ficou de lado, dando lugar a uma bermuda caqui. As pernas,
longas e fortes, terminam em um sapato esportivo. Ele abaixa os óculos de sol e um imenso
sorriso desponta no bonito.
— Você está linda.
— Obrigada — troco o peso de um pé pelo outro, acanhada. — Você também está lindo.
O rosto adquire um adorável tom rosado. Ah, gosto como, se não bastasse ser alto e atraente,
o homem ainda tem a capacidade de corar.
Um latido corta o ar e a silhueta de um cachorro surge por trás do vidro escurecido do carro.
Solto um gritinho animado e Guilherme cai na risada.
— Alguém está com saudades.
Soraia pigarreia alto, com tamanho poder, que silencia até o cachorro. A pose despojada de
Guilherme entra em defensiva enquanto a mulher o encara.
— Onde vocês vão? — repete a pergunta.
Guilherme franze o cenho.
— Ah... na casa de um amigo.
— Pois bem. Saiba que a minha casa — faz um gesto indicando o sobrado nas suas costas. —
Abriga apenas mulheres de respeito. Você vai se ver comigo se eu souber que foi desrespeitoso
com a minha Aurora.
Os meus olhos se enchem d’água. Soraia pode ser dura na queda. Mulher de poucas palavras e
raros sorrisos, mas com um coração de ouro. O seu senso de proteção faz com que eu me lembre
de mamãe.
É a vez de Guilherme encarar a pensionista com seriedade.
— Eu jamais seria desrespeitoso com ela.
— Ótimo! Agora, vão se divertir.
O homem assente e abre a porta. Por sorte Quindim está bem preso no cinto de segurança,
senão teria saltado direto para o meu colo. Sento-me no banco dianteiro e me viro para acalmá-
lo, ganhando três lambidas molhadas no rosto. Guilherme logo se senta ao meu lado e nos
observa com um sorriso. Parece tão ávido para me beijar quanto o cachorro.
Dá a partida e seguimos em direção ao Jardim Europa, bairro de classe alta onde o advogado
mora. O meu queixo cai diante dos casarões e mansões que compõem as ruas tranquilas e
arborizadas, fazendo eu me perguntar o quão rico eles são.
Estacionamos diante de um muro alto, que deixa antever pouca coisa. Cavalheiro como
sempre, Guilherme se adianta para abrir a porta e estender a mão, permitindo que eu saia com
segurança. Tento ignorar a corrente elétrica que toma o meu braço e agradeço o gesto com um
aceno de cabeça. Se fico assim com ele tocando apenas os meus dedos, imagino como ficaria se
ele tocasse o meu corpo inteiro e...
O rosto esquenta. Solto o ar com força, tentando me recuperar, sem qualquer sucesso.
Guilherme tira Quindim do carro e me encara de cenho franzido.
— Está tudo bem?
— Está — abano a face. — Foi só uma onda de calor.
— Não sabia que mulheres grávidas tinham ondas de calor.
Eu também não sabia, Guilherme. Talvez apenas as obrigadas a conviver com homens
absurdamente atraentes sejam acometidas por esse efeito adverso da produção deliberada de
hormônios.
— Às vezes acontece — sorrio, meio sem graça.
Como sempre, ele sorri de volta. Com tanto carinho que faz o meu coração se apertar de
amor. Uma palavrinha tão pequena, mas ao mesmo tempo tão grande. Que não precisa ser dita
para se fazer presente. Desde o momento em que um homem saiu do elevador e se agachou a
minha frente, desejando saber se eu estava bem.
Guilherme firma a guia de Quindim em uma mão. A outra, segura a minha mão. A corrente
elétrica volta a subir, espalhando-se pelo meu braço e tomando todo o meu corpo.
Deixo-me guiar em direção à porta. Ele afrouxa a guia para tocar a campainha, mas não
afrouxa os meus dedos. Segura-os com firme delicadeza.
Uma das maiores preocupações em relação ao almoço é: o que o anfitrião da casa pensará ao
chegarmos juntos? Percebo que não me importo. Só me importo em saber como parecemos uma
família de verdade, e em como gostaria que esse sonho se tornasse realidade.
A porta se abre e Alexandre nos recebe com surpresa. Os olhos claros caem direto nas mãos
dadas, fazendo com que um discreto sorriso desponte no rosto usualmente sério.
— Que bom que você veio! — diz, com sinceridade. — Por favor, entre.
Olho de soslaio para Guilherme. Ah, eu devia ter desconfiado! Pelo visto, ninguém sabia que
eu viria.
Abro a boca, pronta para perguntar se posso mesmo entrar, mas cruzo o portão e a voz fica
presa na garganta. A casa do advogado é enorme! Pintada de branco, parece um diamante
incrustado no imenso gramado esmeralda. Quindim grunhe, agitado, ao ver dois golden
retrievers correndo em nossa direção.
O maior é mais velho, e um tanto quanto impaciente com o filhote que corre ao seu lado. Ou
melhor, a filhote. Dois lacinhos cor de rosa enfeitam as suas orelhas peludas. Delicada, se
aproxima com simpatia, mas também com cautela, como se tivesse ciência de que nem todas as
pessoas gostam de cachorros. Acaricio o seu pelo macio, indicando que sou do time que adora.
Guilherme solta a minha mão apenas para libertar Quindim da guia. Uma vez solto, o filhote
corre pelo amplo gramado, prontamente seguido pela irmã. O mais velho apenas observa.
— Esse é o Biscoito — Alexandre apresenta, coçando o vão entre as orelhas do cachorro. —
Pai daquelas pestes ali.
— Qual o nome dela?
— Bolacha — solto uma risada e ele encolhe os ombros. — Ideia das crianças. Vem — faz
um gesto convidativo —, quero te apresentar a Beatriz e as meninas.
Seguimos em direção ao interior da casa e preciso segurar o fôlego ao cruzar a imensa porta.
A decoração não é ostensiva, mas é luxuosa. Brinquedos espalhados pelos tapetes e pelos sofás
cheios de almofadas denunciam a presença das crianças. Um alegre grito infantil corta o silêncio
enquanto passos apressados se avolumam em nossa direção.
— Tio Guilherme! — uma menina diz, se jogando no ar.
Ele solta a minha mão a tempo de pegá-la, dando um giro na sala. A risada infantil se mistura
à adulta, alta e grave, fazendo todos os pelinhos do meu corpo se arrepiarem.
— Oi, Sophia! — cumprimenta, plantado um beijo estalado na sua bochecha.
A menina ri e o agarra pelo pescoço, devolvendo o carinho. Só então olha para mim, abrindo
um sorriso de orelha a orelha.
— Essa é a sua namorada?
O pai lhe lança um olhar de advertência, mas a menina não parece nem aí. Engulo em seco,
sem saber o que responder.
Afinal, o que nós somos?
— Ela é uma amiga — Guilherme diz, suave.
Ela faz uma careca.
— E por que não é a sua namorada?
— Chega! — Alexandre declara, a segurando pela cintura e a colocando no chão. — Avise a
Olivia que o tio Guilherme chegou.
— Estou aqui — uma segunda menina anuncia. Mais contida, estende os braços para o tio.
Guilherme a pega no colo e, assim como fez com a irmã, a cumprimenta com um beijo na
bochecha. Olho de uma para a outra, encantada. Elas são gêmeas! E deslumbrantemente lindas.
Tem cinco ou seis anos, cabelos loiros e olhos claros como os do pai. A mais espevitada, Sophia,
me encara.
— A mamãe também estava esperando um bebê. A barriga dela ficou maior que a sua.
— A minha ainda vai crescer um pouquinho — sorrio.
Ela sorri de volta.
— Que legal! O bebê é do tio Guilherme?
— Meu Deus do Céu! — Alexandre leva as mãos aos cabelos, desesperado. — Por que você e
a sua irmã não vão brincar com os cachorros lá fora?
— Mas é ou não é do tio Guilherme? — bate o pé, brava. A outra retorna ao chão e se junta à
irmã, me olhando com curiosidade ao virar o rostinho de lado.
— Eu acho que é.
O calor volta a tomar o meu rosto. Dessa vez, de vergonha. Lanço um rápido olhar ao homem
envolvido na conversa e ele parece... tranquilo? Pensativo, talvez, mas tranquilo. Como se não se
incomodasse com a ideia de ser pai do bebê crescendo em meu ventre.
— É ou não é? — Sophia insiste.
— Oh menina curiosa! — uma voz feminina preenche a sala, seguida de uma mulher com
cabelos escuros e olhos tão azuis quanto safiras. Ela dá um tapinha de brincadeira na bunda das
meninas, que saem correndo entre estridentes risadas. — Seja muito bem-vinda! Sou Beatriz
Rossetti, "mãedastra" — faz aspas com os dedos, o rosto tomado por uma expressão bem-
humorada — dessas danadinhas. E mãe dessa daqui, a Julia.
Só então reparo na trouxinha com uma bebê de poucos meses nos seus braços.
— Ahhh que gracinha, ela é a sua cara! — não resisto a dizer. A menina, dona de fartos
cabelos escuros, pisca tranquila. — Duas puxaram o pai, uma a mãe.
— Só porque sou "paidastro" dessa daí — Alexandre acrescenta, deslizando a mão pela
cintura da esposa. — Senão, tenho certeza de que teria puxado a mim.
Beatriz revira os olhos.
— Convencido.
— Só um pouco — dá de ombros, rindo —, mas, no fundo, são todas nossas filhas.
Beatriz confirma com um sorriso apaixonado. Sorrio de volta, encantada com o arranjo.
Apesar das definições, eles realmente tratam os filhos um do outro como seus.
O meu chefe se aproxima sem qualquer cautela.
— Posso segurar a minha terceira sobrinha? Estou com saudades.
— Claro! — a mulher diz, estendendo a menina.
Se o meu coração não explodiu de amores diante da visão de Guilherme cumprimentando as
gêmeas, ele explode agora. Sem a mínima hesitação, ele recebe a bebê e a aconchega junto ao
peito. Os olhões azuis miram o seu rosto, confiantes, enquanto ele a ajusta com firmeza e sorri,
cheio de ternura.
E então entendo. A sua amargura. A vontade de se afogar na bebida. Tudo o que lhe foi tirado
em anos e anos de um casamento de mentira.
Guilherme é o raro tipo de homem que anseia por uma família. É fácil imaginá-lo concentrado
em ações rotineiras. Brincando com as crianças após o trabalho. Ajudando em uma lição de casa
difícil. Contando uma história antes de dormir. Simplesmente amar, e ser amado. Pela esposa.
Pelos filhos.
— Você leva jeito — deixo escapar.
Ele olha para o meu rosto e ri.
— Pratiquei muito com as outras duas, antes de segurar essa daqui. Da primeira vez, fiquei
apavorado.
Beatriz gargalha alto.
— Ah, eu sabia!
— E como não ficar? — Alexandre defende o amigo. — Eu não tive qualquer contato com
bebês antes do nascimento das meninas. O médico as colocou em meus braços e só pensei: "Uau,
elas são lindas! O que eu faço agora?".
A mulher balança a cabeça, incrédula.
— Não sei vocês, mas estou morrendo de fome. Vamos lá fora? O churrasco está quase
pronto.
A bebê resmunga, sendo prontamente acolhida pelos braços da mãe. Passamos pela imensa
cozinha, em direção a varanda. Respiro fundo, nervosa com a possibilidade de encontrar mais
pessoas. Guilherme percebe e volta a segurar os meus dedos, acariciando a pele suada com a
ponta do polegar.
Mas a varanda está vazia. Pelo visto, seremos apenas nós. De um lado do espaço, uma
churrasqueira de tijolinhos ladeada por uma bancada e uma pia de aço inox. Do outro, um
conjunto de cadeiras estofadas. Uma bonita salada e uma panela de arroz branco colorem a mesa
do centro. Os cachorros passam correndo, seguindo pelas meninas mais velhas. Beatriz coloca a
mais nova no bebê conforto e se vira para mim.
— Fique à vontade, viu?
— Vou ficar — sorrio. Guilherme aperta a minha mão, para enfatizar. Assinto, sentindo-me
mais tranquila.
Até reparar na garrafa sobre a bancada.
Larga. Grande o suficiente para armazenar pelo menos cinco litros de uva fermentada.
Alexandre enche uma taça quase até a borda. Oferece-a ao amigo, mas pensa melhor.
— Caso prefira, tem vinho na geladeira.
Aperto a mão de Guilherme, cravando as unhas na palma com força o suficiente para marcar,
mas ele é firme ao dizer:
— Parei de beber — olha em minha direção, confirmando. — Entrei para a turma do suco de
uva.
Alexandre abre um imenso sorriso e estende a taça. Enche mais três, nos convidando para um
brinde. Volto a encarar a garrafa. O desenho de uma imensa uva roxa toma a sua lateral. Suco,
apenas suco.
Ninguém diz em voz alta o que estamos brindando, mas todos nós sabemos. Levo a taça aos
lábios e estremeço diante do delicado sabor adocicado.
— O meu marido não pode beber — Beatriz comenta baixinho. — Ele melhorou muito desde
que nos conhecemos, mas ainda toma remédios contra a depressão. Desde então, trocou o vinho
por suco de uva.
— Uma boa troca — bebo mais um gole.
— Concordo — puxa uma cadeira, me convidando a sentar. — Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você trabalha com o Guilherme?
Ajeito-me sobre o assento, mas não me sinto desconfortável. Apesar de viver em meio ao
luxo, Beatriz parece uma mulher simples. Algo me diz que já passou por tanto perrengue quanto
eu.
— Trabalho. Como recepcionista.
Ela sorri antes de tomar um gole de suco.
— Que interessante. Eu também trabalhei com o Alexandre — faz uma pequena pausa
dramática, baixando a taça sem tirar os olhos marcantes dos meus — antes de me casar com ele.
O meu coração bate mais forte. Encaro o seu rosto bem-humorado e, por mais que tentamos,
não conseguimos nos manter sérias: caímos na gargalhada. Algo me diz que seremos ótimas
amigas.
Os homens franzem o cenho em nossa direção, mas voltam a vigiar a churrasqueira, falando
sobre negócios.
Eu e Beatriz trocamos amenidades em relação a gravidez e as crianças. Ela conta um pouco
do seu passado, sem pressionar sobre o meu. Não sei até que ponto Alexandre conversa sobre os
casos no escritório, mas limito-me a dizer que vim do interior do Pernambuco, sem entrar em
detalhes sobre os motivos da minha vinda. Por enquanto, parece informação o suficiente para ela.
A carne chega no ponto e é servida. As crianças se juntam à mesa, deixando um espaço vago
ao meu lado. Guilherme se senta e, natural como se fizéssemos isso a todo momento, planta um
rápido beijo na lateral do meu rosto.
A pele esquenta no mesmo instante, enchendo o meu corpo de labaredas tão quentes quanto as
da churrasqueira. Alexandre e Beatriz trocam um rápido olhar aprovador e as meninas soltam
risadinhas. Uma delas, provavelmente a Sophia, comenta baixinho “Eu disse!”.
Começamos a nos servir e a conversa preenche a mesa rodeada pelos cachorros, ansiosos para
ganhar pedacinhos de carne. Quindim se comporta após descarregar a energia correndo de um
lado para o outro no terreno, caso contrário tenho certeza de que colocaria as patas sobre a mesa
e roubaria a picanha.
As crianças comem rápido e voltam a brincar com os filhotes. Biscoito prefere ficar deitado
aos nossos pés, longe da agitação dos mais novos. A pequena Julia resmunga, pedindo pelo
próprio almoço. Observo, encantada, Beatriz se ajeitando para lhe dar de mamar enquanto os
homens se levantam para colocar mais comida na churrasqueira.
— Ela parece ser bastante tranquila — comento. A mãe confirma.
— Ela, é. Às vezes dorme a noite inteira.
— Que ótimo!
— Sim. Quando não dorme, o Alexandre me ajuda — olha com carinho para o marido.
Ele olha de volta, tão carinhoso quanto. Guilherme acompanha o seu movimento, mas olha
para mim.
Com tanta intensidade que, por um instante, fico sem ar.
— Você faz bem ao Guilherme. — Ela ajusta a bebê. — E, se me permite o atrevimento, diria
que ele também faz bem a você.
— Faz — devolvo o olhar e abro um sorriso. — Ele faz, sim.
Capítulo 20 – Guilherme

Encaro a mulher sentada a poucos metros de distância, resistindo a tentação de ir até a mesa,
envolvê-la nos braços e tomar sua boca em um profundo beijo. Teria feito isso mais cedo, se a
dona da pensão não tivesse acompanhado Aurora até o carro.
Beatriz comenta alguma coisa que a faz devolver o meu olhar. Um sorriso se abre nos lábios
que anseio provar e a minha reação se tornou automática: sorrio de volta, me forçando a ficar
onde estou. Alexandre se aproxima, ajudando a manter a mente focada nessa missão.
— Você faz bem a Aurora — comenta, não ajudando em nada. — E, pelo visto, ela também
faz bem a você.
— Faz — respondo, sem hesitar. — Ela me incentivou a ir ao AA e a começar a terapia.
Estou fazendo isso com apenas um objetivo.
— Qual?
— Me tornar um homem melhor para ela.
Um imenso peso desce dos meus ombros ao assumir esse fato para alguém. O ideal seria fazer
isso por mim, mas jamais teria forças para tanto. Talvez eu já estivesse morto se o destino não
tivesse levado Aurora a uma entrevista de emprego na Alcântara Mineração.
Alexandre enche as nossas taças com mais suco de uva e bebe um gole, pensativo.
— Eu não sei se esse é o melhor momento para dizer isso, mas recebi novidades sobre o caso
da Aurora na sexta-feira à tarde.
— Quais novidades?
— Por falta de provas, o juiz negou o processo de divórcio pela Lei Maria da Penha.
Precisarei entrar com o divórcio litigioso.
— E qual é o problema?
— O problema é que, dessa forma, o juiz pedirá uma audiência de conciliação.
Aperto a taça com força, tentando me controlar.
— Ele não leu o processo? — quase rosno. — O marido batia nela, Alexandre! Eles não
podem, de forma alguma, voltar a se encontrar!
— Eu sei, e concordo com você! Esse é o meu principal argumento — continua, tão
inconformado quanto eu. — Mesmo se o juiz insistir pela audiência, talvez o Osvaldo nem
apareça. O que me preocupa é a questão dela ter fugido grávida.
— Claro que ela fugiu! Como ela poderia ficar se...
— Se ele aparecer na audiência, pode pedir a guarda do filho — corta, muito sério.
Toda a tranquilidade do dia se esvai.
— Quem seria louco de dar a guarda a ele?
— Não sei. Só sei que faltam provas. Aurora deu parte na delegacia por conta do pedido de
divórcio. Não temos uma única imagem comprovando as agressões. Não temos nada. Temos
apenas a sua palavra, e por mais que todos nós acreditemos nelas, o juiz não acreditou, e pode
continuar não acreditando. Dependendo do tipo de defesa que o ex-marido apresentar, torna todo
o processo bem mais... complicado.
Nego com a cabeça.
— Isso é um absurdo!
— É — concorda.
— E se eu... — começo, meio desesperado, mas Alexandre me corta.
— Bastaria um teste de DNA para provar o contrário — solta um longo suspiro. — Estou
dando o meu melhor, Guilherme. Se tudo sair como o planejado, eles não precisarão se
encontrar. Mas, caso aconteça, estarei junto, em um ambiente completamente seguro.
— Estarei também — digo, soturno.
Alexandre muda de assunto, tentando voltar às amenidades enquanto cuidamos da
churrasqueira. Uma nova leva de carne fica pronta, seguida pelo pão de alho e queijo coalho. As
crianças retornam, esbaforidas de tanto brincar, pegam os seus pães e saem correndo de novo. Os
adultos preferem se sentar.
Agarro a mão de Aurora como se ela fosse uma boia salva-vidas jogada no mar revolto,
pronta para me salvar. Ela entrelaça os dedos nos meus, delicada como sempre é, satisfeita em
mantê-los ali.
Fecho os olhos por um instante, disposto a fazer de tudo para também puxá-la da água. Não
vou permitir que Osvaldo chegue perto dela.
Conforme a sobremesa é servida e a tarde passa, decido manter as novidades sobre o divórcio
comigo. Ela está tão alegre. Não quero perturbá-la com isso. E, talvez, Alexandre consiga anular
o pedido pela audiência de conciliação. Competente como é, tenho certeza de que conseguirá.
Saber sobre a audiência só causará preocupação desnecessária.
Volto a prestar atenção na conversa à mesa, muito mais agradável que os pensamentos
tumultuados dentro da minha própria cabeça.
— Quando é o seu aniversário? — Beatriz pergunta, antes de levar um pedaço de torta de
chocolate à boca. Aurora imita o seu gesto, engolindo antes de responder.
— Semana que vem.
Entro em alerta.
— Semana que vem?
Ela confirma.
— Na sexta-feira. Nem acredito que irei completar trinta anos.
— Trinta? — Beatriz se surpreende. — Eu podia jurar que você tem no máximo vinte e cinco.
A mulher cora até a raiz dos cabelos.
— Obrigada, mas tenho mais que isso.
Volto a me perder em pensamentos. Dessa vez, menos tumultuados. Aquela é uma data para
se comemorar. E, de repente, tudo o que mais quero é comemorar junto dela.
Uma ideia começa a se formar na minha cabeça. Antes de colocá-la em prática, preciso
conversar com Dolores e realinhar a agenda por completo.
É uma ideia insana? Talvez.
Capaz de mudar tudo? Com toda a certeza.
Mas decidi que estou cansado de esperar.
Talvez ainda seja cedo, mas talvez não seja.
Talvez o tempo seja... agora.
Olivia e Sophia ignoraram o chamado para a sobremesa, mas aparecem, ávidas por doce.
Tanto elas, quanto os cachorros, estão cheios de terra. Beatriz gargalha, servindo-lhes generosas
fatias de torta de chocolate, enquanto o pai se limita a balançar a cabeça, pensando no tamanho
do buraco feito em seu quintal, mas no fundo ninguém se importa. Bombardeiam Aurora com
incontáveis perguntas e a mulher responde a tudo com paciência, encantada com as crianças.
Mas o meu coração só falha quando ela pega Julia no colo e os olhos esverdeados se enchem
de ternura. A bebê esboça um sorriso, prontamente respondido. Aurora segura a filha do meu
melhor amigo, mas poderia estar segurando o meu filho.
— Ela é tão linda — derrete-se toda.
Assinto com a cabeça, incapaz de falar. Um novelo de lã, azul bebê, trava a minha garganta.
Deslizo a mão pelas suas costas, envolvendo a cintura alargada pela gravidez. Não me importo
com quem esteja olhando. Não me importo que as crianças deem risadinhas, confirmando o que
os adultos ainda não foram capazes de confirmar. Abraço a mulher ao meu lado, aconchegando-
me contra o seu corpo. Em troca, ela se aconchega ao meu.

Despedimo-nos com a promessa de retornar. É nítido o quanto Beatriz gostou da Aurora.


Invejada por dois terços das mães da escolinha das próprias filhas, tem dificuldades em criar
amizades.
Não que se importe. Apesar de simpática e pronta para agradar, Beatriz não é o tipo de mulher
que leva desaforo para casa. Ter gostado de Aurora é um excelente sinal. Aposto que, em breve,
se tornarão amigas inseparáveis.
Alexandre se despede com um firme abraço. Ao se afastar, os olhos sérios enfatizam o quanto
tomará cuidado com a questão discutida mais cedo. As meninas, alheias às complicações da vida
adulta, voltam a pular nos meus braços e beijar as minhas bochechas. Ao descerem, fazem
questão de se despedir de Aurora da mesma maneira. A grávida não consegue segurá-las no colo,
mas se abaixa para beijá-las de volta.
Com o Quindim sujo de terra e morto de cansaço no banco de trás, dirijo de volta a pensão,
consciente da presença da mulher ao meu lado. Ela olha para a paisagem cheia de prédios além
do vidro fechado com uma curiosidade tranquila. Ao se sentir observada, vira o rosto, sorrindo
de leve ao ser pega no flagra.
Como alguém pode ser capaz de erguer a mão para tamanha inocência?
A noite avança quando chegamos na pensão. Dessa vez, nenhuma cortina se remexe. Ao invés
de continuar olhando para fora, Aurora olha para mim. As íris esverdeadas cintilam como se
tomadas por vaga-lumes, o rosto bonito emoldurado pelos longos cabelos ondulados. Solto o
volante e seguro uma mecha, pronto para ajustá-la atrás da sua orelha.
Não sei se é o aroma floral que toma o carro. Não sei se é a textura suave como delicadas
plumas. Não sei se é o suspiro que escapa da sua boca. Sei que, finalmente, perco o controle.
Deslizo a mão em torno do seu rosto, agarro a sua nuca e a puxo para um beijo.
Os lábios macios encostam nos meus. Inspiro o seu hálito, tão doce quanto imaginei, tomado
por notas de torta de chocolate.
Perco o controle, mas não a sanidade. Dou-lhe espaço para recuar. Mostrar que é cedo e
precisa de mais tempo, ou que nem ao menos me quer. Isso partiria o meu coração por completo.
Faria com que eu me enfiasse na bebida, sorvendo goles de vodca até cair morto, mas respeitaria
a sua decisão.
Mas o tempo de Aurora também chegou. Entreabre os lábios, concedendo permissão enquanto
desliza a mão pela lateral dos meus cabelos, percorrendo os fios castanhos como se desejasse
fazer isso há muito tempo.
E tomo toda permissão que ela tem para dar.
Puxo-a contra o peito e a beijo. Envolvo os lábios, provando cada cantinho da carnuda maciez
sem a mínima pressa antes de invadi-los com a língua. Ela segura os meus cabelos com mais
firmeza e corresponde, provando que é tão doce quanto sempre imaginei.
Eu me afasto somente pelo tempo necessário para tomar fôlego. Aurora solta um breve
gemido, prontamente engolido pelos meus lábios. Dessa vez, com mais urgência. Como se a
mera ideia de me separar da sua boca fosse absurda.
Ela parece sentir o mesmo. Afunda as duas mãos entre os fios castanhos, mantendo a minha
cabeça no lugar. É a permissão que preciso para soltar o cinto de segurança e agarrá-la com mais
força, puxando-a contra mim.
Aurora vem sem qualquer resistência, sentando-se de lado sobre o meu colo. Gemo alto
quando as suas curvas pressionam o meu pau. Ele pulsa, desesperado para se libertar da prisão
imposta pela calça, fazendo com que o meu quadril vá automaticamente para a frente. Estou há
meses sem dividir a cama com uma mulher. Tão excitado com a que tenho nos braços que não
duvido ser capaz de gozar sem me tocar.
Aurora arregala os olhos, surpresa, mas a ereção faz com que um novo tipo de sorriso
desponte nos seus lábios. Toda a inocência desaparece, substituída pela luxúria de uma mulher
que sabe o que quer.
Sorrio, tão safado quanto, e deslizo as mãos pelo seu corpo, voltando a beijá-la. Uma delas
sobe pela blusinha, percorrendo a curva da barriga e alcançando um seio grande o suficiente para
encher a mão. Mesmo através da camada de tecido, consigo sentir o bico intumescido, pronto
para ser sugado pela minha boca. A saliva ameaça escorrer pelos lábios, tamanha vontade de
arrancar a sua roupa e fazer exatamente isso.
Ela rebola, apenas para provocar. Decido provocar de volta. Dessa vez, não deslizo a mão
sobre a sua roupa. Deslizo por baixo, percorrendo a pele sedosa, ultrapassando a barreira do sutiã
e alcançando o mamilo rijo. Um gemido estrangulado escapa do fundo da sua garganta ao sentir
os meus dedos massageando a região sensível.
Quando lembro que Aurora está a tanto tempo sem sexo quanto eu.
Isso me deixa louco. E, pelo visto, a deixa também. Nossas respirações se tornam
entrecortadas. Os beijos, mais desesperados. Suas mãos também alcançam pele nua,
interrompendo o beijo ao suspirar diante da firmeza do meu abdômen. Volto a gemer,
desesperado para deslizá-los mais para baixo. Em um ponto duro e doloroso, prestes a gozar a
mínima rebolada, tamanho o tesão pela mulher sentada sobre o colo.
Uma luz se acende no quintal. Piscamos um para o outro e olhamos em direção a entrada da
pensão. Soraia nos aguarda de pé, dedos batendo no pulso, indicando que o tempo acabou antes
de retornar para o interior do sobrado.
Solto um novo gemido, dessa vez de frustração. Aurora parece tão frustrada quanto eu ao
puxar a blusinha para baixo e se ajeitar. Ou melhor, tentar. Voltarei acompanhado de um
cachorro apagado no banco traseiro, mas ela precisará enfrentar as colegas. Por mais que se
ajeite, os cabelos bagunçados, os lábios inchados e as pupilas dilatadas são provas o suficiente
para denunciar qualquer mulher.
Ajusto uma mecha atrás da sua orelha, tentando ajudá-la. É o que basta para cairmos na
gargalhada.
— Obrigada — diz. — Pelo dia de hoje. E... por tudo.
— Não há o que me agradecer — ajusto uma segunda mecha, sem sucesso. Penso um pouco,
mas nada será capaz de tirar a ideia da minha cabeça, então decido libertá-la. — Você tem planos
para comemorar o seu aniversário?
— Não. Na realidade, ninguém sabe que é o meu aniversário.
— Nem as suas amigas? — indico a pensão com o queixo. Ela volta a negar.
— Nem elas. Contei pouco sobre a minha vida quando cheguei. E entre tantas preocupações,
nem ao menos lembrei de lhes dizer a data do meu aniversário.
— Então comemore viajando comigo — peço, envolvendo o seu rosto entre as mãos. Acaricio
a lateral das bochechas coradas, sem tirar os olhos dos seus. — Por favor, Aurora. Comemore
comigo.
Ela arregala os olhos.
— Você está falando sério?
— Claro que estou! — rio. — Quero muito te levar em um lugar.
— E o seu trabalho? Ou melhor, o nosso trabalho?
— Considere-se de folga. Pedirei para Dolores ajeitar a sexta-feira para que eu tenha folga,
também — encosto a testa na sua. — Eu já disse e repito: o meu compromisso inadiável é você.
Seus olhos são lindos. Assim, tão próximos, quase permitem que eu enxergue a sua alma. Os
vaga-lumes se agitam, fazendo-os cintilar como nunca. A visão é perfeita, interrompida apenas
porque Aurora me abraça com força, como se eu fosse a boia capaz de levá-la ao seu porto
seguro. Abraço-a de volta, desejado ser capaz disso.
As luzes se apagam, e voltam a acender. Ela ri contra o meu peito e se afasta.
— É melhor eu ir. A Soraia não é muito paciente.
— Dá para notar.
Volto a beijar os seus lábios. Rápido, apenas para me despedir. Aurora retribui e, sem esperar
que eu desça para abrir a porta, salta do carro. Vira-se antes de fechá-la.
— Me ligue, se precisar.
Gargalho alto, acordando o cachorro. Ela ri de volta e corre em direção à pensão. Espero até
que destranque o portão e se encontre protegida do lado de dentro. Após fechar tudo, caminha
confiante em direção a porta de entrada, virando-se para se despedir com um último aceno.
Mesmo com os vidros fechados, escuto as palmas e gritos de vivas vindas do sobrado.
Gosto de saber que ela tem mulheres que se preocupam com o seu bem-estar. Que vibrem
quando chega em casa. Que torçam para que possa encontrar um novo amor.
E que esse novo amor seja eu.
Capítulo 21 – Aurora

Basta abrir a porta para as meninas explodirem em vivas. Até Teresa e Rosana entram na
farra. Uma delas leva a ponta do dedo indicador e do polegar aos lábios, soltando um assovio
ensurdecedor.
Encolho-me em mim mesma, atordoada com a recepção. Ou seria com a forma como
Guilherme me agarrou? Ainda sinto o deslizar das suas mãos pela minha barriga ao me colocar
sobre o colo. A forma delicada, mas firme, como os dedos apertaram o mamilo enrijecido,
fazendo com que um gemido escapasse dos meus lábios inchados.
Esfrego as coxas uma contra a outra ao lembrar da dureza do seu membro sob o meu traseiro.
A umidade é tamanha que encharca a calcinha. Aposto que estaria escorrendo pelas pernas, não
fosse a proteção extra do tecido do shorts. Mais um pouco, só mais um pouquinho, e ele teria
enfiado a mão ali, me levando a completa loucura.
— Conte tudo! — Clarice implora, trazendo-me de volta à sala da pensão.
— Tudo o que? — rio, sentando-me entre elas no sofá. — Só fomos em um churrasco.
— E tinha linguiça nesse churrasco? — Teresa pergunta, como quem não quer nada. — Pelo
jeito que vocês estavam se pegando dentro do carro, aposto que tinha. E muita!
Elas gargalham e sinto o rosto ficando vermelho de vergonha. Às vezes, gostaria de ser uma
avestruz, só para conseguir enfiar a cabeça em um buraco no chão. Clarice me abraça forte, rindo
sem parar.
— Não fique assim! O mercado de homem disponível para namoro está tão escasso que
precisamos comemorar quando uma de nós consegue um.
— Nós não... — adianto-me em dizer, mas é claro que sou interrompida.
— Ainda mais se ele for bonito e gostoso como um galã de novela — comenta Matilde,
sonhadora. As demais assentem em concordância.
— E rico. Não se esqueça do rico — Teresa completa. — De nada adianta ser tudo isso, se for
pobre.
— De nada adianta ser tudo isso, se ele não for bom.
Todas se voltam em direção a Soraia, a única de pé. Seus olhos cinzentos percorrem os nossos
rostos, um a um, parando no meu. Tento decifrar a expressão, mas a mulher faz jus a uma
esfinge.
— Ele é um homem bom — digo, baixinho.
— Sim, dá para notar. — Ela cruza os braços. — E completamente apaixonado por você.
A gritaria e as palmas retornam. A dona da pensão revira os olhos.
— Pelo amor de Deus, vocês parecem um bando de galinhas assanhadas cacarejando desse
jeito!
— Có, có, có! — Clarice brinca, erguendo-se do sofá, levando as mãos à cintura e balançando
os braços como uma. Gira no próprio eixo, abaixando o rosto em direção ao tapete no chão,
rebolando a bunda arrebitada em um ritmo de dar inveja a qualquer dançarina.
Rio tanto, mas tanto, que preciso dobrar o corpo, em uma tentativa vã de me acalmar. O bebê
começa a chutar, entrando na festa. Soraia bufa alto.
— Não dá para falar sério com vocês. Só lembre de uma coisa, Aurora.
— O que? — consigo perguntar.
— Homens são proibidos na pensão.
As risadas são substituídas por gritos de protesto. Rosana é a única que concorda com a
proibição, por mais que esteja animada para conhecer o Guilherme. Matilde pensava em convidá-
lo para tomar café. Teresa brinca, dizendo que um homem como ele não iria querer frequentar a
pensão. Já Clarice diz que ele iria querer sim, ainda mais ao saber que fariam bolo de chocolate.
A vontade chega com tudo. Basta deixar a informação escapar para que todas migrem para a
cozinha. A conversa continua enquanto juntamos os ingredientes necessários para bater a massa
e colocá-la no forno. Mesmo tento passado a maior parte do dia comendo, estou faminta quando
o bolo fica pronto. Fazemos uma calda e dividimos muito mais que fatias cheias de cobertura de
chocolate.
Deixo escapar que Guilherme me convidou para viajar. A cozinha é preenchida com uma
cacofonia digna de um estádio de futebol. Os gritos são tamanhos que um vizinho bate à porta,
preocupado em saber se estamos bem. Soraia garante que sim, mas ninguém parece bem. Estão
alucinadas, fazendo planos para o meu casamento, discutindo quem será a minha madrinha e
dando palpites até na viagem da lua de mel.
— Você precisa de roupas novas! — Clarice diz, animada.
— Eu já tenho roupas o suficiente e...
— Mas não tem o vestido cor-de-rosa que acabou de chegar no brechó!
— Compre lingeries, também. Nada dessas calçolas de grávida. — Teresa revira os olhos. —
Trate de comprar renda. Homem adora renda!
— Oxe, eu não uso calçolas de grávida!
— Usa, sim! Eu vi várias penduradas no varal!
Matilde se remexe.
— Aquelas calcinhas são... minhas.
Clarice volta a tomar a palavra.
— O vestido é lindo, Aurora. E está novinho. Tenho certeza que ficará linda nele!
— Darei uma olhada — pisco, pegando a última fatia de bolo.
De repente, Clarice troca o peso de um pé pelo outro, visivelmente acanhada. Matilde lhe dá
um empurrão encorajador. Ela respira fundo e toma a palavra.
— Gostaríamos de pedir uma coisa.
— O quê? — pergunto.
— Promete que continuará morando na pensão até o bebê nascer?
Pisco, sem entender. Matilde toma a palavra.
— Em breve, o Guilherme te chamará para morar com ele.
— É a primeira vez que acompanhamos uma gravidez e… bem… — a mais jovem tenta
continuar.
— E gostaríamos de acompanhá-la até o final — Tereza continua. — Mas entenderemos caso
prefira morar na cobertura do bonitão.
Engasgo com o bolo. Rosana se adianta e dá três tapinhas nas minhas costas.
— Calma, meninas — digo, ao me recuperar. — Ele só me chamou para viajar. Nós não
temos nada e…
— Então você promete? — Clarice quase implora.
— Prometo. É claro que prometo.
As vivas se tornam ensurdecedoras.
É tarde quando pego a bolsa e subo ao quarto. Aproveitei para tomar banho enquanto a massa
assava, então estou pronta para desabar sobre a cama e descansar. Pego o celular apenas para
conferir se o despertador está ativo, e vejo uma chamada perdida de Guilherme.
Uma onda de pânico percorre o meu corpo, levando o bem-estar do dia consigo. Retorno a
ligação. Ele não pode ter bebido! Escuto os toques, cada um deles soando como uma longa
sentença, mas ele não atende. Estou prestes a desistir, mas sua voz grave atinge os meus ouvidos.
— Oi, Aurora.
— Oi — respondo, aliviada. — Eu pensei que...
— Não — corta, firme. — Eu não liguei por isso. Liguei porque precisava te desejar uma boa
noite.
Sorrio para mim mesma, enfiando-me entre os lençóis.
— Obrigada. Para você também.
— Obrigado. Nos vemos amanhã?
— Claro — rio. — Preciso trabalhar!
Ele ri de volta, fazendo com que cada pelinho do meu corpo, sem exceção, se arrepie de
prazer.
— Em breve tiraremos miniférias — enfatiza, a voz se tornando sedutora.
— Estou ansiosa por elas.
Posso não ver o seu sorriso, mas consigo senti-lo.
— Eu também, Aurora. Eu também.

O tempo tem capacidade de pregar peças. Aposto que passaria rápido, caso eu não tivesse
planejado nada para o meu aniversário. Mas planejei, e ele demora a passar.
Acordo preocupada na segunda-feira. Com que cara olharei para Guilherme, quando ele sair
bem-vestido do elevador, pronto para anestesiar todos os meus sentidos?
O próprio responde, caminhando decidido até mim. Mal consigo respirar quando os lábios
pousam nos meus. Suaves, mas ao mesmo tempo possessivos. Deixando claro o quanto não está
nem aí para o que pensam sobre a recepcionista grávida sendo beijada pelo CEO.
O assunto segue a passos largos pelos corredores. Atravessa paredes, derruba portas fechadas
e alcança ouvidos fora da empresa.
Mais tarde, escuto Guilherme falando irritado com alguém ao telefone. Ele modula a voz,
evita gritar, mas mostra a paciência se esgotando. Frases como “Chega de insistir nisso, ela me
traiu!” ou “Estou em outra, e ela também! vazam pela porta entreaberta. Pelo tom, a outra parte
não fica feliz em ouvi-las.
O expediente está quase terminando quando sou chamada com urgência em sua sala. Dolores
pisca conforme passo diante da mesa. Ela, pelo visto, é uma das poucas apoiadoras do nosso
enlace.
Dou dois toquinhos na madeira e abro a porta, surpresa ao encontrar o homem angustiado
sentado atrás da mesa. Seu corpo treme, o rosto enfiado nas mãos. Ele as desliza em direção aos
cabelos, bagunçando os fios ondulados, mas não ergue os olhos. Permaneço quieta, dando-lhe
tempo. Sua voz, carregada de inédita gravidade, demora a chegar aos meus ouvidos.
— Por favor, abra a terceira gaveta.
— Qual gaveta? — pergunto, olhando em volta. Há móveis cheios de gavetas por toda a sala.
— A da mesa, ao lado da minha perna.
Faço como pede, tentando ignorar a coxa firme revestida pelo tecido da calça social, e solto
um arquejo.
— Ah, Guilherme...
— Jogue fora! — implora, ainda sem olhar para mim. — Por favor, jogue fora!
Pego a miniatura da garrafa de vodca. É pequena o suficiente para caber na palma da mão,
leve, mas ao mesmo tempo muito pesada.
Sigo em direção ao banheiro, giro a tampa e derramo o conteúdo na pia. Após terminar, abro a
água, permitindo que ela leve a bebida embora. Ao me dar por satisfeita, fecho a torneira e jogo a
garrafa vazia no lixo.
Ao retornar à sala, encontro Guilherme encarando o vazio com o rosto abatido. Ele parece
muito cansado, mas ainda que eu esteja me contorcendo em pena, preciso ser firme. Paro diante
do seu corpo e cruzo os braços.
— Você bebeu?
— Não — diz, mas a palavra é curta demais para que eu tenha certeza.
Chego mais perto, inspirando o ar a sua volta. O perfume amadeirado com o frescor da
maresia atinge as minhas narinas. Ele fecha os olhos e deixa que eu confirme o que acabou de
dizer. O sentimento de pena dá lugar ao remorso.
Eu deveria ter acreditado.
— Desculpe, eu...
— Por favor, pare — corta. — Só me abrace, Aurora.
Mal tenho tempo de me mexer: quem me abraça é ele. Forte a ponto de comprimir as minhas
costelas e me deixar momentaneamente sem ar. Estou para pedir que vá com calma, preocupada
com o bebê, quando os braços afrouxam e me puxam ao seu colo.
A cadeira range abaixo de nós, mas se mantém tão firme quanto o abraço. Ajusto-me sobre as
suas coxas, sentada meio de lado. Guilherme parece não perceber. Afunda o rosto na curva do
meu pescoço e inspira fundo, o ar retornando quente em contato com a pele. Com uma das mãos,
acaricio os seus cabelos, tentando transmitir um pouco de tranquilidade através dos fios grossos,
mas macios.
— Quase abri a garrafa — murmura. — Quase.
— Mas não abriu.
Ele ergue o olhar entristecido. O homem estava feliz há menos de vinte e quatro horas, rindo
em companhia dos amigos, brincando com as crianças e com os cachorros, me beijando
avidamente dentro do carro.
De alguma maneira, a ligação o gatilhou. Quero perguntar quem foi a responsável por ela.
Duvido que tenha sido a ex. Após engravidar de outro, é nítido que seguiu adiante. Tenho certeza
de que foi outra pessoa.
Ele sana a minha curiosidade.
— A minha mãe ligou mais cedo e acabou me desestabilizando. Não sei por que, mas ela
insiste no meu relacionamento com a Evelyn.
— Talvez ela gostasse muito da nora...
— Talvez — diz, pensativo, mas pouco convencido. — Independente disso, ela precisa aceitar
que estou com você.
Tento processar a informação, mas os meus pensamentos racionais são interrompidos ao me
ajeitar sobre o colo e deslizar a mão sobre a minha barriga. O toque quente é o suficiente para
agitar o bebê crescendo em meu ventre. Ele chuta, criando um tímido sorriso no rosto de
Guilherme.
— Você está aí, é? — pergunta, acariciando o local. O menino chuta de novo, confirmando
que sim, está. Seus olhos voltam a encontrar os meus. — Isso machuca?
Nego com a cabeça.
— Só quando ele chuta perto das costelas. Assim não dói, não.
O sorriso aumenta, mas o olhar se torna suplicante.
— Hoje é dia de reunião. Você me acompanha?
— Claro — respondo de pronto, ciente de qual reunião deseja que o acompanhe. Beijo o topo
dos seus cabelos. — Hoje, e sempre.
Mais tarde, entramos no casarão antigo e espero que Guilherme vá para o seu canto isolado.
Permaneça ali, quieto, como permaneceu na primeira reunião.
Mas, quando Geraldo pede para que alguém compartilhe uma história, Guilherme se levanta.
Vai até a frente e, mesmo hesitante, narra como quase cedeu. Só não o fez, por minha causa.
Todos me olham com aprovação. Encolho-me em mim mesma, acanhada com a atenção, ao
mesmo tempo em que estou orgulhosa do homem que me levou até ali. O relato é curto e está
longe de ser a história completa, mas lhe faz bem.
Criamos uma nova rotina em um curto espaço de tempo. Guilherme faz questão de chegar na
empresa e me cumprimentar com um beijo. Busca a minha companhia na hora do almoço, com
exceção do dia em que sai para resolver uma questão pessoal. Temo que volte bêbado, mas ele
retorna horas depois ostentando um sorriso de orelha a orelha no rosto. Ao fim do expediente, se
recusa a me deixar voltar com o transporte público, fazendo questão de me levar na pensão.
Ele não é convidado a entrar, então permanecemos no carro, deixando que o clima esquente
até que as luzes se acendam e anunciem que passamos do limite. Separamo-nos, rindo como
adolescentes diante do primeiro namoro de escola, ainda que nada tenha sido definido entre nós.
Algo me diz que a definição virá durante a curta viagem. A ansiedade cresce conforme o
tempo continua passando e a semana se aproxima do fim.
Sou proibida de trabalhar na sexta-feira. Guilherme insiste para que eu fique em casa, já que é
o meu aniversário. Ele e os demais colaboradores darão um jeito. Ele mesmo só vai para empresa
por conta da visita de um importante cliente que Dolores não conseguiu reagendar, prometendo
me buscar assim que ela acabar.
Acordo cheia de expectativa. Antes de ir ao trabalho, Clarice me ajuda a arrumar a mala.
Estou nervosa. É a primeira vez que viajo a lazer e nem ao menos sei para onde o homem vai me
levar.
— Coloque mais uma blusinha — insiste, ajeitando-a entre as demais peças de roupas. —
Blusinhas nunca são demais.
— É apenas um final de semana, não preciso de muita coisa.
Ela dá de ombros.
— Vai que o seu CEO decide estender a viagem? E você precisa levar isso! — aponta para
um pacotinho sobre a cama. — Aliás, já deveria sair daqui com ele cobrindo — faz aspas com os
dedos — o seu corpo.
As meninas fizeram uma vaquinha e me deram um perfume importado como presente de
aniversário. Nem ao menos sei pronunciar o nome em francês, mas amei o delicado aroma de
jasmim. Tereza foi a única do contra, preferindo me presentear com um conjunto de calcinha e
sutiã de renda.
Todas o acharam indecentemente pequeno para ser usado por uma mulher grávida, mas
aprovaram a escolha. Rio diante da brincadeira de Clarice, lembrando do momento em que abri a
embalagem da lingerie incapaz de cobrir o que quer que seja. As vezes duvido que haverá
oportunidade de usá-la.
Claro que haverá. Guilherme só não pulou sobre o balcão da recepção e te prensou contra
uma parede em respeito à gravidez. O homem está louco por você!, Clarice parece pensar ao
colocar o conjunto no fundo da mala e fechar o zíper.
Com a mala pronta, erguemos o rosto em direção ao vestido cor-de-rosa pendurado no cabide.
Jamais deveria ter duvidado do bom gosto de Clarice, mas na minha ignorância, não imaginei
que um brechó seria capaz de vender uma peça tão bonita.
Diante do seu olhar indignado, ajusto o conjunto simples de calcinha e sutiã de algodão
branco e passo o vestido pelas pernas, permitindo que Clarice feche os botõezinhos às costas.
Talvez fique apertado ao final de gravidez, mas no momento o caimento é perfeito. A minha
amiga assente, satisfeita.
— Por que ele insistiu para que você fosse ao médico antes da viagem?
— Acho que só quer garantir que eu esteja bem.
— Acho que ele quer te levar para Paris, isso sim — brinca, borrifando um jato de perfume
nos meus cabelos. — Pronto, Aurora! Você está mais que linda. Está perfeita!
Respiro fundo e encaro o meu reflexo no espelho. O vestido abraça o meu corpo com
delicadeza enquanto os cabelos escovados caem em ondas na direção do busto. Clarice insistiu
para que eu usasse uma maquiagem leve, mas fez questão de realçar os meus olhos com lápis
preto e uma generosa camada de máscara de cílios, acentuando o verde esmeralda da íris. Não
tenho autoestima o suficiente para me achar perfeita, mas concordo que estou linda.
E muito nervosa. Clarice, sensível como é, me encara com carinho.
— E se não for nada disso do que eu estou pensando? — questiono, insegura. — Talvez
Guilherme só queira amizade e...
— Ah, pelo amor de Deus! — bufa, perdendo a compostura. — Homem nenhum beija uma
mulher com tamanha intensidade querendo só amizade! Ele quer muito mais que isso — conclui,
cheia de sabedoria. — E se existe uma mulher que merece um homem bom, essa mulher é você.
Vai lá, seja para Paris ou aonde for, e transforme o seu sonho em realidade.
Capítulo 22 – Guilherme

Dolores se esforçou, mas não teve sucesso em manter a sexta-feira livre. Mesmo assim, fez de
tudo para que eu saísse cedo da empresa. E teria saído, mas um novo problema na mina precisou
de atenção, gerando uma reunião com a equipe de gerenciamento de risco. Só tive tempo de
enviar uma rápida mensagem a Aurora, pedindo desculpas por me atrasar.
Passa, e muito, da hora do almoço quando desço do carro e toco a campainha da pensão,
anunciando a minha chegada. Não que seja necessário. As cortinas se remexeram assim que o
motorista estacionou. Mesmo a vários metros de distância, consigo ouvir os burburinhos
animados vindos do interior do sobrado.
Leva alguns minutos até que a porta se abra e Aurora caminhe para fora. Os meus pulmões
falham ao puxar ar e o coração erra uma batida. Pisco, ciente de que ela é real, mas precisando
confirmar.
Aurora deixou as camisas sociais e as saias lápis de lado. Em seu lugar, usa um vestido cor-
de-rosa. O tecido desce pelo busto, cobrindo a barriga com perfeição, até alcançar a saia fluida.
Uma leve brisa remexe os cabelos ondulados, trazendo o seu perfume até mim. É novo, fresco
e delicioso como o aroma das flores de jasmim. Ela parece uma fada, etérea em sua
tranquilidade, caminhando em minha direção.
— Você está... perfeita — consigo dizer. — Onde comprou esse vestido?
Ela solta uma risadinha e sorri.
É impossível não sorrir de volta. Espero até que abra o portão e a tomo nos braços. Aurora
vem sem hesitar, procurando a minha boca antes que eu o faça. Nossos lábios se juntam em um
beijo profundo, mas comportado. Estamos cientes da plateia entre as cortinas, então contenho o
desejo de agarrar Aurora com força e deixá-la sem ar.
— Você não vai acreditar se eu contar — brinca, ao nos separarmos. Acaricio a lateral do seu
rosto, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Teste — dou de ombros. Seus lábios se aproximam do meu ouvido.
— No brechó da esquina.
Olho para onde ela aponta. Parte de mim está mortificada ao saber que precisa comprar
roupas em brechós. Parte está... encantada. Não há um único dia em que a sua simplicidade deixe
de me surpreender.
E fazer com que eu me apaixone ainda mais pela mulher em meus braços.
A semana foi exaustiva. Cheia de altos e baixos. Ligações que não precisava ter atendido.
Problemas que não precisava ter resolvido. Quase cedi a tentação do álcool. Hesitei ao comprar a
garrafinha de vodca, mas a ânsia por alívio falou mais alto. Comprei e a joguei na terceira
gaveta. Deixei-a ali, como um remédio proibido. Talvez a vontade passasse se eu esquecesse que
estava lá.
Mas não passou. A vontade permaneceu, insistente. As duras palavras da minha mãe ecoavam
nos meus ouvidos. Por um instante, pensei que as duas poderiam se dar bem, mas Inês se
mostrou insultada à mera ideia de rever Aurora. Em suas palavras, eu merecia alguém melhor,
não umazinha qualquer interessada apenas em meu dinheiro. Rebati, mas só o rascante líquido
transparente seria capaz de aplacar a tristeza que tomou conta do meu cérebro.
Só ele e Aurora.
Ela me salvou e a garrafa se foi, assim como a vontade de beber. Graças a terapia, descobri
que bebia sempre que estava triste. Agora, não tenho motivos para tal. Olho para a mulher à
frente e o seu sorriso aumenta. Agora, só tenho motivos para ser feliz.
Abro a boca, pronto para dizer o quanto desejo encher o seu guarda-roupas com as melhores
sedas, mas sei que não é isso que Aurora gostaria de ouvir. Volto a acariciar a lateral do seu rosto
e ela fecha os olhos, manhosa como uma gata ao vir para os meus braços, sem me importar com
quem quer que esteja nos olhando. Dolores pode não ter conseguido eliminar todos os
compromissos da minha agenda, mas conseguiu providenciar tudo o que pedi para tornar o final
de semana especial.
— Desculpe pelo atraso. Adoraria ter passado o dia inteiro com você — revelo, abraçando-a
com mais força. — Feliz aniversário, Aurora.
— Obrigada — ela olha para cima, sorrindo. Os meus lábios automaticamente imitam o seu
gesto.
— Preparada para a nossa viagem?
Ela confirma e dá pequenos pulinhos no lugar. Acabo rindo. A mulher está animada como
uma menina que vai pela primeira vez à praia.
— Muito! O Quindim vai conosco? — pergunta, esticando o pescoço em direção ao carro.
— Não. Deixei-o de manhãzinha na casa do Alexandre. As minhas sobrinhas prometeram
cuidar bem dele.
— Então será só eu e você?
Gosto da malícia implícita em seu tom de voz. É leve, quase imperceptível, mas o suficiente
para que o meu pau se agite. Não fiz o convite com segundas intenções, tanto que enfatizei a
Dolores para reservar um quarto conjugado. O meu desejo de tomá-la nos braços e tê-la além dos
beijos é avassalador, mas darei a Aurora todo o tempo que precisar.
— Sim. E do jeito que você quiser.
Ela confirma de novo, sem hesitar. Gosto dessa confiança. De ter ciência de que não irei
pressionar. Que a quero mais que tudo, mas irei esperar.
De repente ela une as sobrancelhas, subitamente confusa.
— Por que precisei ir ao médico para confirmar se estava tudo bem para viajar? Eu me sinto
ótima!
— Porque vamos viajar de helicóptero.
Aurora empalidece.
— Vamos de... helicóptero? — repete.
— Vamos — confirmo, olhando as horas. Abro a porta do sedã da empresa e a convido a
entrar. A mulher continua parada onde está.
— Não vamos para Paris, vamos?
— Hummm, não. Acho que é impossível ir até a França de helicóptero...
— Então não podemos ir de carro?
Franzo o cenho, sem entender.
Até que entendo.
Ela tem medo de voar.
— Podemos, mas levaria horas. De helicóptero chegaremos em apenas trinta minutos.
— Não sei... — dá um passo para trás. — Entrelaço os dedos em sua mão e me aproximo.
—Eu jamais te colocaria em perigo, Aurora — enfatizo, tentando transmitir o máximo de
segurança através do toque. Não sei se consigo, e detesto a ideia de deixá-la nervosa. — Pelo
menos me deixe te levar até o heliponto. Iremos de carro se você vir o helicóptero e não quiser
embarcar, mas pelo menos me deixe te levar até lá.
Ela pensa um pouco, engole em seco e, enfim, concorda com um leve menear da cabeça.
Beijo os seus dedos e a conduzo para o interior do carro.

Aurora volta a hesitar diante do imenso helicóptero executivo. O comandante enfatiza o


quanto as condições meteorológicas da tarde são perfeitas para um voo tranquilo, mas ela
continua nervosa. Temendo que isso seja prejudicial para o bebê, começo a recalcular a viagem,
pronto para seguir dirigindo, quando a mulher pula cabine adentro e se ajeita em um dos assentos
estofados.
— Você tem certeza? — pergunto.
— Tenho. Já fugi de tanta coisa, não vou fugir de uma máquina — diz, decidida.
O meu peito se infla de orgulho. Sento-me ao seu lado e o comandante confere se estamos
bem afivelados ao cinto de segurança. Com tudo certo, coloca o comunicador sobre as nossas
cabeças e vai para o seu lugar na cabine de controle.
Em instantes as hélices ganham vida, cortando o ar com todo o seu poder. Aurora solta um
gritinho e me abraça apertado. Abraço-a de volta, sentindo o firme pulsar do seu coração
acelerado de encontro a minha camisa. Aumento a pressão, indicando que está tudo bem, e o
helicóptero alça voo.
A entonação do grito muda ao espiar a paisagem do lado de fora. Todo o medo se esvai,
transformando-se em admiração. Aurora solta um sonoro ohhh e se livra dos meus braços.
Ergue-os acima da cabeça, como se estivesse em uma montanha-russa, enchendo o espaço
fechado com a sua animação. Gruda o rosto na janela, ávida para captar cada detalhe da cidade
vista do alto.
— Como é... lindo! — diz, virando-se para mim. Junto-me a observação e confirmo com a
cabeça.
— É sim. Sabe o que consegue ser mais bonito?
— O que?
— Você.
Ela revira os olhos, mas solta uma risadinha. Rio junto. É fácil rir junto dela. É fácil ser feliz
junto dela.
Aos poucos a paisagem muda. Os prédios cinzentos ficam a quilômetros de distância,
substituídos pelas copas das árvores. Mais tranquila, Aurora volta a se aconchegar contra mim,
olhos atentos ao que se passa do lado de fora. Suspiro baixinho, acariciando os seus cabelos. Eu
poderia fazer isso o dia inteiro, sem jamais me cansar.
Vez ou outra, o verde é cortado por estradas com minúsculos carros indo e vindo, até que o
azul profundo do litoral norte do estado de São Paulo toma o horizonte. O sol começa a sua
descida, enchendo a paisagem com uma mistura exuberante de cores. Aurora solta uma
exclamação carregada de surpresa.
— Uau! Nós vamos para...
— Para a praia.
A íris cintilantes se fixam nas minhas. Há tantas perguntas que quero fazer. Tantas
informações que preciso confirmar, mas não agora. Estamos focamos em desfrutar dos últimos
minutos da nossa viagem.
O comandante anuncia que irá pousar e a paisagem se torna mais próxima. O contorno dos
prédios de alto padrão e das mansões de luxo da Riviera de São Lourenço ficam nítidos, mas não
consigo reconhecer a cobertura da minha família. Vínhamos passar férias com frequência na
região. Após os acontecimentos do meu sonho, nunca mais voltamos.
— Eu lembro daqui — Aurora sussurra.
Assinto ao lado do seu rosto, incapaz de falar.
As hélices da aeronave cortam a tranquilidade do final de tarde ao pousar no topo do hotel à
beira-mar. Assim que o comandante autoriza, estendo a mão, ajudando Aurora a descer. Ela
agradece com um dos seus muitos sorrisos.
Um concierge, tão sorridente quanto, se aproxima e nos dá as boas-vindas. Pergunta se
desejamos ir para o quarto, ou se preferimos ficar à vontade para assistir ao pôr do sol. Optamos
pela segunda alternativa. Uma brisa fresca preenche a tarde amena, proporcionando um clima
perfeito para caminharmos sem pressa pela areia.
Seguro a mão de Aurora e descemos ao saguão do hotel. As portas se abrem próximas as
areias claras, convidativas em sua maciez. Ela tira as sandálias e afunda o pé, soltando um
gemidinho de prazer.
— Está quentinha! — diz, seguindo alguns passos à frente.
Vou atrás, contemplando a paisagem à volta. Algumas pessoas podem dizer que uma praia é
uma praia, sempre igual, sem nenhuma mudança de uma para a outra. Ledo engano.
Essa é calma, e as ondas azul-alaranjadas lambem a areia com gentileza. Um caranguejo passa
correndo a poucos centímetros dos pés de Aurora, arrancando-lhe uma gargalhada. Fecho os
olhos, absorvendo o suave tilintar como sinos dos ventos.
Ela continua se distanciando, tão pensativa quanto eu. Deixo que se afaste e tenha um
momento consigo mesma. Viro o rosto em direção aos prédios, mas realmente não consigo
descobrir qual pertencia ao meu pai. E para que desejaria fazer isso? Um detalhe do passado que
não preciso relembrar.
Quem eu desejo relembrar está à frente, afundando os pés na areia clara e deixando que a
barra do vestido cor-de-rosa se arraste pelos grãos. As sandálias caem dos seus dedos, mas
Aurora não se dá conta.
Aproximo-me dos arbustos de jasmim-manga, envolvido em mais lembranças. Quantas flores
precisei colher até ter coragem de entregar apenas uma? Incontáveis. Perdidas entre a areia.
Escondidas no mar. Só uma chegou ao seu destino antes de se perder, também.
Mas eu a encontrei. Ou melhor, ela me encontrou.
Uma a uma, colho as flores. Não sei quantas seriam necessárias para repor todas as que deixei
pelo caminho, mas sei quantas são necessárias para formar um buquê. Junto-as nas mãos,
envolvendo o caule com um lenço, e encaro a mulher alguns passos à frente.
Ela parou de caminhar e contempla o mar com o semblante tranquilo. Em paz. A brisa brinca
com os fios dos seus cabelos, espalhando-os em torno do rosto. Leva a mão à barriga e acaricia a
sua extensão. O gesto é tão natural. Encaixa-se tanto na situação. Faz com que o meu coração se
expanda em ondas e ondas de amor.
— Aurora? — chamo baixinho.
Ela vira o rosto, tão tranquila quanto antes. As ondas aumentam, a ponto de se transformarem
em tsunamis de sentimentos. Eu a amo de tal forma que penso que vou explodir. Com a garganta
embargada, estendo o buquê de flores. Os seus olhos se arregalam e as mãos sobem em direção a
boca, cobrindo o rosto em plena surpresa.
— Para mim? — pergunta.
— Sim.
Assim como acontece no sonho, o sorriso se alarga. Mas não é uma menina que sorri. É uma
mulher.
Ela estende os dedos e recebe o buquê, erguendo-o na altura dos olhos. Observa, pétala a
pétala, a perfeição da natureza. Cinco em cada flor. Encosta o nariz sobre a superfície aveludada
e inspira o doce perfume do miolo amarelado. Dou um passo adiante, envolvendo-me nele.
Maresia e jasmim. Uma combinação perfeita.
Aurora ergue os olhos. Os vaga-lumes dentro deles cintilam.
— Você foi o único, em toda a minha vida, que me presenteou com flores — sorri, encantada.
— Obrigada.
— Não há de que — troco o peso de um pé pelo outro. Ela ri e, segurando as flores com
firmeza, envolve o meu corpo em um abraço.
— Gosto tanto quando você faz isso!
— Isso o quê?
— Isso — percorre todo o meu corpo com o olhar. — Cora feito um menino tímido.
— Eu não estou corado — reclamo de brincadeira, sentindo o rosto quente. Ela ri ainda mais.
Envolvo o seu corpo com os braços, puxando-a contra mim, sentindo a barriga inchada
pressionando o meu ventre. Desço uma mão até ali, acariciando sua extensão. O bebê se mantém
quietinho, mas sei que do seu cantinho escuro e confortável presta atenção em tudo o que
estamos conversando.
Um par de gaivotas grasna, me tirando dos devaneios. Batem as asas e voam, livres em
direção ao mar. São os únicos gritos presentes nesse pôr do sol. Fazem com que eu retorne a
outro, anos e anos distante. Um pôr do sol que ainda não sei se foi de verdade, ou de mentira.
— Aurora? — volto a chamar.
— Diga.
— Você se lembra? — afundo o rosto em seus cabelos. — Por favor, me diga: você se
lembra? O nosso amor de infância foi de verdade, ou foi apenas um sonho? Porque passei anos
sonhando com você. Anos revendo a imagem de uma menina sentada sobre as areias da praia,
encarando o mar. Nunca tive certeza. Nunca, até te encontrar no saguão da empresa. Você é de
verdade. Mas e o resto? É também?
— É — responde, com a voz embargada. Ergue os olhos marejados e me encara. — Eu sei
que é. Certa vez perguntei, e minha mãe disse o seu nome. Guilherme — soletra, devagar. — O
menino que me presentou com uma flor e com uma promessa. Por anos te esperei, por mais que
não soubesse muito bem quem esperar.
Acaricio os seus cabelos e abro um pequeno sorriso.
— E a promessa? — sussurro, apenas um pouco mais alto que o barulho do mar. — Você se
lembra dela?
Aurora nega com a cabeça.
— Não — lamenta. — Você se lembra?
O meu sorriso aumenta.
— Lembro. Da promessa, eu lembro.
Esqueço a organização da secretária. Um primoroso jantar nos aguarda, reservado em um
canto especial do amplo restaurante do hotel, mas fujo dos planos. Levo a mão ao bolso de trás
da calça, tirando uma caixinha de veludo vermelho. Os olhos de Aurora se arregalam, mas o ar
só falta quando começo a me ajoelhar.
— O que você está fazendo?
— Estou cumprindo a minha promessa — abro a caixa e o imenso diamante faísca como fogo
contra o alaranjado pôr do sol. — Ou melhor, parte dela. Passei anos sem saber o seu nome, mas
agora sei como você se chama — a voz fica embargada, mas continuo, sem me preocupar em
disfarçar. — A menina dos meus sonhos. A mulher responsável pelo meu despertar. Aquela com
quem desejo construir uma família. Fazer de você, minha. Fazer do seu filho, meu. Aquela com
quem gostaria de ter me casado, e que ainda quero me casar — encaro os seus olhos marejados.
— Aurora, você aceita se casar comigo?
O buquê de flores escapa da mão e cai no chão, espalhando pétalas rosadas para todos os
lados. Ela abre a boca e balbucia qualquer coisa, mas não consigo escutar. Respira fundo, tenta
se acalmar, e pergunta:
— Você está falando sério?
— Estou — digo, firme. — É claro que estou.
Um arquejo escapa do fundo da sua garganta.
— Mas eu ainda sou casada.
— Eu sei, e posso esperar. O meu divórcio já saiu. Falta o seu. Assim que ele sair, te farei
minha.
— Mesmo que eu carregue um bebê com o sangue de outro homem?
Eu me levanto. Areia escapa dos joelhos sujos, mas deixo-a lá. Coloco-me à sua frente e
seguro o rosto bonito entre as mãos, ignorando as trilhas de lágrimas brilhantes enquanto olho
fundo em seus olhos. Os vaga-lumes continuam ali, mais agitados do que nunca. Ignoro-os e
tento acessar a sua alma. Tento, mais do que tudo, fazê-la acreditar.
— Mesmo que o seu bebê tenha o sangue de quem que seja. Eu não me importo. Não me
importo nem um pouco. Assim que ele nascer, o registrarei com o meu nome. Ele será seu. Ele
será meu. Será nosso.
As lágrimas agora caem com tudo. Ela sorri, assente com a cabeça, alarga o sorriso, chora
mais um pouco. O seu rosto se torna uma confusão de emoções ao dizer a única palavra que
desejo ouvir.
— Sim — ri estridente. — Sim, sim e sim!
Sou invadido por uma vasta onda de alegria. Rio alto, a risada feminina se misturando a
gravidade da minha, e a abraço forte. Adoraria erguê-la entre os braços e girar o seu corpo, mas
contenho o impulso. O bebê chuta, atingindo o centro da minha barriga. Rio ainda mais alto,
fazendo com que a alegria percorra toda a areia e se espalhe pela praia.
Eu passaria a noite rindo, se Aurora não pousasse os lábios nos meus. Delicada. Em um terno
convite. Afasto os seus cabelos e retribuo na mesma gentileza, percorrendo com a ponta da
língua antes de deslizá-la ao interior da boca macia. Ela arfa, me preenchendo com a sua doçura.
— Gael — murmura, ao nos separarmos sem fôlego. — Pensei em chamá-lo de Gael.
— É um nome lindo — murmuro de volta, encostando a testa na sua. — Tem algum
significado especial?
— Tem alguns. “Belo e generoso” é um deles, mas prefiro o significado que combina com o
seu nome.
Franzo o cenho e me afasto o suficiente para encarar o seu rosto.
— Qual?
— “O protegido” — sorri. — Enquanto Guilherme significa “protetor corajoso”.
Uma nova onda me atinge, maior que um mero tsunami. Grande a ponto de não ter nome.
Mistura alegria. Mistura amor. Faz com que uma, duas ou três lágrimas escorram pelo meu rosto
sem que eu perceba.
— Eu te amo — digo, rouco. — Sempre te amei e sempre vou te amar — coloco uma mecha
de cabelo atrás da sua orelha. — E sempre vou proteger você, e o nosso filho.
Aurora pisca, a face molhada tão carregada de emoção quanto a minha.
— Também te amo — murmura. — Ah, Guilherme, eu te amo tanto!
Beijo o topo da sua cabeça e seguro a mão trêmula. Tiro o anel do cetim e, com reverência, o
coloco em seu dedo. Ela solta um novo gritinho e volta a me abraçar. Abraço de volta, encarando
o mar. Os últimos raios de sol penetram fundo na água. Carregam aquele dia consigo e trazem a
escuridão azulada da noite.
Prometem uma nova aurora.
Capítulo 23 – Aurora

Encaro o meu anel, ainda sem acreditar que irei me casar...


De novo!
O diamante faísca contra a luz das velas, confirmando que irei, sim. O divórcio ainda não saiu
e já tenho um novo pretendente! Isso me faz gargalhar, a risada se espalhando pelo restaurante
chic do hotel. Guilherme me observa com todo o carinho do mundo estampado nos olhos
castanhos.
Dessa vez, me casarei com o homem que amo.
— O que você está pensando? — pergunta, ao finalizar o pedido ao garçom. Após olhar o
cardápio cheio de nomes em francês, deixei que ele me surpreendesse. Agora, sua atenção está
voltada para mim.
— Você não se importa de esperar?
— Já esperei tanto tempo. O que são mais alguns meses?
A emoção toma conta. Pisco, tentando me controlar, mas as lágrimas escapam mesmo assim.
Ele estende a mão para limpá-las. O toque sempre tão leve. Tão carinhoso. Seguro sua palma
contra o rosto. Não quero que ele se afaste.
— Você é tão bom para mim — murmuro, acariciando os seus dedos. — As vezes eu penso:
como a sua ex-mulher foi capaz de te deixar?
Ele estremece, mas não recolhe a mão.
— Aconteceu — murmura. — E se não tivesse acontecido, provavelmente não estaríamos
aqui.
— Não, não estaríamos — encaro a escuridão além-mar.
Estamos no melhor lugar do restaurante. Uma mesa afastada das conversas paralelas,
reservada o suficiente para que possamos ouvir o barulho das ondas. Inspiro fundo e o fresco
cheiro de sal se mistura ao perfume amadeirado do homem à minha frente, lindo em uma camisa
social branca e uma calça caqui. A brisa bagunça os seus cabelos, tirando um cacho do lugar.
Ele é perfeito.
— Eu não sou perfeito — continua, como se lesse os meus pensamentos. Ri, acanhado. —
Você mesma pode comprovar, nesses poucos meses em que convivemos juntos — recolhe a mão
e abraça a si mesmo. — Já fui a incontáveis sessões de terapia, mas ainda olho para essa taça e
desejo mais que suco de uva. Não fosse por você, teria vacilado no começo da semana.
— Mas não vacilou.
— Não — responde, pensativo. Volta a estender a mão, essa vez em direção a minha. Desliza
a ponta do indicador sobre o diamante saliente. — Não tenho mais motivos para vacilar.
Fecho os dedos, trazendo sua mão à boca. Beijo a pontinha dos dedos, um a um. Guilherme
cerra as pálpebras, apreciando o gesto.
Somos interrompidos pela chegada da comida. E ele parece ter pedido comida para um
batalhão. Eu me importo? Não. Após os movimentados acontecimentos da tarde, sinto que
poderia comer por um.
Guilherme coloca o buquê de jasmim-manga em um canto e apresenta os pratos, explicando o
que é cada um. Pouco me importo com os nomes. Quero as fatias finas de carne, as batatas
salteadas e uma porção de salada. Ele toma a dianteira e assume a função do garçom, servindo
porções generosas no meu prato.
Provo a carne, deixando que um hummm involuntário escape dos lábios. É macia como nunca
comi. Guilherme ainda está na metade da sua refeição quando encho o prato com uma nova
porção.
Comemos trocando pequenas carícias. Mãos que se esbarram ao pegar comida. Pés que sobem
pelo tornozelo alheio. Olhares cheios de desejo enquanto compartilhamos um silêncio
confortável. Do tipo que não precisa de palavras para dizer o quanto se ama. O único som, além
do burburinho do restaurante, é a música vinda das ondas do mar.
Ao terminarmos, faço menção de pedir a sobremesa, mas percebo uma pronunciada troca de
olhares entre Guilherme e o garçom. Franzo o cenho, sem entender nada, até ver o bolo
chegando. Gargalho alto, surpreendida. As velas soltam faíscas e todo o restaurante se une em
um Parabéns Para Você. O meu noivo os acompanha antes de estender o cabo da espátula.
— Faça um pedido.
Aceito o objeto, pensando no que pedir. Olho para o homem à frente e percebo que já tenho
tudo. Ele vira o rosto de lado, me incentivando, e um pedido se desenvolve em minha mente. É
simples, mas sincero. Peço apenas para que a nossa vida seja repleta de momentos como esse.
Corto o bolo, entregando a primeira fatia ao Guilherme. Ele volta a corar, agradecido. Corto
uma segunda fatia para mim e provo a massa de chocolate recheada com creme de morangos.
Simplesmente deliciosa.
Guilherme me acompanha quando repito a sobremesa. Sempre me observando com carinho.
Sempre me observando com desejo.
Estou completamente satisfeita ao final da refeição. E tão cheia de desejo quanto ele. O
coração bate mais forte ao pegar o buquê e afastar a cadeira. Guilherme estende a mão, me
ajudando a levantar. Ergo-me sem desviar os olhos, encarando-o como se fosse o único presente
no restaurante.
Sua mão alcança a minha cintura ao me conduzir para fora. Firmes. Obsessivas. Minha,
parecem dizer. Única e exclusivamente minha. Deixo-me conduzir até o interior do elevador. É o
limite. Até onde consigo segurar a vontade de beijá-lo.
As portas metálicas se fecham e avanço sobre os seus lábios. Guilherme, pelo visto, nutri a
mesma vontade. Seu toque se torna ainda mais firme quando a boca vem em direção a minha. A
respiração é quente e os lábios têm gosto de chocolate e creme de morango.
Entreabro os meus, dando-lhe passagem. Ele a toma, compartilhando a sua doçura por
completo ao entrelaçar as nossas línguas. Um suspiro escapa da boca, lembrando da primeira vez
em que nos encontramos em um elevador.
Guilherme não permite que eu me perca em devaneios. Uma mão desce, apertando a minha
nádega. Mesmo com a barriga protuberante, é hábil em pressionar a ereção contra a virilha. O
seu pau pulsa, enfatizando o quanto me deseja.
Afasto-me o suficiente para encarar os olhos com pupilas dilatadas flamejando em um claro
convite. Uma mão acaricia o meu rosto daquele jeitinho que tanto gosto.
— Eu te quero, Aurora — a voz sai rouca como nunca ouvi. — Quero te deitar sobre os
lençóis, e te fazer minha por completo.
O coração dispara e os hormônios entram em colapso. Abro a boca, pronta para dizer que
desejo o mesmo, mas ele continua.
— Mas entenderei, caso prefira esperar.
— Oxe, esperar o que?
Dá de ombros, muito sério.
— Não sei — as bochechas se tornam rosadas. — O que quer que prefira esperar. Não quero
que se sinta pressionada a nada.
Uma onda de carinho tão grande, mas não grande, se avoluma dentro do peito. Como pode ser
tão fofo e ao mesmo tempo tão... safado? Sua voz está impregnada de desejo, mas o rosto corado
como o de um garotinho. A ereção volta a pulsar contra a minha virilha. Pressiono de leve,
deliciada ao ouvir o gemido escapando dos lábios. Agarro o seu rosto e olho fundo em seus olhos
castanhos.
— Então faça-me sua.
O elevador chega no nosso andar, mas Guilherme pouco se importa ao tomar a minha boca
em um beijo profundo. Agarro os seus cabelos e beijo-o de volta, línguas em sincronia,
misturando-se em uma dança cheia de doçura. Ele arfa alto ao nos separarmos para tomar fôlego,
voltando a me beijar como se eu fosse todo o seu ar.
Nem ao menos sei como saímos do elevador. Tampouco como entramos no quarto. O buquê
volta a cair no chão e o beijo cheio de luxúria se torna mais selvagem. Mãos agarram o tecido do
vestido, puxando a saia para cima. Fazem o mesmo com a camisa social, ávidas para sentir a
textura da pele quente e rija. São responsáveis por gemidos e suspiros. Estou fora de mim quando
sou deitada sobre lençóis macios e o beijo é interrompido.
— Tão linda — Guilherme murmura, se afastando para me observar com os cabelos
bagunçados. — Tão perfeita e linda.
Tento conter a respiração ofegante.
— Você também é.
Ele nega com a cabeça.
— Diante de você? Não, não sou nada — debruça-se com cuidado, sem deixar de me encarar
por um segundo sequer. — Sou apenas um homem falho, cheio de defeitos como qualquer outro.
Olha só para você, Aurora — acaricia a minha barriga. — Resplandecente. Cheia de vida —
beija a ponta do meu nariz. — Você é um milagre. É o meu amanhecer.
Se eu ainda não explodi de amor, vou explodir agora. Ou melhor, depois que Guilherme se
afastar dos meus lábios. Quero que ele faça isso? Não. Quero que permaneça ali. Tomando o
meu fôlego e elevando-me aos céus. Os olhos flamejam ao erguer-se da cama e estender a mão
em um convite. Seguro-a sem pensar duas vezes.
— Quero tirar esse vestido — sussurra, puxando-me contra si. — Admirar a firmeza das suas
curvas antes de beijar cada parte do seu corpo — os lábios deslizam pelo meu pescoço,
arrepiando-me inteira. — Quero tirá-lo antes que seja tarde, então preciso fazê-lo agora.
— Tarde para o que? — franzo o cenho. Seus dedos hábeis alcançam os pequenos botões da
parte de trás. O primeiro deles se solta, alargando o tecido em torno do meu busto. Seguro-o para
não cair.
— Tarde para rasgá-lo. Puxá-lo de seu corpo, até sobrarem apenas retalhos. Não quero fazer
isso — abre mais um botão, esforçando-se para conter seus impulsos —, mas daqui a pouco não
terei qualquer alternativa. Por que não comprou um vestido com menos botões?
Rio alto, virando-me para facilitar o seu trabalho. Ele solta um suspiro satisfeito.
— Porque não havia muitas opções onde o comprei.
— Se depender de mim — brinca, abrindo botão a botão —você usará apenas vestidos sem
botões, sem laços, sem nada.
— Vai me presentear com eles?
— Vou — chega ao último botão. — Vou encher o nosso closet com eles.
Nosso. Não meu, ou seu.
Nosso.
O vestido afrouxa por completo. Guilherme desliza a ponta do indicador pela lombar,
seguindo a linha da coluna até o fecho do sutiã. Arrepio-me por inteiro quando ele o solta e me
vira de frente para o seu corpo.
Ele observa minhas mãos liberando o busto do vestido e da lingerie. As peças deslizam pela
pele, até caírem com suavidade no chão.
As pupilas dilatadas percorrem o meu corpo sem qualquer pressa. Arrepiam cada centímetro
de pele e aquecem cada mínima curva. Ele estende a mão e acaricia a barriga nua com
reverência. Percorre o caminho das estrias laterais sem se importar com elas.
— Tão linda — repete. — Tão perfeita e linda.
Dessa vez, acredito em suas palavras. Afasto o cacho teimoso da sua testa e o beijo com
suavidade. Ele devolve na mesma medida, sem qualquer pressa. Temos a noite toda. Temos a
vida toda. Não precisamos de pressa.
Os meus dedos descem em direção a sua camisa. Também quero tirá-la. Começo a abri-la,
botão a botão, enquanto os seus lábios deslizam sobre os meus. Afasto-me para respirar,
empurrando a camisa dos ombros largos. Apesar da tentativa, continuo sem ar. O peitoral segue
em direção aos gominhos ligeiramente ofegantes do seu abdômen. São seis, como sempre
imaginei que seriam, a pele pálida interrompida pela trilha de pelos que segue em direção a
virilha.
Estendo a mão em direção ao seu peito, mas hesito. Nunca toquei um homem dessa maneira.
Nunca senti vontade. Pela primeira vez, estou ansiosa para fazê-lo, mas por um instante temo
soar muito atrevida.
Sem tirar os olhos dos meus, Guilherme guia a minha mão, fechando os olhos quando toco a
sua pele. Continua guiando-os pelo contorno rijo do peito, permitindo que eu me deleite sob os
músculos bem moldados. Não tem pressa. Quer ser tocado. Aprecia ser tocado. Permite que eu o
explore pelo tempo que achar necessário.
Também não tenho pressa. Deslizo a palma pela pele quente e arrepiada. Demoro-me a chegar
na trilha que leva a sua virilha. Percorro os pelos com a ponta dos dedos, até alcançar a cintura
da calça.
Com delicadeza, Guilherme faz com que os dedos segurem a fivela do cinto e puxem a tira de
couro. A calça afrouxa em torno do quadril estreito, mas ele continua conduzindo os meus
movimentos. Permite que eu abra o botão, depois deslize o zíper para baixo, até que a ereção
pulse contra o tecido da cueca. Quero puxar o seu pau para fora. Tocá-lo e fazê-lo tão meu
quanto ele quer me fazer sua.
O homem tem outros planos. Com delicadeza, pressiona os meus ombros, fazendo com que
volte a me deitar de barriga para cima na cama. Os lençóis envolvem as laterais do meu corpo
nu, exceto pela calcinha.
Com cuidado, Guilherme se debruça em minha direção, pressionando os lábios nos meus.
Degusta a minha boca com suavidade, até me deixar sem ar. Ao se dar por satisfeito, desce em
direção ao pescoço, arrepiando todos os pelinhos presentes na pele sensível. Solto um longo
suspiro quando a boca alcança o meu colo, chegando ao vale dos seios.
Ele ergue os olhos, mas sem erguer o rosto. Assim, me encarando, desvia a boca em direção
ao seio direito. Circula a aréola com a pontinha da língua, o toque tão fugaz que me faz pensar se
é apenas um arrepio, ou se é um toque de verdade.
A boca se fecha sobre o mamilo intumescido enquanto uma mão alcança o seio esquerdo. Ele
o massageia e chupa o biquinho com força. Arqueio o corpo e entrelaço os dedos nos fios
ondulados, pedindo em silêncio que me faça ter um orgasmo apenas sugando e apertando os
meus seios.
Guilherme ri diante da reação, mas se mantém concentrado. Mordisca a ponta do mamilo
antes de inverter os seios, fazendo com que um prazeroso tremor percorra todo o meu corpo. Os
gemidos se tornam mais intensos. A respiração, entrecortada. Ele não para. Continua
massageando, apertando, sugando. Aguardo, cheia de expectativa, o momento em que irá morder
de novo.
Ele o faz, transformando o gemido em um grito. A risada aumenta. Rouca, cheia de deleite.
Guilherme volta a se ajustar e segue com a sua exploração.
Ainda sem pressa, alcança a pele esticada da minha barriga. Divide beijos com leves carícias.
Espalha o seu toque por toda a extensão. Reverencia o meu corpo como se eu fosse uma deusa,
fazendo com que eu me sinta como uma.
Os beijos chegam ao topo, descendo em direção ao outro lado. Um novo arrepio faz com que
eu feche as pernas, sentindo toda a umidade impregnada no interior da boceta.
Isso não passa despercebido. Faz com que uma mão desça até ali. Dedos fortes seguram a
calcinha, puxando-a para baixo, me obrigando a abrir as pernas. Estou completamente nua
quando os lábios alcançam o outro lado da barriga.
Respiro fundo, cheia de expectativa. O meu ex não se dignificava a me dar atenção. O seu
prazer era o único que importava. Nem ao menos consigo dizer se já tive um orgasmo, mas
consigo confirmar que ninguém pousou ao lábios ali.
Um sopro de ar quente faz com que eu volte a me arrepiar. Os beijos continuam, até alcançar
as dobras. Ele não as afasta com as mãos: as afasta com a língua.
Volto a arquear as costas, mas é o mínimo que consigo me mexer. Guilherme agarra as
minhas pernas e expõe a boceta, dominando o meu corpo por completo. Volta a soprar ar quente,
como se estivesse em chamas. Sem me soltar, cai de boca na minha feminilidade.
A barriga proeminente impede que eu o veja, mas não que o sinta. A língua quente se afunda
entre as dobras encharcadas. Explora, curiosa, mas determinada, até encontrar o meu ponto mais
sensível. O toque é mínimo, mas transforma gemidos em gritos de prazer. Ainda mais quando os
lábios se fecham e sugam com toda a força. Remexo-me entre os lençóis, tentando escapar ao
mesmo tempo em que quero continuar ali.
Guilherme permite que sua risada grave preencha o quarto antes de sugar mais um pouco.
Brinca com o meu pontinho de prazer. Torna a minha respiração ofegante. Transforma os
arrepios em uma constante. Faz com que algo desconhecido comece a se avolumar nas
profundezas do meu íntimo, um pássaro pronto para abrir as asas e se libertar.
— Eu sabia — sussurra, lambendo mais um pouco antes de tornar a fechar os lábios no
clitóris inchado. — Eu sabia que a sua boceta seria tão doce quanto a sua boca.
E volta a prová-la. Cheio de fome. Cheio de luxúria. Suga com vontade e faz com que o
pássaro se remexa. Solte um grito e, por fim, se liberte.
Arqueio as costas, fazendo com que a barriga proteste, mesmo sem sentir qualquer
desconforto. A onda vem com força, trazida por uma rajada de vento que me faz alçar voo em
direção aos céus. Fecho os olhos, agarro os lençóis e grito alto, o corpo estremecendo da cabeça
aos pés.
Não sei quanto tempo leva para a respiração ofegante se normalizar e ser capaz de abrir os
olhos. Guilherme me observa, os lábios molhados e os fios da barba curta cheios de gotinhas do
meu prazer. Encara o meu rosto com sua ternura indescritível ao abrir um sorriso. Sorrio de
volta.
— Quero sentir você por completo — consigo dizer.
O sorriso aumenta conforme se abaixa para unir a boca à minha. Aceito-o de pronto, sentindo
o sabor salgado da minha doçura em seus lábios. Guilherme se afasta, permitindo que eu
visualize o seu corpo. A calça escorregou até a metade dos quadris, exibindo o volume que a
roupa íntima falha em esconder.
Ele engancha os dedos na barra da cueca e a abaixa, fazendo com que o pau pule para fora.
Termina de se desvencilhar da roupa e permanece parado por um instante, permitindo que
aprecie o seu corpo nu. Encaro-o, embasbacada diante de tamanha perfeição.
A trilha de pelos escuros leva a um montinho bem aparado. O pau pulsa, revelando todo o seu
desejo. O líquido pré-ejaculatório escapa da ponta e escorre sobre as veias saltadas, uma gota
caindo em direção a coxa firme que se estende pelas pernas compridas.
A observação o faz corar. Acabo rindo, encantada. Ele também ri, abaixando-se apenas para
pegar a carteira no bolso da calça. Abre a embalagem do preservativo e desliza o látex por toda a
extensão do pau, sem tirar os olhos dos meus.
Volta a subir na cama, reajustando os travesseiros em torno do meu corpo. Coloca um debaixo
da minha coluna, para apoiar a lombar. Agradeço com um novo risinho, remexendo-me até ficar
confortável.
— Está bom assim? — ele pergunta, querendo confirmar. Faço que sim.
— Está ótimo.
O seu sorriso se alarga. Perde a inocência e torna-se predatório. Sem hesitar, Guilherme se
posiciona de joelhos entre as pernas abertas, o pau rígido balançando diante da minha boceta. Já
estou encharcada e pronta para recebê-lo.
Ele volta a ajustar os travesseiros. Preocupa-se com a minha barriga, mas estou bem. O peso
pressiona um pouco, sem incomodar de fato. Agarro a sua mão, pronta para enfatizar isso, sem
precisar de palavras para tal. O entendimento é mútuo, compartilhado pelo mínimo toque.
Guilherme segura os meus dedos e me penetra. Devagar, avançando centímetro a centímetro
pelo interior da minha umidade. Respiro fundo, sentindo-o expandindo as minhas paredes, me
preenchendo por completo.
Ele permanece parado, esperando que eu me acostume com o seu tamanho. Basta o mínimo
sinal para que comece a se mexer, os movimentos de vai e vem aos poucos ganhando ritmo.
A mão se solta dos meus dedos. Desce em direção aos meus quadris, agarrando-os com força.
Mantém-me presa enquanto aumenta a velocidade e intensifica as arremetidas, nossas pélvis
quase coladas, o tronco erguido se enchendo de gotículas de suor.
Arqueio o quadril e Guilherme geme alto, metendo ainda mais fundo. Sem me soltar, abaixa-
se sobre a barriga, roubando-me um beijo. Seu tórax roça na parte mais pontuda, me atiçando por
inteira.
Pelo visto, atiça a ele também. Faz com que o pau saia quase por completo, apenas para que
possa meter fundo até a base. O homem volta à posição anterior, agarrando os meus quadris com
força, as arremetidas mais pronunciadas. Rebolo e um gemido estrangulado escapa dos seus
lábios.
Escapa dos meus, também. Agora sei o que está por vir. Volta a crescer. Avolumar-se em
proporções nunca antes vistas, dominando-me por completo. Rebolo com ênfase e faço com que
um novo gemido preencha o quarto. Guilherme se movimenta com mais força, o choque dos
nossos quadris ecoando pelo espaço a cada arremetida profunda.
Dessa vez, o pássaro não precisa se libertar. Já está livre, e suas asas me tomam por completo.
A barriga endurece e os pelinhos do braço se arrepiam. Arqueio as costas e encaro o teto em um
grito mudo, incapaz de emitir qualquer som. Apenas sentindo, sentindo e sentindo as ondas de
prazer proporcionadas pelo homem entre as minhas pernas.
Elas estremecem e Guilherme precisa me segurar com mais força. Geme a cada arremetida,
sem jamais tirar os olhos dos meus. O semblante concentrado deixa antever o quanto aprecia me
levar ao limite e está disposto a fazer isso por toda a vida.
Permite-se gozar apenas quando desfaleço entre os lençóis. Mete fundo e, com um último
gemido, atinge o próprio prazer. E que visão. O homem com o pescoço rijo, rosto virado para
cima e cabelos caídos para trás. As gotas de suor se espalham pelo peito e descem ao tórax. Ele é
lindo. Deslumbrantemente lindo.
O corpo relaxa aos poucos. Ofegante, sai do meio das minhas pernas e se deixa cair ao meu
lado. Olhamos um para o outro. Permanecemos assim por um longo tempo. Até que as
respirações se normalizem ao ponto de sorrirmos, juntos, sem nem ao menos pensar.
E, tão juntos quanto antes, caímos na risada.
Capítulo 24 – Guilherme

O PESADELO
As imagens são difusas. Dessa vez, não são recorrentes. Jamais fizeram parte de qualquer
sonho.
A praia desapareceu, dando lugar a uma imensa cidade. Cinzenta, fria, cheia de neblina
escura. As ruas se transformaram em labirintos, murados por prédios altos com aspecto
ameaçador. Sei onde estou, ao mesmo tempo em que não sei. É a cidade em que vivo, mas ela se
mostra irreconhecível, como se transformada por medo e dor.
As ruas vazias transmitem o ecoar dos meus passos. Nada mais se faz ouvir. Buzinas, sirenes
e ronco de motores. Tudo desapareceu. O silêncio predomina, opressor no ambiente vazio.
Anseio por ouvir apenas um som. Apenas uma voz.
Chamo, e as palavras se perdem. Não são transmitidas aos prédios. Sequer ecoam como os
passos. Mantém-se paradas na névoa, sem propagar o som.
Ao fundo, o cinza é cortado por uma minúscula faixa alaranjada. Pequena, pronta para crescer
e brilhar. Sem hesitar, vou em direção a ela.
Sempre a ela.
E então, a silhueta surge e corta a luz. Vem de longe. Muito longe. Cada vez mais próxima.
Dissemina o medo. Alimenta-se da dor. Tem apenas um objetivo. Ameaça tomar o que possuo de
mais precioso.
Tento correr, mas os pés se mostram incrustados no chão de concreto. Ele chega perto, mas
não temo. Pelo contrário, estou pronto para enfrentá-lo. Prometi me casar com ela, e prometi
protegê-la. Vou cumprir todas as minhas promessas.
Mas a mente é trapaceira. Nela, me torno impotente. Não consigo me mexer, por mais que me
esforce para tal.
A ameaça carrega o amanhecer para longe, mantendo a cidade na densa névoa da escuridão.
Grito alto o suficiente para fazer a garganta sangrar, mas o som mantém-se parado, sem jamais se
propagar.
O silêncio é cortado por dolorosas súplicas. Tento me soltar e volto a gritar, mas ninguém
escuta. Aos poucos, as súplicas diminuem, até se perderem por completo.
Abro os olhos. Sinto os lençóis enrolados nas pernas e o corpo coberto de suor frio.
Assustado, ponho-me sentado e tateio o espaço ao lado, em busca dela, mas não a encontro. Por
um instante, tudo o que quero fazer é gritar. Dessa vez, para ser ouvido.
Capítulo 25 – Guilherme

Estou entrando em desespero quando a vejo, tão enrolada nos lençóis que desaparece entre a
sua maciez. Aurora se remexe, como se também sonhasse com algo ruim. Acaricio os seus
cabelos, tentando acalmá-la. O efeito é instantâneo. Ela suspira, tranquila, e volta a se
aconchegar.
Aos poucos, a minha própria respiração se normaliza e flashs do dia anterior flutuam na
mente. A viagem, a praia, o pedido. A promessa a se cumprir. O amor que temos para dividir.
Lembranças tão doces, capazes de acalmar o mais conturbado coração.
Elas acalmam, mas a tensão se mantém presente como se um monstro estivesse à espreita,
pronto para sair debaixo da cama ou escancarar as portas do closet para nos atacar. O mínimo
ruído é o suficiente para me pôr em alerta. Permaneço ali, eriçado, pronto para avançar em
qualquer um que ameace a nossa felicidade.
A parte racional do meu cérebro sabe que as cenas não passaram de um cruel pesadelo, mas a
parte não tão racional insiste no contrário.
Com cuidado, levanto-me da cama e caminho até o banheiro. Abro a torneira da pia e fecho as
mãos em concha, enchendo-as de água gelada. Afundo o rosto entre os dedos, limpando parte do
suor, enquanto penso no que fazer para protegê-la sem alarmá-la.
Fecho a torneira e encaro o meu reflexo no espelho. Já pensei em colocar seguranças vinte e
quatro horas diante da pensão, mas descartei a ideia. Talvez chamem atenção desnecessária. De
Osvaldo, e de qualquer outra pessoa. Sem contar que, por mais discretos que possam ser, as
demais moradoras irão descobrir. Duvido que se sentirão lisonjeadas pela proteção. Se todas
tiverem dez por cento do temperamento da Soraia, ficarão completamente iradas.
E causarão desconforto em Aurora.
— Está tudo bem? — uma voz pergunta às minhas costas. Viro-me em sua direção, perdendo
o fôlego por um instante.
Aurora me observa enrolada nos lençóis. Os cabelos estão em desalinho e o rosto amassado
pelo travesseiro, mas ela continua linda.
— Estou — disfarço. — Só tive um sonho ruim.
Ela se aproxima, envolvendo as minhas costas em um abraço quentinho, de quem dormia sem
qualquer preocupação. Os lábios macios encostam na pele, plantando um beijo carinhoso.
— Vem — pede, descendo as mãos com delicadeza pelo meu abdômen. — Volte para a cama.
Sorrio para mim mesmo, adorando a forma como as palavras inocentes soam cheias de
segundas intenções. O meu pau se agita centímetros abaixo do toque, ávido para ser uma nova
chance de se enterrar fundo na sua boceta macia. Viro-me em direção ao seu corpo, sem me
desvencilhar do abraço. As íris esverdeadas flamejam quando seguro a sua cabeça e tomo os
lábios nos meus.
Aurora volta a me agarrar. Dessa vez, com luxúria. A ponta da barriga encosta no meu ventre,
fazendo com que o meu pau endureça por completo. Sempre sonhei em ver minha mulher
grávida, mas jamais imaginei que ela ficaria ainda mais gostosa.
Seguimos de volta ao quarto aos tropeções. Os lençóis caem dos seus ombros, revelando toda
a beleza do corpo nu. Interrompo o beijo para tomar fôlego, aproveitando para apreciar a visão:
seios do tamanho certo caber em uma mão, barriga proeminente, quadris cheios, pernas
curvilíneas. Muito, muito gostosa.
— Eu já disse, e vou repetir: você é linda, Aurora — mordisco a lateral da sua boca. — Linda
e perfeita.
Ela solta uma risadinha, encantada com o elogio. Volto a tomar a sua boca, sorvendo parte da
sua alegria. Ela a compartilha com gosto, cheia de vontade. Faz com que a névoa se dissipe e o
pesadelo seja relegado ao esquecimento. Que as únicas lembranças daquele final de semana
sejam os bons momentos que compartilhamos, e ainda iremos compartilhar.
Deitamo-nos de lado entre os lençóis com braços e pernas entrelaçados em uma organizada
confusão de toques. Aurora desliza a ponta dos dedos pelas minhas costas, fazendo com que
todos os pelos do corpo se arrepiem. Segue em direção às coxas, sentindo os músculos firmes
antes de voltar com cautela. Um grunhido interrompe o nosso beijo quando passa pelas bolas e
fecha a mão em torno do meu pau, subindo e descendo por toda a sua extensão.
— Desse jeito eu vou gozar antes de te dar prazer.
Ela ri. Ah, a safada ri.
— Então me dê prazer — sussurra, aproximando os lábios carnudos no meu ouvido. — E
goze fundo dentro de mim.
O seu aperto se torna mais pronunciado, firme o suficiente para que eu perca a sanidade,
agarre o seu corpo e vire de costas para mim. Ela solta um arquejo surpreso, mas continua rindo
quando a abraço com força, espremo os seios com uma mão e encaixe o quadril contra a sua
pelve. Aumenta a risada no momento em que deslizo o pau rígido entre as suas nádegas, pronto
para penetrá-la. Solta um grito de prazer quando posiciono a glande, confirmo que está
encharcada e meto até a base.
Grito junto, extasiado diante da sensação de tê-la livre de qualquer barreira. As paredes
internas envolvem o meu pau em seu calor. Movimento os quadris até quase tirá-lo por
completo, apenas para meter de novo, ainda mais fundo. Aurora volta a gritar. Tenta se mexer,
mas não consegue. Está dominada entre os meus braços, com o pau enterrado até o fundo em sua
intimidade molhada.
Acaricio um dos seios e continuo me movimentando em um entra e sai moderado. Presa entre
os meus braços e o poder do meu corpo, Aurora consegue apenas aproveitar o prazer que tenho
para lhe dar. Beijo a parte de trás do seu pescoço enquanto belisco o seu mamilo. A cada
estocada, os gritos se transformam em gemidos de puro deleite.
Continuo beijando o pescoço, aos poucos descendo os lábios em direção a curva dos ombros.
Mordisco de leve, sem jamais deixar de me movimentar. Aurora olha de soslaio, um sorrisinho
safado estampado no rosto. Sorrio de volta, tão safado quanto.
— É assim que eu te quero. Todos os dias — sussurro contra o seu ouvido. — Entre os meus
braços. Disposta a receber todo o prazer que eu tiver para lhe dar.
Impulsiono com mais força, o seu gemido soando como música. O meu sorriso cresce,
deliciado. Solto os seus quadris, mas ela se mantém na mesma posição. Entregue, completamente
entregue, enquanto aumento a velocidade das arremetidas, indo fundo em sua boceta tão gostosa
quanto o resto do seu corpo.
Os pelinhos da sua coxa se arrepiam conforme percorro a pele macia com a ponta dos dedos,
alcanço o monte de vênus e invado as suas dobras encharcadas como o resto da sua intimidade.
Alcanço o clitóris e o massageio, primeiro com delicadeza, depois com força. Os gemidos se
tornam mais pronunciados. Transformam-se em gritos quando meto fundo, sem dar qualquer
trégua ao minúsculo ponto de prazer.
Aurora agarra as mãos que seguram os seios, mantendo-as ali. Rio contra o seu ouvido, sem
intenção de tirá-las. Belisco o biquinho dos mamilos endurecidos e ela arqueia as costas. Rebola
contra a minha pelve, enterrando o pau ainda mais fundo, me incentivando a massagear o clitóris
inchado.
Aumento a velocidade das arremetidas, saindo e entrando da sua boceta com força. Ela pulsa,
indicando que está quase lá. É o que eu preciso para intensificar o dedilhar em seu ponto mais
sensível. É o que ela precisa para esmagar o meu pau entre as suas paredes internas, arquear as
costas contra o meu peito e gritar.
Estou quase lá, mas mantenho o aperto, deliciado ao senti-la estremecendo entre as minhas
pernas em seu ápice de prazer. Aurora está quase chorando quando solto o clitóris e volto a
agarrar os seus quadris. Meto fundo uma última vez e também grito, despejando o meu gozo
quente fundo em sua boceta. Afrouxo o aperto e desfaleço ao seu lado, esgotado.
Permanecemos parados, quase como adormecidos, não fosse pela respiração ofegante. Ainda
sem tirar o pau dentro de si, puxo-a de volta contra mim e envolvo-a em um abraço. Carinhoso,
dessa vez. Aurora respira fundo e deixa-se envolver.
— Eu te amo, viu? — murmuro.
— Eu também.
Sorrio contra os seus cabelos. Sinto-a sorrindo de volta, antes de cair no sono. Fecho os olhos
e me aconchego melhor, mas sem conseguir acompanhá-la. Não sei se tive um sonho, ou um
pesadelo, mas ainda sinto que algo está ali, pronto para nos atacar. Abraço-a com mais força.
Leva um longo tempo para que a sensação vá embora e eu também caia no sono.

Acordamos tarde no sábado, cheios de fome. Dessa vez, de comida. Às vezes eu me esqueço
que Aurora se alimenta por dois. A menos que queiramos perder o café da manhã do hotel,
precisamos tomar banho e nos vestir rápido. Entre risos e sorrisos, chegamos pouco antes do
espaço ser fechado. A mulher grávida se deleita de tal forma com os croissants de manteiga e os
macarons coloridos que arranca alegria até dos funcionários mais contidos.
Depois, decidimos passar o dia na praia. O meu pau ameaça causar constrangimento quando
Aurora tira o vestido e, apenas de biquíni, exibe a barriga sob o sol e a brisa do mar.
A mulher resplandece em beleza e gostosura. Cruzo as pernas, tentando conter a ereção. Ela
percebe e ri, estirando-se debaixo do guarda-sol. Aproxima os lábios do meu ouvido e diz, toda
safada:
— Mais tarde.
— Ah — solto um gemido. — Isso é tudo o que eu queria ouvir.
Sua risada preenche a areia. Revezamos um silêncio confortável e uma conversa mais
confortável ainda, até que eu não resista a fazer mais um pedido. Entrelaço os dedos nos de
Aurora. Ela para de encarar o mar e vira o rosto em minha direção.
— Venha morar comigo na cobertura — quase imploro. Levo a ponta deles à boca, beijando
um por um. Tem gosto de maresia e macaron. São uma delícia. — Encha o espaço com a sua
alegria. Divida-o comigo, dia após dia.
— Com você, e com o Quindim — sorri, fazendo com que eu revire os olhos.
— Sim. Comigo, e com aquele sem vergonha desalmado, comedor de sapatos. E então? —
encho-me de expectativa. — Você vem?
O sorriso perde um pouco do brilho. Ela aperta os meus dedos, devolvendo o carinho,
enquanto se remexe na cadeira. De repente, sei que não vou gostar das palavras que sairão da sua
boca.
— Eu vou. Claro que eu vou — diz, com cautela —, mas fiz uma promessa às meninas da
pensão.
— Qual promessa?
— Para permanecer lá até o nascimento do bebê. — As íris esverdeadas encaram as minhas.
— Elas querem acompanhar a gravidez até o fim.
— Elas não podem acompanhar da cobertura? — pergunto. — Serão todas bem-vindas.
Aurora balança a cabeça.
— Talvez você não entenda — continua, baixinho —, mas as meninas pertencem à pensão. E,
antes de nos conhecermos, fizeram com que eu pertencesse a ela, também. Não posso
simplesmente ir embora. — O sorriso volta a se iluminar. — Por mais que eu esteja ansiosa para
dividir a cobertura com você, e com o Quindim, preciso cumprir a minha promessa.
Sorrio de volta. Um pouco triste, talvez, mas ainda assim sorrio. Ela percebe e acaricia a
lateral do meu rosto.
— Oxe, olha só o tamanho dessa barriga! — brinca. — Falta pouco.
A minha gargalhada se torna genuína. Alta o suficiente para espantar as gaivotas. Um ou
outro passante vira o rosto com o cenho franzido, mas logo segue o seu caminho. Pouco me
importo. Agarro a mulher ao meu lado e roubo-lhe um beijo. Na realidade, não preciso roubá-lo.
Não quanto ela o entrega de bom grado.
Afasto-me para tomar fôlego e encaro a barriga inchada.
— Falta pouco para conhecer você — acaricio a superfície lisa. — Ei Gael, está gostando da
praia?
O menino permanece quieto. Penso que está dormindo ou irá me ignorar, quando chuta. De
leve, apenas para sinalizar que está ali. Sua mãe ri.
— Ele adora ouvir a sua voz.
— E eu adoro falar com ele — digo, aproximando os lábios da barriga. — Ouviu, Gael? Você
vai passar os seus últimos dias aí dentro com um monte de tias que te amam. Depois, você vai
morar com a mamãe e o papai. Ah, com um cachorro, também. Ele provavelmente comerá os
seus sapatos e destruirá todos os seus brinquedos, mas tenho certeza que vai se apaixonar por
você.
Gael chuta com mais ênfase, como se estivesse animado diante da expectativa de brincar com
um cachorro desmiolado. Espero que o Quindim não ensine péssimos hábitos ao bebê.
Os meus devaneios são interrompidos por um choro contigo. Surpreso, afasto-me da barriga e
encaro Aurora. Ela limpa o canto dos olhos, tentando conter a emoção. Acaricio a lateral do seu
rosto.
— Eu disse algo errado?
— Não — ri, meio engasgada. — Pelo contrário.
— Então por que você está chorando?
— Porque nunca imaginei que o meu sonho se realizaria — cobre a minha mão com a sua, o
diamante faiscando sob o sol. — Eu sempre sonhei em me casar, ter filhos, ter uma família. Mas,
depois do meu casamento fracassado, pensei que ele jamais se tornaria realidade — uma lágrima
escorre pela sua bochecha, atingindo o seu sorriso. — Até que você apareceu. Disposto a me
fazer sua, e fazer o meu filho seu. Isso significa muito, Guilherme. Muito mesmo.
Com os olhos marejados, sorrio de volta. Um bolo de areia se alojou na garganta. Sei que vou
desabar se falar, então me limito a beijar a sua lágrima antes de tomar o seu corpo nos braços.
Ela se aconchega como sempre faz. O meu amor tranquilo. A minha paz.

Aurora pode ter titubeado em sua primeira viagem de helicóptero, mas agora o aguarda com
expectativa. Talvez só não seja maior porque estamos prestes a deixar o paraíso para trás.
— Iremos voltar? — pergunta, me lançando um olhar suplicante. Rio e aperto a sua mão com
mais firmeza.
— Claro. Podemos voltar quando quiser.
— Que bom — sorri. — Ainda não entendo por que fomos separados no passado, mas estou
feliz que tenhamos criado um novo significado para o lugar.
— Também estou, Aurora — beijo o topo dos seus cabelos, inspirando o seu aroma de
jasmim. — Também estou.
O piloto sinaliza que está tudo pronto para o embarque. Ajudo Aurora a subir e a se afivelar
ao cinto de segurança. As hélices começam a girar, levando a aeronave aos céus e nos dando
uma vista panorâmica do mar. O laranja do pôr do sol cobre a costa, arrancando um longo
suspiro da mulher ao meu lado. A visão é tão perfeita quanto ela.
O crepúsculo se encaminha para o anoitecer quando chegamos em São Paulo. A visão dos
prédios iluminados também arranca suspiros ao dominar o horizonte. Apesar de não gostar de
ocupar o motorista aos finais de semana, ele vem nos buscar com boa vontade, sem conseguir
resistir a sorrir diante da alegria de Aurora. Ela é como um vírus do bem, capaz de contaminar
todos à sua volta.
O motorista percorre as ruas tranquilas do domingo à noite e retorna a pensão. Aurora está
quase dormindo no meu colo ao chegarmos. Não tiro a sua razão. O carro é macio, o motor quase
não faz barulho. Passamos a maior parte das duas últimas noites fodendo como coelhos. Até eu
estou com sono.
Ela pisca os olhos lânguidos, bonitos que só, quando o sedã estaciona. As cortinas da sala da
pensão se movimentam e parte de mim quer implorar de joelhos para que vá para a minha
cobertura. Algo no íntimo sabe que estará mais segura lá, assim como sabe que pesadelos não
passam de... pesadelos. Não posso, e nem quero, obrigá-la a romper a sua promessa.
Desço primeiro, abrindo a porta e estendendo a mão para ajudá-la a sair. É o suficiente para a
agitação do lado de dentro do sobrado se tornar mais pronunciada. Quase escuto as vivas ao me
despedir com um beijo. Profundo, sem qualquer pressa. O seu sorriso ilumina a noite ao nos
separarmos.
— Já que você continuará morando aqui — digo baixinho, afastando uma mecha de cabelo do
seu rosto. — Permita que eu venha te buscar.
— Para que?
— Para ir ao trabalho. Não quero que vá sozinha.
Ela me encara. Por mais que conheça pouco dos trajetos da cidade, sabe que moro longe.
Precisarei acordar pelo menos uma hora mais cedo, apenas para buscá-la.
Mas também sabe como esse mínimo gesto é importante para mim. Se ainda não posso tê-la
por inteiro, que permita tê-la pela metade.
— Tudo bem — diz, por fim. — Aceito a sua carona.
Sorrio, feliz da vida. Roubo-lhe um último beijo antes de deixar que se afaste.
Ela abre o portão de ferro com um rangido, olhando para trás apenas ao chegar diante da porta
do sobrado. Dá um tchauzinho, gira a maçaneta e entra. Escuto a pergunta “Como foi a
viagem?”, o grito satisfeito de “Ele me pediu em casamento!” e as vivas ensandecidas que se
seguem após a revelação. Rio para mim mesmo, voltando ao carro com o coração tranquilo pela
primeira vez em muito tempo.
Capítulo 26 – Aurora

Cruzo os braços sobre a imensa barriga com oito meses de gravidez e lanço um olhar
desconfiado ao Guilherme. Ele sorri a poucos metros de distância, girando o pedaço de tecido
preto entre os dedos. Quindim pula ao seu lado, tentando pegá-lo. Ainda moro na pensão, mas
cada vez mais passo as noites na cobertura, em companhia do meu noivo. O cachorro pula mais
alto, quase alcançando o objeto com a boca. Volto a atenção ao seu dono.
— Por que você quer me vendar?
— Para te levar em um lugar.
— Que lugar?
— Oh, mulher desconfiada! — Guilherme ri. — Você gostou da surpresa que fiz, um mês
atrás. Por que está tão relutante com essa?
Dou de ombros.
— Não sei — faço-me de desentendida. — Talvez porque, dessa vez, você queira me vendar.
O sorriso se torna predatório.
— A ideia te desagrada?
A voz grave sai em um sussurro. Não desagrada nem um pouco, mas não posso pensar nisso
agora. Não quando acabamos de nos levantar após passarmos quase toda a noite em claro. Os
meus hormônios sempre entraram em ebulição ao pousar os olhos em Guilherme, mas a partir do
momento em que cedi aos seus encantos, eles se mantêm em constante fervura.
— Não mude de assunto.
— Então deixe eu te vendar — adianta-se um passo, próximo o suficiente para que eu possa
inspirar o aroma de sabonete misturado ao perfume caro. É o suficiente para me fazer ceder.
— Tudo bem — digo, virando-me de costas. — Pode me vendar, mas saiba que isso terá
volta, se eu não gostar.
Ele ri mais um pouco, beijando o meu ombro. Arrepio-me por inteira, desejando que a
surpresa envolva roupas arrancadas e corpos suados entre os lençóis. Ele passa o tecido sobre os
meus olhos, mas para no meio do movimento. Franzo o cenho, sem entender o motivo. Volto a
me virar, encontrando-o concentrado no visor acesso do celular.
— O seu Geraldo acabou de mandar uma mensagem — diz, cauteloso, antes de erguer os
olhos em direção aos meus. — Está me parabenizando pelos meses sem beber.
Uma onda de orgulho percorre o meu corpo. Seguro o seu rosto com as duas mãos e o puxo
para mim. Guilherme entreabre os lábios, permitindo que eu o tome em um beijo cheio de
carinho.
Ele não teve mais recaídas após o episódio em seu escritório. As mãos às vezes tremem, mais
um efeito automático que uma real necessidade de álcool. O nosso anfitrião foi sincero ao dizer,
em uma das várias reuniões, que a vigília precisará ser constante, como o tratamento de uma
doença crônica.
— Parabéns, meu amor.
— Eu não teria conseguido sem você.
Sorrio, incapaz de responder. Guilherme certa vez disse que bebia porque se sentia triste.
Desde que começamos a nos relacionar, não teve mais motivos para se sentir assim. Acredito em
suas palavras. Faço com que se tornem reais, tanto para ele, quanto para mim. Os meus dias
também são mais felizes em sua companhia.
Quindim interrompe o momento ao soltar um latido e pegar a tira de tecido. Corre suíte afora,
fazendo com que Guilherme solte um grito a vá atrás do cachorro. Sigo-os entre risos,
encontrando os dois saltando sobre tapetes e sofás, até que o homem consiga segurar a outra
ponta.
Entram em um cabo de guerra, Quindim rosnando divertido de um lado, Guilherme rosnando
irado do outro. O meu noivo, enfim, vence a disputa, erguendo o seu troféu cheio de baba.
— Dê um jeito de arrumar outra venda — indico o tecido molhado com o queixo. — Eu não
vou deixar você me levar a surpresa alguma com isso aí.
— Vou arrumar — resmunga, o rosto fechado se abrindo em um sorriso. — Ah, pode ter
certeza de que vou arrumar.

— Eu não acredito que você me vendou com uma das suas gravatas — digo, ajustando a seda
escura sobre os olhos. Ele termina de manobrar o carro e segura a minha mão.
— Nada de arrancá-la! Acabamos de chegar.
— Oxe, quero saber onde acabamos de chegar!
Tentei calcular o trajeto, sem qualquer sucesso. Ou Guilherme fez um caminho mais longo, ou
assinei o meu atestado de completa desorientação. Não faço ideia de onde estamos.
— Você descobrirá em breve — diz, descendo do carro. Em segundos, abre a porta do
passageiro. — Me dê a mão e desça com cuidado.
Assinto e faço como pede. Dou dois passos para a frente antes de escutar um rangido. Franzo
o cenho. Algo me diz que conheço aquele rangido.
Devagar, sou conduzida por uma pequena área externa. Guilherme redobra o cuidado ao
chegarmos em um degrau. A desconfiança começa a se apoderar do meu ser, mas mantenho-me
calada, sem querer estragar o que preparou para mim. Um risinho escapa, fazendo com que um
sorriso cruze o meu rosto. É o que basta para o homem puxar a venda e a gritaria dominar os
meus ouvidos.
— Surpresa! — gritam Clarice, Matilde, Teresa, Rosana, Dolores e Beatriz. Até Soraia entra
no coro, batendo palmas entre as vivas ensurdecedoras das minhas demais amigas.
Um arco de bexigas azul-claras se ergue sobre o grupo de mulheres. Atrás delas, um painel
escrito Chá do Gael em divertidas letras brancas. Mesinhas com doces e salgados se espalham à
nossa volta. Observo o imenso bolo confeitado com glacê. Obra da mais velha, com certeza.
As meninas surtaram diante do meu súbito noivado, e surtaram mais ainda quando revelei o
nome do bebê. A vida seguiu em sua normalidade, mas os últimos dias foram preenchidos com
olhares desviados e sussurros interrompidos. Desconfiei de algo, mas jamais desconfiei que
fariam um chá de bebê!
Encaro o rosto de uma a uma, sem acreditar. Não, elas não são apenas as minhas amigas. São
a minha família.
— Obrigada — consigo dizer, apesar da voz embargada. — Muito obrigada
— Não há de que! — Clarice se adianta. — Planejávamos há séculos, mas não sabíamos
muito bem como fazer.
— Eu também queria fazer um — Beatriz continua. — Comentei com o Guilherme e a ideia
se concretizou.
Olho para o meu noivo. Ele dá de ombros, modesto que só. Percebo que não cruza a porta.
Soraia se adianta em direção ao homem.
— Você pode ir embora.
As mulheres começam a reclamar, mas a dona da pensão as interrompe com um alto
pigarreio.
— O que foi que combinamos?
— Você permitiria o chá, desde que fosse apenas entre mulheres — Clarice tenta imitar a sua
voz, arrancando risadinhas das demais. Soraia respira fundo e finge que não ouviu.
— Sendo assim, você pode ir embora.
Guilherme se dá por vencido, sem reclamar. Acena um tchauzinho, prometendo me buscar
mais parte. Passamos os últimos finais de semana juntos, então me pergunto o que ele fará nesse
em que estará sozinho.
As meninas me puxam e começam a me encher de presentes. Matilde faz questão de ser a
primeira, me contando sobre o presente antes que eu tenha tempo de abri-lo. É um bonito
conjunto de calça e blusinha de lã, bordado pelas suas próprias mãos. A touca com pompom
finaliza o look perfeito para um dia gelado de inverno.
— Você aceita encomendas? — Beatriz pergunta, encantada. — Se aceitar, irei encomendar
essas touquinhas para as minhas meninas.
— E onde elas então? — olho para os lados, mas só vejo Julia aninhada no bebê conforto
entre as almofadas do sofá. Apesar do barulho, ela dorme feito um anjo.
— Foram andar de bicicleta com o pai — sorri, estendendo o próprio presente. — Espero que
você goste. Ou melhor, que o bebê goste.
Rio e desato as fitas adesivas que prendem o papel colorido, sorrindo diante do imenso
dinossauro de pelúcia antialérgica. Tanto ele, quanto o Quindim, irão adorar.
Teresa prefere me presentear com bodies azuis. Já Rosana com um kit de hidratante para a
mãe e para o bebê. Soraia e Dolores, práticas que só, optam pelos tradicionais pacotes de fraldas.
Clarice fica por último. Chega meio acanhada, mas sem tirar o sorriso do rosto ao estender um
pacote fechado com um laço. Desato o nó, permitindo que o embrulho deslize em direção ao
chão e revele uma manta. Passo a ponta dos dedos pelo tecido, encantada com a sua maciez.
Volto a encarar as mulheres à minha frente.
— Sei que já agradeci, mas preciso agradecer de novo: obrigada — as primeiras lágrimas
caem. — Muito obrigada. Eu vim de tão longe, sem nada além de uma bolsa e uma mochila
esfarrapada, mas vocês acolheram a mim e ao meu bebê de braços abertos.
Elas soltam um ohhh em uníssono e, juntas, me abraçam. Abraço-as de volta, desejando poder
fazer um discurso bonito. Enfatizar como foram importantes para mim, cada uma à sua maneira,
ao estender a mão a uma mulher que não tinha nada, mas me limito a agradecer. Não quero, em
um dia tão feliz, trazer qualquer tristeza do passado.
Julia resmunga, chamando pela mãe. Beatriz desfaz o abraço e volta sua atenção para a filha.
Todas se derretem pela menininha, deixando claro o quanto também irão se derreter pelo meu
menininho.
Começamos a comer. Dolores e Beatriz se integram tão bem às outras que parecem
conhecidas de outras vidas. A tarde segue tranquila, entre conversas, brincadeiras e muitas
risadas. Ninguém sente o tempo passar, então todas se surpreendem quando a campainha toca.
Teresa se adianta e afasta a cortina.
— É o Guilherme.
— Já? — Clarice diz.
— Já — rebate, pegando a chave e indo em direção ao portão. — Vou convidá-lo a entrar.
— Não! — Soraia se intromete. — O que combinamos?
— Sei muito bem o que combinamos, mas não entendo qual é o problema!
— O problema é que vocês querem descombinar o combinado!
Ela revira os olhos e um zum-zum-zum toma a sala. Mantenho-me parada, sem saber o que
fazer. Adoraria que Guilherme entrasse e participasse da festa, mas temo desagradar a dona da
casa. Teresa, por outro lado, não teme nada. Encara Soraia e bufa alto.
— Ah, pelo amor de Deus! Deixa o homem entrar e comer um pedaço de bolo!
— Não! — Soraia repete, batendo o pé. — Homens são proibidos na pensão!
A balbúrdia aumenta. De onde está, Guilherme ergue as mãos e tenta apaziguar, mas Soraia
lhe lança um olhar assassino, mantendo-o calado.
— Vamos votar! — Clarice propõe, elevando a voz. — Se todas votarem sim, o Guilherme
entra!
As demais gritam vivas enquanto os olhos cinzentos da dona da pensão flamejam, indignados.
— Não, não e não! A casa é minha — abre os braços, englobando o espaço ao redor. — Se eu
decidi, ele não vai entrar.
— Mas o chá de bebê é da Aurora — Clarice cruza os braços, também batendo o pé. — Ela
deveria decidir quem entra, ou não, no seu chá de bebê.
— Isso é um absurdo e...
— Eu voto sim — diz Matilde.
— Eu também — Teresa complementa. — Não só o Guilherme, quando outros iguais a ele.
Incluindo o marido dessa aí. Com todo o respeito, é claro.
Beatriz quase convulsiona de tanto gargalhar. Tenta se controlar, mas não consegue. Leva
alguns minutos até que também consiga votar sim, sem se importar com qualquer regra da
pensão. Dolores eleva a voz poderosa em mais um voto positivo. A entrada de Guilherme está
garantida, mas ainda assim olhamos para Rosana. Ela sorri e assente com a cabeça. Um rosnado
escapa do fundo da garganta da Soraia.
— Isso é um complô!
— Com toda a certeza! — Clarice brinca, dando um beijo estalado na bochecha da dona da
pensão. — Vou abrir o portão.
— É só dessa vez — Soraia resmunga, mas todas fingem que não escutam.
Em instantes, Guilherme cruza a porta e é atacado como que por um enxame de abelhas. Eu,
Beatriz e Dolores nos mantemos afastadas enquanto as demais se concentram em oferecer fatias
de bolo de chocolate e copos de refrigerante ao meu futuro marido.
Soraia até diz que, desse jeito, ele será roubado de mim. Sei que não será. Entre tantas
mulheres, o homem tem olhos apenas para apenas uma.
Apenas para mim.
Ele se aproxima devagar. Em uma mão, um pratinho azul com bolo. Em outra, um copo cheio
de refrigerante de limão. Nem ao menos pisca. Para a minha frente e entrega os objetos a quem
está à sua volta. Não sei quem os segura. Também tenho olhos apenas para um.
— Oi — sorrio.
— Oi — sorri de volta, me tomando em um beijo.
Os lábios que pressionam os meus são apaixonados. Alargo o sorriso antes de entregá-los. A
gritaria é ensurdecedora. Vejo, antes de fechar os olhos, que até Soraia vibra.
— É por isso que proíbo homens dentro da pensão — ri ao reclamar.
Teresa volta a bufar.
— Então vamos liberá-los!
Guilherme ri contra a minha boca. Rio junto, ambos meio sem fôlego. Todas, sem exceção,
nos acompanham.
Não demora para encherem Guilherme com mais bolo. Ele, por sua vez, não se faz de rogado.
Entra nas brincadeiras e come até se dar por satisfeito. O sol está se ponto quando Alexandre
vem buscar a esposa, causando um novo alvoroço ao ser recebido na pensão.
As moradoras ficam encantadas com as gêmeas. Sophia se entrega por completo, fazendo
perguntas e mais perguntas sobre tantas mulheres morando sozinhas, enquanto Olivia, mais
contida, se limita a comer o restante do bolo. Após tanta agitação, Julia observa quietinha do
colo do pai.
Quando eles dão adeus, começo a ajeitar a bagunça de pratinhos descartáveis sujos e bexigas
azuis murchas, mas Soraia me interrompe.
— Pode ir. Eu e as meninas limparemos tudo.
— Mas...
— Sem mas! — interrompe, bem humorada. — Olha só como esse homem está te olhando!
Não o faça esperar.
Olho por sobre os ombros. Guilherme já colocou os presentes no porta-malas do carro e
aguarda encostado no sofá, cheio de paciência. E cheio de algo mais. Desejo. E muito amor.
— Sentirei a sua falta quando você for embora — comenta.
— Ei, prometi ficar até o nascimento do bebê.
— Bom, então você irá embora em breve — leva as mãos à cintura, se fazendo de brava.
Ergue uma delas para dar um tapa estalado na minha bunda. — Deixa esses pratinhos aí e vá
embora com o seu macho, senão já já ele vem te buscar.
Corro como posso e, aos risos, caio nos braços de Guilherme. Ele também ri. Franzo o cenho.
De perto, há algo mais em seu semblante.
Preocupação.
— Está tudo bem?
— Está.
— Mesmo? — insisto. Ele beija o topo da minha cabeça.
— Mesmo. Vamos para casa? Quero te mostrar um negócio.
— Que negócio? — ergo uma sobrancelha. A risada agora é genuína. Seus lábios se
aproximam dos meus ouvidos.
— Outro negócio.
Entrelaço os dedos nos seus e me deixo conduzir para fora, não sem antes me despedir das
meninas. Elas brincam e fazem piada. Teresa chega a perguntar se Guilherme por caso não tem
um irmão. Estou no portão quando me viro, amada de tantas maneiras que fica difícil explicar.
Elas acenam e aceno de volta. Ainda falta um mês até que eu vá embora de verdade, mas já sinto
a falta de todas.
Em minutos, Guilherme estaciona em sua vaga na garagem do prédio. Tira a gravata do porta-
luvas e ergo uma sobrancelha.
— Uau, Guilherme. Com o que vai me surpreender dessa vez?
— Você não faz ideia. Posso?
— Pode.
Viro o rosto, permitindo que prenda a venda atrás da minha cabeça. Confere se não está
apertado e sai do carro. Instantes depois, abre a porta e segura a minha mão. Desço com cuidado
e ele envolve a minha cintura.
Sinto o elevador subindo. O coração acelera quando a porta destrava e ouço as unhas de
Quindim roçando no chão. Abaixo-me um pouco, cumprimentando-o com um afago entre as
orelhas. O cachorro late, mas Guilherme continua me guiando. Tento me orientar, mas a
cobertura é grande demais. Rio para mim mesma. Perdida, dentro do apartamento do meu noivo.
Uma porta se abre e, com gentileza, sou conduzida para dentro. Inspiro o aroma de tinta
fresca, mais confusa do que nunca.
— Que negócio é esse que você vai me mostrar? — pergunto.
— Esse — Guilherme diz, desatando a venda.
Ela cai sobre o meu pescoço e escorrega em direção ao chão. Permaneço parada com os olhos
arregalados, sem qualquer reação. Dou um passo adiante, os pés roçando no tapete felpudo.
Quindim se joga sobre ele e late. Só falta dizer "Olha só que lindo o quarto do meu
irmãozinho!".
Em tons pastéis de azul e amarelo, o quarto resplandece em uma decoração simples, mas
extremamente bonita.
Dou mais um passo, estendo a mão e toco o berço de madeira clara enquanto observo como as
almofadas com silhuetas de barcos enfeitam a poltrona de amamentação. Os armários e cômodas
creme, do mesmo tom do berço, passam um ar de tranquilidade. As prateleiras cheias de
brinquedos e pelúcias mostram que o pequeno Gael terá muito com o que se divertir. Um móbile
com estrelas do mar e peixinhos coloridos gira devagar sobre o berço.
— Gostou? — ele pergunta, ansioso.
— Se eu gostei? Eu amei! — corro em sua direção e o agarro com força. — Amei, amei e
amei!
Guilherme ri e devolve o abraço.
— Que bom. Fiquei na dúvida se gostaria. Pedi ajuda para a Beatriz e ela garantiu que sim.
— Claro que sim! — olho para cima. — Evitei comprar roupinhas e outros acessórios porque
me preocupei com o local onde iria guardá-los. O meu quarto na pensão é minúsculo. Mal cabe a
minha cama, quanto mais um berço — a voz falha, mas continuo. — Chego aqui e você me
presenteia com um enxoval completo! Qual mulher não ficaria feliz com isso?
O sorriso se torna radiante, mas ele se afasta o suficiente para estender a mão.
—Vem, a surpresa ainda não acabou.
— Não? — aceito a mão. — O que mais você está aprontando?
Ele não fala. Ao invés disso, me conduz até a suíte. Corro os olhos pela cama king size, sem
encontrar nada de diferente, até que Guilherme para diante do closet. Com um floreio, abre a
porta e permite que eu entre. Onde antes havia espaços vagos entre os ternos e camisas sociais,
agora há incontáveis vestidos coloridos. Levo as mãos aos lábios.
— São todos meus?
— São. Assim você nunca mais precisará comprar roupas em brechós.
Coloco as duas mãos na cintura, fingindo indignação.
— Oxe! Sabia que existem roupas maravilhosas nesses lugares?
— Não duvido, mas você merece as melhores sedas.
— E vestidos sem botões — brinco, deslizando os dedos por uma peça deslumbrante.
Guilherme volta a rir, acariciando os meus cabelos daquele jeitinho que tanto amo.
— Para provar o quanto te quero morando aqui — beija a lateral do meu rosto. — Sempre
comigo.
— E eu também quero morar aqui — volto a encostar no seu peito. — Assim que o bebê
nascer, virei para cá.
Ele solta um breve suspiro. Sei que está louco para pedir que eu venha antes. Que continue
aqui. Hoje, amanhã, e pelos próximos dias, mas as meninas querem acompanhar a gravidez até o
fim. Não posso tirar-lhes esse pequeno prazer depois de tudo o que fizeram por mim.
Fico feliz que Guilherme respeite a promessa e não insista ao contrário, por mais que os seus
lábios tremam de vontade para fazê-lo. Abraço-o com mais força, demonstrando o quanto sou
grata.
— Eu te amo, viu? — digo baixinho, deixando que um sorriso preencha o rosto.
— Eu também, Aurora.
Capítulo 27 – Guilherme

Remexo-me de um lado para o outro da cama, embolado entre os lençóis, naquele estranho
estado de vigília. Nem acordado, nem dormindo. Cheio de pressentimentos ruins. Arregalo os
olhos de repente, assustado sem qualquer motivo.
Aurora ressoa baixinho ao meu lado. Afasto uma mecha de cabelo do seu rosto e contemplo o
semblante tranquilo. Ela se remexe de leve, aconchegando-se sobre o travesseiro macio. Os cílios
tremem, mas ela continua dormindo longe de qualquer preocupação.
As imagens do dia anterior me tomam de assalto. A alegria de Aurora ao ser surpreendida
pelas amigas e seus olhos marejados ao receber o meu presente. Imagens que eu quero que se
repitam de forma infinita em sua vida.
Ainda estávamos na pensão quando Alexandre, segurando um pratinho com bolo de
chocolate, me chamou de lado.
No dia anterior, recebeu a notícia de que o juiz desistiu da audiência de reconciliação.
Osvaldo não respondeu à intimação e tampouco fez menção de comparecer, denotando falta de
interesse no casamento. Sendo assim, o divórcio seguirá adiante. Em poucas semanas, Aurora
estará livre.
Ao invés de me tranquilizar, a notícia me inquietou, transformando a festa azul em uma massa
cinzenta cheia de incógnitas. Eu deveria estar feliz, mas estou inquieto. Uma frase dita por ela há
meses retornou, vezes sem conta, a minha mente: Osvaldo não é homem de aceitar desfeita
calado. Ele não aceitará aquela.
Não seja idiota, Guilherme. O homem está a quilômetros de distância. Nem ao menos amava
Aurora. Meses se passaram. Ele deve ter arrumado outra mulher para atormentar e nem se
lembra da que fugiu. O divórcio sairá e você finalmente poderá cumprir a sua promessa por
completo!
— Poderei — digo baixinho, acariciando os seus cabelos.
Fecho os olhos e encosto a testa na sua, misturando as nossas respirações. A vontade é puxá-
la contra o peito e abraçá-la com força, para enfatizar o quanto irei protegê-la. Fazer mais que
buscá-la e levá-la ao trabalho. Finalmente contratar a equipe de segurança e postá-la vinte e
quatro horas por dia diante da pensão. De forma discreta, sem alarmar qualquer mulher. Talvez
até mesmo contratar um detetive. Enviá-lo a Pernambuco e garantir que Osvaldo continua lá.
Amanhã mesmo pedirei para Dolores providenciar isso.
— O que você está pensando? — Aurora pergunta baixinho. Sorrio de leve, ainda sem abrir
os olhos.
— Em nada.
— Mentiroso.
— Então falarei a verdade — abro os olhos, encarando suas íris de esmeralda. — Estou
pensando em como gostaria que você viesse morar aqui.
— Eu virei.
— Agora, Aurora. Gostaria que você viesse morar aqui agora.
Ela solta um suspiro resignado.
— Guilherme...
— Eu sei que conversamos. E respeitarei a sua decisão — tento tranquilizá-la, por maior que
seja a minha vontade de implorar. — Mas...
Hesito. Talvez eu consiga convencê-la se disser tudo o que sinto. Como acordei acometido
por um estranho pressentimento e temo que alguma coisa aconteça enquanto ela estiver longe da
proteção dos meus braços. Que a quero ali, no casulo seguro da minha cobertura, longe de
qualquer ameaça, por mais invisível que ela seja.
Desço uma das mãos em direção a sua barriga. Após passar parte da noite chutando, o bebê
permanece quieto. Acaricio a pele lisa, interrompida apenas pelo corte das estrias. Linda, mesmo
em suas mínimas imperfeições. Balanço a cabeça. Não posso perturbar a mulher em suas últimas
semanas de gestação com preocupações infundadas. Tirá-la do convívio com as amigas porque
sou um grande egoísta.
— Mas...? — ela insiste.
— Mas eu posso esperar — digo por fim.
O desânimo transparece na minha voz. Aurora ri e me abraça, colando o ventre no meu. A
ereção matinal encosta em sua barriga, arrancando-lhe um outro tipo de risada.
— Você acordou animado.
— Sempre acordo animado com você.
A risada aumenta. Faz com que os meus pensamentos cinzentos se encham de cores e o meu
pau pulse dentro da cueca, a preocupação substituída por tesão. Livro-me do tecido, ávido para
virar Aurora de lado, agarrar o seu corpo e meter fundo dentro da sua boceta.
Mas me contenho e deixo que tome a iniciativa. E ela toma. Com agilidade impressionante
para uma mulher grávida de oito meses, Aurora se põe sobre o meu corpo, prendendo os meus
quadris com as coxas.
Arquejo alto quando rebola sobre o membro enrijecido, espalhando sua lubrificação por todo
o comprimento, a imensa barriga se avolumando diante dos meus olhos. Toco as laterais,
deslizando os dedos até alcançar os seios cheios e sensíveis. Aurora se arrepia conforme círculo
as aréolas, rebolando ainda mais. O meu quadril vai automaticamente para a frente.
— A sua médica autorizou essa posição? — gemo, pensando na mulher de poucas palavras
que conheci no posto de saúde.
— Bom... — finge-se de acanhada. — Ela é séria demais para entrarmos nesse assunto, mas
pesquisei na internet e descobri que, enquanto eu me sentir bem, posso tentar a posição que
quiser — rebola mais uma vez. — E eu sempre quis tentar essa.
— Então tente — gemo mais alto. — Por favor, Aurora. Tente.
A risada aumenta. Ela sabe que me tem em seu poder. E céus, como é bom me entregar por
completo a ela. Esfrega-se um pouco mais, misturando as nossas lubrificações. O meu pau está
melado quando, com cuidado, ela se ergue e o posiciona na entrada encharcada. Agarro os seus
quadris, dando-lhe um pouco de sustentação, mas Aurora não precisa de nenhuma.
A mulher submissa e cheia de medo caída na entrada da minha empresa desapareceu. Desatou
as amarras impostas por anos de violência e demonstra como se tornou forte e dona de si.
Sem hesitar, desce sobre o meu pau. Um novo arquejo escapa. Dessa vez, estrangulado. Ela
joga os cabelos para trás e permite que eu me enterre fundo, até a base. Agarro a sua cintura,
disposto a mantê-la no lugar. Para a minha sorte, Aurora deseja o mesmo. Rebola de leve,
procurando ritmo.
Ela logo o encontra e os movimentos de vai e vem se intensificam. Gotas de suor, brilhantes
como o orvalho, surgem em seu corpo, deslizam pelo pescoço e percorrem a curva dos seios.
Ergo as mãos até eles, sentindo o seu peso entre os dedos. Círculo os biquinhos rígidos com a
ponta do polegar e aperto-os até que gemidos escapem dos seus lábios.
Impulsiono o quadril para cima, entrando no seu ritmo, fazendo com que novos gemidos
preencham o quarto. O pau vai fundo, até as profundezas da sua boceta, a umidade escorrendo
entre os nossos corpos.
Aurora não se contém. Tensiona as coxas e permite que eu meta com mais força. Faço
menção de descer os dedos de volta aos seus quadris, mas suas mãos cobrem as minhas,
prendendo-as em seus seios. Os cabelos compridos balançam ao nosso ritmo, o suave aroma de
jasmim se misturando ao suor. O quarto exala a nós dois enquanto observo o poder da mulher
cavalgando sobre o meu corpo.
Minha. Inteiramente minha.
O agarre das suas mãos se torna mais pronunciado. As coxas travam em torno do meu quadril
e as paredes internas da sua boceta esmagam o meu pau. Ela joga a cabeça para trás conforme o
orgasmo a atinge com toda a força. O gemido dessa vez é silencioso. Preso em um grito mudo
enquanto o corpo estremece em ondas de prazer.
Ela não desfalece. Pelo contrário, se mantém firme. Meto mais forte, sentindo o pau pulsando
em seu interior. Só então Aurora permite que eu solte os seus seios e agarre o quadril com toda a
força. Enterro os dedos na carne macia e meto fundo, estremecendo da cabeça aos pés ao
preencher o seu interior com o meu gozo. Ela continua rebolando, disposta a arrancar cada gota,
até desfalecer sobre o meu corpo.
Reúno o que me sobra de energia e abraço-a forte. Aurora me abraça de volta, enterrando o
rosto na curva do meu pescoço.
— Eu quero que você saiba uma coisa — murmura.
— O que?
— Estou ansiosa para morar com você. Acho que só não estou mais, porque estou ansiosa
para conhecer o rostinho do meu filho — brinca. — Mas...
— Mas você tem uma promessa para cumprir. E está certa em cumpri-la — pouso o queixo
sobre os seus cabelos, inspirando o seu aroma. — Falta pouco.
— Falta — pensa um pouco e pergunta, hesitante. — Elas poderão me visitar?
— Claro! Elas são suas amigas. Serão sempre bem-vindas.
— Obrigada.
— Não há o que agradecer, meu amor. O que acha de nos levantarmos, para tomarmos banho?
— sussurro em seu ouvido. — De repente, fiquei com vontade de lavar cada partezinha do seu
corpo.
Aurora volta a rir.
— E de onde saiu essa vontade?
— Não sei.
— Também não — brinca. — Eu topo, com uma condição.
— Qual?
— Quero que você me mostre um negócio.
Rio alto. É o que basta para que Quindim, enfim, desperte. Ele late do lado de fora da porta,
implorando para entrar. Do jeito que arranha, em breve fará um buraco na madeira.
— Eu mostro — ignoro o cachorro, apertando a sua bunda. O meu pau pulsa de leve,
indicando que em breve estará pronto para a próxima. — Mostro o negócio que você quiser.

É quase final de tarde quando Aurora pede para que eu a leve de volta à pensão. O
pressentimento ruim retorna, mas tento ignorá-lo, resistindo a tentação de pedir para que passe a
noite.
Ela parece ler os meus pensamentos.
— Apesar de ter ganhado roupas novinhas, preciso ajeitar algumas coisas para a semana.
Algo na minha expressão acaba me denunciando. Ela encolhe os ombros e solta um suspiro
resignado. Sou rápido em abrir um sorriso e fingir normalidade. A última coisa que desejo é
parecer um insuportável controlador. Quero enfatizar o quanto desejo que ela mantenha a
promessa e a amizade com as amigas. Que todas sempre serão bem-vindas a cobertura após o
nascimento do bebê, e durante toda a nossa vida.
O único problema é esse maldito pressentimento ruim que insiste em tomar a minha cabeça!
Não posso falar sobre ele sem assustá-la!
— Tudo bem — digo, plantando um beijo em seus cabelos. — Eu e Quindim teremos uma
conversa a sós. Preciso convencer esse sem-vergonha que os brinquedos do Gael pertencem
única e exclusivamente ao... Gael.
Ela ri e o cachorro late, como se risse também.
— Boa sorte com isso — seus braços me envolvem. — Eu já falei que te amo?
— Já — abraço de volta —, mas pode repetir sempre que desejar.
— Pode deixar. Vamos?
— Vamos.
Quindim faz questão de ir junto, mas o impeço. Será rápido, apenas deixarei Aurora na
pensão e retornarei para casa. Não preciso encher o carro recém lavado com tufos de pelos
dourados. Ao voltar, o levarei para uma longa caminhada pelo bairro. Será bom para ele, e para
mim.
Aurora se despede do cachorro e em instantes chegamos na garagem do prédio e entramos no
carro. Seguimos trocando amenidades, conversando sobre os planos para a semana. Tirando uma
importante reunião na segunda-feira, ela será tranquila.
Estaciono diante da pensão e encaro o sobrado em arquitetura antiga, com suas janelas de
madeira e ramos de folhas subindo alto pelas paredes pintadas em um bonito tom de terracota.
Dessa vez, ninguém afasta a cortina. A casa parece vazia demais. Quieta demais.
O pressentimento continua. Não aumenta, nem diminui. Apenas fica ali, à espreita.
— As suas amigas saíram?
— Ah, saíram — comenta, despreocupada. — Clarice foi convidada para um segundo chá de
bebê, dessa vez de uma colega do trabalho. Teresa está fazendo hora extra — pensa um pouco.
— Hummm, e se eu não me engano, a Rosana iria ao teatro, mas não tenho certeza. As outras
duas devem estar em casa.
— Tem certeza?
— Tenho — abre um sorrisinho sacana. — Por quê? Você gostaria de entrar?
Balanço a cabeça, rápido.
— Não! Imagine o que a Soraia faria se nos pegasse sozinhos na pensão?
Sua risada preenche o carro fechado.
— Até amanhã, meu amor — diz, puxando o meu rosto para um beijo de despedida.
Retribuo o carinho com a voz presa na garganta. É a minha última chance para pedir que
retorne para a cobertura e passe a noite comigo. Podemos pedir pizza, nos enfiarmos entre as
almofadas da sala e ver um filme antes de dormir. Podemos fazer qualquer coisa!
Mas acabo dizendo:
— Até amanhã — retribuo o beijo, permitindo que vá.
Aurora sorri. Abre a porta antes que eu tenha tempo de desafivelar o cinto, descer do carro e
estender a mão para que desça em segurança. Vira-se apenas ao chegar na porta, se despedindo
com um último tchauzinho. Aceno de volta e me preparo para ir embora.
Capítulo 28 – Aurora

Fecho a porta e encaro a sala vazia com o cenho franzido. Do que me lembro, Soraia e
Matilde não falaram sobre sair. Ambas são caseiras, o tipo de senhoras que adoram passar as
tardes de domingo sentadas diante da televisão reclamando da baixaria presente nos programas
de variedades, mas sem jamais mudar de canal.
Dou de ombros e sigo para a cozinha, pensando em como é estranho encontrar a pensão tão
silenciosa enquanto encho um copo de vidro com água do filtro de barro. Desde que cheguei,
jamais encontrei a pensão assim. Há sempre alguma mulher na casa, pronta a tagarelar sobre
qualquer assunto, independentemente do quão quieta ela seja.
Bebo um gole de água e encaro a sala vazia. Apesar das intempéries causadas pela vida, elas
são senhoras livres e desimpedidas. Talvez tenham saído para passear. Ou, até mesmo, tenham
saído para namorar. Matilde vez ou outra brinca que adoraria encontrar um velho rico na igreja,
acrescentando um rápido pedido de desculpas, implorando para que Deus tenha piedade da sua
alma pecadora. Costuma ir à missa de manhã, mas talvez tenha preferido trocar o horário. Já
Soraia, bem...
Ela simplesmente deveria estar em casa.
Reponho a água do copo, ajusto a bolsa debaixo do braço e caminho em direção às escadas,
tomando cuidado para não derramar o seu conteúdo no chão. Não seja ridícula, Aurora. Você
mesma contou pouco da sua vida a elas. O que sabe sobre Soraia, além dela ser a dona da
pensão? Nada. Talvez ela tenha sim, saído com um velho rico. Em um encontro duplo com
Matilde, ainda por cima! Rio para mim mesma, deliciada com a ideia de ver as minhas amigas
encontrando um homem bom.
Subo os degraus distraída, quase esbarrando no rodo com um pano de chão encostado na
parede ao topo da escada. Volto a franzir o cenho. Se as mulheres na pensão tem algo em
comum, é o fato de detestarem bagunça. Soraia costuma ser a responsável pela limpeza. Cheia de
manias, prefere fazê-la do seu jeito, o que inclui passar pano no chão duas vezes ao dia.
Nunca, em hipótese alguma, Soraia deixaria um rodo, vassoura ou outro objeto largado pela
casa.
Um estranho pressentimento domina o meu corpo. A sensação de que eu deveria fugir, antes
que seja tarde. O motor do Audi é tão silencioso que não reparei se Guilherme já saiu com o
carro, mas ele deve estar perto. Próximo o suficiente para retornar e ficar comigo na pensão,
aguardando a chegada de todas as outras. Em Pernambuco, estava acostumada a passar horas
sozinha. Aqui em São Paulo, a mera ideia me causa arrepios.
— Não seja boba — digo a mim mesma. — Soraia só deve ter dado uma saidinha. Logo,
logo, estará de volta.
Deixo o rodo como está, passo pelas portas fechadas e sigo para o meu quarto no final do
corredor. O pressentimento retorna, mais forte do que nunca, ao segurar a maçaneta. Ainda dá
tempo de ir embora!, parece dizer, mas o ignoro. Nunca fui supersticiosa e não há motivos para
ser agora. Giro a maçaneta e abro a porta.
O copo cai, espalhando água e estilhaços de vidro pelo corretor. Dou um passo para trás,
sentindo um caco penetrando fundo na sandália e alcançando a sola do pé, mas ignoro a dor. O
alarme dispara dentro dos meus ouvidos. Berra com todas as forças para que eu saia correndo
dali. Fuja, para bem longe, para nunca mais voltar.
Mas não consigo. Dou um terceiro passo e a bolsa escorrega pelos ombros conforme bato com
as costas na parede. Permaneço estática como um animal acuado ao ver o homem se levantando
da cama, da minha cama!, e dando um passo. Firme, sem arrastar. Sinto a pressão caindo, a trilha
gélida de medo percorrendo todas as minhas veias conforme a cor se esvai do meu rosto e ele
cruza o batente da porta.
As botas maciças esmagam um caco de vidro antes dele se postar à minha frente sem
cambalear. Não, ele não está bêbado, mas o fedor da sua roupa indica que já esteve. Olhos duros
se fixam sobre a barriga inchada. Após passar parte da noite chutando, Gael permanece parado,
ciente do perigo.
— Como você me encontrou? — sussurro.
— A intimação para a audiência — Osvaldo ri, sem qualquer humor. — Você é tão burra,
Aurora. Tão previsível. A partir do momento em que sabia em qual cidade você estava, seria
questão de tempo até te encontrar. Com o dinheiro que tinha, jamais conseguiria alugar uma
casa, então iria para uma pensão. Restava saber qual. Cheguei em São Paulo e comecei a
procurar. Não demorei a encontrar essa aqui. Sabe por quê? — dá mais um passo, chegando
muito perto. — Porque uma vagabunda imprestável como você faria questão de vir para um local
cheio de prostitutas! E a maior delas, pelo visto, é você! A única que vai e volta em um carrão.
Audiência? Não estou sabendo de nenhuma audiência!
O pressentimento retorna, mais forte do que nunca. Sobrepuja a vontade de gritar que elas não
o são, e mesmo que fossem, seriam donas de um caráter valioso, superior à de muitas pessoas
que conheci. Ao invés disso, solto com a voz sumida:
— O que você fez com elas?
— Não te interessa! — responde, invocado. — Passei a semana toda vigiando, esperando o
momento em que haveriam poucas delas em casa, porque queria apenas você.
Meu Deus! Ele passou a semana inteira me vigiando! Osvaldo desce os olhos em direção a
minha barriga, as íris inflamadas de raiva.
— O farmacêutico estava certo. Você comprou um teste de gravidez. Como eu disse:
previsível. Burra, e previsível. Sei que precisaria de um motivo para roubar todo o meu dinheiro
e fugir — ergue o rosto e uma foto do ultrassom. — E esse motivo só poderia ser o meu filho!
— Ele não é seu!
— Ah, não? De quem é, então? Duvido que seja de um dos peões da nossa cidade. Você mal
abria as pernas para mim, não abriria para eles. — O tom endurece. Torna-se maligno. — Se não
é meu, só pode ser do engomadinho que acabou de te deixar aqui. Estou longe de ser um cara
inteligente, mas sei fazer conta. Não é dele. É meu — enfatiza, gotículas de saliva voando em
direção ao meu rosto. — É meu, Aurora! E vim até aqui disposto a apenas uma coisa: voltar para
casa com o que é meu!
— Não — estremeço, dando um novo passo para trás. — Por favor, não.
Estou colada à parede, sem saída. Só posso fugir por onde vir. Correr o mais rápido que a
barriga permitir enquanto uso todo o ar dos pulmões para gritar por socorro. Penso rápido,
decidindo o que fazer.
Impulsiono o corpo para o lado, pronta para me afastar, mas Osvaldo é rápido. Agarra os
meus cabelos e me puxa para trás. Lágrimas tomam os olhos e os primeiros versos de Aquarela
enchem o meu cérebro de cores, desenhando o seu usual sol amarelo. A música que por tanto
tempo foi passagem certeira para um mundo colorido, sem qualquer violência, sem qualquer dor.
Balanço a cabeça, tentando afastá-la. Os fios repuxam a ponto de sangrar. Mostram que, para
enfrentar a realidade, precisarei dispensar as cores, menos uma. Encher-me de tons sombrios.
Finalmente enfrentar a realidade cinza-escuro com toda a lucidez que conseguir empregar.
Viro-me em direção a Osvaldo e, com um grito do fundo da garganta, avanço sobre o seu
rosto. As unhas são curtas, mas fortes o suficiente para arranhar. Ele cospe uma praga e
cambaleia para trás, soltando os meus cabelos.
— Sua vagabunda! — grita, tornando a avançar, mas as botas derrapam no piso molhado.
Ele escorrega e cai de cara no chão. O grito se torna ensandecido a ponto de estremecer a
pensão. Osvaldo faz menção de se erguer, a camisa furada, sangue escorrendo das feridas
provocadas pelos cacos de vidro.
— Eu não vou voltar com você! — grito de volta, seguindo para a escada. — Nem eu, nem o
meu filho!
— Vai sim! — agarra a barra do vestido e puxa, com toda a força.
O tempo congela. Os segundos se tornam minutos. Em câmera lenta, estico as mãos e tento
me segurar nas paredes. Os dedos percorrem a superfície lisa, sem sucesso ao me segurar. Um
grave e poderoso Aurora! ecoa do lado de fora, seguido pelo som de sapatos chutando o portão.
Cada pancada é como um trovejar. Cada centímetro que deslizo em direção ao chão é um
pulsar cheio de medo. Não conseguirei me agarrar. Nem ao menos conseguirei me equilibrar. Em
segundos infinitos, abraço a barriga e viro de lado em uma tentativa de amortecer a queda e
proteger o bebê quietinho em meu ventre.
Caio meio de lado e solto um gemido abafado. O impacto se espalha pelo meu corpo, me
chacoalhando por completo. As pancadas do lado de fora se tornam mais fortes. Um grito
frustrado corta o ar, misturando-se ao alarme incessante na minha cabeça.
Osvaldo também grita. Agarra um dos meus tornozelos, puxando-me para si. Mesmo sem ar e
com uma onda de dor subindo pela virilha e se espalhando pela barriga, tomo impulso com o pé
livre e chuto o seu rosto. A força é diminuta, mas o suficiente para atingir o nariz. O som seco de
um crec une-se à cacofonia enquanto um jato de sangue mistura-se à água espalhada no chão.
— Desgraçada! — crava as unhas na minha pele, terminando de me puxar. — Maldita
desgraçada! — ergue-se de joelhos, avolumando-se diante de mim, o rosto e a frente da camisa
tomada por tiras de sangue.
Ergue a mão em punho e o trovejar aumenta. Mistura-se ao quicar de metal caindo no chão e
ao impacto em meu rosto. Bato a cabeça no piso, a dor subindo pelo pescoço e tomando a face.
Mesmo assim, tento me libertar. Ignoro a dor e remexo as pernas, mas o homem é forte
demais. Enfia o joelho entre as minhas coxas e deixa que eu me remexa impotente debaixo de si.
Solto um grito frustrado e avanço com as mãos, pronta para arranhar o seu corpo, mas ele me
segura. Torce os braços e os joga de lado, como se fossem finos pedaços de arame. Tenho tempo
de ver a mão se erguendo de novo antes de fechar os olhos e esperar pelo pior.
— Sai de cima dela, seu filho da puta! — Guilherme berra, avançando sobre Osvaldo com
toda a fúria.
O homem pisca, aturdido, sem tempo de reagir ao ser agarrado pelo colarinho da camisa
encardida e jogado de costas contra o chão. Ajeito-me o suficiente para me arrastar para longe,
embasbacada ao ver o rosto do meu noivo rubro tamanha raiva. É a sua vez de erguer o punho e
acertar Osvaldo com toda a força.
O baque seco quebra o nariz por completo, esguichando sangue para todos os lados. O meu ex
uiva de dor e de plena fúria, tentando-se levantar e agarrar Guilherme de qualquer forma.
Ele não dá trégua. É mais leve, mas também mais ágil. Desvia e soca de novo, ensandecido.
Nunca imaginei que o veria assim. O homem tranquilo que beija o topo dos meus cabelos e
conversa com o bebê dentro da minha barriga tomado por um demônio, arrancando sangue sem a
mínima dó.
O bebê! Estremeço ao olhar para baixo, dessa vez de medo. A barriga continua como está. A
superfície lisa, sem qualquer sinal da queda, mas a dor se avoluma em todo o meu corpo. Não
preciso de nenhum pressentimento para saber que algo está errado.
Um berro chama atenção de volta a briga. Osvaldo continua no chão. Ao invés de tentar se
levantar, puxa Guilherme. Ele tenta firmar os sapatos, mas também escorrega na água. Em
segundos se embolam entre socos e chutes. Arrasto-me ainda mais para trás, pensando no que
fazer. Falta-me força para separá-los. Preciso encontrar a minha bolsa, ligar para a polícia e pedir
que venham urgente para a pensão.
Tateio o chão ao meu lado, em busca da bolsa, quando Osvaldo ruge. Em um ápice, consegue
se sobrepujar sobre Guilherme. Agarra-o pela camiseta e o vira, batendo suas costas no chão. Ele
se remexe. Está prestes a se levantar quando Osvaldo entrelaça as mãos em seu pescoço.
— Então é você — ofega, afundando os dedos na pele. — É você quem está comendo a
vagabunda da minha esposa, não é?
O rosto de Guilherme adquire um tom rosado. Remexe as pernas e agarra os braços do
agressor, tentando se desvencilhar. Osvaldo se ajeita e mete o joelho com toda a força sobre a
virilha do homem abaixo. O rosado se torna rubro. Guilherme tenta puxar o ar para gritar, mas
não consegue. Entro em completo pânico.
Olho em volta. A bolsa! Eu preciso da maldita bolsa! Enfim, a encontro: de alguma forma, foi
arrastada até a escada. Solto um gemido de pura agonia e me levanto.
E vejo o rodo.
O som de um engasgo preenche o corredor. Olho por sobre o ombro. Guilherme continua se
remexendo, mas suas mãos parecem menos firmes ao segurar os braços de Osvaldo.
A polícia jamais chegará a tempo.
Ignoro a dor lancinante que sobe pela virilha e avanço o mais rápido que consigo em direção
ao rodo. O pano permanece no chão quando seguro o cabo com as duas mãos, feito uma espada,
e o ergo sobre a cabeça. Reúno o que resta de força, retorno ao corretor e o desço sobre Osvaldo.
A madeira se parte ao bater em seu ombro maciço. Solto um novo gemido, dessa vez de
frustração. Queria ter acertado a sua cabeça, não o seu ombro! Pelo menos, é o necessário para
fazer o homem soltar Guilherme. Sua boca se abre em um gigantesco O enquanto tenta puxar o
ar e recuperar o fôlego, mas não posso prestar atenção nele. Não quando Osvaldo se levanta,
devagar, sem tirar os olhos insanos dos meus.
Loucura, ele foi tomado pela mais pura loucura.
— Como ousa bater em mim? — sibila, dando um passo adiante. Agarro o restante do cabo
com mais força.
— Como você ousa bater em mim? — Os joelhos fraquejam, mas me mantenho firme, o rosto
coberto de suor. — Chega, Osvaldo! Aceite o divórcio e vá embora!
— Eu já falei: só vou com o que é meu! E você é minha, está entendendo? Minha!
Ele avança. Há muito deixei de pensar. Avanço junto, empunhando o pedaço de madeira.
Volto a erguê-lo, descendo com tudo sobre Osvaldo, sem me importar onde irá acertar.
Em um movimento brusco, ele segura o cabo do rodo e o puxa. Solto a tempo, temendo ser
puxada junto. O impulso empurra Osvaldo para trás. Faz com que os seus pés se embolem em si
mesmos e escorreguem na água e no sangue espalhados pelo chão.
Os segundos voltam a se transformar em minutos, mas dessa vez me mantenho firme. Vejo o
corpo flutuando no ar e a cabeça batendo com um sonoro baque no chão, aumentando a poça de
sangue à sua volta.
Agora é ele quem se engasga. Tenta se mexer, sem sucesso. Uma bolha escapa da boca
escancarada enquanto o corpanzil estremece. De repente, os movimentos cessão e os olhos
enchem-se de neblina.
Osvaldo está morto.
Capítulo 29 – Guilherme

Ainda ofego quando começo a me levantar. Ponho-me sentado, a visão tomada por
incontáveis pontinhos pretos. Pisco, tentando espantá-los, mas leva alguns segundos até que as
imagens entrem em foco e eu consiga ver o homem caído a poucos metros de distância. Uma
imensa poça de sangue se espalha em volta da sua cabeça.
O coração salta dentro do peito, ameaçando romper as costelas. Não me importo com ele. Só
me importo com ela.
— Aurora? — chamo, rouco. Engulo em seco e a garganta ferida arranha. — Cadê você,
Aurora?
Só então a mulher entra em foco. Ela franze o rosto e cambaleia para trás, batendo com a
lateral do corpo na parede. Tenta se segurar, mas é em vão. As pernas vergam e começa a ir ao
chão.
Não sei de onde tiro forças, só sei que às tiro. Ignoro a dor e, de um salto, percorro os poucos
metros que nos separam, conseguindo amparar o seu corpo. Abraço-a com força e, devagar,
deslizamos juntos até o chão.
Seus olhos estão arregalados, fixos em apenas um ponto.
— Ele morreu — sussurra. — Meu Deus, ele morreu.
— Morreu — confirmo, lançando um rápido olhar ao homem inerte. Puxo o seu rosto contra o
peito. Ela parece em choque, não quero que continue olhando para ele.
Suas mãos me agarram e um gemido vindo das profundezas da garganta escapa dos lábios
rachados. Um minúsculo filete de sangue escorre da lateral dele, provavelmente onde o filho da
puta acertou um soco.
— O que ele fez com você? — pergunto em desespero.
— Ele... — a voz falha, mas ela se esforça para continuar. — Ele me derrubou no chão e me
bateu. Estava no meu quarto, sentado em cima da minha cama, revirando as minhas coisas.
Pegou a foto do nosso bebê — engasga, mas consegue tomar fôlego e continuar. — Disse que
iria me levar de volta. Que eu era dele, e que iria me levar de volta.
O choro desaba como uma tempestade. Abraço-a com mais força. Geralmente deixo Aurora
diante da pensão, espero até que entre no sobrado e vou embora, mas um pressentimento
substitui outro. Ordenou para que eu ficasse e esperasse. O que? Naquele momento, não sabia.
Só sabia que deveria obedecer.
Assim o fiz. Estava prestes a dar partida no motor do Audi quando ouvi o primeiro grito e um
arrepio percorreu todo o meu corpo. Nem ao menos pensei. Apenas desci do carro e forcei a
entrada aos chutes. Teria subido mais cedo se o portão da Soraia não fosse tão forte.
— Acabou, Aurora — digo baixinho, acariciando os seus cabelos. — Acabou.
Ela assente e se enrosca ainda mais no meu corpo, mas um esgar corta o seu rosto. Geme alto,
o som carregado de dor ao levar as duas mãos à barriga.
— O bebê... — um novo esgar interrompe a fala. — Estou preocupada com o bebê.
— Calma — tento tranquilizá-la.
— Está doendo, Guilherme. Está doendo muito.
Sirenes soam ao fundo, anunciando a chegada de ajuda.
— Os médicos estão chegando — afago as suas costas, me esforçando para manter voz firme.
— A dor já vai passar.
Como se apenas para me contradizer, ela se contrai inteira. O chão umedece conforme o
gemido se transforma em um grito apavorado. Não, não e não!, penso. Ainda é cedo, Gael! Você
não pode nascer agora!
Mas, pelo visto, ele está nascendo. Olho para baixo e confirmo o óbvio: a bolsa estourou.
Aurora se agita enquanto as sirenes se tornam mais altas. Completamente impotente, repito os
pedidos de calma, sentindo-me um inútil por conseguir fazer apenas isso. Como eu gostaria de
fazer mais, muito mais, que apenas segurá-la entre os braços!
— Guilherme? — chama baixinho, olhando para cima, as íris esverdeadas tomadas de medo.
— Diga.
— Se eu for presa...
— Você não irá presa. Ele escorregou, caiu e morreu. E mesmo que você... — engulo em
seco. É difícil imaginar a minha doce Aurora matando o que quer que seja. — Mesmo que você
tivesse... enfim... seria legítima defesa.
— Mesmo assim... — geme de novo. Aperto-a com mais força, tentando não reparar no
sangue se misturando ao líquido claro. — Se eu for presa, você promete cuidar do Gael?
— Você não... — repito, mas ela crava as unhas em meus braços.
— Por favor, prometa.
A garganta trava diante de tamanha confiança. Assinto, procurando a voz embargada. Leva
alguns segundos até que eu consiga encontrá-la e responder.
— Eu prometo, é claro que eu prometo — sussurro. — Mas, como eu disse, você não irá
presa.
Dessa vez, ela não responde. Encosta o rosto contra o meu peito e fecha os olhos. Solta um
longo suspiro. Ele leva consigo todo o medo, toda a dor. O semblante se torna tranquilo como o
da menina que tantas vezes vi na praia, até que relaxa por completo. Ajusto o corpo entre os
braços, percebendo como o sangramento se tornou pronunciado.
— Aurora? — chamo, sem obter resposta. Chacoalho-a de leve. As pálpebras piscam, mas ela
volta a fechá-las. Isso me enche de terror. — Fique acordada, Aurora! Está me ouvindo? Fique
acordada!
As sirenes se tornam mais altas. Venham logo!, quero gritar. Batidas soam no andar de baixo,
mas as ignoro. Chacoalho o corpo de Aurora, mas dessa vez ela não responde. A onda de pânico
se avoluma. Sem nem pensar, dou três tapinhas na lateral do seu rosto. Ela acorda e me encara,
mas dessa vez os olhos então nublados, fora de foco.
— Fique acordada — imploro. — Os médicos estão chegando. Eles vão cuidar de você e do...
— Você promete? — ela me corta. — Promete cuidar do Gael?
Um novo arrepio percorre todo o meu corpo enquanto o cérebro ameaça entrar em curto-
circuito. As batidas no andar de baixo se tornam mais pronunciadas. Carros dobram a esquina
cantando pneus, trazendo consigo o som ensurdecedor das sirenes. Por favor, que tenham
chamado a polícia e os primeiros socorros!
A promessa é a mesma, mas a preocupação se tornou outra.
— Prometo que eu, e você, cuidaremos do Gael.
Aurora sorri. Sobe a mão pelo meu peito, percorre o meu pescoço e alcança a lateral dos meus
lábios. Esforço-me para sorrir de volta, mas dessa vez não consigo. As lágrimas enfim escapam,
descendo como corredeiras pelo meu rosto, embrenhando-se na barba até alcançar os dedos
delicados. O sorriso aumenta.
— Esperei por você a vida toda — sussurra. — E você valeu cada segundo de espera,
Guilherme.
Tudo acontece ao mesmo tempo.
Os olhos se fecham. Aos poucos, a mão cai. Um grito ensurdecedor escapa da minha garganta
enquanto as sirenes param diante do sobrado. Chacoalho Aurora, pedindo para que acorde.
Um estrondo escapa do andar de baixo, seguido por um berro feminino. Esse, de triunfo. Os
homens ainda estão descendo da viatura quando Soraia surge no topo da escada com uma faca
entre os dedos. Daquelas grandes, próprias para cortar carne. Filetes de sangue escorrem da
lateral do rosto e cobrem os olhos ensandecidos, mas tirando isso, é a única entre nós que parece
bem.
— Porco desgraçado! — ergue a faca e avança sobre Osvaldo.
— Ele está morto! — consigo dizer, fazendo com que pare no meio do movimento. Só então
ela repara na mulher em meus braços. Ignora todo o líquido amniótico misturado com sangue e
se ajoelha ao meu lado.
— Meu Deus! Ainda bem que a atendente da polícia disse que enviaria uma ambulância! —
toca o rosto de Aurora com delicadeza, analisando cada partezinha dele com atenção. As
pálpebras tremem, mas a mulher continua mole em meus braços. O som de botas pesadas alcança
o andar superior. Com agilidade ímpar para uma mulher da sua idade, Soraia se ergue e volta a
berrar. — Aqui em cima! Estamos aqui em cima!
Com coletes à prova de balas e armas em punho, os policiais irrompem escada acima e
cercam o corpo de Osvaldo. Um deles grita, querendo saber o que aconteceu, mas ninguém
responde. O mais velho se aproxima e franze o cenho ao encarar o rosto inerte de Aurora.
— Essa moça... — murmura, os olhos se acendendo. — É a moça que eu, e a Dona Maria,
ajudamos na rodoviária!
— Então ajude ela de novo! Cadê os médicos! — Soraia grita, irritada.
O policial fala algo no rádio colado ao peito e em instantes o andar é tomado pelos
paramédicos. Eles são ágeis em tirar Aurora dos meus braços e colocá-la sobre uma maca.
Envolvem o seu corpo em um cobertor térmico e, no mesmo instante, começam a medir os seus
parâmetros vitais. Observo tudo, sem piscar, até que um enfermeiro se aproxima de mim.
— Tragam um cobertor para ele, também!
— Não precisa — nego com a cabeça, concentrado na máscara de oxigênio colocada no rosto
de Aurora.
— Precisa, sim! — Soraia se intromete. — Olha só para você, Guilherme!
Só então corro os olhos pelo meu próprio corpo. A calça e a camisa estão encharcadas. O
centro da minha virilha pulsa de um jeito desconfortável devido ao esmagamento proporcionado
pelo joelho de Osvaldo enquanto as costas ardem, como se pequenos cacos de vidro tivessem
penetrado na camisa. Levo a mão ao pescoço, sentindo a pele quente. Pela forma como a dona da
pensão me olha, o meu rosto não está em melhor estado.
Alguém joga um cobertor sobre os meus ombros e insiste para que eu seja examinado, mas
não deixo. Estou concentrado em Aurora. Em instantes, a sua maca é erguida. Pego a bolsa e
faço menção de acompanhá-los escada abaixo, mas uma mão firme me impede. Olho por sobre o
ombro e dou de cara com o policial mais velho.
— Antes de você ir, preciso saber o que aconteceu aqui.
— Não é óbvio, policial! Esse louco nos atacou! — a mulher explode, mas ele ignora.
Por algum motivo, quer saber antes de um depoimento oficial. Abro a boca para insistir que
me solte, indeciso se devo contar ou não, mas são palavras diferentes que acabam saindo da
minha boca.
— De onde o senhor conhece a Aurora?
— Da rodoviária. Vi que estava sendo importunada, então a ajudei. Ela ficou dias e dias na
minha mente. Tinha um ar acuado de quem fugia, e fiquei curioso para saber de quem.
— Dele — aponto, decidindo contar. — Do marido, mas ele a encontrou. Não sei como, mas
deu um jeito e a encontrou. Ela estaria morta se eu...
A voz falha e engulo em seco. O policial, enfim, me solta.
— Sinto muito — diz, o semblante pesado. — Precisarei que você e a vítima compareçam à
delegacia para prestar depoimento.
— Isso é ridículo! — a dona da pensão ergue as mãos acima da cabeça. — Caso não tenha
notado, eles têm assuntos mais urgentes a tratar que ficar de lero-lero com um delegado!
Ignoro Soraia e assinto para o policial, seguindo em direção as escadas. O enfermeiro me
encontra no meio do caminho, informando que a ambulância está pronta para partir. Volto a
olhar para trás, dando de cara com as íris cinzentas da mulher mais velha. Ela me enxota com um
gesto irritado.
— Vai logo! Eu cuido disso aqui — vira o queixo em direção aos policiais e ao homem caído
no chão.
— A senhora ficará bem?
— Quando foi que não fiquei? — irrita-se ainda mais.
Ajusto o cobertor térmico ao redor dos ombros e acompanho o enfermeiro. Em instantes, a
porta da ambulância é fechada e seguimos em alta velocidade em direção ao Hospital Central da
Vital Care. Se existem profissionais capazes de salvar Aurora, são os profissionais de lá.
Ela segue estável sobre a maca. O médico e o enfermeiro conversam entre si, mas não escuto
o que falam. Concentro-me nela. Única e exclusivamente nela. Seguro a sua mão, ignorando o
quanto está gelada, e a levo aos lábios.
— Em breve, eu e você iremos cuidar do Gael.
As pálpebras se remexem e um minúsculo sorriso contorna os seus lábios. Dessa vez, consigo
sorrir de volta. Aperto a sua mão, enchendo-a de beijos, genuinamente feliz diante da mínima
reação.
Então algo apita dentro da ambulância. O médico e o enfermeiro se entreolham conforme o
apito soa mais alto, tão ensurdecedor quanto as sirenes girando do lado de fora, e o espaço se
enche de caos.
Capítulo 30 – Aurora

Morto.
O homem dos meus pesadelos está morto.
O dos sonhos segura a minha mão.
A escuridão diminui conforme ele beija dedo a dedo, sem se importar com a sujeira
impregnada na pele machucada. Sussurra novas promessas com a voz grave, mas também macia.
Faz com que eu sorria. Faz com que eu acredite.
Apitos, sirenes e gritos misturados da minha mente. Entreabro os olhos e encaro o teto branco
da ambulância. Pisco, e vejo as luzes brilhantes do corredor do hospital. Pessoas se debruçam
sobre mim. O rosto desesperado de um homem está machucado. Seus lábios se movem, pedem
para que eu aguente firme, mas ele é empurrado de lado, substituída por uma pessoa de jaleco
branco.
Pisco de novo. Dessa vez, estou em uma sala. As sirenes desapareceram e algo corta a minha
barriga. Não há dor, mas consigo sentir. Prevalecem os apitos e os gritos. Quero erguer o rosto,
descobrir o que está acontecendo, mas não consigo.
Os meus olhos vão em direção ao teto. Mais tinta branca e luzes brilhantes. O silêncio
preenche o espaço, substituído por um choro baixo. Sorrio em direção às luzes.
E tudo volta a escurecer.
Capítulo 31 – Guilherme

Alexandre Meyer me observa de braços cruzados enquanto caminho de um lado para o outro
na sala de espera do hospital. Liguei para ele tão logo Aurora foi levada ao setor de cirurgia
obstétrica. Duvido que tenha entendido uma palavra desesperada do que eu disse, mas captou o
essencial. Trouxe uma muda de roupa e a sua firme presença sem nem ao menos perguntar o que
aconteceu.
— Você precisa se acalmar — diz, pela milésima vez.
Balanço a cabeça e continuo andando, sem me importar com a dor. Os enfermeiros insistiram
em me examinar. Tiraram três cacos de vidro das minhas costas e informaram que urinarei
sangue pelas próximas horas. Também colaram alguma coisa sobre uma das sobrancelhas.
Supercílio partido, ou coisa parecida. Não dei atenção. Estou preocupado apenas com Aurora.
— Se alguma coisa acontecer a ela... — sussurro para mim mesmo.
— Ela vai ficar bem.
Suas palavras não têm qualquer efeito. Continuo andando de um lado para o outro, cada vez
mais nervoso e impaciente. Odeio essa sensação de impotência! De saber que a vida da minha
mulher está nas mãos de terceiros! Os médicos e enfermeiros foram ágeis em lhe prestar um
atendimento eficaz, mas estão há eras na sala de cirurgia! Preciso saber sobre a situação da
minha noiva e do meu filho.
Solto um gemido frustrado e tento focar nos aspectos práticos da situação, mas o celular vibra
contra o bolso da calça. Desbloqueio a tela, lembrando de mais um motivo para ser eternamente
grato pelo chá de bebê. Sem ele, não teria o contato das demais moradoras da pensão.
Todas elas, sem exceção, encheram o meu celular com mensagens de apoio. Soraia, pelo
visto, não tem dificuldade em se ater aos aspectos práticos. Em intervalos de minutos, manda
atualizações sobre a movimentação do sobrado e pergunta por Aurora.
A mensagem de agora informa que o Instituto Médico Legal acabou de chegar para fazer a
perícia. Como fiz antes, apenas leio a mensagem e deixo para responder depois. As mãos
tremem. Duvido que conseguirei digitar qualquer coisa sem errar.
— Você deveria aceitar o calmante oferecido pela enfermeira — Alexandre comenta,
preocupado. Volto a balançar a cabeça. Não quero um comprimido. Nem para a dor, nem para
me acalmar.
Mas queria uma dose de vodca. A vontade, adormecida a tantas semanas, vem com força.
Engulo em seco, ignorando a queimação na garganta, ciente de que não seria apenas uma dose.
Eu beberia até transformar a tristeza em uma garrafa vazia.
O tremor se torna mais acentuado, faz com que os dedos percam a coordenação motora e
derrubem o celular no chão. Alexandre se levanta de imediato, pega o aparelho e conduz o meu
corpo até um dos assentos estofados. Ele volta a vibrar, fazendo-o tomar a liberdade de encarar a
tela rachada.
— É uma mensagem da sua mãe.
Solto um gemido frustrado. Não é possível que já tenha descoberto o que aconteceu!
— Deixe-a aí.
Alexandre sabe que, se eu deixar a mensagem sem resposta, ela vai ligar. Em um gesto que
denota anos de profunda amizade, acessa os contatos e a bloqueia. Pelo menos, temporariamente.
Lanço-lhe um olhar agradecido. Mais tarde, quando estiver em condições, responderei a
mensagem.
— Você poderia fazer outro favor? — pergunto. Ele confirma com a cabeça. — Procure o
contato do Sr. Geraldo. Diga a ele que quero beber.
Alexandre crava as íris azuis nas minhas, mas não diz nada. Envia a mensagem que, para a
nossa surpresa, é prontamente atendida.
O anfitrião do Alcoólicos Anônimos pergunta o que aconteceu. Faz com que desabafe em
texto o que não consigo dizer em palavras. O medo que envolve o meu corpo. O temor de que os
motivos da minha alegria não saiam vivos da mesa de cirurgia. A pungente vontade de beber
apenas para afogar a tristeza.
As palavras são devolvidas. Enfatizam que, apesar de tudo o que aconteceu, não preciso ficar
triste. Em poucas reuniões, viu o quanto Aurora é uma mulher forte. Ela sairá bem da cirurgia.
Geraldo continua digitando enquanto uma médica se aproxima. Eu e Alexandre nos
levantamos. O advogado tenta manter a calma, mas também está nervoso diante do rosto sério
que não deixa antever nada. O meu coração martela o peito, cheio de expectativa, quando ela
olha na minha direção.
— A cirurgia acabou. A mãe perdeu muito sangue. Por precaução, foi encaminhada a uma
unidade de tratamento semi-intensivo, mas o quadro é estável.
O alívio é tamanho que as pernas fraquejam, levando-me ao chão. Alexandre é ágil em passar
os braços pelo meu tronco e me amparar. Ergue o rosto em direção a enfermeira.
— E o bebê?
— Foi transferido para a UTI neonatal. Está bem, apesar de ter nascido semanas antes do
ideal.
Aurora e o bebê estão bem, a minha mente repete, sem parar.
— Podemos visitá-la? — Alexandre faz uma nova pergunta.
Ela começa a negar, mas vacila diante do meu ar desesperado.
— Estamos fora do horário de visitas, então teoricamente não, mas posso permitir que a veja
por um minutinho.
— É o suficiente — consigo dizer. — Obrigado.
— De nada. Venha, vou te levar até o quarto dela.
Alexandre confere se estou mesmo seguro sobre as duas pernas e se afasta, me incentivando a
acompanhar a médica. Estou a alguns metros de distância quando escuto o celular vibrando de
forma prolongada. Pelo visto, é uma chamada de Geraldo. Ele deve ter ficado preocupado com a
falta de resposta e decidiu ligar. Agradeço mentalmente ao meu novo amigo e cruzo um conjunto
de portas internas do hospital.
Seguimos pelos corredores até chegarmos ao quarto com tratamento semi-intensivo.
— Lembre-se: apenas um minutinho.
— Tudo bem — digo, abrindo a porta.
Aurora repousa a meia luz. Aparelhos zunem e soltam bips à volta, monitorando os seus sinais
vitais enquanto um acesso preenche as suas veias com uma transfusão de sangue. Devagar,
estendo a mão e tiro uma mexa de cabelo do rosto, reparando que o corte nos lábios recebeu um
curativo semelhante ao da minha sobrancelha.
— Ah, Aurora.
Isso é tão injusto! Ela estava feliz como nunca se sentiu. Animada com a possibilidade de ver
Gael nascendo por meio de um parto normal. Brincava que não queria a minha presença na sala,
pois sabia que eu iria desmaiar assim que o bebê nascesse. Eu rebatia que iria, mesmo. E, de
quebra, viraria meme na internet. Pai babão desmaia no nascimento do filho, seria o título do
viral das redes sociais. Um mico que valeria a pena pagar.
Ao invés de chegar no seu tempo, Gael veio por meio da violência do seu genitor. Solto um
longo suspiro.
— Pelo menos o inferno acabou.
Imersa no mundo dos sonhos, ela não responde. Começo a me afastar com dor no coração. Se
dependesse de mim, passaria a noite deitado ao seu lado.
Prevendo a minha vontade, a médica dá dois mínimos toquinhos na porta, indicando que o
minutinho terminou. Olho para Aurora antes de ir e planto um rápido beijo sobre os seus cabelos.
As pálpebras remexem, mas ela continua dormindo.
Saio do quarto e a médica volta a me encarar.
— Gostaria de ver o bebê?
Algo se acende no meu peito. Faço que sim, indicando o quanto gostaria, e a sigo em direção
a unidade neonatal.
Nunca estive em uma unidade dedicada aos cuidados de crianças tão pequenas. Por trás de um
vidro, incubadoras dispostas lado a lado ajudam na recuperação e desenvolvimento dos bebês.
Meus olhos pousam em um, tão pequeno que caberia na palma da mão, e penso se ele é o Gael.
Ela me vê olhando e aponta para outra incubadora, alguns metros distante.
Um bebê maior se remexe dentro dela, parecendo incomodado com alguma coisa. Assim
como a maioria ali, sondas, acessos e eletrodos monitoram o seu corpo coberto apenas por uma
fralda. Talvez seja isso. Deve ser bastante incômodo acabar de nascer e ser picado por elementos
estranhos.
Aproximo-me do vidro, querendo guardar os detalhes do seu rostinho.
— Ele tem bastante cabelo — comento baixinho, para ninguém em particular. A médica
assente ao meu lado.
— Tem, mesmo.
O semblante delicado é tomado por uma leve careta. Ele parece chorar, mas sem emitir
qualquer som. O meu coração se torce, acompanhando os movimentos das suas sobrancelhas
franzidas.
— Ele está sentindo dor?
— Garanto que não. Só está incomodado — confirma o que imaginei. — Bebês prematuros
costumam se mover de forma descoordenada nos primeiros dias, mas não choram tanto. Ele está
assim desde que foi trazido para cá.
Gael abre a boca em uma espécie de bocejo e continua se remexendo. Os seus movimentos
me agoniam de forma alarmante.
— Posso vê-lo de perto?
Devagar, a médica volta a olhar para mim.
— Você é o pai?
— Sou — digo sem hesitar.
— Então vem — indica a porta da unidade com a cabeça, fazendo um sinal para segui-la.
O peso daquele longo dia ameaça cair sobre os meus ombros, mas uso o resto das forças para
cruzar a porta e entrar em uma salinha adjacente. As enfermeiras trocam palavras animadas,
apesar de baixas. Entendo algumas delas, mas permaneço parado, cada vez mais ansioso para ver
o meu filho.
As palavras então são dirigidas a mim. Pedem que eu cubra os cabelos com uma touca,
coloque uma máscara e lave as mãos. Depois, passam um avental pelos meus ombros, atando-o
com força às minhas costas. Só então sou liberado para entrar na sala ao lado.
Um casal ergue os olhos em minha direção, mas volta a atenção unicamente a filha. Passo por
eles, tomando cuidado para não esbarrar em nada, sendo levado até a incubadora do Gael. A
enfermeira pega uma cadeira próxima e pede que eu me sente.
Assim, de perto, é mais fácil analisar o pequeno. Talvez seja cedo para dizer, mas ele é a cara
da mãe. Estico o dedo em direção a incubadora, ansioso para transpor essa barreira e tocar o
bebê. A enfermeira percebe e abre uma das portinholas frontais. Acompanho os seus
movimentos, quase sem acreditar.
— Eu posso... tocá-lo?
— Pode, desde que ele se sinta confortável — sorri, encorajadora.
O meu coração acelera. Devagar, insiro a mão no compartimento aquecido. O bebê se remexe,
esbarrando na ponta dos meus dedos. O rosto se torce e ele solta um pequeno resmungo.
— Ei, sou eu — digo bem baixinho.
Ele para de se mexer no mesmo instante. A enfermeira solta um arquejo, mas a ignoro. Estou
concentrado demais em absorver cada mínimo detalhe do seu corpo. Ao acordar, Aurora desejará
saber tudo, e quero ser o responsável por contar.
Como o nosso filho tem cabelos cheios e espetados, na mesma tonalidade castanha da mãe. A
pele clara é macia, ligeiramente aveludada. A mãozinha se fecha sobre o meu dedo indicador e
aperta com uma firmeza inesperada para um bebê tão pequeno. Ele é lindo e perfeito igual a
Aurora.
— Você se lembra da minha voz, não lembra? — pergunto. Ele permanece quietinho. — É
claro que se lembra.
Contente com a nossa pequena interação, a enfermeira me surpreende ao abrir a incubadora.
Com a delicadeza adquirida por anos de prática, segura o menino entre as mãos e o posiciona
sobre o meu peito, bem onde fica o coração.
Ele é tão pequeno. O seu contato, tão sutil. Mesmo assim, faz com que uma gigantesca
descarga de amor atravesse todo o meu corpo. O impacto é tamanho que a visão escurece por
alguns segundos, antes de se tornar marejada por lágrimas. O meu filho está ali. Um pouco antes
da hora, frágil e precisando de cuidados especiais, mas está ali. Vivo. Batendo o pequeno
coração no ritmo do meu.
A enfermeira dita as instruções e, aos poucos, substitui suas mãos pelas minhas. Acolho Gael
de forma desajeitada, mas ele não parece se importar. Todo o mau humor foi embora. Aconchega
o corpinho conta o meu peito e se mantém quieto, parecendo satisfeito.
Uma lágrima transpõe a barreira das pálpebras e escorre pelo meu rosto. Não tenho tempo de
segurá-la. Ela cai no topo da cabeça do menino, embrenhando-se no cabelo fino feito incontáveis
plumas. Ele se remexe de leve e ergue os olhos.
Esverdeados, iguais aos da mãe. Não resisto a acariciar o topo da sua cabeça.
— Estou feliz que você esteja aqui — murmuro. — Queria que você tivesse vindo no seu
tempo, e de forma menos tumultuada, mas estou feliz, viu? Muito feliz.
Ele pisca de novo, a mãozinha se fechando contra a minha pele, e volta a dormir. Outra
lágrima cai. E mais outra. A enfermeira se adianta em pegar um lenço, mas deixo que caiam
livres.
Ele e Aurora estão vivos.
Isso é tudo o que importa.
Capítulo 32 – Aurora

Tento abrir os olhos, mas a luz é forte demais. Ou, pelo menos, parece ser. Irrita as retinas e
faz com que as pálpebras se fechem. Remexo-me entre lençóis, mas a cama não é confortável.
Bips ecoam a minha volta, criando um ritmo de sons. A maior parte da dor foi embora, mas
tenho a sensação de que estou acordando de um longo sono.
Tento de novo, com sucesso dessa vez. Um sorriso toma o meu campo de visão, mas apesar
de simpático, não é o sorriso que eu gostaria de ver.
— Ah, você acordou! — a voz feminina vibra. Pisco para confirmar e o sorriso da enfermeira
aumenta. Consulta os parâmetros de uma das máquinas e assente, satisfeita. — Que bom. O seu
marido ficará contente.
Um arrepio percorre todo o meu corpo. Não, não é possível! O meu marido está morto! Volto
a me remexer, em busca de uma rota de fuga, quando olho para o lado e o vejo.
A enfermeira se confundiu. É o meu futuro marido quem está no quarto, dormindo em um
minúsculo sofá de dois assentos, as pernas compridas dobradas até o meio do peito. A cabeça
cheia de fios ondulados pousa sobre as mãos unidas no braço do sofá. Alguém teve a bondade de
jogar uma manta sobre o seu corpo, mas fora isso, Guilherme parece totalmente desconfortável.
— A médica enfatizou que ele só poderia ficar durante o período da visita, mas a informação
entrou por um ouvido, e saiu pelo outro — ri, bem-humorada. — Foi dar as costas para ele se
esgueirar de volta ao quarto. De tanto insistir, acabamos deixando que ficasse. Parabéns, você
tem um homem muito devorado — continua, soltando um suspiro admirado. — Ele só saiu daí
para tomar banho e ver o bebê.
O coração salta no peito e o pânico ameaça dominar o meu corpo. As lembranças vem em
flashs. A queda, seguida pelo rompimento da bolsa. O líquido amniótico escorrendo pelas
pernas, misturado com finas trilhas de sangue. O cansaço insuportável e a vontade de fechar os
olhos para mergulhar em mundo silencioso, livre de qualquer dor.
A última lembrança é de um choro contido. Depois, apaguei. Não tive oportunidade de
segurar o meu filho nos braços. Sequer vi o seu rostinho. Agora, a necessidade de fazer isso se
torna urgente.
— Como o meu bebê está? — tento me sentar, sem sucesso.
— Muito bem, para um bebê prematuro — a enfermeira continua sorrindo. — Ganhou
bastante peso em dois dias. Nesse ritmo, logo será liberado para ir para casa.
Dois dias! Fiquei desacordada por dois dias!
— Eu preciso vê-lo — tento me sentar de novo, fazendo os bips se tornarem mais frenéticos.
Ela é firme ao empurrar os meus ombros para baixo.
— Você o verá em breve. Por favor, mantenha-se tranquila — pede com a mesma firmeza. —
Vou chamar a médica responsável. Ela precisa te avaliar antes de liberar a visita à unidade
neonatal.
Assinto, me forçando a ficar calma ao processar a extensa quantidade de informações. Ela
termina de conferir seja lá o que esteja conferido e sai do quarto, batendo a porta de leve.
Guilherme se remexe, tentando se ajustar sobre o minúsculo sofá. As pernas caem para o lado de
fora, terminando de acordá-lo.
Observo enquanto ele pisca, tão desorientado quanto eu. Põe-se sentado e passa a mão pelos
cabelos, bagunçando ainda mais os fios. O homem continua deslumbrante mesmo com o rosto
abatido. Solta um longo bocejo antes de notar que estou acordada. Ergue-se de um pulo e vem
correndo em direção a cama.
— Você acordou! — sorri, tão radiante quanto a enfermeira. Sem se importar com qualquer
contraindicação, envolve o meu corpo em um abraço e afunda o rosto em meus cabelos. — Ah,
Aurora. Você finalmente acordou!
Os ombros tremem e o choro sai como um alívio. Choro também, fazendo o meu melhor para
abraçá-lo de volta. Sentir o seu corpo quente junto ao meu é como uma deliciosa volta para casa.
— Acordei — rio, acariciando os seus cabelos. Ele devolve a risada e se afasta para olhar meu
rosto.
A lateral do seu está machucada e o supercílio deve ter se partido, mas fora isso, parece bem.
Grossas lágrimas escorrem pelas bochechas antes de se esconderem na barba curta. Acaricio o
seu rosto e continuo sorrindo.
— A enfermeira disse que você passou dois dias dormindo nesse sofazinho.
— Passei. E passaria quantos mais fossem necessários, apenas para ter o prazer de acordar ao
seu lado — diz, acariciando os meus cabelos daquele jeitinho que adoro. Derreto-me como uma
gatinha. — E também porque...
Guilherme encolhe os ombros, acanhado.
— Porque...?
Ele solta o ar.
— Porque a vontade de beber se tornava insuportável longe de você e do bebê. O Sr. Geraldo
tentou ajudar, mas disse que é assim mesmo. Que o alcoolismo exige vigília constante e, que
com o tempo, serei capaz de vigiar por mim mesmo. Inclusive, ele veio te visitar.
— Muito gentil da parte dele — digo, apreciando o gesto, mas ansiosa para fazer a pergunta
que consome o meu íntimo. — A enfermeira disse que você visitou o bebê.
— Sim! — Guilherme vibra, se afastando dos meus braços para apalpar os bolsos da calça.
Encontra o celular, desbloqueia a tela e o vira para mim todo bobo. — Oi, mamãe! Esse aqui é o
Gael!
Seguro o aparelho entre as mãos, embasbacada. O menino encara a câmera com olhos verdes
cheios de confiança para um bebê tão pequeno. Toco a tela, tentando sentir a textura da pele
rosada enquanto gravo cada detalhe do seu rosto. Uma lágrima cai sobre o aparelho, mas
Guilherme não se importa. Empolgado, passa a foto para o lado, mostrando uma imagem em que
o menino dorme sobre o seu peito.
— Ele é tão pequenino! — continua, passando foto a foto. Para em uma onde Gael segura o
seu dedo. — Olha só o tamanho dessa mãozinha!
Caio na risada. Meu Deus, como é bom rir.
— Pelo visto você encheu a memória do celular com imagens do nosso filho!
— Enchi. Olha essa! — aponta, todo babão. — Os bebês nas incubadoras ao lado com certeza
estão com inveja de tanto cabelo!
— Estão. E eu estou de você — brinco.
— A médica já está vindo — olha para a porta. — Em breve você poderá visitá-lo.
— E se ela me impedir? — estremeço.
Guilherme volta a olhar para mim.
— Eu te ponho nos braços e levo até lá.
A risada se torna uma gargalhada. Ele ri junto, rouco, levando a mão a garganta cheia de
hematomas avermelhados. Estendo a mão, tocando a pele machucada.
— Acabou — digo baixinho.
Ele confirma com a cabeça.
— Tive tanto, mas tanto medo de te perder — a voz falha. — Houveram momentos em que eu
pensei que... — engole em seco e fecha os olhos. — Em que eu pensei que fosse te perder.
— Mas não perdeu — volto a puxá-lo para mim. Ele vem sem qualquer hesitação. — O que
aconteceu com o corpo do...
Paro, sem querer dizer o nome dele.
— Foi enviado de volta a Pernambuco. Os pais já morreram e ele não tem irmãos, mas tem
um jazigo da família. Providenciei para que fosse enterrado lá.
Concordo com a cabeça. É melhor que fique longe de qualquer um de nós.
— E a polícia?
— Alexandre está cuidando dessa parte, apesar de não ser a sua especialidade — Guilherme
responde. — Dado o pedido de divórcio e o nosso estado, não precisamos de muito para
convencê-los de que Osvaldo foi o causador de tudo. Precisaremos prestar depoimento, mas foi
um acidente, e ninguém irá preso.
Respiro um pouco mais aliviada.
— E as meninas?
— Todas bem. Segundo Soraia, ele pulou o portão e invadiu a casa pela porta dos fundos. Os
dois se viram cara a cara, e um golpe foi o suficiente para derrubar a mulher. Ele a trancou em
um dos quartos de baixo e subiu em direção ao seu. Soraia se machucou um pouco, mas você
conhece a dona da pensão melhor do que eu — ri. — Ela está ótima.
— Tenho certeza de que está — rio junto. Guilherme encosta a cabeça na minha e volta a me
abraçar.
— Eu te amo — sussurra. — Muito.
— Eu também — devolvo o carinho. — Muito.
O seu sorriso chega até mim, mesmo que eu não consiga ver.
Não sei quanto tempo ficamos abraçados. Apenas ficamos. Comemorando em silêncio a
alegria de estarmos juntos. Dessa vez, para sempre.
A porta se abre e nos separamos a tempo de ver a médica entrando no quarto. Ela põe as duas
mãos na cintura e encara Guilherme.
— Você é teimoso, hein?
— Só um pouco.
Ela balança a cabeça e vem em minha direção. Pergunta como estou e confere os parâmetros
verificados anteriormente pela enfermeira.
— Posso conhecer o meu filho? — pergunto com cautela.
— Pode, mas antes preciso repetir alguns exames.
A enfermeira retorna e coleta sangue. Depois, o almoço é servido. Trazem uma bandeja extra,
sabendo que Guilherme estará ali. Ele me ajuda a cortar a carne e comemos juntos, como se
degustássemos um banquete.
A tarde passa e fico cada vez mais ansiosa. Recebo a visita de vários profissionais, mas todos
atestam que, apesar dos hematomas, estou bem. Só falta o resultado dos exames. Abro a boca,
pronta para que Guilherme me tome nos braços e me leve até a unidade neonatal quando a
médica retorna e diz que a visita foi liberada.
Insisto que posso ir caminhando, mas eles insistem ao contrário. Com cuidado para não abrir
os pontos da cesárea, Guilherme e uma enfermeira me colocam sobre uma cadeira de rodas. Ele
me empurra devagarzinho, vigiando o soro suspenso, temendo romper algum acesso em minhas
veias. A expectativa cresce a cada centímetro percorrido.
Suspeito que o coração saltará pela boca quando cruzamos as portas da maternidade e me vejo
diante dos bebês. São tantos! Alguns maiores e outros menores. Todos lindos. Guilherme me
aproxima do vidro e olho de um para o outro, tentando identificar o meu.
Então vejo o tufo de cabelos como plumas e sei que é ele, dormindo tranquilo em sua
incubadora. Toco o vidro, querendo mais do que tudo tocar a sua pele.
— Eu preciso tocá-lo — sussurro. A enfermeira troca o peso de um pé pelo outro.
— Não podemos entrar com a cadeira de rodas e...
— Se o problema é esse… — diz Guilherme, passado os braços pelo meu tronco e por
debaixo das minhas pernas. — Não precisamos da cadeira de rodas.
— Não sei se a médica...
— Pelo amor de Deus! — ele clama. — Vocês sabem tudo que passamos, não sabem? Uma
mãe só deseja conhecer o seu filho. Não esperam que ela vá conhecê-lo por uma barreira de
vidro!
— Mas...
— Sem mas. — Guilherme me ergue com facilidade. Agarro o seu pescoço e ele confere se
estou mesmo firme. Ao se dar por satisfeito, volta sua atenção à enfermeira. — Por favor, você
poderia trazer o soro? Não conseguirei fazer isso.
A mulher solta um longo suspiro e acata o seu pedido. Entramos no espaço destinado a UTI
neonatal e somos recebidos com olhares de surpresa.
Uma enfermeira mais velha abre a boca, pronta para fazer uma interdição, mas me reconhece.
Pelo visto, todas sabem pelo que passamos. Ela indica uma cadeira com o queixo e me ajuda a
colocar a touca e a máscara, vestir o avental e higienizar as mãos. Confere se está tudo certinho e
dá sinal verde para Guilherme voltar a me pegar no colo.
Seguimos em direção à incubadora do meu filho. Ele não está mais dormindo ao chegarmos
lá. Remexe o corpo e, devagarzinho, vira o rosto em minha direção, piscando os olhões
esverdeados como se me reconhecesse. Começo a chorar antes de ser colocada sobre uma
segunda cadeira.
— Ele é igualzinho a mãe — Guilherme comenta, orgulhoso.
Faço que sim, admirada. A enfermeira abre a incubadora e em instantes o menino vem em
direção aos meus braços. Ela o posiciona sobre o meu peito, indicando como devo segurá-lo.
Assim o faço, sentindo o peso do seu corpo.
— Gael — murmuro, trazendo-o junto a mim. — Meu pequeno Gael.
Ele volta a piscar e, devagar, pousa a cabeça entre os seios. As mãozinhas me agarram com
surpreendente força, como se indicassem que nunca mais querem sair dali. Por trás da máscara,
beijo os seus cabelos, sentindo o seu cheirinho de bebê.
As lágrimas vem devagar. Transpõem os cílios, percorrem as bochechas e penetram na
proteção da máscara. Os ombros ameaçam chacoalhar, mas um par de mãos firmes os contêm.
Olho para cima, vendo Guilherme tão emocionado quanto eu. Apenas uma lágrima cai sobre o
cabelo do menino, não sei se minha, ou dele, mas pouco importa.
Gael é nosso.
Capítulo 33 – Guilherme

Graças aos exames e à boa disposição de Aurora, os médicos optaram por tirá-la da unidade
de tratamento semi-intensivo e mantê-la em um quarto comum. Assim, pode receber mais visitas,
e eu não preciso ficar me esgueirando escondido para ver a minha mulher.
Estou disposto a passar a noite inteira com ela quando Soraia e as demais moradoras da
pensão chegam para a visita. Ainda não podem ver o bebê, mas sentem-se felizes em conferir
como a nova mamãe está bem. Suspiram diante da foto do pequeno Gael e puxam Aurora para
abraços apertados ao saberem da sua história completa. Até deram jeito de contrabandear bolo de
chocolate cortado em fatias embrulhadas em papel alumínio.
Como a minha fatia em um canto, dando espaço para as amigas interagirem. Aurora confirma
que ficará internada por mais um ou dois dias, até ter alta e poder ir para a nossa casa, enfatiza,
olhando para mim. Sua voz se torna embargada ao mencionar que Gael permanecerá no hospital
por mais tempo, segundo os médicos, até ganhar peso. Do jeito que o menino se desenvolve bem,
não duvido que baterá a meta em uma semana.
Soraia se afasta da cama e vem em minha direção. Reparo que os machucados estão
cicatrizando no rosto firme de quem não aceita qualquer tipo de desaforo. Agora entendo a
desconfiança no começo do nosso relacionamento. Soraia não vê as suas inquilinas como meras
fontes de renda, ela as vê como suas filhas.
A mulher me olha de cima abaixo ao oferecer uma segunda fatia de bolo.
— Desculpa Guilherme, mas você está péssimo.
Solto uma breve risada.
— Obrigado pela sinceridade — dou uma mordida.
— De nada. Coma esse bolo e vá para casa.
Quase engasgo.
— Não posso — consigo dizer, após engolir. — Alguém precisa passar a noite com a Aurora.
— E esse alguém será eu. Conversei com a Aurora quando você foi ao banheiro, e ela
concordou. Você já passou dois dias aqui, com o corpo cheio de hematomas, dormindo em um
sofá minúsculo.
— Mas...
Ela cruza os braços, começando a se irritar.
— O que eu faço na pensão além de lutar contra a vontade de fumar e passar as noites
assistindo novelas? Nada. Então posso ficar aqui enquanto você vai para casa descansar.
Olho para a mulher deitada no leito. Não quero deixar Aurora, por mais que o corpo clame
que é o melhor a se fazer. Estou dolorido, vivendo à base de analgésicos. Sei que apagarei
segundos após deitar na minha própria cama.
— Por favor, meu amor — Aurora diz, a voz doce sobrepujando todas as outras ao abrir o
sorriso que é a minha perdição. — Pode ir. Eu ficarei bem.
As mulheres à volta assentem, confirmando a informação. Não, Aurora não ficará sozinha.
Pelo contrário. Estará cheia de companhia disposta a animá-la com palavras carinhosas e bolo de
chocolate.
Sorrio e também assinto. Termino a fatia de bolo, recolho as migalhas escuras que caíram no
chão e me aproximo da cama no centro do quarto. Aurora me olha cheia de carinho quando
pouso um beijo na lateral dos seus lábios.
— Estarei de volta amanhã cedo.
— Eu sei — devolve o beijo, afagando a barba bagunçada. — Estarei te esperando.
As mulheres soltam ounnns apaixonados e caem na risada. Rio, também, feliz por
compartilhar momentos tranquilos após dias de tamanha tensão. Despeço-me de todas e saio do
quarto, deixando que as mulheres compartilhem os seus assuntos a sós.
Caminho pelos corredores sem presa, seguindo em direção ao estacionamento próximo ao
saguão de entrada. Alexandre insistiu em levar o Quindim para a sua própria casa, assim ele
passaria menos tempo sozinho e eu não precisaria me preocupar em voltar apenas para encher a
sua tigela de água e ração.
Estou cruzando o saguão, pensando no que eu mesmo irei comer, quando reconheço uma voz.
Paro onde estou e franzo o cenho, sem acreditar. Viro-me devagar, a tempo de ver a minha mãe
discutindo com uma das recepcionistas.
— Eu já falei e repito — diz, dura. — Não vou autorizar a sua entrada.
Inês Alcântara estufa o peito.
— Quem você pensa que é, sua filha da...
— Mãe? — elevo a voz, chamando a sua atenção. — O que a senhora está fazendo aqui?
Ela bufa e lança um olhar cheio de desdém em direção a recepcionista. A profissional não se
abala, provavelmente acostumada a lidar com esse tipo de gente. Coloco uma nota mental para
me desculpar em nome da minha mãe enquanto ela se aproxima com passos decididos.
Os olhos claros percorrem os machucados em meus rosto, mas sua expressão não muda. Está
irada por um motivo que não consigo entender.
— A pergunta é: o que você está fazendo aqui?
— Não responda uma pergunta com outra, mãe.
Inês bufa de novo, como uma panela de pressão esquecida no fogo.
— Há dias tento falar com você, sem sucesso. Até que descobri que o meu filho bloqueou o
número de telefone da própria mãe!
— Eu posso explicar e...
— Fui até a empresa e já me explicaram! — corta. — Ainda bem que nem todos os seus
funcionários são como aquela secretária insolente. Tome cuidado, filho. Ela vai te apunhalar
pelas costas a menor oportunidade. Está só esperando o momento certo para tomar o seu lugar e
assumir o cargo mais alto da empresa!
Respiro fundo, toda a tranquilidade trazida pelas risadas gostosas da minha noiva e das suas
amigas dissipada.
— Quem te explicou o que?
— Não interessa — faz um gesto de desprezo com a mão. — O que interessa é saber por que
a filha daquela umazinha está internada aqui! E pior, porque você pretende assumir uma criança
que não é sua!
O meu sangue começa a ferver.
— A filha daquela umazinha — repito — é a minha noiva, então peço que a senhora se refira
a ela com mais respeito.
A minha mãe fica lívida. Leva as duas mãos ao peito, a palidez do rosto tão acentuada, que
por um instante a vejo sendo socorrida pelos mesmos médicos que atenderam Aurora.
Mas, como dizem por aí, vaso ruim não quebra. Talvez eu nunca tenha percebido antes, mas
agora noto como Inês Alcântara talvez faça parte dessa fornada inquebrável.
— Você vai se... casar com ela?
— Vou. Algum problema?
— Todos! — grita, chamando atenção das pessoas no saguão.
— Isso é um hospital, mãe! Mantenha a voz baixa!
— Eu me recuso a manter a voz baixa! Não acredito que você vai trocar uma mulher cheia de
classe como a Evelyn por uma qualquer!
Estou completamente farto desse assunto.
— Quem me trocou foi a Evelyn. Aceite — digo, firme. — E aceite também que o que nós
tínhamos era uma mentira! Agora, ela está feliz com o seu advogado e eu estou feliz com a
minha recepcionista. Jamais voltaremos a ficar juntos.
— Uma recepcionista — leva uma das mãos à testa. — O meu filho, e uma recepcionista. Só
o seu pai conseguiu ser mais baixo ao se sentir atraído pela empregada doméstica.
Abro a boca, pronto para pedir de uma vez por todas que fale baixo, quando um alarme soa na
minha cabeça. As engrenagens do cérebro entorpecido após dias de sono ruim e excesso de
analgésicos se movem a todo o vapor. Há apenas um detalhe sem solução no meu sonho
recorrente com a Aurora.
— Qual empregada doméstica? — pergunto.
— Qual? — bufa. — A mãe da Aurora!
Dou um passo para trás, não por conta da informação. Sei que o meu pai traia a minha mãe.
Ele parecia se orgulhar disso enquanto ela, submissa, continuou no casamento. Ou por achar que
seria o certo, como tantas vezes deixou entender, ou por não querer se ver livre dos benefícios
trazidos pela união com um milionário.
— Como a senhora sabe?
— Eu sempre soube, desde o momento da contratação. Ela era bonita demais — cospe, cheia
de raiva — com aqueles cabelos ondulados e olhos verdes como esmeraldas. Mas a contratei
mesmo assim. No começo, tudo deu certo. Ela era esforçada e cumpria ordens sem reclamar. Sua
filha acompanhava a mãe em silêncio, ciente de que deveria se comportar. Pensei que daria certo,
até a viagem à Riviera de São Lourenço — começa a tremer, fazendo com que eu realmente tema
pela sua saúde. Toma fôlego e continua. — O seu pai insistiu em levá-la, afinal precisaríamos de
alguém para limpar a cobertura para as férias de verão. Concordei. Estávamos lá há uns quinze
dias quando ele deu em cima dela. Claro que daria. Quem mandou aquela mulher ser tão bonita?
— questiona, a inveja impregnada em casa sílaba. — Ele estava agarrando o seu braço, puxando-
a contra si, quando entrei na sala.
Arregalo os olhos.
— O que...
— Ele só fez isso, e nem quero saber o que faria se eu não tivesse pego no flagra — corta. —
A mulher estava assustada, gritando que ele havia agarrado o seu braço sem a sua permissão,
mas não quis ouvir. Avancei sobre ela — os tremores se tornam mais acentuados — porque sabia
que era mentira. Ela queria o seu pai tanto quanto ele a queria. E era inadmissível que uma
mulher saída de qualquer buraco Brasil afora fosse mais bonita e desejada do que eu!
O meu queixo cai.
— A senhora não acreditou nela por... inveja?
— O que havia para acreditar? Eu vi!
— Viu o que, mãe? — bufo, exasperado. — O meu pai estava assediando a empregada
doméstica! Ao invés de ter o seu suporte, ela teve o que? O seu desprezo!
— Ela queria! — grita.
Os seguranças se entreolham. Faço um sinal, pedindo para que fiquem onde estão. Por mais
constrangedora que seja a situação, Inês não pode parar de falar agora.
— Não — balanço a cabeça. — Aposto que não queria.
— E o que isso importa agora? Eu fiz o que deveria fazer! Mandei-a embora e fiz com que
nenhuma, absolutamente nenhuma, mulher da alta sociedade a contratasse — estufa o peito,
orgulhosa. — A má fama se espalhou a tal ponto que a mulher precisou voltar ao lugar de onde
nunca deveria ter saído!
Dou um novo passo para trás.
— A senhora não fez isso...
— Fiz, e faria de novo! Sem qualquer arrependimento! Porque piora — continua, soturna. —
Não bastasse a mãe, havia a filha. Eu notava o quanto aquela menininha catarrenta era afeiçoada
ao meu filho. Ela cresceria e faria um menino bobo feito você cair em seus encantos!
A raiva cresce. Noto que também me tornei uma panela de pressão esquecida no fogo. Por
dias, meses e anos. Decido ir contra todas as orientações de segurança e puxo o pino, expelindo
ar quente em todas as direções.
— A senhora deixou de socorrer uma mulher assediada, colocando toda a culpa nela —
encaro a minha mãe com o mais puro desdém. — Fez com que ela não conseguisse emprego na
cidade em que escolheu chamar de lar. Obrigou mãe e filha a irem para longe por pura inveja.
Ainda tem a pachorra de dizer que faria tudo de novo? Ah mãe — encolho os ombros —, que
vergonha.
— Vergonha? Você deveria se orgulhar do que fiz, isso sim!
— Não, não me orgulho — dou um passo adiante, parando a centímetros de distância,
enchendo-me de coragem ao encarar os seus olhos azuis. — E não quero manter contato com
você.
Não sei como é possível, mas ela empalidece ainda mais. Abre a boca e balbucia qualquer
coisa, mas impeço-a de falar.
— O menino bobo percebeu algo muito importante ao longo dos últimos meses — continuo.
— Percebeu que vivia em um mundo cinzento, cheio de tristeza. Tentava afogar um pouco dela
em vodca, sem sucesso. Até que um colorido despertar mostrou que a vida não precisava ser
daquela maneira. Encheu-se de alegria e tornou-se um homem ao lado da mulher que ama. Parte
de mim pensa: como nossa vida poderia ser diferente, se não tivéssemos sido separados na praia?
Mas não posso voltar ao passado. Só posso viver o presente e planejar o futuro, e eles envolvem
a mulher que a senhora tentou espantar. Ela e o meu filho estão ali dentro. O tempo, ou o destino,
chame como quiser, nos uniu. E nada, nem ninguém, irá separar.
— Mas...
— Chega, mãe! — sou firme, apontando para fora. — Vá embora e não volte a me procurar.
Sua postura enrijece. Consigo sentir o seu hálito rançoso, fedendo a bebida fermentada, e faço
uma careta de desgosto. Céus, como eu consegui beber por tanto tempo?
— Você vai se arrepender — sibila. — Deveria se esforçar para reconquistar a Evelyn, não
essa qualquer.
Solto um longo suspiro. De repente, me sinto muito, mas muito cansado.
— A senhora precisa de tratamento...
— Quem precisa é você!
— Por favor, vá embora!
— Eu vou. E não venha me procurar quando se arrepender.
— Não irei me arrepender — digo baixinho, mas ela não escuta.
Caminha a passos largos enquanto digita alguma coisa no celular. Logo um carro de luxo vem
buscá-la. Se é um motorista particular ou um dos seus vários contatinhos eu não sei, e tampouco
quero saber.
Espero até que vá embora para me desculpar com a recepcionista e enfatizar que Inês, sob
hipótese alguma, pode retornar ao hospital. Duvido que irá fazê-lo. A minha mãe é uma mulher
orgulhosa. Só voltará a falar comigo se eu voltar a falar com ela.
Nesse momento, não tenho qualquer intenção para tal. É triste precisar fazer isso com a
própria mãe, mas estou cansado de viver sob o jugo das suas opiniões tóxicas. De repente, sou
atingido por uma estranha onda de alívio.
Finalmente sinto que sou um homem livre.
Capítulo 34 – Aurora

Conforme previsto, tenho alta dois dias após acordar do meu sono profundo, mas Gael
precisará ficar mais tempo no hospital. E o quão doloroso é ir embora, deixando-o para trás! Se
dependesse de mim, passaria todas as horas do dia e da noite de vigília ao lado da sua
incubadora.
Mas eu também preciso me recuperar. O corpo cheio de hematomas dói. Por mais que doa na
alma ir embora sem o meu filho, sei que preciso da incubadora protetora dos braços do homem
que amo para retomar as forças e estar apta para cuidar do menino, então cumpro a promessa e
vou direto para a cobertura de Guilherme.
Por melhores que tenham sido os momentos em companhia das minhas amigas na pensão, os
eventos são recentes demais para voltar lá. Desejo fazer isso um dia, sem qualquer pressa, quanto
todos os machucados estivessem cicatrizados.
Elas, pelo menos, não se fazem de rogadas. Bastou Guilherme dizer que seriam sempre bem-
vindas para tomarem a cobertura. Enquanto não estou visitando Gael no hospital, elas se revezam
para me fazer companhia em casa.
Principalmente Soraia e Clarice. A primeira deixa os pedreiros trabalhando sozinhos e aceita a
carona do motorista particular sem hesitar. Devido aos acontecimentos, decidiu pintar a pensão
por completo. A segunda pediu férias antecipadas no trabalho apenas para poder me ajudar. A
mãe, e a irmã, que jamais pensei que encontraria em São Paulo.
A simpática Beatriz também faz questão de manter presença. Chega na cobertura, deixa que
as meninas papariquem a sua bebê, iça as mangas e se põe a preparar a comida caseira mais
gostosa que já comi. Mamãe que me perdoe, mas a esposa do advogado sabe lidar com as
panelas como ninguém!
Alexandre também aparece, tranquilizando a todos com a sua firmeza. Após prestarmos
depoimento, a polícia concluiu que o meu ex foi o único culpado. Nenhum processo, ou
inquérito, precisará ser aberto para atestar o fato.
Após algumas idas e vindas da Avenida Paulista para “pôr a empresa em ordem”, Guilherme
traz um notebook para casa e passa a acompanhar a mineradora de longe. Cansado dos acionistas
que só desejam lucro e dos colaboradores pouco confiáveis, está ansioso para iniciar uma nova
gestão. Quase todos os funcionários da época do pai foram demitidos. Alguns, mais recentes,
foram também. Incluindo Jorge, o principal responsável por transmitir informações a quem não
devia.
Aproveito para fazer uma breve videochamada com Dolores. Ela está ansiosa para me visitar,
mas graças a minha licença maternidade e as demissões em massa, precisará esperar. Imagino
como a secretária está se desdobrando em duas, três ou quatro pessoas para conseguir dar conta
da demanda de trabalho.
Temendo me perturbar, mas ciente de que fofocas correm pelos corredores de hospitais na
mesma velocidade com que correm por corredores de empresa, Guilherme contou sobre a
discussão com a mãe enquanto eu ainda estava internada.
É um sentimento ambíguo descobrir o que fez Inês agir como agiu, e os motivos pelos quais a
minha própria mãe se manteve calada. Medo? Vergonha? Os dois? Nunca saberei. Apenas
abracei Guilherme, tentando lhe transmitir alguma força. É nítido o quanto a situação o deixou
abalado, mas ele está bem.
Enfim, chega o dia de buscar Gael na maternidade. O menino ganhou peso antes do previsto
e, apesar dos cuidados redobrados a se manter com um bebê prematuro, ele está apto para ir para
casa.
Eu e Guilherme saímos eufóricos da cobertura. Ele confere o bebê conforto incontáveis vezes
antes de dar a partida no Audi. Durante todo o trajeto, o meu celular não para de vibrar com
mensagens das meninas, ávidas para saberem todas as novidades. Respondo a todas, garantindo
que enviarei fotos quando Gael chegar.
— Pronta? — Guilherme pergunta ao estacionar diante do hospital. Viro o rosto em direção
ao seu e sorrio.
— Pronta! E você, está pronto?
— Não sei — admite, acanhado. — Acho que deveria ter feito um daqueles cursos
preparatórios para pais de primeira viagem.
Apesar de entender os seus temores, caio na gargalhada. Por sorte tivemos uma equipe médica
maravilhosa, disposta a explicar todos os cuidados que precisaremos ter com um bebê prematuro.
No fundo, são parecidos com os de qualquer bebê.
— Você é um pai maravilhoso — digo, puxando o rosto de Guilherme para um beijo. Ele se
deixa puxar, retribuindo o carinho. Afago o seu rosto. — Já deu tudo certo, meu amor.
— Já — concorda.
Não espero que dê a volta no carro e abra a porta. Faço isso por mim mesma e salto do banco,
cheia de ansiedade. Ele ri e estende a mão. Entrelaço os dedos nos seus e, juntos, caminhamos
em direção ao interior do hospital.
Gael nos aguarda enroladinho no conjunto de lã costurado por Matilde. Seus olhos verdes nos
espiam por baixo da touca grande demais para a sua cabeça. Ele pode precisar de mais algum
tempo até se desenvolver plenamente, mas é incrível como consegue nos reconhecer sem
qualquer dificuldade. Costuma interagir de um jeitinho contido, mas pisca tão logo Guilherme se
aproxima e conversa com sua melhor voz de bebê.
— Quer ir para casa com o papai? — pergunta, todo bobo. Gael pisca de novo, como se
respondesse que sim. — Ah, claro que você quer!
— E com a mamãe também — dou um cutucão em Guilherme arrancando-lhe algumas
risadas.
O bebê pisca pela terceira vez. Talvez tema que os adultos comecem uma discussão sobre
quem é o seu favorito, ou apenas não esteja entendendo nada.
As enfermeiras dão as últimas instruções e pego o meu filho no colo. Ele está mais pesado
agora, mas ainda é leve para um recém-nascido. Todas fazem questão de se despedir do pequeno.
A mais bem-humorada delas brinca:
— Não dê muito trabalho para a mamãe e o papai!
— Não vai dar, não — rebato, acariciando os seus cabelos. Dessa vez, Gael não pisca. Torço
para que realmente não entenda o que estamos falando.
— Vamos para casa? — Guilherme pergunta, enlaçando a minha cintura enquanto ajusta a
bolsa maternidade no ombro. Ergo o rosto em direção ao seu.
— Vamos.
Gael pisca, apenas para confirmar.

— Seja bem-vindo — digo, após Guilherme abrir a porta da cobertura.


Gael encara a tudo impassível, mas seu olhar se acende quando encontra Quindim. O cachorro
late, feliz da vida, ao nos ver chegando.
— Calma! — Guilherme segura a coleira do filhote de golden retriever que, de filhote, não
tem mais nada. — O seu irmão é pequeno e frágil! Vá com calma, caso contrário não irá
conhecê-lo agora!
O bicho choraminga de uma forma tão, mas tão profunda, que não resisto a rir. Com cuidado,
sento-me no sofá e estendo o bebê enquanto Guilherme deixa que Quindim se aproxime devagar,
olhos fixos no serzinho no meu colo, o nariz remexendo de forma incessante.
Ele chega perto o suficiente para inspirar um tufo de cabelos finos como plumas. Bota a
língua para fora e abre um sorriso canino que diz com todas as letras o quanto adorou o
irmãozinho.
— Vocês vão se dar tão bem! — comento, estendendo a mão para acariciar o pelo recém
lavado.
Conversamos antecipadamente com a médica responsável. Segundo ela, as interações com o
cachorro estão liberadas, desde que o animal seja vacinado e mantenha um estado de limpeza
impecável.
Quindim sobe no sofá com delicadeza inédita. Devagar, pousa a cabeça sobre a minha coxa e
ali permanece como um exímio protetor. Guilherme se senta do outro lado, mas ao contrário do
filho de quatro patas, passa a mão pelos meus ombros e me puxa para si.
— Estou tão aliviado.
— Eu também — encosto a cabeça contra o seu ombro e fecho os olhos por um instante. —
Finalmente estamos em paz.
Basta abrir os olhos para ver Gael me encarando. Em um passe de mágica, abre a boquinha e
começa a chorar.
Não temos tempo de cair na gargalhada, tamanho o desespero para descobrir o que incomoda
o menino.
Retiro o casaquinho de lã, temendo que ele esteja com calor, mas o choro aumenta. Checo a
fralda, mas está limpinha. Volto a vesti-lo e ofereço o peito, pensando que talvez esteja com
fome. Em meio as despedidas, esqueci de perguntar qual foi o último horário em que ele se
alimentou com o leite do banco materno.
Respiro aliviada quando ele suga o bico e dá algumas mamadas. Guilherme se aconchega
melhor contra mim, tão aliviado quanto, mas em instantes o bebê afasta a boca do seio e o choro
recomeça.
— Talvez ele só queira o colo do pai — Guilherme brinca, se ajeitando sobre o sofá de força a
recebê-lo em segurança. Transfiro Gael para os seus braços e o choro continua. Ele encosta o
bebê contra o peito, como fez tantas e tantas vezes na maternidade, mas o menino o ignora.
Até Quindim se desespera. Grunhe agoniado, como se também pensasse em uma solução.
Tenta lamber a mão do menino, mas Guilherme se levanta do sofá. Circula com o bebê de um
lado para o outro, tentando acalmá-lo, mas o choro continua.
— E se ligarmos para a Beatriz? — digo, aflita.
Ele assente, mostrando que é uma boa ideia. Tira o celular do bolso, desbloqueia a tela,
procura por um contato e o estende em minha direção. Aguardo a mulher atender para desatar a
falar.
— Calma! — pede. — Talvez o bebê esteja com cólica. Ele está se contorcendo e soltando
gazes?
— Só está se contorcendo.
— Coloque-o deitado de barriga para cima. Se ele movimentar as perninhas, como se
pedalasse no ar, pode ser cólica.
Agradeço e desligo, pedindo que Guilherme siga as orientações. Assim fazemos, mas Gael
permanece parado, apenas chorando. O desespero cresce. Tanto meu, quanto do seu pai. Estou
para implorar para retornarmos ao hospital quando Quindim oferece a única ajuda que tem:
lambe os dedos do bebê.
O menino para de chorar no mesmo instante. Guilherme faz um sinal frenético com a mão,
pedindo para que o cachorro saia de perto do sofá.
— Não lamba o bebê, seu sem-vergonha! — diz, afastando-o pela coleira.
É o que basta para que o choro retorne.
— Guilherme? — chamo.
— O que?
— Acho que o Gael gostou do Quindim.
O animal lança um rápido olhar envergonhado ao dono, como se no fundo soubesse que é o
favorito do bebê. Guilherme solta a coleira, deixando que o cachorro se aproxime. É o suficiente
para que o choro cesse por completo.
— Mas e os germes? — o homem se desespera, levando as mãos aos cabelos. — A médica
enfatizou o quanto o estado de Gael é delicado! Precisamos tomar cuidado com os germes e...
— Guilherme? — chamo de novo, aninhando o bebê entre as almofadas enquanto Quindim
pousa a cabeça sobre elas. — Olha só para isso. Depois de tudo o que passamos, acha mesmo
que precisamos nos preocupar com germes?
O homem encara a cena e solta um longo suspiro.
— Não, não acho.
Sorrio, estendendo a mão. Ele se senta e volta a me abraçar, devolvendo o sorriso.
— Mas ainda tenho dúvidas de que a Organização Mundial da Saúde aprovaria isso —
continua.
As mãozinhas de Gael se embrenham no pelo macio, deslizando pela orelha felpuda. Quindim
fecha os olhos, tão satisfeito quanto o bebê. Sorrio para o meu futuro marido, e sorrio para a cena
à nossa volta. Finalmente, somos uma família.
Ou quase.
— Você ainda tem uma promessa a cumprir — comento como quem não quer nada.
O aperto de Guilherme se torna mais pronunciado.
— Eu sei. E estou ansioso para finalmente cumpri-la — esfrega o rosto no meu, fazendo com
que um arrepio percorra todo o meu corpo.
— Ainda estou no período de resguardo! É covardia me provocar assim. Ainda mais na frente
do cachorro e do bebê.
Quindim bufa, concordando. Guilherme apenas ri.
— Não estou te provocando — sussurra. — Estou apenas demonstrando como estou ansioso
para te chamar de minha esposa.
Capítulo 35 – Guilherme

SEIS MESES DEPOIS


— Desse jeito você vai desmaiar. — Alexandre comenta.
— Eu não desmaiei nem no ultrassom do meu filho — rebato, ajeitando a gravata borboleta
no pescoço. — Acha mesmo que vou desmaiar agora?
— Não foi essa história que chegou aos meus ouvidos — debocha. Dou-lhe um cutucão nas
costelas.
— Posso saber o que chegou aos seus ouvidos?
— Que você desmaiou, sim.
— Mentira!
O meu padrinho de casamento dá de ombros.
— Eu não duvido de nada.
Reviro os olhos. Alexandre tem nervos mais consistentes que os meus, mas é sensível quando
quer.
Ou quando menos espera.
— Vai dizer que você não se sentiu estremecido ao ver as suas filhas pela primeira vez no
ultrassom?
— Claro! Principalmente quando o médico anunciou que eu seria pai de gêmeas — Um
sorriso bobo corta o seu rosto. — Foi uma surpresa e tanto!
— Shhh! — Beatriz faz, do seu lugar, na primeira fileira de cadeiras, na frente do altar
montado diante do mar. — A noiva já vai entrar e vocês aí, tagarelando sem parar!
Julia se remexe em seu colo, ignora os avós e pede atenção para a mulher sentada ao seu lado.
Soraia sorri derretida, tão diferente da mulher dura com ares de general que ainda comanda a
pensão. Nenhuma moradora surgiu para substituir Aurora, mas ela não se importa. Diz que a
minha esposa é insubstituível. Só posso concordar.
Teresa, Rosana e Matilde fazem graça para a simpática menina de olhos azuis. Julia gargalha,
espalhando alegria pela tenda que abriga os convidados do meu casamento. Olivia e Sophia
gargalham junto.
Ao contrário do primeiro, onde por intermédio da noiva convidei uma tropa de pessoas que
nem ao menos conhecia, esse é intimista. Realizado em meio a pessoas que gosto.
A minha secretária chega correndo e se senta entre as demais mulheres. Muita coisa mudou
em seis meses, mas não mudou a amizade construída graças a uma mulher doce, viciada em
geleia de laranja-cravo, e sua rede de apoio cheia de amor.
E uma das principais mudanças se deu na Alcântara Mineração. A empresa sofreu um forte
baque ao me livrar de todos os sanguessugas da época do meu pai.
Investidores partiram sem a mínima pena e clientes temeram pelo meu sucesso quando o
andar que abriga os escritórios da mineradora tremeu como uma forte explosão cheia de pó, para
ressurgir ainda mais forte.
Os novos colaboradores são pessoas cheias de ideias. As novas práticas fizeram com que as
minas passassem todo esse tempo sem um único acidente. Dia após dia, sei que tomei a decisão
certa em assumir a empresa do jeito que sempre quis. O mais jovem deles conversa com Lorenzo
e Alanna, o casal de amigos de Goiânia.
Geraldo e alguns amigos do alcoólicos anônimos murmuram baixinho nos fundos da tenda.
Os organizadores devem estar até agora sem entender por qual motivo insisti para que o vinho
fosse substituído por suco de uva, mas pouco me importo. Com a anuência de Aurora, fiz
questão de planejar uma festa sem uma gota de álcool. Ainda frequento o AA e mantenho vigília
constante, por mais que a vontade de beber tenha desaparecido, um dia de cada vez.
Desbloqueei o número de Inês, mas as mensagens e ligações cessaram. Por insistência da
minha noiva, enviei um convite de casamento, pensando que ele pudesse se transformar em um
pedido de reconciliação, mas não obtive resposta. Sei que ela se mudou para a França e está bem.
Talvez, um dia, voltemos a nos aproximar, mas no momento continuamos distantes.
O cerimonialista se agita sobre o altar e estende as mãos, pedindo silêncio. Ao fundo escuta-se
apenas o barulho do mar. A brisa traz o cheio de maresia, enfeitiçando a todos nós com um
pouco de sal e frescor.
O sol começa a se pôr, enchendo o ambiente de tons alaranjados enquanto os violinos se
misturam à cantoria das ondas. Clarice caminha devagar, a mão segurando o cesto cheio de
pétalas de jasmim denunciando o quanto está nervosa. Esforça-se para seguir firme, deixando
uma trilha de flores perfumadas pelo tapete branco estendido até o altar.
Os violinos param. Fazem suspense. O sol pode estar se pondo, mas quem surge é o
amanhecer. Aurora sorri radiante com Gael no colo e Quindim ao seus pés. Trajando fraque e
gravata borboleta, o cachorro pula, tentando puxar o sapatinho social do menino. O bebê ri,
arrancando risos de todos nós.
Mas os meus olhos estão fixos em sua mãe. Linda e perfeita, em um vestido de noiva cheio de
minúsculas pérolas brilhantes. A saia, cheia e rodada, faz com que ela pareça uma princesa saída
de um conto de fadas. Preferiu manter os cabelos soltos, presos na lateral por uma presilha em
formato de jasmim-manga. A nossa flor, não se cansa de dizer.
A cada passo, o coração bate mais forte. Todo o seu vazio foi preenchido por ondas e ondas
de amor. Tantas, que transbordam e se espalham pelo meu corpo, curando qualquer resquício de
dor.
Aurora também não tira os olhos dos meus. Sobe o primeiro degrau do altar e, por um
instante, penso que vou mesmo desmaiar. Na frente de todas as pessoas que amo, para ser
lembrado até o fim dos meus dias. Alexandre percebe e segura a lateral do meu braço, me
mantendo firme.
A minha mulher, enfim, está ao meu lado. Gael estende os braços, querendo vir para o meu
colo. Recebo-o com todo o prazer, mas não a tempo de impedir o Quindim de pular e roubar um
sapato. O sem-vergonha sai correndo enquanto rimos sem parar.
— Jamais pensei que tornaria a me casar — Aurora diz, olhando por sobre o ombro. —
Tampouco que o meu segundo casamento seria assim.
— Assim como?
— Tão cheio de alegria.
Gael entra no coro, como se quisesse confirmar. Ajeito o menino sob uma das mãos,
encostando o corpinho no meu. Ele se ajusta com perfeição em sua posição preferida junto ao
peito. Com a mão livre, seguro os dedos de Aurora. Ela aperta de volta, satisfeita com o meu
toque, e nos viramos em direção ao cerimonialista.
Suas palavras são animadoras. Cheias de mais e mais esperança. Dos votos tradicionais,
apenas os finais, quando me viro para Aurora e, com a voz embargada, consigo dizer:
— Por todos os dias da minha vida e... — paro e a encaro. Ela pisca, confusa. Não faz sentido
continuar de forma tradicional. Ajeito Gael, aprumo a postura e continuo. — Por todos os dias da
minha vida, e por toda a eternidade.
O seu sorriso se torna radiante. Os convidados gritam vivas e ela repete, palavra por palavra.
Clarice tira as alianças do cestinho cheio de pétalas de jasmim. Jamais serei capaz de descrever a
emoção de deslizar o aro de ouro pelo dedo da mulher dos meus sonhos.
Enfim, minha.
Aurora também me torna seu e o cerimonialista nem ao menos precisa pedir. Puxo a noiva e
tomo os seus lábios. As vivas crescem. Risadas infantis e latidos de cachorro se misturam como
música. Aurora está corada quando se afasta. Da forma que sinto o rosto quente, aposto que
estou tão corado quanto ela.
— Enfim, casados — brinca, me puxando para mais um beijo. Gael ri entre os nossos corpos.
Ele, com certeza, é quem mais está se divertindo nesse casamento.
— Enfim, casados — devolvo, ao nos separarmos.
A promessa foi cumprida.
Epílogo – Aurora

UM ANO DEPOIS
Encosto no azulejo branco e encaro o teste rápido posicionado no centro da mão como se o
visse pela primeira vez. Duas linhas. A confirmação daquilo que eu já sabia.
Estou grávida.
De novo.
Abro um sorriso e tento conter a alegria, mas para quê preciso contê-la?
De um salto, ergo-me do chão. Risadas estridentes escapam da sala e flutuam até o banheiro.
O meu marido ri de volta, o som grave e poderoso, mas ainda cheio de carinho. Um latido se
mistura a deliciosa bagunça, fazendo com que o bebê bata palminhas e solte gritos animados.
Caminho devagar, querendo aproveitar cada pequena partícula de som. A melodia do dia a
dia. A música cheia de felicidade que substituiu todas as outras.
Eles entram no meu campo de visão devagarinho. Primeiro Guilherme, sentado com as pernas
cruzadas no tapete felpudo. A sua frente, Gael, deitado com a barriga para cima, sendo “atacado”
por incontáveis lambidas do Quindim. Espalhados por toda a sala, bichinhos de pelúcia
compartilhados com o cachorro se misturam aos objetos de decoração de forma perfeitamente
caótica.
Quindim continua tão bagunceiro quanto antes, mas o bebê parece ter lhe trazido um estranho
senso de responsabilidade. Dorme ao pé do seu berço. Vigia enquanto toma banho. O cachorro
destrambelhado torna-se delicado ao lado da criança, como se soubesse que está ali para protegê-
lo. E ele o faz muito bem.
Guilherme ergue o rosto. Os olhos cor de chocolate se encontram com os meus. Serenos.
Cheios de amor. Um sorriso toma o semblante bonito, fazendo com que o meu se alargue. Sento-
me ao seu lado e planto um beijo estalado em seu rosto. Mesmo após tanto tempo juntos, o
homem ainda cora quando o surpreendo com pequenas demonstrações de carinho.
O cachorro cheira o objeto em minhas mãos, curioso, desviando a atenção do meu marido. Ele
abaixa o olhar e franze o cenho.
— O que é isso?
— Um teste de gravidez — rio, estendendo-o a ele.
Seus olhos se arregalam. Segura o objeto em mãos com reverência, erguendo-o na altura dos
olhos. O tom rosado da sua face se esvai. O homem fica branco como uma folha de papel. Por
um instante, penso que vai desmaiar.
— Essas duas linhas... — murmura, tocando-as com a ponta do dedo indicador. — Você
está... grávida?
— Estou — confirmo.
Ele solta um arquejo profundo e começa a chorar. Não tenho tempo de reagir. Sou puxada
para o seu colo e envolvida em um abraço tão, mas tão apertado, que fico sem ar.
Guilherme beija a lateral do meu pescoço e do meu rosto, enchendo-me de beijos molhados
como Quindim fazia com o bebê. Abraço-o de volta e começo a rir. Não consigo pagar nem ao
menos quando os seus lábios tomam os meus. Ele ri junto. Deixa o teste cair entre os nossos
corpos e segura o meu rosto com ternura.
— Você vai me dar um novo filho!
— Sim!
— E vocês vão ganhar um novo irmãozinho! — dirige-se ao cachorro e ao bebê. Quindim
late, comemorando, enquanto Gael remexe as pernas e os braços, batendo palminhas no ar.
Guilherme volta a me encarar com olhos marejados. Estico os dedos e limpo as lágrimas, sem
sucesso. Elas continuam caindo, embrenhando-se na barba curta e molhando o seu sorriso.
Também sorrindo, cubro os seus lábios com os meus. Ele me agarra mais forte e devolve o beijo
até me deixar sem ar.
— Eu te amo — murmura, ao nos separarmos. Sua mão desce em direção a minha barriga
plana. O seu toque me aquece. Faz com que eu me sinta protegida. Confirma as três palavras
ditas pela sua boca, sem que precisem de confirmação.
— Eu também te amo.
Acaricio a lateral da barba molhada. Ele fecha os olhos, deliciado. Aos poucos, uma
expressão marota toma conta do seu rosto.
— Será que é menino ou menina?
— Talvez ainda seja cedo, mas não consigo sentir nada. O que você prefere?
Ele se afasta para pegar Gael. O menino estende os bracinhos, cheio de confiança. Guilherme
beija o seu rosto lambido e o aconchega junto ao peito.
— Não tenho preferência, mas seria legal ter uma menina.
— Suas sobrinhas ficariam cheias de ciúmes — brinco, me encostando em seu corpo. Ele me
envolve com o braço livre, puxando-me junto a si.
— Ficariam. Vendo por esse lado, talvez fosse melhor um menino — pensa um pouco, em
dúvida. — Mas sabe o que eu queria mesmo?
— Hummm, lá vem. — Ele me empurra de brincadeira. — O que você queria?
— Que fossem gêmeos.
A ideia me enche de expectativa, mas as chances são remotas. Nem eu, nem Guilherme,
temos histórico de gêmeos na família.
— Mas se não for — continua, sonhador. — Podemos tentar de novo — beija a lateral do meu
rosto. — E de novo, e de novo!
— Misericórdia, homem! Quantos filhos você quer ter?
Os olhos cintilam.
— Quantos quiser me dar.
O beijo agora é na minha boca. Seguro o seu rosto e retribuo com avidez. O bebê ri entre nós.
Quindim se mete onde não é chamado, lambendo o nosso rosto, fazendo com que o beijo se
transforme em uma deliciosa risada.
Eu tenho a família que sempre quis.
Eu não preciso mais fugir.
FIM
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@thalitabrancoautora
Ficou curiosa para conhecer a história de Alexandre Meyer, o advogado viúvo que se apaixonou
pela babá das suas filhas gêmeas?
Leia Um Bebê Surpresa Para o CEO Viúvo clicando aqui.

Sinopse:
Alexandre Meyer viu o seu mundo desabar quando a esposa faleceu há dois anos.
Traumatizado e corrompido pela culpa, o CEO tornou-se um homem frio cujos raros sorrisos são
reservados apenas às filhas. Por mais que tente, não consegue conciliar o trabalho no escritório
com a criação das meninas e precisa urgente de uma nova babá.
Beatriz Rossetti está falida. Rejeitada grávida, cheia de dívidas e morando em um pulgueiro,
se esforça para manter o otimismo enquanto teme ser despedida do trabalho como monitora de
escola. Apesar do carinho que sente pelas filhas do atraente milionário viúvo, se surpreende
quando o homem lhe oferece uma irresistível proposta de se tornar babá.
Obrigados a conviver na mesma casa e com uma gravidez cada vez mais difícil de esconder, o
que o CEO fará quando descobrir que a tentadora babá que começa a mexer com a sua cabeça
está grávida de outro homem?

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