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ZKINDLE.

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Copyright © 2024 MANOELA BARSI


GRÁVIDA E REJEITADA PELO MEU CHEFE
1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do
autor/editor.

Capa: Giovana Martins


Diagramação: Fox Assessoria Literária & Editora

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob
quaisquer meios existentes – tangíveis ou intangíveis – sem prévia
autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do código
penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA


PORTUGUESA.

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SINOPSE
DEDICATÓRIA
1. ​MAÍSA CARDOSO
2. ​ ENRIQUE BORGES
H
3. ​ AÍSA CARDOSO
M
4. ​HENRIQUE BORGES
5. ​MAÍSA CARDOSO
6. ​HENRIQUE BORGES
7. ​MAÍSA CARDOSO
8. ​HENRIQUE BORGES
9. ​HENRIQUE BORGES
10. ​MAÍSA CARDOSO
11. ​HENRIQUE BORGES
12. ​ AÍSA CARDOSO
M
13. ​ AÍSA CARDOSO
M
14. ​HENRIQUE BORGES
15. ​MAÍSA CARDOSO
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16. HENRIQUE BORGES


17. ​MAÍSA CARDOSO
18. ​HENRIQUE BORGES
19. ​MAÍSA CARDOSO
20. ​MAÍSA CARDOSO
21. ​HENRIQUE BORGES
22. ​MAÍSA CARDOSO
23. ​ ENRIQUE BORGES
H
24. ​ AÍSA CARDOSO
M
25. ​HENRIQUE BORGES
26. ​MAÍSA CARDOSO
27. ​HENRIQUE BORGES
28. ​MAÍSA CARDOSO
29. ​HENRIQUE BORGES
30. ​MAÍSA CARDOSO
31. ​MAÍSA CARDOSO
32. ​MAÍSA CARDOSO
33. ​MAÍSA CARDOSO
34. ​ ENRIQUE BORGES
H
35. ​ AÍSA CARDOSO
M
36. ​HENRIQUE BORGES
37. ​HENRIQUE BORGES

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38. ​MAÍSA CARDOSO
39. ​HENRIQUE BORGES
40. ​MAÍSA CARDOSO
41. ​HENRIQUE BORGES
42. ​MAÍSA CARDOSO
43. ​ ENRIQUE BORGES
H
44. ​ AÍSA CARDOSO
M
45. ​HENRIQUE BORGES
46. ​MAÍSA CARDOSO
47. ​HENRIQUE BORGES
48. ​MAÍSA CARDOSO
49. ​HENRIQUE BORGES
50. ​MAÍSA CARDOSO
51. ​HENRIQUE BORGES
52. ​MAÍSA CARDOSO
53. ​HENRIQUE BORGES
54. ​ AÍSA CARDOSO
M
55. ​ ENRIQUE BORGES
H
56. ​MAÍSA CARDOSO
57. ​HENIQUE BORGES
58. ​MAÍSA CARDOSO
59. ​HENRIQUE BORGES
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60. ​MAÍSA CARDOSO


61. ​HENRIQUE BORGES
62. ​MAÍSA CARDOSO
63. ​HENRIQUE BORGES
64. ​MAÍSA CARDOSO
EPÍLOGO – MAÍSA CARDOSO
AGRADECIMENTOS
REDE SOCIAL

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AGE GAP :: GRAVIDEZ INESPERADA :: BEBÊS REJEITADOS::
CHEFE E SECRETÁRIA:: HOMEM ARREPENDIDO
Maísa Cardoso chegou à São Paulo com o coração cheio de sonhos e
os bolsos vazios, mas determinada a conquistar seu lugar ao sol.
Aos 22 anos, a jovem é linda, otimista e tem um talento especial
para ler as pessoas. Ela estava certa de que seu novo emprego era
sua grande chance: trabalhar com Henrique Borges, um dos
empresários mais respeitados e temidos da cidade.
Henrique é um homem que construiu um império, abrindo mão de
tudo, inclusive do próprio coração, no caminho até o sucesso.
As 40 anos, o CEO sério, controlador, possessivo e extremamente
pragmático vê seu mundo meticulosamente organizado virar de
cabeça para baixo quando Maísa invade sua vida, trazendo cor e
caos à sua existência monótona.
Ao seu lado, Henrique vê sentimentos há muito adormecidos serem
despertados, redescobrindo que o coração em seu peito ainda bate.
Mas quando uma gravidez inesperada entra em cena, a lembrança
de uma traição sofrida quinze anos antes faz com que ele rejeite a
mulher por quem estava se apaixonando.
Desiludida, Maísa abandona seus sonhos e volta para sua cidade
natal com o coração despedaçado. Meses depois, ao ser confrontado
com a realidade de seus atos precipitados, Henrique percebe que
errou e decide que fará de tudo para recuperar o amor, a confiança
de Maísa, e, principalmente, a chance de ser pai.
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Ela está determinada a reconstruir sua vida, peça por peça.


Tudo o que ele deseja é a oportunidade de corrigir seus erros.
​Mas eles serão capazes de superar o passado e reencontrar o amor
que um dia lhes prometeu tudo?

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Para as leitoras que sabem que não há
nada melhor do que se aconchegar com
um romance água com açúcar e se
perder em um mundo onde finais felizes
são garantidos.
Este é para vocês.
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O sol ainda não havia despertado completamente, mas eu já


estava de pé, encarando meu reflexo no espelho.
Hoje não era apenas mais um dia; era o início de algo novo, algo
que eu esperava ser o começo da vida que sempre sonhei em ter na
cidade grande.
Ao ajustar a gola da minha blusa não tão nova, uma sensação de
nervosismo misturado com excitação percorreu minha espinha. Alisei
as dobras imaginárias com mãos trêmulas — um gesto em busca de
algum controle sobre o turbilhão que se anunciava dentro de mim.
— Vamos lá, Maísa, é só mais um dia. Um dia importantíssimo,
mas só um dia, — murmurei, tentando convencer meu reflexo tanto
quanto a mim mesma para afastar a ansiedade que ameaçava tomar
conta.
Deixando o pequeno apartamento que eu agora chamava de lar,
caminhei pelas ruas ainda tranquilas da cidade, observando como
ela lentamente despertava, suas ruas ainda sonolentas se esticando
preguiçosamente sob meus passos.
O caminho até a Borges & Associados, a empresa onde eu havia
conseguido um emprego como secretária, parecia diferente naquela
manhã. Cada passo me levava para mais longe da minha antiga vida
e mais perto do futuro incerto que eu estava determinada a
conquistar.

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O escritório era mais imponente do que eu me lembrava da
entrevista. O logo prateado da Borges & Associados brilhava contra
o fundo escuro na entrada do prédio, como um farol de sucesso e
poder. Meu coração batia forte enquanto eu me aproximava da
recepção, onde fui recebida com um sorriso acolhedor.
— Maísa Cardoso, — anunciei na recepção, minha voz carregando
um misto de orgulho e nervosismo.

— Ah, sim. A nova secretária do Sr. Borges. Ele está fora em


reuniões hoje, mas você deverá ir ao RH primeiro. Eles vão orientá-
la — a recepcionista me informou, apontando para o elevador com
um sorriso encorajador.
A subida até o último andar foi um mergulho em pensamentos
ansiosos, cada dígito iluminando-se no painel do elevador parecia
contar a história de uma decisão que já não tinha volta.
Ao sair, guiada por corredores que exalavam uma elegância
intimidadora, parei diante de uma porta dupla que prometia ser o
limiar entre o meu passado e tudo o que estava por vir.
O andar do RH me recebeu com uma efervescência de atividade e
rostos novos. Assim que entrei, uma figura familiar acenou em
minha direção, um sorriso acolhedor iluminando seu rosto. Era Lívia,
a funcionária que havia sido uma presença constante durante o
processo seletivo.
— Maísa! Que bom ver você aqui, oficialmente parte da equipe
agora! — exclamou, aproximando-se para um abraço breve, mas
caloroso.
— Estou tão feliz por estar aqui, Lívia. E aliviada por ver um rosto
familiar — respondi, retribuindo o sorriso. Sua acolhida dissipou uma
parte do meu nervosismo, me fazendo sentir um pouco mais em
casa.
Lívia me guiou através dos primeiros passos — documentação,
introdução aos sistemas da empresa e um tour pelas instalações.
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— Você vai se sair bem, Maísa. Já mostrou ser mais do que capaz
durante o processo seletivo, — ela disse, encorajando-me enquanto
caminhávamos pelos corredores.
À medida que a manhã se desdobrava em uma série de
orientações e introduções, a conexão com Lívia se aprofundava,
transformando a ansiedade inicial em uma sensação de
pertencimento.
Quando chegou a hora do almoço, Lívia me levou ao refeitório,
onde fui apresentada a um grupo de colegas. O ambiente era
descontraído, e a conversa fluiu livremente entre risadas e trocas de
experiências.

— E então, como você está se sentindo no seu primeiro dia? —


Lívia perguntou, enquanto compartilhávamos o almoço.
— Um pouco sobrecarregada, para ser honesta, mas empolgada.
Todos aqui têm sido tão acolhedores — admiti, olhando ao redor do
refeitório movimentado.
— Você vai ver, daqui a pouco já se sentirá como parte da
mobília. E se precisar de alguma coisa, estou aqui — ela disse,
dando-me um sorriso tranquilizador.
A conversa naturalmente derivou para o tema que ocupava meus
pensamentos desde a manhã.
— Estou curiosa sobre o Sr. Borges... — comecei, um pouco
hesitante.
— Ah, o Henrique é um chefe incrível. Exigente, mas justo. E tem
uma visão clara para a empresa. Você vai aprender muito com ele —
Lívia respondeu, percebendo minha ansiedade. — Mas ele também é
humano, sabe? Apenas... tente não se intimidar demais.
Rindo, concordei, embora a ideia de finalmente encontrá-lo ainda
fizesse meu coração acelerar.
As histórias compartilhadas por meus novos colegas, somaram-se
à minha crescente curiosidade e admiração, embora também

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elevasse minha ansiedade.
Eles pintaram o retrato de um líder respeitável, alguém com
quem eu estava ansiosa, porém nervosa, para trabalhar. Alguém
cuja aprovação eu já desejava conquistar.
O almoço terminou com risadas e a promessa de novas amizades,
mas a imagem de Henrique Borges permaneceu fixa em minha
mente, adicionando camadas à minha expectativa para o encontro
final do dia.
Entre as várias tarefas que marcaram meu primeiro dia, uma em
particular se destacou, servindo como um verdadeiro batismo no
mundo da Borges & Associados. Pouco depois do almoço, quando eu
já começava a me sentir um pouco mais à vontade com o ritmo do
escritório, Lívia se aproximou com uma expressão que misturava
urgência e confiança.
— Maísa, surgiu uma reunião de última hora com a equipe de
marketing sobre o lançamento do próximo produto. O Sr. Borges
quer que alguém esteja lá para fazer um relatório detalhado, parece
que você acabou de ser escalada para sua primeira missão
importante.
O nervosismo fez um breve retorno enquanto eu a seguia até a
sala de conferências. Dentro, a equipe já estava reunida, conversas
paralelas preenchendo o ar até que todos se acomodaram. Lívia me
apresentou rapidamente e explicou meu papel na reunião,
garantindo-me um lugar discreto à mesa.
— Bem-vinda, Maísa. Fique à vontade para nos interromper se
precisar de esclarecimentos, — disse João, o líder do projeto, com
um sorriso acolhedor.
A reunião começou com uma visão geral do produto, uma
inovação tecnológica que prometia ser um divisor de águas no
mercado. A equipe discutia estratégias de lançamento, potenciais
desafios e metas de vendas com uma paixão que era contagiante.
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— Precisamos garantir que a campanha de lançamento destaque


nossa inovação. Ideias? — João abriu a discussão, olhando em volta
da mesa.
— Que tal uma série de teasers nas redes sociais? Podemos
revelar lentamente os recursos únicos do produto, construindo
expectativa, — sugeriu Ana, da equipe de criação.
— Ótima ideia, Ana. E se também organizarmos webinars com
especialistas para discutir as aplicações práticas? — acrescentou
Carlos, do departamento de vendas.
Enquanto a equipe debatia, eu tomava notas detalhadas,
impressionada com a dinâmica e a colaboração entre os
departamentos. Era evidente que cada membro trazia uma
perspectiva única, contribuindo para uma estratégia coesa e
inovadora.

— E quanto ao feedback do cliente após o lançamento? —


questionei, aproveitando um momento de pausa. — Como
planejamos integrá-lo ao nosso desenvolvimento de produto
contínuo?
Surpresa, a equipe se voltou para mim. Por um instante, temi ter
ultrapassado meu papel de observadora.
— Excelente ponto, Maísa, — respondeu João, considerando a
ideia. — A integração do feedback do cliente é crucial. Vamos
garantir que tenhamos um processo claro para isso. Muito obrigado
por levantar esse ponto.
Aliviada por minha contribuição ter sido bem recebida, continuei a
fazer anotações, ainda mais determinada a fornecer um relatório
completo e preciso para Henrique Borges. A reunião terminou com
uma sensação de realização coletiva, e enquanto a equipe começava
a dispersar, Lívia me deu um aceno de aprovação.
— Acho que você capturou tudo o que precisamos para o
relatório. Estou curiosa para ver como o Sr. Borges vai reagir às suas

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observações, — disse ela, enquanto caminhávamos de volta ao meu
posto.
O restante do dia passou em um borrão de atividade. Quando
finalmente chegou o momento de entregar os documentos e meu
relatório a Henrique Borges, meu coração batia forte com a
antecipação do nosso encontro.
Com o dia quase no fim e a ansiedade a ponto de me consumir,
caminhei pelos corredores silenciosos entre a copa e a sala da
presidência, fazendo apenas uma pequena parada em minha mesa
para pegar os papéis que imprimi antes de ir ao banheiro.
Meu relatório estava pronto e eu não sabia o que esperar do
feedback do meu novo chefe. Deixaria minhas considerações em sua
mesa, junto com outros documentos.
Ele ainda não havia voltado dos seus compromissos externos e já
era quase a hora de eu ir embora. A antecipação que eu sentia não
tinha lógica e, ainda assim, fazia cada passo parecer mais pesado.
“É só um trabalho, Maísa, pelo amor de Deus!” repeti
silenciosamente em minha cabeça, como um mantra, de novo e de
novo.
Ao chegar à porta entreaberta de seu escritório, assumi que a
sala estaria vazia e entrei sem anunciar minha presença, distraída
por meus próprios pensamentos nervosos.
Foi então que o vi — a figura imponente de Henrique Borges de
costas para mim, contemplando a cidade lá embaixo através das
janelas do chão ao teto.
Sua presença dominava a sala, e por um momento, o tempo
pareceu congelar.
— Entre, Sra. Cardoso. Estou pronto para o seu relatório sobre a
reunião — sua voz rompeu o silêncio, firme, sem cumprimentos ou
boas-vindas.
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Apenas profissionalismo puro e simples, como se o fato de aquele


ser nosso primeiro contato não fosse importante. Expirei pela boca
lentamente e aprumei os ombros. É só um relatório. Nada poderia
dar errado, certo?

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O crepúsculo começava a se desdobrar sobre a cidade, lançando
sombras longas sobre o labirinto de concreto e vidro abaixo. Em
meu escritório, a calma antes da tempestade de compromissos
noturnos dava-me um momento raro de quietude. Um contraste
bem-vindo com o turbilhão de atividades do dia.
Eu não costumava gastar tempo pensando sobre as novas
contratações além de suas capacidades de contribuir para o sucesso
da empresa. Maísa Cardoso, a nova secretária, não era uma
exceção.
Seu nome e currículo passaram por minha mesa em um borrão
de papelada, um mero detalhe em meio a decisões mais prementes.
Sua chegada ao escritório foi marcada por uma nota em minha
agenda, um lembrete de sua presença que exigia um fragmento da
minha atenção.
Não por interesse pessoal, mas pela necessidade de assegurar
que ela pudesse desempenhar seu papel com a competência
exigida. "Ela vem bem recomendada", lembrei-me de alguém dizer.
Isso tinha algum peso, claro, mas na Borges & Associados, as
expectativas iam além das recomendações.
Na vastidão de meus compromissos e responsabilidades, a
eficiência de uma secretária era esperada, não excepcional. Quando
a tarde cedeu espaço para a noite, um lembrete de minha reunião
pendente com a Sra. Cardoso sobre o relatório de uma reunião que
eu deliberadamente escolhi não participar soou em meu celular.
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"Talvez ela ao menos prove ser útil nisso," pensei com um certo
desdém. Não tinha tempo a perder com treinamentos ou ajustes.
A Borges & Associados estava em um ponto crítico, expandindo-
se agressivamente, e cada segundo do meu dia estava
comprometido com o futuro da empresa.
A porta se abriu sem anúncio, e sem me virar, eu sabia que era
ela.
— Entre, Sra. Cardoso. Estou pronto para o seu relatório sobre a
reunião, — disse, minha voz carregada de uma impaciência velada.
Não havia tempo para gentilezas ou para alimentar as
inseguranças de uma nova contratação. Maísa entrou, sua presença
quase hesitante, uma intrusão não desejada na minha bolha de
concentração. Eu esperava eficiência, não hesitação.
Me virei, voltando a sentar diante da minha mesa sem me dar ao
trabalho de oferecer um olhar de boas-vindas. Mantive minha
atenção fixa nos documentos à minha frente.
Ela começou a falar, sua voz revelando um nervosismo um pouco
irritante.
— Boa tarde, Sr. Borges. Compilei as notas da reunião da equipe
de marketing, conforme solicitado e...
— Sim, sim, apenas me dê os pontos principais. Estou
interessado nos resultados, não nos detalhes superficiais —
interrompi, talvez mais bruscamente do que necessário.
Era essencial estabelecer desde o início que minha expectativa
era de eficiência e precisão. O tempo era um recurso demasiado
valioso para ser desperdiçado.
Ela assentiu, engolindo em seco, mas voltando a falar logo em
seguida. Embora estivesse claramente nervosa, não se intimidou, e
isso me deixou satisfeito.
Enquanto Maísa delineava os pontos principais, meu foco estava
inteiramente em avaliar a utilidade de suas observações. Não havia

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espaço para erros ou omissões; cada detalhe poderia ser a chave
para uma decisão estratégica crucial.
Sua análise, para minha surpresa, mostrou-se perspicaz, com
observações que indicavam não apenas uma compreensão dos
objetivos da reunião, mas também uma capacidade de pensar além
do óbvio, e isso foi o que me fez erguer o olhar para a mulher
sentada diante de mim.
Usando uma blusa branca formal, ela tinha os longos e escuros
cabelos presos em um rabo de cavalo baixo, deixando todo o rosto
livre para que eu reparasse nos olhos castanhos expressivos, nas
bochechas altas e nos lábios cheios.
O corpo era pequeno, de estatura mediana, mas magro e
curvilíneo. Ela tinha uma aparência elegante e um olhar resiliente.
— Vejo que você não apenas registrou a discussão, mas também
ofereceu sua análise — comentei, permitindo que um vislumbre de
aprovação permeasse minha voz.
Ela pareceu surpresa, mas sua reação foi breve.
— Espero que minhas observações sejam úteis — respondeu, a
confiança crescendo com a validação.
— Assegure-se de que este relatório seja distribuído aos
departamentos relevantes até o final do dia — disse, dispensando-a
sem um segundo olhar.
Com um aceno resoluto, ela se levantou e saiu, deixando-me com
meus pensamentos. Embora minha preocupação com ela como
pessoa fosse mínima, não pude deixar de reconhecer que talvez a
mulher tivesse, sim, algum potencial. Era raro encontrar alguém
disposto a opinar tão rapidamente sobre a dinâmica de uma
operação na qual tinha acabado de se integrar.
Em um ambiente onde o sucesso dependia da precisão e da
proatividade, talvez se tornasse um ativo valioso. E, no final das
contas, era tudo que importava.
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Após Maísa sair do escritório, voltei imediatamente ao trabalho,


tentando afastar qualquer pensamento que não estivesse
relacionado às minhas inúmeras responsabilidades.
A Borges & Associados, afinal, não alcançou seu patamar
seguindo distrações. Cada decisão, cada ação minha, estava
impregnada com o peso da liderança e da expectativa de sucesso
contínuo.
Maísa Cardoso, apesar de seu relatório surpreendentemente
competente, era apenas mais uma peça nesse complexo quebra-
cabeça corporativo. Meu telefone vibrou, um alerta de um novo e-
mail que exigia minha atenção imediata.
Era de um dos nossos principais investidores, solicitando uma
revisão urgente de um documento antes da reunião crucial de
amanhã. O conteúdo do e-mail dissipou qualquer resquício de calma
que o fim do expediente poderia oferecer. Com um suspiro
resignado, preparei-me para uma longa noite à frente.
Meu império estava no limiar de um grande avanço, e eu me
encontrava perpetuamente equilibrando o presente da empresa com
suas promessas futuras. Cada e-mail, cada documento, cada decisão
formava o alicerce sobre o qual construíamos nosso sucesso.
E assim, rodeado pela penumbra que se acentuava em meu
escritório, com apenas a luz do monitor como companhia, mergulhei
no trabalho. A noite avançava silenciosamente enquanto eu revisava
linhas e mais linhas de dados e projeções.
O reflexo ocasional de minha imagem na janela ao lado servia
como um lembrete sombrio de que, para mim, a linha entre o dia e
a noite havia se tornado indistinta.
Meus pensamentos vagaram brevemente para Maísa e sua
primeira impressão sobre a empresa. "Ela percebe no que está se
metendo?" perguntei-me, um lampejo de curiosidade sobre sua
percepção da Borges & Associados cruzando minha mente antes de
ser rapidamente afastado pela próxima tarefa.

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As horas avançavam, e com elas, a realização de que ainda havia
muito a ser feito. Levantei-me para olhar a cidade lá fora, seu ritmo
incessante um espelho do meu próprio. A solidão do escritório não
me incomodava; ao contrário, era um cenário familiar, um terreno
onde me sentia no controle.
No ambiente corporativo, as emoções e as conexões pessoais
eram secundárias à performance. "O sucesso exige sacrifício", era
uma máxima que havia guiado minha carreira até agora.
Noite adentro, a quietude do escritório era tanto minha sentinela
quanto minha prisão.
A cidade lá fora havia se acalmado, mas dentro daqueles muros
de vidro e aço, a batalha pelo futuro da empresa continuava. Era
uma existência solitária, mas uma que eu havia escolhido - ou
talvez, que havia me escolhido.
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Cheguei ao final da semana de imersão total no meu novo


emprego na Borges & Associados, exausta, mas invicta. Cada dia
havia sido uma maratona de aprendizado, adaptação e, acima de
tudo, de provar a mim mesma que eu podia enfrentar os desafios
desse novo mundo.
Henrique Borges, com suas expectativas elevadas, havia se
tornado tanto uma figura de autoridade quanto um enigma para
mim. Eu estava determinada a entender o que ele valorizava em seu
time e a me tornar indispensável.
O céu alaranjado trocava de lugar com paredes de concreto que
escondiam o início da noite quando o trem entrava por passagens
fechadas. A multidão de corpos exaustos, no entanto, era tão
indiferente a isso quanto eu.
Em plena quase noite de sexta feira, ninguém parecia capaz de se
importar com nada além da vontade de chegar em casa.
Eu aproveitava a viagem de volta para meu pequeno apartamento
para deixar minha mente se aliviar da tempestade de emoções que a
sobrecarregou durante cada segundo dos últimos dias.
O peso da semana começava a se dissipar com cada estação do
metrô que passava. Meu vagão estava surpreendentemente
tranquilo para um fim de tarde, e eu consegui encontrar um assento
junto à janela. A cidade corria lá fora, um borrão de luzes e sombras
que dançavam ao ritmo do trem.

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Foi então que algo ou alguém chamou minha atenção. Em um
dos muitos breves instantes de parada entre as estações, vi, através
da janela do vagão oposto, uma cena que capturou toda a essência
da vida urbana: uma jovem mãe, tentando equilibrar uma criança
adormecida em um braço e um punhado de sacolas no outro,
enquanto conversava animadamente com um senhor idoso, cujos
olhos brilhavam com a alegria do encontro.
Havia algo tão genuíno, tão cheio de vida naquela interação, que
não pude resistir. Um contraste tocante de gerações e histórias de
vida. A criança nos braços da mulher dormia serenamente, alheia ao
movimento ao redor.

Instintivamente, peguei meu celular da bolsa. Precisava capturar


aquilo.
Assegurando-me de manter um respeito discreto pela distância,
tirei uma foto, registrando o momento antes que o metrô se
afastasse, levando aquela cena com ele.
O clique foi mais do que uma simples captura de uma cena
cotidiana; foi um lembrete. Um lembrete de que, apesar do ritmo
frenético e das exigências do trabalho, há beleza e histórias em
todos os lugares — momentos de conexão humana que
transcendem o caos da rotina.
Era isso que eu buscava em minha fotografia: a capacidade de
ver e registrar esses instantes, de encontrar o extraordinário no
ordinário.
Minha paixão pela fotografia de rua começou ainda na
adolescência e nunca foi embora. Um dos meus passatempos
preferidos sempre foi andar pela cidade, encontrando e registrando
beleza onde a maioria das pessoas simplesmente ignorava sua
existência.
Com o tempo, comecei a sentir que a câmera, fosse qual fosse,
era uma extensão de meu próprio olhar, congelando o tempo em
trocas efêmeras de humanidade.
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Passei vários minutos encarando a imagem na tela do meu celular


e senti uma onda de gratidão por não ter perdido esse olhar, apesar
das longas horas e do cansaço. Havia algo de extraordinariamente
belo naquele instante.
Movida por um impulso, decidi compartilhar a foto com Geórgia.
Abri a conversa com minha irmã no aplicativo de mensagens e enviei
a imagem, acompanhada de uma nota breve:
Maísa: Olha só o que vi no metrô hoje. A
vida na cidade é uma loucura, mas também
tem coisas muito belas. Mal posso esperar para
te mostrar mais.
Ela não respondeu imediatamente, nem visualizou, na verdade. A
essa hora, minha irmã deveria estar envolvida com a separação dos
ingredientes para a preparação dos pães e bolos que venderia
amanhã, na sua pequena padaria. Geórgia só veria minha
mensagem mais tarde.
O resto da viagem de metrô passou em um borrão de reflexões.
Pensei na minha família, na pequena cidade de onde vim, e em
como a fotografia sempre foi minha forma de explorar e entender o
mundo.
E agora, nesse novo capítulo da minha vida, ela continuava a ser
minha companheira, uma ferramenta para descobrir e documentar a
nova realidade que estava começando a chamar de lar.
Ao abrir a porta do meu apartamento, uma onda de alívio me
envolveu. O cheiro familiar de casa — uma mistura de livros, plantas
e o leve aroma de café — preencheu meus sentidos, afastando as
tensões do dia.
Eu estava em meu refúgio, longe da agitação da cidade e das
exigências do trabalho. Permiti-me um momento para simplesmente
ficar ali, absorvendo a paz daquele espaço que era inteiramente
meu.

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As paredes, pintadas de um branco acolhedor, eram um quadro
em branco pronto para ser preenchido com minhas memórias e
sonhos. A sala de estar, embora compacta, e separada da cozinha
por um balcão americano, era banhada por luz natural que se
infiltrava pela janela ampla.
O quarto, meu refúgio pessoal, era decorado minimalistamente,
dominado por uma cama confortável onde eu recarregava as
energias após os dias exaustivos de trabalho, e um pequeno, mas
acolhedor, canto de leitura.
Conseguir alugar este apartamento foi uma conquista
significativa. Lembro-me de passar horas online, buscando um lugar
que fosse acessível e ao mesmo tempo me fizesse sentir em casa.
Quando encontrei este, sabia que era o certo. Era diferente da
casa espaçosa em que cresci, com seu quintal e a cozinha sempre
cheia do aroma dos doces da Geórgia. Aqui, cada centímetro era
meu para preencher, uma tela em branco para a nova fase da minha
vida.
Com passos lentos, direcionei-me ao banheiro, ansiosa por um
banho quente que lavasse não apenas o cansaço físico, mas também
as preocupações que se acumulavam ao longo da semana.
A água correndo pelo corpo funcionava como um ritual de
purificação, deixando para trás as camadas de estresse e renovando
meu espírito para o que ainda estava por vir.
Depois do banho, enrolada em um roupão confortável, caminhei
até a cozinha, ponderando sobre o jantar. Exausta, a ideia de
cozinhar não parecia tão boa.
"Talvez eu deva apenas pedir algo," pensei, considerando as
opções de delivery disponíveis.
Foi quando o celular tocou, cortando o silêncio do apartamento
com a melodia familiar da chamada de Geórgia. Sorri, reconhecendo
o timing quase perfeito da interrupção.
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— Ela sempre sabe, — murmurei antes de atender. — Oi,


Geórgia! — cumprimentei, a voz carregada de alegria.
— Maísa! Vi a foto que você mandou. Que coisa linda! E que
vontade de morder e de apertar aquela criança! — Pude quase vê-la
sorrindo do outro lado da linha.
— Uma fofura, né? — respondi, sentando-me no sofá com o
celular preso entre o ombro e a orelha.
— Então, como foi sua primeira semana realmente vivendo
sozinha na cidade grande?
Eu ri.
— Nos falamos todos os dias dessa semana, Geórgia.
— Idaí? Agora ela acabou, quero o balanço geral.
Ri mais, revirando os olhos, mas me preparei para responder com
um longo suspiro.
— É uma aventura, com certeza. Alguns dias foram incríveis, e
outros, honestamente, um pouco solitários. Mas cada dia foi uma
lição. Sabe, eu sinto falta de casa, da loja, de você... mas há algo
sobre estar aqui, sobre enfrentar esses desafios, que me faz sentir
viva.
— Eu imagino... E as pessoas? Já fez amigos?
— Não mais do que ontem — respondi rindo e quase vi o revirar
de olhos da minha irmã. — Você sabe que estou conhecendo gente
nova, sim — cedo, por fim, repetindo o que ela já sabe. — O
trabalho ajuda muito nisso. E a Lívia, do RH, tem sido realmente
incrível. Ainda é cedo para chamar alguém de amigo de verdade,
mas estou chegando lá.
— Só não se esqueça de nós aqui, tá? — Geórgia brincou, mas eu
podia ouvir o leve traço de saudade em sua voz.
— Nunca, — assegurei com um sorriso. — E como estão as coisas
por aí? A loja está dando conta do recado sem sua assistente
favorita?

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Geórgia riu, um som que sempre me trouxe alegria,
independentemente da distância entre nós.
— A loja está indo bem, mas você sabe que ninguém consegue
decorar os cupcakes como você fazia. Os clientes perguntam por
você.
— Bem, eles terão que se contentar com a segunda melhor
decoradora de cupcakes por enquanto, — brinquei, sentindo uma
pontada de saudade pela simplicidade daqueles dias.
— Falando nisso, como está se saindo com o seu chefe? O
famoso Henrique Borges? — Geórgia mudou de assunto.
Respirei fundo antes de responder, ponderando como descrever
Henrique.
— Ele é... intenso. Muito focado no trabalho e tem expectativas
altíssimas. Mas é justo, eu acho. E definitivamente há muito que
aprender com ele, — expliquei, escolhendo minhas palavras
cuidadosamente.
— Intenso, hein? Soa como alguém que não sabe o que é um
final de semana, — Geórgia comentou, meio séria, meio brincando.
— Exatamente! — concordei, rindo apesar de mim mesma. —
Mas, de alguma forma, essa intensidade dele me motiva. Faz com
que eu queira provar meu valor, sabe?
— Só tome cuidado para não se perder nessa... motivação.
Lembre-se de que você é mais do que seu trabalho, Maísa. Você tem
um dom incrível para a fotografia, por exemplo. Não deixe isso de
lado, — Geórgia aconselhou, sua voz carregada de uma mistura de
preocupação e encorajamento. — E sobre o seu chefe... quem sabe,
talvez ele só precise de alguém que o faça ver que há mais na vida
do que apenas trabalho, — sugeriu, meio brincando.
— Hum, acho que Henrique Borges é um caso perdido nesse
sentido, — eu disse, rindo da ideia. — Mas quem sabe? Talvez um
dia.
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Houve uma pausa do outro lado da linha antes de Geórgia


retomar, sua voz tingida com uma curiosidade travessa.
— E então, depois de uma semana trabalhando tão perto... você
ainda acha o seu chefe tão lindo quanto no primeiro dia? Mesmo
com toda essa... Intensidade?
A pergunta me pegou de surpresa, fazendo com que eu hesitasse
por um momento. A verdade era que a intensidade de Henrique,
embora muitas vezes opressiva, não fazia nada para diminuir o
impacto de sua presença.
Ele era, sem dúvida, atraente — com uma postura que
comandava atenção, olhos penetrantes que pareciam ver
diretamente através de qualquer fachada, e uma determinação que
era visível até mesmo na forma como ele se movia.
Era impossível não notar essas coisas, mesmo quando você
estava tentando se concentrar em mil outras tarefas. Mas permitir
que esses pensamentos ocupassem qualquer espaço significativo em
minha mente parecia inapropriado, quase um desvio perigoso da
razão pela qual eu estava aqui.
"Estou aqui para construir uma carreira, não para fantasiar sobre
meu chefe," repreendi-me internamente, empurrando esses
pensamentos para longe.
— Geórgia, por favor, — comecei, tentando manter minha voz
leve e brincalhona, apesar do calor súbito que senti nas bochechas.
— Estou mais interessada em impressioná-lo com meu trabalho do
que em avaliar sua aparência. Ele pode ser... quem ele é, mas no
final do dia, o que realmente importa é como posso contribuir para a
equipe e crescer profissionalmente.
Geórgia riu do outro lado da linha, provavelmente mais pela
minha resposta evasiva do que por qualquer outra coisa.
— Tudo bem, tudo bem, não vou te pressionar. Mas não há mal
nenhum em admitir que alguém é bonito. Não vai tirar o seu foco,
prometo — debochou.

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— Agradeço o conselho, — respondi, revirando os olhos, mas
sorrindo. — Agora, me conta mais sobre a loja. — Como estão indo
os preparativos para a temporada de festas? E papai e mamãe?
Estão bem?
Conversamos mais um pouco, desviando o foco de Henrique
Borges e de qualquer complicação potencial que minha admiração
relutante por sua aparência pudesse sugerir.
Em vez disso, mergulhamos em discussões sobre a loja de doces,
planos futuros e pequenas atualizações sobre a vida um da outra.
— E aí, já decidiu o que vai fazer para o jantar? — Geórgia
perguntou, mudando de assunto após me contar tudo sobre um
novo morador da nossa cidade natal.
— Ainda não, estava pensando em pedir algo. Cozinhar parece
um esforço muito grande agora, — admiti, rindo.
— Ah, se eu estivesse aí, prepararia algo especial para você. Seu
prato favorito, talvez? — Ela disse, e eu pude sentir o cheiro do
prato atravessando a distância.
— Isso é maldade — choraminguei e ela riu.
A conversa com Geórgia não apenas me reconectou com minhas
raízes, mas também me lembrou do valor das pequenas coisas —
uma foto, uma chamada, uma memória compartilhada.
No meio do caos da vida na cidade e das demandas do trabalho,
eram esses momentos que traziam cor e significado à minha
existência.
Quando finalmente desligamos, senti-me reconfortada e um
pouco divertida com a preocupação de Geórgia. "Talvez ela tenha
razão," pensei, "admiração não precisa complicar as coisas."
Mas, por enquanto, eu estava determinada a manter meu foco no
trabalho e em tudo o que eu esperava alcançar nesta nova cidade,
nesta nova fase da minha vida.
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A noite sem estrelas descia sobre a cidade, luzes artificiais


filtrando-se pelas persianas até alcançarem minha mesa. O escritório
estava silencioso, a maioria dos funcionários já havia partido,
buscando refúgio em suas vidas fora destas paredes.
Eu permanecia, como sempre, o último a sair. A solidão do
escritório vazio era uma companhia constante, tão familiar quanto as
pilhas de documentos que ainda precisavam da minha atenção.
Meu celular tocou, cortando o silêncio como um raio. O visor
iluminado exibia um nome que me fez soltar um suspiro
involuntário: Thomaz. Antes mesmo de atender, eu já sabia o que
esperar.
— Aposto que você ainda está no escritório, — disse Thomaz, sua
voz carregada de uma leveza que eu raramente me permitia sentir.
Ele tinha aquele tom de quem já conhecia a resposta, mas esperava
ser surpreendido.
— Boa aposta, — respondi, permitindo-me um leve sorriso. — E
você está ligando para me lembrar que há um mundo lá fora,
suponho?
— Exatamente. Isso não é rotina, é obsessão — disse Thomaz,
seu tom indicando que ele já tinha um plano em mente. — E falando
em mundo lá fora, você se lembra da festa de aniversário de
casamento dos meus pais neste fim de semana, na fazenda? — Sua
pergunta veio carregada de expectativa. — Você prometeu que iria,
Henrique.

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Hesitei, passando a mão pelos cabelos. A verdade é que, apesar
da promessa, a pilha de trabalho parecia ter se multiplicado nos
últimos dias.
— Eu sei, eu sei... Mas a situação aqui está complicada, Thomaz.
Não tenho certeza se conseguirei me afastar, — admiti, sentindo o
peso da minha própria desculpa.
Houve uma pausa do outro lado da linha, e eu podia imaginar
Thomaz balançando a cabeça, desaprovador.

— Henrique, você não está entendendo. Não estou te


perguntando. Estou te informando. Você vai vir. Se necessário,
arrasto você até lá eu mesmo. A fazenda é praticamente no quintal
de São Paulo, não tem desculpa.
Thomaz e eu compartilhávamos uma longa história, desde os
tempos de escola. Ele era mais do que um amigo; era um irmão que
a vida me deu.
Sua trajetória empresarial era tão bem-sucedida quanto a minha,
mas Thomaz sempre teve uma habilidade incrível de equilibrar o
trabalho com a vida pessoal, algo que eu, confesso, nunca me
importei em fazer.
— Thomaz, eu...
— Sem "mas", Henrique. Você vai. Vai ser bom para você. Além
do mais, quando foi a última vez que tirou um dia de folga? — Sua
voz era firme, mas carregada de preocupação genuína. Eu não tinha
uma resposta para isso. A verdade era que eu não me lembrava da
última vez que havia tirado um dia para mim, um dia que não fosse
consumido por e-mails, reuniões e prazos. — Você sabe que isso não
é saudável, certo? A empresa não vai desmoronar se você deixar
algumas tarefas para segunda.
Eu sabia que ela tinha razão, mas a verdade é que o trabalho
nunca parava. Havia sempre mais a ser feito, sempre mais a ser
alcançado. A Borges & Associados era meu reino, e eu sentia o peso
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de cada decisão, de cada projeto não concluído, como se fossem


correntes invisíveis me prendendo a este lugar.
— Tudo bem, — cedi, finalmente. — Eu vou. Mas não prometo
ficar o fim de semana inteiro.
— Ótimo! Vai ser ótimo, você vai ver. E não se preocupe, vou te
manter longe do seu celular se for preciso, — Thomaz brincou,
sabendo muito bem que essa seria uma tarefa hercúlea.
— Certo, mas se vou, preciso adiantar o máximo de trabalho que
puder esta noite. Tenho permissão para desligar, senhor? — brinquei
e meu amigo soltou uma gargalhada, mas concordou.
Desligamos logo em seguida.
Voltei minha atenção para o trabalho, mergulhando de volta na
minha rotina de análises e relatórios. A luminosidade do monitor era
quase hipnótica, um farol guiando-me através da escuridão da noite
que se desenrolava.
O silêncio do escritório me envolvia, um manto que isolava o
mundo exterior e seus infinitos distúrbios, perturbado apenas pelo
som dos meus dedos digitando no teclado.
Eventualmente, a necessidade de uma pausa me obrigou a
levantar. Caminhei até a janela, as mãos nos bolsos, e observei a
cidade abaixo.
As luzes dos prédios e das ruas formavam um mosaico de vida e
energia, um contraste agudo com a quietude na sala ao meu redor.
Por um momento, permiti-me contemplar a ideia de sair, de me
juntar àquele fluxo de existência além do trabalho.
Mas então, o pensamento de tudo o que ainda precisava ser feito
me puxou de volta à realidade. Havia relatórios a serem revisados,
e-mails a serem respondidos, decisões a serem tomadas. Minha
responsabilidade com a empresa e com a equipe que liderava era
minha prioridade, e eu não podia me dar ao luxo de distrações.

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Retornei à minha mesa, determinado a terminar o que havia
começado. A noite avançava, e com ela, a sensação de estar sozinho
contra o tempo, lutando para manter tudo sob controle.
A promessa de um fim de semana distante da rotina do escritório
ainda ecoava em minha mente, uma faísca de algo diferente no
horizonte. Mas, por enquanto, a realidade era outra.
Quando a noite já havia caído completamente horas antes, e o
silêncio do escritório vazio se fundia ao ruído abafado da cidade lá
fora, decidi que era hora de encerrar por hoje.
A cobertura em que morava, próxima ao escritório para tornar o
deslocamento mais fácil, me permitia ir e voltar caminhando, quando
tinha vontade, e foi o que decidi fazer.
Caminhando pelas ruas vazias, a brisa noturna trazia consigo o
frescor da noite e o aroma dos restaurantes próximos, lembrando-
me de uma necessidade básica que eu frequentemente ignorava:
comer.
A decisão de jantar fora, sozinho, foi tomada quase
automaticamente, movido mais pela necessidade física do que pelo
desejo de saborear a comida.
Escolhi um restaurante discreto, um daqueles lugares acolhedores
e pouco conhecidos que descobri em uma de minhas raras saídas do
escritório, ele ficava aberto até muito tarde, o que era um grande
ponto a seu favor para mim.
Sentado à mesa, sob a luz suave de uma luminária, permiti-me
um momento de contemplação. Era um jantar solitário, sim, mas
havia uma espécie de paz naquela solidão, um momento de pausa
na constante pressão que eu colocava sobre mim mesmo.
O garçom, reconhecendo-me de visitas anteriores, trouxe o
menu, mas eu já sabia o que queria. Meu pedido foi simples, algo
rápido e saboroso, uma escolha habitual que não exigia muita
atenção.
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Enquanto esperava, meus pensamentos vagavam,


inevitavelmente, de volta ao trabalho, às tarefas pendentes e aos
desafios que me aguardavam. No entanto, a conversa com Thomaz
ainda ressoava, estranhamente.
Quando a comida chegou, foquei-me em saborear cada garfada,
tentando desacelerar os pensamentos que dominavam minha mente.
O jantar foi excelente, como sempre.
Terminando a refeição, recostei-me na cadeira, permitindo-me
mais alguns minutos de repouso antes de voltar para o apartamento
que, como o escritório, estava muitas vezes vazio e silencioso.
O jantar solitário havia sido um momento de calma, mas também
um espelho das lacunas em minha vida fora do trabalho. Deixando o
restaurante, a noite ainda prometia horas de silêncio antes que o
sono finalmente me vencesse.
A chave girou na fechadura com um clique familiar, e adentrei à
cobertura, envolta na penumbra.
O silêncio e a escuridão me envolveram como um manto pesado.
O espaço, que em outros momentos me trazia conforto e orgulho,
agora parecia demasiado vasto e vazio.
Luzes automáticas se acenderam, revelando o amplo living que se
estendia à minha frente. As paredes de vidro ofereciam uma visão
panorâmica da cidade abaixo, suas luzes cintilantes contra o céu
noturno, uma beleza que normalmente me fascinava, mas que,
naquela noite, parecia distante e indiferente.
A decoração, uma mistura cuidadosa de modernidade e conforto,
refletia meu gosto por linhas limpas e arte contemporânea. Cada
peça de mobiliário, cada obra de arte, tinha sido escolhida por mim,
compondo um ambiente que era tanto um refúgio quanto um
símbolo do sucesso que eu havia alcançado.
No entanto, a frieza dos materiais, o metal, o vidro, a pedra,
naquela noite, pareciam apenas reforçar a barreira entre o mundo e

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eu. Deixei as chaves sobre a mesa de entrada, desprendendo-me
fisicamente do dia, mas a mente ainda corria, inquieta.
Caminhei até a varanda, atraído pela visão da cidade à noite. A
brisa fresca acariciou meu rosto. Lá embaixo, a cidade pulsava, viva:
luzes cintilantes, carros passando, as pessoas vivendo suas vidas.
Meu olhar se desviou para o interior, passando pelo sofá
espaçoso, pelos livros meticulosamente organizados na estante de
design minimalista, até a cozinha americana, equipada com
tecnologia de ponta, mas que raramente era usada. Tudo no
apartamento falava de uma vida cuidadosamente construída.
Virei-me, movido pela necessidade de fazer algo, mesmo que isso
significasse apenas revisar novamente os e-mails ou organizar a
agenda para o dia seguinte.
A festa de aniversário dos pais de Thomaz, apesar do apelo
emocional, parecia uma indulgência que eu não podia me permitir.
"Talvez um dia," pensei, "mas não agora."
Enquanto a cidade lá fora seguia seu curso, indiferente às minhas
tribulações, eu me resignava à minha realidade.
A jornada para encontrar um equilíbrio entre o trabalho e a vida
pessoal ainda estava além do meu alcance. Por agora, eu
permanecia imerso nas sombras da rotina, um prisioneiro voluntário
do meu próprio sucesso.
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A manhã de segunda-feira era, ao mesmo tempo, estranhamente,


típica e atípica, na Borges & associados.
As mesmas pessoas andavam de um lado para o outro, o mesmo
cheiro de café impregnava os corredores e baias, e as mesmas
paredes, piso e teto nos cercavam, mas a atmosfera no escritório, de
alguma forma, parecia mais carregada do que o habitual.
Eu havia chegado cedo, como sempre, pronta para começar a
semana de trabalho com o pé direito. Ainda assim, como em todos
os dias desde que comecei a trabalhar aqui, não fui a primeira
chegar, Henrique foi.
E embora, também como em todos os dias desde que comecei na
Borges, ele não tenha dado qualquer indício de satisfação por eu ter
chegado antes do meu horário, o telefone sobre a minha mesa não
demorou a tocar.
O visor indicou "Henrique Borges", e meu coração deu um pulo,
não tanto de surpresa, mas de antecipação pela conversa que se
seguiria.
Era uma reação boba, e eu sabia disso. Henrique era meu chefe e
falar com ele era uma parte fundamental do meu trabalho. Ainda
assim, não conseguia evitar a sensação de ansiedade pequenininha
no peito a cada vez que me via prestes a fazer isso.
Minha primeira tarefa do dia foi tentar contato com Thomaz
Araújo. O CEO da Araújo Inc., aparentemente, era um grande amigo

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de Henrique e isso não me surpreendeu nem um pouco. É claro que
um homem poderoso como ele se cercaria de amigos tão poderosos
quanto.
Não consegui contato com Thomaz, no entanto, e a cada vez que
Henrique ligou para a minha mesa durante a manhã perguntando se
eu havia recebido retorno do contato e eu lhe respondi que não,
meu chefe pareceu se ficar mais ansioso.
Houve um breve suspiro do outro lado da linha, quase
imperceptível, antes de Henrique se despedir e desligar. O restante
da manhã transcorreu sob essa sombra.
Henrique tinha uma aura palpavelmente tensa desde que chegou
ao escritório, uma tempestade silenciosa que todos sentiam, mas
ninguém ousava comentar. Me perguntei se algo teria acontecido
durante o fim de semana para lhe deixar daquele jeito. Algo pessoal,
talvez?
Quando meu telefone tocou novamente, já quase na hora do
almoço, e o nome de Henrique se acendeu, sufoquei a agitação em
meu estômago antes de atendê-lo, já suspeitando qual seria a
pergunta que ele me faria.
— Bom dia, Henrique, — atendi, tentando manter minha voz o
mais neutra possível.
— Maísa, você teve algum retorno de Thomaz? — Sua voz era
direta, mais ríspida do que o necessário para uma simples pergunta.
— Não, ainda não. — Respondi, percebendo imediatamente a
mudança em seu tom. Algo estava errado, algo além da ausência de
notícias de Thomaz.
Durante a semana anterior, minha primeira semana de trabalho
na Borges & Associados, eu havia notado a seriedade e o foco de
Henrique, mas hoje ele estava ainda mais fechado, arisco, como se
cada palavra e cada ação exigissem um esforço hercúleo de sua
parte.
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Os outros funcionários olhavam para mim em busca de respostas,


como se, por ser a secretária de Henrique, eu tivesse alguma
influência sobre seu humor ou informações privilegiadas sobre o que
o perturbava. Mas eu estava tão no escuro quanto eles, talvez até
mais, pois sentia a pressão de sua presença mais do que qualquer
outro.
Passei o restante da manhã tentando navegar entre minhas
tarefas e a atmosfera tensa que Henrique havia trazido consigo.
Cada vez que entrava em seu escritório para entregar documentos
ou atualizá-lo sobre os compromissos do dia, encontrava-o
mergulhado em seus pensamentos, a testa franzida em
concentração ou frustração.
Não era apenas o ambiente de trabalho que sofria com seu
humor; havia uma energia palpável de desconforto entre os colegas.
Conversas cessavam quando ele passava, e todos pareciam andar
sobre cascas de ovos, temendo ser o próximo alvo de sua irritação.
A primeira parte do dia passou num sopro tenso, as horas
marcadas pelo tic-tac constante do relógio e pela atmosfera pesada
que Henrique carregava consigo.
Cada interação, por mais breve que fosse, deixava um rastro de
ansiedade que se espalhava pelo escritório como ondas após uma
pedra ser jogada em um lago tranquilo.
À medida que o dia avançava, ficava cada vez mais claro para
mim que algo precisava ser feito. Não podia mudar o que estava
incomodando Henrique, mas talvez pudesse aliviar um pouco da
tensão, trazer algum conforto no meio da tempestade.
Decidi que faria algo, mesmo que pequeno, para tentar melhorar
as coisas. Não tinha ilusões de que um gesto simples resolveria
tudo, mas, quem sabe, poderia pelo menos tornar o dia um pouco
menos pesado para todos nós.
Sabia que qualquer tentativa óbvia de animar Henrique poderia
ser mal interpretada ou, pior, rejeitada. Precisava ser algo discreto,

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um gesto que falasse diretamente ao seu estado sem exigir um
reconhecimento verbal de sua parte.
Henrique era um homem de hábitos, da meticulosa organização
da sua mesa de trabalho ao modo como preferia o café — forte e
sem açúcar, sempre na mesma caneca azul escuro. Depois de
ponderar por alguns momentos, uma ideia me veio à mente.
Lembrei-me de um comentário que Henrique fizera na semana
passada sobre um projeto específico, mencionando, quase
casualmente, como uma certa abordagem poderia economizar
tempo e recursos.
Era algo pequeno, quase insignificante no grande esquema das
coisas, mas que, naquele momento, pareceu-me uma oportunidade
de mostrar que seus pensamentos e palavras tinham valor além das
tarefas imediatas.
Durante o almoço, enquanto a maioria dos colegas saía para uma
pausa, fiquei no escritório, mergulhada em pilhas de documentos e
relatórios.
Com cuidado e atenção, comecei a reorganizar alguns dos
arquivos referentes ao projeto que Henrique havia mencionado,
aplicando a abordagem que ele sugerira.
Não era apenas uma questão de aliviar o fardo do trabalho, mas
de demonstrar que eu estava atenta, que valorizava sua liderança.
Após finalizar a reorganização, preparei uma breve nota
explicativa, destacando as mudanças e como elas poderiam
beneficiar o andamento do projeto. Coloquei a nota em sua mesa,
junto com os documentos reorganizados, esperando que, de alguma
forma, o gesto transmitisse mais do que palavras poderiam dizer.
Além disso, aproveitei para preparar o café exatamente como ele
gostava, deixando-o pronto na mesa ao lado de sua agenda
meticulosamente organizada. Pequenos atos, eu sabia.
Por último, sem querer parecer intrusiva, deixei sobre sua mesa
um pequeno vaso com uma única flor, uma suave e não verbalizada
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mensagem de apoio.
Era sutil, sim, mas em sua sutileza residia a beleza do gesto. Não
era necessário que ele soubesse que fui eu; o importante era o
impacto que essas pequenas mudanças poderiam ter em seu humor
e, consequentemente, no ambiente de trabalho.
O resto da tarde transcorreu em uma espécie de expectativa
silenciosa. Eu não sabia se Henrique notaria as mudanças ou se ele
daria importância a elas. Ainda assim, havia uma faísca de
esperança, um desejo de que aquele pequeno ato pudesse de
alguma forma atravessar a muralha que ele havia erguido ao seu
redor.
Quando finalmente chegou o momento de Henrique ver o que eu
havia preparado, eu observava discretamente de minha mesa. Ele
entrou em seu escritório após uma reunião, o semblante ainda
carregado pela mesma tensão de antes. Por um longo momento, ele
simplesmente ficou lá, olhando para os documentos reorganizados e
para a nota que eu havia deixado, para a flor solitária que por um
momento, me pareceu tanto com ele.
Não houve um olhar de agradecimento, nem palavras de
reconhecimento. No entanto, notei uma pausa em sua postura, um
leve relaxar dos ombros enquanto ele lia a nota. Era quase
imperceptível, mas para mim, foi como se um raio de sol tivesse
penetrado as nuvens escuras que dominavam o dia.
O resto do dia transcorreu com uma tensão um pouco menos
palpável. Henrique parecia mergulhado em seus pensamentos, mas
havia algo ligeiramente diferente em sua maneira de interagir.
Ele passou por minha mesa algumas vezes, cada passagem
marcada por uma pausa quase imperceptível, como se ele estivesse
ponderando algo.
Em um desses momentos, nossos olhares se encontraram, e, por
uma fração de segundo, pensei ter visto um brilho de gratidão em
seus olhos. Ou teria sido apenas minha imaginação?

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Ao final do dia, enquanto me preparava para deixar o escritório,
Henrique me chamou até sua sala. Seu tom era o de sempre, firme
e direto, mas havia uma suavidade subjacente que raramente se
fazia presente.
— Maísa, — ele começou, olhando para os documentos em sua
mesa antes de voltar sua atenção para mim. — Obrigado pelo
trabalho de hoje. — Foram palavras simples, quase jogadas ao
vento, mas carregavam um peso que só nós dois entendíamos.
Eu sorri, um gesto pequeno, mas sincero.
— Sempre ao seu dispor, Henrique.
Ele assentiu, um movimento breve de cabeça, antes de desviar o
olhar, voltando sua atenção para os papéis à sua frente. Não havia
mais nada a ser dito; ambos sabíamos o valor daquela breve troca.
Enquanto caminhava de volta para minha mesa, sentia um calor
agradável no peito. Não era uma vitória estrondosa, nem uma
mudança drástica na dinâmica do escritório, mas era um começo.
Uma rachadura na armadura de Henrique, uma prova de que, por
baixo daquela fachada de rigidez e distância, havia alguém capaz de
reconhecer e apreciar os esforços dos outros.
Naquele dia, eu havia conseguido algo pequeno, mas
significativo. Havia trazido um momento de leveza para alguém que
carregava o mundo nas costas, alguém que talvez tivesse esquecido
como era sorrir verdadeiramente.
Ao sair do escritório naquela noite, olhei para trás por um
momento, vendo a silhueta de Henrique através da porta de vidro de
seu escritório.
Ele estava lá, como sempre, dedicado ao trabalho que tanto
amava e pelo qual tanto se sacrificava. Me peguei desejando que ele
percebesse que havia mais na vida do que apenas pilhas de
documentos e reuniões sem fim.
Balancei a cabeça, afastando o desejo. Não era da minha conta.
Não mesmo.
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O sol ainda não havia se posto completamente, mas as luzes do


escritório já estavam todas acesas, criando uma ilha de claridade em
meio à penumbra que começava a dominar a cidade lá fora.
Sentei-me à minha mesa, revisando os detalhes do projeto que
Maísa e eu começaríamos a trabalhar juntos. Era um desafio
considerável, um daqueles projetos que poderiam tanto alavancar a
empresa a novos patamares quanto ser uma fonte significativa de
estresse nos próximos meses.
Mesmo depois de dias, a irritação com Thomaz ainda me
incomodava, uma nuvem escura em minha mente. Eu havia passado
por uma montanha-russa de emoções desde o fim de semana, de
mal-estar a culpa, de frustração a irritação.
Entendia, em algum nível, a razão de sua mágoa por eu ter
faltado ao evento de aniversário de seus pais, mas não conseguia
aceitar totalmente seu silêncio. Considerava sua atitude de se
afastar sem uma conversa franca algo infantil, ainda que isso não
diminuísse meu desejo de reconciliação.
— Henrique? — A voz de Maísa me tirou dos meus pensamentos,
trazendo-me de volta ao presente.
Ela estava parada à porta do meu escritório, um caderno em
mãos, pronta para discutirmos o projeto.
— Sim, entre, Maísa. Vamos começar. — Gesticulei para que ela
se sentasse enquanto tentava afastar meus problemas pessoais para

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o fundo da mente.
Apresentei a ela os contornos do projeto, destacando sua
importância estratégica para a empresa e o que esperava alcançar
com ele. Maísa ouvia atentamente, fazendo anotações e
ocasionalmente levantando questões perspicazes.
— Este projeto não é apenas um passo adiante para a empresa,
— comecei passando os olhos pelos documentos à nossa frente —, é
uma prova de nossa capacidade de inovar e liderar no mercado.
Maísa me olhava atentamente, seu caderno aberto em anotações
meticulosas.
— Entendo a importância estratégica, — interveio, sua caneta
pausando por um momento. — Mas como planeja mitigar os riscos
associados à implementação? A abordagem é bastante agressiva.
Suas perguntas eram incisivas, refletindo uma compreensão que
ultrapassava as expectativas normais de sua posição. Cada questão
levantada por ela me obrigava a refinar meu pensamento, a
considerar ângulos que eu poderia ter negligenciado.
— É um ponto válido, Maísa. A mitigação de riscos será feita
através de uma série de protótipos e testes de mercado. Não
estamos apenas saltando no escuro; estamos calculando cada passo
cuidadosamente, — expliquei, impressionado com sua capacidade de
ir direto ao coração dos potenciais desafios.
À medida que a noite caía sobre a cidade, o escritório da Borges
& Associados tornava-se um refúgio silencioso para Maísa e eu,
iluminado apenas pela luz suave de nossas mesas de trabalho.
A reunião sobre o projeto desafiador havia começado com o
crepúsculo, e agora, envoltos na escuridão lá fora, estávamos
imersos nos detalhes do que seria uma das nossas mais
significativas empreitadas juntos.
A conversa fluiu naturalmente para os aspectos técnicos e
operacionais, cada um de nós contribuindo com insights e soluções.
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O tempo parecia se dobrar ao nosso redor, cada hora passando sem


que nos déssemos conta, tão envolvidos estávamos na tarefa.
Quando o estômago de Maísa roncou, um som
surpreendentemente alto no silêncio do escritório, ambos rimos —
um momento de leveza em meio à nossa concentração. Olhei para o
relógio, surpreso ao ver quão tarde já era.
— Acho que é hora de pedirmos algo para comer. O que acha de
sushi? — sugeri, pegando meu celular para fazer o pedido.
Maísa concordou com um aceno, um sorriso grato em seus lábios.
O jantar chegou enquanto discutíamos a logística de
implementação. O aroma do sushi preencheu o escritório.
Maísa e eu arrumamos uma pequena área da mesa de reunião
para comer, transformando aquele momento em uma pausa bem-
vinda.
— Espero que goste de salmão — disse, abrindo as embalagens e
revelando uma variedade de peças meticulosamente preparadas.
— É o meu favorito — Maísa respondeu com um sorriso, pegando
os hashis. — Obrigada por pedir.
Comemos em um silêncio confortável inicialmente, concentrando-
nos na refeição após horas de foco intenso no projeto.
Era estranho, de certa forma, estar ali, jantando com minha
secretária em um contexto que era ao mesmo tempo íntimo e
profissional. Mas, à medida que o jantar avançava, a conversa
começou a fluir mais livremente.
— Como você se envolveu com a Borges & Associados? — Maísa
perguntou, genuinamente interessada.
Eu pausei, surpreso com a pergunta. Não era algo sobre o qual
eu falava frequentemente, mas algo sobre ela e a forma como agia,
como se comunicava com tanta naturalidade, me fez querer
responder.

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A resposta padrão seria dizer que se tratava de um negócio de
família. Era o que eu dizia aos jornalistas e a qualquer outra pessoa
que me fizesse essa pergunta. Ainda assim, me peguei respondendo
algo completamente diferente à minha secretária enquanto seus
olhos escuros me encaravam em expectativa.
— Minha conexão com a Borges & Associados vem de longa data,
— comecei, pausando para escolher as palavras. — Cresci vendo
meu pai dedicar-se de corpo e alma a esta empresa, que foi fundada
pelo meu avô. Desde muito jovem, eu estava envolvido, mesmo que
apenas observando nos bastidores. Eu via o impacto que nosso
trabalho tinha nas vidas das pessoas, e isso me fascinava.
Maísa me olhava com uma atenção que ia além do profissional,
como se tentasse entender não apenas o gestor à sua frente, mas o
homem por trás do título.
Ela prendeu uma mecha dos cabelos longos e ondulados atrás da
orelha e se moveu suavemente. O vestido bordô se enrugou no colo,
e umedeci os lábios, preso na imagem dos cílios longos e do nariz
pequeno por apenas um segundo antes de voltar a falar.
— Perdi meus pais quando ainda estava na faculdade, mas a
visão e a paixão deles pela Borges & Associados sempre ficaram
comigo. Eles acreditavam na força da inovação e na importância de
construir algo que durasse. Foi essa crença que me impulsionou a
seguir seus passos. Não apenas para liderar, mas para transformar,
para continuar o legado que eles começaram. A Borges & Associados
não é apenas uma empresa para mim; é parte de quem eu sou, um
elo com minha família, com meu passado.
Houve um silêncio respeitoso por um momento, enquanto Maísa
absorvia as palavras.
Eu talvez porque eu raramente compartilhava detalhes tão
pessoais, naquele instante, parecia importante que ela entendesse.
O projeto em que trabalhávamos; qualquer projeto em que eu me
envolvia, na verdade; não era somente uma tarefa, era uma
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continuação da missão da minha vida, um compromisso com o


legado familiar que eu estava determinado a honrar e expandir.
— Isso é... muito poderoso, Henrique, — ela finalmente disse,
sua voz suave, refletindo uma compreensão profunda. — É uma
grande responsabilidade, mas também uma grande honra, não é?
— Exatamente, — concordei, sentindo um peso se levantar ao
verbalizar esses sentimentos. — E é por isso que cada projeto que
empreendemos aqui é mais do que apenas negócios. — Maísa
assentiu, um sinal de que ela compartilhava, ao menos em parte,
daquele sentimento de missão. — E você, Maísa? O que te trouxe
para a Borges & Associados? — perguntei, invertendo o foco da
conversa para ela.
— Ah, — exclamou com um sorriso pequeno, parecendo surpresa
com a minha pergunta. — Acho que foi a busca por um desafio, por
um lugar onde eu pudesse realmente fazer a diferença. E também...,
— ela hesitou por um momento, — a vontade de aprender com os
melhores. Você tem uma reputação de ser um líder exigente, mas
justo. Estudamos alguns projetos da Borges na faculdade e, depois
que me formei, eu queria ver isso de perto.
Houve um momento de surpresa ao ouvir aquilo, seguido por
uma sensação de respeito renovado por Maísa. Ela não estava aqui
apenas para fazer um trabalho; ela estava aqui para crescer, para
desafiar a si mesma e aos outros.
À medida que a noite se aprofundava, e nosso trabalho no
projeto continuava após o jantar, não pude deixar de refletir sobre a
impressão que Maísa estava deixando em mim.
Sua inteligência, dedicação e a surpreendente facilidade com que
ela navegava tanto nas demandas do trabalho quanto nas interações
pessoais me fizeram vê-la sob uma nova luz. Havia algo nela, uma
mistura de força e sensibilidade, que eu nunca havia notado em
outras pessoas.
Era tarde quando finalmente decidimos encerrar por aquela noite.
Enquanto nos preparávamos para finalmente deixar o escritório, não

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pude deixar de sentir uma admiração crescente por Maísa.
Sua inteligência, sua ética de trabalho e sua habilidade de ver
além dos desafios imediatos eram qualidades que eu valorizava
profundamente. Olhando para ela, que juntava suas coisas, senti
uma relutância em deixar aquele momento de conexão para trás.
— Obrigado, Maísa. Por hoje. Foi... produtivo, e mais agradável
do que eu esperava, — admiti, escolhendo minhas palavras
cuidadosamente.
Ela sorriu, um sorriso que parecia iluminar o escritório agora
escuro.
— Eu que agradeço, Henrique. Até amanhã.
E com isso, ela se foi deixando-me sozinho com meus
pensamentos.
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A quinta-feira amanheceu com a Borges & Associados já em


plena efervescência, um contraste marcante com a tranquilidade
habitual das primeiras horas do dia.
Henrique havia convocado uma reunião especial para discutir os
últimos preparativos para o evento de caridade que aconteceria na
próxima semana, e o ar estava carregado de expectativa.
Depois de mais de um mês trabalhando na empresa, chegar cedo
já fazia parte da minha rotina, eu estava sempre determinada a
contribuir da melhor forma possível.
Ver Henrique tão envolvido com os preparativos do evento, algo
tão distante das responsabilidades cotidianas de um CEO, era
surpreendente.
Ele coordenava tudo com uma paixão que eu raramente tinha a
oportunidade de presenciar, uma dedicação que revelava um lado
dele quase desconhecido para mim. Um lado que só alimentava com
doses absurdas de fermento minha admiração já crescente pelo meu
chefe.
— Maísa, preciso que você revise a lista de convidados e confirme
os últimos RSVPs.
A voz de Henrique me tirou de meus pensamentos. Ele passou a
lista para mim, seus olhos fixos nos meus, transmitindo a urgência
da tarefa.
— Claro. Farei imediatamente — respondi, aceitando a lista.

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A seriedade com que ele tratava cada detalhe do evento era
contagiante, e eu me senti ainda mais motivada a desempenhar meu
papel da melhor forma.
Enquanto trabalhava na confirmação dos convidados, não pude
deixar de notar a maneira como Henrique interagia com os outros
membros da equipe.
Havia um calor e uma abertura em seu comportamento que eu
raramente via no dia a dia do escritório. Ele ouvia ativamente,
agradecia as contribuições e, ocasionalmente, até mesmo
compartilhava uma risada ou duas. Era como se, ao se dedicar a
uma causa maior, as barreiras que normalmente o cercavam
começassem a se desfazer.
Nos dias que se seguiram, a preparação para o evento tomou
conta de nossas rotinas. Henrique estava em todos os lugares,
desde reuniões com patrocinadores até conferências com os
organizadores do evento, sempre assegurando que tudo estivesse à
altura de suas expectativas.
E eu, ao seu lado, absorvia cada detalhe, cada decisão tomada,
aprendendo não apenas sobre a logística de um evento de caridade,
mas também sobre a pessoa que Henrique realmente era fora das
paredes do escritório.
Na véspera do evento, o escritório ficou até mais tarde aberto do
que o usual, todos empenhados em garantir que nada fosse deixado
ao acaso.
Henrique, apesar de claramente exausto, não permitia que sua
energia diminuísse. Sua determinação em fazer do evento um
sucesso era palpável, e sua liderança, nesses momentos, era
inspiradora.
— Maísa, como estamos com a lista de convidados? — Henrique
perguntou, aproximando-se da minha mesa já no final do dia.
— Todos confirmados. Também verifiquei os arranjos especiais
para os convidados VIP. Tudo está conforme planejado — respondi,
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oferecendo-lhe a lista atualizada.


Ele analisou o documento rapidamente, um raro sorriso de
satisfação se formando em seus lábios.
— Excelente trabalho, Maísa.
O reconhecimento era genuíno, e por um momento, vi um brilho
de algo mais em seus olhos, uma faísca de humanidade que quase
nunca aparecia. Mais um momento breve, porém significativo, que
reforçava minha admiração por Henrique não apenas como líder,
mas como pessoa.
Eu estava começando a ver além do CEO implacável, descobrindo
um homem que, apesar de suas responsabilidades imensas, ainda
encontrava espaço para se importar profundamente com os outros.
Naquela noite, enquanto deixávamos o escritório juntos, a cidade
à nossa volta já mergulhada na escuridão, senti uma sensação que
ia além da relação profissional.

A manhã do evento chegou carregada de uma energia palpável,


um misto de nervosismo e excitação que permeava o ar.
O trabalho árduo dos últimos dias finalmente culminaria naquela
noite, e enquanto ajudávamos nos últimos preparativos, eu não
pude deixar de notar a mudança na postura de Henrique.
Sua usual aura de autoridade e controle dava lugar a um
entusiasmo quase palpável, um sorriso fácil substituindo a expressão
concentrada.
Voltar para casa para me arrumar não era uma opção; o tempo
era curto e cada minuto contava. Felizmente, havia me preparado

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para essa possibilidade, trazendo comigo um vestido especialmente
escolhido para a noite. O banheiro da empresa tornou-se, por um
breve momento, meu camarim improvisado.
O vestido era simples, mas elegante; uma peça em tom azul-
marinho que caía de forma lisonjeira, complementando minha figura
sem ser excessivamente ostentoso.
Acessórios mínimos, apenas um par de brincos discretos e um
colar delicado, completavam o visual. Meu cabelo, normalmente
solto em ondas naturais, foi preso em um coque baixo, dando um ar
de sofisticação descomplicada.
Ao sair do banheiro e voltar ao espaço agora transformado para o
evento, senti uma onda de nervosismo. Estava acostumada a ver
Henrique em seu habitual traje de negócios, mas nada poderia me
preparar para a visão dele em um smoking.
A elegância natural de Henrique era inegável, mas aquela noite
parecia acentuar uma faceta diferente, uma que mesclava
perfeitamente autoridade e charme.
Sua reação ao me ver foi sutil, mas perceptível. Por um breve
segundo, seus olhos se alargaram, um vislumbre de surpresa
atravessando seu rosto antes de ser substituído por um sorriso de
aprovação.
— Você está... deslumbrante, Maísa, — ele disse, as palavras
carregadas de uma sinceridade que fez meu coração acelerar.
— Obrigada, Henrique. Você também está muito elegante, —
respondi, permitindo-me apreciar a visão dele em trajes formais.
Havia algo na forma como o smoking se ajustava a ele,
destacando sua postura e a confiança que naturalmente exalava que
era quase hipnotizante.
Nossa troca de olhares foi breve, mas carregada de um
reconhecimento mútuo da singularidade daquela noite.
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Conforme a noite avançava, e nos dedicávamos a garantir o


sucesso do evento, a barreira entre o profissional e o pessoal parecia
se atenuar.
As conversas fluíam mais livremente, e eu via Henrique não
apenas como meu chefe, mas como alguém com quem
compartilhava um objetivo comum, unidos por um propósito maior.
A experiência daquela noite, vestida não para o trabalho, mas
para um evento que refletia os valores mais profundos de Henrique,
proporcionou uma oportunidade única de entender o homem por
trás do título.
E, ao observá-lo mover-se com tanta paixão e comprometimento,
não pude deixar de sentir uma profunda admiração não apenas por
seu profissionalismo, mas pela pessoa que ele revelava ser.
Longe da mesa de trabalho e do constante zumbido do telefone,
ele se movia entre os convidados com uma graça que eu não
esperava, cumprimentando a todos com uma cordialidade que
parecia genuína e calorosa.
Foi somente depois de horas de evento que Henrique e eu
conseguimos encontrar um momento de calma, afastados da
multidão, observando a festa de um canto mais reservado. Sua voz
era baixa enquanto observávamos a festa.
— Vai soar clichê, mas a minha parte preferida dos projetos é
sempre o fim. Não me entenda mal, a pressão do trabalho diário
tem seu próprio valor, mas momentos como este... eles dão
perspectiva. O porquê de nos dedicarmos tanto.
Eu assenti, curiosa para ouvir mais sobre seus pensamentos.
— É que... — ele fez uma pausa, procurando as palavras certas.
— Nos negócios, estamos sempre olhando para metas, para o
próximo trimestre, planejando o futuro. Mas esta noite é sobre o
agora, sobre fazer a diferença hoje, sobre contribuir para algo maior.
A sinceridade em sua voz me fez encará-lo. Seus olhos escuros
estavam concentrados no salão, os lábios cheios e o maxilar

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quadrado relaxados em linhas soltas. Era evidente que a noite
significava mais para ele do que apenas uma obrigação corporativa.
— E tem champagne — brinquei, erguendo minha taça e batendo
levemente com ela na sua.
Henrique me olhou, um brilho de apreciação em seus olhos.
— Você tem uma visão clara do que é importante — respondeu
no mesmo tom, me arrancando uma risada.
Por alguns segundos, não fizemos nada além de encarar um ao
outro. Minha respiração mudou.
— Bem, aprendo com o melhor, — respondi, meio brincando,
meio séria, tentando aliviar o peso do silêncio que se instalou de
repente.
— Espero poder continuar a merecer essa consideração, — disse,
e havia uma promessa implícita em suas palavras. Sobre o quê, eu
não sabia.
A festa continuou ao nosso redor, com música e risadas
preenchendo o ar. Conforme a noite avançava, tive a oportunidade
de ver Henrique de uma maneira que o escritório nunca permitiu.
Entre conversas e risadas, compartilhamos histórias de nossas
vidas fora do trabalho.
A surpresa veio quando ele voltou a falar de sua família, da
importância da empresa como legado e da sua determinação em
honrar a memória dos pais. Suas palavras eram tingidas de uma
emoção crua e honesta, um vislumbre da profundidade de seu
caráter.
— Minha família sempre acreditou na responsabilidade de
contribuir para a comunidade, — ele compartilhou, a voz suave em
meio ao burburinho ao redor. — Fazer parte de algo assim... me faz
sentir mais próximo deles.
A vulnerabilidade em sua confissão me tocou, revelando uma
complexidade em Henrique que eu apenas começava a
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compreender.
Após o evento, enquanto Henrique e eu ajudávamos com os
últimos detalhes da organização, a satisfação pelo sucesso do evento
era evidente. Cada olhar trocado entre nós carregava um peso de
realização, um reconhecimento mútuo do esforço e dedicação
investidos.
Caminhando de volta para o carro, a noite envolvia a cidade com
seu manto estrelado.
— Maísa, — Henrique começou, ainda com sua voz mais suave do
que o habitual. — Esta noite... foi incrível.
Henrique assentiu, um sorriso leve nos lábios. Ele era bonito, mas
naquele momento decidi que meu chefe deveria ser deslumbrante
quando gargalhava se, com um sorriso pequeno, se transformou no
homem mais bonito que já caminhou pela face da terra.
— Só fiz meu trabalho — garanti, dando de ombros.
— Você fez mais do que isso. Minha mãe sempre me dizia que
devemos medir nosso sucesso não apenas pelo que conquistamos,
mas também pelo que contribuímos. É uma lição que tento levar
comigo e, esta noite, você contribuiu muito.
Aquela confissão pessoal adicionou uma nova camada à minha
percepção de Henrique. Não era apenas o CEO da Borges &
Associados; ele era alguém profundamente influenciado pelos
valores familiares, alguém que buscava honrar o legado de seus pais
não apenas na esfera profissional, mas também através de seu
impacto na comunidade.
— Isso é admirável da sua parte — disse, sentindo uma conexão
genuína entre nós, algo que transcendia nossa relação profissional.
Ao chegarmos ao carro, Henrique se virou para mim, a luz dos
postes iluminando seu rosto de maneira suave. Seu olhar carregava
uma mistura de gratidão e respeito.

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— Obrigado, Maísa. Por tudo. Sua ajuda foi crucial hoje, e... bem,
estou feliz por você fazer parte da equipe.
Aquele reforço de agradecimento, simples mas sincero, fechou a
noite com uma chave de ouro. Enquanto me afastava, sentia não
apenas o cansaço físico do dia longo, mas uma sensação de
contentamento profundo.
Henrique Borges, o enigmático CEO da Borges & Associados,
tinha se revelado muito mais complexo e humano do que eu poderia
imaginar.
E naquela noite, sob o vasto céu estrelado, me perguntei quanto
mais havia muito para descobrir sobre ele, e quão longe ele me
permitiria ir nessa descoberta.
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Entre o barulho das teclas e o murmúrio constante das conversas


ao fundo, algo incomum chamou minha atenção. Maísa estava
concentrada em sua mesa, seus dedos dançando agilmente pelo
teclado.
Ela levantou os olhos dos documentos à sua frente, e nossos
olhares se cruzaram. Por um instante, o mundo ao redor pareceu
desvanecer, deixando apenas a conexão silenciosa entre nós.
Após o evento de caridade, a atmosfera no escritório mudou
sutilmente. As manhãs ainda eram ocupadas, mas havia uma leveza
no ar que não estava lá antes.
Eu me pegava esperando por aqueles breves encontros casuais
com Maísa, seja na copa enquanto preparávamos o café, ou no
corredor a caminho de uma reunião.
Certo dia, enquanto cruzávamos no corredor, nosso habitual "bom
dia" carregava um calor novo, uma conexão simples, mas
significativa.
Em outro momento, compartilhamos uma risada sobre o desastre
de um colega com a máquina de café, um incidente trivial que, de
alguma forma, nos aproximou.
A colaboração entre nós tornou-se mais frequente. Eu encontrava
motivos para buscar sua opinião sobre projetos, valorizando
genuinamente sua perspectiva.

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Havia uma particularidade em sua forma de pensar que
complementava a minha, trazendo insights que eu, sozinho, poderia
não ter considerado.
"O que você acha disso, Maísa?" tornou-se uma pergunta comum,
sinalizando um respeito mútuo que transcendia nossos papéis
profissionais.
Comecei a reconhecer seu trabalho abertamente, seja com um
elogio durante uma reunião de equipe ou um simples agradecimento
pessoal.
"Excelente trabalho nisso, Maísa," eu dizia, vendo a forma como
seus olhos brilhavam levemente com o reconhecimento. Era evidente
que ela valorizava essa apreciação, e eu, por minha vez, sentia-me
gratificado por poder oferecê-la.
Esses momentos, embora pequenos, começaram a se acumular,
cada um adicionando uma camada à minha percepção de Maísa.
Ela não era apenas uma secretária competente; ela era uma
pessoa com quem eu compartilhava risadas, respeito e,
surpreendentemente, momentos de conexão genuína.
Refletindo sobre essas mudanças, percebi que minha admiração
por Maísa estava crescendo. Não apenas por sua inteligência e
dedicação, mas pela pessoa que ela era fora dos limites do nosso
trabalho.
Essa realização trouxe uma sensação desconhecida, um
reconhecimento de que, talvez, houvesse algo mais entre nós, algo
que valia a pena explorar. No entanto, esses pensamentos trouxeram
consigo uma hesitação.
A linha entre o profissional e o pessoal é tênue, e eu sabia que
qualquer passo em falso poderia complicar as coisas. Ainda assim,
não podia negar a atração crescente, a forma como meus
pensamentos frequentemente se desviavam para ela, mesmo fora do
escritório.
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Era uma tensão sutil, uma dança de olhares e conversas que, dia
após dia, construía uma ponte invisível entre nós. Uma ponte que eu
estava, cada vez mais, disposto a atravessar.
A memória do momento, hoje mais cedo, quando nossos dedos
se tocaram por acaso, quando Maísa me entregou uma pasta, toma
conta da minha mente, expulsando todo e qualquer outro
pensamento.
Foi como se uma energia elétrica percorresse todo o meu corpo
única e exclusivamente por causa do toque simples.
Não era apenas a proximidade física ou o contato acidental que
nos deixou momentaneamente desorientados; era a súbita
consciência de uma atração latente, algo que até então havíamos
conseguido ignorar em meio à rotina de trabalho.
Depois, de volta à minha mesa, tentei me concentrar nos
relatórios e e-mails que exigiam minha atenção, mas meus
pensamentos insistiam em voltar para Maísa.
Sua expressão surpresa, o modo como seu rosto se corou
levemente quando nossos olhares se encontraram, tudo parecia
gravado em minha mente com uma clareza perturbadora.
Esse tipo de envolvimento era um território desconhecido para
mim. Como CEO da Borges & Associados, eu estava acostumado a
lidar com desafios complexos, a tomar decisões que afetavam o
futuro da empresa e seus funcionários. Mas esse turbilhão de
emoções pessoais era algo que eu não sabia como lidar.
Maísa havia se mostrado uma profissional excepcional desde o
primeiro dia, trazendo uma mistura de inteligência, eficiência e um
toque de calor humano que raramente se vê no ambiente
corporativo.
Sua capacidade de antecipar minhas necessidades e a forma
como ela lidava com as demandas do trabalho sempre me
impressionaram. Agora, percebia que minha admiração por ela não
se limitava às suas habilidades profissionais.

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— Henrique, tem um minuto? — A voz de Maísa quebrou o
silêncio, trazendo-me de volta à realidade do escritório.
— Claro. Do que você precisa? — respondi, tentando manter a
compostura, enquanto minha mente ainda vagava por pensamentos
a respeito da mulher que agora estava diante da minha mesa.
Ela estendeu um relatório para mim, uma expressão de
determinação iluminando seu rosto. A forma como ela se movia,
com confiança e propósito, já antecipava a seriedade com que
tratava suas responsabilidades.
— Revisei os números do último trimestre e acho que identifiquei
algumas áreas onde podemos otimizar nossos processos.
Ela abriu o relatório sobre minha mesa, seus dedos apontando
para gráficos e tabelas específicas. Cada ponto que ela destacava
era acompanhado de uma explicação clara e concisa.
— Veja aqui — ela apontou para um gráfico particular. — Se
conseguirmos reduzir nossos custos operacionais em apenas 5%,
sem comprometer a qualidade, podemos aumentar
significativamente nossa margem de lucro.
Eu ouvia, fascinado não apenas pela precisão de suas análises,
mas também pela energia com que apresentava suas ideias.
A forma como seus olhos se iluminavam, a maneira decidida com
que expressava suas opiniões. Havia uma beleza em sua
assertividade, uma força que me atraía de maneira que eu não
conseguia totalmente compreender.
— E como você sugere que façamos isso? — perguntei,
genuinamente curioso, me inclinando para mais perto do relatório
para acompanhar suas explicações, e consequentemente, para mais
perto dela. Puxei uma inspiração profunda e seu cheiro de baunilha
encheu meu nariz.
Maísa sorriu, encorajada pela minha pergunta, e começou a
detalhar sua proposta. Falava sobre renegociar contratos com
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fornecedores, implementar tecnologias mais eficientes e promover


uma cultura de inovação contínua entre a equipe.
— Acredito que, se formos proativos em buscar essas mudanças,
não apenas melhoraremos nossos resultados financeiros, mas
também reforçaremos nossa posição no mercado — concluiu ela,
seu olhar encontrando o meu. — Isso faz sentido para você? —
perguntou.
Balancei a cabeça, assentindo.
— Sim, faz todo o sentido. É uma análise é impressionante,
Maísa, Parabéns — reconheci e o sorriso que ela me deu em
resposta acendeu algo em mim. — Vamos implementar suas
sugestões e ver como podemos levá-las adiante.
— Obrigada, Henrique. Fico feliz que você tenha gostado da ideia
— disse ela, antes de voltar à sua mesa.
Enquanto tentava ordenar meus pensamentos, uma pergunta me
assombrava: como essa atração crescente afetaria nossa dinâmica
de trabalho?
Eu não queria comprometer a profissionalidade que sempre
pautou nossas interações, mas também não podia negar o que
sentia.
Decidi que precisava de um tempo para refletir sobre esses
sentimentos, para entender o que realmente significavam e como
deveria agir. Não era uma decisão que eu poderia tomar de ânimo
leve, considerando as implicações pessoais e profissionais
envolvidas.
À medida que a tarde avançava, encontrei-me observando Maísa
discretamente. Havia uma graça em sua postura, uma determinação
em sua expressão que me fazia admirá-la ainda mais.
Mas agora, havia também uma consciência aguda de sua
presença, uma espécie de eletricidade no ar sempre que estávamos
no mesmo ambiente.

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Quando o dia de trabalho finalmente chegou ao fim, e os outros
funcionários começaram a deixar o escritório, percebi que Maísa e eu
estaríamos novamente trabalhando até mais tarde.
O projeto em que estávamos envolvidos exigia nossa atenção
extra, e eu sabia que essa seria uma oportunidade para entender
melhor o que estava acontecendo entre nós.
No entanto, decidi que qualquer que fosse o rumo desses
sentimentos, eles não poderiam interferir na nossa relação
profissional. Maísa era uma parte valiosa da equipe da Borges &
Associados, e eu não arriscaria perder sua contribuição por causa de
uma atração pessoal não resolvida.
"Vamos focar no trabalho", disse a mim mesmo, tentando
canalizar minha energia para as tarefas à frente.
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O escritório, com seu habitual zumbido de atividade, parecia


estranhamente silencioso, embora o barulho ao redor continuasse o
mesmo. A causa dessa discrepância era simples e, ao mesmo tempo,
inexplicavelmente complexa: a mesa de Maísa, visível da minha
posição, estava vazia.
Ela estava em outro departamento, resolvendo algumas questões
pendentes, uma tarefa rotineira que, em qualquer outro dia, não
teria afetado minha produtividade.
No entanto, hoje, a ausência dela parecia ter lançado um véu de
inquietação sobre mim. Cada vez que levantava os olhos, esperando,
por algum motivo, vê-la ali, a realidade da cadeira vazia me
golpeava.
Tentei me concentrar nos relatórios que se acumularam à minha
frente, mas meus pensamentos insistiam em se desviar para a mesa
vazia, do lado de fora da minha sala, e para a conversa que
precisaria ter com sua dona assim que ela voltasse.
Até mesmo meu escritório, costumeiramente um reflexo da
ordem e eficiência que sempre busquei em minha carreira, parecia
estranhamente fora de lugar.
Cada detalhe nele havia sido escolhido com intenção, desde a
arte que adornava as paredes até os objetos que ocupavam as
prateleiras, criando um ambiente que refletia quem eu era e o que
valorizava.

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Era naquele espaço, que me sentia mais em casa, cercado pela
minha história, meus sonhos e os desafios que escolhi enfrentar.
Entretanto, naquele dia ele parecia incompleto, apenas porque eu
ainda não havia visto Maísa desde que chegara ao escritório.
Abaixei os olhos para a mesa, de design moderno e linhas limpas.
Ela ocupava uma posição central, cercada por prateleiras e armários
meticulosamente organizados. Os documentos e projetos em
andamento sobre ela imploravam pela minha atenção.
Expirei fundo, sentia-me tentado a me levantar e tentar trabalhar
na pequena área de estar, composta por duas poltronas de couro e
uma mesa de centro baixa, à minha esquerda. Não tinha visão da
mesa de Maísa dali, talvez funcionasse.
Meu coração acelerava ligeiramente toda vez que alguém passava
por sua mesa, uma reação involuntária nascida da expectativa
irracional de que fosse ela retornando.
Me peguei esfregando a têmpora, uma tentativa de aliviar a
tensão que se acumulou sem que eu percebesse. Focar no trabalho
tornou-se uma batalha, cada tarefa concluída uma vitória arrancada
da distração que Maísa, sem saber, lançou sobre mim, até a
monotonia da minha frustração ser quebrada pelo toque do telefone
sobre a minha mesa.
Hesitei por um momento antes de atender, um misto de alívio e
antecipação acelerando meu pulso.
— Henrique — a voz do outro lado era de Maísa.
Sua presença imediata, mesmo que apenas auditiva, preencheu
uma lacuna que eu não sabia que existia até aquele momento.
Ela explicou o motivo da ligação, algo relacionado à tarefa que foi
resolver, mas confesso que me perdi um pouco em sua voz. Havia
uma musicalidade nela que me cativava, e por um instante, permiti-
me apenas ouvir, sem realmente absorver as palavras.
— Você está aí, Henrique? — perguntou, uma leve risada em sua
voz, provavelmente percebendo minha distração.
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— Sim, desculpe, Maísa. Pode repetir a última parte? — pedi,


forçando minha atenção de volta ao motivo da ligação, embora parte
de mim desejasse prolongar esse contato, por mais profissional que
fosse.
Quando a ligação terminou, senti um misto de satisfação e
melancolia. Sua voz foi um bálsamo momentâneo para a inquietude
que senti durante sua ausência.
No entanto, agora, com o retorno ao silêncio do escritório, a
cadeira vazia de Maísa parecia mais pronunciada, ainda que ela
tivesse me dito que estaria de volta em alguns minutos. Um tipo
diferente de ansiedade se apoderou de mim e eu me levantei,
desistindo de vez dos papéis que deveria estar analisando.
Andei de um lado para o outro em meu escritório, ponderando a
decisão que tomei na noite passada. O projeto em que Maísa e eu
vínhamos trabalhando havia se tornado mais do que apenas uma
tarefa; era um teste das nossas habilidades e da nossa capacidade
de trabalhar sob pressão.
Até agora, tudo estava indo bem, melhor do que eu esperava, na
verdade. Maísa havia se mostrado uma parceira de trabalho
excepcional, trazendo insights valiosos e uma perspectiva que eu,
muitas vezes, negligenciava.
Contudo, um novo desafio se apresentava, algo que exigiria mais
de nós do que apenas competência profissional. Recebi um convite
para um jantar de negócios, uma reunião crucial para o futuro do
nosso projeto.
O convite era claro: deveria ser algo casual, longe da formalidade
dos escritórios e salas de conferência. Isso significava que levar
Maísa como minha secretária poderia enviar a mensagem errada.
Mas a ideia de não a ter ao meu lado, para captar detalhes que
eu poderia perder, não me agradava.
Depois de muito refletir, decidi que havia apenas uma solução
possível, embora fosse uma que me deixava desconfortavelmente

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ciente das implicações.
Assim que ela retornou à sua mesa, chamei Maísa à minha sala,
ensaiando mentalmente como abordaria o assunto sem parecer
completamente insano.
— Maísa, tem um momento? — perguntei quando ela entrou,
fechando a porta atrás de si.
— Claro, Henrique. O que posso fazer por você? — Sua voz era
tranquila, mas notei uma ligeira hesitação em seus olhos.
Talvez ela pressentisse que o que eu estava prestes a pedir não
era uma solicitação comum. Respirei fundo, tentando encontrar a
melhor maneira de explicar a situação sem causar um mal-
entendido.
— Como sabe, temos aquele jantar de negócios na próxima
semana, — comecei, observando sua reação. — A presença deles é
crucial para o projeto. No entanto, fui informado de que o encontro
deve ser o mais casual possível... o que me levou a pensar.
Ela me olhava com atenção, claramente tentando antecipar onde
aquela conversa estava indo.
— E...? — incentivou, quando parei, procurando as palavras
certas.
— Preciso que você vá comigo. Mas não como minha secretária
— pausei, avaliando sua expressão. — Gostaria que você fosse como
minha acompanhante... minha namorada, para ser mais específico.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Maísa piscou algumas
vezes, processando o pedido. Sua surpresa era evidente nos olhos
escuros e nos lindos lábios cheios, hoje pintados com um batom
rosa choque, e por um breve momento, questionei a sanidade da
minha proposta.
— Henrique, isso é... inesperado. — Sua voz era cautelosa, mas
não havia censura nela, apenas surpresa. — Você tem certeza de
que é a melhor maneira de lidar com isso?
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— Acredite, não é uma decisão que tomei de ânimo leve. —


Forcei-me a manter o contato visual. — Sua presença lá é vital,
Maísa. Você tem uma visão aguçada para os detalhes, uma
habilidade que pode ser decisiva nesse jantar. Fingir... bem, é
apenas uma maneira de garantir que possamos participar sem
levantar suspeitas.
Ela ficou em silêncio por um momento, pensativa. Suas mãos
percorreram as longas mechas castanhas sobre os ombros e os cílios
longos balançaram para cima e para baixo antes de minha secretária
finalmente assentir.
— Entendo a importância disso para o projeto. E... confio em
você, Henrique. Se acredita que essa é a melhor abordagem, então
estou dentro. — Sua decisão foi firme, embora eu pudesse perceber
a leve tensão que acompanhava suas palavras.
— Obrigado, Maísa. — A gratidão em minha voz era genuína. —
E, por favor, se em algum momento se sentir desconfortável com
isso, me avise. Não quero que se sinta pressionada.
Ela sorriu levemente, um gesto que aliviou parte da tensão no ar.
— Farei isso, — ela prometeu, e algo naquele sorriso me fez
acreditar que, apesar do inusitado da situação, talvez pudéssemos
fazer isso funcionar.
Conforme ela saía da sala, uma mistura complexa de alívio e
apreensão tomou conta de mim.
Estávamos prestes a entrar em um território desconhecido,
fingindo ser um casal para o bem de um projeto. As implicações
disso eram vastas e variadas, mas uma coisa era certa: nossa
relação profissional estava prestes a ganhar uma nova dimensão.

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Eu estava quase pronta, só me faltava uma última dose de
coragem.
Meus olhos vagaram do meu próprio reflexo para as janelas,
observando a noite sem fim de São Paulo. Senti meu estômago se
revirar em ansiedade, e o cronômetro que se instalou em minha
cabeça não pausou.
Engoli em seco e voltei a me encarar. O espelho de corpo inteiro
no meu quarto mostrava uma mulher pronta para um jantar
importante. O vestido que comprei com o cartão corporativo foi
escolhido especialmente para a ocasião e custou quase o dobro do
meu salário de secretária.
Henrique não aceitou uma negativa. Ele exigiu que fosse a Borges
a arcar com os custos da minha preparação, já que mesmo que a
peça sofisticada e com um decote um pouco mais profundo do que
seria adequado para um ambiente profissional, fosse perfeita para
um encontro, o jantar para o qual eu estava prestes a ir era um
evento de trabalho.
Eu precisava continuar lembrando a mim mesma disso.
A forma como o tecido se agarrava a cada umas das minhas
curvas, ressaltando-as de um jeito sensual, ao mesmo tempo em
que elegante, me fazia sentir confiante e, de certa forma,
vulnerável.
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O tecido caía de maneira lisonjeira, a cor complementando meu


tom de pele, enquanto meu cabelo, cuidadosamente arrumado,
emoldurava meu rosto. E havia algo mais nos meus olhos, uma
curiosidade sobre como seria se esta não fosse uma ocasião
estritamente profissional, ou seria um desejo?
O toque do interfone cortou o silêncio do meu apartamento,
anunciando a chegada de Henrique. Uma onda de nervosismo me
percorreu, arrepiando minha pele e misturando-se à antecipação
pelo que estava por vir.
Esta noite seria um passo importante para o projeto em que
estávamos trabalhando, uma oportunidade de solidificar relações e
avançar com nossos planos. Mas, em algum lugar no fundo da
minha mente, eu me perguntava como seria passar uma noite fora
do contexto do escritório com Henrique.
Desci para encontrá-lo, meu coração batendo um pouco mais
rápido do que o habitual. Ao abrir a porta do prédio, lá estava ele,
um vislumbre do Henrique que eu conhecia do escritório, mas
também alguém um pouco diferente, talvez mais relaxado, fora do
ambiente corporativo.
O terno de corte perfeito abraçava o corpo grande e musculoso,
mas essa noite meu chefe não usava uma gravata. Ele me ofereceu
um sorriso pequeno, de canto, enquanto seus olhos me analisavam
de cima a baixo. Ousei dar uma voltinha.
— E então? Fiz um bom investimento — brinquei.
— Você está impecável — respondeu e era um absurdo, mas senti
minhas bochechas corarem diante do elogio raso.
— Obrigada — expirei pela boca e os olhos de Henrique faiscaram
de um jeito que eu nunca tinha visto antes.
Dei os passos que nos mantinham separados, mas não tive a
coragem necessária para sustentar seu olhar, então me concentrei
em limpar uma poeira inexistente do meu vestido. Por que meu

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coração estava batendo tão acelerado? Por que eu sentia que
respirar tinha se tornado uma tarefa tão difícil, de repente?
O cheiro de Henrique me envolveu como um abraço. Madeira, um
toque de menta, e um sopro alcoólico, como se ele tivesse acabado
de tomar uma dose do uísque que tanto gostava. E quando senti o
toque quase carinhoso, e ainda assim, firme, de dois dedos sob o
meu queixo, cada pelo do meu corpo se arrepiou.
Me obriguei a encarar aqueles olhos profundos.
No silêncio da noite paulista, nos encaramos sob respirações
controladas demais para o ritmo frenético do meu próprio coração.
— Estou nervosa — consegui me forçar a admitir.
— Por que? — perguntou, soando tão interessado que eu quise
revelar a verdade imediatamente.
— Não quero estragar tudo. É o meu primeiro jantar de negócios
— ofereci uma meia verdade e Henrique sorriu como se eu tivesse
acabado de lhe dizer o maior dos absurdos.
— Você não conseguiria estragar tudo nem se tentasse, Maísa.
Falei sério quando disse que sua presença era fundamental.
Mais um elogio.
Eles vinham se tornando comuns nas últimas semanas. E eu sabia
que essa era apenas mais uma estupidez da minha parte, mas meu
coração errava uma batida a cada vez que ouvia um. Sorri, adorando
ouvir meu nome em sua voz enrouquecida.
— Vou te lembrar disso — brinquei e Henrique espelhou meu
sorriso.
— Você já faz isso. O tempo todo.
Ele acenou na direção do SUV preto enorme, parado em frente ao
meu prédio, e quase agradeci aos anjos quando Henrique se virou
para fazer isso, perdendo a expressão boba que tomou conta do
meu rosto.
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Me concentrei em colocar um pé na frente do outro sobre os


saltos muito altos e finos, depois, em me sentar de maneira elegante
no carro sofisticado em que me acostumei a andar, sendo secretária
de Henrique e me movendo com ele pela cidade ao longo das
últimas semanas.
Embora, eu devesse admitir, era estranho que esse carro
estivesse parado no meio fio da minha rua simples de prédios
pichados e casas pequenas. O motorista deu partida e meu chefe
subiu a divisória, fechando-nos no espaçoso banco de trás que
acomodaria, confortavelmente, pelo menos oito pessoas.
Não era a primeira vez que acontecia, já havíamos estado
naquela mesmíssima posição inúmeras vezes, discutindo agenda ou
qualquer outro tópico de trabalho que não fosse para os ouvidos de
Ivan, o motorista de Henrique. Ainda assim, naquela noite, o
isolamento parecia completamente diferente.
Lutei com meus pulmões, exigindo que liberassem ar para o resto
do meu corpo e eles não me deram mais do que o mínimo.
— Então — Henrique começou, parecendo um pouco hesitante, e
olhei para ele, piscando. — Acho que podemos ter cometido um
erro.
— Um erro? — questionei, e agora meu coração batia como a
bateria de uma escola de samba.
— Deixamos uma variável de fora.
— Que variável?
— Quando eu disse à Augusto que levaria minha namorada ao
nosso jantar, ele ficou muito satisfeito e me disse que levaria a
própria esposa também. Nosso jantar de negócios, de alguma
forma, se transformou em uma saída de casais. — Abri a boca, mas
nenhum som saiu dela enquanto meus olhos se arregalavam. —
Nosso objetivo continua sendo o mesmo — ele garantiu. — Mas
talvez precisemos ajustar nossos comportamentos?

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— Co... — comecei, mas ao me dar conta de que ia gaguejar,
limpei a garganta. — Como?
— Podemos nos guiar pela forma como Augusto e a esposa se
portarão, mas acredito que alguns toques serão necessários, e é
muito possível que assuntos pessoais sejam tão discutidos quanto os
profissionais — Meu choque deve ter ficado estampado em meu
rosto, porque Henrique passou as mãos pelos cabelos, amaldiçoando
baixinho. Eu definitivamente não havia considerado nada daquilo
quando disse sim. — Me desculpe, Maísa. Nós podemos... Podemos
cancelar o jantar. Ainda há tempo. Não quero que você se sinta
desconfortável e...
— Não — o interrompi. — Não é isso, eu não estou desistindo. Só
realmente não tinha pensado em nada disso — falei rápido, só Deus
sabe por que com tanta pressa de colocar as palavras para fora. —
Estou bem — garanti. — Só fui pega de surpresa.
— Tem certeza? — questionou, parecendo torturado com a ideia
de que eu não estivesse bem e isso fez meu coração mudar de ritmo
outra vez.
— Absoluta. Só me dê um minuto, tudo bem?
—Tudo bem.
Henrique ficou em silêncio e minha mente correu em volta de si
mesma, lidando com as próprias expectativas, muitas delas
completamente fantasiosas, antes que eu voltasse a falar.
— Muito bem, precisamos definir algumas coisas — disse e
Henrique soltou uma risada que me fez piscar. — O que foi?
— Você. Sempre muito eficiente.
Minhas bochechas coraram outra vez.
— Me diga coisas sobre você. Coisas básicas, que uma namorada
saberia. Sei que você mora em uma cobertura, nos Jardins, e que
pode ir andando para o trabalho. Sei que você não toma chá e não
suporta laranja, e que se permite furar sua dieta equilibrada para
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comer chocolate apenas aos fins de semana, mas não sei sua cor
preferida. Você tem uma? E bichos de estimação? Você não tem
nenhum, certo? Mas gostaria de ter?
Henrique me observou em silêncio pelo que pareceu uma
eternidade antes de me responder.
— Como você sabe que não suporto laranja?
Mordi o lábio, constrangida, mas dei de ombros.
— Sou observadora.
O olhar que meu chefe me deu em resposta dizia que isso era
algo que ele já sabia a meu respeito.
— Marrom. Marrom é uma cor preferida.
Eu ri.
— É uma cor estranha para ser a preferida de alguém.
— Não me admira que você prefira o seu amarelo. — Meus olhos
se arregalaram levemente. — É essa a sua cor preferida, não é?
Amarelo? — Balancei a cabeça, concordando. — E não tenho um
animal de estimação. Tive um cachorro, na infância. Ele se chamava
Thor e era um vira-lata caramelo. Nunca me recuperei de sua perda.
Mas talvez, no futuro, deseje sim ter outro. Hoje em dia, não acho
que seria justo com o animal. Eu quase não fico em casa. —
Balancei a cabeça, concordando, sentindo-me incapaz de dizer
alguma coisa coerente, ainda me perguntando como ele poderia
saber qual era a minha cor preferida. — E você? Algum anima de
estimação?
— Tamagotchis[1] contam? — consegui brincar e Henrique riu.
— Acho que sim.
Ele piscou para mim. Limpei a garganta outra vez.
— E além de pedalar, você tem algum outro Hobbie?
Um brilho transpassou em seu olhar escuro, outra vez. Como se,
de novo, eu o tivesse surpreendido por saber de algo que Henrique

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nunca me contou com palavras. Mas eu era sua secretária, saber de
coisas a seu respeito fazia parte do meu trabalho.
O oposto, no entanto, era completamente injustificável, e quando
ele me respondeu com outra pergunta, senti-me ainda mais afetada.
— Não. — Ele balançou a cabeça de um lado para o outro. — E
você? Algum além da fotografia?
— Caminhadas — admiti, — mas um meio que completa o outro.
Você é um namorado ciumento, Henrique? — mudei de assunto
quando o silêncio que se estabeleceu entre nós ficou pesado demais.
Eu pretendia fazer uma brincadeira, até sorri ao terminar de dizer
as palavras, mas algo no olhar do meu chefe mudou quando desceu
do meu rosto até os meus pés, no carpete do carro, antes de voltar
para os meus olhos, fazendo uma pequena pausa em meus lábios.
— Nunca fui, mas se fosse você a minha namorada, Maísa, tenho
a impressão de que eu seria. Seria, sim — respondeu com firmeza, e
lutei contra o estremecimento que quis atravessar meu corpo inteiro.
Já era ruim o bastante que eu tivesse gostado tanto de suas
palavras. Eu não precisava demonstrar isso. Principalmente porque a
noite estava só começando. Ainda tínhamos um jantar inteiro pela
frente... E toques... Eu não podia me esquecer dos toques.
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O céu da cidade tinha um tom profundo de azul, quase negro,


quando o caro se aproximou do restaurante escolhido para o jantar
de negócios com Augusto e sua esposa, Beatriz.
A atmosfera era uma mistura de expectativa profissional com uma
leve tensão, fruto da situação inusitada de compartilhar uma mesa
não apenas com parceiros de negócios, mas com um casal que, de
certa forma, refletia um espelho distorcido do que Maísa e eu
poderíamos parecer aos olhos externos.
A preparação para esse encontro havia sido meticulosa. Revisei
mentalmente os pontos chave que precisávamos discutir, as metas
do projeto que estávamos ansiosos para avançar e as concessões
que estávamos dispostos a fazer.
Ao mesmo tempo, uma parte de mim estava curiosamente atenta
à Maísa, à sua presença ao meu lado, mais vibrante e significativa
do que os dossiês que repousavam no banco traseiro do carro.
Maísa havia escolhido para a ocasião um vestido que combinava
elegância com sensualidade, uma escolha que falava muito sobre
seu senso de adequação ao contexto.
O corte e a cor escura complementavam sua postura confiante, e
não pude deixar de notar a forma como a luz suave do painel do
carro iluminava seu rosto, destacando traços de concentração
misturados com uma leve ansiedade.

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— Você está pronta para isso? — perguntei, quebrando o silêncio
que havia se instalado desde que nos concentramos em revisar as
pastas espalhadas ao nosso redor.
— Sim, — ela respondeu, com convicção. — Temos uma proposta
sólida.
Sorri, satisfeito.
Isso era uma coisa que eu vinha fazendo frequentemente quando
Maísa estava por perto, sorrir. As perguntas sem respostas que eu
vinha me fazendo desde o evento beneficente se espalharam pelos
meus pensamentos outra vez.
Era um equilíbrio delicado, uma dança entre o profissional e o
pessoal que, até aquele momento, havíamos conduzido com uma
habilidade surpreendente, mas que eu me sentia cada vez mais
perto de errar o passo.
A cada dia, a vontade de olhar para ela o tempo todo se tornava
mais sobrepujante. A voz doce se tornara uma melodia quase
hipnótica, da qual eu não me cansava nunca. Me pegava fazendo
perguntas para as quais eu já sabia a resposta, apenas para ouvi-la
falar.
E esta noite, quando Maísa surgiu, passando pelas portas do
pequeno prédio em que vive, precisei de cada grama de
autocontrole que habita meu corpo para não a beijar. Honestamente,
ainda não sei o que pensar sobre isso.
Ser um homem controlado é algo de que sempre me orgulhei,
mas, a cada dia na companhia de Maísa, eu me sinto um pouco
menos dono das minhas próprias vontades, mas não consigo resistir.
Vê-la nesse vestido, com cada curva exposta e ressaltada, a boca
vermelha e os olhos ansiosos, acionou algo em mim que eu nem
mesmo sabia que estava lá. E falei sério, muito sério, quando disse
que seria um namorado ciumento se ela fosse minha.
Maísa é tão inteligente, divertida. Há uma leveza nela, uma
vivacidade, que nunca encontrou espaço em mim, mas que ao longo
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das últimas semanas, percebi se infiltrar em minha vida, mais e


mais, a cada dia, simplesmente por causa da sua presença. Da sua
companhia.
Chegamos ao restaurante, e encontramos Augusto e Beatriz já
nos aguardando.
Ao adentrarmos o restaurante, Augusto e Beatriz já se
encontravam à mesa, antecipando nossa chegada. A atmosfera do
encontro começou a se desenhar a partir do momento em que
nossos olhares se cruzaram. Augusto se levantou primeiro,
estendendo a mão com uma confiança que parecia inerente à sua
postura.
— Henrique, é um prazer finalmente conhecê-lo pessoalmente.
Sou Augusto — disse ele, seu aperto de mão firme transmitindo uma
energia calorosa e acolhedora.
— O prazer é meu, Augusto. Tenho ouvido falar muito bem de
você e de seus projetos — respondi, sentindo uma conexão imediata
que transcendeu o protocolo usual de encontros de negócios.
Logo em seguida, Beatriz se aproximou com uma graça que não
comprometia sua presença assertiva. Ela me ofereceu um sorriso
que iluminou o ambiente, um prelúdio da inteligência e perspicácia
que logo viriam à tona.
— E eu sou Beatriz. Estou ansiosa para trocarmos ideias e ver
onde essa conversa nos levará — sua voz, embora suave, carregava
um peso de autoridade e conhecimento.
— Beatriz, é uma honra. Sua reputação como uma mente
brilhante nos negócios certamente precede você — cumprimentei-a.
— Esta, senhores, É Maísa, minha namorada — apresentei e a
palavra soou tão doce na minha língua, que, por um segundo, fiquei
levemente atordoado e fui o último a me sentar.
— Que casal lindo eles são, não é, amor? — Beatriz perguntou ao
marido.

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— Não mais do que nós — ele garantiu, tocando seus lábios nos
dela com suavidade e arrancando uma risada de todos nós.
O garçom se aproximou para anotar nossos pedidos, e foi nesse
interlúdio que a conversa começou a fluir mais livremente, num
diálogo mais descontraído, pontuado por trocas de experiências e
visões de futuro.
Augusto tinha uma presença imponente, complementada por um
sorriso fácil e uma conversa que fluía naturalmente. Beatriz, por sua
vez, equilibrava a equação com sua perspicácia e observações
afiadas, demonstrando um entendimento profundo do mercado e
das nuances dos negócios.
— Então, Henrique, como têm sido as coisas para você e sua
equipe ultimamente? — Augusto perguntou, iniciando um diálogo
que rapidamente evoluiu de formalidades para uma troca genuína de
experiências e ideias.
— Temos enfrentado nossos desafios, como todos, mas é
exatamente isso que nos mantém motivados. E vocês? Como têm
navegado pelas mudanças recentes no mercado? — retruquei,
interessado em compreender melhor suas perspectivas e
abordagens.
Beatriz aproveitou a deixa para compartilhar suas observações,
tecendo comentários que revelavam não apenas um entendimento
profundo do mercado, mas uma visão estratégica para o futuro.
— O mercado está sempre mudando, mas é na adaptação e na
inovação que encontramos nossas maiores oportunidades. Estamos
explorando algumas novas abordagens que, espero, nos colocarão à
frente — disse ela, seu olhar brilhando com a paixão de quem
verdadeiramente ama o que faz.
Maísa, ao meu lado, acompanhava a conversa com uma atenção
aguda, intercalando com contribuições oportunas que não apenas
destacavam sua inteligência, mas também a profundidade de sua
compreensão sobre o projeto em questão.
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A noite se desenrolou nesse ritmo, entre risos e discussões sérias.


Era evidente, à medida que o jantar prosseguia, que estávamos não
apenas construindo pontes profissionais, mas também
estabelecendo um terreno comum em um nível mais pessoal.
A comida era excelente, uma combinação de sabores que servia
como pano de fundo para uma noite de negociações e,
inesperadamente, de descobertas.
— Então, lá estávamos nós, imaginando uma reunião comum em
um escritório tradicional, — começou Augusto, o brilho em seus
olhos prenunciando uma boa história. — E o que encontramos? Uma
conferência no meio de um vinhedo!
Beatriz interveio, rindo:
— E Augusto aqui decidiu que seria uma boa ideia usar o drone
para capturar a reunião, para o nosso site. O que ele não percebeu
foi o quão perto estava de uma árvore.
— Eu estava capturando o ângulo perfeito! — Augusto protestou,
embora seu sorriso traísse seu divertimento com a própria história.
— Até que o drone decidiu fazer amizade com os galhos. Um resgate
dramático seguiu.
Maísa soltou uma risada divertida e eu adorei o som.
— E quem teve que escalar a árvore para salvar o dia? —
perguntou, já antecipando a resposta.
— Nossa heroína, Beatriz, é claro, — respondeu Augusto,
apontando para sua parceira com uma mistura de admiração e
humor. — Com sapatos de salto e tudo!
— A regra agora é: drones no chão, a menos que tenhamos uma
equipe de resgate pronta, — Beatriz acrescentou, provocando mais
risadas. — Agora, Henrique, você deve ter uma história para
compartilhar também, não? — Beatriz me lançou um olhar curioso, o
desafio evidente em sua voz.

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Eu sorri, mesmo que não precisasse vasculhar minha mente atrás
de memórias que pudessem se equiparar à leveza e ao humor da
deles. Eu sabia que não as tinha.
— Na verdade, não tenho — admiti. — Não costumo fazer
reuniões fora do escritório, mas se essa aqui for um parâmetro,
talvez eu passei a fazer mais delas.
Beatriz sorriu brilhantemente diante do elogio sutil, os olhos azuis
praticamente vibrando, e Augusto soltou uma risada.
— Viu só, meu bem? — perguntou, segurando a mão da esposa e
levando-a até os lábios para deixar um beijo. — Estamos mudando
vidas — brincou, mas o que disse depois, era sério. — Na verdade,
fiquei bem surpreso por você ter aceitado essa reunião fora da
Borges. Sua fama te precede, Henrique.
Foi a minha vez de segurar a mão da mulher ao meu lado. Os
dedos de Maísa eram mornos e suaves contra os meus. Corri o
indicador e o médio até seu pulso, sentindo o ritmo acelerado ali
antes de erguer sua mão e deixar um beijo nas costas dela.
— Vocês não são os únicos mudando vidas — respondi a Augusto
com o mesmo tom de divertimento que ele imprimiu em suas
palavras, fazendo-o rir outra vez.
— A mudanças bem-vindas — Beatriz ergueu a taça em um
brinde.
— A mudanças bem-vindas — repeti, erguendo minha taça, mas
ao fazer isso, foi impossível olhar para qualquer lugar que não o
rosto de olhos escuros que também estava focado em mim.
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Depois de quase uma hora ouvindo-o enquanto copiava uma série


de documentos importantes, o zumbido constante emitido pela
máquina de cópias a cada vez que eu pressionava o botão era tão
irritante quanto a determinação da minha mente, rebelde, em se
desviar em direção a Henrique.
Ainda que meu corpo estivesse sendo embalado pelos sons
mecânicos e envolto no aroma peculiar de papel fresco, uma parte
significativa de mim se encontrava em outro lugar, capturando
qualquer nuance da presença dele no escritório.
A cada tentativa de focar nas páginas que emergiam da
copiadora, a imagem de Henrique invadia meus pensamentos sem
permissão.
Pensava no seu sorriso ao desvendar algum problema complexo,
na seriedade com que ele tratava todos à sua volta, sempre
imparcial, sempre atento. Porém, mesmo sabendo que deveria me
concentrar na tarefa que tinha em mãos, meu esforço para me
desviar desses pensamentos era em vão.
— Concentre-se, Maísa — murmurei para mim mesma, uma
reprimenda fraca à minha distração incessante.
Meu coração, um traidor, parecia bater um pouco mais rápido
com cada pensamento nele, uma reação física que eu lutava para
ignorar.

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Inspirei profundamente, tentando fixar minha atenção no som
monótono da copiadora, na contagem das folhas, paredes pintadas
em um tom neutro de cinza que, em qualquer coisa que não fosse
Henrique.
Olhei para a janela pequena, alta na parede. O sol já se despedia,
era quase fim do expediente e talvez passar o restante do meu
horário na sala que era um testemunho da rotina administrativa do
escritório fosse mesmo minha melhor opção.
Pelo menos aqui eu podia me perder em meus pensamentos,
longe dos olhares curiosos e do medo constante de ser pega no
flagra. Aqui, minhas fantasias bobas se sentiam livres para povoar
minha mente como se tivessem alguma chance de se tornarem
realidade.
Cada interrupção da máquina, um olhar involuntário para a porta,
na esperança irracional de vê-lo entrar, que servia apenas como
lembrete de que Henrique, de algum modo, havia se aninhado no
cerne dos meus pensamentos.
E o que mais me confundia era não conseguir definir o momento
em que ele deixou de ser apenas meu chefe para se tornar algo...
mais.
Senti minhas bochechas aquecerem com a mera ideia, uma
reação que fervorosamente esperava que ninguém estivesse por
perto para perceber. Era ridículo, convenci a mim mesma, precisando
acreditar que o que sentia era somente admiração profissional, e
que esses devaneios eram uma distração desnecessária.
— Isso não é profissional, Maísa — sussurrei, quase convencida
de que verbalizar a crítica me faria acreditar nela.
Mas a verdade era que, por mais que tentasse negar, existia uma
faísca de interesse que eu não conseguia apagar. Não quando cada
pequeno detalhe sobre ele se mostrava tão cativante, não quando a
ideia de simplesmente conversar com ele me enchia de uma
antecipação quase insuportável.
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Assim que as cópias ficaram prontas, forcei-me a sair da sala, a


tarefa concluída, mas a batalha interna longe de acabar. Ao retornar
à minha mesa, agarrei-me à determinação de focar no trabalho, de
esquecer esses pensamentos sobre Henrique.
Faltava pouco para o fim do expediente e eu senti cada volta do
relógio com as batidas do meu coração enquanto me esforçava para
não olhar na direção do meu chefe.
O crepúsculo já dava lugar à noite completa quando o silêncio
concentrado do escritório foi interrompido pelo som insistente de um
e-mail chegando.
Estava prestes a guardar meus pertences, pronta para encerrar
mais um dia, quando vi Henrique pausar, a atenção completamente
voltada para a tela do computador. Sua expressão, uma mistura de
surpresa e preocupação, fez com que eu me aproximasse.
— Algum problema, Henrique? — perguntei, tentando disfarçar
minha curiosidade com uma preocupação profissional.
Uma mecha do meu cabelo cobriu a lateral do meu rosto quando
coloquei a cabeça para dentro de seu escritório. Henrique me olhou
por um segundo, como se avaliasse a melhor forma de compartilhar
a notícia.
— Recebemos um feedback negativo de um cliente sobre o
projeto Aurora. Parece que vamos ter que revisar algumas partes
ainda hoje, — explicou, o peso de cada palavra refletindo a
seriedade da situação.
— Eu fico. Podemos resolver juntos, — declarei sem hesitar.
Meu chefe afundou os dentes no lábio inferior, observando-me
como vinha fazendo com uma frequência cada vez maior nos últimos
dias. Meu corpo inteiro respondeu e, por um breve segundo, pensei
que talvez não fosse uma boa ideia passarmos a noite sozinhos no
escritório, mas afastei o pensamento.
— Tudo bem, mas peça o nosso jantar antes. Se vou prendê-la
aqui por sabe Deus quanto tempo, vou pelo menos alimentá-la antes

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— brincou e eu sorri.
Estava aprendendo a adorar quando ele brincava comigo, quando
me mostrava vislumbres de um Henrique que ninguém além de mim
enxergava dentro da empresa. Eu me perguntava se, e até desejava,
que também não vissem fora dela.
— O que você quer comer?
— Você escolhe — disse sem demonstrar qualquer preocupação.
Eu ri.
— E se eu decidir pedir um balde cheio de algodão doce.
Henrique deu de ombros. Acho que foi a primeira vez que o vi
fazer um gesto tão banal quanto esse.
— Meu preferido é o de céu azul.

Passamos as horas seguintes ao jantar mergulhados no projeto,


analisando cada detalhe e discutindo possíveis soluções. Era um
trabalho detalhista, exigindo nossa total concentração e colaboração.
O cliente em questão era importante. Todos eram, no fim das
contas, mas esse, especificamente, era o responsável por uma
porcentagem considerável da receita do nosso último trimestre. Nós
fizemos mais de um projeto para ele.
Sua insatisfação era grave o suficiente para que estivéssemos
dispostos a virar a noite, se necessário.
Entre gráficos, relatórios e inúmeras trocas de e-mails, o tempo
parecia distorcido, estendendo-se indefinidamente enquanto
buscávamos a perfeição.
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E assim, mergulhamos na tarefa, cada um trazendo suas forças


para enfrentar o desafio inesperado. Henrique, com sua visão
estratégica, e eu, com minha atenção aos detalhes e capacidade de
encontrar soluções criativas, formávamos uma equipe dinâmica,
mesmo sob pressão.
À medida que a noite avançava, nosso trabalho se tornava mais
intenso, mas também mais colaborativo. Entre discussões técnicas e
avaliações meticulosas, surgiam momentos de leveza, pequenas
trocas que revelavam mais sobre nós do que os habituais diálogos
de trabalho permitiam.
— Sabe, — comecei, aproveitando um breve intervalo enquanto
esperávamos uma resposta por e-mail, — não achei que teria a
oportunidade de trabalhar em projetos como esse tão cedo —
admiti.
Henrique me olhou, um vislumbre de apreciação em seus olhos.
— Você conquistou seu espaço, o mérito é todo seu. O que me
lembra, empolgada para sua primeira viagem de negócios?
O sorriso que se abriu em meu rosto foi enorme.
— Honestamente?
— Sempre.
— Muito! Todos os detalhes já foram acertados, hotéis,
passagens, a agenda. Tudo está disponível na sua agenda, se você
quiser conferir.
— Confio em você —garantiu e meu peito se inflou com um
sentimento delicioso.
— Dois eventos de gala em um trimestre? Uma viagem para
outro estado? Essas são outras coisas que não imaginei que faria tão
cedo.
— De novo, Maísa, o mérito é todo seu.
Nos encaramos e deixei que meus dentes afundassem no meu
lábio inferior. Minha respiração se tornou mais rasa quando meu

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olhar caiu para a boca de Henrique. Meu corpo inteiro parecia lutar
comigo para se aproximar dele e resistir a essa vontade era algo
quase doloroso. Limpei a garganta.
— Me conte alguma coisa que você achou que levaria mais tempo
para fazer do que realmente levou, na sua vida profissional — pedi,
me obrigando a me concentrar em outra coisa que não fossem as
vontades apertando meu estômago.
— Meu primeiro contrato bilionário — respondeu de imediato e
arqueei uma sobrancelha.
— Não parece muito modesto da sua parte responder tão rápido.
Henrique riu. Deus, como eu amava aquele som. Era tão raro de
se ouvir.
— Da próxima vez, vou fingir que preciso pensar — garantiu.
Outra vez, nossos olhares se prenderam e o ar ao nosso redor
pareceu se tornar mais pesado. Minutos que pareciam uma
eternidade se arrastaram entre nós enquanto um silêncio delicioso
se estendia até ser quebrado pelo som da chegada do e-mail que
aguardávamos.
Meu chefe ainda levou alguns segundos para se concentrar na
tela do computador, mas quando o fez, não demorou a me dar um
parecer.
— Temos o que precisamos.
Dividimos as tarefas: ele focaria na análise dos dados e na
elaboração de uma estratégia para mitigar os impactos negativos,
enquanto eu prepararia toda a documentação necessária para a
implementação das mudanças.
À medida que as horas avançavam, o silêncio do escritório vazio
se tornava um companheiro constante, pontuado apenas pelo som
de nossos teclados e pela ocasional troca de ideias sobre como
abordar o problema.
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Quando terminamos tudo e preparamos o e-mail de resposta ao


cliente, compartilhamos um olhar de cumplicidade e alívio. Já
passava das três e meia da manhã.
— Conseguimos, — ele disse, com a voz cheia de uma satisfação
vitoriosa.
— Sim, conseguimos. — sorri em resposta.
— Você está de folga amanhã — me avisou. — quer dizer, hoje.
— Não há necessidade disso, Henri...
— Não é negociável. Nos vemos na segunda, no aeroporto —
declarou e meu estômago vibrou em resposta.
Se de saudade antecipada ou de ansiedade pela viagem que
estava por vir, eu não sabia dizer.

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A manhã de sábado trouxe consigo, uma pausa bem-vinda na
rotina frenética que eu havia estado imersa desde que comecei a
trabalhar na Borges & Associados.
A ordem do dia era aproveitá-lo para organizar minhas coisas e
me preparar para a viagem que estava por vir.
— Meu estômago parece estar dando cambalhotas por causa
dessa viagem, Geórgia, — confessei enquanto ajustava a posição de
uma das minhas plantas favoritas na janela.
A luz do sol da manhã banhava o apartamento, criando um
ambiente acolhedor que sempre me tranquilizava, mas não nos
últimos dias.
Desde a confirmação da viagem, nada me tranquilizava. Muito
pelo contrário, era como se cada minuto avançado pelo relógio
disparasse uma nova onda de ansiedade em meu peito.
— Você vai arrasar, Maísa. Você sempre faz, — Geórgia respondeu
com uma confiança que eu gostaria de sentir.
Sua imagem na tela do celular sorria para mim, um lembrete do
apoio incondicional que eu tinha da minha família, não importava a
distância.
— Sei que já estive num evento gala com Henrique, mas esse é...
Diferente. As coisas parecem diferentes — admiti, movendo-me pelo
apartamento até chegar ao meu quarto.
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As portas do armário pequeno já estavam abertas, e a mala de


viagem também já estava escancarada sobre a cama. Deixei o
telefone apoiado sobre a mesa de cabeceira e voltei à tarefa de
mexer nos cabides, pegando peças de roupa e avaliando o que levar.
— Diferentes como? — Geórgia perguntou e eu parei de andar,
me virando para a câmera com os lábios unidos em um bico.
— Você precisa prometer não surtar — pedi, mas foi o mesmo
que dizer para que ela fizesse o extremo oposto. Geórgia riu, um
som que sempre trazia um pouco de casa para mim, não importa
onde eu estivesse, ou que fosse eu o motivo da risada.
O sorriso que ficou em seu rosto mesmo depois que a gargalhada
silenciou era enorme, como se Geórgia já soubesse exatamente o
que eu estava prestes a dizer, e expirei longamente, tomando
coragem.
Eu precisava dividir meus pensamentos com alguém, ou iria
explodir. E não é como se eu pudesse fazer isso com qualquer outra
pessoa. Geórgia era minha melhor amiga.
— Sou toda ouvidos — anunciou, como se estivesse lendo meus
pensamentos e eu pude ouvir o barulho de panelas ao fundo. Minha
irmã tinha sumido do alcance da câmera por um momento, sinal de
que ela estava, como sempre, multitarefando.
— Você acha... — comecei, mas não consegui terminar. Fechei os
olhos brevemente e expirei devagar, de novo antes de recomeçar. —
Você acha... Que é possível se apaixonar por alguém, mesmo sem
que essa pessoa nunca tenha te dado abertura para isso?
Cuspi meu maior medo de uma vez e ao invés de me sentir
aliviada com isso, a sensação foi a de que um caminhão tinha
acabado de ser jogado em cima de mim, me esmagando, porque
bastou que as palavras deixassem a minha boca para que se
tornassem uma verdade inegável: eu estava apaixonada por
Henrique Borges.

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O sentimento chegou de mansinho, se escorando na admiração e
na curiosidade, mas a cada troca, a cada olhar, a cada noite
trabalhada até mais tarde e pequeno vislumbre que ele me dava do
homem por trás do empresário, eu era mais atraída em sua direção,
como uma mariposa estúpida voando na direção da luz.
O ar me faltou e meus olhos se arregalaram. A gargalhada de
Geórgia encheu meus ouvidos, mas parecia distante, abafada, diante
do meu pânico crescente com a verdade que eu havia acabado de
tornar impossível de negar: apaixonada. Eu estava apaixonada pelo
meu chefe.
— Calma, Maísa — Geórgia disse, percebendo que eu não estava
me acalmando conforme os minutos avançavam. — Não é nada
demais. As pessoas se apaixonam o tempo todo, não precisa surtar.
Sentei-me na beira da cama com um suspiro.
— Ele é meu chefe — declarei, escondendo o rosto com atrás das
mãos, e jogando o tronco sobre o colchão, por cima das roupas
espalhadas nele.
— E um gostoso... Que te trata bem... Com quem você vem
passando muito tempo... Aliás, a única pessoa com quem você
realmente tem passado tempo nos últimos meses.
As palavras de minha irmã me fizeram franzir a testa e tirar as
mãos do rosto para encará-la. Geórgia estava de volta à frente da
câmera.
Seus cabelos pintados de loiro estavam soltos numa bagunça,
balançando sobre a celular. Ela estava inclinada sobre o balcão do
caixa da padaria já fechada para falar comigo.
— Será que é só disso que eu preciso? Conhecer outras pessoas?
Passar tempo com mais gente?
— Talvez.
Ela deu de ombros.
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— Certo — respondi, sentindo que aquele era um plano ao qual


eu poderia me apegar. Conhecer outras pessoas e passar tempo com
elas. Talvez, ir a alguns encontros.
Talvez, eu nem sequer estivesse realmente apaixonada por
Henrique. Talvez tudo não passasse de uma confusão da minha
cabeça e coração carentes de atenção.
Era isso. Precisava ser. E assim que eu voltasse dessa viagem,
colocaria a solução em prática: conhecer outras pessoas. Sorri e
Geórgia estreitou os olhos para mim.
— Você está com cara de que vai fazer besteira.
— Ouvir seus conselhos pode ser considerado fazer besteira?
— Às vezes — disse às gargalhadas e meu sorriso se ampliou.
— Bom, então talvez eu faça mesmo uma besteira.
— Sendo assim, vou dar outro conselho e você pode escolher
qual besteira quer fazer. Não precisa se apavorar e descartar o
gostoso do seu chefe tão rápido, Maísa. Já passou pela sua cabeça
que o sentimento pode ser recíproco?
Assoprei por entre os dentes, desdenhando, mesmo que, sim, já
tivesse passado pela minha cabeça.
Na verdade, mesmo que eu já tivesse desejado que os olhares, e
os sorrisos, e os elogios, e toda a atenção de Henrique significassem
mais do que profissionalismo cordial, mesmo antes de eu admitir
para mim mesma a existência dos meus sentimentos.
— Você enlouqueceu — acusei e Geórgia revirou os olhos escuros
como os meus.
— Bom, eu acho que não tem nenhuma ocasião melhor para
testar do que uma viagem a dois...
— É uma viagem a trabalho, Geórgia.
— Mas a trabalho não é tudo o que ela precisa ser.

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— É, definitivamente, você enlouqueceu. Vou avisar ao papai e a
mamãe. Que pena ter de ser eu a dar a notícia, mas fazer o quê?
Ela gargalhou alto.
— Tudo bem, tudo bem. Pode me ignorar à vontade. A gente
volta a conversar depois que você voltar. E, aliás, você tem um
vestido para o evento de gala, certo? Aquele que comprou no mês
passado? — perguntou, e mesmo sentindo que havia segundas
intenções na escolha do novo assunto, fiquei grata por ela.
— Sim, eu tenho o vestido.
— Ótimo! O vestido é importante, é a arma número três no seu
arsenal.
— E qual é a primeira? E a segunda? E arsenal de quê, sua
doida?
— A primeira é você ser incrível no que faz, óbvio! Para alguém
viciado em trabalho como o seu chefinho, isso deve ser muito
importante — declarou como se a louca fosse eu. — A segunda é
esse seu rostinho lindo e muito parecido com o meu que, pode não
ser o principal, mas convenhamos, ajuda. E como assim arsenal de
quê? De conquista, oras! Do que mais seria?
Bufei, indignada.
— Essa viagem pode ser um ponto de virada para mim,
profissionalmente, e você aí, falando besteiras.
— Eu já disse! Uma coisa não elimina a outra, você pode ter seu
ponto de virada profissional, e isso não impede que também tenha
um pessoal. Não é como se o Henrique fosse alguém sem sua
secretária estelar, não é mesmo? — Geórgia brincou.
— Os anos de sucesso que ele teve antes de começarmos a
trabalhar juntos teriam alguma coisa a dizer sobre isso.
Ela tremeu os lábios e dispensou minhas palavras com um aceno.
— Detalhes. — Não pude resistir, acabei rindo da loucura da
minha irmã mais velha. — E quero fotos. Muitas fotos! Da cidade, da
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festa, de você, de tudo! Promete mandar?


— Prometo — concordei, rindo. — Vou fazer o meu melhor. E
depois te conto tudo sobre o evento de gala.
— Estou contando com isso! E Maísa, aproveita também, tá?
Essas experiências são o que fazem tudo valer a pena, — Geórgia
aconselhou, antes de ser interrompida por um dos seus funcionários
ao fundo. — Preciso ir, amor. Cuida de você e me liga depois para
contar como foi a preparação. Estou aqui para o que precisar,
sempre, — ela disse, com um olhar carinhoso que atravessou a
distância entre nós.
— Cuidarei. Obrigada por tudo, Geórgia. Falo com você em breve,
— respondi, desligando a chamada e me levantando.
Voltei à minha lista de tarefas para o dia, e enquanto eu
continuava a organizar minhas coisas, não pude evitar de me
perguntar sobre Henrique, mas afastei as dúvidas quase
imediatamente.
Eu tinha um plano e ele daria certo. Só precisava passar por essa
viagem antes.

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O clube de golfe era o mesmo de sempre, com sua arquitetura
imponente e os gramados perfeitamente aparados sob o sol de
domingo.
Não vinha aqui há anos, mas sabia que era lugar para encontrar
Thomaz, especialmente depois de ele ter ignorado deliberadamente
minhas tentativas de contato ao longo das últimas semanas. Eu
precisava acertar as coisas.
Avistei Thomaz em uma mesa reservada, exatamente onde
esperava encontrá-lo. Sua postura relaxada contrastava com a
tensão que eu sentia, mas isso não me surpreendeu. Thomaz
sempre teve essa habilidade de parecer à vontade em qualquer
situação.
— Thomaz — Eu disse, aproximando-me cauteloso.
Ele me olhou de cima a baixo, fingindo surpresa.
— Me desculpe, senhor, eu o conheço? — Thomaz brincou, um
brilho travesso em seus olhos.
Revirei os olhos, aceitando o jogo. Sabia que a reconciliação viria
com seu próprio conjunto de regras não ditas, cortesia do senso de
humor único do meu amigo.
— Muito engraçado.
— Engraçado? É que não me lembro do seu rosto... Quer dizer,
ele me lembra muito de um amigo que eu tenho, mas amigos não
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faltam a compromissos que prometem comparecer — alfineta. —


Então acho que, não. Não conheço você.
— Você sabe que sinto muito por ter perdido o aniversário dos
seus pais. Eu deveria ter estado lá.
Sua expressão suavizou um pouco, a brincadeira dando lugar à
realidade do nosso desentendimento.

—Esperava que você aparecesse pessoalmente para dizer isso —


admitiu, erguendo sua xícara de café. — Era o único jeito de eu te
ver fora do escritório, se nem ao aniversário de casamento dos meus
pais você foi — cantarolou.
Manipulador miserável. Nunca duvidei. Ainda assim, o alívio que
senti ao ouvir suas palavras foi palpável.
Sabia que Thomaz nunca foi de guardar rancor, mas eu também
sabia o quanto minha ausência tinha significado.
— Mas você demorou, hein? Duas semanas? — Thomaz disse,
retomando seu tom brincalhão.
— Caso não tenha ficado claro ainda, sou um homem ocupado,
Thomaz — retruquei, entrando no espírito da coisa.
A conversa se desenrolou naturalmente a partir daí, com Thomaz
compartilhando novidades sobre sua vida, incluindo sua mais
recente paixão. Não pude deixar de rir e sacudi a cabeça em
descrença.
— Você e suas paixões, Thomaz. Algum dia você vai precisar de
um caderninho só para manter a lista atualizada.
— E perder toda a diversão? Jamais, meu amigo. A vida é muito
mais interessante com um pouco de romance.
Não pude argumentar com isso. A leveza com que Thomaz
encarava a vida sempre foi algo que eu admirei, mesmo que nunca
tenha conseguido o mesmo.
— Qual é o nome dela?

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— Giovanna. É advogada.
— Sua? — questionei com as sobrancelhas arqueadas.
— Não! — Ele se apressou em negar, erguendo as mãos
espalmadas para mim. — Deus me livre me envolver de novo com
alguém no trabalho!
As palavras não tinham endereço, mas me acertaram com força,
mesmo sabendo que as situações eram completamente diferentes.
Meu amigo estava sempre apaixonado, o que, no fim das contas,
significava que ele nunca se importava de verdade com nada ou
ninguém. E era por isso que se envolver com alguém com quem
precisava lidar profissionalmente havia sido uma péssima ideia de
todas as vezes que aconteceu.
Era diferente no meu caso.
Caso? Eu tinha um caso?
Desviei o olhar para os campos verdes infinitos ao meu redor, e a
brisa morna da tarde de domingo acariciou meu rosto enquanto eu
lidava com a minha própria hipocrisia. Havia dias que não conseguia
tirar uma mulher da cabeça, se isso não significasse que eu tinha
uma situação em mãos, não sabia o que mais poderia significar.
— Nos conhecemos em um evento — Thomaz contou. — um
desfile de moda. Giovanna adora essas coisas.
— E o que você estava fazendo lá?
— Explorando novos interesses?
Eu ri.
— Você é um canalha, Thomaz.
Ele ergueu a própria xícara de café.
— Um brinde a isso.
A conversa eventualmente desviou para territórios mais sérios, e
Thomaz, com a delicadeza que a ocasião pedia, abordou o elefante
na sala: meus próprios sentimentos.
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— Você parece diferente. — Ponderei se deveria abrir o jogo


sobre a confusão que vinha me acompanhando nos últimos tempos.
Mas antes que pudesse decidir, Thomaz continuou. — Seja lá o que
for, não deixe que o passado te impeça de viver o presente. Você
sabe, aquela situação...
Ele não precisou terminar a frase. Sabíamos exatamente do que
estava falando. E suas palavras, embora não detalhadas, ecoaram
em mim como o soar de um bumbo.
— Não quero falar sobre isso.
Ele me deu um daqueles olhares que diziam mais do que palavras
poderiam expressar, um misto de apoio e desafio.
— Você nunca quer. Já faz muito tempo, meu amigo — me
lembrou, empurrando os cabelos loiros para trás.
Seus olhos verdes brilharam de um jeito diferente e ele ajustou a
gola da camisa polo vermelho escura. Tamborilei os dedos sobre o
tampo da mesa, pensando em como responder. Pensando se queria
responder.
— Algumas coisas são simplesmente impossíveis de esquecer —
murmurei.
— Já te ocorreu que talvez você não precise esquecer? Só
superar? Não é porque aconteceu uma vez que vai acontecer
sempre. Você é um homem inteligente, Henrique. Consegue separar
as coisas.
— Tenho quarenta anos, Thomaz. Não sei se ainda tenho tempo
para viver certas coisas.
Meu amigo soprou o ar por entre os dentes, chiando.
— Agora você só está tentando provar que estou errado quando
digo que você é um homem inteligente — Thomaz riu, revirando os
olhos. — Você tem quarenta, eu tenho trinta e oito. — Ele deu de
ombros. — E se eu ainda posso viver muitas coisas, você também
pode.

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O sorriso de Maísa tomou conta dos meus pensamentos
imediatamente. Eu não deveria querer tanto algo que não posso ter.
— Você já quis algo que não podia ter, Thomaz? — perguntei, e
meu amigo arqueou uma sobrancelha que me dizia que aquela era
uma pergunta idiota.
— O tempo todo — respondeu já rindo.
— E o que você fez quanto a isso? Você pode achar que a idade
não é impedimento para viver grandes aventuras, mas com certeza
deveria ser para fazer grandes gestos estúpidos.
— Por quê? — perguntou, dando de ombros outra vez. — O que
você tem a perder, Henrique?
Credibilidade, bom senso, orgulho... As palavras dançaram na
minha mente imediatamente, mas meu amigo ainda não havia
acabado de falar.
— É mais do que você tem a ganhar? — Thomaz perguntou e,
outra vez, a risada deliciosa de Maísa ecoou em minha mente.
Seu nome, sua voz, seu sorriso, tudo sobre ela ecoava como um
mantra em minha mente, despertando sentimentos que eu havia
tentado suprimir.
Ela tinha se tornado uma constante em minha vida desde que
começamos a trabalhar juntos. Sua presença vibrante e sua energia
contagiante iluminavam os dias monótonos no escritório.
Agora, com uma viagem de negócios às portas, a proximidade
inevitável entre nós só servia para intensificar esses sentimentos.
Uma parte de mim ansiava pela oportunidade de passar mais tempo
ao lado dela, de desvendar os segredos por trás daqueles olhos
expressivos e de mergulhar naquele sorriso encantador.
No entanto, outra parte de mim resistia a essas emoções
emergentes, temerosa do desconhecido e do caos que poderiam
trazer para minha vida meticulosamente planejada.
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Eu respirei fundo, tentando afastar as dúvidas e incertezas que


me assombravam. Afinal, o que eram algumas semanas ao lado de
Maísa em comparação com toda uma vida de estabilidade e
controle?
Mas então, um pensamento insidioso se insinuou em minha
mente: e se, ao resistir a esses sentimentos, eu estivesse me
privando da possibilidade de algo verdadeiramente extraordinário?

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— Pelo jeito como você está olhando para tudo ao seu redor,
parece que estamos na Disney, e não no Rio de Janeiro — Henrique
provocou e senti minhas bochechas esquentarem imediatamente.
A cidade se desdobrava diante de mim como uma tapeçaria viva,
repleta de cores e texturas. Do assento traseiro do carro, eu
observava, fascinada, o contraste marcante entre o azul profundo do
céu e a complexidade da paisagem urbana.
A luz da manhã tingia tudo de dourado, destacando os contornos
dos edifícios, dos morros ondulantes e da vegetação que
teimosamente reivindicava seu espaço entre o concreto.
As ruas, pulsantes com a energia da vida cotidiana, eram um
espetáculo à parte. Pessoas transitavam com pressa, misturando-se
aos vendedores ambulantes cujas vozes se elevavam, oferecendo
desde artesanato até refrescos que prometiam alívio contra o calor
persistente, nesse aspecto, tudo muito parecido com São Paulo.
Ao nos aproximarmos da orla, a vastidão do oceano capturou
toda a minha atenção. As praias, linhas douradas que se estendiam
à beira do mar azul, eram palco de um vaivém relaxado de
transeuntes, crianças brincando à beira d'água e surfistas em busca
da onda perfeita.
O encontro do verde das árvores com o azul do oceano pintava
um quadro de harmonia natural, uma paisagem que parecia saída do
descanso de tela de um computador direto para a frente dos meus
olhos.
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Apesar da provocação leve de Henrique sobre meu


encantamento, era impossível desviar o olhar.
— Eu nunca tinha estado fora de São Paulo — admiti
envergonhada, depois de limpar a garganta.
O ar dentro do carro era denso, carregado com a tensão de
expectativas que faziam meu coração bater num ritmo
descontrolado, tanto pela agenda apertada que prometia pouco
espaço para respirar, quanto pela companhia do homem sentado à
minha frente.
Henrique me olhou intensamente, como se desejasse ler meus
pensamentos e sua mão se ergueu na direção do meu rosto. Me
preparei para o toque. Desejei o toque com cada fibra do meu ser,
mas os dedos foram abaixados sem que eu descobrisse qual era a
sensação de tê-los sobre a minha pele. Foi a vez dele de limpar a
garganta.
Henrique estava lindo, como sempre. O terno cor de chumbo de
ajustava ao seu corpo, ressaltando cada um de seus músculos, e
deixando o ar preso em minha garganta a cada vez que ele se
movimentava, porque minha mente tinha acordado muito criativa
naquela manhã.
Talvez, uma consequência inesperada da admissão que fiz em voz
alta no fim de semana. Passar por essa viagem. Eu só precisava
passar por essa viagem e tudo ficaria bem, lembrei a mim mesma.
— Se não tivéssemos uma semana tão cheia pela frente, eu
prometeria te mostrar a cidade — disse Henrique, sua voz rouca
disparando arrepios pelo meu corpo.
Não era possível que seria sempre assim daqui para frente, certo?
Não poderia ser sempre assim daqui para frente. Seus olhos escuros
estavam presos aos meus, atentos, e me senti quase paralisada por
eles.
Com muito esforço, consegui balançar a cabeça, concordando.
Peguei a pasta ao meu lado, repleta de papéis meticulosamente

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organizados, para ter o que fazer com as mãos.
— Vamos revisar a agenda?
— Claro — concordou com suavidade.
A primeira página listava todas as reuniões em filiais da Borges &
Associados, marcadas em intervalos que mal nos deixavam tempo
para respirar. Seguiam-se almoços com parceiros de negócios, cada
um cuidadosamente escolhido por Henrique para fortalecer laços e
explorar novas oportunidades.
— Na quarta-feira, temos a visita àquela empresa de tecnologia
em Campinas. — Marquei com o dedo a linha correspondente no
documento. — Você está considerando absorvê-la, não está?
Henrique assentiu, um brilho de interesse passando por seu olhar.
— Exatamente. Sua inovação pode ser o que precisamos para
expandir nossa presença no mercado tecnológico. Sua opinião será
crucial, Maísa.
Senti um calor agradável se espalhar pelo meu peito com suas
palavras, exatamente como acontecia quando ele pedia minha
opinião em qualquer que fosse o assunto, importante ou não.
— Farei o meu melhor — prometi, sentindo uma mistura de
nervosismo e excitação.
Continuei repassando com ele cada um dos nossos compromissos
até chegar ao último.
O ápice de nossa visita à cidade maravilhosa e o maior motivo do
meu nervosismo: o evento de gala no sábado à noite, o aniversário
de 60 anos do presidente do escritório de advocacia que há anos
prestava serviços inestimáveis à Borges & Associados.
— O gala... — comecei, hesitante. — Há algo específico que você
espera dessa noite?
Henrique lançou-me um olhar lateral demorado, um vislumbre de
algo indecifrável passando por sua expressão antes de ele
responder.
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— Tenho uma proposta — disse e meu estômago se revirou.


— Uma proposta?
— Não vou conseguir te mostrar a cidade, mas esse evento,
embora seja sobre trabalho, também pode ser uma oportunidade
de... Nos divertirmos. Que tal se fizermos esse acordo?
— De nos divertirmos? No evento? — perguntei sem ter a certeza
de que havia entendido corretamente.
Queria perguntar mais coisas. Questionar se era um convite para
um encontro. Se ele queria dizer para nos divertirmos juntos, mas
não fiz nada disso. Só pisquei, esperando a resposta de Henrique
que pareceu levar uma eternidade para chegar.
— Isso.
— Você gostaria que eu... Que eu não fosse? Para não atrapalhar
sua diversão? — ofereci, mesmo sentindo minha garganta se apertar
a cada palavra dita.
Henrique sorriu para mim de um jeito que nunca havia feito
antes, e seu olhar também se transformou em algo inédito quando
ele me respondeu.
— E sem você, como é que eu poderia me divertir?
Não pude evitar o sorriso imenso que tomou conta dos meus
lábios.

Ríamos juntos, uma daquelas risadas profundas e genuínas que


fazem sua barriga doer e seus olhos lacrimejarem.

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O motivo? Uma gafe hilária de um dos parceiros durante a
reunião da manhã, que confundiu um termo técnico por algo
completamente fora de contexto.
Henrique, tentando manter a compostura na frente de todos,
acabou soltando uma risada abafada, o que, por sua vez, me fez
perder completamente a minha. Agora, longe dos olhares curiosos e
formais da sala de reuniões, permitíamo-nos rir livremente da
situação.
— Você deveria ter visto seu rosto, Henrique! — eu disse,
enxugando uma lágrima de diversão do canto do olho. — Eu nunca
imaginei que você poderia ficar tão vermelho.
— Ah, Maísa, confie em mim, eu estava tentando
desesperadamente pensar em algo para dizer que pudesse consertar
a situação sem ofender ninguém — Henrique confessou, ainda rindo.
Ele parecia mais relaxado, os traços normalmente sérios de seu
rosto suavizados por um sorriso genuíno.
Estávamos sentados em uma mesa reservada em um restaurante
charmoso, escolhido por Henrique por sua discrição e pela qualidade
da comida. O ambiente era acolhedor, com uma decoração que
equilibrava elegância e simplicidade, e uma vista impressionante da
cidade que se estendia além das janelas panorâmicas. O Rio de
janeiro era mesmo uma cidade maravilhosa.
— Eu acho que isso só prova que ninguém está imune a
momentos embaraçosos, não importa quão preparado você esteja —
eu disse, dando uma olhada no menu.
— Verdade — Henrique concordou, dando uma olhada no próprio
cardápio. — Mas estou contente que foi você quem estava lá
comigo.
Houve um calor nessa declaração, um reconhecimento tácito da
proximidade que havíamos desenvolvido ao longo dos últimos meses
e das incontáveis horas de trabalho juntos.
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Não era apenas a familiaridade profissional; havia uma camada


de conforto pessoal e confiança que crescia a cada dia e na qual eu
gostaria viver imersa para sempre.
— Conte comigo para rir das gafes com você — disse, meio
brincando, meio séria. Ele me lançou um olhar de apreciação,
aqueles olhos escuros refletindo algo que eu não conseguia
identificar completamente.
O garçom veio até nossa mesa para anotar os pedidos, e por um
momento, voltamos ao papel de profissionais discutindo opções de
pratos como se estivéssemos avaliando estratégias de negócios.
Henrique pediu para nós dois, escolhendo pratos que sabia serem
meus favoritos, uma atenção aos detalhes que me fez sorrir
internamente.
— Me diga, agora que já se passou um tempo desde que chegou
à Borges, como você está se sentindo em relação a tudo isso? —
perguntou, uma vez que o garçom se afastou, sua voz baixa e um
pouco hesitante. — Quero dizer, com o ritmo acelerado do trabalho,
agora, viagens... Isso tem sido muito para você?
Sua preocupação era tocante, e por um momento, fiquei tentada
a simplesmente assegurar que tudo estava bem. Mas havia algo na
maneira como ele me olhava, abertamente e sem pressa, que me
encorajava a ser mais vulnerável.
— Para ser honesta, tem sido um desafio — admiti. — Mas de
uma boa maneira. Sinto como se estivesse crescendo, tanto
profissionalmente quanto pessoalmente. E muito disso é graças a
você.
— Eu? — Henrique pareceu genuinamente surpreso, inclinando-se
um pouco para frente, como se quisesse captar cada palavra.
— Sim, você. Sua confiança em mim, me dando
responsabilidades e me desafiando... isso mudou a forma como vejo
a mim mesma e o meu trabalho. E, bem, também me fez ver você
de uma maneira diferente.

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Houve um breve silêncio entre nós, carregado de significado não
expresso. O ar parecia vibrar com as palavras não ditas, com a
compreensão mútua de que algo estava mudando, evoluindo entre
nós.
— Maísa, eu... — Henrique começou, mas foi interrompido pela
chegada de nossos pratos. Trocamos um olhar, uma comunicação
silenciosa que concordava em pausar a conversa, por enquanto.
O almoço transcorreu com mais trocas leves, comentários sobre o
trabalho e planos futuros. Mas havia uma corrente subjacente de
algo mais profundo, uma conexão que continuava a crescer com
cada gesto compartilhado e cada olhar trocado.
Eu não sabia para onde isso nos levaria, mas, naquele momento,
sentada à mesa de almoço com Henrique, eu estava aberta a
descobrir. Talvez eu não precisasse daquele plano, afinal...
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16.

Após um dia repleto de compromissos de trabalho, tentava me


concentrar nas discussões sobre o progresso que fizemos. Maísa, de
frente para mim no carro em movimento, folheava os documentos
com a eficiência de sempre, seu foco inabalável no trabalho.
Ela comentava sobre os detalhes das reuniões, fazendo anotações
e sugerindo estratégias para o dia seguinte.
— Acho que conseguimos avançar bastante com a equipe de
desenvolvimento hoje. O que você acha sobre ajustarmos o

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cronograma para incluir os feedbacks? — perguntou, levantando os
olhos dos papéis para me encarar.
— Sim, sim, claro — respondi, um pouco tarde demais, minha voz
traída por um momento de hesitação.
A verdade é que, apesar da importância do nosso trabalho,
encontrava-me lutando contra a distração desde o momento em que
entramos no carro.
Não era a paisagem urbana do Rio ou o cansaço do dia que
desviava minha atenção, mas a beleza de Maísa.
A luz suave do luar, entrando pelas janelas escurecidas do carro,
iluminava seu rosto, destacando a expressão concentrada que ela
dedicava aos documentos. Havia uma elegância simples nela, desde
a maneira como prendia uma mecha do cabelo atrás da orelha até o
modo como suas mãos se moviam com propósito.
— E sobre o orçamento para o próximo trimestre? Você acha que
devemos revisá-lo agora ou esperar pelo feedback da diretoria? —
Maísa continuou, alheia aos meus pensamentos.
Engoli em seco, forçando minha mente a retornar aos detalhes do
projeto.
— Acho que uma revisão preliminar seria prudente. Assim,
estaremos um passo à frente quando recebermos o feedback —
consegui dizer, esperando que minha resposta soasse mais
convincente do que me sentia.
À medida que a conversa avançava, eu fazia um esforço
consciente para me concentrar no trabalho, para ouvir
verdadeiramente o que Maísa estava dizendo. Mas mesmo enquanto
discutíamos táticas e objetivos, não podia negar o efeito que sua
proximidade tinha sobre mim.
A viagem estava chegando ao fim e tudo o que tínhamos feito até
agora havia sido um verdadeiro sucesso. Os negócios estavam
encaminhados, os clientes satisfeitos, e os contratos assinados, mas
a perspectiva de retornar para casa... Ela não era como deveria ser.
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Havia algo mais, algo que eu não conseguia ignorar. Uma faísca,
um lampejo que queimava cada vez mais intensamente a cada olhar
trocado, a cada sorriso compartilhado e o qual estava se tornando
impossível continuar a ignorar.
Ela olhava pela janela do carro, perdida em seus pensamentos
depois que terminamos o trabalho, enquanto eu estava perdido nela.
Meus olhos completamente incapazes de se desviarem do seu rosto
lindo, dos olhos sensíveis, dos lábios cheios. Será que eram tão
gostosos quanto pareciam?
Seus cabelos castanhos refletiam a luz amarelada dos postes da
rua, criando uma aura de serenidade ao seu redor. Agir por impulso
não era algo que eu me permitia fazer com frequência, não era algo
que eu me permitia fazer nunca, na verdade.
Mas essa mulher, havia algo sobre ela, que estava sempre me
fazendo desejar ser mais, talvez ser melhor. Eu ainda não estava
pronto para encerrar a noite, para encerrar essa viagem como um
todo.
— Maísa — comecei com minha voz soando mais rouca do que o
habitual. Olhos brilhantes se desviaram das ruas borradas para se
concentrar em mim e Maísa sorriu. Eu a queria. A queria muito. E
sabia que uma vez que decidisse tê-la, nada ficaria no meu caminho.
Não era uma decisão para tomar com leviandade. — Você gostaria
de tomar uma bebida comigo? Acho que merecemos um brinde pelo
sucesso da viagem.
Ela entreabriu os lábios, o castanho dos seus olhos brilhando com
uma mistura de surpresa e expectativa. Ela sorriu, um sorriso
radiante que iluminou seu rosto e fez meu coração saltar no peito.
Até Maísa chegar à minha vida, eu não me lembrava de que ele
ainda era capaz de fazer isso.
— Eu adoraria. — Sua voz suave como uma carícia na brisa
noturna. — Um brinde ao sucesso e a novas oportunidades.
Nos encaramos com sorrisos pequenos nos lábios pelos poucos
minutos que levaram até que o carro parasse diante do hotel. Maísa

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desceu primeiro, eu a segui.
Atravessamos o hall com passos calmos até o bar do hotel. O
consierge nos levou a uma mesa redonda e afastada, um canto
discreto com vista para a piscina, como se pudesse ler aquilo que
não fui capaz de admitir em voz alta ainda.
A água cristalina refletia as luzes suaves da noite. O local estava
tranquilo, apenas alguns hóspedes dispersos conversando em
sussurros, criando um ambiente perfeito para uma comemoração
íntima.
Maísa sentou-se de frente para mim, e agradeceu ao garçom pelo
menu com o sorriso deslumbrante de sempre, mas havia algo em
sua postura que sugeria que ela também sentia a singularidade
daquele momento.
— O que você sugere? — ela me perguntou quando o garçom se
afastou. — Não estou acostumada a beber, e nossa! São tantas
opções!
— Você prefere sabores suaves ou mais intensos?
Ela ergueu os olhos do menu e fixou-os em mim. A língua correu
sobre os lábios, primeiro o superior, depois o inferior, e Maísa
pareceu segurar a respiração por um instante ou dois.
— Não sei — admitiu.
— Você quer experimentar? Podemos pedir uma seleção — sugeri
dando de ombros.
— Está tentando me embebedar, senhor Borges? — brincou.
— Não, preciso de você completamente sóbria para o que tenho
em mente, senhorita Cardoso — respondi no mesmo tom e ela
corou. Eu adorava quando ela corava.
— Acho que vou querer uma taça de espumante — decidiu por
fim. — Amanhã é o último dia, mas ainda temos compromissos.
— Vou acompanhar você.
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Ergui o braço, chamando o garçom que prontamente reapareceu


ao nosso lado. Pedi uma garrafa do melhor espumante do hotel e
quando fomos deixados sozinhos outra vez, Maísa me encarava com
os dentes afundados no lábio inferior.
— O que foi? — perguntei.
Ela olhou ao nosso redor, as írises escuras correndo rapidamente
por cada detalhe luxuoso ao nosso redor. A expressão deslumbrada
que tomou conta do seu rosto era uma coisa adorável.
— Você já... — começou, mas pausou e voltou a fixar os olhos
castanhos em mim. — Você já desejou tanto alguma coisa, que teve
dificuldades para acreditar que era real, quando conseguiu? —
questionou suavemente, e eu pisquei. — Esse trabalho, essa
oportunidade... Estar aqui, com você, Henrique... — Maísa soltou
uma risadinha abafada. — Às vezes, eu ainda me belisco.
Antes que eu pudesse responder, nossa bebida chegou e foi
servida. Aproveitei.
— Você é brilhante, Maísa — disse, levantando meu copo em um
brinde. — Está apenas colhendo o fruto do seu próprio trabalho.
Ela sorriu, um sorriso que iluminava seu rosto e fazia meu
coração bater mais forte. Tocamos nossas taças antes de darmos um
gole em nossas bebidas.
— Formamos uma boa equipe, não formamos?
— Eu não poderia pedir por uma parceira melhor nessa jornada.
Por um momento, permiti-me simplesmente olhar para ela,
absorvendo a visão da mulher incrível que se tornara cada vez mais
indispensável em minha vida.
Conversamos até que os minutos se transformassem em horas e
a garrafa de espumante secasse. O som suave da água da piscina e
o murmúrio distante dos outros hóspedes pareciam se afastar,
deixando apenas o som de nossas vozes. Era como se estivéssemos
em nossa própria bolha, isolados do resto do mundo.

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A noite avançava, mas nenhum de nós parecia disposto a dar um
fim àquele encontro. As taças vazias foram esquecidas, enquanto
nos perdíamos em conversas que variavam entre o profissional e o
profundamente pessoal.
Cada palavra, cada risada compartilhada, parecia nos aproximar
ainda mais, tecendo um laço invisível que eu sabia ser impossível de
ignorar.
Cada minuto na companhia de Maísa me deixava mais ansioso do
que o anterior. Sentia-me um adolescente, outra vez. Um moleque,
ansioso pela atenção de uma conquista.
— Maísa... — comecei, hesitante, buscando as palavras certas e
ela inclinou a cabeça, curiosa.
— Sim? — A única palavra que me deu em resposta era cheia de
expectativa.
Estendi a mão até seu rosto e acariciei sua bochecha
suavemente, mas não foi o suficiente. Choque elétrico percorreu
meu corpo e no instante em que toquei sua pele, me tornei
ganancioso. Meus dedos desejaram se infiltrar sob seus cabelos,
espalhando-se pelo couro cabeludo.
Imaginei suas pálpebras se fechando em reação, e os lábios
cheios se entreabrirem quando Maísa suspirasse, mas não fiz mais
do que escovar suavemente a maçã de seu rosto antes de recuar o
toque.
Ela me observava, seus olhos castanhos expressivos procurando
os meus, e eu podia ver o reflexo das luzes da piscina dançando em
seu olhar. Era um momento de vulnerabilidade compartilhada, uma
conexão que parecia suspender tudo ao nosso redor.
— Henrique, eu... — Ela começou, mas então parou, como se não
tivesse certeza de como continuar.
— O que é? Você pode me dizer qualquer coisa.
Ela procurou as palavras, uma luta visível em seus olhos.
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— Está tarde — disse depois do que pareceu uma eternidade. —


Acho que devo subir. — Maísa segurou minha mão sobre a mesa, um
gesto simples, mas carregado de significado. — Obrigada pela
bebida. Foi muito importante para mim.
E, sem esperar por resposta, se levantou e saiu, deixando-me
sozinho com meus pensamentos. Observei o corpo curvilíneo
caminhar para longe, e a cada passo dado por ele, a certeza de que
estava errado antes, se tornava mais concreta em meu peito.
Tornar Maísa minha não era uma decisão ainda a ser tomada. Eu
já havia decidido, o que eu não tinha sido ainda era capaz de admitir
isso para mim mesmo. Pelo menos, não até agora.

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O elevador descia lentamente, e cada andar que passava parecia
acrescentar uma nova camada de ansiedade à tempestade já
tumultuada dentro de mim.
Deveria ser uma coisa boa que a festa fosse acontecer no hotel
onde estávamos hospedados, mas a proposta de Henrique para que
deixássemos de lado nossas personas profissionais e simplesmente
nos divertíssemos juntos, no evento de gala, reverberava em minha
mente, misturando-se com as memórias do momento compartilhado
na noite anterior no bar do hotel.
Eu havia fugido, dominada pelo medo de que minhas palavras
escapassem sem permissão, revelando sentimentos que eu não
estava pronta para admitir — principalmente com o risco de ele não
sentir o mesmo.
Hoje, o dia de trabalho tinha sido envolto em um silêncio que era
tudo, menos confortável. Trocamos poucas palavras, concentrando-
nos nas tarefas que precisávamos concluir antes do evento da noite.
A tensão entre nós era palpável, um elefante branco na sala que
ambos escolhemos ignorar. Agora, eu estava prestes a enfrentá-lo
novamente, dessa vez em um ambiente social onde não poderíamos
nos esconder atrás de papéis e laptops.
Meu coração batia forte, ecoando contra as paredes de metal do
elevador. Minhas mãos tremiam levemente, e eu as esfregava no
vestido na tentativa de acalmá-las.
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Respirei fundo, encarando-me no espelho no fundo da caixa


metálica, tentando desesperadamente reunir algum vestígio de
calma.
O tecido vermelho envolvia meu corpo, abraçando minhas curvas
e valorizando cada uma delas. O decote de um ombro só fazia meus
seios parecerem maiores, e meus cabelos estavam soltos, em ondas
cuidadosamente modeladas para dar volume e movimento aos fios.
Minha maquiagem tinha olhos pretos esfumados e lábios
vermelhos bem delineados. Eu estava linda. Sentia-me linda, e
absurdamente nervosa sobre qual seria a opinião de Henrique sobre
mim. Como ele me olharia? Será que me devoraria com o olhar? Eu
gostaria que sim. Eu ansiava que sim.
Afastei o desejo assim que o percebi. Eu estava enlouquecendo.
Era a última noite, eu me lembrei. Só precisava passar por isso e,
depois, teria todo o tempo do mundo para lidar com meus
sentimentos, para colocar minha cabeça e meu coração em ordem.
Quando as portas do elevador se abriram, meu estômago se
apertou em nós. Henrique estava lá, esperando.
Ele estava incrível, como sempre. O smoking contornava cada um
dos seus músculos, como se tivesse sido costurado sobre eles. Os
cabelos escuros estava penteados para trás, com gel, e a barba
curta estava perfeitamente aparada.
O olhar que ele me deu, no entanto, foi muito além do que
qualquer expectativa que eu pudesse ter alimentado em meus
sonhos mais generosos. Henrique me analisou lentamente,
percorrendo cada centímetro de mim com cuidado e satisfação
evidentes. Me arrepiei inteira.
Era como se um balde de óleo morno estivesse sendo deslizado
pela minha pele. Seu olhar era caloroso o bastante para aquecer
tudo em mim, até mesmo minha calcinha. Ela umedeceu também.
Jesus! Definitivamente, eu estava ficando louca!

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— Você está deslumbrante — disse ele, seu olhar penetrante
finalmente se focando no meu, a voz rouca.
— Obrigada, Henrique. Você também está... — Minha voz falhou
um pouco, traída pela emoção. — Muito bem.
Nós começamos a caminhar em direção ao salão do evento, e eu
podia sentir o calor dele ao meu lado. Era uma sensação
estranhamente reconfortante, mas ao mesmo tempo, ampliava a
confusão emocional que eu estava tentando controlar.
A atração que eu sentia por ele era irresistível, uma força
magnética que me puxava em sua direção, apesar de todos os meus
esforços para manter a distância.
A opulência do ambiente envolvia meus sentidos, ampliando a
mistura de nervosismo e ansiedade que eu já estava sentindo. O
chão de mármore brilhante refletia as luzes suaves e douradas
penduradas elegantemente do teto alto, criando um jogo de
sombras e luz que parecia dançar ao ritmo dos nossos passos.
À nossa volta, colunas imponentes se erguiam, adornadas com
detalhes em ouro e entalhes delicados, evocando a grandiosidade de
uma era passada.
O ar estava impregnado com um sutil aroma floral, proveniente
dos arranjos de flores frescas dispostos em mesas de centro e nos
balcões da recepção, cada um mais elaborado que o outro,
adicionando um toque de vida e cor ao luxo estático do mármore e
do metal.
O lobby burburava com a energia de outros hóspedes, também a
caminho do evento de gala, suas vozes um murmúrio constante que
se misturava à música ambiente, suave e convidativa. Mulheres em
vestidos elegantes e homens em trajes formais moviam-se com uma
graça estudada, suas risadas e conversas pontuando o ar com uma
expectativa palpável.
A cada passo, eu podia sentir sua presença se maneira quase
opressiva ao meu lado. Era estranho como sua proximidade
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conseguia ser tanto reconfortante quanto perturbadora, agravando a


confusão emocional que eu lutava para manter sob controle.
— Maísa — Henrique começou, sua voz baixa, quase hesitante. —
Sobre ontem à noite... eu...
Eu o interrompi, incapaz de deixar que ele continuasse, temendo
o que viria a seguir.
— Henrique, vamos apenas nos focar no evento, ok? Podemos
conversar sobre... qualquer coisa depois.
Houve um breve momento de silêncio entre nós, uma pausa
carregada de palavras não ditas e sentimentos não explorados.
Eu sabia que estava adiando o inevitável, mas parte de mim
esperava desesperadamente que, de alguma forma, as coisas se
resolvessem por si mesmas.
Henrique umedeceu os lábios, e assentiu. Um garçom passou
com uma bandeja de bebidas e ele pegou duas taças de espumante,
me oferecendo uma logo em seguida. Aceitei.
Os primeiros minutos da noite avançaram em um borrão de
sorrisos educados, cumprimentos e conversas polidas. Passei o
tempo inteiro ao lado de Henrique enquanto ele conversava com
outros convidados que o tempo inteiro requeriam sua atenção.
Havia momentos em que nossos olhares se encontravam, e eu
podia jurar que via o reflexo de minhas próprias emoções
turbulentas nos olhos dele. Era um jogo perigoso que estávamos
jogando, um equilíbrio precário entre o desejo e a razão, ou que
talvez eu estivesse jogando sozinha.
Talvez fossem as taças de espumante que continuei bebendo,
mas enquanto a noite se desenrolava, eu me permiti relaxar um
pouco, deixando a música e a atmosfera festiva me envolverem até
que os nós de desespero em meu estômago se desatassem e
restasse apenas todo o resto.

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Era difícil resistir à atmosfera do evento, que a cada minuto,
parecia se encher mais de um brilho especial, iluminada por risos e
música, tecendo uma magia invisível ao redor de todos nós.
Eu estava parada à margem da pista de dança, observando os
casais girarem ao som de uma melodia suave, depois de voltar do
banheiro e preferir não me aproximar imediatamente da roda onde
deixei meu chefe, quando senti sua presença ao meu lado.
— Maísa — sua voz era um sussurro quente em meu ouvido,
fazendo-me virar em sua direção. — Dança comigo?
Havia uma hesitação em seu convite, como se ele também
sentisse o peso do momento, a importância desse gesto simples,
mas íntimo.
Eu olhei para ele, capturada pelo brilho de expectativa em seus
olhos. Por um instante, permiti-me hesitar, ciente de que aceitar sua
mão seria mais do que apenas um passo na direção da pista de
dança; seria um passo em direção a ele, em direção ao que ambos
estávamos tentando negar.
— Eu adoraria — disse finalmente, colocando minha mão na dele.
Henrique me guiou até o centro da pista de dança, e quando a
música nos envolveu, ele me puxou para perto. Sua mão estava
firme em minha cintura, a outra segurando a minha com delicadeza.
Seu cheiro me dominou completamente, assim como seu calor.
Havia uma elegância em seus movimentos, uma segurança que
me permitia seguir sua liderança sem hesitação. Ele dançava com
uma confiança que, de alguma forma, transmitia-se para mim,
fazendo-me esquecer da multidão ao nosso redor, do barulho, de
tudo exceto do som da música e da sensação de estar em seus
braços.
À medida que dançávamos, nossos corpos encontravam um ritmo
comum, movendo-se em harmonia com a melodia. A proximidade
me fazia arder por dentro, uma mistura de nervosismo e desejo que
eu lutava para controlar.
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Eu podia sentir a textura de seu paletó sob meus dedos, o calor


de sua mão em minhas costas, cada toque enviando ondas de
emoção através de mim.
Henrique baixou o olhar para mim, e por um momento, o mundo
pareceu desacelerar, girando apenas ao redor de nós. Seus olhos
escuros brilhavam com uma intensidade que me fazia perder o
fôlego, e eu podia ver neles um reflexo de tudo que eu estava
sentindo. Era como se, naquele momento de conexão, todas as
barreiras entre nós começassem a desmoronar.
A dança era um diálogo silencioso, um intercâmbio de emoções e
promessas não verbalizadas. Com cada passo, cada giro, eu me
sentia mais perto de Henrique, mais envolvida pela ideia de que o
que tínhamos era algo que não podia ser ignorado ou deixado para
trás.
E apesar do medo que ainda se agarrava às bordas da minha
consciência, havia também uma sensação de inevitabilidade, a
percepção de que estávamos sendo puxados um para o outro por
uma força que nenhum de nós podia negar.
Quando a música finalmente terminou, nós dois hesitamos em
nos separar, permanecendo abraçados por um momento mais longo
do que o protocolo talvez ditasse.
Foi um silêncio cheio de palavras não ditas, um acordo tácito de
que o que estava acontecendo entre nós era real, poderoso e
impossível de ignorar. Eu quis acreditar nisso. Quis com tanta força
que, por breves segundos, fechei meus olhos.
Era a última noite, o pensamento ecoou silencioso na minha
cabeça, como se quisesse me trazer de volta à realidade da qual eu
queria tão desesperadamente me esquecer.
Mas era um esforço inútil, percebi. A verdade era que, em algum
lugar entre a música, os risos e os olhares compartilhados,
independentemente do que eu havia planejado, meu coração já
havia tomado uma decisão. Recuei um passo, me virei e saí.

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— Maísa! — chamei novamente.
Quando ela fugiu da pista de dança, uma parte de mim sabia que
não podia deixá-la partir assim, não sem entender o turbilhão de
emoções que parecia nos envolver.
Movido por um impulso que eu não conseguia — e não queria —
controlar, segui-a até o elevador, chegando bem a tempo de vê-la
apertar o botão desesperadamente, como se pudesse escapar dos
sentimentos que a assolavam.
A porta estava prestes a se fechar quando coloquei a mão para
impedi-la, entrando no espaço confinado com Maísa. O peso do
silêncio entre Maísa e eu era palpável.
Ela estava lá, imóvel, de costas para mim, a cabeça baixa, como
se tentasse reunir forças para enfrentar algo imenso, e eu podia ver
a tensão em cada linha do seu corpo.
Eu não precisava de palavras para saber o que estava
acontecendo; a emoção que vibrava no ar dizia tudo. A dança tinha
sido um ponto de inflexão.
Com quarenta anos nas costas, eu tinha aprendido a identificar o
que queria e, mais importante, a agir em função disso. A hesitação
nunca foi uma característica minha.
— O que está acontecendo? — perguntei, minha voz mais rouca
do que pretendia.
Ela demorou um momento para responder, e quando finalmente
se virou para me encarar, os olhos dela estavam brilhantes, um
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reflexo da batalha interna que ela enfrentava.


— Eu não aguento mais, Henrique — sussurrou, a voz trêmula. —
Não suporto guardar isso dentro de mim. Estar perto de você, sentir
o que eu sinto... é demais.
Ver a angústia em seu rosto, a maneira como suas mãos se
entrelaçavam nervosamente, despertou em mim uma necessidade
urgente de confortá-la, de apagar a distância que nos separava.
Meus próprios sentimentos, que eu havia tentado reprimir, subiram à
superfície, impossíveis de ignorar.
Eliminei a distância entre nós e meus membros se moveram sem
que eu precisasse comandá-los. Meus braços envolveram sua
cintura, e nada nunca pareceu tão certo quanto ter Maísa assim,
inteiramente para mim.
— Maísa, olhe para mim — pedi, e quando ela levantou os olhos
para encontrar os meus, eu vi neles um reflexo de minha própria
tormenta. — O que você sente? — perguntei, porque sou egoísta e a
surpresa em seu olhar deu lugar a uma vulnerabilidade que me
partiu.
Ela deu ergueu a mão, hesitante, na direção do meu rosto.
Apertei-a ainda mais dentro dos meus braços, sentindo-a tremer ao
contato.
— Henrique, eu... — Ela começou, mas suas palavras foram
silenciadas pelo meu beijo.
Foi um beijo determinado, uma afirmação de intenções, de que
eu estava disposto a derrubar as barreiras que nos separavam.
Beijá-la foi como encontrar a última peça de um quebra-cabeças.
Havia uma urgência, uma fome em nosso contato que era mais do
que física; era a união de dois desejos que, contra todas as
probabilidades, haviam se encontrado.
Maísa respondeu ao meu beijo com igual fervor, seus braços se
enlaçando em meu pescoço, trazendo-me para mais perto. Eu podia

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sentir o batimento cardíaco dela contra o meu, dois ritmos
acelerados em perfeita sincronia.
O mundo ao nosso redor desapareceu, deixando apenas a
sensação de seus lábios nos meus, a doçura de seu beijo, a maneira
como ela se encaixava perfeitamente em meus braços. Quando
finalmente nos afastamos, foi apenas para buscar ar, nossas testas
encostadas, nossos olhares trancados em uma promessa silenciosa.
Maísa não me encarava com surpresa, mas com reconhecimento.
Ela sabia, assim como eu, que a partir daquele momento, não havia
volta. Beijei-a outra vez.
Nossas línguas, lábios e dentes se tocando, entrelaçando e
banqueteando uns nos outros. A sensação da sua pele sob as
minhas mãos era uma delícia e as roupas entre nós se tornaram
muitas.
O elevador chegou ao nosso andar, mas nenhum de nós fez
menção de se mover. Estávamos enredados em nossa própria bolha
de desejo e necessidade.
— Por favor, me diz que você vai me deixar levar você para o meu
quarto — pedi, beijando a linha do seu maxilar até alcançar a orelha
e chupando o lóbulo, antes de lamber atrás dele e assoprar. Maísa
estremeceu em meus braços, um gemido baixo escapou da sua boca
e meu corpo inteiro reagiu. Eu estava faminto por ela. — Por favor
— repeti. Se ela quisesse que eu implorasse, eu não me importaria
em fazê-lo.
— Deixo.
A palavra saiu da sua boca em um sopro morno quando
mordisquei seu queixo. As portas do elevador se abriram e não me
afastei de Maísa quando recuei alguns passos, andando de costas
para sair de dentro da caixa metálica.
Rimos quando tropecei, mas nenhum de nós fez qualquer
movimento para se desvencilhar um do outro enquanto
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caminhávamos entre pernas trocadas até a porta no fim do corredor,


a suíte presidencial que tomava todo o andar.
Imprensei Maísa contra a porta assim que entramos. Com minha
boca colada na sua, ergui nossos dedos entrelaçados acima da sua
cabeça e ela arqueou as costas, esfregando os seios deliciosos em
mim. Mordi seu queixo outra vez, inspirando profundamente seu
cheiro delicioso de baunilha.
Maísa gemeu sob meu toque e soltei suas mãos, recuando dois
passos para olhar para ela. Sob a iluminação fraca e amarelada da
suíte, ela era uma visão e tanto.
Os cabelos escuros estavam uma bagunça, espalhados por todos
os lados, os cachos perfeitos do início da noite já longe de serem
vistos. Os lábios estavam inchados dos meus beijos, os olhos
brilhantes de desejo, as bochechas avermelhadas e o peito subindo
e descendo, descompassado.
A posição em que ela estava, escorada contra a porta, com os
peitos empinados e os braços erguidos, tornava a visão ainda mais
excitante.
Sem desviar os olhos dos seus, desfiz o nó da minha gravata
borboleta e arranquei a faixa de cintura do meu Smoking, jogando
as duas peças no chão. Maísa bebeu a visão, sem se mover. Ela
continuou observando, enquanto eu tirava as abotoaduras, depois,
tirava a camisa de dentro da calça.
— Venha aqui, linda — chamei e ela imediatamente obedeceu,
parando a quinze centímetros de distância, apenas. Fiz um sinal com
o dedo e ela se virou, ficando de costas para mim.
Juntei seus cabelos sobre o ombro coberto pela única alça do
vestido, deixando o outro completamente nu para mim. Abaixei os
lábios, beijando e chupando a pele ali, deixando um rastro molhado
em meu caminho que fez Maísa gemer baixinho enquanto minhas
mãos trabalhavam no zíper lateral de seu vestido.

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Enganchei um dedo na alça quando a peça foi aberta, deslizando-
a pelo braço, e o tecido cedeu, descendo até revelar o corpo quase
completamente nu de Maísa. As costas estavam completamente
livres, e a bunda coberta por uma calcinha mínima de renda preta.
Minha ereção pulsou em minhas calças, lutando contra o tecido,
fazendo minhas bolas latejarem, doloridas. Afundei meus dedos nas
coxas grossas, arrastando-os para cima ao mesmo tempo em que
empurrava o corpo de Maísa na direção do meu. Suas costas se
colaram ao meu peito.
— Sem sutiã, linda? — perguntei, em seu ouvido, abaixando os
olhos para finalmente ver os seios descobertos.
Em formato de pera, eles tinham o tamanho perfeito para encher
minhas mãos e foram os próximos destinos delas. Maísa gemeu
quando peguei os bicos entre os meus dedos, provocando-os entre
os polegares e indicadores.
Empurrei minha ereção em suas costas. Mesmo que ela estivesse
de salto, eu ainda era muito mais alto, então ela se empinou, num
pedido silencioso para que eu esfregasse o lugar certo.
Dei o que ela queria, amassando seus peitos em minhas palmas,
chupando seu pescoço com vontade, então a virei, espalmei sua
bunda e a impulsionei para cima.
Maísa pulou, enlaçando minha cintura com as pernas, afundando
os saltos em minha bunda. Atravessei o quarto, na direção da cama,
com nossas bocas coladas. Ela gemia e se esfregava em mim a cada
passo, me enlouquecendo, e quando a joguei no colchão, ela quicou,
mas não permaneceu deitada.
Maísa se ajoelhou e arrastou-se até a ponta da cama. Suas mãos
voaram para a minha camisa, desfazendo os botões, depois,
empurrando-a pelos meus ombros. Os dedos pequenos e mornos
desceram lentos pelo meu peito, pelos meus braços, meu abdômen
se contraiu quando marcaram sua passagem por lá também.
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Ela desabotoou minha calça e chutei meus sapatos e meias para


longe. Fiquei nu tão rápido quanto arrebentei as laterais de sua
calcinha, deixando a boceta lisa e encharcada completamente livre
para os meus olhos. Era impossível devorá-la apenas com eles.
Meus joelhos afundaram no colchão e mergulhei entre as pernas
de Maísa, lambendo suas dobras de cima para baixo, de ponta a
ponta. Ela gritou e se contorceu, empurrando os quadris para cima,
na direção da minha boca, implorando por mais com voz e
movimento. Eu lhe dei.
Me banqueteei de seus sulcos, lambuzando meu rosto até que
eles estivessem escorrendo pelo meu queixo e pescoço, até que a
mulher sob mim estivesse trêmula e descontrolada, até que eu me
sentisse tão desesperado, que não pensei quando me ergui e
afundei meu pau naquela boceta, urrando de prazer, porque essa era
a única coisa que seria capaz de aliviar meu desespero.
O tesão anuviava minha mente, disparava meu coração e fazia o
sangue rugir em meus ouvidos. Desci minha boca sobre a de Maísa,
ela me beijou com o mesmo desespero com que eu a beijava, e
mesmo que tivesse acabado de gozar, se moveu na minha direção
tão intensamente quanto eu me movia na dela.
Minutos ou anos poderiam ter se passado enquanto eu metia,
mais e mais fundo, mais e mais rápido, no canal apertado, que me
mamava, ordenhando meu pau, implorando pela minha porra a cada
contração até que eu não fosse mais capaz de lhe negar isso.
Maísa gritou e eu grunhi, enchendo sua boceta de porra até que
ela estivesse vazando e nada nunca pareceu tão certo.

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Pisquei para a luz suave da manhã que se infiltrava pelas
cortinas, banhando a suíte presidencial em tons dourados e
acariciando minha pele com seu calor tímido.
Ao meu lado, Henrique ainda dormia profundamente, o ritmo
tranquilo de sua respiração um contraponto ao tumulto de emoções
que me invadia.
Enquanto observava seu rosto relaxado no sono, a realidade do
que havíamos compartilhado começou a se assentar, mesmo que o
mundo ainda parecesse suspenso.
A noite anterior tinha sido... inesperada e, ao mesmo tempo,
desejada. Muito desejada. Suspirei, sentindo o ardor delicioso entre
as minhas pernas, a prova irrefutável do que fizemos.
Uma coisa era certa: havíamos cruzado uma linha, mergulhado
em águas que até então havíamos apenas circulado cautelosamente.
Agora, enquanto o silêncio enchia o quarto, as dúvidas começavam a
se infiltrar.
O que isso significava para nós? Para o nosso futuro? Para a
minha vida profissional? O que mudaria daqui para frente? O que já
havia mudado?
Ainda assim, havia algo confortável em vê-lo assim, tranquilo e
desarmado. Permiti-me um momento para apreciar a paz, antes que
a realidade e suas complicações inevitáveis voltassem a nos
pressionar.
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Era difícil não se perder em pensamentos sobre o que viria a


seguir, como lidaríamos com o trabalho, com os olhares curiosos dos
outros, com as expectativas não ditas.
Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, teríamos que conversar
sobre isso. Sobre nós. Sobre o que aconteceu e o que ainda estava
por vir. Mas por agora, permiti-me apenas estar ali, ao lado dele,
perdida apenas nas memórias da noite anterior, no toque fantasma
dos dedos, dos lábios de Henrique. Não havia arrependimentos.
Henrique se mexeu ao meu lado, um lembrete silencioso de que
não estava sozinha nessa montanha-russa de emoções. Ele ainda
estava dormindo, inconsciente das dúvidas que me perturbavam.
Me perguntei se eu gostaria de poder voltar no tempo, para a
simplicidade do que tínhamos antes... Mas então, lembrei-me do
calor do seu toque, da sinceridade nos seus olhos, e soube que,
apesar de tudo, não mudaria nada.
Minha mão, movida por um impulso, encontrou o caminho até o
cabelo de Henrique, deslizando suavemente entre os fios
bagunçados, espalhados pelo travesseiro, dando a ele um ar mais
jovem e descomplicado.
Mesmo dormindo, havia algo na expressão de Henrique que
parecia mais relaxado, menos carregado das preocupações e do
estresse que normalmente o acompanham.
Ele murmurou algo inaudível quando passei a mão pelos seus
cabelos, mas não acordou. Ver Henrique assim, num estado de
tranquilidade tão raro, fez-me pensar sobre a pessoa por trás do
profissional sempre tão focado e determinado.
Dormindo, ele não era o chefe exigente ou o homem de negócios
implacável; era simplesmente um homem, alguém que também
precisava de momentos de descanso e escape.
A luz que entrava pela janela iluminava partes do seu rosto,
destacando sua pele e as sombras suaves dos seus cílios fechados.
Ele era tão bonito.

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Eu queria memorizar a sensação de tocá-lo, gravar o momento
em minha alma como uma promessa silenciosa de que o que
aconteceu entre nós, não se resumiria a noite que acabou.
No entanto, a incerteza também cavava seu espaço em meu
coração. O medo de que a magia da noite anterior pudesse se
desfazer ao enfrentarmos a luz do dia me assaltava, uma
preocupação persistente sobre se poderíamos, ou não, passar pelas
barreiras que nos separavam fora dessa suíte presidencial.
Olhei para o relógio na mesa de cabeceira, constatando que
faltavam três horas para o nosso voo de volta à São Paulo. Com um
suspiro, decidi que era hora de começar o dia.
Havia muito o que fazer, mas assim que me movi com a intenção
de me levantar, braços se apertaram ao redor da minha cintura.
— Vai a algum lugar? — A voz rouca perguntou, abafada no meu
pescoço. Sorri. Era uma delícia. A voz de Henrique pela manhã era
uma delícia.
— De volta ao meu quarto — sussurrei.
— Por quê?
Ele recuou o rosto, encarando-me, e nos seus olhos não havia
nem um traço sequer da confusão dominando meu peito.
— Nosso voo é daqui a pouco — murmurei contra a boca que
estava separada da minha por milímetros.
Não resisti, rocei nossos lábios e Henrique entendeu isso como
um convite, puxando meu corpo ainda mais para o seu. O atrito das
nossas peles nuas me arrancou um gemido. Ele beijou meu pescoço,
lambeu minha garganta e enfiou uma perna entre as minhas.
— Henrique — gemi seu nome manhosamente e ele mordiscou e
puxou minha orelha.
— Viu só, linda? Por que a pressa? — questionou num tom
divertido, então estava em cima de mim.
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Sua boca colou na minha, seu corpo se encaixou entre minhas


pernas, e ele parecia mover os quadris e a língua no mesmo ritmo.
O ritmo perfeito para me enlouquecer.
Seu membro duro deslizava pelas minhas dobras já molhadas
para ele, disparando choques elétricos pelo meu corpo, roubando
minha racionalidade, minha capacidade de falar, me reduzindo a
uma massa desesperada por alívio.
— Tão molhada para mim, Maísa... Molhada para caralho! —
rosnou nos meus lábios.
Henrique deslizou a boca aberta pelo meu queixo, pescoço,
ombros e colo até chegar ao meu peito.
Seus lábios se fecharam no meu mamilo já duro e eu soltei um
gritinho deliciado. Suas mãos subiam e desciam pelo meu corpo,
mapeando cada curva como se quisessem decorá-las.
Em minutos, eu já não me lembrava nem mesmo o meu nome.
Tudo o que eu sabia, era ele. Tudo o que eu sentia, era ele. Tudo o
que eu queria, era ele.
E quando Henrique me preencheu com uma investida dura, gritei
novamente. Dessa vez, alto e longo, sentindo meu corpo inteiro ser
rasgado pelo gozo já na primeira investida, mas ele não parou.
Cravei as unhas em seu pescoço, arrastei-as pela sua pele,
arranhei, e acariciei, e deslizei-as pela pele suada enquanto sua boca
voltou a devorar a minha e seus quadris martelavam os meus. Os
sons, dos meus gemidos, dos seus grunhidos, dos encontros dos
nossos quadris, enchiam o quarto banhado pela luz do sol.
Minha consciência era um espelho partido em um milhão de
fragmentos e a sensação é de que havia somente uma coisa que
poderia torná-la inteira outra vez: outro orgasmo.
E eu o persegui. Ergui os quadris, encontrando os de Henrique a
cada investida, esfregando meus peitos em seu tórax, enfiando
minha língua em sua boca e arreganhando minhas pernas o máximo
possível quando seu polegar encontrou meu clitóris.

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Meus gritos encheram o quarto, cada entrada e saída um novo
arfar. O sangue rugia em meus ouvidos, meu coração batia
tresloucado, o suor escorria pela minha testa e espinha.
— Henrique, eu... — Não consegui terminar a frase, ela foi
cortada por mais um grito, rasgando minha garganta.
— Você o quê, Maísa? — ele exigiu, ignorando minha
incapacidade. — Você o quê?
— Eu vou... — Gritei quando ele beliscou meu clitóris e antes que
eu pudesse pronunciar a palavra, explodi num gozo avassalador, um
ainda mais do que os anteriores.
Meu corpo inteiro convulsionou, uma palavra longa e
incompreensível se arrastou pela minha garganta por todo o tempo
que levei para perceber que ainda a estava dizendo, e pisquei,
voltando a mim, no exato momento em que Henrique grunhia a
própria libertação, enchendo a camisinha.
Ele se deitou ao meu lado, nós dois ofegantes, e fechei meus
olhos, ainda sentindo os efeitos do gozo percorrerem minhas veias.
Minutos se passaram até que as batidas do meu coração se
acalmassem. Só então, abria a boca para falar.
— Sai comigo? — Henrique perguntou antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa e virei o rosto em sua direção, piscando,
confusa.
— O quê?
Ele se deitou de lado, com um sorriso imenso e satisfeito.
Dobrando o braço e apoiando a cabeça na palma da mão.
— Um jantar.
— Como um encontro?
Ele dobrou o lábio inferior para fora da boca e deu de ombros.
— Como um encontro.
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— Henrique... — comecei, mas não sabia exatamente como


terminar, então pausei. — Você, você... Tem certeza disso? Nós...
Nós... — gaguejei e ele ergueu uma sobrancelha interrogativa.
— Nós?
— Poderíamos deixar as coisas aqui. O que aconteceu no Rio,
pode ficar no Rio — sugeri, mesmo que essa fosse a última coisa
que eu queria.
Um brilho de diversão atravessou o olhar de Henrique.
— Poderíamos, é?
— Poderíamos — confirmei, timidamente.
Seu Nariz roçou minha bochecha e deslizou pelo meu rosto em
uma carícia lenta, provocativa.
— Mas não vamos. Não se depender de mim, então vou
perguntar uma vez, Maísa. É isso o que você quer? Que o que
aconteceu entre nós fique no Rio? — perguntou com a voz grave. A
seriedade súbita do seu tom fez os nervos entre as minhas pernas
se contraírem e minha resposta foi um gemido que não consegui
engolir. Henrique riu rouco. — Vou entender isso como um não.

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Quando o elevador se abriu para a cobertura de Henrique, meu
coração batia tão rápido que eu podia jurar que ele estava tentando
escapar do meu peito.
Eu continuava me repetindo, numa tentativa falha de acalmar os
nervos, "É só um jantar". Mas, no fundo, eu sabia que era muito
mais do que isso. Era o nosso primeiro encontro oficial.
Assim que a porta se fechou atrás de mim, uma onda de
sensações me atingiu. O ar estava carregado com uma mistura de
expectativa e nervosismo, mas era um nervosismo agradável, como
se estivesse na véspera de algo grandioso.
O espaço à minha frente abriu-se em uma vastidão elegante, a
cobertura de Henrique, um lugar que eu nunca tinha visitado, mas
depois de meses convivendo tão de perto com seu dono, ela era
exatamente o que eu esperava.
A decoração era sofisticada, mas acolhedora, uma representação
física do homem que eu estava começando a conhecer em uma
dimensão completamente nova.
A vista de São Paulo ao anoitecer, com suas luzes começando a
cintilar como estrelas distantes, era deslumbrante através das
janelas do chão ao teto.
Henrique me cumprimentou com um sorriso que imediatamente
dissipou parte da minha ansiedade. Ele estava casualmente
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elegante, o que de alguma forma o tornava ainda mais atraente do


que o usual.
— Oi, Maísa.
Caminhei lentamente em sua direção, cada passo ressoando no
amplo espaço, enquanto tentava absorver todos os detalhes ao meu
redor.
A suavidade em sua voz e o cuidado em seus olhos me fizeram
sentir acolhida e especial. O ambiente era íntimo, uma mesa posta
com simplicidade elegante, velas espalhadas criando uma iluminação
suave que dava ao lugar uma atmosfera quente e convidativa.
— Oi — respondi quando somente um passo nos separava, e ele
imediatamente me envolveu em seus braços.
Sua boca tomou a minha no próximo segundo, enroscando
nossas línguas uma na outra com o mesmo desespero que eu sentia.
Fazia menos de vinte e quatro horas que havíamos acordado na
mesma cama, e eu já estava desesperada para beijá-lo outra vez.
Aquilo não podia ser normal.
— Passei o dia inteiro louco para fazer isso — declarou num
sussurro. — Essa sua boca é viciante.
— Não mais que a sua — respondi, beijando-o outra vez.
Não sei por quanto tempo ficamos ali, nos braços um do outro,
bocas, e mãos e pernas entrelaçados, buscando mais e mais como
se o que conseguíssemos não fosse o bastante, nunca, mas quando
nos afastamos, eu estava sem ar.
— Você cozinhou? — perguntei, precisando ocupar minha boca
antes que ela decidisse assaltar a de Henrique novamente sem que
eu tivesse respirado pelo tempo mínimo.
Ele riu.
— Não. Não sei fazer isso — admitiu. — Mas pedi massa no seu
restaurante preferido. É uma coisa boa que eu more tão perto da

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empresa, e todos os que já pedimos lá, entreguem aqui também,
não é?
Meu sorriso cresceu.
— Ótima. É uma coisa ótima.
Durante o jantar, falamos sobre tudo e sobre nada – nossos dias,
pequenas histórias do escritório, planos futuros. Henrique tinha um
jeito de fazer qualquer tema parecer interessante, sua atenção
focada em mim de uma maneira que fazia parecer que éramos as
únicas duas pessoas no mundo.
A transição do nosso relacionamento do profissional para o
pessoal tinha sido surpreendentemente suave. Em nosso primeiro
dia de trabalho após voltarmos do Rio, mantivemos o
profissionalismo, mas houve momentos roubados – um olhar, um
sorriso – que falaram de algo mais.
E agora, aqui, na intimidade da sua cobertura, era como se
estivéssemos explorando um novo território juntos.
Depois do jantar, Henrique sugeriu assistirmos a um filme.
— Algo leve e divertido — disse ele, e eu concordei, agradecida
pela escolha descomplicada.
Nos acomodamos no sofá imenso e macio, e eu não pude evitar o
arrepio de excitação quando ele me puxou para perto, seu braço
envolvendo meus ombros. A proximidade era tanto confortável
quanto eletrizante.
Enquanto o filme se desenrolava, eu me peguei prestando mais
atenção na sensação de estar ali com Henrique do que na tela.
Havia uma facilidade em sua companhia, um sentimento de
pertencimento que eu nunca tinha experimentado antes.
— No que você está pensando? — Henrique sussurrou no meu
ouvido depois que ficamos algum tempo em silêncio.
Sua mão nunca parou a carícia que fazia em meus braços. Mordi
o lábio e desviei os olhos da televisão.
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— Nós não usamos preservativo — lembrei da preocupação que


rondou minha cabeça ao longo de todo o dia.
— Ah, — Henrique disso, parecendo constrangido. — Isso. — Ele
limpou a garganta. — Me desculpe...
— Não — o interrompi. — Não foi sua culpa, nós dois
esquecemos — garanti, porque era a verdade. A última coisa em
minha mente, na noite passada, era camisinha, não importa o quão
absurdo isso seja e eu sei que é muito absurdo. — E eu tomo
remédio — contei. — Preciso, para regular meu fluxo que era muito
intenso. Meus exames também estão em dia, estou limpa.
— Os meus também, claro. Eu jamais teria me permitido ir em
frente se fosse diferente — ele garantiu.
— Tudo bem — concordei, sentindo um clima estranho se instalar.
— Vou ser mais atento — prometeu, roçando os lábios nos meus
e eu balancei a cabeça.
— Eu também. — Rocei nossos lábios mais uma vez. — Eu
também.

A parada não havia sido planejada, mas Henrique se lembrou de


que estava sem o grão de café em casa e tivemos que fazer uma
mudança em nossa rota antes de ir para sua cobertura, porque
nenhum de nós dois seria capaz de começar o dia seguinte sem uma
xícara da bebida quente.
Era estranho estarmos juntos, fora do expediente, longe das
nossas casas e sem as amarras profissionais, fossem elas as
responsabilidades do trabalho ou as paredes da empresa. Eu estava
nervosa, isso era inegável.

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Sentada ao lado de Henrique em um pequeno café escondido
entre as ruas movimentadas do bairro de Pinheiros, sentia uma
mistura de emoção e incerteza.
A cafeteria era uma daquelas joias escondidas no coração da
cidade, um refúgio acolhedor do ritmo incessante de São Paulo. Ao
entrar, fui imediatamente envolvida por uma atmosfera que
misturava o charme rústico com toques modernos.
As paredes de tijolos aparentes, adornadas com prateleiras
repletas de livros e plantas pendentes, conferiam ao lugar uma
sensação de calor e acolhimento.
Pequenas mesas de madeira, cada uma com suas peculiaridades
e marcas do tempo, estavam espalhadas pelo espaço de forma a
criar cantinhos íntimos. A iluminação suave, proporcionada por
lâmpadas pendentes envoltas em cúpulas de metal e vidro, criava
um jogo de luz e sombra que dava vida ao ambiente, tornando-o
convidativo a qualquer hora do dia.
Ao fundo, o balcão exibia uma seleção cuidadosa de grãos de
café, com pequenos rótulos escritos à mão. A máquina de espresso,
polida e imponente, era o coração do café, de onde emanavam os
aromas ricos e envolventes que preenchiam o ar.
— Você vem aqui com frequência? — perguntei, tentando parecer
casual, enquanto brincava com a borda dos porta guardanapos.
Era uma tentativa de entender mais sobre ele, sobre sua vida fora
do trabalho, sem parecer invasiva.
Henrique sorriu, percebendo minha tentativa de iniciar uma
conversa mais pessoal.
— De vez em quando. Eles tem a melhor seleção de grãos da
cidade, e eu gosto muito de café feito com grão moído na hora.
Além disso, gosto do ambiente, ele é... — Henrique olhou para o
alto, como se a palavra que estava procurando flutuasse no ar. —
Pacífico. E você? Tem algum lugar em São Paulo que gosta de ir para
relaxar?
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— Adoro o Parque Ibirapuera — confessei. — É como um oásis no


meio do caos urbano, um lugar onde posso respirar.
Henrique acenou com a cabeça, um brilho de interesse em seus
olhos.
— É um belo lugar. Talvez possamos ir lá juntos algum dia.
Meu coração acelerou com a sugestão, e senti minhas bochechas
corarem levemente. A ideia de passar tempo juntos fora do contexto
do trabalho, em um lugar que eu tanto amava, era ao mesmo tempo
excitante e aterrorizante.
— Eu gostaria disso — consegui dizer, minha voz quase um
sussurro.
Quando o barista chamou o nome de Henrique, ele se levantou
prontamente para buscar nossos pedidos.
Observando-o caminhar até o balcão, percebi como cada detalhe
dessa noite parecia desenhado para nos aproximar ainda mais.
Ele voltou com uma bandeja, equilibrando cuidadosamente
nossos cafés e a torta que eu havia pedido, a qual, devo admitir,
escolhi quase babando em cima da vitrine.
A visão prometia uma explosão de sabores, e o aroma que se
desprendia dela já começava a preencher o espaço ao redor de
nossa mesa.
Colocando a bandeja sobre a mesa, Henrique lançou um olhar
cheio de intenções para a torta, e eu não pude deixar de rir da
expressão em seu rosto. Era uma mistura de desejo e brincadeira,
algo que tornava o momento ainda mais leve e especial.
— Isso parece incrível — comentou ele, olhando para a torta com
um interesse exagerado.
— Sim, e eu estava pensando em comer sozinha — respondi em
tom de brincadeira, puxando o prato um pouco mais para perto de
mim.

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Henrique fingiu estar ofendido, colocando a mão sobre o peito em
um gesto dramático.
— Nem um pedacinho? — perguntou, com uma expressão tão
teatralmente triste que era impossível não continuar a brincadeira.
— Vou pensar no seu caso — disse, tentando manter uma
expressão séria, mas a risada que escapava entre minhas palavras
entregava meu verdadeiro divertimento com a situação.
Ele se sentou, fingindo resignação, mas seus olhos brilhavam com
humor. Então, com um movimento rápido, estendeu a mão na
direção do prato como quem vai roubar um pedaço, provocando
uma reação imediata minha.
Cobri a torta com as mãos, protegendo-a, enquanto ambos
ríamos daquela bobeira.
— Tudo bem, você venceu — disse ele, recostando-se na cadeira
e pegando sua xícara de café. — Mas espero pelo menos uma
descrição detalhada de cada mordida.
— Pode deixar, farei com que se arrependa de não ter pedido
uma para você — prometi, ainda sorrindo.
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O restante da equipe já havia partido, mas como muitas vezes


desde a sua contratação, Maísa e eu permanecíamos, focados em
finalizar um projeto crítico que se estendia para além do expediente.
Sentado à minha mesa, eu deveria estar concentrado
exclusivamente nos relatórios à minha frente. No entanto, minha
atenção era constantemente desviada para Maísa, que trabalhava
intensamente a alguns metros de distância.
Observá-la, mesmo que fosse apenas pelo canto do olho, tornou-
se uma distração que eu lutava para controlar. E por mais que eu já
devesse ter me acostumado com isso, não conseguia não me
surpreender.
— O que foi? — Maísa interrompeu meus pensamentos, notando
minha atenção voltada para ela. Sua pergunta direta cortou o
silêncio do escritório, e eu me vi precisando rapidamente de uma
resposta.
Ser pego em flagrante não me surpreendeu. Eu a estava
encarando há tempo demais para fingir casualidade. E não é que eu
não estivesse tentando evitar, eu estava, mas a cada dia, a mulher
parecia se tornar mais irresistível, de beijar, de tocar, de foder, de
olhar.
Mordi meu lábio inferior, fixando o olhar em Maísa, mergulhado
em uma tentativa de decifrar os turbilhões de sentimentos que ela
despertava em mim.

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A decisão de querê-la havia sido clara, uma escolha definida com
a certeza de que era o que meu coração desejava. Contudo, essa foi
a última vez que senti que tinha algum controle sobre as emoções
que Maísa me fazia sentir, um território inteiramente novo para mim.
Antes dela, minha vida era regida por decisões lógicas e
controladas, cada passo meticulosamente planejado e executado
com precisão. Mas desde que Maísa entrou em minha vida, essa
ordem foi abalada.
Ela trouxe consigo sentimentos e desejos que eu não sabia ser
possível, quebrando barreiras que eu não conhecia e me levando por
caminhos que nunca imaginei explorar.
Cada olhar dela, cada sorriso, cada palavra, era um tipo
completamente novo de desafio ao meu autocontrole. Por mais que
eu tentasse planejar ou prever como lidaria com o que estávamos
vivendo, bastava vê-la para que eu fosse surpreendido pelos meus
próprios desejos.
Eu até esqueci a porra da camisinha. Eu nunca transo sem
caminha. Nunca. Não depois daquilo.
Maísa piscou e preocupação nublou seus olhos. Percebi que fiquei
em silêncio por mais tempo do que planejei.
— Estava pensando... — pausei, escolhendo minhas palavras com
cuidado. A linha entre o pessoal e o profissional havia se tornado
tênue, e era crucial manter o equilíbrio. Eu realmente deveria
manter o equilíbrio... — Sobre como você se mantém tão focada. É
algo que realmente me impressiona — declarei, mantendo o tom de
voz firme, uma tentativa de sufocar o que eu realmente queria dizer.
Ela inclinou a cabeça, avaliando minha resposta, e o movimento
foi incrivelmente sensual.
— Estamos falando sobre trabalho? — provocou, uma faísca de
leveza em sua voz.
Meu pulso acelerou e estreitei os olhos, pressionando um lábio
contra o outro e entrelaçando os dedos das mãos enquanto a
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observava com toda atenção do mundo. Sua respiração mudou de


ritmo e suas bochechas coraram sob o meu escrutínio.
Eu deveria manter o equilíbrio, manter o limite entre o pessoal e
o profissional, mas foda-se... Ser o chefe precisa ter alguma
vantagem.
— Venha aqui — chamei e Maísa umedeceu os lábios, deixando-
os brilhantes.
Ela olhou para a porta fechada do escritório como se a madeira
tivesse subitamente se tornado vidro.
— Alguém pode entrar — argumentou, me fazendo sorrir.
— Nós somos os últimos na empresa.
Seus dentes afundaram no lábio inferior, mas ela se levantou e
não só deu os passos entre nós, como se sentou no meu colo,
deixando minhas coxas entre as suas. Recostei-me no sofá,
segurando em sua cintura com uma mão enquanto a outra ia para a
sua bochecha.
— Você é tão linda — eu disse, porque não conseguia me conter.
— Absurdamente linda.
Maísa sorriu com aquela timidez sensual que era toda dela e
abaixou a cabeça até que nossos lábios se tocassem. Foi ela quem
conduziu o beijo, encaixando nossos lábios primeiro, depois,
lambendo os meus para só então entrelaçar nossas línguas.
Deixei que ela conduzisse, que ditasse o ritmo e quando ela
começou a rebolar, esfregando as pernas abertas na minha ereção
cada vez mais dolorida, meus dedos se espalharam pelos fios de
cabelo em sua nuca.
— Dorme comigo hoje? — pedi, mordiscando sua orelha.
— Nós dormimos juntos ontem — Ela rebolou outra vez, se
esfregando com mais força e gemendo. — E anteontem. — Maísa
soltou um longo suspiro. — E todos os dias desde que voltamos de
São Paulo.

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Fiz o caminho de volta até sua boca arrastando meus dentes pela
linha do seu maxilar.
— Idaí? Eu quero você — admiti, lambendo sua boca. — Dorme
comigo hoje, Maísa? — perguntei e segurei sua cintura e seus
cabelos com força, parando seus movimentos e obrigando-a a me
encarar.
— Durmo.

— Eu não faço ideia de quando foi a última vez que pisei num
parque — admiti, olhando ao meu redor, enquanto Maísa
desembrulhava nosso almoço.
Sentados à mesa de concreto num dos poucos parques da
cidade, eu tinha uma visão privilegiada não apenas de Maísa, mas
também do cenário vibrante que se desenrolava além dela, a vida se
desdobrando em uma série de cenas pitorescas.
Crianças corriam pelo gramado verdejante, seus risos
preenchendo o ar com uma energia contagiante. Casais caminhavam
de mãos dadas pelos caminhos sinuosos, ocasionalmente parando
para admirar as flores que explodiam em cores vivas nos canteiros
meticulosamente cuidados.
Um grupo de amigos compartilhava risadas e histórias sob a
sombra generosa de uma árvore antiga, cujos galhos se estendiam
como braços acolhedores sobre eles.
Mais adiante, um pequeno lago refletia a serenidade do céu azul,
suas águas tranquilas servindo de espelho para as nuvens que
flutuavam preguiçosamente.
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Patos nadavam em formação, cortando a superfície do lago com


movimentos graciosos, enquanto pessoas sentadas à margem
lançavam-lhes pedaços de pão.
Olhando para Maísa, percebi como ela parecia perfeita no cenário
ao seu redor. A luz do sol iluminava seus cabelos, criando reflexos
dourados que emolduravam seu rosto. Seu sorriso, ao me oferecer
um sanduíche, era tão sincero e radiante quanto o dia que nos
cercava.
— De nada — ela respondeu com um sorriso atrevido, me
arrancando uma risada.
Fora do escritório, longe das responsabilidades, começávamos a
navegar as águas ainda desconhecidas de nossa relação recém-
formada. Havia uma curiosidade mútua no ar, um interesse em
descobrir mais um sobre o outro que ia além do profissional.
— Responde sem pensar! Onde você se vê daqui a cinco anos? —
ela falou num ritmo acelerado, como se pretendesse ilustrar como
esperava que eu respondesse.
— Estou sendo entrevistado?
— Talvez!
Maísa empinou o nariz.
— Para qual cargo.
Um brilho travesso tomou conta dos seus olhos.
— Ainda não decidi.
Eu ri de novo.
— Expandindo para o exterior. E você?
Uma das sobrancelhas dela se ergueu.
— Honestamente?
— Com certeza.
— Com um cargo executivo na Borges.

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Meu sorriso foi predatório.
— Ambiciosa.
— É mais forte do que eu.
Havia um conforto estranho nessa conversa que era metade troca
de confidências, metade troca de provocações. Uma sensação de
que, apesar de estarmos apenas começando a explorar o que
poderíamos ser juntos, já havia uma base de entendimento mútuo
sendo construída.
Ainda assim, uma cautela pairava sobre mim, uma hesitação em
me permitir mergulhar completamente nesse novo sentimento.
Conforme o almoço continuava, conversávamos sobre assuntos
variados, desde filmes e livros favoritos até lugares que gostaríamos
de visitar um dia. Cada resposta trazia à tona mais camadas da
personalidade de Maísa, e esperava que minhas respostas fizessem
o mesmo.
— O que você acha da ideia de morar no exterior? Tem vontade?
— perguntou ela, uma curiosidade genuína em sua voz.
— Pode ser uma aventura — respondi, ponderando sobre a ideia.
— Desde que se tenha a companhia certa.
Nossos olhares se encontraram brevemente, um reconhecimento
tácito de que estávamos, de alguma forma, referindo-nos um ao
outro.
A conversa fluiu naturalmente, e embora houvesse momentos de
silêncio, eles nunca se tornaram desconfortáveis.
Depois de terminarmos de comer, enquanto nos dirigíamos de
volta para a empresa, uma sensação de apreensão misturada com
expectativa tomou conta de mim.
— Foi um bom almoço — disse Maísa, com um sorriso que senti
refletido em meu próprio rosto.
— Foi um ótimo almoço — concordei, lamentando não poder
beijá-la, porque já estávamos quase na porta do prédio.
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A cena seria cômica se não fosse trágica. De pé, em cima da


cama, com o coração batendo tão forte que eu jurava que ele ia
saltar pela boca, eu apontava com um misto de horror e urgência
para o pequeno invasor que ousara entrar no nosso espaço: uma
barata.
— Henrique! Henrique, mata ela! — eu gritava, tentando manter
o equilíbrio enquanto a repulsa me fazia querer saltar para ainda
mais longe do chão.
Henrique, por sua vez, estava no chão, claramente dividido entre
a diversão evidente em seu rosto e a tarefa de lidar com o inseto.
Ele olhava para mim, uma risada incontrolável escapando entre seus
lábios antes de ele conseguir falar.
— Maísa, você está agindo como se fosse um monstro gigante. É
só uma barata — disse ele, tentando controlar o riso.
— Só uma barata? Só uma barata? Henrique, ela é do tamanho
de um pequeno automóvel! — exagerei, sabendo muito bem que
não era o caso, mas a adrenalina do momento me fazendo pintar o
inseto como uma criatura monstruosa.
O olhar que ele me lançou era uma mistura de afeto e diversão,
como se essa pequena crise doméstica fosse mais um dos nossos
momentos a serem lembrados com carinho.
Lentamente, ele se aproximou do inseto, armado com um chinelo,
enquanto eu continuava dando instruções frenéticas do alto da

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minha fortaleza improvisada na cama.
— Cuidado, ela é traiçoeira! — alertei, como se a barata pudesse
entender meus avisos e tramasse sua fuga.
Com um movimento rápido e preciso, Henrique acabou com a
ameaça, me olhando triunfante.

— Pronto, salvador da pátria aqui. Pode descer agora, princesa —


brincou, estendendo a mão para me ajudar a descer da cama.
Hesitei por um momento, ainda não totalmente convencida de
que o perigo havia passado, mas a segurança na voz de Henrique
me fez confiar.
— Você sabe que, depois disso, vou esperar que você venha ao
resgate toda vez que houver um inseto, certo? — brinquei, descendo
da cama com um pouco mais de coragem, incentivada por sua
proximidade. Ele me envolveu em seus braços, uma risada suave
ecoando entre nós. — Você é meu herói — disse brincando
apreciando a proximidade e o calor que Henrique me oferecia.
— Estarei sempre aqui, mas infelizmente para você, esse herói
não trabalha de graça — avisou.
— É mesmo? E de quanto são os honorários?
O olhar lascivo que ele me lançou era resposta bem mais do que
suficiente e incendiou meu corpo inteiro.
Semanas se passaram desde a primeira vez que nos tocamos, e
ao invés de o desejo diminuir, ele parecia aumentar de maneira que
passávamos praticamente todas as noites juntos.
E não era só isso. O próprio incidente com a barata, embora
momentaneamente aterrorizante, também serviu como um lembrete
do quão natural a presença de Henrique se tornou em minha vida.
Os lençóis na minha cama ainda guardavam o calor e o cheiro da
mistura dos nossos corpos. Cada canto do meu apartamento, do
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meu espaço, havia sutilmente começado a absorver traços de


Henrique.
E ele, o poderoso empresário, milionário, se encaixou tão bem no
meu cubículo, nunca reparou, nunca julgou. Só... Pertenceu.
Sua risada, a forma como ele se movia com familiaridade pela
sala, até o modo como ele sabia exatamente onde encontrar um
chinelo para enfrentar nosso pequeno intruso... tudo isso me fez
perceber que Henrique não era mais apenas uma visita.
De alguma forma, sem que eu me desse conta, ele havia se
espalhado completamente pelo meu cotidiano, ocupando todos os
espaços que encontrou para conquistar.
A transição de nosso relacionamento de colegas de trabalho para
algo mais pessoal aconteceu com uma suavidade que me
surpreendia. No escritório, mantínhamos o profissionalismo com uma
facilidade que enganava os desavisados, nossa interação pontuada
por uma eficiência que ocultava a profundidade do que estava
crescendo entre nós. Mas era nos momentos fora do trabalho, como
agora, que a verdadeira natureza de nosso vínculo brilhava.
A presença de Henrique na minha casa não me sobrecarregava;
pelo contrário, trazia uma sensação de completude que eu não sabia
estar buscando.
E agora, vendo-o dividido entre rir da minha reação exagerada e
se desfazer da barata, eu não pude deixar de sorrir.
— Então é melhor eu começar a pagar — murmurei antes de
beijá-lo.

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Henrique tinha uma coleção impressionante de discos de vinil,
abrangendo uma variedade de gêneros, desde clássicos do jazz até
os mais modernos hits da música indie.
Cada visita que eu fazia à sua cobertura, parecia me render um
novo cômodo, mesmo que passássemos sempre a maior parte do
meu tempo aqui em seu quarto, em sua cama, para ser mais exata.
— Qual é o seu favorito? — perguntei, correndo os olhos pelas
muitas estantes abarrotadas de discos, espalhadas pela sala
sofisticada e acolhedora.
— Eu tenho muitos — disse, passando o polegar por uma
prateleira inteira, a procura de um disco específico que eu não sabia
qual era.
— Top 10? — tentei, tomando um gole do meu vinho.
O sabor adocicado explodiu na minha boca e eu quase gemi.
Escolher vinhos era mais uma das muitas coisas em que Henrique
era muito bom.
— Tom 20? — rebateu e eu gargalhei.
— Qual é o seu signo? Você não é muito bom fazendo escolhas,
é?
— Só aquelas que importam — garantiu, pegando um disco e
atravessando a sala, até a linda vitrola elétrica que eu achei ser
decorativa, até aquele momento.
Ele olhou para mim por sobre o ombro quando abaixou a agulha
da vitrola, um sorriso de canto pendurado nos lábios, me dizendo
que estava planejando alguma coisa.
Tive a confirmação disso quando Henrique apoiou a taça de vinho
que segurava sobre uma das estantes, e deslizou até mim com
passos leves e ritmados, me estendendo a mão no mesmo instante
em que a música lenta tomou conta da sala.
Joguei a cabeça para trás, gargalhando de sua bobeira, mas era
impossível resistir àquele homem, então deixei minha taça na
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mesinha ao meu lado e aceitei sua mão.


Henrique colou nossos corpos imediatamente, e com movimentos
lentos e suaves, nos conduziu até o tapete no canto esquerdo,
contornando o sofá amplo que dominava o centro da sala.
Enquanto ele nos rodopiava, meus olhos vagaram pelas estantes
de madeira escura, repletas de discos de vinil e livros
cuidadosamente organizados; pela janela ampla revelando a vista
noturna de São Paulo, e pelas luzes da cidade cintilando como
estrelas distantes.
As cortinas de tecido balançavam, como se também seguissem
nosso ritmo e a iluminação quente e suave tornava o momento
deliciosamente íntimo.
Fechei os olhos quando nossos movimentos se tornaram lentos e
passamos a dançar quase sem sair do lugar, rostos colados e dedos
entrelaçados, expirações mornas aquecendo os pescoços e orelhas
um do outro. Meu corpo inteiro se arrepiou, desejando mais contato
do que estava recebendo.
Cercados por discos e livros que contavam histórias de vidas e
mundos diversos, a música se tornou nosso elo. A canção suave
parecia envolver todo o ambiente, convidando nossos corpos a se
moverem juntos, nossos corações a baterem em uníssono.
A proximidade com Henrique, a maneira como nossos calores se
misturavam, era delicioso todas as vezes. Havia uma eletricidade no
ar, desejo e antecipação.
O mundo ao nosso redor desapareceu, deixando apenas a nós
dois, perdidos naquele momento compartilhado.
— É oficial, — Henrique disse, sua voz baixa ao meu ouvido,
enviando arrepios pela minha espinha. — Eu adoro dançar com
você.
— A recíproca é verdadeira — respondi, completamente entregue.

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Dançamos até que nossos lábios não suportassem mais se
manter longe uns dos outros, e que às nossas mãos, não bastasse
mais permanecer entrelaçadas.
E quando isso aconteceu, nos despimos sobre o tapete da sala de
música e continuamos a dançar, só que de um jeito completamente
diferente.
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Thomaz estava na porta de sua casa, como se esperasse por um


evento há muito antecipado. Sua expressão era uma mistura de
satisfação e incredulidade ao me ver.
— Henrique, meu velho! — exclamou, abrindo os braços como se
preparasse para um discurso teatral. — Quando a portaria do
condomínio avisou que você passou por lá, chequei o calendário três
vezes para ter certeza de que não era meu aniversário ou algum
feriado nacional. Você veio e... espontaneamente? — Ele fingiu
tropeçar nas próprias palavras, numa atuação sofrível. — Ou estou
vendo uma miragem? Será que estou tendo alucinações? Estou
chocado!
Ele continuou, sem dar espaço para minha resposta.
— Eu estava começando a pensar que precisaríamos de um
mandado de busca para te arrancar daquele escritório. Ou será que
você finalmente decidiu buscar um hobby? — Thomaz riu,
claramente se divertindo às minhas custas.
Eu estava prestes a responder quando Thomaz finalmente notou
Maísa ao meu lado. Seu rosto passou de uma expressão de zombaria
divertida para uma surpresa teatral, os olhos arregalados, as mãos
levantadas ao ar. Revirei os olhos.
— E espera — Thomaz interrompeu a si mesmo. — Quem é essa
visionária que conseguiu o impossível, trazendo Henrique para o
mundo dos vivos... e a um churrasco, num domingo?

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Thomaz então se voltou para Maísa, adotando uma pose
dramática, como se estivesse à beira do desmaio.
— Minhas senhoras e senhores, — disse para ninguém, afinal, só
estávamos nós ali. —, testemunhem um milagre. Henrique não só
saiu de sua caverna como trouxe companhia. Oh, a emoção é
demais para mim! — Ele colocou uma mão sobre a testa, fingindo
desfalecimento.

Maísa riu, entrando na brincadeira.


— Thomaz, esta é Maísa — apresentei-a formalmente, embora a
formalidade parecesse ridícula dado o teatro de Thomaz. — Maísa,
Thomaz, meu amigo de longa data e mestre da dramaticidade.
— Encantado, Maísa. Qualquer um que consiga fazer Henrique
participar da sociedade merece um prêmio. Ou um feriado —
Thomaz disse, estendendo a mão para um cumprimento, mas seus
olhos brilhavam com uma mistura de humor e curiosidade genuína.
Maísa aceitou a mão dele, sorrindo.
— Prazer em conhecê-lo, Thomaz. Ouvi muito sobre você. E
quanto a fazer Henrique sair, bem, digamos que tenho meus
métodos.
— Espero que apenas coisas boas, ou pelo menos
escandalosamente interessantes — Thomaz respondeu, com um
sorriso travesso. — E esses seus métodos, são escandalosamente
interessantes?
Maísa corou, mas não se intimidou.
— Meus métodos são secretos, infelizmente para você, não posso
compartilhar — disse, enquanto Thomaz nos conduzia à área do
churrasco.
Meu amigo estalou a língua.
— Uma pena! Estou tentando descobrir como tirar Henrique do
escritório há anos.
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— Se eu te contasse, teria que te matar — Maísa respondeu, o


rubor em suas bochechas dando lugar a um sorriso confiante.
— Bom, seja lá o que você fez, continue fazendo — Thomaz
disse, lançando-me um olhar debochado.
Eu não pude deixar de rir.
— É o que eu pretendo — ela garantiu, me lançando uma
piscadinha no momento em que saímos para o jardim.
Linda.
Ela escolheu um vestido leve, que parecia capturar a essência do
final de tarde com sua cor suave, um azul que lembrava o céu claro
de um dia de verão.
Seus cabelos estavam soltos, caindo em ondas suaves sobre os
ombros, e ela optou por uma maquiagem discreta que realçava sua
beleza natural sem exageros.
Os acessórios eram mínimos, um par de brincos delicados e uma
pulseira fina que adornava seu pulso. Nos pés, sandálias simples,
que combinavam perfeitamente com o clima descontraída do
churrasco.
O mais impressionante, no entanto, era como Maísa carregava
tudo isso com uma graça e confiança que atraía olhares. Assim que
pisamos na área onde os outros convidados estavam, ela se tornou
o centro das atenções.
Não era apenas a escolha das roupas ou a forma como elas se
encaixavam nela, mas a maneira como Maísa se movia e sorria,
como se estivesse completamente à vontade em sua própria pele.
Ela irradiava uma luz própria, uma energia que fazia com que ela
parecesse estar em harmonia com tudo ao seu redor.
Maísa tinha o dom de fazer o simples parecer extraordinário, de
transformar um encontro casual em uma ocasião memorável. E,
naquele momento, enquanto a observava rir de algo que Thomaz

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acabara de dizer, senti-me incrivelmente sortudo por tê-la ao meu
lado.
O cheiro delicioso da carne na grelha já enchia o ar, e algumas
outras pessoas que eu reconhecia como amigos comuns e colegas
de Thomaz acenavam em nossa direção
— Thomaz, só mantenha Henrique longe da churrasqueira —
Maísa brincou. — Ouvi dizer que os talentos dele estão mais para
números do que para a culinária.
— Ah, não se preocupe, Maísa. Da última vez que deixamos
Henrique perto de uma churrasqueira, tivemos que chamar os
bombeiros.

A casa de Thomaz sempre me impressionou, não apenas pelo


tamanho, mas pelo estilo e pela atmosfera acolhedora que ele
conseguiu criar.
Não é exatamente o que você chamaria de mansão tradicional,
mas está muito perto disso, com uma arquitetura moderna que
combina linhas limpas com elementos naturais, como madeira e
pedra, criando um visual tanto imponente quanto convidativo.
A decoração é um equilíbrio perfeito entre elegância e conforto,
com móveis de design que parecem obras de arte, mas que
convidam você a se sentar e relaxar.
Mas o verdadeiro destaque da casa, especialmente em dias como
hoje, é a área da churrasqueira. Thomaz fez questão de que esse
espaço fosse perfeito para entretenimento.
É uma extensão do interior, acessível através de portas de correr
que, quando abertas, praticamente apagam as fronteiras entre
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dentro e fora. Há uma grande churrasqueira de alvenaria, equipada


com tudo que se possa precisar para preparar um banquete,
rodeada por uma bancada de granito que serve tanto para preparar
os alimentos quanto para servir de bar.
Ao lado, uma grande mesa de madeira, capaz de acomodar um
bom número de convidados, domina o espaço, com cadeiras
confortáveis que convidam a longas horas de conversa após a
refeição.
E, claro, não poderia faltar a piscina, uma obra de arte em si,
com bordas infinitas que parecem se estender até tocar o céu,
cercada por espreguiçadeiras e sombreiros, criando o local perfeito
para relaxar e aproveitar o sol.
— E então? — Thomaz me pergunta, movendo as sobrancelhas
para cima e para baixo num gesto idiota.
Maísa se misturou facilmente, conversando e rindo com um grupo
de mulheres que ela acabara de conhecer, deixando-me sozinho com
Thomaz pela primeira vez desde que chegamos, ele agarrou sua
chance com unhas e dentes.
Meu amigo nunca foi de perder oportunidades, e eu sabia que a
curiosidade estava queimando dentro dele desde o momento que
chegamos.
— E então o quê? — Me fiz de desentendido apenas porque
podia.
Thomaz estreitou os olhos travessos que eu conhecia tão bem.
— A elefanta na sala... Maísa. — Ele se inclinou, como se
estivesse prestes a ouvir o maior segredo do século e eu suspirei,
preparando-me para a inquisição que sabia que estava vindo.
Thomaz tinha o dom de fazer você se sentir como um livro aberto.
— O que quer saber, Thomaz?
— Ah, você sabe, apenas o básico. Como vocês se conheceram,
há quanto tempo estão saindo, quando vai me convidar para o

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casamento... — disse, acenando casualmente com a mão, como se
essas perguntas fossem as mais naturais do mundo.
Eu ri, apesar de achá-las absurdas.
— Nos conhecemos no trabalho. E não, não vou te convidar para
o casamento porque não há um casamento para convidar.
Thomaz me deu um olhar incrédulo.
— No trabalho? Isso é tão... você, Henrique. — Meu amigo
balançou a cabeça de um lado para o outro, negando. — Mas vá em
frente, me ignore. Só me lembre de aumentar meu guarda-roupa
para todas as festas de casamento.
Eu não pude deixar de sorrir. A facilidade com que Thomaz
transformava qualquer conversa em algo divertido era uma das
razões pelas quais nossa amizade durou tantos anos. Mas, debaixo
de todas as piadas, eu sabia que ele estava genuinamente
interessado.
— Estamos nos conhecendo, — expliquei. — Maísa é uma mulher
incrível. Já havia falado dela para você. Ela é minha secretária.
Thomaz colocou as mãos nas bochechas e arregalou os olhos
teatralmente.
— Sua secretária? — sussurrou. — Nãããããão... — Bufei. —
Parece que tirar você do escritório não é a única mágica que ela
sabe fazer — brincou, jogando a cabeça para trás e rindo da própria
piada.
Balancei a cabeça, rindo.
— Bem, meu amigo, você escolheu uma boa. — Thomaz deu um
tapinha nas minhas costas. — E se precisar de conselhos amorosos,
você sabe onde me encontrar.
— Acho que vou passar, mas obrigado pela oferta.
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Gemi, abraçada à privada no banheiro da Borges & Associados,


minha mente girava tanto quanto meu estômago.
A manhã começou de forma abrupta e desconfortável, uma
sensação de mal-estar que me pegou completamente de surpresa.
As paredes revestidas por azulejos brancos, imaculados, feriam
meus olhos, de repente, sensíveis e o chão de cerâmica fria sob
meus pés contrastava com o calor incômodo que emanava de dentro
de mim.
O dia mal tinha começado e eu já me encontrava entregue a uma
náusea implacável. "É só uma virose", repeti para mim mesma,
tentando afastar a frustração de ter que me ausentar do trabalho
por algo tão trivial, mas seria impossível trabalhar, o mal-estar não
dava sinais de melhora, e cada movimento parecia exigir um esforço
hercúleo.
Henrique havia saído cedo para uma reunião externa, e nós mal
tivemos a chance de falar pela manhã. Agora, sozinha no silêncio do
banheiro, sentia uma mistura de alívio e decepção por ele não estar
ali.
Alívio porque a última coisa que eu queria era que alguém me
visse nesse estado; decepção porque, no fundo, eu queria seu
apoio, mesmo que apenas para me dizer que tudo ficaria bem.
Cada onda de mal-estar era um lembrete irritante de que meu
corpo decidira, sem minha permissão, colocar tudo em pausa. "Por

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que hoje?", questionava-me, irritada com a péssima escolha de
timing do meu sistema imunológico.
Após mais uma rodada desagradável de náuseas, decidi que não
havia condições de permanecer no escritório. A ideia de enfrentar
um dia de trabalho sentindo-me assim era impensável.
Com passos lentos e cuidadosos, me levantei e saí do reservado.
Apoiando-me na pia, olhei meu reflexo no espelho. A palidez do meu
rosto e o brilho de exaustão nos meus olhos eram inegáveis.
Saí do banheiro, peguei minha bolsa e avisei à recepção que
precisaria ir para casa.
O trajeto até meu apartamento foi um borrão de desconforto. A
cada balanço do táxi, uma nova onda de náusea ameaçava. "Só
pode ser virose", murmurava, tentando convencer não só a mim
mesma mas também ao universo, na esperança de que isso
acelerasse minha recuperação.
Chegando em casa, o alívio de cruzar a porta do meu
apartamento foi imenso. A familiaridade do meu espaço, com seus
cheiros e cores, oferecia um conforto que o frio e impessoal
banheiro da empresa não podia proporcionar. Permiti-me cair no
sofá, envolvendo-me em um cobertor, ainda tentando convencer a
mim mesma de que tudo ficaria bem.
Eu detestava a ideia de estar doente.
A frustração de ter que colocar minhas responsabilidades de lado
era quase pior que o mal-estar físico. Eu sempre me orgulhei da
minha capacidade de gerenciar múltiplas tarefas, de nunca deixar a
bola cair. E agora, por causa de uma virose, tudo parecia estar em
espera.
"Quando Henrique voltar, vou ter que compensar esse tempo
perdido", planejei, mesmo sabendo que ele nunca me pressionaria
dessa forma. Ele entenderia, é claro, mas isso pouco fazia para
aliviar a pressão que eu mesma me colocava.
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Mas, por enquanto, tudo o que eu podia fazer era esperar e


cuidar de mim mesma.

Pisquei para a claridade, percebendo que havia adormecido.


Despertar no sofá não era exatamente como eu planejara passar
meu dia. A sensação estranha e desconfortável que me fez
abandonar o trabalho mais cedo, ainda ecoava em minha mente,
misturada com a neblina do sono.
Minha primeira visão ao abrir os olhos foi Henrique, agachado à
minha frente, um sorriso gentil iluminando seu rosto enquanto
acariciava meus cabelos com uma ternura que me aquecia por
dentro. Ele segurava uma xícara de chá quente, o vapor dançando
no ar entre nós, uma oferta de conforto silencioso.
Inspirei o cheiro de hortelã e pisquei de novo, tentando ajustar
minha visão à luz do dia que ainda penetrava pela janela, indicando
que não era tão tarde quanto meu corpo cansado sugeria.
A confusão se misturou com a surpresa ao vê-lo ali, tão fora do
contexto da sua agenda sempre lotada.
— Henrique, o que você está fazendo aqui? — minha voz soou
rouca, o resquício do sono ainda presente. — Não deveria estar em
reuniões o dia todo?
Ele sorriu, aquele tipo de sorriso que parecia iluminar o cômodo
inteiro, e respondeu com uma calma que instantaneamente me fez
sentir um pouco mais centrada.
— Assim que soube que você tinha ido embora por não estar se
sentindo bem, cancelei os compromissos que não eram urgentes. —

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Sua voz era suave, mas firme, não deixava espaço para argumentos.
— Você é mais importante.
A simplicidade e a sinceridade em sua declaração fizeram meu
coração bater mais forte, uma mistura de gratidão e amor
inundando meu peito.
A preocupação em seus olhos, a maneira como ele me observava,
como se eu fosse a única coisa que importava naquele momento,
me fez perceber quão sortuda eu era.
Eu me perguntava constantemente se não estávamos indo rápido
demais. Talvez fossem os dezoito anos de diferença entre as nossas
idades, mas Henrique era intenso em tudo, em cada desejo, decisão,
em cada atitude e embora eu amasse as sensações proporcionadas
pela sua intensidade, sempre me pegava preocupada de acabar me
afogando nela.
E se eu me entregar demais? Se se só eu estiver sentindo isso? E
se eu estiver sentindo mais?
Porém, havia momentos, momentos como esse, em que o olhar
que ele me dava me dizia que minhas preocupações não passavam
de inseguranças tolas e nada mais.
Ele sentia tanto quanto eu. Ele queria tanto quanto eu. Não havia
perigo em me jogar de corpo e alma nessa relação, com Henrique,
eu voaria.
— Henrique, eu... — comecei, mas as palavras se perderam,
engolidas pela emoção que ameaçava transbordar.
Ele estendeu a xícara de chá para mim, seus olhos nunca
deixando os meus, e eu a aceitei, sentindo o calor do líquido através
da cerâmica. O gesto era simples, mas carregado de significado,
uma manifestação física do seu apoio e cuidado.
— Beba. Vai te fazer sentir melhor — disse ele, e eu obedeci,
permitindo que o calor do chá dissipasse o frio que se instalara em
mim, tanto físico quanto emocional.
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A presença de Henrique, o fato de ele ter colocado tudo de lado


apenas para estar ali comigo, era um bálsamo para a inquietação
que os sintomas desconhecidos haviam trazido. Por um momento,
permiti-me simplesmente ser apoiada por sua presença,
reconfortada pelo seu cuidado.
— Obrigada — consegui dizer, depois de alguns goles do chá,
sentindo-me um pouco mais fortalecida.
— Não precisa agradecer. Estou aqui por você, sempre — ele
respondeu, e algo na firmeza de suas palavras, na promessa
implícita nelas, me fez acreditar.

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Estreitei os olhos para o tabuleiro entre Maísa e eu como se isso
pudesse, de alguma forma, impedir minha derrota eminente, mas
não funcionou.
Estávamos há quase uma hora mergulhados em uma partida de
xadrez, o tabuleiro entre nós um campo de batalha silencioso, onde
cada peça carrega o peso de uma estratégia não dita.
O jogo começou de maneira casual, um desafio lançado por
Maísa com um brilho competitivo nos olhos, que eu, claro, aceitei.
No início, movemos nossos peões com a cautela típica dos
primeiros movimentos, tentando sondar a estratégia um do outro
sem revelar muito as nossas intenções.
Ela avançou seu cavalo, um movimento ousado que quebrou a
calma inicial, e eu respondi deslocando minha torre, tentando
estabelecer um controle sobre o centro do tabuleiro.
À medida que o jogo progredia, o ritmo entre nós se
intensificava. Maísa tinha um jeito de antecipar minhas jogadas, um
passo à frente, sempre com um contra-ataque pronto.
Ela capturou meu bispo com uma astúcia que me fez arquear as
sobrancelhas em surpresa e admiração. Não era a primeira vez que
jogávamos, mas ela estava claramente melhorando, cada partida
uma demonstração de sua crescente habilidade.
Eu tentei uma estratégia de pinçamento, movendo minhas peças
para cercar a rainha dela, mas Maísa, com um sorriso que misturava
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diversão e desafio, desviou-se habilmente, sacrificando um peão


para abrir caminho para um ataque surpresa ao meu rei.
O clímax do jogo chegou quando ela posicionou sua torre, de
forma quase silenciosa, numa linha direta com meu rei. Eu havia me
concentrado tanto em tentar capturar sua rainha que negligenciei
minha defesa.
— Xeque-mate — ela declarou, com uma satisfação evidente em
sua voz.

Analisei em minha cabeça as jogadas que levaram à minha


derrota. Não havia como negar: ela havia me vencido de forma justa
e estratégica.
— Você está ficando boa demais nisso — comentei, um sorriso se
formando em meus lábios enquanto observava sua expressão
vitoriosa. — Talvez isso signifique que precisamos começar a fazer
outras coisas além de ficar em casa.
Percorri o espaço ao meu redor com o olhar, como se para ilustrar
o que eu tinha acabado de falar. O apartamento de Maísa refletia
sua essência de uma maneira quase poética.
Ela conseguiu criar um ambiente que, apesar de sua simplicidade,
irradiava calor e convidava à intimidade com paredes brancas e
muita decoração afetiva.
Curiosidade e surpresa brilharam em seus olhos, e antes que ela
pudesse questionar o que eu tinha em mente, levantei-me e
caminhei até meu paletó, que repousava casualmente sobre o
encosto de uma cadeira.
Senti uma pontada de expectativa ao pegar os papéis que
guardei no bolso interno mais cedo.
— O que você está fazendo? — Maísa perguntou, sua voz
carregada de curiosidade enquanto ela se inclinava para frente no
sofá, tentando ver o que eu tinha nas mãos.

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Voltando para perto dela, estendi os papéis, revelando dois
ingressos para o musical que estaria em cartaz na cidade dentro de
um mês. Maísa havia mencionado, semanas atrás, que queria assistir
ao espetáculo, e a ideia de surpreendê-la com os ingressos se
enraizou em minha mente.
— São ingressos para o musical que você queria ver — disse,
observando sua reação.
Surpresa tomou conta de seu rosto, seus olhos se alargaram
enquanto ela pegava os ingressos, examinando-os com cuidado,
como se não acreditasse no que via.
— Henrique... — Maísa piscou e fez uma pausa, — Mas isso
significaria... Nós seríamos vistos em público.
— Seríamos — concordei.
Até agora, mantivemos nossa relação longe dos olhares públicos,
uma bolha de intimidade e privacidade que nos protegia e isso foi
importante para a nossa relação profissional.
Mas já estou mais do que convencido de que, o que quer que
estejamos construindo, não será uma coisa rápida e passageira,
então não faz sentido manter o segredo.
Ela olhou para mim, e pude ver o turbilhão de emoções refletido
em seus olhos.
— Você acha que estamos prontos para isso? — perguntou com a
voz suave.
Sentei-me ao seu lado antes de puxá-la para o meu colo.
— Acho que é uma escolha que precisamos fazer juntos. Não há
pressa, Maísa. Quero que você se sinta confortável e feliz com isso
— afirmei, minha voz firme, mas gentil.
— Eu quero isso, Henrique. Com você — finalmente disse, um
sorriso se formando em seus lábios.
— Então vamos ter.
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— Me passa o açúcar — Maísa pediu.


Seu sorriso paciente ignorava totalmente que, nos últimos
minutos, o que deveria ser uma tarefa fácil rapidamente se
transformou numa comédia de erros, comigo no papel principal de
um desastrado na cozinha acolhedora e funcional de Maísa.
Parada ao meu lado, diante do balcão americano que estava
coberto por utensílios e ingredientes alinhados para nossa tentativa
de assar um bolo, a mulher me encarava, esperando pelo que pediu.
Confiante, estendi a mão, lhe oferecendo o pode alto. Quando ela
olhou o rótulo de sal nas minhas mãos, uma risada escapou dos
seus lábios.
— Acho que o bolo não ficaria muito doce assim — brincou,
pegando o recipiente certo.
Torci os lábios, frustrado comigo mesmo. Li os rótulos, como,
exatamente, consegui pegar o pote errado? Devolvi o sal para um
dos armários brancos e simples, organizados meticulosamente, não
precisaríamos dele de qualquer maneira.
Balancei a cabeça e, determinado a ser útil, tentei seguir as
instruções seguintes com mais atenção, mas o universo parecia ter
outros planos.
Ao tentar quebrar os ovos, acabei esmagando um na borda da
tigela com tanta força que pedaços da casca se misturaram à massa.
Maísa removeu os fragmentos dando risada, tentando salvar o que
pode da massa de bolo.
Cada nova tarefa que ela me repassava parecia uma nova
oportunidade para mais desastres. Ainda assim, ela não desistiu de

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mim, nem me mandou sentar e esperar até que terminasse.
Quando ela pediu farinha, li e reli o rótulo cinco vezes para ter
certeza de estar pegando o ingrediente certo, mas minha vontade ao
adicioná-la à tigela foi tão grande, que um cálculo errado de força
fez com que a medida escapasse dos meus dedos, capotando no ar.
Em câmera lenta, assisti o pó branco se espalhar, liberando uma
nuvem de farinha que, por um breve momento, suspendeu o tempo
ao nosso redor. Uma chuva branca se abateu sobre a cozinha,
cobrindo o chão, os armários e, inevitavelmente, nós dois.
O choque inicial de ver a cozinha transformada em um cenário de
filme de comédia foi rapidamente substituído por uma risada
nervosa que escapei, diante do olhar surpreso de Maísa.
Ela, coberta de farinha, parecia uma estátua viva.
— Bem, isso não estava nos planos — consegui dizer, enquanto
uma risada escapava, traçando um caminho em seu braço, riscando
a farinha.
Maísa olhou para mim, rindo tanto quanto eu.
— Acho que Thomaz não estava brincando quando disse que da
última vez que deixaram você perto da churrasqueira, tiveram que
chamar os bombeiros — ela disse entre risos, resumindo
perfeitamente a situação.
Nossas tentativas de limpar o desastre que havíamos causado só
serviam para nos cobrir ainda mais de farinha, cada movimento
levantando novas nuvens brancas.
— Acho que minha carreira como chef pode ter que esperar —
me rendi.
— Ah, mas aí perderíamos toda a diversão — Maísa responde,
sua risada soando como música em meio ao caos. — Vamos
terminar isso. Quero comer esse bolo hoje.
Continuamos, e mais desastres acontecem no percurso. Durante
o processo, noto um momento em que ela torce o nariz,
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aparentemente incomodada por um cheiro específico.


Ela parece brevemente enjoada, mas disfarça rapidamente e
continua como se nada tivesse acontecido. Decido não comentar, já
que ela não deu importância.
Finalmente, com a massa "pronta", olhamos um para o outro,
ambos reconhecendo a derrota sem precisar de palavras. O que
deveria ser uma massa lisa e apetitosa parece mais uma mistura
duvidosa de ingredientes mal combinados.
— Bem, isso foi um... sucesso absoluto — digo, não conseguindo
conter uma gargalhada.
Maísa enfia um dedo na massa desastrosa, e antes que eu possa
reagir, a passa pela minha testa. Surpreso, mas não derrotado,
revido, marcando suas bochechas com a mistura pegajosa.
Nós dois gargalhamos, tentando nos esquivar das mãos
lambuzadas um do outro. Maísa me olha, os olhos brilhando com
alegria, e eu não resisto em puxá-la para um beijo, doce apesar do
desastre culinário.
Nossas risadas rapidamente se transformam em suspiros, e ao
invés de fugirmos das mãos um do outro, passamos a procurá-las.

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Geórgia: Se você não tivesse ido ao médico
com as suas próprias pernas, eu teria ido até
aí, arrastar você.
Maísa: Você está sendo dramática. É só uma
virose.
Geórgia: Já se passaram semanas. Que
virose é essa que dura semanas?
Maísa: As viroses de São Paulo são mais
agressivas do que as de Dois Corações, ué.
Geórgia: Toma vergonha nessa cara, Maísa.
Geórgia: Tá certo que se eu tivesse um
chefe gostoso para tomar conta de mim,
também ia querer ficar doente. Mas já faz
muito tempo.
Maísa: Kkkkkkkkkkkkk
Maísa: Você é terrível!
Maísa: Mas Henrique tem mesmo sido
maravilhoso.
Geórgia: Tá namorando, tá namorando, tá
namorando, tá namorando, tá namorando...
Maísa: Não demos rótulos, para com isso!
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Geórgia: Pois depois que sair do consultório,


ta aí uma coisa que você devia fazer, dar um
rótulo para o seu chefe gostoso. Homem
desses não dá em árvore, não, irmãzinha. Tem
que amarrar quando acha.
Maísa: Louca. Você é completamente louca.
Geórgia: Eu tô errada?
Maísa: Só sobre a parte do amarrar!
Estamos falando de homens, não de cavalos.
Geórgia: Segundo você, seu homem é meio
cavalo nos lugares certo...
Maísa: GEÓRGIA!!
Maísa: Para de falar besteira e me conta,
como tá a padaria?
Maísa: Aquele cliente gato ainda tá
aparecendo todo dia?
Geórgia: Tá.
Geórgia: Não sei o que ele quer. Todo dia
vem aqui e pede um café e uma rosquinha, fica
quase duas horas olhando para o balcão, e vai
embora.
Geórgia: Já tô me perguntando se ele é
meio doido, porque não tem outra explicação.
Geórgia: Ou, talvez, ele só venha aqui pelo
Wi-fi, mas com o dinheiro que ele gasta com o
café e a rosquinha, todo santo dia, dava para
colocar créditos no celular.
Maísa: kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Maísa: Eu acho engraçado que você é tão
esperta para algumas coisas, mas para outras,

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é tão tontinha, Geórgia...
Geórgia: Quê?
Geórgia: Sou tontinha com o que, Maísa?
Maísa: Tô pensando se te conto, ou se deixo
você descobrir sozinha.
Maísa: kkkkkkkkkkkkkkkk
— Maísa Cardoso — a voz da recepcionista me chamou, e eu
pisquei, sentindo minhas bochechas quentes como se alguém além
de mim pudesse ter lido a mensagem da minha irmã.
Sentada na sala de espera do consultório médico, eu tentava
manter a calma. As últimas semanas tinham sido uma montanha-
russa de mal-estar e incertezas, e tudo o que eu queria era uma
resposta, uma solução para o que eu tinha certeza de que era
apenas uma virose persistente.
Meu celular era minha distração, trocando mensagens com minha
irmã, que tentava me animar com suas teorias divertidas sobre o
meu diagnóstico.
Maísa: Chegou a minha vez de ser atendida.
Geórgia: Talvez você seja alérgica ao
escritório.
Não pude evitar um sorriso. Se fosse só isso, seria fácil de
resolver.
Maísa: Vou descobrir o que é e tratar.
Beijos. Amo você.
Geórgia: Tá, me dê notícias. Também amo
você.
Guardei o celular, levantando-me. A ansiedade que eu tinha
conseguido manter sob controle até então começou a borbulhar
dentro de mim.
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Caminhei até a porta do consultório, tentando me agarrar àquela


sensação de otimismo. "Vou descobrir o que é e tratar", repeti para
mim mesma, uma tentativa de manter a positividade.
O consultório era um espaço acolhedor, com luz suave e uma
atmosfera tranquilizante. O médico me cumprimentou com um
sorriso calmo, convidando-me a sentar.
— Olá, Maísa. Como você está se sentindo? — O médico de
estatura mediana, com cabelos grisalhos meticulosamente
penteados para trás, me perguntou.
— Ansiosa — admiti e ele sorriu para mim.
Havia uma gentileza em seus olhos castanhos, uma calma que
parecia capaz de suavizar as notícias mais inesperadas, um contraste
bem-vindo à minha ansiedade interna.
Ele ajustou seus óculos enquanto abria o envelope com os
resultados dos meus exames de sangue. Depois, olhou brevemente
para os papéis antes de direcionar seu olhar novamente para mim.
Me ajeitei na cadeira, pronta para ouvir sobre o que estava errado
comigo, esperando que fosse algo simples de resolver.
— Bem, Maísa, vamos ver o que temos aqui — ele começou, sua
voz tranquila e profissional. — Os resultados dos seus exames de
sangue estão todos aqui. Primeiramente, é bom ver que seu
hemograma completo está normal. Não há sinais de anemia ou
infecção, o que é uma excelente notícia.
Eu assenti, sentindo um alívio momentâneo. Anemia ou infecção
pareciam problemas fáceis de lidar, então saber que não era nada
disso me deixava um pouco mais tranquila.
— Seus níveis de eletrólitos e função renal também estão dentro
dos parâmetros normais — continuou ele, folheando as páginas. — E
quanto à sua preocupação com uma possível virose, seus
marcadores para as infecções mais comuns são negativos.

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Isso era bom, certo? Então por que eu ainda me sentia tão mal?
A expressão do médico era calma, mas havia algo em sua hesitação
que me fez prender a respiração.
— No entanto, há um resultado aqui que explica os sintomas que
você tem experienciado — disse ele, finalmente olhando diretamente
para mim.
Sua expressão era neutra, mas havia uma suavidade em seus
olhos que me preparava para uma notícia inesperada.
Eu me inclinei um pouco para frente, a ansiedade crescendo
novamente.
— O que é?
— Maísa, o seu teste de gravidez deu positivo. Você está grávida.
A sala pareceu girar por um momento, e eu mal conseguia
processar suas palavras.
Grávida?
Como isso era possível?
Eu tinha certeza de que estava apenas com uma virose
persistente. A ideia de estar grávida não tinha sequer passado pela
minha mente.
— Grávida? — repeti, minha voz soando distante aos meus
próprios ouvidos, um misto de incredulidade e pânico. — Tem
certeza?
— Sim, os níveis do hormônio HCG no seu sangue são
definitivamente indicativos de gravidez. É comum que os primeiros
sintomas sejam semelhantes aos de uma virose, o que pode levar a
confusões iniciais.
As palavras dele eram claras, mas minha mente estava em
tumulto, cada frase uma onda que me afastava mais da realidade
que eu pensava conhecer. Meu coração batia tão forte que eu podia
ouvi-lo em meus ouvidos, e uma sensação de vertigem tomou conta
de mim. Grávida.
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Eu estava sem palavras, tentando assimilar a notícia. Toda a


conversa sobre resultados de exames, deficiências vitamínicas e
infecções desapareceu, deixando apenas uma realidade inesperada e
transformadora: eu estava grávida. A revelação era avassaladora, e,
por um momento, tudo o mais parecia insignificante.
O médico continuou a falar, oferecendo informações e orientações
sobre os próximos passos, mas suas palavras soavam abafadas,
como se viessem de muito longe.
Eu estava presa em um turbilhão de pensamentos e emoções,
ainda tentando entender como minha vida tinha mudado tão
drasticamente em questão de minutos.
O otimismo com que entrei naquele consultório havia evaporado,
substituído por um turbilhão de emoções que eu não sabia como
lidar. Medo, surpresa, incerteza... cada uma delas se chocava dentro
de mim, deixando-me atordoada.
Agradeci ao médico e saí do consultório mecanicamente, cada
passo me levando de volta à sala de espera, agora um portal de
volta para um mundo que parecia irreconhecível.
Eu estava grávida.

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Ela estava me evitando.
Maísa tem estado evasiva, uma sombra da presença constante
que se tornou na minha vida. Nos últimos cinco dias, desde sua
consulta médica, sua ausência se tornou mais palpável, com
desculpas esfumaçadas e mensagens que mais esquivavam do que
explicavam.
Ela tem chegado no trabalho exatamente no limite do tempo,
calculando sua entrada para os momentos em que sabe que estarei
preso em reuniões, e desaparece antes que eu tenha chance de vê-
la.
As mensagens, uma vez fontes de conversas leves e risadas
compartilhadas, agora são curtas, evasivas.
Cada tentativa minha de entender o que está acontecendo, de
oferecer ajuda ou simplesmente estar lá para ela, é habilmente
desviada com desculpas vagas. "Estou ocupada", "Hoje não vai dar",
"Estou me sentindo cansada". E cada desculpa é um golpe,
aumentando a distância entre nós.
Ela também tem inventado razões para não irmos um à casa do
outro, algo que nunca foi um problema antes. A cada "não"
recebido, minha preocupação cresce, assim como minha confusão.
Maísa está se esquivando de mim deliberadamente, e eu não
consigo entender o porquê. Meu instinto é de ir até ela, me plantar
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na porta do seu apartamento e exigir uma explicação, mas a última


coisa que quero é pressioná-la ou invadir seu espaço.
A surpresa no rosto de Thomaz ao me ver em seu escritório,
numa noite de quarta-feira, é evidente. Seu deboche é imediato.
— Duas visitas em menos de um mês? Maísa deve ser mesmo
uma santa milagreira — disse, recostando-se à sua cadeira,
cruzando os braços na frente do peito.
Torço os lábios, desviando os olhos para um dos muitos pôsteres
de rock pendurados, numa combinação de arte contemporânea.
O escritório de Thomaz reflete sua personalidade de uma forma
que só ele poderia conceber. Uma mistura eclética de conforto e
estilo, elementos que você não espera encontrar juntos, mas que, de
alguma forma, harmonizam perfeitamente.
A mesa, grande e feita de uma madeira escura e rica, está
desordenadamente organizada. Pilhas de papéis e livros coexistem
com gadgets tecnológicos de última geração e objetos decorativos. É
um caos controlado, um reflexo do método em sua loucura.
Contra uma parede, um sofá de couro vintage oferece um espaço
para relaxar ou para conversas informais. É fácil imaginar Thomaz
ali, discutindo projetos ou simplesmente compartilhando uma bebida
com amigos depois do trabalho.
Ao lado, uma estante de livros cheia até a borda sugere uma
mente sempre em busca de conhecimento e inspiração, abrangendo
uma gama de tópicos desde filosofia até a mais pura ficção.
A iluminação é suave, com luminárias estrategicamente colocadas
para criar um ambiente acolhedor, complementadas pela luz natural
que entra por uma janela ampla. Esta última oferece uma vista
impressionante da cidade.
No canto, um pequeno bar está equipado com uma seleção
impressionante de bebidas.

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— Ela certamente sabe como desaparecer — respondo, tentando
manter o tom leve, mas a frustração e a preocupação em minha voz
são difíceis de esconder.
— Problemas no paraíso? — Thomaz questiona com uma
sobrancelha arqueada, um sorriso de canto surgindo em sua boca.
— Você veio até mim para conselhos do coração, no fim das contas.
Bufo e reviro os olhos.
— Não. Mas aceito uma perspectiva externa. Estou cansado da
minha.
Meu amigo franze as sobrancelhas, percebendo pelo meu tom
que o assunto é sério. Thomaz balança a cabeça, concordando, e
solto um longo suspiro.
Assim que me sento, as palavras começam a fluir, um relato das
últimas semanas, das tentativas frustradas de contato, da evasão de
Maísa. Cada palavra que digo parece tornar minha preocupação mais
real, mais palpável.
— Isso não parece nada com a Maísa que você descreveu antes
— Thomaz interrompe, sua voz refletindo meus próprios
sentimentos.
— Exatamente! — exclamo, grato por ele entender a gravidade
da mudança. — E eu tentei, Thomaz, juro que tentei ser
compreensivo, dar espaço... mas quanto mais espaço dou, mais ela
se afasta.
Há um momento de silêncio entre nós, um espaço para que as
palavras ditas se assentem no ar carregado do escritório.
— Henrique, você acha que... — Thomaz começa, hesitante,
escolhendo suas palavras com cuidado. — Você acha que tem algo a
ver com a consulta médica? Alguma notícia que ela não sabe como
compartilhar?
A sugestão me atinge com a força de uma revelação. Eu havia
considerado várias possibilidades, mas a ideia de que Maísa poderia
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estar guardando algum segredo relacionado à sua saúde me deixava


ainda mais preocupado.
— Não sei, Thomaz — admito, a incerteza pesando em cada
sílaba. — Mas isso explicaria muita coisa... Eu só... Eu só não sei
como abordar isso sem parecer que estou invadindo a privacidade
dela ou pressionando por respostas que ela não está pronta para
dar.
Thomaz assente, compreensivo, seus olhos refletindo a
complexidade do dilema.
— Talvez... — ele sugere, pausadamente, — talvez seja uma
questão de deixar claro que você está lá para ela, não importa o que
seja. Que ela não precisa passar por nada sozinha.
— Não sei como fazer isso — admiti, recostando a cabeça no
espaldar da poltrona em que estava sentado. — Ela não me deixa
chegar perto o bastante para dizer qualquer coisa.
— Você está sendo muito literal, meu amigo. Você não precisa
realmente usar palavras. Faça alguma coisa, ou algumas coisas, que
transmitam para a Maísa a segurança que você acha que ela precisa
receber.
Franzi as sobrancelhas, de repente, me sentindo estúpido por não
ter pensado nisso antes. Como eu não pensei nisso antes?
— Merda.
Thomaz riu.
— Viu só? Eu te disse que eu era ótimo dando conselhos
amorosos.
Por vários minutos, nenhum de nós disse nada, e a cada volta do
relógio, eu me sentia mais tentado a fazer uma revelação que, até
aquele momento, eu havia guardado apenas para mim.
Thomaz olhava para mim com uma expressão de expectativa,
como se pudesse reconhecer, pela minha postura, que o peso do
silêncio que eu carregava era significativo.

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— Esses últimos dias foram... educativos, para dizer o mínimo —
comecei, minha voz revelando mais do que eu pretendia.
Sentia um nó se formando em minha garganta, a ansiedade e a
vulnerabilidade de expor meus sentimentos mais profundos me
deixando desconfortavelmente exposto. Thomaz apenas acenou para
que eu continuasse, sua postura tranquila me oferecendo um grau
de conforto.
— A ausência da Maísa, o fato de ela estar me evitando, trouxe
uma clareza que eu não esperava — continuei, hesitante. — Eu senti
saudades... muita saudade. E não era apenas a falta da presença
dela, mas a preocupação, o não saber o que estava acontecendo
com ela que me consumia. Não por uma necessidade de controle,
mas... — pausei de novo, engolindo em seco, buscando a coragem
para admitir o que, até então, havia permanecido não dito.
Thomaz inclinou-se para frente, sua atenção focada inteiramente
em mim, um sinal silencioso de apoio.
— Mas pela necessidade dela. Eu percebi que...
— O que você está tentando dizer? — Thomaz perguntou quando
não concluí a frase.
Era difícil. Era muito difícil. Mais de uma década havia se passada
desde que eu havia me permitido dizer aquelas palavras em voz alta
pela última vez. Desde que eu havia me permitido ser enredado por
aquele sentimento pela última vez. E uma única vez foi o suficiente
para que eu desejasse me manter a margem dele para o resto da
vida.
Levantei os olhos para encontrar os do meu amigo.
— Acho — confessei. —, que me apaixonei pela Maísa. — As
palavras saíram de mim num sussurro, mas carregavam o peso de
uma verdade profunda que eu havia demorado a reconhecer.
Thomaz me observou por um momento, seriedade estampando
seu rosto. Então, ele gargalhou.
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— Você acha? Pelo amor de Deus, homem! Você veio até mim
pedir conselhos amorosos, se isso não for paixão, eu não sei o que
é! — disse entre risos.

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As lágrimas escorriam incessantemente pelo meu rosto, e eu
segurava o telefone com tanta força que meus dedos começavam a
doer.
O desabafo com Geórgia era minha única válvula de escape para
o desespero consumindo meu peito. A única forma de tentar
organizar os sentimentos tumultuados que me faziam chorar até
soluçar.
— Ele... — comecei novamente, a voz embargada pelas lágrimas
que não paravam de vir. A cada palavra, um soluço me interrompia,
deixando minha respiração irregular e pesada. — Ele deixou meu
chocolate favorito... na minha mesa... todos os dias, Geórgia. E o
almoço... — Minha voz se perdeu em mais um soluço, a gratidão que
eu sentia por esses gestos tão cuidadosos brigando com a culpa por
estar evitando-o.
Eu limpava as lágrimas com a mão livre, mas elas eram tantas
que logo meu rosto já estava molhado novamente. Cada vez que eu
tentava falar, uma nova onda de emoção me engolia, tornando difícil
até mesmo respirar sem chorar.
— Do meu restaurante favorito... mesmo sem poder estar lá para
almoçarmos juntos... — consegui dizer entre os soluços, sentindo
uma dor aguda.
O choro, em vez de aliviar, parecia só aumentar a sensação de
estar presa em uma montanha-russa emocional, da qual eu não
sabia como descer.
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Eu apertava o telefone contra a orelha, como se, de alguma


forma, isso pudesse me aproximar de Geórgia, torná-la mais
presente para enxugar as lágrimas que não paravam de cair.
— Maísa, ele claramente se importa muito com você.
Ouvi Geórgia dizer e eu queria acreditar nisso, queria me agarrar
à ideia de que Henrique estaria ao meu lado, independentemente de
tudo.
Mas a incerteza e o medo, especialmente sobre como ele reagiria
à notícia da gravidez, mantinham meu coração apertado, e as
lágrimas, uma constante.
— Eu sei... eu só... — tentei expressar o turbilhão dentro de mim,
mas as palavras se perdiam em meio aos soluços, cada tentativa de
falar trazendo uma nova onda de emoção.
Fechar os olhos por um momento, tentando controlar a
respiração e acalmar o choro, só me fazia ver as imagens dos
últimos dias, os buquês de flores, o chocolate, os almoços, cada
gesto de Henrique um lembrete de tudo que eu estava complicando
com meu silêncio.
— Maísa, querida, você precisa respirar — Geórgia me lembrou e
apesar da minha angústia, pude perceber o leve sorriso em sua voz.
Não tinha dúvidas de que, assim que eu parasse de chorar, ela
falaria sobre como os hormônios da gravidez estavam me deixando
louca, e o pior é que eu nem mesmo podia contestar.
Segui seu conselho e comecei a puxar respirações longas que
sempre eram cortadas por soluços, mas que depois de alguns
minutos, acalmaram o choro. Decidi adiantar o assunto.
— Tem sido uma montanha-russa, sabe? — comecei, a voz ainda
trêmula, mas mais firme. — Os sintomas não dão trégua, e as
emoções... é como se eu estivesse em um barco em alto-mar, sem
remos. Estou de sete semanas. E tudo ainda é tão novo, tão
assustador.

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Geórgia soltou uma risadinha, mas ouviu pacientemente.
— Sete semanas... isso é incrível, Maísa. Agora você é a casa de
alguém. Tem um ser humaninho, literalmente, morando dentro de
você — sua voz transbordava um calor que tentava atravessar a
distância entre nós.
— Eu sei, mas é tudo tão... grande. Não parece nada “inho”.
Ainda não me acostumei com a ideia — admiti, sentindo um nó se
formar em minha garganta. — Não sei como encaixar isso na minha
vida, Geórgia, nos meus planos... Meu Deus, os nossos pais...
— Vão ficar nas nuvens, Maísa. — Ela me interrompeu. — Nossos
pais vão ser avós! Eles provavelmente vão enlouquecer e comprar
todas as lojas de brinquedos por onde passarem.
— Acho que você está sendo muito otimista — murmurei,
sentindo o peito apertado.
— Você provavelmente vai ganhar um sermão sobre sexo sem
proteção antes — concordou e escondi o rosto atrás da mão.
Geórgia riu, mesmo que não pudesse ver o que fiz. — Mas depois
disso, vai ficar tudo bem. Nós sempre apoiamos uns aos outros, não
é agora que isso vai começar a mudar.
Houve um conforto nas palavras de Geórgia, uma promessa de
apoio que amenizava o peso da notícia que eu precisava
compartilhar.
— Ah, e adivinha? — Geórgia mudou de assunto, sua voz
adquirindo um tom conspiratório. — Eu já comprei a primeira
roupinha para a sobrinha. É a coisa mais fofa que você já viu, tenho
certeza de que vai amar.
A sensação que se desdobrou em meu peito era uma mistura
caótica de surpresa, pânico e uma gota de alegria com a ideia de
minha irmã já comprando roupas para o bebê.
— Como você sabe que é uma sobrinha e não um sobrinho?
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— Porque Deus é justo e adora castigar homens como Henrique


dando a eles meninas que os façam se arrepender de seus pecados.
— Homens gentis e doces?
— Você está tão apaixonada! — debochou, fingindo som de
vômito e eu suspirei. Geórgia hesitou por um momento, sua voz
retomando a seriedade. — Você precisa contar ao Henrique. Ele
merece saber, Maísa. E pelo que você me disse sobre como ele tem
sido atencioso, mesmo sem entender o que está acontecendo, tenho
certeza de que ele vai te apoiar.
Seu conselho, tão lógico e cheio de amor, pesava sobre mim. A
ideia de contar a Henrique sobre a gravidez era aterrorizante. Não
porque eu duvidasse de sua bondade ou apoio, mas sim pelo medo
do desconhecido, do impacto que essa notícia teria sobre nós.
— Eu sei, Geórgia, mas e se isso mudar tudo entre nós? E se
ele...
— Maísa, escuta — interrompeu Geórgia, a seriedade evidente
em sua voz. — Henrique te enviou flores todos os dias, sem falhar,
mesmo sem ter garantias de te ver. Isso não te diz algo sobre os
sentimentos dele por você? Ele claramente se importa, de verdade.
E vocês dois, juntos, vão conseguir superar isso. Você não está
sozinha.
As palavras de Geórgia, tão cheias de convicção e apoio,
acenderam uma faísca de esperança em meu coração.
Eu respirei fundo, sabendo que ela estava certa. Henrique tinha
sido um pilar de carinho e atenção, e a ideia de continuar
escondendo algo tão fundamental de alguém tão importante era
insustentável.
— Você tem razão, Geórgia. Eu vou contar a ele. Só preciso...
encontrar o momento certo — disse, finalmente me rendendo à
inevitabilidade da conversa que precisava ter.
— E você vai encontrar, Maísa. Só se lembre de que não está
sozinha nisso. Estou aqui para o que você precisar, sempre. — Minha

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irmã fez uma pausa, deixando que suas últimas palavras se
assentassem em meu peito antes de voltar a falar. — Imagina a cara
do papai quando souber que vai ser avô — disse Geórgia, uma
risada borbulhando em sua voz.
— Ah, eu consigo ver! — respondi, e mesmo em meio ao caos em
meu coração, um sorriso pequeno curvou meus lábios. — Ele
provavelmente vai fingir ser todo sério, dizendo que é muito jovem
para ser avô, mas por dentro estará pulando de alegria.
— E a mamãe? — Geórgia perguntou, gostando de me animar. —
Ela vai começar a planejar tudo, desde o enxoval até a faculdade.
Soltei uma risada, mesmo quando novas lágrimas deslizaram pela
minha bochecha. Dessa vez, silenciosas e calmas. Elas tinham um
motivo completamente diferente das primeiras.
— Com certeza, ela já vai querer saber se já podemos começar a
pintar o quarto do bebê — concordei, uma onda de carinho por
nossos pais aquecendo meu coração. — E vai querer ensinar tudo
sobre plantas e jardinagem para o neto ou neta.

Nossa conversa fluiu naturalmente para os planejamentos de


como e quando daríamos a notícia. A ideia de reunir a família para
um jantar especial surgiu, me acalmando aos poucos. Por maiores
que pudessem ser minhas inseguranças sobre Henrique, eu sabia
que sempre encontraria uma rede de apoio na minha família.
— Podemos fazer na sua casa. Um jantar surpresa — sugeri.
— Isso! E podemos até inventar algum jogo ou charada para eles
descobrirem — Geórgia acrescentou. — Papai e mamãe vão achar
que vai ser o jantar de apresentação do genro e, surpresa! Tem um
neto de brinde!
Eu ri outra vez.
— Você tem o dom de fazer tudo parecer mais... leve —
confessei, a gratidão pela presença dela em minha vida
transbordando.
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—Estamos juntas, Maísa. Sempre! — ela respondeu, e eu pude


sentir o abraço que ela me enviava, mesmo à distância.

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Cada degrau que subi na direção do apartamento de Maísa
parecia carregado de uma mistura de ansiedade e expectativa.
Foram duas semanas longas e torturantes, durante as quais cada
tentativa de contato parecia bater contra uma parede invisível que
ela havia erguido entre nós. Mas agora, com seu convite para visitá-
la, finalmente havia uma brecha.
Minhas mãos estavam trêmulas, uma sensação incomum para
mim, acostumado a manter o controle em todas as situações.
Mas Maísa... ela tinha esse efeito sobre mim, fazendo com que
todas as minhas certezas vacilassem.
Estava decidido, porém, a colocar meus sentimentos em palavras
hoje, a confessar que estava apaixonado por ela. Um passo
arriscado, especialmente sem ter certeza de que era correspondido,
mas era algo que eu precisava fazer.
A atmosfera tranquila do corredor que levava ao apartamento de
Maísa era convidativa com suas paredes num tom suave de creme,
cercadas por luminárias discretas instaladas ao longo do teto,
lançando um brilho quente sobre o caminho.
O carpete grosso sob meus pés abafava o som dos meus passos
e a quietude me dava espaço para respirar, para reunir meus
pensamentos antes de enfrentar o momento que estava por vir.
Quando cheguei à porta do apartamento, dei uma última olhada
para mim mesmo, tentando alinhar meu casaco como uma forma de
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adiar o inevitável por mais alguns segundos. Respirei fundo,


buscando uma calma que me escapava, e toquei a campainha.
Ela abriu a porta, e a visão dela foi como um bálsamo para as
feridas que as últimas semanas abriram em mim. Maísa estava linda,
como sempre, mesmo que estivesse usando apenas um short jeans
e uma camiseta.
Mas havia uma vulnerabilidade em seus olhos que me atingiu em
cheio.
— Finalmente saí do castigo? — perguntei, enfiando as mãos nos
bolsos da calça. A tensão entre nós era palpável, uma corrente
elétrica.
— Você nunca esteve de castigo, Henrique — respondeu, sua voz
baixa, convidando-me a entrar.
Ao passar por ela, senti uma onda de calor que me afogou em
todas as razões pelas quais me apaixonei. Seu cheiro, a maneira
como ela se movia, até o jeito como dizia meu nome... Tudo em
Maísa me atraia.
Não resisti. Assim que ela fechou a porta, acabei com a distância
entre nós, puxando-a para mim, envolvendo sua cintura com um
braço e entrelaçando os dedos da outra mão em seus cabelos soltos
que eu tanto adorava.
— Eu senti sua falta, Maísa. Muito — confessei, louco para beijá-
la, para sentir seu gosto outra vez. — Me diz que eu posso te beijar?
— pedi e Maísa fechou os olhos, me dizendo que sim logo depois.
Meus pulmões só tiveram tempo para expulsar uma respiração
aliviada antes que eu colasse minha boca à de Maísa. A sensação
dos seus lábios nos meus arrepiou meu corpo inteiro, me eletrizou e
dominou, ao mesmo tempo em que parecia tão pouco, tão
insuficiente.
Empurrei seu corpo contra o meu, sentindo-me mais desesperado
pelo seu gosto, pelo seu cheiro, pela sensação da sua pele sob meus
dedos a cada toque. Nossas línguas se enroscaram, tão

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desesperadas quanto nossas mentes, e o gemido baixinho que
escapou da garganta de Maísa me fez grunhir.
Eu a beijei até que fôssemos obrigados a parar para respirar e,
mesmo nesse momento, não afastamos nossas bocas. Trocamos
selinhos, espalhando beijos suaves pelos lábios, pela ponta do nariz,
pelas bochechas um do outro.
— Morri de saudades de você — ela admitiu num tom sussurrado.
— Morri de saudades — repetiu, erguendo as mãos para segurar
meu rosto.
Nossos olhos se abriram ao mesmo tempo e minhas sobrancelhas
já estavam franzidas. A pergunta “Então por que você estava nos
torturando?” na ponta da minha língua, mas não foi o que eu disse,
no entanto.
— O que está acontecendo, Maísa?
Acariciei seu rosto com o polegar, tentando, com o gesto, lhe dar
alguma segurança, apesar das minhas palavras.
— Eu... — Ela começou, mas sua voz falhou e Maísa puxou uma
respiração profunda. — Eu... Nós. Nós precisamos conversar.
O silêncio que se seguiu era carregado. Senti meu coração
batendo tão forte que tive certeza de que ela pode ouvi-lo.
Eu havia ensaiado em minha mente mil vezes como confessaria
meus sentimentos por ela, como diria que estava apaixonado, mas o
que ela tinha para me contar parecia tão urgente quanto me
declarar, então apenas assenti.
Nos sentamos no sofá, o espaço entre nós parecia um abismo
que ampliava a tensão palpável.
Maísa, com os olhos baixos, começou a compartilhar os
desconfortos que a vinham afligindo, sua voz trêmula revelando o
peso de sua preocupação.
— Ultimamente, eu... — ela começou, hesitante, buscando as
palavras. — Tenho me sentido estranha, sabe? Náuseas, cansaço
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constante... — Sua voz vacilou, o medo de estar enfrentando algo


sério era evidente em suas palavras.
Meu coração apertou ao ouvi-la. A conversa com Thomaz
retornando a minha mente de maneira imediata. A preocupação de
que pudesse ser algo grave tomou conta de mim.
A ideia de Maísa doente, enfrentando sozinha seus medos e
desconfortos, era algo que eu mal podia suportar.
— E não é só isso — continuou ela, entrelaçando nervosamente
os dedos. — Tem sido... difícil, sabe? Acordo no meio da noite, sinto-
me inquieta durante o dia, e às vezes, é como se eu não me
reconhecesse.
— O médico te deu algum diagnóstico preocupante? Foi por isso
que você se afastou?
Ela assentiu lentamente, tomando um fôlego profundo antes de
continuar. O silêncio que se seguiu parecia esticar-se, cada segundo
ampliando a antecipação e o medo do desconhecido.
— Sim e não. — Maísa fechou os olhos, uma pausa carregada de
significado antes de finalmente revelar a notícia que mudaria tudo.
— Estou grávida.
As palavras caíram entre nós como uma pedra, criando ondas de
choque que seriam capazes de arrasar cidades inteiras por
quilômetros e quilômetros de distância.
Senti como se o ar tivesse sido roubado dos meus pulmões. Uma
sensação de déjà vu me envolveu, levando-me de volta a um
passado distante, quinze anos antes, a uma memória que eu havia
enterrado há muito tempo.
Por alguns segundos, fiquei imóvel, tentando processar a notícia.
Lembrei-me daquele jovem que eu era, da incerteza e do medo que
dominaram aquele momento da minha vida.
Uma década e meia antes, ouvi as mesmas palavras, mas de
lábios diferentes. A frase "Eu estou grávida" ressoou em minha

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mente, cada sílaba carregada com um peso imenso, despertando um
turbilhão de emoções que eu havia escolhido esquecer: dor,
decepção, traição, mentiras.
Meu coração batia tão forte que eu podia ouvir seu eco em meus
ouvidos. De repente, todas as certezas que passaram pela porta
comigo foram estilhaçadas, deixando-me à deriva em um mar de
fúria avassaladora.
Por um momento, a racionalidade se dissipou, substituída por um
sentimento bruto de traição. Meu coração abandonou as batidas e
abraçou as explosões, como se tentasse escapar da gaiola de ossos
que o confina.
Eu tinha vinte e seis anos de novo, e a mulher parada à minha
frente, tinha os cabelos ruivos, a pele castanha e os olhos verdes.
Ela estava sorrindo, me dando a notícia mais feliz da minha vida:
“estou grávida.” Daiane disse, e comemorei com cada fibra do meu
corpo, até alguns dias depois, descobrir que o filho não era meu.
Senti tudo de novo. Cada uma das emoções que me dominaram
quando a encontrei na cama com o verdadeiro pai do bebê, anos
atrás. Repulsa e ira sobrepujando todos as outras sensações
enquanto olhava para uma outra mulher que tentava me enganar
tanto tempo depois.

Meu corpo reagiu ao choque com uma tensão que se espalhou


por cada músculo, cada fibra se contraindo, preparando-se para uma
luta que minha mente ainda tentava compreender. A respiração se
tornou curta, áspera, uma luta para manter o controle sobre as
emoções que ameaçavam transbordar.
O nojo e a revolta que me consumiram eram tão intensos que,
por um momento, obscureceram tudo o mais. Minha voz, quando
finalmente rompeu o silêncio, carregava um tom ácido, uma
amargura que não reconhecia como minha.
Havia um riso amargo, um som que destilava todas as defesas
erguidas por anos de dor não resolvida.
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— Parabéns — disse, as palavras tingidas de cinismo. — Quem é


o pai? Eu gostaria de parabenizá-lo também.
Maísa arqueou as sobrancelhas, uma expressão de incredulidade
súbita que rapidamente se mesclou com a ofensa. Seus olhos se
alargaram, sendo tomados para o uma mágoa profunda, como se as
camadas de confiança entre nós tivessem sido abruptamente
rasgadas.
Ela levou uma mão ao peito, um gesto instintivo de proteção,
como se minhas palavras fossem golpes físicos que ela precisasse
amortecer. Seu corpo se inclinou ligeiramente para trás, e sua boca
se fechou firmemente, pressionados em uma linha fina.
Seus olhos piscaram rapidamente, lutando contra o brilho de
lágrimas que ameaçavam transbordar, um testemunho silencioso da
ferida que minhas palavras infligiram. Uma atriz e tanto, realmente.
— Você, Henrique — disse, fingindo um falhar na voz e estalei a
língua.
Outra risada amarga deixou minha garganta quando desviei os
olhos. Ao encarar Maísa outra vez, uma imagem ainda mais desolada
esperava por mim.
— Isso é impossível.
— Impossível? Depois... — Ela engoliu em seco, lágrimas
escorrendo pelas suas bochechas, o corpo tremendo levemente
numa reação contida, como se não pudesse acreditar que não
estava dando certo, que eu não estava caindo em sua armadilha. —
Depois de tudo?
Fiz questão de prender meu olhar às suas íris que um dia
acreditei serem tão transparentes quando lhe respondi.
— Eu sou esterilizado.

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Eu sentia o gosto salgado das lágrimas em meus lábios a cada
inspiração que puxava pela boca. Cada uma delas, testemunha
muda da dor que se aninhava em meu peito, onde agora parecia
haver um buraco negro sugando todo e qualquer sentimento bom
que já senti, deixando no lugar apenas desespero.
O olhar no rosto de Henrique continuava o mesmo enquanto ele
me encarava, e que os sentimentos transbordando dos seus olhos
fossem tão fáceis de interpretar era apenas mais um tiro a queima
roupa no meu corpo já cheio de buracos de bala: nojo, desprezo,
decepção, ódio.
Quando lhe contei sobre a gravidez, estava insegura sobre como
ele se sentiria. Nosso relacionamento ainda era muito recente, mas
no fundo, eu esperava encontrar apoio, talvez até alegria.
Mas ao invés disso, o que recebi foi incredulidade e rejeição. Não
apenas a mim, mas ao bebê que esperávamos. Suas palavras,
impregnadas de dúvida, atingiram-me como lâminas afiadas,
deixando-me sem fôlego, sem chão.
Enquanto tentava processar sua reação, meu corpo reagiu
visceralmente aos sentimentos turbulentos que me invadiam. Um nó
apertado formou-se em minha garganta, dificultando cada tentativa
de fala. Meu coração batia descompassado, uma orquestra caótica
que ecoava a confusão e o desespero que sentia.
— Eu não entendo... — murmurei, mais para mim mesma do que
para ele, as palavras mal conseguindo escapar dos meus lábios
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trêmulos.
A revelação de sua esterilidade parecia uma cruel ironia do
destino. Fiz os exames... Eu fiz os exames! A realidade da gravidez
era incontestável.
E, no entanto, ele duvidava. Minha mente lutava para encontrar
sentido na situação, para reconciliar o homem que eu amava com
essa pessoa cruel, me olhando com nojo.
Minhas pernas enfraqueceram sob o peso do momento. Meu
corpo inteiro tremia, uma manifestação física do tumulto emocional
que me assolava. Involuntariamente, procurei apoio no encosto do
sofá mais próximo, temendo que, sem ele, pudesse cair.
Olhei para Henrique, buscando nele alguma compreensão, algum
sinal de que reconhecia a dor que suas palavras haviam causado.
Mas a distância entre nós parecia insuperável. Senti-me mais
sozinha do que nunca, isolada pela incompreensão e pela
desconfiança.
— Henrique, por favor... — comecei, a voz falhando, as palavras
perdendo-se em soluços. A suplica desfez-se antes mesmo de poder
ser completamente formada, sufocada pela tristeza e pela incerteza.
A dor da rejeição era acompanhada por uma sensação de perda
irreparável. Não apenas do companheirismo que havia entre nós,
mas do futuro que havíamos começado a construir juntos em minha
mente. Um futuro que, agora, parecia mais uma miragem do que
uma possibilidade real.
— Você vai continuar fingindo? — ele perguntou friamente. —
Pelo que me consta, nem grávida você está.
Cada palavra era uma nova agressão contra a minha alma já em
pedaços.
— Eu estou, eu... — Não tive forças para terminar. Minha voz
falhou, morreu, assim como a esperança boba que eu cultivei por
tão pouco tempo de criar uma família e ser feliz com o homem que
estava me desprezando.

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— Pode enxugar suas lágrimas, Maísa — disse, e dessa vez,
quando ele pronunciou meu nome, não havia qualquer resquício
daquele carinho que eu tanto adorava. Não havia nada além do mais
puro desgosto. — Elas não me comovem. Você chegou atrasada. Fiz
a vasectomia justamente para não precisar lidar com o seu tipinho,
quase caí na armadilha de uma de vocês uma vez, mas aprendo com
meus erros.
O som que deixou minha garganta era de profunda dor e agonia.
Caí sentada no sofá apenas porque era ele atrás de mim, mas
poderia ter sido no chão ou em qualquer outra coisa. Meus olhos se
fecharam enquanto minha cabeça explodia numa dor lancinante, se
recusando a aceitar aquela realidade, a acreditar que aquilo
realmente estava acontecendo.
Era um pesadelo.
Precisava ser um pesadelo.
Eu iria acordar.
Mas eu não acordei.
A dor cresceu, cresceu e cresceu até que me senti ser engolida
por ela, até que não havia nada em meus ouvidos além do som do
meu próprio desespero sendo atravessado pelas palavras duras e
cheias de ódio do homem que, uma hora atrás, eu tinha certeza de
estar apaixonado por mim.
— Acho que não preciso dizer que você não precisa mais voltar
para a empresa, mas não se preocupe, pelo menos nisso, você se
deu bem. Vai ganhar uma indenização gorda.
Foram suas últimas palavras antes de sair e bater a porta da
minha casa.
Bater a porta da minha vida.
Bater a porta do meu coração.
Me deixando sozinha, encolhida e destruída, com um filho seu na
barriga, acreditasse ele, ou não.
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Respirei fundo, encarando as portas venezianas brancas e


tentando engolir a sensação de derrota preza em minha garganta. A
familiaridade do cenário à minha frente trazia uma mistura de
conforto e frustração, ao mesmo tempo.
Sabia que, ao cruzar aquele limiar, estaria abrindo mão de sonhos
e planos que passei muito tempo arquitetando cuidadosamente, mas
não era como se eu tivesse opção, não com a vida crescendo dentro
de mim.
Voltar para minha cidade natal era algo que eu havia evitado por
muito tempo, um ato carregado de uma complexidade emocional
que eu mesma lutava para entender completamente.
Parte dessa resistência vinha do desejo de provar a mim mesma
que eu poderia ser independente, que poderia construir uma vida e
uma carreira bem-sucedida na cidade grande, longe das raízes e das
expectativas familiares. São Paulo representava o palco onde eu
desejava brilhar, um lugar repleto de oportunidades e desafios que
me empurravam a crescer.
Mas havia também a questão das memórias, algumas doces e
outras amargas, que a pequena cidade onde cresci guardava em
cada esquina, em cada rosto conhecido que cruzava as ruas.
Deixar Dois Corações foi uma forma de deixar para trás as
versões mais antigas de mim mesma, aquelas que ainda estavam
aprendendo a se levantar depois de cada queda.

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Foi lá que vivi meus primeiros amores e desamores, minhas
alegrias e desilusões. Cada retorno era como revisitar um capítulo do
qual eu não tinha certeza se queria lembrar.
E, claro, havia a relação com minha família. A distância física
tornou-se, de certa forma, uma distância emocional que eu
inadvertidamente cultivei. Não por falta de amor, mas talvez por
medo de decepcioná-los, ou de não estar à altura das expectativas
que, imaginava eu, tinham para mim.
O sucesso e a independência eram as armaduras que eu vestia
para proteger tanto a mim quanto a eles de qualquer sinal de
fraqueza. Por isso, voltar agora, sob essas circunstâncias vulneráveis
e inesperadas, trouxe à tona um turbilhão de emoções.
A gravidez e a rejeição de Henrique despedaçaram qualquer
ilusão de controle que eu pensava ter sobre minha vida. O que
deveria ter sido uma celebração transformou-se em um momento de
crise, forçando-me a encarar não apenas minhas próprias
inseguranças, mas também o medo do julgamento, da preocupação
e da pena nos olhos daqueles que mais amava.
Ainda assim, e na verdade, por causa disso, por mais assustador
que fosse, não havia outro lugar onde eu pudesse estar que não
fosse em casa. Mais do que nunca, eu precisava do refúgio que
apenas o lar poderia oferecer, um lugar onde, apesar de todas as
tempestades, eu sempre encontraria um porto seguro.
Voltar para casa era admitir que eu precisava de ajuda, que não
podia enfrentar tudo sozinha, e eu sabia que isso era tanto uma
rendição quanto uma forma de coragem. Mas ainda que tudo ainda
estivesse muito abstrato em minha mente, eu também sabia que
não poderia mais ser egoísta, não poderia mais pensar só em mim.
Passei as últimas duas semanas, depois do abandono de
Henrique, quase em completo silêncio. Eu olhava para as paredes do
meu apartamento e enxergava o homem que era o responsável pelo
buraco no meu coração em cada canto e espaço.
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A dor parecia infinita, a solidão também. Eu não queria comer,


não conseguia dormir, não tinha mais lágrimas para chorar e, ainda
assim, meu rosto continuava se contorcendo, minha boca se
abrindo, minha dor vazando pelos poros.
Se continuasse em São Paulo, eu me perderia no meu próprio
desespero antes de ter a chance de entender o que o causou, então,
reuni o resto miserável de coragem que eu ainda tinha, arrumei
minhas malas e voltei.
A luz aguada da manhã se espalhava suavemente pelo jardim, se
entrelaçando com as folhas das árvores e criando sombras no
caminho até a porta. Era uma manhã típica na cidade pequena onde
cresci.
O cantar dos pássaros misturava-se ao murmúrio distante de
vozes e ao ocasional latido de um cachorro, compondo uma melodia
familiar, uma canção de lar que eu não ouvia há tempos.
As pessoas começavam a sair de suas casas, cumprimentando-se
com sorrisos e acenos, uma comunidade unida pelas histórias
compartilhadas e pela vida simples, mas cheia de significado, que se
desenrolava ali.
A padaria na esquina já estava aberta, exalando o aroma
tentador de pão fresco e café, um convite irrecusável para uma
pausa e um momento de conexão com os vizinhos, mas para mim,
aquele momento tinha um peso diferente, carregado de incertezas.
Após hesitar brevemente, abri a porta, o som familiar da madeira
cedendo ecoando pelo hall de entrada. Meus passos ressoavam no
piso de cerâmica, cada um me levando mais perto da cozinha, o
coração da casa.
Os aromas do café da manhã e o som das vozes queridas me
puxavam para um mundo que parecia tanto o mesmo quanto
irrevogavelmente alterado. Meu coração vibrou de alívio e
apreensão, ao mesmo tempo, quando me dei conta de que Geórgia
também estava aqui.

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A cozinha se revelou à minha frente, imersa em luz do sol. O
espaço estava tomado por uma tranquilidade matinal, interrompida
apenas pelo murmúrio suave da conversa e o tilintar ocasional das
xícaras e talheres.
Meus pais e minha irmã estavam sentados à mesa, uma cena tão
familiar que por um momento me permiti esquecer o motivo da
minha visita inesperada.
Eles pareciam absortos em uma daquelas discussões matinais
triviais, sobre planos para o dia ou alguma novidade compartilhada,
uma bolha de normalidade que eu daria tudo para entrar, mas não
era esse o meu objetivo ali. Eu havia chegado para estourar aquela
bolha.
Fiquei parada na entrada da cozinha, observando-os por um
instante, absorvendo a serenidade do momento.
Os armários de madeira contavam histórias de tantas refeições
preparadas com amor, a mesa repleta de pratos simples mas feitos
com carinho, tudo emanava uma sensação de lar de que eu tanto
precisava.
— Maísa? — Geórgia perguntou com olhos arregalados, notando
minha presença antes que eu estivesse pronta.
A conversa tranquila cessou imediatamente e meus pais se
viraram na direção do olhar de minha irmã, me encontrando
também. Por um momento, o choque e a surpresa estamparam seus
rostos.
Sem dizer uma palavra, corri para os braços da minha mãe,
buscando refúgio no único lugar que sabia que encontraria conforto
absoluto. Marta, sempre intuitiva, envolveu-me num abraço
apertado, um gesto que dizia "estou aqui" sem necessidade de
palavras.
— Maísa, minha filha, o que aconteceu? — sua voz estava tingida
de preocupação, as palavras abafadas pelo meu ombro.
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Quando tentei formular uma resposta, as palavras simplesmente


se desfizeram em uma torrente de soluços que escapavam de mim,
incontroláveis.
A realidade avassaladora da minha situação, a rejeição dolorosa
que havia sofrido por parte de Henrique, tudo isso irrompeu das
profundezas onde eu havia tentado esconder, emergindo em uma
enxurrada violenta de emoções que eu não tinha mais forças para
conter.
Minha voz, que tentava se equilibrar entre a vontade de explicar e
a necessidade de chorar, falhou miseravelmente, deixando apenas o
som da minha vulnerabilidade no ar.
Os soluços sacudiam meu corpo inteiro, como se cada parte de
mim rejeitasse a realidade que meus lábios lutavam para expressar.
Meus olhos, antes cheios de lágrimas não derramadas, agora
transbordavam, cada gota carregando consigo pedaços da dor e da
desilusão que sentia.
O rosto de Henrique, as palavras de rejeição, os momentos
compartilhados que de repente se tingiram de amargura, tudo girava
em minha mente em um redemoinho caótico de sentimentos.
Meus pais e minha irmã, testemunhas da minha dor, observavam
com expressões de preocupação e amor, prontos para oferecer seu
apoio, mas igualmente impotentes diante da magnitude da minha
tristeza.
A tentativa de falar, de explicar o inexplicável, era interrompida a
cada tentativa por novos soluços, cada um mais forte que o anterior,
como ondas incessantes que me derrubavam sem me dar chance de
respirar.
A sensação de sufocamento, de estar sendo engolida por minhas
próprias emoções, era quase tangível, uma luta interna para
encontrar alguma forma de equilíbrio em meio ao caos.
Meu pai e Geórgia se aproximaram, formando um círculo ao
nosso redor, oferecendo silêncio e presença, os pilares que eu tanto

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precisava naquele momento.
Quando finalmente consegui falar, despejei a história entre
lágrimas, cada palavra acompanhada pelo aperto consolador das
mãos da minha família. Contei sobre a gravidez, sobre Henrique,
sobre o medo e a incerteza que agora moldavam meu futuro.
— Nós estamos com você, Maísa. Você nunca estará sozinha
nisso — afirmou Rodolfo, sua voz firme transmitindo uma força que
eu tanto precisava.
Geórgia, sempre a irmã protetora, segurou minha mão,
entrelaçando nossos dedos.
— Vamos passar por isso juntas — disse ela.
Naquele momento, na cozinha iluminada pelo sol da manhã,
cercada pelo amor incondicional da minha família, senti uma onda
de gratidão e alívio.
A rejeição de Henrique, embora dolorosa, não tinha o poder de
definir minha história. Eu tinha o apoio dos meus pais, a
cumplicidade da minha irmã e, mais importante, a força dentro de
mim para enfrentar o que viesse pela frente.
Eu me reergueria.
Pelo nosso filho, eu me reergueria.
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Ainda não havia nenhum aparelho conectado à mim, mas eu


podia jurar estar ouvindo os batimentos do meu próprio coração em
alto e bom som. A sala de espera do pequeno hospital da minha
cidade natal era um espaço modesto, mas acolhedor, mesmo que eu
não estivesse me sentindo acolhida.
As paredes, pintadas de um tom suave de azul, passavam uma
sensação de tranquilidade, como se tentassem suavizar a ansiedade
naturalmente associada a lugares como este. Algumas cadeiras de
plástico, organizadas em filas ordenadas, ocupavam a maior parte
do espaço, oferecendo um lugar para os visitantes e pacientes
aguardarem suas consultas.
Perto da entrada, uma pequena recepção acolhia os recém-
chegados, onde uma atendente sempre presente esboçava sorrisos
gentis, tentando transmitir alguma forma de conforto. Acima do
balcão, um relógio marcava o tempo de forma constante.
Ao lado, um pequeno canto era dedicado às crianças, com
brinquedos espalhados e livros coloridos dispostos em uma prateleira
baixa. Apesar de estar vazio naquele momento, podia imaginar as
risadas e o alvoroço que preenchiam o espaço em dias mais
movimentados.
A iluminação era suave, vinda tanto das luzes embutidas no teto
quanto da luz natural que se infiltrava pelas janelas grandes,
revestidas por cortinas leves que filtravam a luz do dia. Plantas em

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vasos pontuavam o ambiente aqui e ali, trazendo um toque de vida
e cor.
E é claro, havia as pessoas sentadas, algumas folheando revistas
de forma distraída, outras mergulhadas em seus próprios
pensamentos ou conversando baixinho, todas à espera de notícias,
ou de um simples procedimento.
— Olá, Gabriella — Minha mãe cumprimentou uma das nossas
vizinhas quando ela passou por nós e a mulher, é claro, parou.
— Uma visita em família? — brincou, olhando meus pais e
Geórgia sentados ao meu redor.
— É o primeiro ultrassom — Minha mãe contou alegremente.
Depois de duas semanas em Dois Corações, minha gravidez já
era de conhecimento geral. Eu ainda não tinha comprado nada para
o bebê, mas ele já havia ganhado muitos presentes.
Ofereci um sorriso pequeno para a vizinha, o melhor eu podia,
apesar do esforço que estava fazendo. A verdade era que, apesar do
calor humano que me envolvia, um vazio imenso tomava conta de
mim, uma solidão que a presença física deles não conseguia dissipar.
Eu sabia que aquele momento deveria ser de alegria e
celebração. Eu deveria estar em êxtase e não estar só fazia com que
eu me sentisse mais culpada. Porque para mim, cada minuto que
passava era um lembrete doloroso da ausência de Henrique, da
rejeição que ainda queimava em meu coração como uma ferida
aberta.
E essa era a maior das minhas culpas. Eu me ressentia de mim
mesma por ainda estar sofrendo por ele, mas não conseguia evitar.
— Ah, você vai amar a sensação — Gabriella disse. — Me lembro
como se fosse hoje do meu primeiro ultrassom da minha primeira
gravidez. — As palavras e o tom saudoso com que as disse só me
atirou mais fundo no poço onde eu já me encontrava.
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Assenti, segurando o sorriso falso no rosto enquanto o amargor


da culpa consumia tudo o que alcançava dentro de mim.
— Vai dar tudo certo, querida. Estamos todos aqui por você —
minha mãe disse, tentando me tranquilizar, assumindo que meu
silêncio era insegurança.
Me forcei a manter o sorriso, agradecida por sua preocupação,
mas incapaz de afastar a nuvem de tristeza que me acompanhava.
As lágrimas, que eu lutava para controlar todas as noites antes de
dormir, ameaçavam surgir novamente, mesmo ali, na frente de
todos. Engoli em seco, tentando reunir forças para manter a
compostura.
Meu pai, sempre o mais observador, lançou-me um olhar cheio de
compreensão e amor, como se quisesse absorver um pouco da
minha dor para si. Geórgia, por sua vez, tentava distrair-me com
conversas leves, embora eu percebesse a preocupação em seus
olhos.
— Mas ainda é a primeira? Com esse barrigão? — Gabriella
brincou, não se dando conta do clima de apreensão.
Olhei para baixo, para minha barriga que estava mesmo maior do
que as imagens que vi em minhas pesquisas. Mas algo que aprendi
com essas mesmas pesquisas é que cada gestação é uma gestação.
— Nem parece que só tem doze semanas, né? — minha mãe
respondeu por mim e continuou a conversa até Gabriela se despedir
e partir.
A espera pelo ultrassom parecia interminável, cada segundo
estendendo-se como se o tempo tivesse desacelerado, cada batida
do meu coração um eco da ausência de Henrique.
A ironia de estar rodeada por minha família, mas me sentir tão
profundamente sozinha, não escapava à minha percepção. Era uma
solidão que vinha não da falta de companhia, mas da ausência da
única pessoa cuja presença fazia toda a diferença naquele momento.

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— Maísa Cardoso? — a voz da enfermeira chamando meu nome
me arrancou dos meus pensamentos, e eu levantei-me, sentindo um
misto de ansiedade e expectativa.
Caminhando em direção à sala do ultrassom, senti o peso da
nova realidade que estava começando a construir, uma realidade na
qual eu teria que encontrar forças para a nova vida que crescia
dentro de mim.
A decisão de seguir em frente, apesar da dor e da rejeição, nunca
pareceu tão desafiadora quanto naquele momento.
Ao entrarmos no consultório, fomos recebidos pela médica, uma
mulher de meia-idade com um sorriso gentil e olhos acolhedores.
Ela nos cumprimentou com serenidade e convidou minha família
a se sentar, indicando as cadeiras próximas à maca onde eu
realizaria o ultrassom.
— Bem-vinda, Maísa. Eu me chamo Laura e vou realizar seu
exame. Fique a vontade para fazer perguntas e tirar dúvidas, tá?
Vejo que trouxe uma bela equipe de apoio hoje — disse ela, um leve
brilho de humor em seus olhos ao olhar para meus pais e minha
irmã.
Eles responderam com sorrisos ansiosos.
Assim que me acomodei na maca, senti o papel que cobria o leito
crepitar suavemente sob meu peso. A médica começou a organizar o
equipamento necessário para o ultrassom.
Com movimentos metódicos e tranquilos, ela pegou o transdutor
— aquele dispositivo que sempre via em filmes e programas de TV,
agora ali, tão real e próximo.
— Primeiro, vou aplicar um pouco deste gel na sua barriga — ela
disse, enquanto espremia um líquido frio e viscoso sobre minha pele.
O choque inicial da temperatura me fez estremecer levemente, mas
a sensação passou rápido. — Isso vai nos ajudar a obter uma
imagem mais clara durante o exame.
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Enquanto espalhava o gel com cuidado, a médica continuou a


explicar o procedimento, sua voz era um sussurro de certezas no
silêncio do consultório.
Tinha entrado naquela sala carregando o peso da rejeição de
Henrique, uma dor que se agravava com a consciência de sua
ausência em um momento tão crucial. O desejo de tê-lo ao meu
lado era uma chama que se recusava a se apagar, apesar de tudo.
A médica ajustou o aparelho de ultrassom, certificando-se de que
a tela estivesse virada de forma que tanto eu quanto minha família
pudéssemos ver. A cada ajuste, a cada toque, ela narrava o que
estava fazendo.
— Agora, vou passar o transdutor sobre sua barriga. Você vai
sentir um pouco de pressão, mas não deve doer — explicou ela,
movendo o dispositivo sobre o gel. — Vamos começar dando uma
olhada geral, apenas para ver como o bebê está posicionado.
As primeiras imagens começaram a aparecer na tela, um
emaranhado de sombras e formas que aos olhos da médica tinham
significado e ordem.
Com paciência, ela ajustava o transdutor, inclinando e girando-o
suavemente para capturar diferentes ângulos, sempre atenta à tela e
às imagens que se formavam.
— Aqui podemos ver o saco gestacional — ela indicou, apontando
para a tela onde uma pequena forma ovalada era visível. — Tudo
parece estar se desenvolvendo bem até agora, — dizia, mas então,
abruptamente, ela parou, seus olhos fixos na tela.
Meu coração acelerou, ecoando o silêncio repentino que se
abateu sobre a sala. A expressão preocupada de minha mãe cortou
o silêncio como uma lâmina.
— Há algo errado? — ela perguntou, sua voz carregada de um
medo que eu sentia refletido em meu próprio peito.
Por um momento que pareceu uma eternidade, a médica não
respondeu, sua atenção ainda presa à tela. O ar parecia pesado,

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carregado de um milhão de possibilidades, nenhuma delas
reconfortante. Então, com um gesto quase reverente, ela ajustou o
volume do aparelho.
De repente, o quarto foi preenchido por sons rápidos e fortes.
Não um, mas três ritmos distintos, parecendo quase... Entrelaçados.
A médica ajustou o volume de novo, e cada batida ressoava não
apenas no espaço ao nosso redor, mas dentro do meu próprio
coração. Emoção avassaladora me atingiu, o sangue correndo em
minhas veias tentando competir em ritmo com aquelas batidas
frenéticas que todos na sala ouviam.
Eram rápidas, determinadas, as melodias mais doces e poderosas
que eu já havia ouvido. Naquele momento, qualquer barreira que eu
tivesse erguido em torno do meu coração se desfez.
Lágrimas começaram a escorrer livremente pelo meu rosto, não
de tristeza, mas de um amor profundo e avassalador que nasceu
instantaneamente.
— Ouvem isso? — a médica finalmente disse, um sorriso se
formando em seus lábios. — São três corações. Maísa, você está
grávida de trigêmeos. — anunciou com uma sorriso enorme.
Eram mais do que os sons; eram a prova tangível da nova vida
que eu estava carregando dentro de mim, um pequeno ser cuja
existência até então parecia abstrata, apesar de todos os sintomas e
mudanças que meu corpo vinha experimentando.
— Trigêmeos — repeti para mim mesma, as palavras da médica
ecoando em minha mente como um mantra.
Por um momento, fui incapaz de reagir, a notícia me atingindo
com a força de uma tempestade. Trigêmeos. A palavra ecoava em
minha mente, cada sílaba carregando o peso do choque, da alegria e
do puro terror.
Meus olhos encontraram os de minha mãe, e vi reflexos de
minhas próprias emoções dançando em seu olhar. Geórgia segurou
minha mão.
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O som dos corações dos meus bebês preenchia o espaço entre


nós. A sensação de solidão que me acompanhara desde a rejeição
de Henrique foi substituída por uma sensação avassaladora de
propósito.
Eu estava carregando três vidas dentro de mim, três pequenas
promessas de um futuro cheio de possibilidades. Era um chamado,
um despertar para a realidade de que eu não estava mais sozinha
em minha jornada.
Ali, naquele consultório, cercada pelo som das batidas dos
corações dos meus bebês, eu me senti mãe pela primeira vez. Não
era apenas uma ideia ou um conceito; era uma verdade visceral,
uma conexão indestrutível que transcendia a compreensão racional.
O medo e a incerteza que vinham me acompanhando desde a
descoberta da gravidez deram lugar a uma determinação feroz.
Decidi, ali, que não importava o que o futuro reservasse, eu faria de
tudo para proteger, amar e proporcionar o melhor para os meus
filhos. Filhos. Três.
— Vai ficar tudo bem, — Geórgia sussurrou ao meu lado, e eu
acreditei nela.
O exame continuou, com as batidas dos corações dos meus
bebês ecoando pela sala, e a cada nova visão deles, a médica
pausava para me explicar o que estávamos vendo, apontando
detalhes com o cursor na tela.
— Vejam, aqui estão os bracinhos, e aqui, as perninhas — ela
dizia e eu piscava para a imagem, sentindo-me ser puxada para ela
de um jeito inexplicável.
A médica era cuidadosa não apenas no exame, mas também em
garantir que eu me sentisse segura e informada. Minha família
reagia com exclamações baixas de admiração, maravilhados.
Eles absorviam cada palavra, cada explicação sobre o
desenvolvimento dos bebês, suas expressões um misto de
maravilhamento e ternura.

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— É importante continuar com uma alimentação balanceada,
Maísa, e tentar manter um nível saudável de atividade física —
orientou a médica, voltando-se para mim com um sorriso gentil ao
notar minhas lágrimas. — E claro, qualquer dúvida ou preocupação,
estamos aqui para ajudar. Você gostaria de algumas fotografias?
Meus pais e Geórgia esperavam minha resposta, mas minha voz
falhou ao tentar falar.
Era mais do que uma confirmação para a médica; era um
compromisso silencioso comigo mesma e com meus bebês. Um
propósito que transcendia minha própria dor.
Apesar da tempestade, havia esperança, havia vida.
— Por favor — consegui finalmente dizer.
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Empurrei a bandeja de alumínio vazia para suporte depois de


virar seu conteúdo no cesto de vime. O aroma constante de pão
fresco e doces me fez suspirar, e agradeci aos céus, mais uma vez,
por junto com o primeiro trimestre da gestação, terem acabado
também os enjoos matinais.
Depois de descobrir que estava carregando três bebês, comecei a
me perguntar se a quantidade de enjoos que eu sentia precisavam
realmente ser diretamente proporcionais ao número de crianças em
meu ventre.
Em minhas primeiras semanas de volta à Dois Corações, eu só
conseguia abraçar Geórgia depois que ela tivesse tomado três
banhos. Entrar na padaria era impensável. O cheiro do fermento me
deixava louca de tão enjoada.
Mas passados aqueles momentos, agora ele era só normalidade e
conforto para os meus dias. Entre fornadas de croissants e bolos de
cenoura, reencontrei uma rotina que me ajudava a manter a mente
ocupada, longe das memórias dolorosas de São Paulo. Pelo menos,
enquanto o sol ainda estava alto.
— Maísa, pode trazer mais daquelas broas de milho para o
balcão? — Geórgia gritou, da frente da loja.
— Claro, já estou levando — respondi, ajeitando o avental sobre
minha barriga antes de pegar a bandeja repleta de broas douradas.

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Caminhar pela padaria, se tornou um exercício de equilíbrio, não
apenas pelo meu estado, mas também pela mistura de sentimentos
que cada dia trazia.
Havia momentos em que a alegria dos clientes ao provarem uma
nova receita me enchia de orgulho, e outros em que a solidão se
fazia presente, um lembrete silencioso da ausência de Henrique, e
de que uma padaria não era o lugar em que eu realmente gostaria
de estar trabalhando.
Mas tão rápido quanto esses pensamentos vinham, eu os
afastava. Me concentrava em aproveitar a visão da padaria cheia,
em ouvir o burburinho das conversas e o tilintar das xícaras de café.
A padaria da minha irmã era um daqueles lugares que pareciam
ter saído diretamente de um livro de histórias, um ponto de encontro
acolhedor que atraia os moradores da cidade e visitantes com seu
charme singular.
As paredes de tijolos à vista eram adornadas com prateleiras de
madeira que exibiam uma variedade de pães artesanais, bolos e
tortas, cada um mais tentador que o outro.
As luminárias pendentes em estilo vintage lançavam uma luz
suave e acolhedora sobre o espaço e havia uma série de mesas de
madeira espalhadas pelo salão, cada uma com suas cadeiras de
cores vivas, proporcionando um toque de alegria e calor ao
ambiente.
No canto, um pequeno sofá e algumas poltronas formavam um
cantinho de leitura, onde os clientes podiam se aconchegar com um
livro da estante que Geórgia cuidadosamente selecionou, tornando a
padaria um refúgio para os amantes da literatura.
Ao fundo, o balcão de atendimento era o coração do
estabelecimento, onde os cafés eram preparados e os clientes
faziam seus pedidos. Atrás dele, uma grande janela de vidro oferecia
uma visão da cozinha, permitindo que os visitantes observassem a
mágica em ação.
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Arrumei as broas no balcão, enquanto assistia Geórgia atendendo


um cliente com seu sorriso usual.
Era o cliente sobre o qual ela me falava quando eu morava em
São Paulo. Aquele que vinha à padaria todos os dias, pedia um café
e uma rosquinha, ficava quase duas horas sentado à mesa, e depois
ia embora.
Apertei os lábios, engolindo a risada. Não sabia quem era mais
lerdo, se o cliente por ainda não ter chamado Geórgia para sair, ou
ela, por ainda não ter entendido que era esse o motivo de o homem
continuar voltando, e não o café e a rosquinha.
Balancei a cabeça e olhei para a calçada na frente da loja, onde
uma pequena área com algumas mesas sob um toldo listrado
também atendia alguns clientes. Tudo parecia sob controle lá, então
permaneci atrás do balcão.
— Um café e uma rosquinha? —provoquei quando Geórgia voltou,
já pegando uma bandeja para preparar.
Dessa vez, não fiz questão nenhuma de esconder a risada. Peguei
uma xícara no suporte e a coloquei na máquina antes de acioná-la.
Geórgia me lançou um olhar, metade irritada, metade divertida,
antes de ceder a um sorriso relutante.
— Não sei do que você está rindo — ela rebateu, mas o brilho em
seus olhos traía curiosidade sobre o homem e até alguma outra
coisa.
— Estou rindo para você — menti. — E admirando sua...
paciência — respondi, entregando-lhe o café para que ela colocasse
na bandeja em que uma das rosquinhas que tinha acabado de sair
do forno já esperava.
— Paciência, hum? — Geórgia pegou a bandeja, balançando a
cabeça em descrença. — Você acha que ele quer me convidar para
um encontro?

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— Oh! — Fiz uma expressão teatralmente surpresa. — Não me
diga que você finalmente notou!
Geórgia estreitou os olhos e fez um bico.
— Não era tão óbvio assim.
Eu gargalhei.
— Já faz meses, Geórgia!
— E ele ainda não fez o convite — rebateu, apoiando as mãos na
cintura fina.
Suas bochechas coraram com a curiosidade. Mesmo de avental e
touca, minha irmã ainda era linda. Não me admirava que o cliente
misterioso continuasse voltando para vê-la
— Talvez ele seja tímido e esteja esperando que você faça o
convite— sugeri, apoiando os cotovelos no balcão e observando-a
enquanto ela se afastava para entregar o pedido.
Enquanto Geórgia servia o cliente, voltei minha atenção para a
calçada em frente à loja, de novo.
As ruas da cidade estavam tranquilas. As ruas de Dois Corações
eram sempre tranquilas, tão diferentes de São Paulo que seriam
impossível não comparar uma com a outra. Suspirei, mas pisquei em
seguida, afastando o rumo que meus pensamentos seguiam.
— Se ele não te chamar para sair até o final do mês, eu mesma
vou falar com ele — declarei, quando Geórgia voltou e minha irmã
bufou, abaixando-se para pegar uma caixa de sachês de açúcar e
começar a reabastecer as mesas.
Eu ri do jeito como ela me dispensou, e Geórgia me encarou,
olhando-me com uma atenção que anunciou que o que quer que
estivesse prestes a falar, não era uma piada sobre seu admirador
nada secreto.
— Você está se adaptando — ela disse e eu sorri pequeno, dando
de ombros e revirando os olhos.
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— Agora que o primeiro trimestre acabou? Estou ótima!


— Não foi isso o que eu quis dizer.
Eu sabia que não era isso o que ela queria dizer, mas não
pretendia ter aquela conversa. Dei de ombros outra vez.
— Ah! — fingi só agora entender. — Eu ainda sou a melhor
decoradora de cupcakes dessa cidade.
—Tenho muito orgulho de você, Maísa. — Eu sorri, porque
imaginei que era isso o que ela esperava que eu fizesse. Eu não
sentia orgulho de mim. Não ainda, nenhum. Geórgia correu a ponta
da língua pelos dentes superiores, então enfiou a mão no bolso do
avental e me encarou em silêncio por algum tempo, como se
estivesse ponderando alguma coisa. — Quero dizer uma coisa, mas
acho que vai ser invasiva.
Eu ri.
— E desde quando você se importa em ser invasiva, Geórgia?
— É diferente — se defendeu, mas depois de um suspiro, decidiu
falar. — Acho que você deveria procurar ajuda profissional, se não
sozinha, em grupo.
Minhas sobrancelhas se franziram e eu olhei para o espaço ao
nosso redor, mas ninguém estava prestando atenção na conversa
que minha irmã e eu estávamos tendo. Os clientes seguiam suas
vidas e rotinas, e os funcionários estavam ocupados demais com
suas tarefas.
— Terapia? — perguntei.
— Ou um grupo de apoio. — Geórgia tirou a mão do bolso, mas
ela não saiu de lá vazia. Havia um pequeno panfleto dobrado nela
que minha irmã estendeu para mim. — Vi na igreja, quando fui levar
os pães da Santa Ceia, no último domingo, achei que talvez,
pudesse te ajudar de alguma forma.
Abri o papel e li. Era um anúncio e um convite para participar de
um grupo de apoio de mães, mulheres grávidas, dividindo

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experiências.
— É em Três cordas — ela explicou, — Mas achei que ser na
cidade vizinha seria uma coisa boa, honestamente.
Pisquei para o panfleto, franzindo a testa enquanto minha mente
corria voltas e voltas ao redor de si mesma. A ideia de procurar
ajuda profissional ou de me juntar a um grupo de apoio nunca havia
realmente passado pela minha cabeça.
Acreditava que poderia lidar com tudo sozinha, mesmo que na
maior parte dos dias desde o ultrassom, eu ainda surtasse com o
fato de que havia três bebês dentro de mim. Meus bebês.
Mas, segurando aquele papel em minhas mãos, lendo sobre o
grupo de apoio para mães e mulheres grávidas, algo dentro de mim
se perguntou, “e se?”.
— Isso... isso realmente ajudou alguém que você conhece? —
perguntei, minha voz trazendo à tona a incerteza que eu sentia.
Geórgia assentiu, sua expressão séria.
— Sim. Uma das nossas clientes regulares. Ela passou por um
momento difícil durante a gravidez e disse que essas reuniões foram
um salva-vidas.
Olhei novamente para o panfleto, para as palavras impressas que
prometiam compreensão, compartilhamento e, talvez, um caminho
para a cura. Meus dedos tocaram as letras, como se tentassem
absorver a esperança que elas prometiam.
— Talvez... —
A ideia de compartilhar minha história, meus medos e esperanças
com estranhos era intimidadora. Mas também havia uma centelha de
alívio na possibilidade de conversar com pessoas que realmente
compreendiam o que eu estava passando, ou ainda, que não me
julgariam porque não me conheciam.
— Não precisa decidir agora — disse Geórgia, colocando uma
mão sobre a minha. — Mas pense nisso. Às vezes, falar ajuda. E
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você sabe que sempre pode contar comigo, não importa o que
decida, mas achei que falar com pessoas que estão na mesma
situação, talvez fosse bom.
Sorri para ela, um sorriso que carregava mais gratidão do que
palavras poderiam expressar.
Geórgia sempre esteve lá por mim, mesmo quando eu me
fechava para o mundo.
— Obrigada — disse, dobrando o panfleto e guardando-o no
bolso do meu avental. — Vou pensar — prometi, e iria mesmo.

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O silêncio havia voltado a ser minha companhia constante e,
mesmo depois de meses, eu ainda não podia dizer que estava
acostumado. Especialmente porque ele parecia infinitamente mais
profundo do que antes.
Balancei a cabeça, me recusando a pensar sobre antes de o quê
ou quem, não de novo. Deixaria para me perder nessas memórias
quando não pudesse me impedir de fazê-lo.
O escritório parecia mais um reflexo da minha própria mente:
organizado, mas impregnado de uma melancolia que eu lutava para
ignorar.
Cada documento meticulosamente alinhado, cada caneta e lápis
em seu devido lugar, era uma batalha vencida contra a desordem da
minha mente, uma tentativa de impor controle onde eu sentia
pouco.
Enquanto me inclinava sobre relatórios, minha mão se movia
quase automaticamente, anotando observações com uma precisão
que desmentia a turbulência emocional sob a superfície.
De tempos em tempos, eu me levantava para caminhar até a
janela, um gesto quase reflexivo, buscando alívio na vista da cidade
lá fora. Mas mesmo essa paisagem, antes fonte de inspiração, agora
parecia tingida pelo mesmo silêncio que impregnava o escritório e
minha alma.
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O virar de páginas, ou o sutil clique da minha caneta não eram o


bastante para abafá-lo. Não passavam de ecos de uma solidão que
se aprofundava com a cada dia.
Meus movimentos, embora precisos e deliberados, carregavam
uma lentidão, um peso, como se cada ação fosse um esforço para
manter-me ancorado à realidade, para não me perder nas sombras
da saudade e do arrependimento.
Por vezes, encontrava-me parado, perdido em pensamentos, a
mão suspensa no ar enquanto uma lembrança particularmente
vívida de Maísa invadia minha consciência.
Nessas ocasiões, o peso da minha mão retornando ao documento
sobre a mesa parecia simbolizar o esforço para voltar ao presente,
para afastar a dor que ameaçava me consumir.
A sombra de Maísa permeava cada canto, cada decisão, cada
pensamento, deixando-me em uma batalha constante entre a
necessidade de esquecer e a impossibilidade de fazê-lo. Mas eu
estava bem. Eu estava ótimo. Eu estava muito melhor sem mentiras
e manipulações.
— Isso já passou dos limites — A voz de Thomaz, ao vivo e a
cores me surpreendeu, mas não deveria.
Em algum momento, ele se cansaria de me azucrinar apenas por
telefone. Soltei uma longa expiração, ainda com a cabeça baixa
enquanto ele fechava a porta atrás de si com um clique suave.
Uma das desvantagens de vir ao escritório no domingo, é que os
únicos funcionários além de mim eram os vigilantes. Ninguém para
anunciar a chegada de Thomaz, então.
— Não é saudável para você ficar aqui, se afundando em trabalho
dessa maneira — continuou ele, aproximando-se da minha mesa.
— Boa tarde para você também — disse, finalmente erguendo os
olhos para o meu amigo.

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Thomaz estava vestido casualmente, com bermuda e uma camisa
polo, como se tivesse interrompido um almoço divertido para tentar
me resgatar da minha miséria. Isso já era ruim o bastante, mas não
era pior do que o sentimento estampado em seus olhos para quem
quisesse ver, enquanto meu amigo me encarava: pena.
Ele arranhou a garganta, uma risada amarga passando por ela
antes que Thomaz deslizasse a mão pelos cabelos loiros.
— Cansei de cordialidades com você, Henrique.
— Eu estou bem — respondi automaticamente, a voz mais áspera
do que pretendia.
Thomaz suspirou, sentando-se à frente da minha mesa.
— Não, você não está. Todos notaram... seu humor, sua falta de
paciência. Isso não é você, Henrique. Ninguém suporta passar mais
de cinco minutos ao seu lado. Você já teve oito secretárias nos
últimos dois meses! — rebateu, impaciente.
— Não é minha culpa se nenhuma era competente! — rebati
espelhando sua falta de paciência, porque o que eu queria mesmo
dizer era que não era minha culpa se nenhuma delas era Maísa.
Fechei os olhos e expirei profundamente, sentindo a confusão
que habitava minha cabeça fazer seu caminho até o meu peito.
Eram dias péssimos aqueles em que isso acontecia. Eu conseguia
impedir o vazamento quase sempre, mas a visita de Thomaz, essa
conversa, estava tornando impossível de manter as verdades
cuidadosamente escondidas de mim mesmo assim, enterradas.
Eu morria de saudades dela, e não de um jeito figurado. Eu me
sentia morrendo a cada dia que não tinha Maísa por perto, mesmo
sabendo que ela era uma mentirosa e uma manipuladora, e
amaldiçoava o dia em que coloquei meus olhos naquela mulher pela
primeira vez, porque eu não fazia ideia de que era possível abrigar
dentro do peito um sentimento tão avassalador antes de conhecê-la.
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Maísa fez com que tudo o que senti com a traição de Daiane,
mais de uma década atrás, parecesse irrelevante.
Sua ausência era um tormento constante, uma agonia que se
estendia por cada hora de cada dia sem ela. O que ela fez, o que ela
ousou fazer com aquilo que lhe dei de tão bom grado, era uma dor
crua e pulsante que se recusava a cicatrizar.
A cada momento em que eu permitia que minha mente vagasse,
encontrava-me afogado em memórias dela, cada uma mais doce e
dolorosa que a anterior. Era um ciclo vicioso de recordação e
desespero, uma saudade que consumia minha existência.
Cada dia sem Maísa era um lembrete daquilo que eu havia
perdido, um vazio que nenhum trabalho ou distração conseguia
preencher, embora eu continuasse me esforçando em tentativas
infinitas e infrutíferas.
Eu me encontrava preso entre a memória de um amor que me
consumia e a realidade de uma traição que me devastava. Sua
ausência era uma ferida aberta. Só não maior do que minha repulsa
por mim mesmo por continuar a senti-la, apesar de tudo.
Eu sabia que Thomaz estava certo sobre o meu humor. Nos
últimos meses, me tornara insuportável para mim mesmo, e
principalmente para as outras pessoas. Não queria ver ninguém,
falar com ninguém, lidar com ninguém e pobres daqueles que eram
obrigados a lidar comigo.
Finalmente olhei para o meu amigo, encontrando um olhar que
mesclava a firmeza de suas palavras com uma genuína preocupação.
— Eu a vejo em todo lugar, Thomaz. Em cada canto da casa, em
cada sala desta empresa — confessei, tentando descobrir se falar
faria melhor do que esconder. Nada mudou.
Thomaz se inclinou para frente, apoiando os braços sobre a
mesa.
— E se eu te disser que há uma maneira de lidar com isso que
não envolve se isolar do mundo? Você já considerou procurar ajuda

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profissional? Alguém para conversar?
— E dizer o quê? — Minha voz carregava um veneno que não
costumava dirigir a amigos. — Que eu sou um idiota por não
conseguir superar uma mulher que me fez de tolo? Não, obrigado.
Acho que posso lidar com isso sozinho.
Thomaz manteve o olhar firme em mim, a seriedade em seus
olhos cortando a distância entre nós.
— Não é sobre ser patético, Henrique. É sobre ser humano.
Sofrer faz parte do processo, mas não precisa ser um caminho que
você percorre sozinho...
Interrompi-o com um gesto brusco da mão.
— Eu já sinto, Thomaz. Sinto cada maldito dia. E cada vez que
tento esquecer, algo ou alguém me faz lembrar. Não preciso pagar
alguém para me dizer como me sentir ainda pior.
Meu amigo suspirou, sua expressão de preocupação
transformando-se lentamente em resignação.
— Você acha que se afundar em trabalho e amargura vai fazer
você se sentir melhor? Você está se destruindo, Henrique.
— Talvez seja isso que eu quero — retruquei, a amargura
tingindo cada palavra. — Talvez eu prefira me destruir a ter que lidar
com a realidade de que fui enganado, de que amei alguém que
nunca existiu.
Thomaz se levantou, a pena anteriormente disfarçada agora
claramente substituída por frustração.
— Você não é o único que já sofreu por amor, Henrique. Mas se
recusar a buscar ajuda, se isolar desse jeito, isso não é saudável.
Você está empurrando todos que se importam com você para longe.
— Talvez seja melhor assim — disse eu, voltando minha atenção
para os papéis à minha frente, uma clara indicação de que a
conversa havia terminado.
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Por um momento, Thomaz permaneceu em pé, olhando para mim


como se esperasse que eu dissesse algo mais, que eu
reconsiderasse. Mas não havia mais nada a dizer.
Com um suspiro pesado, ele finalmente se virou, mas ao chegar
na porta, antes de sair do escritório, me olhou por sobre o ombro.
— Você pode tentar me afastar o quanto quiser meu amigo, —
avisou, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Não vai
funcionar. Eu vou voltar amanhã, e depois, e depois, até você
entender que não vou deixar você afundar.
Então, ele partiu.
Mas a verdade era que ele é quem não entendia. Thomaz não
entendia que eu merecia me afundar nessa dor. Eu merecia ser
punido por ter me permitido cair tão cegamente apaixonado.

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— Vamos nos concentrar na respiração agora, — Vanessa disse,
com a voz serena e encorajadora. — Inspirem profundidade,
trazendo paz e calma para vocês e para seus bebês.
Uma luz suave da manhã filtrava pelas janelas amplas do estúdio,
banhando a sala em uma calma tranquilizadora. Apertei os olhos e
empurrei o chão, sentindo os músculos se esticando na posição em
que estava.
Seguindo seu comando, deixei que cada inspiração me relaxasse
e cada expiração dissipasse qualquer resquício de ansiedade ou
preocupação.
A cada nova postura, sentia meu corpo se adaptar e se fortalecer,
um espelho da transformação que minha vida vinha sofrendo.
Comecei a Ioga como uma forma de me manter ativa durante a
gravidez, mas ela rapidamente se tornou uma paixão.
Não era apenas exercício; era terapia, um momento para me
reconectar com meu corpo e com o pequeno ser que crescia dentro
de mim. E as amizades que surgiram nessas aulas eram um bônus
inesperado, um círculo de apoio e compreensão que eu não sabia
que precisava.
O estúdio abraça a cada uma de nós assim que cruzamos sua
entrada. As paredes são pintadas de um tom suave de lavanda, e
grandes janelas permitem que a luz natural inunde o ambiente,
refletindo nos pisos de madeira polida.
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Espalhados pelo chão, os tapetes de ioga acrescentam um toque


de alegria ao espaço. Ao fundo, uma estante rústica abriga todos os
acessórios necessários para nossa prática: blocos, cintos e
almofadas, organizados com cuidado e prontos para serem
utilizados.
Há também um pequeno sistema de som de onde flui uma
música suave. Um dos cantos é dedicado a um pequeno altar zen,
repleto de velas, cristais e uma pequena fonte de água. Plantas
verdes em vasos de cerâmica estão posicionadas em pontos
estratégicos.
Cada detalhe, da iluminação ao aroma suave de lavanda no ar, é
pensado para nos proporcionar uma experiência que nutre não só o
corpo, mas também a alma. Aqui, sinto-me acolhida, segura e parte
de uma comunidade que compartilha dos mesmos desejos e
esperanças para o futuro.
— E agora, a pose do guerreiro, — anunciou a professora e eu
me movi.
Precisei afastar mais os pés do que o habitual, um ajuste
necessário para acomodar a crescente curvatura da minha barriga.
Era um equilíbrio entre manter a postura firme e honrar as
mudanças no meu corpo.
A instrutora, sempre atenta, aproximou-se com um sorriso
encorajador, suas mãos delicadamente guiando meu quadril para
alinhar melhor a postura, assegurando que eu mantivesse a
integridade do movimento sem comprometer minha segurança ou
conforto.
— Erga os braços, mantendo-os paralelos ao chão, e olhe para
além da sua mão direita, — ela orientou, sua voz calma e firme.
Segui suas instruções, estendendo os braços com cuidado,
sentindo o estiramento suave ao longo dos meus ombros e costas.
Ao executar a transição para a posição do guerreiro invertido, a
instrutora recomendou um apoio suave da mão na parte de trás da

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perna, em vez de estender a mão para o chão, como faríamos
normalmente.
— Isso ajudará a manter o equilíbrio e evitar qualquer pressão
desnecessária, — explicou, enquanto eu seguia sua orientação,
maravilhada com a sensibilidade e o cuidado de cada ajuste.
Essa atenção aos detalhes, essa adaptação cuidadosa dos
movimentos para atender às nossas necessidades únicas durante a
gravidez, transformava cada aula de ioga em uma experiência de
autocuidado antes de qualquer outra coisa.
Quando chegamos ao momento dos alongamentos suaves
destinados a aliviar a tensão nas costas, a instrutora distribuiu
almofadas para que pudéssemos apoiar nossos joelhos, uma
pequena modificação que fez uma grande diferença na forma como
meu corpo respondia ao exercício.
Ao final da aula, o estúdio foi envolvido em uma atmosfera de
tranquilidade quase palpável.
Com movimentos lentos e deliberados, enrolei-me em um
cobertor macio, buscando um conforto adicional para o momento de
relaxamento que se aproximava.
Posicionei-me cuidadosamente de lado, respeitando a curva
crescente da minha barriga, e apoiei a cabeça em uma almofada
especialmente ajustada para essa finalidade.
A instrutora, com uma presença tão serena quanto a luz suave
que banhava a sala, iniciou a meditação guiada, sua voz suave
tecendo através do espaço como um abraço acolhedor.
— Inspirem profundamente, — ela começou, — e ao expirar,
permitam-se sentir completamente relaxadas, seguras neste espaço
criado especialmente para vocês e seus bebês.
Segui sua orientação, permitindo que cada respiração me levasse
a um estado de relaxamento mais profundo.
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O som suave da música ambiente se misturava às suas palavras,


criando uma melodia calmante que parecia embalar não apenas a
mim, mas também ao pequeno ser que crescia dentro de mim.
— Agora, visualizem uma luz suave envolvendo vocês e seus
bebês, — continuou a instrutora. — Uma luz cheia de amor, proteção
e conexão.
Fechei os olhos, concentrando-me na imagem que ela descrevia.
Em minha mente, visualizei a luz, uma aura cálida e acolhedora que
nos envolvia, reforçando o vínculo invisível, mas inquebrantável
entre mim e meus filhos. Era uma mistura de paz, amor e uma forte
sensação de proteção.
A instrutora encorajou-nos a manter essa sensação de conexão e
amor, a levá-la conosco ao sair do estúdio e em nosso dia a dia.
— Essa luz e amor estão sempre disponíveis para vocês, — ela
afirmou, — basta se lembrarem de acessá-los.

Quando a meditação chegou ao fim e a instrutora nos convidou a


retornar ao momento presente, fiz isso lentamente, relutante em
deixar a paz que havia encontrado.
Levantei-me, sentindo-me renovada.
— Um suco verde? — perguntou Ana, uma das minhas novas
amigas, enquanto enrolávamos nossos tapetes.
Estalei a língua, olhando para o seu rosto de pele escura e olhos
castanhos. Ela apoiou o tapete enrolado na barriga de oito meses e
fechou a tira de velcro.
— Eu nunca vou dizer sim para um suco verde — respondi, rindo.
—, mas aceito o suco. Um de morango com laranja.
Minha boca se encheu de água só com o pensamento.

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— Own! — dissemos coletivamente, encarando a foto na tela do
celular de Cássia.
Minha parada para um suco com Ana havia se tornado uma coisa
em grupo quando mencionei o suco de morango com laranja para
outras gravidas e todas elas ficaram com desejo, e agora,
babávamos na fotografia do mais novo recém-nascido da ioga.
Júlia tinha dado a luz dois dias antes, e sua filha era a coisa mais
linda do mundo. A vontade que eu tinha era de atravessar a tela do
celular para morder aquela criança.
As bochechinhas rosadas e a expressão serena que só os recém-
nascidos têm eram adoráveis. Cada uma de nós, envolvida em nossa
própria jornada de maternidade, sentia uma mistura de alegria e
antecipação ao ver a foto.
— Quando é a nossa vez? — brincou Marina, outra futura mamãe
do grupo, enquanto passava o dedo pela tela, ampliando a imagem
da pequena.
Rimos, mas por trás da brincadeira, havia um senso de
camaradagem e apoio mútuo que se formara entre nós, fortalecido
por encontros casuais como esse e pelas aulas de ioga.
A maternidade, percebi, era uma jornada compartilhada, repleta
de desafios e alegrias que se tornavam mais leves e significativos
quando vividos em comunidade.
A sugestão de Geórgia para que eu procurasse um grupo de
apoio acabou sendo uma das melhores decisões que tomei desde
que voltei para minha cidade natal.
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No início, estava hesitante, incerta sobre compartilhar minhas


experiências e vulnerabilidades com estranhos. Contudo, ao dar o
primeiro passo e participar de uma reunião, percebi o quanto tinha
subestimado a importância de me conectar com outras mulheres que
estavam vivenciando a maternidade.
O grupo de apoio era um espaço acolhedor, cheio de
compreensão e empatia, onde cada história era valorizada e
respeitada. Ali, eu não era apenas a Maísa que tinha passado por
uma decepção amorosa; eu era uma futura mãe, buscando
orientação, força e compreensão para os desafios que a maternidade
trazia.
Ouvir as experiências de outras mulheres, suas alegrias e
obstáculos, suas expectativas e medos, fez-me perceber que eu não
estava sozinha. Cada encontro era uma oportunidade para aprender,
compartilhar e crescer.
As risadas, as lágrimas e os conselhos trocados naquelas reuniões
fortaleceram-me de maneiras que eu não imaginava serem possíveis.
Com o tempo, o grupo de apoio tornou-se um pilar essencial na
minha nova vida.
As amizades que formei ali, os vínculos que criamos, deram-me a
força e a confiança necessárias para encarar os desafios da
maternidade com otimismo e esperança.
Graças a essa rede de suporte, consegui começar a me reerguer,
dia a dia, passo a passo. Era um longo caminho, mas eu me
considerava uma obra em andamento.
— Eu mal posso esperar para ver nossos bebês juntos, — disse
Ana, colocando a mão sobre a barriga, um sorriso iluminando seu
rosto.
Concordamos, imaginando o futuro, quando nossos filhos
também poderiam formar laços de amizade, talvez até seguir os
passos de suas mães e participar de aulas de ioga para bebês.

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A ideia nos fez rir novamente, mas não havia dúvida de que, de
alguma forma, estávamos tecendo uma rede de apoio que se
estenderia além do nascimento de nossos filhos.
— Precisamos fazer uma foto assim de todos os bebês juntos
quando chegarem, — sugeriu Cássia, guardando o celular.
Todas rimos, já imaginando o caos adorável de tentar posicionar
todos os bebês para uma foto, as risadas e as memórias sendo
criadas.
Me despedi das minhas amigas, sentindo que, se eu era um
edifício em construção, naquele dia, eu tinha colocado mais um
tijolinho no lugar.

Passei as mãos pelo tecido macio, imaginando meus bebês


usando cada uma das peças espalhadas sobre a cama, tentava
visualizar seu rostinho, suas mãozinhas tocando o algodão.
Enquanto voltava da ioga hoje, não resisti a um conjuntinho que
vi em uma vitrine e entrei na loja. Saí de lá com três cores diferentes
e seis bodys. Se continuasse desse jeito, precisaria doar minhas
roupas para guardar as dos bebês muito em breve.
Ri da ideia, porque ela nem me parecia tão absurda. As roupinhas
eram fofas demais para que eu resistisse.
Continuei a dobrá-las. Era um exercício de amor, uma forma de
me conectar com esses serezinhos que cresciam dentro de mim,
ainda invisíveis aos meus olhos, mas já tão presentes no meu
coração.
No entanto, à medida que a pilha de roupinhas prontas para ser
guardadas crescia, um sentimento familiar começava a se insinuar,
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sutil, entre os fios da minha alegria.


Era a saudade, a ausência de Henrique. A simples ação de
preparar o enxoval dos nossos filhos sem ele por perto despertava
uma dor aguda, uma sensação de vazio que eu lutava para ignorar
durante o dia.
De repente, me vi segurando um pequeno par de meias azuis, tão
pequenas que cabiam na palma da minha mão. Foi nesse momento
que a barreira que eu mantinha cuidadosamente erguida em torno
do meu coração começou a ruir.
As memórias de Henrique, que eu conseguia manter à distância
durante as horas iluminadas pelo sol, invadiram minha mente com
força total sob o manto da noite.
Podia quase ouvir sua voz, ver seu sorriso, sentir o calor de seu
toque. O desejo de que ele estivesse ali comigo, compartilhando
esse momento, era avassalador. Queria que ele visse o que eu via,
que sentisse o que eu sentia, que sonhasse o que eu sonhava para
os nossos filhos.
Mas a realidade era outra, e eu estava sozinha. Sozinha com
minhas esperanças, meus medos e minhas lágrimas, que agora
começavam a descer silenciosas pelo meu rosto.
Permiti-me chorar, deixando que a tristeza e a solidão fluíssem
livremente. Era um ritual não planejado, mas que ainda assim, se
repetia todas as noites, uma forma de liberar a dor acumulada para
poder, de alguma forma, seguir em frente.
As lágrimas escorriam pelas minhas bochechas, uma após a
outra, marcando caminhos salgados em minha pele. A quietude do
meu quarto, na casa onde cresci, ampliando o eco da minha dor,
tornando cada soluço um lembrete da ausência que me assolava.
Respirei fundo, tentando encontrar alguma paz entre os soluços
que sacudiam meu corpo. A cada expiração, tentava soltar um pouco
da dor, liberar um pouco do peso que me prendia. Mas a tristeza é

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uma maré caprichosa, recuando apenas para retornar com mais
força.
Eventualmente, o choro diminuiu, dando lugar a uma exaustão
emocional que me envolveu completamente. Guardei as últimas
peças de roupa e apaguei a luz, deitando-me sob os cobertores em
busca de algum descanso.
O quarto, com suas sombras suaves e a quietude reconfortante,
agora me envolvia não apenas em escuridão, mas também em um
abraço silencioso, lembrando-me de que, apesar de tudo, ainda
havia um amanhã.
Um amanhã que enfrentaria com ou sem Henrique. Dentro de
mim, cresciam novas vidas, três pequenos seres que já me
ensinavam sobre força, resiliência e a capacidade de amar
incondicionalmente.
Foi para eles que fiz uma promessa quando fechei meus olhos. A
mesma que eu lhe fazia todas as noites. A última parte daquele
ritual. Lhes prometi que, a cada amanhecer, eu me esforçaria para
ser um pouco mais forte, para construir um mundo de amor e
segurança para eles.
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Eu podia sentir a veia em minha têmpora pulsar. Minha frustração


crescia à medida que via o interesse do investidor de quem eu
precisava, e muito, diminuir, sua expressão cada vez mais cética
diante das minhas tentativas de persuasão.
O almoço de negócios daquele dia era crucial, uma oportunidade
pela qual eu batalhei muito. No entanto, o estado em que me
encontrava, exausto e de humor volátil, não era o ideal para
convencer ninguém a confiar em mim financeiramente.
O restaurante escolhido para o almoço era refinado, o tipo de
lugar que normalmente me deixaria à vontade, confiante. Mas hoje,
nada disso importava. Sentado à frente do investidor, cada palavra
que eu dizia parecia desprovida de convicção, meus argumentos,
embora sólidos, soavam forçados.
— Henrique, eu entendo o potencial do que você está propondo
— disse ele, finalmente, após um longo e tenso silêncio. — Mas não
estou convencido de que este seja o momento certo para esse tipo
de investimento.
— Veja, a projeção para os próximos cinco anos é extremamente
promissora — comecei, tentando manter a calma e o foco. —
Estamos à beira de uma inovação que pode revolucionar o mercado.
Não é apenas uma questão de lucro, é uma questão de liderar uma
mudança significativa na indústria.
O investidor cruzou os braços, inclinando-se levemente para trás.
Sua expressão era de ceticismo, um desafio silencioso para que eu o

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convencesse.
— Henrique, não duvido do potencial de inovação da sua
empresa — ele respondeu, medindo cuidadosamente suas palavras.
— Mas o mercado atual é volátil. Há muitas incertezas, e meu
investimento precisa de uma garantia sólida de retorno, algo que,
pelo que vejo, você não pode oferecer no momento.
A frustração borbulhava dentro de mim, mas me esforcei para
mantê-la sob controle.
— Entendo suas preocupações com a volatilidade do mercado,
mas estamos preparados para isso. Temos planos de contingência, e
nosso time é altamente qualificado. Estamos não apenas buscando
sucesso a curto prazo, mas estabelecendo as bases para um domínio
de mercado a longo prazo.
Houve uma pausa, um momento em que o equilíbrio da conversa
parecia pender, esperando por um lado ceder.
— Respeito sua paixão e determinação, Henrique — ele
finalmente disse, sua voz carregada de uma decisão já tomada. —
Mas, no momento, não me sinto confortável em prosseguir com o
investimento. Preciso de algo mais concreto do que planos e
promessas.
Minha tentativa de resposta saiu fraca, a desilusão emaranhando-
se nas palavras.
— Compreendo sua posição, e agradeço seu tempo — consegui
dizer, a despeito da amargura que lutava para não transparecer.
A conversa encerrou-se ali, o investidor se despediu com um
aperto de mão formal, e eu permaneci sentado, remoendo a derrota
e o impacto que ela teria. Ignorei a presença inútil da minha nova
secretária, sentada na cadeira ao meu lado. Imprestável para
qualquer coisa que não fosse fazer anotações.
Os lustres luxuosos e o mobiliário de bom gosto ao meu redor
pareciam rir de mim. Até mesmo os quadros pendurados nas
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paredes, de artistas renomados, me encaravam com olhares


debochados.
O restaurante escolhido para o almoço de negócios era um
daqueles lugares cuja reputação o precedia, um espaço onde o luxo
e a discrição se encontravam em perfeito equilíbrio, criando uma
atmosfera de exclusividade.
As mesas, dispostas com uma precisão meticulosa, garantiam
privacidade. Os tecidos das toalhas eram de uma brancura
imaculada, contrastando com o brilho escuro das madeiras e o toque
suave do couro das cadeiras.
O desejo de me afundar no trabalho como meio de escapar da
realidade do fracasso foi um pensamento que surgiu quase que
imediatamente, uma tentativa de encontrar alguma ordem no caos
emocional que se tornou minha vida.
A insônia, essa companheira fiel e cruel dos últimos meses,
tornou-se um lembrete constante do meu estado fragmentado.
Dispensei Mariana para que pegasse um taxi e decidi voltar
caminhando para a Borges, na tentativa de dissipar um pouco da
frustração percorrendo meu corpo.
Cada passo era mecânico, um esforço para manter a compostura
diante da derrota. O desejo de simplesmente desaparecer, de me
perder em algum lugar onde a dor e a solidão não pudessem me
alcançar, era avassalador.
No entanto, a fuga não era uma opção. Havia uma empresa para
gerir, responsabilidades que não podiam ser ignoradas,
independentemente do meu estado emocional.
Se a paz não era possível, então eu encontraria algum sentido na
exaustão, na esperança de que, eventualmente, o esquecimento
viesse com o colapso físico.
No fundo, eu sabia que era uma solução temporária, mas se era a
única que eu tinha, era ela que eu abraçaria.

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A verdadeira batalha era contra a minha própria mente, contra as
memórias que insistiam em me torturar, contra o desejo de voltar no
tempo e procurar os sinais, fazer tudo diferente. E essa era uma
batalha que eu ainda não sabia como vencer.
Horas depois, o peso do silêncio no carro era quase opressivo. Eu
havia dispensado o motorista mais cedo, insistindo que terminaria
alguns trabalhos e não sabia ao certo a que horas sairia.
O relógio já marcava bem depois da três da manhã quando
finalmente decidi que era hora de voltar para casa.
Apesar do meu pé empurrando com força o acelerador, o mundo
ao meu redor parecia ter desacelerado, envolto em um silêncio
profundo que só a madrugada pode oferecer.
As ruas, normalmente pulsantes com o ritmo frenético da vida
urbana, estavam agora quase desertas. A luz fraca dos postes eram
bolas amareladas que se estendiam pelos passeios vazios.
Os edifícios que durante o dia eram testemunhas vibrantes da
vida da cidade, agora se erguiam como gigantes adormecidos, suas
janelas escurecidas e silhuetas imponentes recortadas contra o céu
noturno.
Poucos carros passavam por mim, seus faróis cortando a
escuridão antes de desaparecer na distância. Sentia os olhos
pesarem a cada quilômetro que passava.
O cansaço acumulado das longas horas de trabalho, misturado
com o silêncio ensurdecedor que agora fazia parte da minha vida,
criava uma atmosfera opressora.
Pelo menos eu sabia que esta noite, seria bem-sucedido em
minha tentativa de dormir. Lutei contra o sono, piscando
repetidamente, tentando manter a concentração na estrada.
Liguei o rádio no último volume e abri as janelas. O vento gelado
da madrugada açoitou meu rosto com violência, mas o despertar
trazido por ele foi breve demais.
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A batalha estava perdida; o cansaço era um inimigo implacável.


Por um momento, permiti-me fechar os olhos, apenas por um
segundo, buscando alívio para a ardência que tomava conta deles.
O estrondo me despertou, depois, a sensação de estar sendo
violentamente sacudido, o grito do metal sendo retorcido. O mundo
girava em um turbilhão de luzes e sombras, antes que,
abruptamente, o silêncio retornasse.

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HENRIQUE BORGES

A confusão que tomou conta de mim era densa, um véu espesso


de incerteza que envolvia cada pensamento.
Tentei mover a cabeça, buscando alguma pista que me ajudasse
a entender meu entorno, mas abrir os olhos era impossível, e o
menor movimento desencadeou uma dor aguda, um choque elétrico
que percorreu meu corpo, forçando-me a permanecer imóvel.
Respirar era um ato carregado de dificuldade, cada inalação uma
luta contra a dor e o desconforto que pareciam ter tomado
residência no meu peito.
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Meu coração batia de forma irregular, alternando entre batidas


rápidas, quase frenéticas, e momentos de calmaria, como se
estivesse tão confuso quanto eu sobre como reagir à situação. E
foram os sons, as primeiras coisas a começar a fazer algum sentido.
Beeps e zumbidos formavam uma sinfonia estranha, um fundo
sonoro para a minha lenta reconexão com o mundo físico. Cada som
parecia amplificado, ecoando em minha mente com uma intensidade
desproporcional.
Aparelhos. Havia aparelhos ao meu redor. Então muito
lentamente, comecei a me lembrar de estar acordado. Eu estava
dirigindo e... Forcei meus olhos a se abrirem. Uma dor aguda latejou
nas minhas têmporas quando a luz tênue que penetrava o quarto
agrediu meus sentidos.
A luz, embora fraca, era como um farol cortando a escuridão,
uma invasão brutal à minha recém-descoberta consciência.
Piscando contra o incômodo, meus olhos lentamente se ajustaram
ao ambiente, delineando contornos e formas que começavam a
compor o espaço ao meu redor.
O quarto de hospital, agora parcialmente revelado pela minha
visão turva, tornou-se o cenário definitivo da realidade que eu
estava tentando negar.
A dor em minhas têmporas pulsava em uníssono com meu
coração, cada batida um lembrete das circunstâncias que me
trouxeram até aqui.
Os aparelhos médicos, com seus beeps constantes e ritmados,
não eram mais apenas sons distantes, mas marcadores tangíveis do
meu estado frágil.
A consciência de que estava em um hospital, deitado em uma
cama, conectado a máquinas que monitoravam cada aspecto da
minha vida, começou a se assentar com um peso opressor.
A memória do acidente veio em flashes desconexos - a sensação
de controle deslizando pelas minhas mãos, o mundo girando em um

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caos de luzes e sombras, e então, o impacto, uma força bruta que
me arrancou da realidade para me jogar em um abismo de
escuridão.
Um suspiro escapou dos meus lábios, uma tentativa falha de
aliviar a tensão que me dominava. A dor física era apenas uma parte
do tormento; era a dor emocional, a agonia de saber que minha
própria imprudência tinha me colocado ali, que ameaçava me
engolir.
— Thomaz? — minha voz saiu como um sussurro rouco, a simples
ação de falar exigindo mais esforço do que eu poderia imaginar.
Ele estava lá, sentado em uma cadeira ao lado da minha cama,
parecendo cochilar. Meu amigo se mexeu e seus olhos se abriram,
mas sua cabeça permaneceu abaixada por alguns segundos, como
se ele também precisasse se lembrar de onde estava, até que se
ergueu de repente, com os olhos arregalados.
— Henrique?! — Meu nome era meio exclamação, meio pergunta.
Pisquei, ainda sentindo, como se eu estivesse flutuando entre o
sono e a realidade, sem conseguir distinguir completamente um do
outro.
A reação de Thomaz, ao ver-me desperto, era um misto de
surpresa e alívio tão obvio que quase poderia ser tocado. A forma
como seus olhos se arregalaram, o jeito súbito com que sua postura
se endireitou, tudo indicava como meu amigo se sentia.
— Você... como você está se sentindo? — perguntou, apertando
um botão eu não tinha notado estar ao alcance da minha mão.
A tentativa de responder foi um desafio, a sensação de flutuar
entre dois mundos ainda deixando minha mente turva, minhas
palavras presas em algum lugar entre o pensamento e a expressão.
— Confuso... — consegui articular, minha voz um sussurro frágil
que mal reconhecia como minha. — O que... aconteceu?
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Antes que ele pudesse responder, no entanto, a porta do quarto


se abriu suavemente, e um médico entrou.
Seu jaleco branco era quase luminoso contra o cinza suave do
ambiente hospitalar. Ele trazia consigo uma prancheta, seus passos
medidos e sua expressão, profissional.
— Bom ver que você acordou, Henrique. Sou o Dr. Silva, o
ortopedista responsável pelo seu caso — disse ele, aproximando-se
da cama com um semblante calmo e seguro. Havia um pequeno
martelo em mãos. — Vamos verificar seus reflexos, Henrique. Isso é
importante, depois do período que você ficou inconsciente —
explicou ele, com uma voz calma que buscava me tranquilizar.
Senti minha testa se franzir.
— Por quan...— Parei quando minha voz falhou e me concentrei
antes de fazer uma segunda tentativa. — Por quanto tempo fiquei
inconsciente?
—Três dias, mas depois da cirurgia, era o esperado — disse, e
não esperou que eu respondesse.
Com um olhar atento, ele começou a examinar minhas reações,
tocando suavemente diferentes pontos do meu joelho e tornozelo,
observando atentamente as respostas involuntárias do meu corpo.
A sensação do martelo tocando minha pele era peculiar, uma
mistura de leve desconforto e a estranha sensação de não ter total
controle sobre as respostas do meu próprio corpo. Cada batida
provocava um pequeno sobressalto, um reflexo que o médico
observava meticulosamente.
Após alguns momentos, Dr. Silva pareceu satisfeito com os
resultados dos testes, assentindo com a cabeça como se
confirmasse suas suspeitas ou esperanças sobre minha recuperação.
— Seus reflexos estão respondendo como esperado, o que é um
bom sinal — comentou ele, antes de colocar o martelo de lado e
voltar sua atenção para a prancheta com minhas informações. —

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Você sofreu um acidente bastante sério. Vamos conversar sobre seu
estado atual, está bem?
A menção do acidente fez com que a realidade da minha situação
se cristalizasse ainda mais. Assenti, minha atenção agora dividida
entre o médico e a súbita consciência de uma sensação estranha na
perna.
Dr. Silva consultou a prancheta antes de prosseguir, seus olhos
percorrendo rapidamente as anotações.
— Você teve várias fraturas na perna direita, que se quebrou em
três partes diferentes. Foi necessário realizar uma cirurgia para
corrigir essas fraturas, inserimos pinos para manter os ossos
alinhados durante o processo de cicatrização — explicou ele, com
uma clareza que apreciei, mesmo diante da gravidade das
informações.
Olhei automaticamente para minha perna, notando pela primeira
vez a estrutura que a mantinha suspensa. A visão de minha perna
imobilizada, a realidade das fraturas e da cirurgia, trouxe um choque
de realidade que não esperava. Uma mistura de incredulidade e
aceitação me preencheu enquanto tentava processar as palavras do
médico.
— A recuperação completa vai exigir tempo e fisioterapia —
continuou Dr. Silva.
— Mas então eu vou conseguir me recuperar totalmente?
— Com o tratamento adequado? Sim.
Silêncio tomou conta da sala outra vez enquanto o médico
continuava a encarar a prancheta. Eu estava tentando processar as
palavras do médico, cada frase uma martelada em minha
consciência ainda turva pelo acidente.
A dor física era um fundo constante, mas era a dor da revelação
que me consumia agora, dilacerando qualquer sensação de realidade
que eu tivesse.
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— Henrique, temos mais uma informação importante para


compartilhar — disse o Dr. Silva, sua voz calma contrastando com a
tempestade que começava a se formar dentro de mim. — Devido à
gravidade do acidente, alguns exames complementares foram
realizados para garantir que tudo estava certo, até aquilo que não
estávamos vendo. Os resultados revelaram que a vasectomia,
mencionada em seu histórico médico, foi naturalmente revertida.
A sala parecia girar, as palavras do médico ecoando em minha
mente. Naturalmente revertida. A impossibilidade daquilo, a
improbabilidade, chocava-me tanto quanto a verdade que se
desdobrava diante de mim.
O quarto de hospital começou a se contorcer, as paredes brancas
e os equipamentos médicos borrando-se em um redemoinho de
cores e formas indistintas.
A voz do Dr. Silva, antes clara e direta, transformou-se em um
eco distante, suas palavras "naturalmente revertida" repetindo-se
em minha mente como um mantra perturbador.
Cada repetição dessas palavras trazia consigo uma onda de
choque, uma incredulidade que me fazia questionar não apenas a
veracidade da informação, mas também a base de todas as minhas
ações nos últimos meses.
O ar no quarto se tornou difícil de respirar, cada inalação um
esforço hercúleo contra o peso esmagador da revelação.
Meus olhos, fixos em algum ponto indefinido à frente, lutavam
para se concentrar, para encontrar algo em que se agarrar enquanto
meu mundo desmoronava.
A sensação de vertigem era avassaladora, um zumbido crescente
em meus ouvidos abafando os sons ao redor, exceto pelas palavras
do médico que perfuravam a confusão como um farol de realidade
inescapável.

Minhas mãos, até então repousando inertes sobre o cobertor,


começaram a tremer. Era como se cada fibra do meu ser rejeitasse a

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ideia, e ainda assim, fosse impotente para negar a possibilidade que
se abria diante de mim.
Se minha vasectomia havia sido revertida... Toda certeza com que
havia tomado minhas decisões, toda a dor que havia infligido em
mim, em...
Lutei para encontrar palavras, para dar voz ao turbilhão de
pensamentos e emoções que me consumiam, mas elas se
recusavam a vir. O monitor cardíaco ao meu lado começou a apitar
freneticamente e doutor Silva se sobressaltou.
— Henrique? — Ele me chamou, mas eu não conseguia falar, não
conseguia respirar, não conseguia fazer nada além de me afogar
num abismo de arrependimento e culpa que se abria, cada vez
maior, sob os meus pés.
Por meses, vivi atormentado pela ideia de que Maísa me havia
traído, que havia tentado me prender com uma criança que não era
minha.
A dor dessa traição imaginada havia me consumido, afastando-
me dela, destruindo o que tínhamos construído juntos. E agora, a
revelação de que tudo isso poderia ter sido um erro... Que a criança
poderia, de fato, ser minha.
— Henrique! — Acho que o médico chamou de novo, e, dessa
vez, sua voz rivalizava com outros sons, como se outras pessoas
estivessem entrando na sala às pressas.
Minha visão ficou turva segundos antes de escurecer
completamente, mas antes de apagar tive forças para dizer apenas
duas palavras:
— Perdão, amor.
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O primeiro vislumbre do muro de cercas brancas despertou algo


adormecido dentro de mim, uma centelha de expectativa que eu
procurava desde o amanhecer.
Durante todo o dia, aquela parte silenciosa do meu coração
permaneceu imóvel, sem permitir que a esperança se infiltrasse e
me distraísse da tarefa em mãos. Mas, ao ver aquelas cercas, algo
mudou, e uma onda sutil de otimismo começou a me envolver,
apesar de minha própria resistência.
Minhas pernas doíam e minha coluna também, depois da
peregrinação das últimas horas, e além da barriga a cada dia maior,
havia a incerteza dos últimos tempos, um peso constante do qual eu
não via a hora de me livrar. Era por isso que eu estava tão
determinada a encontrar meu próprio lugar.
Assim que alcançamos as cercas brancas, um corretor de imóveis,
com um sorriso acolhedor estampado no rosto, nos aguardava. Ele
segurava um conjunto de chaves em uma mão e estendeu a outra
em cumprimento.
Com um aperto firme, nos convidou a seguir em frente, liderando
o caminho para dentro daquela que era a quarta casa que eu
visitava naquele dia.
— Bem-vindas — disse ele, sua voz cheia de entusiasmo. —
Tenho certeza de que vão adorar o que esta casa tem a oferecer.

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Caminhamos pelo jardim frontal e o corretor nos guiou até a
porta da frente, inseriu a chave na fechadura com um gesto teatral e
a abriu, revelando o interior da casa.
— Por aqui, por favor.
A luz natural inundava o ambiente através de janelas grandes,
destacando os detalhes da sala de estar vazia que nos recebia.
O corretor começou a apresentar a casa com uma paixão
evidente, destacando cada característica como se estivesse contando
uma história: o piso de madeira que trazia, a cozinha espaçosa com
armários modernos e uma ilha central, os quartos aconchegantes e,
por fim, o quintal, um espaço verde perfeito para receber os amigos.
A cada cômodo que visitávamos, meu coração batia um pouco
mais rápido, não apenas pela beleza e potencial da casa, mas pela
visão de um futuro que começava a se desenhar mais claramente
em minha mente.
Quando chegamos ao quarto com vista para o jardim, foi
impossível não parar. Sonhei acordada. Toda a exaustão e a dor nas
pernas se dissiparam como se nunca tivessem existido.
A luz do sol banhava o espaço, espalhando um brilho dourado por
todo o cômodo. O jardim lá fora parecia um pequeno paraíso
privado, um santuário de tranquilidade e beleza natural que
prometia ser o cenário perfeito para dias tranquilos e noites serenas.
Eu me aproximei da janela, incapaz de desviar os olhos da vista
que se estendia à minha frente.
Imaginei meus bebês brincando no gramado, suas gargalhadas
ecoando pelo ar enquanto eu observava da janela, um sorriso no
rosto e uma sensação de paz no coração.
Visualizei noites tranquilas, embalando meus filhos para dormirem
naquele quarto iluminado pela lua, contando histórias e cantando
canções de ninar que prometiam sonhos doces e seguros.
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Geórgia, percebendo meu encantamento, aproximou-se e colocou


um braço ao redor dos meus ombros.
— Acho que temos uma escolhida, não é? — ela sussurrou,
percebendo o que meus olhos não conseguiam negar. Balancei a
cabeça, concordando, e Geórgia riu. — É uma casa incrível mesmo
— admitiu, e eu sabia que fazia isso a contragosto.
Ela e nossos pais tentaram me convencer a todo custo a
continuar morando com eles pelo menos, até que meus bebês
completassem seis meses de vida. Eu pensei sobre isso, pensei
mesmo, mas eu não poderia.
Eu precisava continuar me reconstruindo, me reerguendo, e ter
meu próprio espaço, um lar para os meus filhos e eu, só nosso, era
uma etapa fundamental e que eu não estava mais disposta a adiar.
O corretor observava de perto, um sorriso discreto nos lábios.
— E então? O que acham? — perguntou o corretor, depois que já
estávamos paradas na janela havia algum tempo.
Virei-me para ele sem nenhuma dúvida no meu coração.
— É essa!

A noite no restaurante Três Amores, um cantinho aconchegante e


familiar no coração da minha cidade natal, estava repleta de risadas,
conversas animadas e um calor humano que há muito não sentia
com tanta intensidade.
Meus pais e minha irmã haviam organizado esse jantar para
comemorar a casa que eu havia encontrado para alugar, mesmo que

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em seus corações, quisessem outras coisas, porque eles eram
incríveis assim, e sempre respeitaram minhas escolhas.
Sentada à mesa, cercada por minha família, eu não conseguia
evitar um sorriso genuíno que se espalhava pelo meu rosto. A
sensação de pertencimento, de estar em casa, era avassaladora.
Era um contraste marcante com os últimos meses, um período
em que me senti tão perdida e desamparada.
— A um novo começo para a nossa Maísa — brindou meu pai,
erguendo sua taça de vinho no ar.
Todos nos juntamos ao brinde, nossas taças se encontrando no
centro com um som alegre. Eu senti um calor se espalhar pelo meu
peito, um misto de gratidão e renovação.
A emoção me fez engolir em seco, lutando contra as lágrimas que
ameaçavam escapar. Não de tristeza, mas de uma alegria diferente,
uma que eu não sentia havia algum tempo.
— E que você faça dessa nova casa um lar repleto de felicidade,
Maísa — acrescentou minha mãe, seu olhar carinhoso encontrando o
meu.
A comida chegou, distraindo-nos momentaneamente, mas assim
que os pratos foram retirados, a conversa voltou com força total.
— Quero fazer o berço do meu neto com as minhas próprias
mãos — meu pai anunciou.
Minha mãe se virou para ele, os braços apoiados na cintura.
— E desde quando você tem habilidade para isso, Rodolfo? —
desafiou e Georgia e eu gargalhamos.
— Nada que alguns vídeos no youtube não resolvam, Marta —
meu pai se defendeu, o que desencadeou uma discussão ferrenha
sobre ele ser capaz, ou não, de seguir instruções.
Entre goles e conversas, a noite se desenrolava com uma
facilidade surpreendente.
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Histórias eram compartilhadas, planos para a nova casa


discutidos com entusiasmo. A cada risada, a cada troca de olhares,
eu me sentia mais leve.
— Lembra da nossa primeira casa, Rodolfo? — Minha mãe
perguntou ao meu pai em certo momento.
— Aquele cubículo? Como esquecer? — Ele respondeu entre
risadas.
— Na primeira noite na nossa nova casa — começou ela, virando-
se para Geórgia e eu, uma risada já escapando por entre as palavras
—, decidimos que queríamos inaugurar nossa cozinha preparando
um jantar especial, algo para celebrar nosso novo começo.
Ela pausou, sorrindo ao se lembrar, enquanto meu pai balançava
a cabeça, um sorriso cúmplice nos lábios.
— O que não previmos — continuou ela —, foi que a casa nova
tinha um fogão antigo, à lenha. E eu nunca tinha acendido um fogão
à lenha na vida!
A mesa explodiu em risadas, imaginando a cena.
— Lá estava eu, com um fósforo na mão, tentando entender o
fogão. Rodolfo estava no quarto, desembalando nossas coisas,
quando ouviu um estrondo seguido de um grito. Correu para a
cozinha, achando que tinha encontrado um desastre.
As risadas aumentaram, e até minha mãe não conseguia conter
seu próprio riso ao contar a história.
— O que ele encontrou — disse ela, enxugando uma lágrima de
riso do canto do olho —, foi a cozinha coberta de farinha! Eu, em
minha infinita sabedoria, lembrei de algum lugar que se você
jogasse farinha sobre um pequeno incêndio, ele se apagaria. Então,
quando o fogão finalmente acendeu e deu um pequeno estouro, por
reflexo, joguei um pote inteiro de farinha nele!
Todos à mesa estavam agora rindo sem controle, inclusive meu
pai, que acrescentou:

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— A cena que encontrei foi sua mãe, parada no meio da cozinha,
coberta de farinha da cabeça aos pés, com uma expressão de total
surpresa no rosto. O fogão estava apagado, sim, mas agora
tínhamos um problema maior para limpar!
— Aprendemos muitas coisas naquela noite — concluiu minha
mãe, ainda rindo. — Como acender um fogão à lenha corretamente,
por exemplo, e que talvez seja melhor deixar a farinha longe da
cozinha por enquanto.
Me lembrei de uma outra cozinha, coberta de farinha, mas a dor
insuportável que eu esperava não veio, não quando eu estava
cercada pelos risos e pelo amor da minha família.
Observando-os, uma sensação de gratidão me inundou. Ali,
naquele restaurante, cercada pelas pessoas que mais amava, eu me
dei conta de que, apesar de tudo, a vida continuava a oferecer
momentos de pura felicidade.
A reconstrução da minha vida não era apenas sobre encontrar
uma nova casa ou superar um coração partido, mas sobre
redescobrir a alegria nas pequenas coisas, nos momentos
compartilhados com aqueles que me amavam incondicionalmente.
Ao final do jantar, quando nos levantamos para ir embora, lancei
um último olhar ao restaurante Três Amores.
Esse jantar de comemoração seria uma memória que guardaria
com carinho, um lembrete de que, mesmo após as tempestades, é
possível encontrar abrigo e recomeçar.
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— Você não está aqui para passear, Henrique. Vamos trabalhar!


— Lara disse, determinada, ao meu lado, do outro lado da barra em
que eu apoiava minha mão esquerda.
Rangi os dentes, sentindo o suor escorrer pela minha lombar, mas
não respondi. Apenas concentrei-me em dar o próximo passo.
Cada uma das minhas manhãs e inícios das tardes, desde o
acidente, foram transformadas em maratonas de fisioterapia. O
espaço que uma vez dediquei ao trabalho e à ambição, agora estava
completamente voltado para minha recuperação.
Transformar minha cobertura em um centro de reabilitação foi
uma decisão tomada com um único foco em mente: me colocar em
forma o mais rápido possível.
Cada espaço que antes servia ao lazer e ao descanso agora
estava meticulosamente organizado para facilitar minha fisioterapia
diária. A sala de estar, com suas vistas panorâmicas da cidade, havia
sido esvaziada de móveis desnecessários, substituídos por
equipamentos de fisioterapia: uma esteira adaptada, barras paralelas
para exercícios de marcha, e uma área de alongamento com
tatames no chão.
A mesa de centro, antes adornada com livros de arte e objetos de
decoração, dava lugar a halteres de diferentes pesos, faixas de
resistência e outros aparelhos para fortalecimento muscular. O
elegante bar, que costumava ser o ponto central para

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entretenimento, agora abrigava garrafas de água, toalhas e um
cronograma de exercícios meticulosamente planejado.
Lara, minha fisioterapeuta, havia sido implacável na
transformação do espaço. "Se quer se recuperar rápido, Henrique,
precisamos tornar este lugar em uma máquina de reabilitação," ela
havia dito no primeiro dia, e assim o fez.
Mesmo o terraço, onde costumava passar as noites contemplando
a cidade abaixo, foi adaptado. Equipamento de fisioterapia ao ar
livre havia sido instalado, permitindo-me exercitar sob o sol ou as
estrelas, dependendo do horário. Lara insistia que a mudança de
ambiente era crucial para a saúde mental, tão importante quanto a
recuperação física.
Cada cantinho da cobertura refletia agora essa nova fase da
minha vida, um equilíbrio entre desafio e cura.
Não havia espaço para ressentimento ou lamentação; apenas
para ação. Era claro para mim que a recuperação física era apenas
parte da jornada. A verdadeira meta era recuperar o tempo perdido
com Maísa, conquistar o perdão dela e assumir meu lugar ao seu
lado e do nosso filho.
Cada exercício, cada repetição, cada momento de dor era
enfrentado com a imagem deles em mente, impulsionando-me além
dos limites que eu pensava ter.
Sete horas do meu dia eram dedicadas a exercícios meticulosos e
repetitivos, cada movimento uma batalha contra as limitações do
meu próprio corpo.
A rotina era exaustiva, tanto mental quanto fisicamente, mas eu
me agarrava a ela com uma determinação feroz. Eu precisava me
recuperar, não apenas por mim, mas por Maísa, pelo nosso filho.
A culpa que carregava por tê-la acusado injustamente pesava
sobre mim a cada segundo, um lembrete constante do que estava
em jogo. E por maior que fosse o meu esforço, por maiores que
fossem os meus avanços depois de quatro semanas, eles ainda não
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pareciam suficientes. Ainda estavam lentos demais. Havia um


abismo entre onde eu estava e onde precisava estar.
Cada dia de recuperação me parecia um dia perdido, um dia a
mais longe de Maísa e do nosso filho. A necessidade de pedir
perdão, de explicar, de tentar consertar os erros que cometi,
tornava-se mais urgente a cada momento que passava.
Quando acordei no hospital pela segunda vez, eu tinha certeza de
que tinha sonhado com a notícia do médico, ou melhor, tido um
pesadelo com o homem de meia idade me dizendo que minha
vasectomia havia sido naturalmente revertida.
Em minha cabeça dolorida, aquela era a única explicação possível
para as palavras ainda pulsando em minhas têmporas mesmo
enquanto eu me arrastava para fora da inconsciência. Mas minhas
certezas estavam completamente erradas, de novo.
As notícias eram reais. Assim como os meus erros e tudo o que
perdi em consequência deles, toda a dor que causei e todo o tempo
que eu jamais recuperaria.
Fechei os olhos por um instante, respirando fundo, tentando
encontrar um ponto de equilíbrio não apenas físico, mas emocional.
A imagem de Maísa, a memória de seu rosto, de seu sorriso, era
tanto um bálsamo quanto um tormento.
Eu precisava vê-la, precisava que ela soubesse a verdade, que
entendesse o quanto eu estava disposto a lutar, não apenas pela
minha recuperação, mas pela nossa família. Eu precisava que ainda
houvesse uma família para que eu pudesse lutar.
Minha busca por informações sobre seu paradeiro na Borges &
Associados, no entanto, resultou em um beco sem saída.
Seu apartamento, que uma vez compartilhamos momentos
íntimos e felizes, agora estava desocupado, as lembranças que lá
vivemos pareciam fantasmas em um espaço abandonado.
Ela havia cortado todos os laços, desaparecido não apenas
fisicamente, mas também da vida daqueles que um dia foram nossos

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amigos e colegas.
A suspeita de que ela havia retornado para sua cidade natal
pesava em minha mente como uma certeza silenciosa, mas mesmo
essa pequena pista parecia inalcançável enquanto eu estivesse preso
ao meu próprio processo de recuperação.
A ironia de minha situação era cruel - meu corpo quebrado era
agora a única coisa que me impedia de ir ao seu encontro, de tentar
consertar as coisas, de explicar e, talvez, encontrar algum caminho
para o perdão.
— Concentre-se. Eu sei que você é capaz de fazer melhor do que
isso — Lara insistiu. A abordagem era direta, quase militar e foi por
isso que a contratei. Lara era a melhor fisioterapeuta esportiva do
país, acostumada a recuperar atletas de alta performance em tempo
recorde. — Você quer melhorar ou quer apenas se lamentar? Porque
se for para lamentar, estou fora. — me desafiou, sabendo
exatamente como atiçar meu orgulho e minha determinação. E
funcionava.
A cada provocação, eu dobrava meus esforços, movido não
apenas pelo desejo de recuperação, mas pela necessidade de provar
a ela, e a mim mesmo, que eu não era de desistir.
Em momentos de falha ou quando a dor se tornava quase
insuportável, ela estava lá, não com palavras de consolo, mas com
lembretes duros da realidade. "A dor é temporária, Henrique.
Desistir é que dura para sempre," ela me lembrava, suas palavras
ecoando em minha mente nos momentos de dúvida.
Apesar de sua dureza, havia um respeito mútuo entre nós. Lara
entendia minhas limitações, mas recusava-se a me deixar usá-las
como desculpa. "Eu sei que dói. Mas também sei que você é mais
forte do que isso," ela dizia, olhando-me nos olhos, sua sinceridade
penetrante quebrando qualquer barreira de autocomiseração que eu
tentasse erguer.
Nossas sessões, embora marcadas por essa dinâmica de desafio e
superação, eram pontuadas por momentos de camaradagem. Às
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vezes, no fim de um dia particularmente exaustivo,


compartilhávamos risadas sobre algum exercício que tinha dado
errado, ou sobre a minha incapacidade de seguir uma de suas
instruções simples. "Você é o paciente mais teimoso que já tive," ela
diria, e eu não podia deixar de concordar.
Com Lara, cada dia de fisioterapia era uma batalha, mas uma
batalha que eu estava disposto a enfrentar e vencer. Ela me
empurrava para além dos meus limites, me ensinava a encontrar
força na dor e a ver cada pequeno progresso como uma vitória.
Sob sua orientação rigorosa, eu estava não apenas me
recuperando fisicamente, mas me fortalecendo de maneiras que
nunca imaginei possíveis.
E, apesar de sua postura severa, eu sabia que Lara estava
genuinamente comprometida com minha recuperação. Sua
determinação era o espelho da minha própria, e juntos, estávamos
trilhando o caminho árduo, mas gratificante.
Quando finalmente terminei a sessão do dia, exausto e coberto
de suor, o silêncio da cobertura me envolveu. Era um silêncio que,
antes do acidente, já teria me enervado, mas agora era muito mais
do que apenas um lembrete da minha solidão, era um lembrete da
minha que minha própria estupidez.
Por que não dei à Maísa o benefício da dúvida? Por que não a
escutei? Eu tinha tantas certezas...
A caminho do banho, passei pelo quarto que comecei a pensar
como sendo do bebê. A porta estava entreaberta, e por um
momento, permiti-me olhar para dentro.
Minha imaginação foi rápida em redecorar o espaço adulto com
cores alegres e infantis, um berço, montado, mas vazio, e
brinquedos espalhados pelo chão.
— Eu vou consertar isso — prometi, mais para o silêncio do que
para mim mesmo. — Por vocês dois.

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E com essa promessa ecoando em meu coração, preparei-me
para enfrentar mais um dia, armado com a esperança de que, de
alguma forma, eu encontraria o caminho de volta para casa, para
Maísa e nosso filho.
Porque ainda que a distância entre mim e Maísa, tanto física
quanto emocional, parecesse insuperável, era uma distância que eu
estava determinado a atravessar, custasse o que custasse. Porque no
fundo, eu sabia que sem ela, sem nosso filho, minha recuperação
completa - do corpo e da alma - seria impossível.
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Queridos bebês,
Eu nunca imaginei que minha vida tomaria esse rumo, que eu
estaria aqui, escrevendo para vocês, ainda sem conhecê-los, mas já
os amando mais do que achei possível amar alguém. Cada
movimento de vocês dentro de mim é um lembrete constante da
força e da esperança que vocês já trouxeram para a minha vida.
É estranho pensar que, apesar de ainda não terem chegado,
vocês já mudaram meu mundo completamente. Nos últimos meses,
enfrentei desafios e dores que me fizeram questionar tudo, mas em
meio a essa tempestade, vocês foram o farol que me guiou de volta
para casa, para a cidade onde cresci, onde agora reconstruo minha
vida passo a passo, dia após dia, com vocês em meu coração.
Minhas mãos tremem ligeiramente enquanto escrevo, não de frio,
mas da intensidade das emoções que sinto. É uma mistura de
alegria, ansiedade e, sim, um pouco de medo. Medo do
desconhecido, de não estar à altura do que vocês merecem. Mas,
acima de tudo, há amor, um amor tão grande e tão profundo que às
vezes me sinto submersa nele.
Eu prometo a vocês, meus queridos bebês, que farei tudo ao meu
alcance para lhes dar o melhor de mim. Para ser a mãe que vocês
precisam, que vocês merecem. Estamos juntos nessa jornada, e não
importa o que o futuro nos reserve, eu estarei aqui para vocês,
sempre.
Com todo o amor que meu coração pode conter,

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Sua mãe, Maísa.
Lágrimas borrifavam o papel, não de tristeza, mas de uma
emoção crua e pura quando terminei de ler as palavras que escrevi.
Limpei-as rapidamente, não querendo manchar o registro.
Uma sensação de alívio e realização me inundou. As palavras,
que fluíram de mim como uma correnteza, haviam criado uma ponte
invisível entre o presente e o futuro, entre minha alma e a dos meus
bebês.
A escrivaninha, já vazia, do meu quarto na casa dos meus pais, é
ocupada apenas pela carta e pela caneta que usei, a luz da manhã
se infiltrando suavemente através das cortinas, criando uma aura de
tranquilidade neste momento tão íntimo entre nós quatro.
A decisão de escrever essa carta havia me atormentado por dias.
O curso para gestantes sugerira a tarefa como uma forma de nos
conectarmos com nossos futuros filhos, mas enfrentei um turbilhão
de dúvidas e hesitações.
Como poderia condensar em palavras todo o amor, esperança e
temor que eu sentia? Como poderia explicar a complexidade de
sentimentos que me acompanhavam dia após dia? Meus medos?
Tudo o que eu queria dizer? Tudo o que eu não sabia como contar?
No entanto, hoje, algo mudou. Talvez tenha sido a perspectiva da
mudança iminente, a realidade de deixar para trás a casa dos meus
pais — meu refúgio nos últimos meses — para começar uma nova
vida na nossa própria casa.
Talvez tenha sido a necessidade de não carregar essa pendência
conosco, de iniciar essa nova etapa sem o peso das palavras não
ditas.
Sentada à escrivaninha, as palavras começaram a fluir com uma
facilidade surpreendente.
Era como se todas as emoções represadas encontrassem
finalmente um caminho para se expressar, como se meu coração
soubesse exatamente o que dizer, mesmo quando minha mente
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hesitava. As frases se entrelaçavam, formando um tecido de amor,


sonhos e promessas para o futuro.
Terminar a carta foi um ato de libertação. Cada palavra escrita me
aproximava mais do bebê que crescia dentro de mim, cada frase era
um fio que nos tecia mais fortemente juntos.
Dobro a carta, guardo-a no envelope e a selo com um beijo.
Guardo-a na bolsa pendurada no encosto da cadeira, e minha mãe
escolhe esse momento para aparecer na porta.
— Toc toc — ela brinca, batendo na madeira. — Posso entrar?
— Claro, mãe.
Marta entrou, um sorriso doce nos lábios, mas seus olhos
refletiam uma mistura de emoções que eu sabia espelhar as minhas
próprias.
Ela se sentou na cama, e eu me mudei da escrivaninha para me
juntar a ela, encontrando refúgio ao abaixar a cabeça em seu
ombro. O gesto era tão familiar, tão reconfortante, que por um
momento me permiti ser apenas a filha, buscando colo da mãe.
— Está tudo bem, querida? — perguntou, sua mão acariciando
meus cabelos com uma gentileza que sempre me fazia sentir segura,
amada.
Eu suspirei, permitindo que a proximidade e o carinho
temporariamente aliviassem o peso das preocupações que vinha
carregando.
— Estou bem, mãe... Estou feliz.
Ela riu, como se nas palavras ditas, ouvisse as não ditas também.
—Eu tenho certeza de que sim, meu amor. Estamos todos muito
felizes por você também — garantiu, alisando minha barriga com a
mão livre. — por vocês. — Mas mudanças podem ser assustadoras,
e não há nada de errado em se sentir assustada com isso — A
firmeza em sua voz era um lembrete da força que sempre emanou

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dela, uma força que eu esperava um dia poder passar para os meus
próprios filhos.
— Em algum momento... A senhora teve medo de não ser uma
boa mãe?
Sua resposta, primeiro, veio na forma de uma gargalhada.
— Mas é claro que já!
— Eu sei que minhas amigas, do curso e do grupo de apoio,
também sentem esse medo, mas é diferente para você. Você é a
melhor mãe do mundo.
Beijei seu ombro e ela riu outra vez.
— Querida, é normal ter medo. Eu também tive quando estava
esperando por você. Mas olhe para você agora, tão forte e corajosa.
A maternidade é uma jornada que te transforma. Você vai aprender,
vai crescer e, acima de tudo, vai amar de uma maneira que nunca
imaginou possível — garantiu, as carícias em meus cabelos subindo
e descendo num ritmo delicioso.
— Mas e se eu cometer erros?
— Você vai cometer. Todos cometemos. O importante é aprender
com eles e seguir em frente. O amor que você tem pelo seu bebê já
te faz uma mãe incrível.
Suspirei longamente, absorvendo suas palavras.
— Como você fez isso? Como você lidou com o medo e a
incerteza?
— Com muito apoio. Seu pai, sua avó, amigos... E agora, você
tem a nós. Além disso, confiei em meus instintos. Você também tem
isso, Maísa, esse instinto materno. Confie nele.
— E se eu não conseguir dar aos meus filhos tudo o que eles
precisam? Não só materialmente, mas emocionalmente também?
— Maísa, amor, a perfeição é um mito, especialmente na
maternidade. O que seus filhos mais vão precisar é do seu amor, e
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isso, eu sei, você tem de sobra. Quanto ao resto, você aprenderá


pelo caminho. Nós todos aprendemos.
— Eu me sinto tão perdida às vezes. Como se não soubesse qual
é o próximo passo. São três, de uma vez.
Ela riu outra vez.
— E está tudo bem se sentir assim. Eu também me senti perdida
muitas vezes, criando vocês. Mas cada erro, cada dúvida, me
ensinou algo valioso. E sempre haverá novos desafios, querida. O
segredo é enfrentá-los com coragem e amor.
— E sobre criar meus filhos sem um pai? Isso me assusta tanto.
— É um desafio, sim, mas não um impossível. Você tem uma
força interior incrível, Maísa, e uma rede de apoio que está aqui para
ajudar em cada etapa.
—Às vezes, eu me pergunto se estou sendo egoísta, trazendo
crianças para um mundo tão complicado.
— Toda mãe tem esse medo em algum momento, mas lembre-se,
você está trazendo luz para o mundo também. Seus filhos vão
aprender com você o que é bondade, amor e resiliência. E é isso que
vai fazer a diferença no mundo deles.
— E se eu falhar?
— Falhar faz parte do crescimento. Você vai ensinar seus filhos
que eles são humanos, que é normal errar e aprender com esses
erros. O mais importante é que eles saibam que, não importa o que
aconteça, eles podem sempre contar com você. E isso, minha filha, é
o oposto de falhar.
— Eu só quero ser a melhor mãe que eu posso ser para eles.
— E você será, Maísa. Com cada dúvida, com cada medo, você
está se preparando para ser exatamente isso.
— Eu só queria que ele estivesse aqui para compartilhar isso
comigo — confessei baixinho.

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— Henrique? — Ela tocou no assunto delicadamente, como quem
pisa em terreno desconhecido.
— Nunca mais falei sobre ele, né? — Minha voz saiu num
sussurro. — Depois de tudo o que aconteceu... Eu ainda me pego
pensando nele, mãe. Mesmo depois da rejeição, parte de mim
ainda...
— Dói, não é? — Ela me interrompeu, suave como um bálsamo.
— Mas você está fazendo a coisa certa, Maísa. Reconstruir sua vida,
dar a esses bebês um lar cheio de amor... É tudo o que importa
agora.
— Mas e se ele perceber o erro que cometeu? E se...
— Se ele perceber, você vai decidir o que é melhor para você e
para os bebês. — Marta me cortou, firme, mas carinhosa. — Você é
mais forte do que pensa, minha filha. E não está sozinha nessa.
— Mesmo depois de todo esse tempo, ainda não consigo
entender. Como ele poderia duvidar de mim a ponto de me deixar
quando mais precisava dele? Como posso confiar em alguém
novamente depois disso? — disse, pela primeira vez, em voz alta as
palavras que têm feito morada em meu coração há algum tempo.
— O que Henrique fez foi resultado de suas próprias inseguranças
e falhas. Não reflete quem você é, Maísa. O amor verdadeiro é
baseado em confiança, compreensão e, acima de tudo, respeito
mútuo. E, às vezes, as pessoas falham em nos dar isso.
— Eu só queria que as coisas fossem diferentes. Que ele
estivesse aqui para ver o quanto nossos bebês já são amados. Para
saber que são três. Ele enlouqueceria, mãe.
— E eles são — minha mãe concorda. —, profundamente amados
por todos nós. Quanto ao Henrique, talvez, com o tempo, ele
perceba o erro que cometeu. Mas sua felicidade e as dos seus bebês
não devem depender disso. Você é forte, Maísa, mais do que
imagina.
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— Estou dando o meu melhor, mas estou apavorada por precisar


fazer isso sozinha.
— Você nunca estará sozinha. Você tem uma família que a ama
incondicionalmente. E ser mãe... bem, isso te dará forças que você
nem sabia que tinha. E quanto ao futuro, quem sabe? As pessoas
mudam, as situações evoluem.
— Eu só espero conseguir perdoá-lo um dia, não por ele, mas por
mim. Para que eu possa seguir em frente, de verdade. E pelos
nossos filhos. Eu gostaria que eles se conhecessem. Que tivessem
contato.
— E você vai, a seu tempo. Perdoar não significa esquecer,
significa escolher liberar a dor para dar espaço ao amor e à paz em
seu coração. E, seja lá o que o futuro reservar, estaremos aqui com
você, a cada passo do caminho. Vamos rir, vamos chorar e vamos
celebrar cada pequena conquista. Isso é o que faz uma família.
Nossa conversa fluiu então, profunda e significativa, de mãe para
filha. Falamos sobre o passado e o futuro. Ela compartilhou comigo
as próprias experiências, os desafios e as alegrias da maternidade,
conselhos que só uma mãe poderia dar. Era uma troca de sabedoria
e amor, de apoio incondicional.
Quando finalmente me levantei, sentindo-me fortalecida por
nossa conversa, sabia que essa mudança, embora assustadora, era o
início de uma bela jornada. A carta para o meu bebê, a mudança
para a nossa nova casa, a conversa com minha mãe... tudo fazia
parte da tapeçaria da minha vida, que eu estava tecendo dia após
dia.
Ao me despedir de minha mãe, uma nova onda de emoção me
envolveu. Ela me abraçou apertado.
— Você vai ser uma mãe incrível — sussurrou em meu ouvido, de
novo e de novo, até que uma lágrima solitária deslizasse pelo meu
rosto. Suas palavras se acenderam dentro de mim como um farol.

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Ao sair do quarto, levando comigo as malas e as promessas de
um futuro brilhante, lancei um último olhar para trás, para ela, que
me observava com um sorriso cheio de amor e orgulho.
Esse momento, essa conversa, seria uma âncora que eu levaria
comigo, um lembrete de que, não importa o que o futuro reservasse,
eu nunca estaria verdadeiramente sozinha.
Caminhei pelo corredor da casa que me viu crescer, sentindo o
piso de madeira sob meus pés contar histórias de anos passados.
Cada passo marcado por uma mistura de nostalgia e antecipação,
como se eu estivesse caminhando entre dois mundos — um deixado
para trás e outro ainda por ser descoberto.
Ao passar pela sala, lancei um último olhar para os retratos que
decoravam as paredes, memórias congeladas de uma infância feliz e
sem preocupações.
A luz da manhã banhava o ambiente, enchendo-o de uma
claridade suave que parecia abençoar minha decisão. Respirei fundo,
absorvendo a tranquilidade do momento, antes me dirigir à porta.
Ao cruzá-la, não olhei para trás. Não havia necessidade. Tudo o
que importava estava comigo. Acariciei minha barriga, um gesto
involuntário, mas profundamente significativo.
Era hora de criar novas memórias, construir um novo lar onde
meus filhos poderiam sentir o mesmo amor e segurança que eu
senti.
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O relógio marcava alguns minutos para a hora marcada, mas o


peso daquela sessão já se fazia sentir em meus ombros. Sentado no
consultório, observava a chuva lá fora, cada gota batendo na janela
parecendo ecoar as batidas do meu coração.
A terapia tinha sido uma bússola nessa jornada tumultuada,
guiando-me através das tempestades internas que eu lutava para
navegar. A porta se abriu suavemente, e o terapeuta entrou, sua
presença preenchendo o espaço com uma calma imediata.
Ele se sentou à minha frente, cruzando as mãos e me oferecendo
um olhar que convidava à introspecção.
— Está pronto para começar, Henrique? — Sua voz, firme e
tranquilizadora, cortou o silêncio, puxando-me de volta do transe em
que me encontrava.
Eu me inclinei ligeiramente para frente, um gesto inconsciente de
engajamento, e respirei fundo, tentando reunir meus pensamentos
dispersos
— Sim, acho que sim — minha voz ecoou no espaço, mais firme
do que eu esperava, apesar da incerteza que se agitava no meu
peito.
— Hoje é uma grande sessão para você, não é? — Ele observou,
seu tom gentil, mas direto, cortando direto ao que importava.
— É. — Engoli em seco, sentindo a ansiedade crescer. — Estou...
planejando ir atrás de Maísa. E do meu filho. — As palavras saíram

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entrecortadas, carregadas de uma mistura de esperança e medo.
— Quando chegou até mim, seu plano era procurá-la depois de
se recuperar. Sua recuperação chegou ao fim?
— Fisicamente, estou completamente recuperado — comecei,
fazendo uma pausa para avaliar as palavras seguintes. — A
fisioterapia... — Levantei a mão, fazendo um gesto vago no ar, como
se pudesse desenhar a jornada da recuperação. — Foi um desafio,
mas o venci. — Meu olhar desviou para a janela, acompanhando
uma gota de chuva que escorregava pelo vidro, um paralelo perfeito
para a minha luta interna. — Emocionalmente, é mais complicado. —
Voltei a encarar o terapeuta, buscando em seus olhos um porto
seguro para as confissões que se seguiriam. — Há dias bons e dias
ruins. A culpa e a saudade... — Minha voz falhou, e engoli em seco,
lutando contra a emoção que ameaçava me sufocar.
Ele assentiu, encorajando-me a continuar sem pressa. Sua caneta
estava parada, descansando ao lado de seu bloco de notas, toda sua
atenção voltada para mim.
— E como você se sente em relação a isso? — Seu olhar era
inquisitivo, encorajando-me a explorar as emoções que eu tentava
manter à distância.
— Confuso. — Admiti, sentindo o peso da confissão. — Ansioso. E
se ela não quiser me ver? E se... e se meu filho já tiver crescido
odiando a ideia de mim, mesmo antes de nascer?
— São medos válidos, Henrique. Mas o que isso te diz sobre o
que você realmente deseja desse encontro?
Refleti sobre a pergunta, deixando-a me penetrar. Era mais do
que apenas o desejo de redenção; era uma necessidade visceral de
consertar o que havia sido quebrado, de oferecer ao meu filho a
presença que eu temia nunca poder dar.
— Eu só quero a chance de fazer a coisa certa. De ser parte da
vida dele, de mostrar a Maísa que... que eu mudei. Que eu posso ser
o homem que ela e meu filho precisam.
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— E você acredita que pode ser esse homem, Henrique?


Houve uma pausa, um momento de introspecção profunda, antes
que eu pudesse responder. Meu olhar desviou para a janela,
acompanhando uma gota de chuva que escorregava pelo vidro, um
paralelo perfeito para a minha luta interna.
— Sim. — Minha resposta foi firme, alimentada por meses de
reflexão e crescimento. — Mas sei que vai levar tempo. E que
começa com o perdão. Dela e de mim mesmo.
O terapeuta assentiu, satisfeito com a minha resposta.
— E esse entendimento, Henrique, é um grande passo. — Sua
voz era firme. — Você está comprometido em mudar e crescer. Isso
é evidente. E sobre a culpa, Henrique? Você mencionou querer o
perdão de Maísa e do seu filho. Como você está trabalhando para
perdoar a si mesmo?
Sentei-me mais ereto na cadeira, cruzando as mãos de maneira
reflexiva enquanto o terapeuta aguardava minha resposta.
O consultório, com sua decoração suave e iluminação indireta,
sempre me trouxe uma sensação de calma, mas naquele momento,
a tensão era palpável em meus ombros.
— Aprender a me perdoar... — Continuei, as palavras saindo com
dificuldade. — É o mais difícil. Mas estou tentando. Sei que sem isso,
não posso realmente avançar.
O terapeuta inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos
joelhos, diminuindo a distância entre nós. Sua postura era de total
engajamento, uma ponte erguida para facilitar a troca de
pensamentos e sentimentos.
— Você também está certo sobre isso. Se perdoar é essencial
para curar não apenas suas relações com os outros, mas também
consigo mesmo.
— É uma jornada, não é? — Minha voz trazia um misto de
resignação e determinação, enquanto eu encarava o terapeuta.

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Ele assentiu, um gesto lento e deliberado, como se quisesse
assegurar que cada palavra sua tivesse o peso necessário para ser
verdadeiramente compreendida.
— Exatamente, Henrique. E é importante lembrar que cada passo
nessa jornada conta. Não importa quão pequeno ele pareça, é um
movimento em direção à cura, à compreensão de si mesmo e ao
perdão que você busca.
— E como posso começar a me perdoar? — A pergunta escapou
antes que eu pudesse contê-la, revelando a profundidade da minha
busca por respostas.
O terapeuta se reclinou, cruzando as mãos enquanto me
considerava com um olhar pensativo.
— Comece reconhecendo os erros que cometeu, sem julgamento.
Aceite-os como parte do seu crescimento. Depois, reflita sobre as
lições que essas experiências ensinaram. O perdão de si mesmo vem
da compreensão de que todos nós estamos em constante evolução,
cometendo erros e aprendendo com eles.
A sala, imersa numa quietude reflexiva, parecia suspender o
tempo enquanto eu digeria as palavras do terapeuta. Uma luz suave
banhava o espaço, criando sombras dançantes que refletiam a
complexidade dos sentimentos que agora me invadiam.
Eu me senti, por um momento, como se estivesse à beira de um
precipício, contemplando o abismo da minha própria alma.
A sugestão de começar o processo de perdão por meio do
reconhecimento e aceitação dos erros cometidos ecoava em minha
mente, uma melodia suave em meio à cacofonia de autocrítica e
remorso que havia sido minha companheira constante.
E mesmo que eu aquela fosse a minha oitava sessão de terapia,
foi a primeira vez que me peguei acreditando que talvez, só talvez,
houvesse esperança para mim.
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A mala aberta, tinha cada peça de roupa meticulosamente


arrumada. Eu me movimentava, de um lado para o outro do quarto,
conferindo se tinha reunido tudo de que precisava.
Thomaz, apoiado contra a porta, observava cada um dos meus
movimentos com um misto de preocupação e apoio.
— Por que você não vai de helicóptero? Seria muito mais rápido.
Eu pausei, uma camisa na mão, e olhei para ele.
— Prefiro ter o carro à disposição lá. Além disso, a viagem de
carro me dá tempo para pensar, para me preparar para o que está
por vir.
— Faz sentido. — Thomaz se desencostou da porta e deu alguns
passos em minha direção, um sorriso ligeiro brincando em seus
lábios. — Só não vá se perder pelo caminho e acabar em outro
estado, hein? — brincou.
Ri também.
— Com o GPS e a tua habilidade incrível de me ligar no pior
momento possível, acho difícil me perder.
— E se ela não quiser te ver, Henrique? — Thomaz perguntou,
sua voz deixando a leveza de lado e agora soando carregada de
preocupação.
Eu parei por um momento, considerando a pergunta. A
possibilidade de Maísa me rejeitar era uma realidade com a qual eu
já tinha me confrontado inúmeras vezes em meus pensamentos
mais sombrios.

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— Vou tentar de novo — respondi, a determinação tingindo
minha voz. — Quantas vezes forem necessárias. Desistir não é uma
opção. — Fechei a mala com um movimento firme e me virei para
encará-lo diretamente. — É a única maneira de eu poder viver
comigo mesmo. Maísa e nosso filho merecem essa chance, e eu
preciso fazer tudo ao meu alcance para ser parte da vida deles.
Thomaz me encarou, analisando a resolução estampada em meu
rosto. Ele sabia tão bem quanto eu que o caminho à frente estava
repleto de incertezas, mas também compreendia a profundidade do
meu arrependimento e o desejo ardente de corrigir meus erros.
— Só espero que essa viagem te dê as respostas que você
procura. Promete que vai me manter atualizado, tá? Quero conhecer
meu afilhado o mais rápido possível — brincou, voltando ao tom
leve.
— Prometo, Thomaz.
Ele se aproximou e me abraçou.
Encarei os últimos momentos naquela cobertura, consciente de
que a próxima vez que cruzasse aquele umbral, minha vida poderia
estar irrevogavelmente mudada.
Com um último olhar para o horizonte da cidade que se estendia
além das janelas, respirei fundo, reunindo coragem para enfrentar o
desconhecido. Estava na hora de partir, de encarar o passado e, com
sorte, construir um novo futuro para mim e para minha família.
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Os corredores estavam vazios, graças a Deus.


Com a barriga enorme, eu praticamente me arrastava por entre
eles, sem saber se era eu quem empurrava o carrinho, ou ele que
me empurrava.
Aos seis meses de gestação, cada passo parecia uma negociação
entre minha vontade de seguir em frente e a gravidade insistindo
em me puxar para trás.
— Este carrinho está mais para um treinador pessoal do que para
uma ajuda, — Geórgia disse rindo, acompanhando minha
determinação teimosa. — Talvez devêssemos colocar um nome nele,
considerando o quanto ele está “te ajudando”.
— Se ao menos ele pudesse cozinhar também, — respondi,
olhando para o carrinho já cheio, antes de encarar minha lista, ainda
com alguns itens a serem riscados. — Você acha que eu estou
exagerando na quantidade de fraldas? — perguntei, olhando para o
monte já acumulado no meu carrinho.
Geórgia, que se aventurava pelo corredor de produtos de limpeza,
voltou com um sorriso.
— Definitivamente não. Com trigêmeos, é melhor pecar pelo
excesso — brincou, e eu ri mais.
O mercado, em sua tranquilidade habitual de uma tarde de terça-
feira, tinha sido escolhido com cuidado. Ele era o melhor e o maior

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de Dois Corações, um hipermercado, na verdade, que vendia desde
alimentos a peças de mobiliário.
— Olha isso, Maísa! — Geórgia chamou minha atenção,
segurando um pacote de macacões coloridos que encontrou perdido
entre as prateleiras de massas. — Acho que eles se perderam do
caminho para a seção de bebês.
Imaginar meus bebês naqueles macacões me encheu de uma
alegria simples
— Leva — eu disse, e ela colocou o pacote no carrinho com um
sorriso cúmplice.
Continuamos nosso caminho, agora na seção de frutas e
legumes. Geórgia insistiu em escolher as maçãs, alegando que tinha
um "olho clínico para frutas no ponto", mas eu sabia que o sorriso
bobo em seu rosto enquanto selecionava cada maçã não tinha a ver
elas.
— E Então, como foi? — eu perguntei, incapaz de conter minha
curiosidade sobre o cliente da padaria que, depois de meses de
visitas diárias, finalmente havia convidado minha irmã para sair.
Geórgia soltou uma risada, seu rosto se iluminando ainda mais.
— Eu estava me perguntando por quanto tempo você ainda ia
aguentar se segurar...
— Você devia se envergonhar de não ter sido a primeira coisa
que me disse quando entrei no seu carro. Quem precisa de boa
tarde quando se tem fofoca?
Geórgia gargalhou.
— Foi... surpreendentemente agradável — admitiu, por fim. —
Quem diria que o Sr. Café-com-Rosquinha teria tantas histórias
interessantes? — ela compartilhou, claramente encantada, apesar de
estar se fazendo de difícil.
— Surpreendentemente agradável? — Bufei, virando o carrinho e
entrando no corredor de leite. — Você pode fazer melhor do que
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isso, acredito no seu potencial.


Minha irmã soltou outra gargalhada.
— Ele é engraçado, e gentil, e inteligente, e ama os beatles! —
Geórgia ergueu o dedo no ar ao soltar a última informação, como se
tivesse lembrado dela de repente. — E toca violão. Ele tem uma
irmã mais velha e duas sobrinhas, é empresário. Engenheiro. —
Minha irmã mordeu o lábio, suas bochechas corando levemente. —
Ele me convidou para um jantar. Estou pensando em aceitar, —
contou, um toque de hesitação em sua voz que rapidamente foi
substituído por uma determinação divertida. — Por que não? A vida
é curta demais para não explorar as possibilidades.
— Exatamente, — concordei, encorajando-a. — E quem sabe?
Talvez o Sr. Café-com-Rosquinha se transforme no Tio Café-com-
Rosquinha, — brinquei, fazendo uma referência aos meus futuros
bebês.
Geórgia riu, balançando a cabeça.
— Uma coisa de cada vez, irmã. Mas falando nisso, já pensou em
nomes para os pequenos?
Saímos da sessão de leite depois de eu pegar cinco caixas.
— Eu estava pensando em algo como... — comecei, a hesitação
clara em minha voz enquanto tentava afastar a pontada de tristeza
ao pensar em Henrique. — Bem, eu tinha em mente nomes como
Marci, Tânia e Joana para meninas, e Bento, Rael e Franco para os
meninos.
Geórgia parou abruptamente, seu olhar fixo em mim antes de
soltar uma gargalhada que ecoou pelo corredor vazio.
— Marci, Tânia e Joana para meninas, e Bento, Rael e Franco
para os meninos? Parece que você está escolhendo nomes para
personagens de uma novela antiga, não para seus filhos!
Eu não pude deixar de rir junto, apesar do momento de tristeza
que havia me atingido segundos antes.

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— Bem, eu queria algo único para eles... Mas agora que você
mencionou, realmente soa um pouco como elenco de novela das
seis.
— Único é bom, mas talvez a gente possa encontrar algo um
pouco menos... dramático? — sugeriu Geórgia, ainda rindo.
— Talvez você tenha razão. — concordei, sorrindo com a ideia de
revisitar a lista de nomes mais tarde.
— Vou na sessão de cereais — Geórgia me avisou. — Quer
alguma coisa de lá?
— Arroz e feijão — pedi. — Nos encontramos na padaria?
— Pode ser.
Entrei no corredor seguinte, me virando imediatamente para a
longa fileira de massas prontas para bolo, sem saber qual escolher.
Bolo havia se tornado um desejo constante. Eu queria comer o
tempo todo, todos os dias, então era melhor manter um estoque
prático abastecido, mas as opções eram tantas que eu me sentia
perdida: chocolate, baunilha, coco, cenoura...
As fotos nas embalagens encheram minha boca d’água e depois
de cinco minutos, eu tinha decidido que aquilo era um dos tipos
mais cruéis de tortura que existiam.
Ergui a mão para pegar uma de chocolate na prateleira mais alta,
eu podia praticamente sentir o cheiro da fatia na embalagem. Mas
no frenesi, esqueci-me de que minha coordenação já não era mais a
mesma com a barriga de seis meses de uma gestação de trigêmeos
ocupando tanto espaço.
Ao tentar pegar o pacote, acabei por derrubar outro no chão.
Merda! Olhei para baixo, encarando o pacote no chão, e me vi
fazendo cálculos mentais.
Como eu poderia me abaixar com esta barriga imensa? A simples
ideia parecia um desafio digno de uma olimpíada para gestantes.
Senti uma mistura de frustração e graça na situação.
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Quando foi que as compras do mês se tornaram tão complicadas,


meu Deus?! Eu poderia agachar, mas será que minhas calças
resistiriam?
— E agora? — murmurei para mim mesma, considerando minhas
opções.
Era quase como planejar uma operação complicada, ponderando
os riscos e as estratégias para uma tarefa que, até alguns meses
atrás, seria simples. Eu poderia só ficar aqui e esperar Geórgia me
encontrar.
Ou, melhor. Eu poderia ligar para ela e pedir que ela viesse
resgatar a pobre massa de bolo do chão.
Foi então que percebi a aproximação de alguém. A mão alcançou
o pacote e o estendeu para mim. Levantei a cabeça já sorrindo,
pronta para agradecer imensamente ao estranho por ter acabado
com a minha miséria. Exceto que não era um estranho.
Era Henrique.
A surpresa me atingiu como uma onda, deixando meus sentidos
momentaneamente desorientados. O sorriso se apagou dos meus
lábios e meus olhos se arregalaram.
Por um breve instante, o mundo ao meu redor desapareceu, e
tudo o que restou foi a figura parada diante de mim, a expressão no
seu rosto uma mistura de cautela e esperança.
Meu coração disparou, um tumulto de batidas que ecoavam alto
em meus ouvidos, cada uma delas carregada com o peso dos meses
de silêncio e distância que nos separavam.
Hesitei, minha mente em conflito. Parte de mim queria virar as
costas, fugir daquele encontro imprevisto que trazia à tona uma
avalanche de lembranças e sentimentos que eu havia lutado tanto
para organizar e compreender.
Mas outra parte, talvez mais corajosa ou simplesmente mais
curiosa, me manteve no lugar, os pés firmemente plantados no chão

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frio do supermercado.
— Oi, Maísa — ele disse e me senti patética quando sua voz
rouca fez meu coração vibrar de saudade. — Como você está?
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Eu não deveria estar aqui, não assim, não sem aviso. Mas ao vê-
la, todo o plano meticulosamente traçado evaporou como névoa ao
sol.
Maísa estava ali, a poucos passos de distância, concentrada em
um pacote caído no chão, e a visão dela acionou algo primordial em
mim, um impulso irrefreável que me arrastou em sua direção.
Ela estava linda, mais do que minha memória permitia recordar, e
a gravidez lhe emprestava um brilho que eu nunca havia visto antes.
A barriga proeminente, símbolo da vida que criamos juntos, era uma
visão que me deixava sem fôlego, inundando-me de uma mistura
avassaladora de admiração e remorso.
Os cabelos escuros balançaram quando ela se moveu, me
encarando. As sobrancelhas escuras franzidas e os olhos grandes
cheios de confusão e surpresa. Seus lábios cheios se apertaram e a
saudade que senti deles era quase o suficiente para me enlouquecer.
O ar frio do supermercado bateu contra minha pele, mas não
conseguiu esfriar o calor que corria por minhas veias ao vê-la.
Maísa. Ali.
A presença dela, tão perto e ao mesmo tempo tão distante,
enchia o espaço ao meu redor, tornando o ambiente do
supermercado quase irrelevante. O som ambiente, as conversas ao
redor, tudo parecia desvanecer, deixando apenas o eco do meu
coração batendo descompassado.

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Havia uma secura desconfortável na minha boca, e minhas mãos
tremiam levemente, um testemunho físico do tumulto emocional que
eu tentava desesperadamente controlar.
Maísa vestia uma jardineira, o corpo tão pequeno quanto eu me
lembrava e, ainda assim, parecendo maior, mais forte. Era um
paradoxo, como tudo nela sempre foi.
O choque e a surpresa em seu olhar eram palpáveis, e por um
breve momento, senti como se estivéssemos envoltos em uma
bolha, isolados do resto do mundo. O ruído de fundo do
supermercado desapareceu, substituído por uma quietude
carregada, enquanto esperava por sua reação.
— Henrique... o que... o que você está fazendo aqui? — Sua voz,
tingida de uma cautela compreensível, cortou o silêncio, trazendo
uma realidade fria com ela.
Eu engoli em seco, lutando para encontrar as palavras certas,
para explicar a tempestade de emoções que me trouxeram até aqui,
até ela.
Tomei uma respiração profunda, buscando a coragem para dizer o
que havia planejado, mesmo que nada tivesse saído como eu
esperava.
— Acabo de me mudar para a cidade.
As palavras caíram entre nós, pesadas e carregadas de
significado. Vi seu rosto se transformar, seus olhos se arregalando
levemente ao processar o que eu havia dito.
— Você o quê? — Sua voz era um sussurro, quase perdido no
ruído de fundo do supermercado.
— Eu sei que não tenho o direito de pedir nada, Maísa, — Minha
voz falhou, revelando mais vulnerabilidade do que eu pretendia e
muito menos do que ela merecia receber de mim. — e não quero te
atrapalhar, sei que não tenho esse direito também. Mas talvez, em
outro momento, quando for conveniente para você, nós possamos
tomar um suco juntos? Para conversarmos.
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Houve uma pausa, um momento suspenso no tempo durante o


qual tudo o que eu podia fazer era esperar.
Ela me olhou, seu rosto uma tela de emoções conflitantes. Eu
podia ver a hesitação, a surpresa, talvez até um vislumbre de
curiosidade em seus olhos.
Cada segundo de silêncio era um teste da minha resolução, uma
medida do quanto eu estava disposto a esperar, a dar-lhe o espaço
de que precisava.
Finalmente, Maísa acenou lentamente com a cabeça, uma
concordância tímida que me encheu de uma mistura de alívio e
ansiedade.
— Tudo bem, podemos fazer isso.
Sua voz era baixa, mas havia uma firmeza nela que me fez
acreditar que talvez, só talvez, houvesse uma chance para nós. Ou,
talvez, eu só quisesse muito acreditar nisso. Tanto que via sinais
onde eles não existiam.
— Seu número ainda é o mesmo? — perguntei e ela assentiu. —
Posso te mandar mensagem? Ligar para você?
— Pode.
— Obrigado.
Agradeci, e então o silêncio se estabeleceu entre nós de novo.
Outra pedra afundando, pesada e lenta, num lago. Era carregado,
denso com tudo que não havia sido dito, tudo o que ainda estava
por vir.
Meus olhos, quase contra a minha vontade, desceram até a
barriga de Maísa, onde nosso filho estava crescendo. O mundo ao
redor ficou borrado, diante da manifestação física do nosso amor e
da minha subsequente falha.
A barriga dela, redonda e perfeitamente formada, era o epicentro
de um turbilhão de emoções dentro de mim. Havia ali, naquela curva
avantajada sob sua roupa, uma promessa de vida, de futuros

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possíveis, de risadas e choros que ainda ecoariam pelos corredores
da nossa vida.
Meu coração se expandiu e se contraiu, uma dor aguda cortando
através do afeto e admiração. Era incrível pensar que ali, sob meu
olhar, uma nova vida estava se formando, uma vida que era parte de
mim, parte de Maísa.
Imagens começaram a se formar em minha mente, não apenas
da criança que ainda não conhecíamos, mas de todos os momentos
que perdera e perderia se não conseguisse consertar o que havia
quebrado entre nós.
Primeiros passos, primeiras palavras, o primeiro dia de escola –
cada pensamento era um golpe, uma lembrança do tempo que não
poderia ser recuperado e do futuro incerto que nos aguardava.
Lágrimas começaram a se acumular em meus olhos, uma
resposta física à tempestade emocional que me assolava. A culpa me
preencheu, uma entidade viva dentro de mim, sufocando-me com
seu peso.
Eu havia falhado com Maísa, com nosso filho, com a família que
poderíamos ter sido. E agora, diante da realidade inegável daquela
barriga, daquela vida crescendo, eu me sentia menor, diminuído pela
magnitude do meu erro.
— Obrigado, Maísa. De verdade. — repeti, mas dessa vez, minha
voz quebrou, um reflexo da fratura em meu coração.
Eu não podia ficar ali, não quando cada segundo aumentava a
dor, a realidade da situação pressionando contra mim de todos os
lados. Eu deveria ter mantido o plano.
Eu deveria ter mantido o plano.
Sem esperar por uma resposta, eu me virei, movendo-me quase
que instintivamente. Eu precisava sair dali, respirar, encontrar algum
modo de começar a reparar os danos que havia causado.
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Mas, mesmo enquanto eu me afastava, uma parte de mim


permanecia lá, ancorada àquela visão de Maísa, à promessa do
nosso filho, ao futuro que ainda poderíamos ter.
Era uma promessa silenciosa para mim mesmo, uma
determinação renovada de fazer o que fosse necessário pela nossa
família. Precisava ainda existir uma família pela qual eu pudesse
lutar.
Saí quase correndo, deixando para trás o supermercado, Maísa, e
o momento que mudaria tudo. Mas eu me recomporia. Eu estava
determinado, mais do que nunca, a consertar os erros do passado,
não importava o que custasse.

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Estava em casa, o silêncio me envolvendo como um cobertor
pesado, enquanto tentava organizar as compras que tinha trazido do
mercado. Cada movimento era mecânico, minhas mãos movendo-se
de forma automática, sem que eu realmente percebesse o que fazia.
Comecei retirando as verduras – alfaces crocantes, tomates
vermelhos e brilhantes, cenouras firmes – e as coloquei
cuidadosamente na gaveta inferior da geladeira, ajustando a
temperatura para mantê-las frescas pelo maior tempo possível.
Depois, peguei os pacotes de massa, os molhos de tomate e as
especiarias, alinhando-os meticulosamente na despensa. Cada frasco
de tempero foi colocado em ordem, do mais usado para o menos,
uma pequena tentativa de trazer ordem ao caos que se instalara
dentro de mim.
As latas de conserva foram empilhadas uma a uma, com um
cuidado quase obsessivo, formando uma pequena muralha de metal
e papelão.
Os produtos de limpeza encontraram seu lugar sob a pia,
organizados de maneira que os mais necessários estivessem à
frente, prontos para serem usados. Enquanto fazia isso, meus
pensamentos vagavam, perdidos entre o encontro com Henrique e
as incertezas que ele trouxera de volta à minha vida.
O arroz, o feijão, a farinha e o açúcar foram despejados em potes
herméticos, cada um etiquetado com letras cuidadosamente
desenhadas – um lembrete de que, em algum momento, eu tinha
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prazer nessas pequenas organizações, um prazer que agora parecia


tão distante.
Por último, mas não menos importante, os doces – biscoitos, a
bendita massa para bolo e algumas geleias e chocolates que comprei
por impulso, tentando me confortar – foram acomodados em um
canto da cozinha.
Cada ação era acompanhada por uma sombra, a lembrança do
encontro com Henrique que me seguia como um fantasma, tocando
cada pensamento com dúvidas e os “e se ’s?”.
Ele estava aqui, em Dois Corações, a cidade que escolhi para
reconstruir minha vida longe dele. E agora, ele havia se mudado
para cá. Por quê? O que isso significava?
Meu coração ainda batia acelerado, uma mistura confusa de
emoções tumultuando dentro de mim.
Quando nossos olhos se encontraram no corredor do mercado, vi
algo nele, uma espécie de arrependimento, talvez? Mas será que eu
poderia confiar nessa leitura? Será que não estava apenas
projetando o que eu gostaria de ver, alimentando esperanças tolas
que só iriam me machucar mais no final?
Não contei para Geórgia sobre o encontro. Não consegui. Quando
ela me encontrou, pálida e perdida entre as massas de bolo, eu mal
conseguia respirar, quanto mais explicar o turbilhão que Henrique
havia reacendido em mim.
“Tive um mal-estar,” menti, minha voz soando frágil aos meus
próprios ouvidos. Saímos do supermercado ignorando as partes das
listas de compras das quais ainda não havíamos dado conta.
Geórgia, sempre a protetora, queria ficar aqui comigo, mas eu
precisava de espaço, de tempo para processar tudo sozinha. Então
menti de novo quando ela estacionou seu carro na porta da minha
casa, dizendo que já me sentia melhor.
E, agora, ali estava eu, entre sacolas de compras, me sentindo
mais perdida do que nunca. Era um esforço impedir que cada parte

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de mim tremesse em uma resposta física ao choque e à incerteza
que o reaparecimento de Henrique provocara.
Meus dedos hesitaram sobre uma lata de tomate, o metal frio sob
o meu toque despertando uma enxurrada de lembranças.
Lembrei-me das mãos de Henrique, do calor que irradiavam
quando encontravam as minhas, uma sensação de segurança e
conforto que parecia emanar dele e me envolver por completo.
A textura lisa da lata sob meus dedos era um contraste gritante
com a memória da aspereza suave das mãos dele. Lembrava-me da
primeira vez que nossas mãos se tocaram, casualmente, no
escritório, quando ainda estávamos nos conhecendo.
Aquela eletricidade inicial, um calor que parecia fluir entre nós,
tão palpável que me fizera questionar se ele também o sentia.
Fechei os olhos por um momento, permitindo-me mergulhar naquela
lembrança.
Podia quase sentir o calor dele ao meu lado, um lembrete de dias
mais felizes, de risadas compartilhadas e de momentos íntimos que
acreditávamos ser o início de uma vida juntos.
Reabri os olhos, encarando a lata de tomate como se ela fosse a
culpada por essa viagem ao passado. Com um suspiro, forcei-me a
colocá-la na prateleira destinada aos itens para o molho que
planejava fazer. Cada movimento subsequente foi mais pesado,
como se, junto com as compras, eu também tentasse organizar e
arrumar os cacos do meu coração.
A saudade, uma companheira constante desde a nossa
separação, agora era acompanhada por um novo sentimento, uma
espécie de resolução amarga.
A presença de Henrique em Dois Corações, a cidade que eu
escolhera como refúgio, tornava impossível ignorar as perguntas que
giravam em minha mente. O que isso significava para nós? Havia um
"nós" a ser considerado ainda, ou era apenas um fantasma do
passado tentando se fazer presente?
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Respirei fundo, tentando focar no aqui e agora, mas era inútil.


Henrique havia invadido meu santuário de paz, e eu não sabia o que
fazer com os cacos do meu coração que ele deixara para trás, de
novo.
O que ele queria? Por que se mudara para cá, depois de tudo o
que aconteceu? E o mais importante, o que eu queria fazer a
respeito?
Parte de mim ansiava por vê-lo novamente, por ouvir o que ele
tinha a dizer, mas outra parte temia justamente isso. E se ele não
tivesse mudado? E se, no final, eu só acabasse quebrada
novamente?
O medo e a esperança dançavam juntos em meu peito, uma valsa
torta que não me deixava descansar.
A decisão de me abrir para ele novamente, de dar a ele a chance
de se explicar, parecia tão arriscada quanto um salto no escuro. Mas,
ao mesmo tempo, a ideia de não fazer nada, de deixar essa chance
passar, parecia ainda pior.
Era enlouquecedor que um encontro de não mais do que cinco
minutos houvesse resultado numa rede de questionamentos tão
densa e complexa quanto uma teia. Porque além de todos os meus
medos e sentimentos individuais, de mulher, havia nossos filhos, que
adicionavam uma camada ainda mais profunda de consideração e
complicação a qualquer decisão.
Era impossível não pensar no futuro dos nossos bebês, ainda
confortavelmente aninhados em meu ventre. A ideia deles crescendo
sem a presença do pai, sem conhecer aquele laço que poderia ser
tão enriquecedor, pesava sobre mim com uma gravidade que eu
lutava para ignorar.
Era uma possibilidade que me assombrava, mais do que eu
gostaria de admitir, não importava o quanto eu tentasse superá-la.
Meus bebês eram amados, muito amados. Mas sempre parecia que
lhes faltaria algo se não tivessem o pai presente, como eu tive.

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Mentia para mim mesma, repetidas vezes, dizendo que não
queria mais nada com Henrique, que podia seguir em frente sozinha,
ser forte pelos meus filhos.
Mas, no fundo, eu sabia que negar aos trigêmeos a chance de
crescer ao lado do pai era uma decisão que eu lamentaria
amargamente. Não era apenas sobre mim ou Henrique; era sobre
eles, sobre a família que, intencionalmente ou não, havíamos criado
juntos.
Eu podia imaginar os primeiros passos deles, as primeiras
palavras, os aniversários e todas as pequenas conquistas que fariam
parte da sua infância. E Henrique? Ele estaria lá para testemunhar
esses momentos, para compartilhar as alegrias e os desafios de criá-
los?
Ou ele seria uma figura ausente, conhecido apenas por histórias e
fotografias, uma sombra periférica na vida deles?
Esse dilema me consumia, uma luta interna entre o desejo de
proteger meu coração das possíveis dores de uma nova decepção e
o impulso quase maternal de garantir que meus filhos tivessem tudo
o que precisavam para prosperar, inclusive a presença do pai.
Era um equilíbrio delicado, tentar discernir o melhor caminho a
seguir, não apenas para mim, mas principalmente para eles.
No fim, a responsabilidade de tomar essa decisão parecia imensa,
quase esmagadora. Ainda assim, a consciência de que essa poderia
ser a chance dos meus bebês crescerem ao lado do pai era um
pensamento que não conseguia — e talvez não quisesse — afastar
completamente.
Era uma possibilidade que, apesar de todos os meus medos e
reservas, eu sabia que precisava considerar com todo o cuidado e
amor que tinha. Por eles, e talvez, no fundo, por mim também.
— O que eu faço? — sussurrei para a sala vazia, sem esperar
uma resposta.
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Estava sozinha nisso, uma verdade que pesava tanto quanto a


própria incerteza.
E, no fundo, sabia que qualquer decisão que tomasse, seja ela
abrir meu coração novamente ou protegê-lo a todo custo, iria definir
o curso do meu futuro.
Um futuro que, até aquele encontro no mercado, eu pensava
estar finalmente começando a entender.

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A ansiedade me consumia enquanto me aproximava da porta de
Maísa. Cada passo em direção àquela casa, situada numa rua
tranquila de Dois Corações, parecia ressoar com o peso de minhas
incertezas e medos.
O que realmente chamava a atenção na fachada pintada de um
azul suave não era a cor, nem as janelas e portas venezianas, mas
as cercas brancas que cercavam o sobrado.
Elas se estendiam, abraçando a pequena casa e o jardim bem
cuidado, falando de um lar, de algo precioso que estava sendo
protegido.
Minha mão hesitou no ar, pairando sobre o botão da campainha,
e senti cada batida do meu coração como um martelo contra o peito.
Minha boca estava repleta de palavras, frases ensaiadas e
reensaiadas na solidão da minha mente, cada uma delas competindo
por atenção, girando em um redemoinho caótico, um turbilhão de
remorsos, desejos e súplicas.
Queria desesperadamente o perdão de Maísa, mas uma voz
insidiosa no fundo da minha mente sussurrava que eu não era digno
dele, que as feridas que causei eram profundas demais,
irremediáveis, e que minha presença aqui era um ato de egoísmo,
uma tentativa fútil de aliviar minha própria culpa.
O peso dessa culpa me curvou, uma pressão invisível que
comprimiu meus ombros e turvou minha visão.
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Com um suspiro, finalmente toquei a campainha, minha mão


tremendo levemente com a tensão do momento, e quando Maísa
abriu a porta, foi como se o tempo congelasse, suspendendo tudo
ao nosso redor em um momento eterno.
Nossos olhares se encontraram e o silêncio que nos envolveu era
denso, vibrante, carregado de sentimentos antigos e novos, de
memórias compartilhadas e de palavras não ditas, evocando
imagens de momentos felizes que agora pareciam pertencer a outra
vida.
Nossa conversa para agendar esse encontro foi breve, seca. Em
cinco mensagens tudo já estava definido. Uma janela, ou melhor, um
buraco de fechadura através do qual me estava sendo permitido
espiar a vida que eu deveria estar vivendo.
O reconhecimento de tudo o que deixei de expressar, de todas as
vezes que o orgulho ou o medo me impediram de dizer o que
realmente sentia, selou meus lábios e minha respiração se tornou
mais pesada, um reflexo da luta interna que travava para encontrar
a coragem de falar, de dar o primeiro passo.
Seus olhos, aqueles olhos castanhos profundos que sempre me
fascinaram, pareciam penetrar diretamente minha alma, revirando
cada canto escondido, cada sombra.
Eles refletiam uma mistura complexa de cautela, e algo mais que
não consegui imediatamente identificar. Havia dor ali, e resiliência;
uma beleza trágica em sua expressão que me fazia querer alcançar
e dissipar qualquer vestígio de sofrimento.
Senti uma leve tontura, um zumbido nos ouvidos que competia
com o batimento acelerado do meu coração. Era uma sensação
avassaladora, estar ali, diante dela, vulnerável e carregado de tanto
que queroiadizer, tanto que precisava dizer.
Ela não se moveu, não disse nenhuma palavra, mas seu olhar
falava muito, lançando-me em um mar de incertezas e esperança.
Senti-me simultaneamente perdido e encontrado, temeroso e
corajoso, desesperado por uma chance de consertar o irremediável.

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Observei-a, notando a simplicidade de sua roupa, a ausência de
maquiagem, e algo dentro de mim doeu. Maísa estava linda, de uma
maneira crua e real que sempre me cativou.
O amor que sentia por ela me atingiu com uma onda de emoção
que me fez sentir tanto idiota quanto desesperadamente
apaixonado. Como pude não ver isso antes de tudo desmoronar?
— Entre. — Sua voz, embora calma, carregava um peso que me
fez hesitar na soleira.
— Obrigado — consegui dizer, minha voz trêmula refletindo a
tempestade emocional por dentro, depois de engolir em seco.
Obedeci
Na sala, o silêncio entre nós cresceu até se tornar um abismo que
me sentia incapaz de cruzar. Me peguei torcendo os dedos
nervosamente. A intensidade do que sentia por Maísa, do quanto a
desejava em minha vida, nunca foi tão clara.
E, no entanto, a dúvida persistia: será que, depois de tudo, ainda
havia espaço para nós? Será que o amor que sentia poderia de
alguma forma compensar os erros que cometi?
— Você quer beber alguma coisa? Uma água? Um café? —
ofereceu, acariciando a barriga inchada delicadamente e foi
impossível impedir que meus olhos acompanhassem o movimento.
O gesto instintivo de proteção e carinho, e a capacidade de ser
hospitaleira, apesar de tudo... As palavras começaram a fluir, quase
sem que eu pudesse controlá-las.
— Eu... — comecei, hesitante no início, mas a visão dela assim,
tão maternal e forte, me encorajou a continuar. — Estou aqui para te
pedir perdão — Minha voz falhou, trêmula, e senti um nó se
formando em minha garganta. — Eu sei que errei, Maísa. Errei de
tantas maneiras que mal posso começar a explicar. Fui... Fui injusto
com você, para dizer o mínimo. E todos os dias, desde então, me
arrependo por não ter te ouvido, por não ter dado a você o benefício
da dúvida que você merecia. — Fiz uma pausa, lutando para manter
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a voz firme, enquanto sentia meu rosto esquentar e minhas mãos


começarem a tremer levemente, traídas pela emoção. — Deixei que
minhas inseguranças e medos falassem mais alto do que a confiança
e o sentimento que deveríamos ter um pelo outro. E isso... isso me
custou cada momento de paz desde aquele dia. — As palavras
saíram com dificuldade, cada uma carregada de um peso imenso.
Respirei fundo, tentando reunir a coragem para continuar, para
expressar o turbilhão de sentimentos que lutava para sair.
— Não há um dia sequer que passe sem que eu deseje poder
voltar no tempo e mudar as minhas ações, as minhas palavras. Se
houvesse alguma forma de eu mostrar o quanto estou arrependido,
eu faria sem hesitar. — Meu olhar buscou o dela, procurando algum
sinal de compreensão, de esperança. — Eu errei, Maísa, errei de
maneiras que mal consigo suportar quando penso nelas. Mas estou
aqui, implorando pela sua capacidade de me perdoar, pela chance de
fazer as coisas certas, não só por nós, mas pelo nosso futuro... pelo
nosso filho.
As últimas palavras foram quase um sussurro, a menção ao nosso
filho trazendo uma nova onda de emoção. Senti uma lágrima
escorrer pelo meu rosto, a manifestação física da dor e do
arrependimento que carregava.
Fiquei parado, vulnerável sob o olhar dela, cada batida do meu
coração um lembrete do muito que estava em jogo, da profundidade
do meu arrependimento e do desejo desesperado de reconstruir o
que foi destruído pelo meu orgulho e pelo meu erro.
— Filhos — ela finalmente disse, depois do que parece uma
eternidade, com os olhos levemente arregalados e uma lágrima
solitária escorrendo por uma das bochechas.
— O q-quê? — gaguejei, franzindo as sobrancelhas.
— Filhos, Henrique. Estou grávida de trigêmeos.
Aquelas palavras caíram sobre mim como uma avalanche,
arrastando todo o resto em seu caminho.

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Trigêmeos.
A realidade daquela revelação me atingiu com força total,
deixando-me sem fôlego, enquanto tentava assimilar o impacto do
que acabara de ouvir.
A ideia de ser pai já era assustadora e maravilhosa por si só, mas
trigêmeos... era algo que eu nunca havia sequer considerado, uma
possibilidade que expandia exponencialmente todo o espectro de
emoções que vinha sentindo.
Num instante, a magnitude do meu erro, do meu fracasso em
apoiar Maísa quando ela mais precisava, tornou-se dolorosamente
multiplicada.
A responsabilidade de nossa situação, a realidade de estar ligado
a ela e aos nossos filhos de uma maneira tão fundamental, impôs-se
com uma força que eu nunca havia experimentado. Eu estava
atordoado.
“Filhos” a palavra ecoava em minha mente, ampliada e carregada
com uma enormidade de significados que mal conseguia começar a
processar.
— Trigêmeos? — Minha voz era um sussurro, frágil e incrédulo,
enquanto tentava assimilar o peso do que Maísa acabara de revelar.
Três. A palavra girava em minha cabeça, cada repetição
tornando-a mais real, mais palpável. Três corações batiam dentro
dela, três almas pequenas que já estavam mudando o curso de
nossas vidas de maneiras que mal podia começar a imaginar.
Senti uma mistura de admiração, amor e um medo profundo.
Admiração pela força de Maísa, por sua capacidade de carregar tal
bênção com tanta graça.
— Eu... não sei nem o que dizer, Maísa. Isso é... incrível. E eu
prometo, prometo a você e aos nossos filhos, que farei tudo,
absolutamente tudo, para ser o homem e o pai que vocês merecem.
— Minha voz, embora ainda trêmula, carregava uma promessa
sincera, um compromisso inabalável de mudança e dedicação.
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Agora, mais do que nunca, sentia a urgência de reparar os danos


causados, de reconstruir nossas vidas juntos, não apenas como um
casal, mas como uma família.
Uma família que, contra todas as expectativas, acabou de se
expandir de maneira tão milagrosa. Maísa me olhou, seus olhos
carregados de uma mistura complexa de emoções.
— Henrique, — começou, abaixando os braços ao lado do corpo.
Sua voz igualmente trêmula, mas firme, — eu jamais afastaria você
dos nossos filhos. Eles precisam de um pai, e eu... eu vou perdoá-lo,
pelo bem deles. Mas isso não significa que eu possa... ou queira...
retomar o que tínhamos. Para mim, por agora, isso é tudo o que
você é: o pai dos nossos filhos. — À medida que Maísa começou a
falar, sua incredulidade era quase tangível, manifestando-se não
apenas em suas palavras, mas em toda a sua postura e expressão.
Ela me encarava com um olhar que oscilava entre a surpresa e a
descrença, como se a ideia de que eu pudesse esperar retomar
nossa relação de onde havíamos parado fosse absurda.
— Você não pode realmente achar que, depois de tudo, podemos
simplesmente voltar ao que éramos? Como se nada tivesse
acontecido? — perguntou, com as sobrancelhas franzidas. — Pedir
perdão não faz os cacos se colarem de volta no lugar. As coisas de
que você me acusou... A forma como me tratou...
O ambiente ao nosso redor, a sala de estar da casa que Maísa
tinha começado a chamar de lar, parecia refletir a tensão do
momento.
As paredes, adornadas com algumas fotografias e pinturas que
sugeriam um recomeço, a mobília escolhida com cuidado, tudo
contribuía para uma sensação de conforto e estabilidade que Maísa
havia construído para si mesma e para os nossos futuros filhos.
Era um espaço acolhedor, mas naquele instante, sentia-me um
intruso, deslocado e desconfortavelmente consciente da minha
própria incongruência nesse cenário.

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— Eu... Eu sei que errei, Maísa. Que fui além do erro. Mas minha
intenção... — Minha tentativa de explicar foi interrompida por um
olhar dela que dizia claramente quão insuficientes eram minhas
palavras.
Ela cruzou os braços, um gesto de defesa que a envolvia como
uma armadura. O sol da tarde entrava pela janela, iluminando seu
rosto de maneira que destacava a firmeza de sua decisão, enquanto
lançava sombras sobre mim, como se sublinhasse minhas dúvidas e
incertezas.
— Incrível, — ela murmurou, quase para si mesma, mas alto o
suficiente para que eu ouvisse. — Depois de meses, você espera que
eu... que nós... simplesmente esqueçamos tudo e recomecemos?
Henrique, nossos filhos não são a única coisa que mudou. Eu mudei.
As palavras de Maísa, carregadas de um misto de dor e
resiliência, faziam eco na sala, desviando minha atenção dos
detalhes do ambiente — das cortinas que filtravam a luz do sol, do
tapete que amaciava o chão, das plantas que traziam vida ao
espaço.
Cada elemento que compunha aquele lugar parecia agora um
testemunho silencioso da vida que ela havia construído na minha
ausência, uma vida da qual eu estava, até aquele momento,
completamente à margem.
— Eu vou perdoá-lo, Henrique. Mas só porque eles precisam de
você. Só por eles, — ela reiterou, a determinação em sua voz
cortando qualquer ilusão que eu pudesse ter alimentado sobre uma
reconciliação fácil. — Foi difícil, mais do que posso expressar. Dar as
costas para tudo, enfrentar a gravidez sozinha, lidar com a dor e a
decepção... Mas eu sobrevivi. Eu cresci. E agora, minha prioridade
são esses bebês. Não há espaço na minha vida para mais dor, para
mais incertezas.
As palavras de Maísa me atingiram como golpes, cada uma
ressoando com uma dor aguda. Via nela uma força que sempre
admirei, mesmo através da vulnerabilidade que agora expunha.
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Observei-a, notando a resolução em seu olhar, a determinação de


proteger a si mesma e aos nossos filhos acima de tudo. Sentia uma
dor lancinante no peito, uma mistura de admiração por sua força e
um lamento profundo por todas as escolhas erradas que fiz.
Minha resposta foi um sussurro, quase inaudível, sufocado pela
emoção que ameaçava me dominar.
— Eu entendo, Maísa. E respeito sua decisão. Meu amor por
você... isso nunca vai mudar. Mas eu aceito o papel que você está
me dando. Vou provar a você, a eles, que posso ser o pai que
merecem, mesmo que seja só isso.
Sentia as lágrimas escorrerem livremente agora, a realidade de
suas palavras se assentando em mim. O ar entre nós estava
carregado de uma tristeza compartilhada.
Maísa acenou levemente com a cabeça, uma aceitação silenciosa
da minha promessa. E, enquanto nos olhávamos, algo se deslocou,
um reconhecimento mútuo das feridas abertas e da longa jornada
de cura pela frente.
Por mais que doesse, por mais que o futuro parecesse incerto,
havia uma promessa não dita de tentar, pela família que estávamos
prestes a formar.
Ali, naquela sala de estar banhada pela luz do entardecer, diante
de uma Maísa que se mostrava tão irredutivelmente mudada pela
experiência e pela dor, senti o peso real do meu arrependimento e
reconheci o imenso trabalho que teria pela frente, não apenas para
reconstruir a confiança perdida, mas também para me redimir aos
olhos da mulher que, apesar de tudo, continuava sendo o amor da
minha vida.
Eu estava disposto a aceitar o espaço que ela estava disposta a
me dar, o de pai dos nossos filhos, e nada mais. No entanto, no
fundo, alimentava a esperança de reconquistar mais do que isso, de
reconquistar a confiança e, talvez um dia, o coração de Maísa.

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“Eu vou lutar, Maísa," pensei comigo mesmo, embora as palavras
não tenham saído em voz alta. "Vou aceitar tudo o que você está
disposta a me oferecer, com gratidão e humildade, e vou provar a
você, todos os dias, que sou digno de sua confiança, do seu
respeito... e talvez, com o tempo, de algo mais."
Maísa assentiu para o silêncio que se estendia entre nós, como se
reconhecesse os pensamentos não ditos que se revoltavam em
minha mente. Então, com um movimento quase hesitante, ela
quebrou o silêncio.
— Você gostaria de conhecer o quarto dos bebês?
Sua voz era suave, mas carregava uma nota de convite que
parecia estender uma ponte sobre o abismo que meus erros e
nossas mágoas haviam criado.
— Por favor — respondi com um sorriso pequeno, mas que não
alcançava meus olhos.
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Meu coração batia na garganta, uma sensação tão intensa que


parecia prestes a escapar pela boca. O pulsar em meu peito era tão
forte que eu temia que Henrique pudesse ouvi-lo.
Cada batida ressoava como um tambor, ecoando a intensidade
dos sentimentos que eu lutava para conter. A postura firme que eu
havia adotado, as palavras duras que deixei escapar momentos
antes, tudo parecia agora uma fachada frágil diante da realidade da
sua presença.
Henrique se movia com uma reverência quase palpável, tocando
suavemente os tecidos, os brinquedos, permitindo que seus olhos
demorassem sobre as flâmulas com os nomes que não escolhemos
juntos: Leon, Gael e Eduardo.
Seus olhos percorreram a distância de um berço para o outro, a
decoração em tons de azul e laranja, a temática de balões, tudo
havia sido escolhido com tanto amor e cuidado, pensando no bem-
estar e na alegria dos nossos bebês.
A cada detalhe que ele absorvia, uma parte de mim se desfazia,
questionando se minha postura determinada havia sido convincente
o suficiente.
Apesar do muro que eu havia erguido entre nós, cada célula do
meu corpo reagia à proximidade de Henrique, vibrando com uma
energia que eu não queria admitir.

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Era como se meu ser inteiro estivesse implorando para diminuir a
distância que nos separava, para me envolver em seus braços e
relembrar o conforto e a segurança que eles uma vez me
proporcionaram. A memória daquele abraço, daquela conexão, era
uma chama que, apesar de todos os meus esforços, recusava-se a
ser apagada.
No entanto, a realidade das minhas palavras ainda ecoava entre
nós, um lembrete da decisão que tomei. "Não há mais espaço em
minha vida para incertezas e dor," eu havia dito, e cada palavra
carregava o peso de noites insones, de lágrimas derramadas, da
solidão de enfrentar uma gravidez sem o parceiro em que pensei
poder confiar.
Minha determinação era o produto da necessidade de proteger
não apenas a mim mesma, mas principalmente os nossos filhos da
possibilidade de mais sofrimento.
Observar Henrique naquele ambiente, um espaço que criei com
tanto amor e cuidado para os nossos filhos, reacendia a dor e a
esperança em igual medida.
A dor pelo que perdemos, pela confiança quebrada, e a
esperança tênue de que, de alguma forma, pudéssemos encontrar
um caminho para coexistir, não como antes, mas de uma nova
maneira que honrasse a ligação indelével que compartilhávamos
através dos nossos filhos.
E quando ele finalmente se virou para me encarar, os olhos
transbordando de emoção, o abismo que nossas escolhas haviam
criado entre nós gritou.
Um abismo que, apesar do meu desejo conflitante de me
aproximar, eu havia escolhido não atravessar. Acima de tudo, eu
precisava ser forte.
Aceitar Henrique em nossas vidas como o pai que ele prometeu
ser era uma coisa; permitir-me ceder ao desejo de reatar nossa
relação era outra completamente diferente. Uma linha que eu me
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recusava em cruzar, mesmo quando cada parte de mim parecia


clamar por isso.
Nos últimos dois dias, desde aquele reencontro inesperado no
mercado, pensei muito sobre o que esperava e o que me permitiria
receber de Henrique, quaisquer que fossem suas intenções.
Cada momento de silêncio, cada instante sozinha, foi consumido
por reflexões sobre o que esperava de Henrique e até onde poderia
permitir que ele entrasse novamente na minha vida.
A surpresa de vê-lo ali, diante de mim naquele corredor, mexeu
com estruturas que eu pensava estar firmes, reavivou sentimentos
que acreditava ter controlado. A decisão não foi fácil.
À noite, deitada na cama, olhando para o teto enquanto os
contornos do quarto dos bebês começavam a se misturar com as
sombras, ponderava sobre nossas memórias, sobre os sentimentos
que uma vez compartilhamos e sobre a dor lancinante de sua
rejeição.
Pensei sobre os nossos filhos, ainda não nascidos, e sobre o tipo
de vida que eu queria para eles. E, em meio a essa tempestade
interna, uma ideia começou a tomar forma, uma resolução que
parecia ser o único caminho possível diante do caos.
Decidi que permitir que Henrique assumisse seu papel como pai
seria o limite da minha concessão. Era um pensamento que trazia
consigo um misto de alívio e resignação.
Alívio, porque nossos filhos mereciam conhecer e ter o amor de
seu pai, independente dos erros que ele cometeu; resignação,
porque parte de mim ainda ansiava por mais, por aquele sonho de
família unida que eu havia tido tão pouco tempo para sonhar.
Essa decisão não veio sem suas próprias lutas internas. Houve
momentos em que me peguei questionando se estava sendo dura
demais, se uma parte de mim não estaria fechando a porta para
uma possível reconciliação, por medo de ser ferida novamente.

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Mas, a cada vez que esses pensamentos surgiam, eu os
confrontava com a realidade das minhas feridas ainda abertas, da
confiança quebrada que precisaria de mais do que palavras para ser
reconstruída.
O que me permitiria receber de Henrique, independentemente de
suas intenções, tornou-se claro: seu comprometimento como pai,
sua presença na vida dos nossos filhos, mas nada além disso.
Era uma linha que eu desenhava não apenas para proteger meu
coração, mas também para salvaguardar o futuro emocional dos
nossos filhos.
Eu sabia que estava fazendo a escolha certa.
— É lindo, Maísa. Você fez um trabalho incrível aqui, — Henrique
disse, sua voz carregada de emoção.
— Obrigada — respondi, mantendo minha voz estável, apesar da
tempestade que se formava dentro de mim.
Quando Henrique se virou para me encarar novamente, seus
olhos estavam transbordando de emoção. Aquele olhar, tão cheio de
sentimentos e arrependimento, atingiu-me profundamente,
reacendendo memórias e desejos que eu lutava para manter à
distância.
Senti meu coração apertar, uma dor aguda misturada com um
resquício de esperança. Era difícil, quase doloroso, manter a
distância emocional, especialmente vendo a sinceridade em seus
olhos.
Mas repeti, como um mantra silencioso, que eu precisava ser
forte, não apenas por mim, mas principalmente pelos nossos filhos.
Eles mereciam um ambiente estável e livre das incertezas que
marcaram minha relação com Henrique.
— Eles vão adorar aqui.
— Sim, eles vão — concordei, forçando um sorriso que esperava
parecer mais confiante do que eu realmente me sentia. — Eles são
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minha prioridade agora, Henrique. Tudo o que faço é por eles.


— Eu farei tudo o que puder por eles, Maísa. Por vocês — ele
disse, sua voz carregando um peso que eu sabia ser genuíno.
— Eu sei — sussurrei, permitindo-me acreditar mais do que em
suas palavras, em seus olhos.
— Você terminou tudo bem cedo, não é? Há algo com que eu
possa ajudar? Algo que eu ainda possa fazer? — Henrique
perguntou, um tom de genuína preocupação em sua voz.
Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas para
explicar a situação sem deixar minha própria ansiedade transparecer
demais.
— Por ser uma gestação tripla, Henrique, o tempo de duração
pode ser diferente. Apesar de ter pouco mais de seis meses, é
essencial que tudo já esteja pronto. O nascimento prematuro é uma
possibilidade muito real, — expliquei, observando sua expressão
mudar para uma de preocupação visível.
Ele se aproximou um pouco, as sobrancelhas franzidas em uma
expressão de preocupação que eu não via há muito tempo. O corpo
grande, vestido por uma bermuda clara e uma camisa branca de
botões se moveu quase em câmera lenta, ou talvez fossem meus
olhos, minha percepção.
— Nascimento prematuro? Isso é... comum em gestações
múltiplas?
— É uma possibilidade para a qual precisamos estar preparados.
Quero garantir que tudo esteja o mais perfeito possível para quando
eles chegarem, seja lá quando for.
Minha voz era calma, mas por dentro, eu sentia o peso de cada
palavra, a realidade de nossa situação se impondo com cada sílaba.
Henrique assentiu, absorvendo a informação.
— Eu não tinha ideia. Isso me preocupa, Maísa. Quero dizer, eu
quero estar aqui, ajudar de alguma forma.

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Seu olhar era sincero, e algo dentro de mim se comoveu com sua
oferta. Por um momento, permiti-me imaginar como seria ter
Henrique ao nosso lado, não apenas como o pai dos nossos filhos,
mas como uma presença constante e apoiadora.
Com o coração batendo mais forte, uma decisão tomada no calor
do momento, perguntei:
— Você gostaria de ir à próxima consulta médica comigo? É no
final da semana.
A surpresa passou pelo rosto de Henrique, rapidamente
substituída por uma expressão de gratidão.
— Eu... Eu adoraria, Maísa. Obrigado.
Havia um brilho em seus olhos que não via há muito tempo, e,
apesar de todas as minhas resoluções, não pude evitar sentir um fio
de esperança se entrelaçando com o medo e a incerteza que vinham
dominando meus pensamentos.
Permitir que Henrique se envolvesse tão diretamente, levá-lo a
uma consulta médica, era um passo que eu não havia planejado dar
tão cedo. No entanto, ali, naquele quarto preparado com tanto amor
para os nossos filhos, senti que talvez pudesse haver espaço para
reconstruir algo novo a partir dos escombros do nosso passado.
Uma parte de mim sempre desejaria poder voltar no tempo, para
um lugar onde as coisas poderiam ter sido diferentes.
Mas a vida segue em frente, e eu sabia que o caminho à nossa
frente exigiria força, paciência e, acima de tudo, amor — pelos
nossos filhos e, de alguma forma, um pelo outro, mesmo que agora
apenas como pais compartilhando a responsabilidade de criar três
vidas preciosas.
— O que mudou, Henrique? — perguntei, precisando saber disso
antes de seguir em frente de vez. — Você... — Engoli em seco e
fechei os olhos quando as lembranças daquela noite, quando ele me
rejeitou, meses atrás, explodiram nos meus pensamentos. — Você
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tinha certeza de que eu estava tentando enganar você e... Agora...


O que mudou?
Henrique pareceu surpreso com minha pergunta direta, mas era
algo que eu precisava saber. Se íamos seguir em frente, mesmo que
apenas como pais, eu precisava entender o que havia mudado em
seu coração e em sua mente.
Ele demorou um momento para responder, como se estivesse
pesando cada palavra que estava prestes a dizer. Sua expressão era
uma mistura de arrependimento e reflexão.
— Muita coisa mudou, Maísa, — começou, sua voz baixa e
carregada de emoção. — Depois daquela noite... eu passei muito
tempo pensando, refletindo sobre tudo o que aconteceu entre nós.
Eu me sentia mais miserável a cada dia longe de você, — Ele fez
uma pausa, olhando para baixo, como se as palavras seguintes
fossem difíceis de encontrar. Henrique hesitou por um momento
antes de continuar, como se estivesse ponderando a melhor forma
de abordar o que vinha a seguir. Seu olhar voltou para o meu, e
então ele revelou algo que eu não esperava. — Houve um acidente.
— Sua voz estava um pouco mais fraca, marcada por uma
vulnerabilidade que eu raramente via nele. — Um acidente de carro,
alguns meses atrás. Nada muito grave, fisicamente, mas... foi um
despertar para mim. A perspectiva de que poderia não haver mais
chance alguma... me fez perceber o quanto eu estava desperdiçando
minha própria vida. O quanto eu havia perdido por me apegar às
minhas próprias certezas sem ouvir mais ninguém.
Um frio percorreu minha espinha. Meus pensamentos aceleraram,
cada um deles tingido com um medo que eu não queria reconhecer.
A ideia de que Henrique, o pai dos meus filhos, poderia ter sido
arrancado deste mundo sem aviso, sem uma chance de reconciliação
ou entendimento, sem uma oportunidade de ver nossos filhos
crescerem, invadiu minha mente com uma força devastadora.
Um pavor silencioso se instalou em mim, um medo visceral da
perda que, por um momento, eclipsou todas as nossas desavenças

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passadas. Sem perceber, encontrei minhas mãos tremendo ao lado
do corpo, um movimento involuntário que traía a turbulência interna
que suas palavras haviam desencadeado.
Engoli em seco, tentando disfarçar a agitação súbita, mas sabia
que meus olhos, ampliados e fixos nele, provavelmente revelavam
mais do que eu gostaria.
Por um instante, permiti-me imaginar o cenário que ele descreveu
— um mundo sem Henrique, um futuro em que nossos filhos
perguntariam sobre seu pai e eu teria que encontrar as palavras
para explicar sua ausência permanente.
A dor dessa imaginação, a realidade alternativa que por pouco
não se concretizou, deixou-me com uma sensação de
vulnerabilidade que eu lutava para aceitar.
— Depois do acidente, — Henrique voltou a falar— fiquei lá,
sozinho no hospital, pensando... Sobre tudo. Sobre nós. — Ele
pausou, olhando diretamente nos meus olhos, procurando por algo
que eu não tinha certeza de poder oferecer.
Vi seu peito subir e descer com respirações profundas, um sinal
claro da emoção que ele lutava para conter. Me encolhi
involuntariamente, um movimento sutil, mas revelador da minha
própria vulnerabilidade.

— Então, eles encontraram algo... algo que eu não esperava. —


Sua hesitação era palpável, e eu me preparei, mesmo sem saber
para o que. — Minha vasectomia... ela reverteu. Naturalmente. Eu
não sabia.
A revelação me atingiu como um golpe, acendendo uma mágoa
que eu pensei ter controlado. A ideia de que toda a dor, toda a
desconfiança e acusação, poderiam ter sido evitadas se ele tivesse
apenas... se tivesse nos dado a chance de verificar juntos, de
conversar sobre isso sem preconceitos, era quase insuportável.
Minha respiração parou. Por um breve momento, tudo sumiu,
restando apenas o peso daquelas palavras suspensas no ar.
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— Você está dizendo que... todo esse tempo... — Minha voz


falhou, a incredulidade e a mágoa se misturando em um turbilhão de
emoções. — Você poderia ter sido o pai... e você escolheu não
acreditar em mim?
Henrique assentiu, o remorso claro em seu rosto.
— Eu estava errado, Maísa. Profundamente errado. E eu não
tenho desculpas para o que fiz, para a dor que causei. E sei que isso
não muda o que aconteceu, Maísa. Eu daria qualquer coisa para
poder voltar e fazer as coisas de maneira diferente. Mas isso... isso
me fez perceber o quão errado eu estava, sobre muitas coisas. E eu
estou aqui, não porque um exame me mostrou que eu estava
errado, mas porque eu realmente quero fazer as coisas certas agora.
Por você, por nossos filhos.
O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável. O sol
começava a se pôr, lançando um brilho dourado pela sala que
contrastava agudamente com a tempestade emocional que se
desenrolava dentro de mim.
— Eu... Eu não sei o que dizer, Henrique. — Minhas próprias
palavras pareciam inadequadas, incapazes de abranger a
complexidade do que eu sentia. — Só... só me dá um momento, por
favor.
Ele assentiu, dando um passo para trás, respeitando meu espaço.
Enquanto me afastava, lutando para processar a avalanche de
sentimentos, uma coisa ficou clara: minha decisão de manter meu
coração protegido era mais acertada do que nunca.
A sinceridade de Henrique, embora tocante, havia sido motivada
não por uma mudança de coração, mas por uma prova médica.
As sombras da noite começavam a se estender pela sala,
refletindo a turbulência dos meus pensamentos. A revelação não
apenas reacendeu a mágoa, mas também trouxe um medo visceral
de quão próximo eu havia chegado de perder Henrique para sempre.

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Essa mistura complexa de emoções — medo, alívio, mágoa — fez
com que eu me sentisse ainda mais resoluta em minha decisão de
proteger a mim mesma e aos nossos filhos acima de tudo.
A vulnerabilidade que a perspectiva de perder Henrique revelou
em mim só reforçou a necessidade de manter uma distância
emocional, por mais contraditório que isso pudesse parecer.
— Eu... estou aliviada que você esteja bem, Henrique, —
consegui dizer, a voz trêmula apesar dos meus melhores esforços
para mantê-la estável. — Por nossos filhos... eles precisam de você.
Cada palavra era carregada de uma sinceridade dolorosa, um
reconhecimento de que, independentemente dos nossos conflitos, a
vida é preciosa e frágil, e as conexões que temos, por mais
complicadas que sejam, não podem ser ignoradas ou descartadas
sem consideração.
Henrique assentiu, a tristeza em seus olhos um espelho da minha
própria. Apesar de tudo, eu sabia que esse era o caminho certo a
seguir.
Por mais difícil que fosse, por mais que parte de mim ainda
ansiasse por uma resolução diferente, eu tinha que pensar no que
era melhor para os nossos filhos.
E manter meu coração protegido, enquanto permitia que
Henrique cumprisse seu papel como pai, era a única maneira de
fazer isso.
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— Três? Você disse três bebês? — Thomaz se engasgou, cuspindo


o gole de água que tinha acabado de beber do copo.
Sua expressão transbordava um choque absoluto que se espalhou
pelo seu rosto, como se cada palavra que eu havia dito precisasse
de um momento para ser completamente absorvida.
O canto da sua boca tremia levemente, enquanto ele usava a
manga da camisa para secar a bagunça que fez com a água, um
indício do sorriso que ele lutava para conter.
Do outro lado da tela, sua imagem iluminada pela luz azul do
meu laptop era um lembrete de que, apesar da distância, ele estava
comigo nesse momento crucial. Eu assenti, sentindo uma mistura de
ansiedade e alívio ao compartilhar a notícia.
— Sim, Thomaz, trigêmeos: Leon, Gael e Eduardo.
Ao dizer os nomes em voz alta, uma sensação de realidade me
atingiu, como se cada sílaba pronunciada tornasse tudo mais
concreto, mais real. um impacto singular reverberou através do meu
ser.
Havia uma ansiedade sutil, uma preocupação inerente ao
desconhecido que o futuro agora reservava. Ao mesmo tempo, um
calor inesperado brotou em meu peito, um vislumbre de alegria ante
a perspectiva de conhecer, amar e cuidar de Leon, Gael e Eduardo.
Cada nome carregava consigo uma promessa de aventuras,
desafios e momentos preciosos que estavam por vir. Eu os ensinaria

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a jogar futebol, a andar de patins e a esquiar. Eu os ajudaria a
aprender a ler e a fazer contas, a construir seus caráteres, a se
tornarem pessoas de bem.
Sentia-me ligado a eles de uma maneira que palavras dificilmente
poderiam descrever, como se cada nome tivesse criado um laço
invisível entre nós, puxando-me para uma nova dimensão de
responsabilidade e amor que eu apenas começava a compreender.
Além disso, havia uma sensação de urgência, uma consciência
repentina de que o tempo estava em movimento, e que a chegada
deles era iminente.
A realidade de que em breve eu estaria segurando Leon, Gael e
Eduardo em meus braços transformava cada pensamento em ação,
cada dúvida em decisão.
Estava claro que minha vida estava prestes a mudar de maneiras
que eu mal podia imaginar. Thomaz se recuperou do choque inicial
rapidamente.
— Cara, isso é incrível! Eu... eu vou precisar começar a trabalhar
em três vezes mais piadas de tio agora!
Não pude evitar um sorriso, mesmo que os sentimentos em meu
peito ainda estivessem muito intensos desde a conversa com Maísa,
na noite anterior.
— Vai precisar mesmo, — concordei, permitindo-me ser levado
por sua energia positiva, mesmo que por um momento.
— Mas falando sério, Henrique, — Thomaz continuou, seu tom
suavizando à medida que a realidade da situação se instalava
novamente entre nós. — Como você está se sentindo com tudo isso?
Quero dizer, isso é uma grande notícia.
Respirei fundo, buscando as palavras. A sala da casa que aluguei
em Dois Corações refletia o tumulto de emoções e a precipitação
com que decidi me instalar aqui.
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As paredes, pintadas em um tom suave de creme, eram


adornadas com poucos quadros, escolhidos mais pela necessidade
de preencher o espaço do que por um apreço artístico.
A mobília era funcional, composta por um sofá de tecido cinza,
confortável o suficiente, e uma mesa de centro de madeira, sobre a
qual repousavam alguns livros e revistas, mais decorativos do que
lidos.
A iluminação suave vinha de um abajur de pé, situado em um
canto próximo ao sofá, lançando uma luz quente que combatia a
frieza da luz azul emanada pelo laptop.
Próximo à janela, uma pequena estante abrigava algumas
fotografias pessoais que trouxe comigo, tentativas de trazer um
pouco do calor de casa para este espaço temporário. Entre elas,
destacava-se uma foto de Maísa e eu.
Por meses, as fotografias que nunca consegui apagar foram
objetos da minha tortura auto infligida. Agora, eram um lembrete
constante do porquê de eu estar aqui.
Do outro lado da sala, uma porta de vidro dava para uma
pequena varanda, onde um par de cadeiras e uma mesa pequena
ofereciam um refúgio a céu aberto. A casa era simples, muito
diferente e menor do que minha cobertura em São Paulo, mas era
acolhedora e tinha três quartos.
Apesar da tentativa de criar um ambiente aconchegante, a sala
ainda carregava um ar de transitoriedade, um espaço ainda à espera
de ser verdadeiramente habitado.
Cada objeto parecia estar ali temporariamente, assim como eu,
preso em um limbo emocional e físico, aguardando o momento em
que a vida decidiria seu próximo curso.
— É muita coisa para processar. Estou... surpreso, assustado, mas
também, de alguma forma, animado. Mal posso esperar para vê-los,
tocá-los... Para participar da vida deles — admiti.

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— Fico feliz que Maísa não tenha dificultado as coisas — ele
disse, mas se corrigiu em seguida. — Não que ela não tivesse esse
direito, ela tinha. Mas, você entendeu o que eu quis dizer.
Thomaz passou a mão pelos cabelos e cruzou as mãos na frente
do peito. Ele estava sentado no sofá da sua casa. Tinha acabado de
chegar em casa, vindo do trabalho, quando liguei.
Ri, uma risada triste.
— Ela disse que jamais me negaria o direito de ser o pai dos
nossos filhos.
— Eu sempre te disse que você tinha escolhido uma mulher
especial.
Balancei a cabeça, concordando, mesmo que a palavra “especial”
parecesse pouco, muito pouco para descrever Maísa.
— Ela também deixou claro que nosso relacionamento... que
nós... estamos no passado. Que o pai das crianças é tudo o que eu
vou ser.
Thomaz assentiu, compreendendo a complexidade do que eu
estava enfrentando.
— E o que você pensa sobre isso?
Hesitei por um momento, absorvendo a pergunta e o peso das
emoções que ela evocava. O silêncio da sala, pontuado apenas pelo
som suave da minha respiração, parecia aguardar minha resposta.
— Vou dar a ela todo tempo e espaço que ela precisar, Thomaz,
— comecei, sentindo a determinação firme dentro de mim. — Mas
ela é a mulher da minha vida. Desistir não é uma opção, não no
primeiro obstáculo.
Thomaz me observou atentamente, e eu podia ver o respeito em
seus olhos. Ele conhecia a profundidade dos meus sentimentos por
Maísa, o quanto eu estava disposto a lutar para reconstruir o que
havíamos perdido.
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— Isso soa... complicado, mas eu te admiro por isso, Henrique. É


preciso coragem para enfrentar essa situação de frente,
especialmente sabendo que o caminho pode ser longo e difícil, —
Thomaz disse, e havia uma sinceridade em suas palavras que me
tocou profundamente.
— Não tenho outra opção. Demorei a entender isso, mas não
quero aprender a viver sem Maísa ao meu lado, nunca.
— Isso é duro, cara. Mas você sabe, ser pai e mãe é uma coisa
gigante. Vocês dois vão se surpreender com muitas coisas ainda.
Quem sabe o que o futuro reserva?
— Sim, — murmurei, ponderando suas palavras. — E há mais
uma coisa. Maísa mencionou a possibilidade de nascimentos
prematuros. Por serem trigêmeos, isso é algo para o que precisamos
estar preparados.
A preocupação marcou a expressão de Thomaz, um lembrete do
peso da responsabilidade que estava sobre meus ombros.
— Qualquer coisa que você precisar, Henrique, estou aqui. Mesmo
que eu tenha que pegar o próximo voo para aí.
— Obrigado, meu amigo. Isso significa muito.
A conversa com Thomaz, embora difícil, reafirmou minha
resolução de não apenas cumprir meu papel como pai, mas também
de buscar, com paciência e respeito, uma maneira de me reconectar
com Maísa.
Sabia que o desafio seria grande, que haveria momentos de
dúvida e desespero, mas a esperança de reencontrar um caminho
comum, de reconstruir algo duradouro, mantinha meu espírito
elevado.
Terminamos a chamada pouco depois, deixando-me com meus
pensamentos e a quietude da sala.
Ao redor, a casa alugada parecia menos vazia, menos transitória,
como se a conversa tivesse de alguma forma imbuído o espaço com

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uma nova energia, uma nova possibilidade.
E, enquanto contemplava o caminho à frente, senti-me preparado
para enfrentar o que viesse, armado com amor, esperança e a
inabalável crença de que, no final, valeria a pena lutar por aquilo
que verdadeiramente importava.
Naquela noite, enquanto a cidade de Dois Corações se aquietava
sob o céu estrelado, prometi a mim mesmo que faria tudo ao meu
alcance para ser um bom pai para Leon, Gael e Eduardo,
independente do que o futuro nos reservasse.
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Quando Henrique e eu cruzamos o limiar da minha sala de jantar,


um turbilhão de emoções me invadiu. Eu havia decidido que, se ele
iria fazer parte da vida dos nossos filhos, conhecer minha família —
minha rede de apoio — era essencial.
No entanto, a preocupação de que tudo isso pudesse terminar em
desastre me acompanhava, uma sombra constante nos meus
pensamentos.
Meus pais e minha irmã já estavam todos sentados à mesa, um
cenário familiar que sempre me trouxe conforto, mas que naquele
início de noite parecia carregado de tensão.
A ideia de apresentar Henrique, sob circunstâncias tão
complicadas, fazia meu coração acelerar, uma ansiedade palpável
que eu lutava para controlar.
— Este é Henrique. — Minha voz estava trêmula revelando mais
do que eu gostaria. — O pai dos bebês — acrescentei, mesmo que
essa fosse uma informação completamente desnecessária.
Cada um dos presentes estava perfeitamente ciente de quem era
Henrique Borges: o homem que, pouco mais de seis meses antes,
havia partido meu coração ao rejeitar a mim e aos meus filhos e
que, agora, havia ressurgido do nada, dizendo estar arrependido.
O olhar de cada membro da minha família convergiu para nós —
uma mistura de curiosidade, cautela e, de certa forma, esperança.
Eu podia sentir a tensão no ar, um reflexo das poucas conversas que

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tivemos sobre Henrique e das muitas que tivemos sobre os bebês, e
sobre o futuro incerto que se desdobrava à nossa frente.
Meu pai, sempre o mais reservado, encarou Henrique com uma
expressão que misturava avaliação e proteção. Seus olhos, que
tantas vezes eu vi brilharem com gentileza, agora guardavam um
brilho de cautela, como se tentassem decifrar as verdadeiras
intenções por trás da presença de Henrique ali.
No entanto, havia também um leve aceno de aceitação, uma
disposição para ouvir e entender antes de formar um julgamento
definitivo.
Minha mãe, por outro lado, tinha nos lábios um sorriso tímido,
uma tentativa de trazer calor e acolhimento à situação. Seus olhos,
no entanto, revelavam uma preocupação materna profunda, o medo
silencioso de que sua filha, e agora seus futuros netos, pudessem
sofrer.
Mesmo assim, ela emanava uma aura de esperança, um desejo
palpável de que, de alguma forma, pudéssemos encontrar um
caminho para a harmonia e o bem-estar coletivo.
Geórgia, era um mar de emoções contidas. Seu olhar para
Henrique era incisivo, quase desafiador, como se ela estivesse pronta
para defender a mim e aos bebês de qualquer ameaça potencial.
Sua postura, rígida e alerta, deixava claro que ela não estava
disposta a fazer concessões facilmente. No entanto, por baixo dessa
superfície tempestuosa, eu sabia que havia também um desejo de
paz, de estabilidade para nossa família em crescimento.
A sala, com sua decoração familiar e aconchegante, tornou-se um
palco para esse encontro carregado de significados e emoções
conflitantes.
As expressões nos rostos da minha família refletiam a
complexidade da situação — uma mistura de amor incondicional por
mim e pelos bebês, preocupação com as incertezas do futuro e uma
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cautelosa abertura para conhecer verdadeiramente Henrique e suas


intenções.
A presença e o apoio da minha família significavam o mundo para
mim. Ao longo de toda a minha vida, eles me ofereceram um porto
seguro em meio às tempestades emocionais, mas nos últimos
meses, meus pais e minha irmã haviam elevado isso à décima
potência.
E enquanto Henrique se esforçava para se apresentar, para se
conectar de alguma forma com cada um deles, eu sentia uma
mistura de gratidão e apreensão, sabendo que os dias à nossa frente
exigiriam força, paciência e, acima de tudo, fé na capacidade de
cura e reconstrução.
Henrique sorriu, um sorriso educado, enquanto cumprimentava
cada um dos meus familiares.
— Estamos felizes em conhecê-lo — minha mãe disse quando já
estávamos todos sentados e nos servindo.
Coloquei uma colher de purê de batatas em meu prato,
observando atentamente a interação que tinha acabado de começar.
— Também estou muito feliz por conhecer todos vocês — Ele
disse, com outro sorriso educado, mas de repente, seu rosto se
esticou.
Henrique umedeceu os lábios e soltou um longo suspiro. Seus
olhos procuraram os meus, depois se voltaram para a minha família.
Ele abriu a boca e depois a fechou, sem dizer nada. O pai dos meus
bebês pressionou os lábios, como se refletisse, antes de recomeçar.
— Isso não está certo — disse, claramente desconfortável com a
formalidade forçada da situação. Recuei a cabeça levemente,
surpresa com a direção que aquela conversa estava tomando. —
Não posso simplesmente me sentar aqui e fingir que não temos uma
bagagem, que nada realmente grave aconteceu antes desse dia.
Não é assim que quero começar minha relação com a família dos

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meus filhos — declarou e eu pisquei, sentindo as batidas do meu
coração se tornarem ainda mais aceleradas.
O anúncio deixou a sala em um silêncio ainda mais profundo,
todos surpresos com a franqueza inesperada. Minha mãe parecia
estar reavaliando Henrique, seu olhar misturando surpresa com uma
nova ponta de respeito.
Meu pai, por outro lado, tinha a testa franzida, claramente
ponderando as intenções por trás das palavras de Henrique. Geórgia
me lançou um olhar rápido, tentando avaliar minha reação antes de
fixar seus olhos em Henrique, como se o desafiasse a continuar.
Foi meu pai quem finalmente quebrou o silêncio, sua voz
refletindo a cautela de um homem acostumado a proteger sua
família.
— O que você quer dizer, rapaz? — ele perguntou, dando a
Henrique a oportunidade de explicar-se, de tornar suas intenções
claras.
A tensão na sala aumentou, todos nós presos nesse momento de
expectativa. Finalmente, Henrique pressionou os lábios, tomou uma
respiração profunda e começou, sua voz soando mais firme do que
sua postura sugeriria.
— Eu cometi erros graves e fiz escolhas terríveis. Já conversei
com Maísa e pedi o perdão dela, mas ela não é a única pessoa que
precisa me perdoar. Maísa sempre falou muito de vocês, e sei o
quanto a amam. O simples fato de estarem me recebendo com tanta
cortesia, mesmo depois de tudo, é uma prova disso. Então, quero
começar essa relação do jeito certo, pedindo desculpas por ter
magoado alguém que vocês amam tanto e prometendo passar o
resto dos meus dias me esforçando para merecer o perdão de Maísa
e a benção de ser o pai dos nossos filhos.
As palavras de Henrique, carregadas de sinceridade e uma
humildade que eu não esperava, pareciam ressoar pela sala,
tocando cada um de nós de maneira diferente.
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A tensão inicial deu lugar a uma atmosfera de reflexão, um


reconhecimento tácito do esforço que ele estava fazendo para
reparar os danos causados.
Naquele momento, percebi que, apesar de todas as minhas
resoluções de manter Henrique à distância, a jornada à nossa frente
talvez pudesse ser mais complexa e cheia de possibilidades do que
eu havia imaginado.
— É um bom começo — de novo, foi meu pai quem respondeu.
Mordi o lábio, piscando, tentando afastar a emoção. Era culpa dos
hormônios, eu tinha certeza disso. — Por quanto tempo você
pretende ficar na cidade?
A pergunta fez com que minhas sobrancelhas se erguessem. No
espaço curto de dois dias, em meio ao caos que meu peito se
tornou, essa era uma pergunta importantíssima e que eu
simplesmente ainda não havia me feito.
— Pelo tempo que Maísa e os meninos ficarem. Não pretendo
viver em uma cidade diferente da dos meus filhos — garantiu e eu
pisquei outra vez, naquele momento por um motivo completamente
diferente do anterior.
— O q-quê? — consegui perguntar, apesar de gaguejando. — E-
eu não sei se pretendo voltar para São Paulo em algum momento,
mas certamente não vou voltar nos próximos meses.
Henrique deu de ombros.
— Então eu também não voltarei.
O encarei, séria, e muito chocada para esconder as emoções do
meu rosto. Sabia que alguma comunicação silenciosa estava
acontecendo entre as outras três pessoas na mesa, mas eu não
podia desviar meus olhos das pedras escuras que me encaravam,
fazendo minha respiração acelerar.
— Mas, — Um riso nervoso escapou da minha garganta. — E a
empresa? Você não pode estar falando sério, Henrique. Você tem
um império para comandar.

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Henrique sustentou meu olhar, a determinação evidente em suas
feições. Era um olhar que eu reconhecia, um que ele usava quando
estava completamente comprometido com uma decisão,
independentemente das consequências.
— Maísa, há coisas mais importantes que a empresa agora. —
Sua voz era firme, mas calma. — Estar presente na vida dos nossos
filhos é uma delas. Posso gerenciar meus negócios à distância, e
tenho uma equipe em quem confio completamente. Se precisar, farei
viagens de negócios, mas minha base será onde vocês estiverem.
Eu estava atônita. A ideia de Henrique reorganizar sua vida
inteira, seus planos e sua carreira por nós... era algo que eu não
havia antecipado.
Por um lado, seu comprometimento era exatamente o tipo de
responsabilidade que eu esperava do pai dos meus filhos. Por outro,
a proximidade que isso implicava entre nós trazia uma complexidade
emocional que eu não tinha certeza de estar pronta para enfrentar.
Meu pai assentiu, parecendo considerar as palavras de Henrique
com um novo respeito.
— Isso é admirável, Henrique. Você será muito bem-vindo nesta
família, desde que suas ações reflitam suas palavras.
Minha mãe sorriu, uma expressão de alívio e contentamento
cruzando seu rosto pela decisão de Henrique de priorizar a família. E
Geórgia, que até então mantivera um ceticismo visível, relaxou um
pouco, embora seu olhar ainda guardasse vestígios de desconfiança.
Eu, por outro lado, lutava para processar o que aquela mudança
significaria para nós. A presença constante de Henrique na cidade,
na vida dos nossos filhos, e, por extensão, na minha, era um cenário
que eu não havia contemplado.
As implicações dessa decisão e os limites que teríamos que
navegar se tornaram questões prementes em minha mente.
— Henrique, eu... eu aprecio o que você está tentando fazer.
Realmente aprecio, — eu disse, escolhendo minhas palavras com
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cuidado. — Mas vamos precisar estabelecer alguns limites claros. Por


eles, — enfatizei, referindo-me aos nossos filhos, — e por nós.
Eu sabia que aquela não era uma conversa para termos sentados
à uma mesa na companhia dos meus pais e irmã, mas a urgência de
estabelecer a necessidade de que ela acontecesse, não me deixou
esperar o jantar terminar.
Henrique acenou com a cabeça, um gesto de entendimento.
— Eu concordo. Qualquer coisa que precisarmos fazer para que
isso funcione. Eu só quero fazer parte da vida deles, Maísa, e apoiar
você de qualquer maneira que eu puder.
Pisquei, e como se entendessem que era disso que eu precisava,
minha família começou uma conversa paralela. E quando Henrique
estava me encarando, em silêncio, havia tempo demais, Geórgia fez
questão de intimá-lo a participar de qualquer que fosse o assunto
sobre o qual estavam falando.
Enquanto a conversa fluía ao redor da mesa, eu me sentia
dividida. Por um lado, grata pela presença solidária da minha família;
por outro, temerosa do futuro incerto que nos aguardava. Minhas
mãos tremiam discretamente no colo, um reflexo físico da
tempestade emocional que se desenrolava dentro de mim.
O jantar terminou com uma sensação de que estávamos à beira
de um novo começo, um tanto trêmulo e cheio de incógnitas.
Quando Henrique se despediu, prometendo estar comigo na
consulta do dia seguinte, um suspiro de alívio escapou dos meus
lábios. Pelo menos, a noite não havia terminado em desastre,
mesmo que a estrada à nossa frente parecesse naquele momento
mais complexa e tortuosa do que nunca.
Fechei a porta atrás dele, com um pensamento persistente
ocupando minha mente: independente das intenções de Henrique,
eu precisava permanecer firme em minha decisão, protegendo meu
coração e, acima de tudo, garantindo o bem-estar dos meus filhos.

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Era impossível não notar o conflito que dançava nos olhos de
Maísa enquanto eles vagavam pelas janelas do pequeno restaurante
onde estávamos.
Era claro que ela estava dividida por ter aceitado meu convite
para almoçarmos juntos. Maísa deu indício de estar receosa no
momento em que as palavras saíram da minha boca, ainda na porta
da clínica, depois da sua consulta.
E mesmo que eu tivesse percebido, jamais retiraria o convite.
Não. Eu aproveitaria cada oportunidade que a vida me desse para
nos reconectarmos, mesmo que Maísa estivesse determinada a
manter as coisas estritamente platônicas entre nós.
Observava cada movimento dela, desde a maneira como mexia
distraidamente na toalha branca sobre a mesa, até o jeito como seus
olhos se perdiam em pensamentos distantes.
Havia uma beleza em sua hesitação, uma sinceridade que me
fazia querer mergulhar na complexidade dos seus sentimentos,
desvendar cada camada que nos separava.
— Acho que nunca vou me esquecer do momento em que ouvi os
corações deles baterem pela primeira vez — confessei, e Maísa
piscou, sua atenção se concentrando completamente em mim diante
da minha admissão.
Ela piscou, e um sorriso suave curvou seus lábios, como se falar
sobre os nossos filhos fosse a borracha para qualquer tensão que ela
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pudesse estar sentindo.


— Não consegui parar de chorar por horas — respondeu, — No
primeiro ultrassom, sabe? Tudo o que eu ouvia, mesmo depois de
ter saído do consultório, eram aquelas batidas frenéticas. — Maísa
soltou uma gargalhada curta, deliciosa, e puxei uma inspiração
profunda quando meu peito vibrou de saudade do som.
Eu não sabia. Eu não fazia ideia do quanto tinha sentido
saudades de ouvi-la rir até esse momento, mas nem sei por que me
surpreendi. Senti saudades dela inteira.
Da risada, da voz, do sorriso, do olhar, do toque, da cor, da pele,
da sedosidade dos seus cabelos e da acidez das suas certezas. Eu
senti saudade de cada centímetro dessa mulher.
— Eles são tão pequenos — consegui dizer, apesar do rumo que
meus pensamentos estavam tomando. — Tão frágeis... Eu li a
respeito, mas pareceu diferente, ver os nossos bebês na tela, foi
muito diferente de ver fotos aleatórias.
Recostei-me contra o espaldar da cadeira, esticando uma perna
sob a mesa enquanto a outra permanecia flexionada. Maísa piscou
para mim, parecendo surpresa e eu não sabia com o que.
— Você leu a respeito? — sua pergunta explicou.
— Muito — concordei. — Eu passava muitas horas me dedicando
à fisioterapia, nas semanas depois do acidente, mas também investi
cada minuto que pude para aprender sobre a gestação, e sobre a
criação de filhos. Ainda estou investindo, na verdade. Estou lendo
um livro ótimo, inclusive. Posso te emprestar depois, se você quiser,
e se não tiver lido ainda.
Maísa me observou por um longo momento, sua expressão
misturando surpresa e um resquício de admiração que ela tentava
não deixar transparecer.
Era evidente que minha dedicação em aprender sobre a gestação
e a paternidade a havia pegado de surpresa.

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— Eu... eu acho que gostaria sim,— disse finalmente, um sorriso
tímido brincando em seus lábios. — Isso é... é muito responsável da
sua parte, Henrique.
Sua aprovação me aqueceu por dentro, um pequeno sinal de que,
talvez, eu estivesse no caminho certo para reconstruir, mesmo que
minimamente, a ponte entre nós.
— Eu só quero estar preparado, — admiti, permitindo que minha
vulnerabilidade se mostrasse. — Para eles, e... para você, Maísa.
Quero ser o apoio que vocês precisam.
Ela baixou o olhar por um momento, como se ponderasse minhas
palavras, e então voltou a me encarar, uma intensidade nova em
seus olhos castanhos.
— Isso significa muito, Henrique. Realmente. — Eu podia ouvir a
sinceridade em sua voz. — Eu... eu também tenho lido bastante.
Talvez possamos... compartilhar notas, eu acho?
A ideia de que ela estava me dando um pequeno espaço em algo
tão pessoal e importante quanto a preparação para a chegada dos
nossos filhos fez meu coração bater mais forte. Era um passo
pequeno, mas significativo, na direção de uma nova forma de
conexão entre nós.
— Eu adoraria isso, — respondi, um sorriso genuíno iluminando
meu rosto.
— Como foi para você, descobrir que eram três bebês, e não só
um? — perguntei, curioso. — Quando você me disse, achei que eu
fosse desmaiar, muito honestamente — admiti e Maísa soltou uma
gargalhada alta.
Seu olhar foi para cima, como se ela pudesse ver o momento no
ar.
— Acho que foi... Mágico. — Ela voltou a me encarar. — Foi logo
que cheguei a Dois Corações. As coisas ainda estavam muito difíceis,
ainda pareciam abstratas demais, — contou, e meu coração se
apertou, mas engoli a culpa. Me reconectar com Maísa significava
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estar lá por ela, e ouvir sobre as consequências das minhas próprias


ações era parte disso. — Mas quando eu soube que havia três vidas
dentro de mim... Três, e não uma... Não sei explicar, tudo
simplesmente mudou.
Por um breve momento, a tensão que havia nos cercado pareceu
se dissipar, substituída por uma conexão suave, mas tangível. Maísa
prendeu uma mecha de cabelo atrás da orelha, piscando os longos
cílios para mim. Eu assenti.
Ouvindo-a, senti um misto de alegria e pesar. Alegria pelo milagre
que essas três pequenas vidas representavam, e pesar por não ter
estado ao lado dela desde o início dessa jornada.
— Posso imaginar, — respondi, a voz embargada pela emoção.
Ela me observou por um momento, uma complexidade de
emoções passando por seu olhar. Então, com uma graça que sempre
admirei, Maísa acenou levemente com a cabeça.
— Eu estava apavorada — admitiu, soltando uma risada logo
depois. — Na maioria dos dias, ainda estou.
Balancei a cabeça, entendendo perfeitamente a magnitude do
que ela estava sentindo. A vulnerabilidade compartilhada nesse
momento parecia diminuir a distância que havia entre nós.
Nesse instante, percebi o quanto cada gesto dela me hipnotizava,
o quanto eu ansiava por esses momentos de proximidade. Estava
claro que Maísa sentia algo também, uma conexão que, apesar de
suas resistências, ainda pulsava forte entre nós.
— Nunca vou parar de dizer o quanto eu lamento, Maísa, lamento
não ter estado lá para compartilhar esse momento com você. — A
sinceridade em minha voz era palpável, uma tentativa de expressar
o remorso que sentia por todas as dores passadas. — Mas você
nunca mais vai enfrentar qualquer coisa sozinha, isso eu posso
prometer.
Ela me considerou, os olhos buscando nos meus alguma certeza
para se agarrar. Então, com uma leveza que não esperava, ela

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acenou com a cabeça.
— Eu sei, — ela disse finalmente, sua voz baixa, mas firme. — Eu
sei que você lamenta, Henrique. E eu... eu aceito sua promessa.
Havia uma cautela em sua aceitação, uma hesitação, mas era
mais um pequeno passo. Foi Maísa quem mudou de assunto, talvez
buscando aliviar a tensão emocional que nossas conversas sempre
pareciam carregar.
O garçom se aproximou com nossos pratos alguns minutos
depois, e comemos enquanto conversávamos sobre trivialidades. O
papo fluindo de maneira mais natural a cada segundo até
chegarmos ao assunto Borges.
— E a Borges & Associados? Como estão todos lá? — Maísa
perguntou, um brilho de curiosidade genuína em seus olhos.
— A empresa está bem. E sim, a situação com a máquina de café
aconteceu de novo, — falei, já rindo. — Você se lembra daquela vez
que ela começou a espumar por todos os lados, como se estivesse
possuída?
Maísa soltou uma gargalhada, cobrindo a boca com a mão numa
tentativa inútil de conter o som.
— Como poderia esquecer? Foi um dos dias mais engraçados lá.
Rimos juntos, e por um momento, foi como se o peso do mundo
tivesse sido suspenso. Mas então, o riso de Maísa diminuiu, e ela me
olhou com uma nova seriedade.
— Todos estão bem, provavelmente, ainda melhores desde o meu
afastamento — eu disse, não querendo que seus pensamentos
fossem para terras que não nos interessassem.
Maísa franziu as sobrancelhas.
— Como assim, Henrique? Todos adoram sua liderança.
Dessa vez, quem riu fui eu.
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— Pode ser que eu tenha me tornado um pouco difícil de lidar,


depois que tudo aconteceu — contei e Maísa piscou antes de suas
sobrancelhas se erguerem em surpresa.
— Um pouco difícil de lidar?
— De acordo com Thomaz, ninguém estava me aguentando mais
— repeti as palavras do meu amigo, um sorriso irônico se formando
em meus lábios.
Maísa riu.
— Isso soa como algo que o Thomaz diria, — comentou, seu
sorriso suavizando as linhas do seu rosto.
— Ele até organizou uma intervenção. Disse que eu estava
transformando a empresa em um “reino de terror'” com meu mau
humor, — confessei, tentando manter o tom leve, embora a verdade
por trás da piada doesse um pouco.
— E como você reagiu?
— Como você acha que eu reagi? — devolvi a pergunta,
arqueando uma sobrancelha. — Eu o ignorei, é claro. E tentei, a
todo custo, afastá-lo também. Eu estava chafurdando na lama, e
queria continuar exatamente assim.
A expressão de Maísa mudou. O sorriso em seu rosto se apagou e
ela umedeceu os lábios.
— Eu sinto muito por isso.
Sorri tristemente.
— A única pessoa que precisa sentir, sou eu, Maísa. Eu sou o
único a quem posso culpar. Mas, sabe? Thomaz é persistente. Ele
não me deixou afundar completamente. Se recusou a se afastar e,
depois do acidente... Foi graças a ele que comecei a buscar ajuda, a
tentar me entender melhor e a entender o que tinha acontecido
conosco.
Os olhos de Maísa refletiram uma mistura de compaixão e algo
mais, algo que eu não conseguia identificar.

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— Isso é bom, Henrique. É importante ter alguém assim — ela
disse, sua voz suave, mas firme. — Alguém que não desista de você,
mesmo quando você desiste de si mesmo.
— Sim, é, — concordei, sentindo uma onda de gratidão por
Thomaz e por tudo que ele havia feito. — E é por isso que eu estou
aqui, tentando... tentando fazer as coisas direito desta vez. Não só
com a empresa, mas com você, com os nossos filhos.
O assunto da Borges & Associados tinha se desviado para
territórios mais pessoais, mas era inevitável. Tudo estava interligado:
minhas decisões, meus erros, e a jornada para me redimir.
— Acredito em segundas chances, Henrique, — Maísa disse
depois de uma pausa, seus olhos encontrando os meus. — Todos
merecem a oportunidade de corrigir seus erros. Mas isso não
significa que tudo volta a ser como antes — lembrou, se a si mesma
ou a mim, eu não sabia dizer.
— Eu sei, — respondi, com firmeza — E eu não espero que volte.
Só espero poder construir algo novo, algo melhor, para todos nós.
Sinto muito por você ter se sentido obrigada a se afastar dos amigos
que tinha feito lá, por minha culpa, — admiti, o peso da
responsabilidade por suas escolhas passadas assentando sobre mim.
O ar em torno de nós tinha mudado; o almoço não era mais
apenas um encontro casual após uma consulta médica.
No entanto, assim que Maísa percebeu a facilidade com que
retomávamos nossa antiga intimidade, algo mudou. Sua postura se
fechou, e ela rapidamente encontrou uma desculpa para encerrar
nosso almoço.
— Eu... eu preciso ir. Já fiquei mais do que deveria, — disse,
levantando-se apressadamente, mesmo que ainda não tivesse
terminado o prato.
Eu a observei se afastar, sentindo uma mistura de gratidão pelo
momento compartilhado e uma resolução firme de continuar
trabalhando por uma chance de reconstruir o que havíamos perdido.
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O almoço poderia ter terminado, mas minha determinação de


reconquistar Maísa, de reparar os erros do passado e construir um
futuro juntos, só se fortaleceu. Sabia que o caminho à frente seria
difícil, cheio de obstáculos e mal-entendidos.
Mas também sabia que cada pequeno passo, cada conversa, cada
momento compartilhado nos aproximava de algo novo. E eu estava
disposto a enfrentar o que fosse necessário para chegar lá.

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Geórgia cruzou os braços, recostando-se à bancada da cozinha da
padaria em um ponto cego que não podia ser visto pelos clientes,
através da janela de vidro.
Continuei contando os cupcakes e organizando-os nos recipientes
de congelamento, achando que minha irmã só queria descansar por
alguns minutos, mas quando ela continuou a me encarar depois de
vários deles, virei o rosto em sua direção.
— Henrique acabou de entrar e sentar na mesa do canto —
avisou, cruzando os braços e erguendo uma sobrancelha.
A notícia deveria me surpreender, mas, de alguma forma, já havia
se tornado parte da nova normalidade.
— E isso não é bom? — eu disse, tentando manter minha voz
neutra, embora meu coração batesse um pouco mais rápido com a
menção de seu nome. — Mais um cliente. — Dei de ombros. —
Uhul! — Fingi comemorar e os olhos de Geórgia se estreitaram para
mim.
Minha irmã suspirou, cruzando os braços.
— Ele tem aparecido aqui todos os dias pelas últimas três
semanas. Todos os dias.
Eu pausei, uma bandeja de cupcakes na mão, o peso da situação
finalmente me atingindo.
— Não sei o que você quer que eu faça sobre isso, — respondi,
uma defensiva automática erguendo-se em mim.
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— Eu só... Quero saber como você está lidando com isso. Com
ele sendo tão... presente, — Geórgia pressionou, sua preocupação
rompendo a barreira da frustração.

Coloquei a bandeja no balcão, permitindo-me um momento para


realmente ponderar sobre a pergunta dela. A presença constante de
Henrique, uma sombra gentil em meu dia a dia, havia se tornado um
ponto de reflexão.
— Não tem muito com o que lidar, — eu disse finalmente, minhas
mãos encontrando outra tarefa para se ocuparem. — Fico feliz que
ele esteja se fazendo presente pelos bebês, mas isso é tudo.
Geórgia me observava, procurando sinais de hesitação ou
conflito. Mas eu tinha me firmado nessa realidade.
A determinação de Henrique em se fazer presente, especialmente
após nossa conversa durante nosso almoço, semanas atrás, era algo
que eu não podia ignorar.
Ele estava lá, dia após dia, uma constância inabalável que eu não
esperava, mas que, de alguma forma, me trazia um conforto
inesperado. Era evidente que ele estava tentando se reconectar, não
apenas comigo, mas com a vida que estávamos prestes a criar
juntos para nossos filhos.
A importância dessa conexão para o bem-estar e a estabilidade
dos nossos bebês era algo que eu reconhecia e valorizava. Eles
mereciam ter um pai presente, alguém que se importasse e
participasse ativamente de suas vidas desde o início.
Por outro lado, a clareza das fronteiras entre nós se tornou um
mantra pessoal para mim. Após sua rejeição e a dor que se seguiu,
eu sabia que precisava proteger meu coração e minha paz de
espírito.
As barreiras que estabeleci não eram feitas de rancor, mas de
necessidade — uma tentativa de curar e seguir em frente, de
maneira saudável e consciente.

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Eu estava resoluta em manter nosso relacionamento estritamente
focado na co-parentalidade, na colaboração como pais, sem permitir
que as linhas do passado romântico se borratassem. Essa resolução,
no entanto, não vinha sem seus desafios.
Ver Henrique todos os dias, testemunhar seu esforço em se fazer
presente e participativo, despertava em mim uma miríade de
sentimentos contraditórios.
Cada gesto de cuidado, cada olhar de ternura dirigido aos
espaços que logo seriam preenchidos por nossos filhos, cada
tentativa de diálogo aberto e honesto... Tudo isso me fazia
questionar a rigidez das barreiras que eu havia erguido.
Mas eu permanecia firme em minha decisão. Por mais que a
presença constante de Henrique mexesse comigo de maneiras que
eu não estava pronta para explorar, eu sabia que as fronteiras eram
essenciais.
Elas eram o alicerce sobre o qual eu podia construir um novo
começo para mim e para nossos filhos — um começo que não
negava o passado, mas que também não permitia que ele definisse
nosso futuro.
Era uma linha tênue para se caminhar, entre abrir espaço para
Henrique como pai enquanto mantinha fechadas as portas para
qualquer outra possibilidade entre nós.
E, embora cada dia trouxesse consigo uma nova prova dessa
complexidade, eu estava determinada a manter o equilíbrio.
— Você tem certeza? — Geórgia perguntou, uma última tentativa
de sondar meus sentimentos verdadeiros.
— Tenho, — assegurei a ela, e a mim mesma. — O que importa
agora são os bebês. Tudo o mais... podemos manejar conforme
acontece.
— Mesmo com ele te levando em casa praticamente todos os
dias?
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— Falamos sobre as crianças, ou fazemos algo por elas. Hoje por


exemplo, temos aula de parto.
Geórgia afundou os dentes no lábio inferior, mas acenou com a
cabeça, parecendo aceitar minha resposta, pelo menos por ora.
Voltamos ao trabalho, o silêncio entre nós preenchido pelo som
da padaria funcionando, mas minha mente vagava, inquieta.
Henrique estava ali, tão perto e ainda assim mantido a distância por
barreiras invisíveis que eu me recusava a cruzar.
Eu sabia que, apesar das minhas afirmações, o caminho à nossa
frente era incerto. E a cada dia que Henrique escolhia sentar-se
naquela mesa, ele reafirmava sua presença em minha vida de uma
maneira que eu ainda estava tentando entender.

Os olhares cúmplices e as mãos entrelaçadas ao nosso redor


disparavam um turbilhão de emoções em meu peito que eu lutava
para manter sob controle.
Dentro da sala espaçosa e acolhedora onde a aula de parto
acontecia, eu via um mosaico de casais em diferentes estágios de
expectativa e emoção.
A instrutora, uma mulher de voz suave e gestos calmos, movia-se
entre nós, compartilhando sabedoria e técnicas destinadas a nos
preparar para o momento do parto.
Ela falava sobre a importância da respiração profunda,
demonstrava posições que facilitariam o trabalho de parto e
enfatizava o papel crucial do apoio e da presença do parceiro.
Ao meu redor, eu via casais praticando os exercícios propostos,
homens posicionando suas mãos nas costas de suas parceiras em

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um gesto de suporte, mulheres fechando os olhos e se concentrando
na respiração.
Havia risadas nervosas, trocas de olhares carregadas de amor e
expectativa, e uma atmosfera que unia a todos nós naquela jornada
compartilhada.
Henrique estava ao meu lado, e a maneira como ele me tocava
era cautelosa, sempre buscando minha permissão com o olhar antes
de qualquer coisa.
Quando a instrutora demonstrou uma técnica de massagem para
aliviar a dor nas costas, suas mãos encontraram a curva da minha
lombar com uma gentileza surpreendente.
Ele aplicava a pressão de forma tão cuidadosa, tão atenta às
minhas reações, que era difícil não me sentir profundamente
conectada a ele, mesmo que por um breve momento.
— Assim está bom? — sussurrou, sua voz baixa apenas para
mim, preocupado em garantir meu conforto.
— Sim, — consegui responder, minha atenção dividida entre a
sensação de suas mãos e as orientações da instrutora, que agora
nos guiava através de uma série de exercícios de respiração.
Eles eram projetados para aliviar a tensão e promover o
relaxamento, técnicas essenciais que seriam valiosas durante o
trabalho de parto.
Marli começou nos orientando a adotar uma postura confortável,
sentados com as costas retas e os pés firmemente plantados no
chão, uma posição que facilitaria a respiração profunda.
— Vamos começar com a respiração diafragmática, — disse, sua
voz calma e encorajadora preenchendo o ambiente. — Coloquem
uma mão sobre o abdômen e a outra no peito. Quero que respirem
profundamente pelo nariz, sentindo o diafragma se expandir, e não o
peito.
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Seguindo suas instruções, fechei os olhos e foquei em minha


respiração. Henrique, ao meu lado, fazia o mesmo. Havia um silêncio
concentrado enquanto todos na sala se dedicavam à prática.
— Inspirem profundamente, contando até quatro, — continuou a
instrutora. — Segurem a respiração por um momento, e então
expirem lentamente pela boca, contando até seis.
O exercício tinha um ritmo suave, quase meditativo, que me
ajudava a me centrar e a esquecer, por um momento, as
complexidades da minha relação com Henrique.
Sentia o movimento do meu abdômen sob minha mão, a
expansão e a contração, um lembrete do poder e da capacidade do
meu próprio corpo.
— Agora, vamos tentar a respiração “sopro” — Marli instruiu. —
Quando inspirarem, quero que imaginem que estão soprando
através de um canudo. É uma respiração mais rápida e superficial,
que pode ajudar a gerenciar a dor durante as contrações.
Praticamos juntos, o som coletivo da nossa respiração
preenchendo a sala, um coro de futuros pais aprendendo a navegar
as águas desconhecidas do parto.
Henrique, ocasionalmente, lançava-me olhares cheios de uma
preocupação terna, assegurando-se de que eu estava confortável
com os exercícios.
— Lembrem-se, estas técnicas são ferramentas que vocês têm à
disposição. Pratiquem em casa, familiarizem-se com elas. Elas
podem ser incrivelmente úteis. A respiração é sua maior aliada, —
Marli disse, incentivando-nos a nos conectarmos com nosso corpo e
com o processo natural do parto.
Em um determinado momento, Henrique e eu praticávamos uma
posição sugerida, na qual eu me inclinava para frente, apoiada em
uma bola de pilates, e ele me ajudava a manter o equilíbrio.
Sua presença era uma constante, um apoio físico e emocional
que, apesar de todas as minhas resoluções, eu não podia negar que

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era reconfortante. A aula de parto era um microcosmo de tudo que
estava por vir, um lembrete vívido das transformações, desafios e
alegrias que o futuro nos reservava.
E, enquanto eu observava os outros casais, não pude deixar de
me perder em pensamentos sobre o que poderia ter sido, sobre o
desejo profundo de compartilhar não apenas este momento, mas
todos os momentos, com Henrique de uma maneira que fosse
verdadeira e completa.
Observava os outros casais, os toques suaves, os sussurros de
encorajamento, e uma pontada de desejo atravessava meu coração.
Desejava, mais do que tudo, que a cumplicidade que víamos ali
pudesse ser nossa também, que a conexão que Henrique e eu
compartilhávamos naquele momento fosse real, não apenas uma
faceta de uma relação complexa marcada por decisões passadas.
Cada vez que Henrique se aproximava, para me ajudar com um
exercício de respiração ou para ajustar minha postura, meu corpo
reagia de maneira traiçoeira.
Sua proximidade era um lembrete constante do que havíamos
perdido, do que eu havia resolvido deixar para trás. A voz dele,
calma e firme, guiando-me através dos exercícios, fazia meu coração
acelerar, uma reação que eu repreendia internamente.
— Você está bem? — Henrique perguntou em certo momento,
sua preocupação evidente ao notar minha respiração
descompassada.
— Estou, — respondi rapidamente, um pouco mais ríspida do que
pretendia. — Só... pensando.
Ele assentiu, dando-me espaço, mas seu olhar permanecia
carregado de uma pergunta não verbalizada.
Estava claro que, apesar dos limites que eu havia imposto,
Henrique ainda se importava profundamente, ainda desejava uma
conexão mais profunda do que a que eu estava disposta a oferecer.
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A aula prosseguiu, e com ela, a luta interna entre o que meu


coração ansiava e o que minha mente insistia ser o caminho certo. A
cada risada compartilhada, a cada troca de olhares, eu sentia as
barreiras ao redor do meu coração balançarem, ameaçando ceder.
Mas, ao mesmo tempo, a realidade da nossa situação me
mantinha ancorada. Eu havia prometido a mim mesma que Henrique
seria apenas o pai dos meus filhos, nada mais. Permitir-me sonhar
com algo além disso era arriscar o coração partido que eu havia
cuidadosamente reconstruído.
A aula terminou, e nos levantamos para ir embora. A essa altura,
a complexidade dos meus sentimentos já agia como uma bigorna
esmagadora.
Eu sabia que, independentemente do que meu coração
desejasse, a jornada à nossa frente exigiria uma força e uma clareza
que eu ainda estava aprendendo a cultivar.
Henrique e eu estávamos reconstruindo nossa relação, sim, mas
dentro dos limites que eu havia definido. E, por mais que doesse,
por mais que cada fibra do meu ser desejasse por uma realidade
diferente, eu não podia. Sabia que não podia.

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Não eram os corredores estéreis e iluminados do hospital que
faziam meu coração acelerar. Era o peso da responsabilidade e a
antecipação do desconhecido, cada passo nos aproximando da sala
onde Maísa seria preparada para a cesárea.
A decisão da médica, baseada no bem-estar de Maísa e dos
bebês, parecia a mais prudente, mas isso não diminuía a ansiedade
que sentia.
Segurei a mão de Maísa com força, tentando transmitir a ela toda
o apoio que conseguia reunir.
Ela estava calma, notavelmente serena diante da iminência do
parto, uma força tranquila que sempre admirei nela. Mas, sob a
superfície dessa calma, eu sabia que havia uma maré de
sentimentos complexos, tão tumultuada quanto a minha.
Quando chegamos à sala de preparação, um silêncio denso nos
envolveu. Era um ambiente de contraste palpável, onde a
antecipação e a serenidade se encontravam.
As paredes, pintadas num tom suave de azul, se esforçavam para
transmitir uma sensação de calma, enquanto a iluminação, embora
artificial, era ajustada para ser o menos invasiva possível, imitando a
luz natural do dia.
Ao centro, uma cama de hospital com lençóis impecavelmente
brancos dominava o espaço, pronta para acolher Maísa. Ao lado
dela, uma pequena mesa de metal continha instrumentos cirúrgicos
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meticulosamente organizados, cada um reluzindo sob a luz suave,


sugerindo a precisão e o cuidado que a equipe médica empregaria
durante o procedimento.
Equipamentos de monitoramento, essenciais para acompanhar os
sinais vitais de Maísa e dos bebês durante a cesárea, estavam
dispostos de maneira estratégica ao redor da cama. Seus displays
digitais piscavam em intervalos regulares, prontos para serem
ativados assim que o procedimento começasse.
Havia também uma cadeira próxima à cama, destinada a mim,
permitindo que eu estivesse ao lado de Maísa, oferecendo minha
presença como um pilar de suporte.
Um cheiro antisséptico permeava o ar, um lembrete constante da
natureza clínica do ambiente, mas a equipe médica, com suas
vestimentas cirúrgicas e expressões concentradas, movia-se com
uma tranquilidade que inspirava confiança. Eles trocavam
informações em um tom baixo e profissional.
A equipe médica moveu-se ao redor de nós com eficiência
tranquila, preparando tudo para a cirurgia. Cada movimento era
calculado, com uma tranquilidade que apenas a prática constante
pode proporcionar, transformando o complexo em rotineiro.
Eles preparavam o cenário para a cesárea com uma atenção
meticulosa aos detalhes, assegurando que tudo estivesse no lugar
certo para o procedimento.
Uma enfermeira, com um sorriso tranquilizador, aproximou-se de
Maísa e começou a ajudá-la a se posicionar confortavelmente na
cama, ajustando os travesseiros para oferecer suporte adequado.
— Vamos fazer tudo para que você se sinta o mais confortável
possível, Maísa, — disse ela, com uma voz suave. — Primeiro, vamos
posicionar você deitada com uma leve inclinação. Isso vai ajudar a
manter a circulação sanguínea adequada e facilitar a respiração.
Maísa assentiu, agradecida pela atenção e pelo cuidado.

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— E o que mais vai acontecer? — perguntou, tentando esconder
seu nervosismo.
— Vamos preparar você para a anestesia. Um anestesista virá
conversar com você sobre as opções de anestesia regional, que é
comumente usada em cesáreas para que você fique acordada e
confortável durante o parto. Você sentirá pressão, mas não dor, —
explicou a enfermeira, verificando os monitores ao lado da cama.
— E depois da anestesia? — Maísa inquiriu, mesmo sabendo de
cor e salteado cada uma das etapas.
— Uma vez que a anestesia faça efeito, o cirurgião começará a
cesárea. Vamos levantar uma tela na altura do seu peito para
manter o campo cirúrgico estéril e proporcionar privacidade. Mas
não se preocupe, comunicaremos tudo o que está acontecendo.
Assim que os bebês nascerem, a equipe pediátrica estará pronta
para cuidar deles imediatamente. Se tudo estiver bem, e a situação
permitir, faremos o contato pele a pele o mais rápido possível, — a
enfermeira respondeu, oferecendo a Maísa um olhar encorajador. —
Estamos aqui por você, Maísa. Qualquer coisa que precisar, é só nos
dizer, — concluiu a enfermeira, antes de prosseguir com os
preparativos.
Ela verificava os sinais vitais de Maísa, ajustava os monitores ao
seu redor e assegurava que os equipamentos de monitoramento
estivessem funcionando perfeitamente, garantindo uma vigilância
constante sobre a saúde de Maísa e dos bebês durante a cirurgia.
Outro membro da equipe, um técnico, cuidadosamente dispunha
os instrumentos cirúrgicos na mesa ao lado da cama. Cada pinça,
tesoura e agulha era colocada com precisão, prontos para serem
utilizados pelo cirurgião.
O anestesista, aproximou-se para discutir com Maísa a
administração da anestesia. Com uma calma profissional, explicou o
processo da anestesia regional, assegurando a Maísa que ela estaria
confortável e sem dor durante o parto.
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Ao fundo, o cirurgião revisava o prontuário de Maísa, trocando


informações finais com a equipe. Sua postura era de total
concentração, mas transmitia confiança.
Enquanto isso, uma enfermeira pediátrica preparava o berçário
adjacente, garantindo que tudo estivesse pronto para receber os
bebês imediatamente após o nascimento.
A eficiência com que a equipe médica se movia criava uma
atmosfera de cuidado, mas nem ela era capaz de me acalmar. Maísa
ergueu os olhos, que ainda não haviam parado de correr de um lado
para o outro na sala, desde que entramos, e me encarou.
Levei a mão até a sua bochecha, acariciando a pele morna ali. A
touca cirúrgica parecia deixá-la ainda mais linda. Tudo fazia com que
aquela mulher parecesse ainda mais linda.
— Estamos juntos — garanti e ela piscou, uma lágrima
emocionada deslizando pela sua bochecha enquanto Maísa assentia.
Ela me deu um sorriso pequeno.
— Eu sei — murmurou. — Eles estão chegando. Não acredito que
eles estão chegando, Henrique.
— Estão, amor. Eles estão — respondi no mesmo tom sussurrado.
Colei minha testa à dela, senti o calor de sua pele e o ritmo
acelerado de sua respiração. O desejo de ser mais do que apenas o
pai de nossos filhos, de ser seu parceiro nesse e em todos os
momentos, inundou meu peito com a força de uma tempestade.
Queria beijá-la, dizer-lhe o quanto a amava e o quanto desejava
que pudéssemos ser uma família de verdade, não apenas na criação
conjunta de nossos filhos, mas em cada aspecto de nossas vidas.
Maísa não me afastou. Por um breve instante, permitiu-se ficar
ali, conectada comigo, compartilhando a tensão, o medo e a
esperança que aquele momento representava.
Não houve palavras; nenhum de nós precisava delas. A
complexidade de nossos sentimentos estava suspensa, substituída

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por uma simples verdade: estávamos juntos, enfrentando o futuro
incerto, mas juntos.
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Eles eram tão pequenos.


Tão frágeis.
Mas já tão amados.
Meu coração se apertava a cada respiração que eles davam, uma
mistura de preocupação e admiração preenchendo cada espaço do
meu ser.
Leon, Gael e Eduardo haviam chegado ao mundo mais cedo do
que a natureza ditava. Sabia, desde o início, que essa era uma
possibilidade. Mas havia uma diferença gritante entre saber e vê-los
frágeis e precisando de cuidados especiais que apenas o hospital
poderia oferecer.
Parada à entrada da UTI neonatal, eu me vi absorvida por um
mundo completamente diferente de tudo que já havia
experimentado. Era um espaço repleto de contrastes — a tecnologia
avançada se entrelaçava com a vulnerabilidade humana de uma
maneira que era quase palpável.
As paredes eram pintadas em tons suaves e iluminação era
difusa, projetada para ser gentil com os olhos dos nossos pequenos
guerreiros que lutavam por suas vidas em cada berçário.
O som ambiente era uma mistura de bips suaves das máquinas,
sussurros dos profissionais da saúde e, ocasionalmente, o choro
frágil de um recém-nascido.

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Cada som parecia carregar um peso emocional, um lembrete
constante das muitas vidas que começavam ali com batalhas que
seus corpos minúsculos não deveriam ter que enfrentar tão cedo.
Observei as incubadoras, cada uma abrigando um milagre
pequeno e precioso. Os bebês, nossos bebês, estavam ali,
conectados a monitores e alimentados por tubos, uma visão que
partia meu coração e ao mesmo tempo enchia-me de esperança.
Eles pareciam ainda menores envoltos em mantas e sob o calor
das lâmpadas, projetadas para imitar o abraço aconchegante do
útero. Eu experimentava, desde que me recuperara completamente
da anestesia, uma montanha-russa de emoções.
Havia medo, sim, e uma ansiedade que parecia se enraizar no
fundo do meu estômago. Mas também havia uma sensação de
admiração pela resiliência da vida, um sentimento de gratidão
inexprimível pelos cuidados dedicados aos nossos filhos.
O vidro que nos separava era ao mesmo tempo uma barreira
física e emocional, mas naquele momento, meu foco estava
inteiramente na cena diante de mim.
Henrique estava vestido com a roupa especial para entrar na UTI,
uma touca cobrindo seus cabelos e luvas protegendo suas mãos.
Mesmo com todas essas camadas de proteção, a ternura de seus
gestos era palpável.
Ele tocava delicadamente o vidro do berçário onde nossos filhos
repousavam, seus olhos cheios de uma mistura de admiração e
preocupação. Vestida em um roupão do hospital, sentia o peso da
minha própria recuperação física, um lembrete constante da cesárea
recente.
Eu estava sozinha naquele momento, parada na porta, a
enfermeira que me acompanhara até ali havia retornado para buscar
algo que eu precisava.
Henrique, imerso em sua conexão com nossos filhos, não notou
minha presença inicialmente. A intensidade de seu foco era tanto um
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testemunho de seu amor quanto um véu que temporariamente o


isolava do mundo ao redor.
— Eles são tão pequenos, — ouvi sua voz abafada pelo vidro, um
sussurro cheio de maravilhas e medos.
Meu coração se apertou ao ouvir suas palavras, um misto de
emoções fluindo por mim. Observar Henrique com eles, tão
envolvido e amoroso, despertava em mim sentimentos que eu havia
prometido guardar.
Senti uma lágrima escorrendo pelo meu rosto, e a limpei
rapidamente. A proximidade de Henrique com nossos filhos, a
maneira como ele já os amava, incondicionalmente, mexia comigo
de uma forma que eu não estava preparada para admitir. Era um
lembrete de que, não importa as decisões que tomamos ou os
caminhos que escolhemos seguir, algumas conexões são
indestrutíveis.
Henrique se virou levemente, como se sentisse meu olhar sobre
ele, e nossos olhos se encontraram através do vidro. Seu rosto
passou de concentrado a surpreso, e então, suavizou-se com uma
preocupação visível.
Ele se aproximou do vidro, seu olhar cheio de perguntas sobre
meu bem-estar.
— Você deveria estar descansando — sussurrou através do vidro,
sua voz carregada de cuidado.
— Eu precisava vê-los... e você — admiti, minha voz fraca, mas
firme.
A preocupação em seu rosto deu lugar a uma expressão suave,
entendendo o impulso que me trouxe até ali.
Por um breve momento, compartilhamos um silêncio cheio de
significados, uma comunicação silenciosa que transcendia palavras.
Por mais que eu me esforçasse para manter Henrique a uma
distância segura, a realidade de nossa situação forçava-nos a uma

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proximidade emocional que eu não tinha certeza de como navegar.
Mas ali, com ele me olhando com tanta preocupação e carinho,
era impossível não querer mais do que a incerteza.
— Venha, — ele gesticulou, sua voz ainda um sussurro, mas a
intenção clara mesmo através do vidro.
Hesitei, ainda lutando com a complexidade dos meus próprios
sentimentos. Mas então, dei um passo à frente que parecia significar
muito mais do que apenas a decisão de me juntar a ele.
De alguma forma, eu parecia estar cruzando a linha invisível que
havia entre mim e Henrique, senti como se estivesse cruzando uma
ponte em nossa relação, uma que havíamos construído juntos nos
últimos meses, peça por peça.
Henrique rapidamente puxou uma poltrona para perto da
incubadora onde nossos bebês repousavam, um gesto simples, mas
carregado de significado. Ele estava atento, não apenas aos nossos
filhos, mas também à minha condição.
Sentando-me cuidadosamente, ele se assegurou de que eu
estivesse confortável antes de voltar sua atenção para os bebês.
— Eles são tão lindos, não são? — Henrique murmurou, sua voz
baixa, carregada de admiração enquanto observávamos os
trigêmeos através do vidro da incubadora.
Eles eram idênticos, cada um com pequenos traços que já
começavam a mostrar sua individualidade, mesmo em seu estado
vulnerável.
— Perfeitos, — consegui responder, minha voz embargada pela
emoção.
Era difícil não se maravilhar com a pura perfeição diante de nós,
três seres que compartilhavam tanto de nós mesmos. Nossa atenção
se dividia entre eles.
Cada um dos trigêmeos, e poderia ser loucura da minha cabeça,
mas mesmo recém-nascidos, eles pareciam já começar a mostrar
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suas individualidades.
— Olha só, este aqui, — Henrique murmurou, apontando
delicadamente para o primeiro dos trigêmeos, — ele tem a mesma
expressão séria que você costuma ter quando está lendo algo
importante.
Eu ri baixinho, emocionada com a comparação mesmo sabendo
que para qualquer outra pessoa, sua afirmação não soaria como
qualquer coisa além de um absurdo.
— E esse, — disse eu, movendo minha mão para indicar o
segundo bebê, — parece sempre estar procurando por algo, com os
olhinhos se movendo mesmo quando estão fechados. Ele tem a sua
curiosidade, Henrique.
— E olhe para o Leon, — Henrique apontou para o terceiro bebê,
um sorriso de puro encanto iluminando seu rosto. — Já percebeu
como ele está aninhado pelos outros dois? Como se eles soubessem
que precisam protegê-lo? Ele foi o último a nascer.
— É incrível, — concordei, outra lágrima de felicidade escapando
involuntariamente. — Eles são tão pequenos e já tão unidos. Três
partes de um todo.
Henrique se voltou para mim, os olhos brilhando não apenas com
amor pelos nossos filhos, mas também com outra emoção.
— Eles são perfeitos, Maísa. Cada um deles. Obrigada — disse, e
limpou uma lágrima de escapou pelo canto dos seus olhos.
— Não, Henrique. Você não precisa me agradecer — respondi, a
voz embargada pela emoção. — Nós fizemos isso juntos.
A sala parecia suspensa no tempo, um santuário de vidro que
abrigava não apenas nossos filhos, mas também os tênues fios de
uma conexão que, apesar de toda a minha resistência, continuavam
se reerguendo entre nós.
— Eles vão precisar de nós, — ele disse e acariciou minha
bochecha com reverência, limpando o rastro molhado nela. Sua voz

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firme apesar das próprias lágrimas. — De nós juntos, Maísa. E eu...
Eu quero fazer isso direito. Por eles.
— Eu também quero, Henrique. E vamos fazer, — prometi,
sentindo uma determinação se fortalecer dentro de mim. — Juntos,
— acrescentei, permitindo-me acreditar na força dessa palavra.
Henrique acenou, um gesto simples, mas carregado de
significado. Ele então olhou novamente para os nossos bebês, um
sorriso suave aparecendo em meio à contemplação.
Era um momento de vulnerabilidade compartilhada, de
reconhecimento mútuo de que, independentemente dos desafios,
havia uma beleza inegável naquilo que fizemos.
A complexidade dos nossos sentimentos, o peso das nossas
escolhas passadas e as incertezas do futuro pareciam, por um breve
momento, menos assustadoras.
A presença de Henrique, seu agradecimento sincero e suas
lágrimas, revelavam um homem disposto a enfrentar suas
vulnerabilidades, o mesmo homem por quem eu havia me
apaixonado, meses antes.
E, enquanto estávamos ali, unidos pela preocupação e amor por
nossos trigêmeos, eu comecei a vislumbrar a possibilidade de um
novo capítulo para nós, não apenas como pais, mas como parceiros
em uma jornada repleta de esperança e renovação.
— Sim, juntos. Por eles, e talvez... por nós também — Henrique
me respondeu como se estivesse lendo meus pensamentos e
desejos, uma promessa implícita em seu olhar.
A conversa que se seguiu foi breve, mas repleta de significado.
Continuamos procurando pequenas características que notávamos
neles, como os minúsculos dedos que se moviam suavemente ou a
forma como pareciam responder ao som de nossas vozes, mesmo
em sono leve.
A ternura com que ele cuidava de mim e a dedicação que
mostrava aos nossos bebês tornavam a fissura em minhas defesas
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cada vez maior, mesmo que eu tivesse acabado de reconhecer sua


existência.
Embora incertas, as possibilidades que se desdobravam diante de
nós no silêncio da UTI neonatal eram um lembrete do poder do
amor incondicional.
Um amor que, eu me vi admitindo, pela primeira vez, ainda
existia entre nós, transformado, talvez, mas não menos real.
E enquanto eu me permitia experienciar plenamente a
complexidade daquele instante, sabia que, de alguma forma, nós
dois — não, nós cinco — encontraríamos nosso caminho juntos,
através da incerteza, onde quer que ele nos levasse.

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— Surpresa! — O coro de três vozes familiares gritou, fazendo a
mãe dos meus filhos parar de andar, ainda com a mão na maçaneta.
Ao abrir a porta da própria casa, carregando cuidadosamente um
dos nossos trigêmeos, Maísa estava preparada para o silêncio e a
calma que imaginava que nos receberiam.
Em vez disso, fomos envolvidos por uma onda de calor humano e
alegria — uma pequena comemoração surpresa organizada pelos
pais, a irmã de Maísa e, secretamente, por mim.
Balões coloridos flutuavam pelo teto da sala de estar, enquanto
guirlandas com as palavras "Bem-vindos, Leon, Gael, Eduardo"
adornavam as paredes.
Uma mesa ao canto estava repleta de doces e um bolo pequeno,
decorado delicadamente com três pequenos ursinhos representando
nossos trigêmeos.
Marta e Rodolfo e Geórgia, nos receberam com sorrisos radiantes
e abraços calorosos. A alegria e alívio, por finalmente terem os netos
e sobrinhos em casa, estavam estampados em seus rostos.
— Bem-vindos ao lar, pequeninos! — exclamou Marta,
aproximando-se cuidadosamente para espiar os bebês nos carrinhos.
— E parabéns aos corajosos pais!
Rodolfo, com um sorriso igualmente amplo, colocou a mão sobre
meu ombro, num gesto de apoio.
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— Você fez um ótimo trabalho, Henrique. Estamos todos muito


orgulhosos.
Geórgia, sempre a mais expressiva, veio até nós com os olhos
brilhando de emoção.
— Mal posso acreditar que eles estão finalmente aqui! Eles são
tão pequenos, tão perfeitos! Maísa, você está bem? Precisa de
alguma coisa? — perguntou, já soltando Leon do carrinho, assim
que entramos, para pegá-lo no colo.
Marta e Rodolfo não demoraram a fazer os mesmo com Gael e
Eduardo. Maísa, surpresa, apenas sorriu, lutando contra as lágrimas
de felicidade.
— Estou bem, obrigada. Só... muito feliz, ela conseguiu dizer, sua
voz tremendo ligeiramente.
Era o primeiro mesversário de Leon, Gael e Eduardo, um marco
que, considerando as circunstâncias desafiadoras de seu nascimento,
parecia merecer todo o reconhecimento e celebração do mundo.
Principalmente porque havia sido esse o dia escolhido pelos
médicos para que nossos trigêmeos recebessem alta do hospital,
finalmente. Observar Maísa sendo surpreendida, seus olhos se
iluminando com uma mistura de choque e felicidade era quase
hipnótico.
A emoção delineada em seu rosto capturava completamente
minha atenção e admiração. O choque inicial rapidamente deu lugar
a um brilho de pura alegria em seus olhos, uma luz que refletia toda
a beleza e a profundidade do seu espírito.
Sua risada, ao reparar na decoração da sala, uma melodia que
aquecia o ambiente e fazia meu coração vibrar em uma frequência
de pura felicidade.
Cada gesto que ela fazia, fosse agradecendo a todos pela
surpresa ou pela atenção delicada que agora dedicavam aos nossos
filhos, mostrava a mulher incrível que ela era.

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Eu a amava — cada parte dela, desde a força que exibia diante
dos desafios até a ternura com que envolvia nossos filhos.
E, àquela altura, já estava hiper consciente de que o amor que eu
sentia por Maísa não era apenas uma questão de admiração
distante; era um chamado para estar ao seu lado, para compartilhar
as alegrias e as lutas, para ser mais do que apenas um coadjuvante
na história de nossa família.
Celebrar o primeiro mês de vida de nossos trigêmeos, era um
lembrete palpável do que havíamos construído juntos. E, enquanto
Maísa se movia com graça e facilidade entre nossos familiares,
segurando nossos filhos com uma confiança tranquila, eu me via
refletindo sobre o futuro.
O amor que eu sentia por ela sacudia meu peito com uma
intensidade que eu nunca havia experimentado. Era um amor que
não pedia permissão, que não conhecia limites — um amor que me
impulsionava a desejar ser tudo o que Maísa e nossos filhos
precisavam e mais.
Por anos, eu tive certeza de que a missão da minha vida era
transformar a Borges & associados na maior potência que ela
poderia ser, mas ali, em Dois Corações, meses depois da minha
chegada, já não me restava dúvidas de que o meu lugar era ao lado
de Maísa, onde quer que ela estivesse.
Prometi a mim mesmo que encontraria a maneira e o momento
certos para expressar tudo o que sentia, para dizer a Maísa o quanto
a amava e o quanto desejava construir um futuro ao lado dela.
Por agora, contentava-me em estar presente, em celebrar cada
pequeno momento, sabendo que cada sorriso, cada olhar
compartilhado nos aproximava ainda mais da possibilidade de um
'nós' pleno e verdadeiro.
— Queríamos que vocês soubessem o quanto são amados e o
quanto esses pequenos já significam para todos nós, — expliquei
quando ela se aproximou de mim alguns minutos depois, com um
olhar que era uma mistura de acusação e diversão no rosto. — E
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eu... queria fazer algo especial para vocês, para nós. Sei que os
últimos meses foram... Difíceis. Nós os queríamos em casa a cada
segundo que eles não estavam. Achei que devíamos recebê-los com
o pé direito.
O ambiente estava repleto de risadas e conversas animadas
enquanto os bebês passavam de colo em colo, alternando entre os
avós e a tia, que mantinham a cautela para não os perturbar.
Maísa mordeu o lábio inferior, me encarando. Seus olhos falavam
sobre tantos sentimentos diferentes que fiquei sem ar. Seus lábios,
no entanto, aqueles que eu queria tão desesperadamente beijar
outra vez, escolheram apenas uma palavra para dizer:
— Obrigada.
Neguei com a cabeça.
— Juntos, Maísa. Sempre.
Ela suspirou e piscou, então umedeceu os lábios e assentiu.
— Juntos, sempre.

O calor suave do corpo pequenino contra o meu me fez erguer


Eduardo até que eu pudesse inspirar profundamente o cheiro do
meu filho. Ele era o último dos trigêmeos a dormir.
E enquanto o carregava pelos poucos passos entre a cadeira de
amamentação, onde antes ele se alimentava no peito da mãe, e o
berço, era impossível evitar a necessidade de protegê-lo e confortá-
lo, se agigantando sobre mim, mesmo que eu soubesse que ele
estava bem: cuidado, alimentado e já adormecido, pelo menos,
pelas próximas duas horas.

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Sua respiração era um sussurro leve, uma canção de ninar que só
nós compartilhávamos naquele instante. Cuidadosamente, ajustei
meus braços para apoiar melhor sua cabeça e seu corpinho,
consciente de cada movimento para não o despertar.
Caminhei devagar até o berço em que seus irmãos, Leon e Gael,
já descansavam. Apesar de Maísa ter comprado três camas, os
bebês gostavam de dormir agarrados um ao outro.
Com todo o cuidado, abaixei-me para colocar Eduardo ao lado de
Leon e Gael. Havia um espaço reservado só para ele, como se o
berço já soubesse que aquele era seu lugar no círculo de irmãos.
Ao ajeitá-lo, certifiquei-me de que o cobertorzinho o envolvesse
confortavelmente, não muito apertado, mas o suficiente para que se
sentisse seguro e aquecido.
O quarto, iluminado apenas por uma luz noturna suave, banhava
os três em um brilho sereno, transformando o momento em algo
quase mágico.
Maísa se levantou e parou ao meu lado, as mãos apoiadas na
lateral do berço, quase tocando as minhas, de tão perto. Nos
permitimos alguns instantes de admiração silenciosa, observando
nossos filhos dormirem.
O peso e a realidade de nossa nova vida como pais de trigêmeos
pareciam, de alguma forma, leves quando eu os olhava.
— É muito melhor do que eu sonhei — ela sussurrou. —, tê-los
em casa.
Sua voz estava carregada de emoção e alívio e suas palavras
ecoaram meus próprios sentimentos. Maísa se virou para mim, seu
olhar carregando uma mistura de esperança e hesitação.
A intensidade de seu olhar me fez prender a respiração,
antecipando a importância do que ela estava prestes a dizer. Ela
guardou silêncio pelo que pareceu uma eternidade, como se não
tivesse certeza de que realmente queria dizer as palavras prontas
para saltarem para fora de sua boca.
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— Henrique, — começou, quando decidiu que falaria, fazendo


uma pausa logo depois como se precisasse reunir coragem. — Eu
estive pensando... — A garganta de Maísa se moveu lentamente
quando ela engoliu em seco. — Nos primeiros meses, com tudo que
eles vão precisar, e nós... Você... Você gostaria de ficar aqui?
Comigo, com eles?
Levei um momento para me dar conta de que realmente tinha
entendido certo. A magnitude, a generosidade das palavras não me
deixaram acreditar nelas de imediato.
O convite, carregado de vulnerabilidade, atingiu-me com a força
de uma tempestade. A possibilidade de ser uma presença constante,
de participar ativamente de cada momento, cada descoberta e cada
desafio, era tudo o que eu mais queria, meu desejo mais profundo e
íntimo.
E a hesitação em sua voz quando fez a pergunta deixava evidente
o quanto se abrir daquela maneira estava exigindo de Maísa, o quão
importante era a minha resposta.
E, se eu já não amasse Maísa, a amaria a partir daquele
momento. O turbilhão no meu peito era uma mistura de gratidão,
amor e um desejo ardente de pertencer, de verdade, àquela
pequena unidade familiar que começávamos a formar.
— Maísa, — eu disse, minha voz trêmula com a magnitude do
que aquilo significava. — Não há lugar no mundo que eu queira
estar mais do que aqui, com vocês. Se me permitir, eu adoraria ficar.

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— Olhem só para vocês, prontos para conquistar o mundo, —
Henrique brincou com os bebês, inclinado sobre os carrinhos
enquanto ajustava os pequenos chapéus em suas cabeças. — Vamos
mostrar a eles quão bravos exploradores vocês podem ser.
Leon, Gael, e Eduardo exibiram sorrisos vazios de dentes ao
mesmo tempo, cada um vestido em macacões coloridos
especialmente escolhidos para o dia – verde, azul e amarelo –
pareciam pequenos feixes de luz sob o sol suave da manhã.
Apoiada no batente da porta, afundei os dentes no lábio inferior,
mordendo o sorriso que brotou involuntariamente enquanto eu
assistia a interação.
Henrique tinha uma maneira de tornar cada momento com eles
especial, até mesmo o passeio matinal de todos os dias.
— Cuidem bem do papai, tá bom? — eu disse, me aproximando
dos carrinhos para dar um último beijo em cada um dos meus
pequenos antes de eles partirem. — E você, — voltei meu olhar para
Henrique, — cuida bem deles para mim.
— Sempre, — ele respondeu, encontrando meu olhar com uma
promessa silenciosa.
A despedida era doce, tingida pela ansiedade suave de deixá-los
ir, mesmo que por pouco tempo, mas esse era um acordo sem
palavras a que Henrique e eu havíamos chegado nos últimos meses.
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Desde que Henrique se mudou para minha casa, para estar mais
presente nos primeiros meses de vida de Leon, Gael, e Eduardo,
nossas vidas tomaram um novo ritmo, uma nova forma de ser.
Cada manhã, ao me despedir deles na porta, sentia uma mistura
de alívio e saudade. Era o momento do dia em que Henrique
assumia as rédeas, permitindo-me respirar, recarregar as energias
após as longas noites de amamentação.
Os passeios matinais se tornaram uma rotina sagrada,
responsabilidade dele, um acordo tácito que havíamos estabelecido
sem necessidade de palavras.
Assim que fechei a porta atrás deles, corri para o banheiro,
desesperada por um banho frio para esfriar o corpo que sempre
ficava quente quando Henrique bancava o pai do ano, o que queria
dizer, o tempo todo.
Havia três meses que eu me sentia vivendo no limite do desejo e
eu amaldiçoava os hormônios, ainda alterados desde a gravidez,
porque não existia outra explicação para a forma como eu
continuava a ser afetada, dia após dia, pelo instinto paterno de
Henrique.
Um homem com uma mamadeira não deveria ser tão sexy quanto
Henrique me parecia, tampouco um homem segurando uma fralda
suja de cocô. Pelo amor de Deus!
Precisava haver alguma coisa muito errada comigo, eu havida
decidido, e só poderiam ser os hormônios ainda descontrolados.
Naquela tarde, eu teria uma consulta com a minha ginecologista.
Henrique, com sua dedicação inabalável e amor palpável por
nossos filhos, transformava cada gesto cotidiano em algo digno de
admiração. A forma como ele cuidava dos meninos, como se
dedicava a eles com tanto amor e atenção, me fazia questionar, me
fazia sonhar... E, sim, me fazia desejar.
O chuveiro frio era mais do que uma tentativa de refrescar o
corpo; era um meio de tentar acalmar o turbilhão dentro de mim,

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provocado pela proximidade e pelo papel cada vez mais significativo
que Henrique ocupava em minha vida.
Morar juntos, cuidar dos bebês juntos, tinha sido um teste de
resistência, mas também uma revelação do quão bem nos
complementávamos, de como, apesar dos desafios, parecíamos
sempre encontrar nosso caminho, juntos.
Enquanto a água fria caía sobre mim, tentava dissipar o calor que
a presença de Henrique despertava. Era mais do que atração física;
era admiração, respeito, e uma crescente certeza de que a vida ao
lado dele poderia ser mais rica, mais plena.
O desejo de explorar o que mais nossa relação poderia se tornar,
apesar das incertezas e dos medos, era algo que começava a ocupar
cada vez mais meus pensamentos. Henrique havia se mostrado um
parceiro incrível na criação dos nossos filhos; era impossível não
imaginar que tipo de marido ele seria.
Desliguei o chuveiro e me envolvi numa toalha, sentindo-me um
pouco mais calma, um pouco mais centrada, mesmo sabendo que
não duraria muito. Nunca durava. Bastaria que ele chegasse e
preparasse a mamadeira para que meu corpo praticamente entrasse
em combustão de novo.
Ao me encarar no espelho após o banho, notei a transformação
gradual que ocorria dentro de mim. Claro, a mãe de Leon, Gael e
Eduardo estava sempre lá, refletida nos olhos cansados, mas
resolutos, que me encaravam de volta. Essa identidade era
inabalável, cimentada por incontáveis noites em claro,
amamentações e momentos ternos de cuidado.
Mas, além dessa faceta inegável da maternidade, começava a
emergir outra imagem — a de Maísa, a mulher. Ela se tornava cada
dia mais forte, mais definida, como se reivindicasse seu espaço ao
lado da Maísa mãe.
Essa Maísa mulher sorria de volta para mim com uma nova luz
nos olhos, uma luz que falava de desejos esquecidos, de paixões
adormecidas e de uma individualidade que clamava por expressão.
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Era uma dualidade fascinante e, de certa forma, libertadora.


Perceber que podia ser ambas as coisas — uma mãe dedicada e
uma mulher com desejos, sonhos e necessidades próprias.
A presença constante de Henrique, sua parceria incondicional e o
modo como me fazia sentir vista e valorizada em todas as minhas
facetas, alimentava essa reconexão comigo mesma.
Enxugando o rosto e ajeitando o cabelo, era impossível continuar
a negar a verdade escancarada diante dos meus olhos: eu tinha
necessidades e meu corpo não parecia mais estar disposto a me
deixar negligenciá-las.
Mas será que eu poderia satisfazê-las sem colocar em risco o meu
coração?

Eu amava cada segundo da rotina com os trigêmeos, mas o


silêncio da casa, após o jantar, quando eles já estavam adormecidos,
parecia uma bênção. Henrique e eu nos descobrimos privilegiados.
Gael, Leon e Eduardo dormiam a noite inteira. Não acordavam nem
no meio da noite, quando eu os amamentava.
Henrique estava mergulhado em seu trabalho, a luz do notebook
iluminando seu rosto concentrado, enquanto eu cuidava da cozinha,
guardando a louça que ele havia lavado.
A expressão confusa que de repente tomou conta do seu rosto
era familiar, uma lembrança viva dos dias em que trabalhávamos
lado a lado.
Impulsionada pela curiosidade e mesmo que eu não quisesse
admitir, por uma vontade incontrolável de estar perto dele,

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aproximei-me, apoiando os quadris no encosto da cadeira de
Henrique e olhando por sobre seu ombro.
— O que está te incomodando? — perguntei, tentando espiar a
tela do notebook.
Ele soltou um longo suspiro, meio frustrado, meio agradecido pela
interrupção.
— Um contrato com um fornecedor. Estou tentando encontrar
uma cláusula que possa nos dar uma vantagem na negociação, mas
está difícil.
Inclinei a cabeça e corri os olhos pela tela do computador de
Henrique, lendo as linhas estampadas ali, o pano de prato ainda
seguro e úmido em minhas mãos.
— Quer sentar? — ele perguntou ironicamente, já puxando a
cadeira ao seu lado e aceitei, sem desviar os olhos da tela.
— Lembra daquele caso com o fornecedor de software? —
perguntei, enxergando algumas semelhanças entre o contrato que
eu lia e aquele sobre o qual falava. — Nós renegociamos os termos
incluindo uma cláusula de desempenho que nos dava uma saída se
as entregas não atendessem aos nossos padrões.
Henrique se inclinou para trás na cadeira, cruzando os braços,
sua expressão confusa inicial se transformando em reflexão. Então
ele olhou para a tela do próprio computador e silêncio imperou
enquanto nós dois liamos o documento aberto nela.
— Isso mesmo, — murmurou com as sobrancelhas franzidas,
depois se virou para mim, a realização acendendo em seus olhos. —
Podemos aplicar uma estratégia semelhante aqui, ajustando-a para
as especificações deste contrato — ponderou. — Não tinha pensado
nisso... É uma abordagem brilhante, Maísa.
O elogio me transportou para um escritório familiar, quando eu
adorava ouvir Henrique dizer o que pensava sobre o meu trabalho, o
quanto me achava competente. Umedeci os lábios, torcendo para
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que a saudade não tivesse se estampado em meu rosto com a


mesma violência que assaltou meu coração.
— Às vezes, só precisamos de um novo ângulo, — respondi,
disfarçando meus sentimentos.
— Você não sente falta? — Henrique perguntou de repente, sua
voz carregada de curiosidade genuína e algo mais. Eu me perguntei,
pelo que deveria ser a milésima vez, só naquela semana, se ele
tinha começado a ouvir meus pensamentos.
— De quê? — Me fiz de desentendida.
— De trabalhar num escritório, digo. De lidar com esses quebra-
cabeças todos os dias?
A pergunta me pegou de surpresa, desencadeando uma série de
reflexões sobre a minha vida atual e o que eu havia deixado para
trás. Ri, perdida em pensamentos.
— Sinto falta de muitas coisas, — admiti, mais para mim mesma,
enquanto uma enxurrada de memórias e "e se’s?" inundava minha
mente.
Foi a coisa errada a se dizer. Num piscar de olhos, o humor que
havia entre nós se dissipou, substituído por uma intensidade súbita
quando nossos olhares se encontraram e se prenderam.
Eu não tinha me dado conta do quão próximos estávamos, até
aquele momento. Se eu me inclinasse só um pouco, poderia sentir o
calor do seu hálito soprando sobre a minha pele. Me arrepiei.
Calor emanava de Henrique, deixando um rastro de fogo em cada
ponto que não nos tocávamos, mas poderíamos, se eu apenas me
movesse uns centímetros. A respiração dele estava quase
sincronizada com a minha.
Era uma daquelas raras pausas no tempo, onde o mundo ao
redor parecia desaparecer, deixando apenas a nós dois, presos em
uma bolha de proximidade e emoção crua.

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Henrique quebrou o silêncio, sua voz já rouca como eu não ouvia
havia muito, muito tempo:
— Muitas coisas, é? — A pergunta, simples na superfície, ecoou
com profundidade entre nós, abrindo um espaço para
reconhecermos o que estava crescendo silenciosamente.
A pausa que se seguiu foi carregada de tensão e expectativa.
Cada um de nós respirava mais devagar, mais profundamente, quase
como se estivéssemos compartilhando o mesmo ar, o mesmo
momento de hesitação e possibilidade.
Finalmente, movido por um impulso que parecia maior do que
nós, Henrique fez um gesto sutil, diminuindo ainda mais a distância
entre nós, sua testa colou na minha.
As distâncias entre passado, presente e futuro se mesclaram e
confundiram. As memórias do parto, daquele toque na testa que
havia sido tanto um gesto de apoio quanto um momento de conexão
íntima, ressurgiam com força, trazendo consigo uma enxurrada de
emoções.
O silêncio que se estendeu entre nós era denso, repleto de
palavras não ditas e sentimentos não explorados. A atmosfera estava
carregada de uma energia que parecia puxar um para o outro, uma
atração magnética que desafiava a lógica e o raciocínio.
Eu o beijei.
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Uma onda de calor percorreu meu corpo inteiro, incendiando


cada fibra do meu ser com uma intensidade inigualável quando a
boca de Maísa se grudou a minha.
Nossos lábios se encaixaram e nossas línguas se procuraram. O
beijo se desdobrou com uma urgência que parecia refletir todos os
meses de separação e anseio contido.
Era como se, subitamente, todas as barreiras que Maísa e eu
havíamos construído, todas as distâncias que nos separavam,
desaparecessem no exato momento em que nossos lábios se
tocaram.
Não havia hesitação, apenas a necessidade crua de redescobrir,
de se reconectar naquele ponto onde havíamos sido interrompidos.
Cada pedaço de mim reagiu. Minha coluna se arrepiou e meus
músculos retesaram diante do toque.
Minha mão, movendo-se com um propósito claro, firmou-se em
sua cintura, trazendo-a para mais perto com uma determinação que
não admitia espaço para dúvidas.
A proximidade de nossos corpos era um testemunho da
intensidade do momento, cada curva dela pressionando contra mim
num lembrete palpável do que havíamos compartilhado e do que
ainda poderia ser reconstruído entre nós.
A outra mão, quase sem que eu percebesse, encontrou o
caminho para os cabelos de Maísa, agarrando-se à maciez que se

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entrelaçava em meus dedos, uma âncora no turbilhão de emoções
que nos envolvia.
O beijo evoluiu rapidamente de uma exploração cautelosa para
uma afirmação fervorosa de presença e desejo. Éramos comandados
por uma fome reprimida, uma demanda silenciosa por mais, por
tudo que havíamos negado a nós mesmos durante tanto tempo.
Nossos lábios se moviam com uma sincronia desesperada,
comunicando uma mistura de saudade, arrependimento e uma
esperança exigente. A respiração de Maísa contra a minha pele era
quente e rápida. O som suave, porém, urgente, de seu suspiro se
misturava ao ambiente, elevando a tensão entre nós.
O beijo nos consumiu, apagando os limites entre o desejo e a
necessidade, entre o passado e o presente. O desespero dos nossos
toques, falava de uma pressa em conseguir mais um do outro que
era impossível de conter.
Nossas bocas interromperam o beijo quando nossos pulmões
gritaram por oxigênio, mas nenhum de nós se afastou, não.
Inspiramos somente o ar necessário para alimentar um segundo
beijo, ainda mais faminto do que o primeiro.
Meus dedos se espalharam em seu couro cabeludo, agarrando os
fios nas raízes enquanto minha outra mão se fechava na pele macia,
puxando Maísa em minha direção até que as cadeiras tivessem sido
arrastadas e ela estivesse montada em meu colo.
Sua boceta, tão perto de mim, tão quente sob a saia do vestido
solto que ela usava, me enlouqueceu completamente e um grunhido
baixo escapou da minha garganta quando ela rebolou.
Descontrolados. Nós estávamos total e completamente
descontrolados.
Minhas bolas pulsaram e suas mãos seguraram meu rosto
enquanto eu a puxava para ainda mais perto, aprofundando o beijo.
O sabor dela era inebriante, uma combinação de doce e salgado que
fez meus sentidos vacilarem.
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Nossas línguas dançavam e se entrelaçavam, explorando cada


fenda, acendendo um fogo que muito em breve, se tornaria
impossível de apagar.
Eu sentia o coração dela acelerando sob meu toque, sua
respiração ficando curta e irregular enquanto eu traçava a linha de
sua mandíbula com a língua, deixando um rastro molhado em cada
centímetro que tocava.
Quando alcancei seu pescoço, ela soltou um gemido suave que
foi como combustível para meu desejo já inflamado. Minhas mãos
percorriam livremente seu corpo, traçando as curvas e contornos
que me enlouqueciam há meses, primeiro pela vontade insaciável de
tocá-las e, depois, por não poder mais fazer isso.
O calor entre nós era uma força da natureza, ameaçando nos
implodir. Cada toque, cada carícia estava carregada de uma
eletricidade que incendiava minha pele, enviando ondas de prazer
pelas minhas veias.
Maísa enredou as mãos pelos meus cabelos, puxando-os ao
mesmo tempo em que empurrava minha cabeça mais para a sua.
Ela arqueava as costas, oferecendo-se completamente para mim, e a
sensação do seu corpo pressionado contra o meu era como uma
droga, intoxicante e viciante em sua intensidade.
Saboreei cada momento, cada toque, perdendo-me na onda de
sensações que pulsava através de mim a cada batida do meu
coração. Enquanto descia beijos pela extensão de sua garganta,
meu pulso acelerava em uma exigência silenciosa por mais do toque
de Maísa.
O ar estalava de tesão enquanto eu explorava seu corpo,
mapeando cada curva na memória, e descobrindo que elas eram
infinitamente mais deliciosas do que eu me lembrava.
— Henrique — ela sussurrou ofegante, com a boca ainda colada
na minha quando precisamos interromper o beijo outra vez, por
mais oxigênio.

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— Eu posso parar — garanti, mesmo que minhas mãos ainda
estivessem se espalhando por cada centímetro de pele que
alcançavam, descendo para se infiltrar sob a saia do vestido, loucas
para sentir a suavidade das coxas, da bunda de Maísa, o calor
arrebatador entre as suas pernas. — Eu posso parar.
Beijei seu queixo e o chupei, consciente das palavras que tinham
acabado de deixar meus lábios e, ainda assim, completamente
bêbado, entregue a sensação de tocá-la, de ter Maísa à disposição
dos meus desejos.
— Não se atreva! — exigiu, puxando meus cabelos até que sua
boca pudesse se encaixar na minha outra vez, e sua língua me
consumisse, como se a mera ideia de pararmos tornasse o momento
ainda mais incontrolável.
O peito de Maísa arfava e seus lábios estavam inchados pelos
beijos brutos. Eu nunca me esqueceria do gosto dela, da sensação
de sua pele sob as pontas dos meus dedos, do som de sua
respiração acelerando, seria impossível esquecer, mesmo que a
minha memória jamais fizesse justiça à realidade.
Minhas lembranças eram como sombras apagadas, sem brilho
nenhum diante da verdade. O próximo beijo transcendeu a
fisicalidade para se tornar algo mais, algo mais profundo do que as
palavras poderiam expressar.
E quando olhei nos olhos dela, escuros de desejo e cheios de
uma fome que refletia a minha, eu soube que ela falava sério
quando me intimou a não parar. Ofegantes e ainda imersos na
proximidade um do outro, o silêncio que se seguiu não foi de
desconforto, mas de reconhecimento.
Um reconhecimento de que, apesar de tudo, havia ainda algo
visceral e inegável entre nós, uma chama que, uma vez reacendida,
exigiria nossa total entrega para ser explorada em toda a sua
plenitude.
Me levantei da cadeira e Maísa cruzou as pernas ao redor da
minha cintura. Não desviei o olhar do dela nem por um segundo
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enquanto caminhava até o quarto, carregando-a, nem mesmo


enquanto voltei a beijá-la, ou quando subi as escadas.
O quarto de Maísa estava mal iluminado, a única fonte de luz
vinha do brilho suave de uma luminária de cabeceira acesa.
Sem dizer uma palavra, ela soltou as pernas quando me
aproximei da cama, plantando os pés no chão, e o aperto das
minhas mãos em sua cintura e cabelos se tornou ainda mais firme.
Maísa gemeu.
A joguei na cama, o colchão balançando embaixo dela. Ela soltou
um suspiro de surpresa, um arrepio de excitação percorrendo seu
corpo enquanto ela olhava para mim, vendo a fome em meus olhos.
Me inclinei sobre ela, apoiando um joelho no colchão e
estendendo a mão para explorar seu corpo. Meu toque foi áspero,
alisando uma coxa exposta e disparando mais arrepios pelo corpo de
Maísa.
Ela arqueou as costas, empurrando o peito na direção dele,
convidando-me a me aproximar e eu me inclinei, meus lábios
roçando seu pescoço, minha respiração quente contra a sua pele.
Maísa não parou até ter desfeito todos os botões da minha
camisa e conseguir empurrar o tecido pelos meus ombros,
arrancando-o do meu corpo, deixando-me nu, da cintura para cima.
— Preciso retribui o favor, amor — disse, enrolando a saia do
vestido até que Maísa erguesse o tronco para que eu pudesse
arrancá-lo de uma vez.
Os peitos nus, pesados e deliciosos saltaram livres. Uma gota de
leite escorreu da ponta e me abaixei para lamber.
Maísa gritou e estremeceu sob o calor da minha língua em seu
bico sensível. Mamei seu peito, sentindo o sabor do leite dos nossos
filhos, e não me importando nem um pouco com ele.
Não quando ela se contorcia e gemia sob o toque das minhas
mãos e da minha boca.

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Não quando seu cheiro se misturava ao aroma da sua boceta que
eu tinha certeza de já estar encharcada.
Não quando cada fibra minha estava pronta e ansiosa para
arrancar daquela mulher o pagamento por cada dia que fui forçado a
ficar longe dela.
Eu queria tudo dela.
Eu arrancaria tudo dela.
Eu a destruiria e quando eu terminasse, Maísa me imploraria por
mais.
Eu me pressionava contra ela ao mesmo tempo em que ela se
pressionava contra mim. Seus movimentos eram frenéticos,
urgentes, em segundos, Maísa já estava desesperada por libertação.
— Há quanto tempo você não goza, amor? — perguntei com os
lábios sugando o outro mamilo, para o qual eu tinha acabado de
mudar minha atenção. — Hein? Dias? — sussurrei. — Meses?
— Henrique — ela choramingou meu nome e meu pau pulsou. Eu
nunca me esqueci do quanto adorava ouvi-lo em sua boca nesses
momentos, com esse tom, com esse abandono.
Minhas mãos percorreram seu corpo, deslizando para baixo,
deixando um rastro de fogo até abrirem suas pernas e uma delas se
infiltrar entre elas. A renda da calcinha azul estava ensopada.
Grunhi.
Maísa gemeu baixinho, o som abafado pela minha boca enquanto
eu, mais uma vez, a reivindicava em um beijo apaixonado.
A quarto se encheu com o som das nossas respirações pesadas,
do farfalhar dos lençóis e dos nossos gemidos. Nos movíamos
juntos, terminando de arrancar as roupas um do outro em uma
sinfonia de desejo.
Estávamos perdidos um no outro, nossos corpos envolvidos numa
dança de luxúria e necessidade. Meti fundo na boceta quente, de
uma vez e sem aviso, eu brincaria depois.
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Me fartaria no gosto de Maísa, beberia seu gozo e lamberia cada


gota de suor que deslizasse pela sua pele, mas depois.
Naquele momento, eu precisava sentir seu calor úmido, precisava
sentir suas paredes me apertarem como um punho fechado
enquanto eu deslizava para dentro e para fora sem parar.
Maísa envolveu os braços ao redor do meu pescoço, me puxando
mais para perto até que estivéssemos completamente colados, tão
próximos que nem mesmo um fio de cabelo encontraria espaço
entre nós.
Rebolei, completamente dentro dela, e seus olhos se reviraram de
prazer ao mesmo tempo em que um gemido arrastado se expulsou
de sua garganta.
— Que. Saudade. Eu. Senti. Dessa. Boceta! — pontuei cada
palavra com uma estocada, chupando a garganta de Maísa logo
depois, sabendo que deixaria uma marca ali, ou talvez várias, e não
me importando nem um pouco com isso.
Ela gritou e tremeu, ergueu os quadris, rebolou e me arranhou.
Seus dentes me morderam e seus dedos me apertaram, sua boceta
me mamou e estrangulou.
Então, num momento de puro abandono, atingimos o auge do
êxtase. Nossos corpos ficaram tensos, nossos movimentos se
tornaram mais urgentes, mais desesperados.
Com gritos de prazer, caímos na cama, suados, gozados e muito,
muito longe de estarmos saciados. O quarto pareceu silencioso
quando o único som era o de nossas respirações ofegantes
enquanto tentávamos voltar para o planeta terra.
Puxei Maísa para mim, a abracei e beijei seus cabelos, ainda
zonzo com a força do meu orgasmo. Ela estava mole nos meus
braços, mas se aninhou, ainda assim.
Haveria muito mais noites como aquela, muitos mais momentos
de paixão e desejo. Mas, por enquanto, eu estava contente em ficar
ali, perdido nela, até estar pronto para recomeçar.

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E eu recomeçaria, só precisava de alguns minutos.
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Se eu não me sentisse prestes a vomitara qualquer momento,


talvez encontrasse forças para achar a situação cômica.
Henrique e eu tentamos desviar um do outro, eu segurando um
pano de prato, ele com os copos vazios que queria colocar sobre a
mesa que estávamos arrumando juntos, mas fui para a direita, e ele
também.
Fui para a esquerda, então, e ele também, porque de alguma
maneira, nossos movimentos estavam desastrosamente
sincronizados. A cada passo que eu dava para a esquerda, ele
também se movia para a esquerda; quando eu mudava de direção,
esperando desviar dele, ele espelhava minha ação com uma precisão
que teria sido hilária em qualquer outra circunstância.
Ficamos presos nessa dança desajeitada, frente a frente, nossos
corpos quase se tocando, um reflexo perfeito do outro, por um
momento que pareceu estender-se muito além do confortável.
Henrique, soltou uma risada baixa e parou de se mover,
levantando as mãos em sinal de rendição e dando um passo para
trás, me concedendo espaço para passar.
— Acho que estamos sincronizados hoje, não é? — ele comentou,
e havia uma insinuação silenciosa em seu tom que me fez morder o
lábio.
Flashs da noite passada brilharam por trás dos meus olhos, mas
balancei a cabeça, afastando as imagens e as sensações.

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— Só um pouco — concordei, minha resposta soando seca
enquanto eu tentava lidar comigo mesma.
A ansiedade sobre a conversa pendente formava uma nuvem
sobre mim, cada movimento e cada olhar carregados de significado.
A luz suave da cozinha iluminava o espaço entre nós, mas não
conseguia dissipar a tensão palpável que me envolvia, apertando
meu peito em nós.
A atmosfera carregava um peso, uma carga elétrica de
expectativas não ditas que me fazia questionar se seria capaz de
comer qualquer coisa, mesmo que o cheiro da massa que Henrique
pousou sobre o descanso de panela, em cima da mesa, estivesse
incrível.
A noite anterior, intensa e íntima, deixou um rastro de emoção
que ainda pulsava em mim, uma recordação constante a cada olhar,
a cada movimento involuntário que nos aproximava ou distanciava.
Henrique acordou na minha cama esta manhã, mas em meio ao
caos de lidar com três bebês de um trimestre que não dormem
durante o dia, foi impossível que conversássemos, até agora.
A noite já havia se instalado quando os trigêmeos finalmente
adormeceram, deixando espaço para a conversa que eu sabia que
era necessária, mas que eu não tinha certeza se estava pronta para
ter.
Henrique puxou a cadeira e acenou para que eu me sentasse, um
sorriso brincando no canto dos seus lábios. Aceitei a gentileza,
retorcendo o tecido do meu vestido entre os dedos enquanto ele se
sentava ao meu lado. Eram as mesmas posições que havíamos
ocupado ontem, antes de tudo acontecer.
— Se você continuar esfregando o tecido com essa força, ele
provavelmente vai se desfazer nas suas mãos — Henrique brincou,
quebrando o silêncio e atraindo meu olhar para o seu rosto.
Ele estava lindo, como sempre. Como era possível que um
homem fosse tão lindo como aquele? O maxilar marcado parecia
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ainda mais bem delineado sob a barba um pouco mais espessa do


que ele costumava manter, meses antes, quando nos conhecemos.
Seus olhos escuros brilhavam para mim, e pareciam transbordar
promessas lascivas enquanto ele passava a mão pelo topo dos
cabelos, mais cumpridos do que nas laterais, e se recostava contra o
espaldar da cadeira.
A camisa branca revelou mais da faixa de pele exposta pelos três
primeiros botões e eu quis lamber os pelos ali. Seu cheiro dominou
cada um dos meus sentidos imediatamente, não apenas na
realidade, como nas minhas memórias.
— Sabe? Conversar à dois é mais fácil do que fazer isso sozinha,
— ele disse, quando permaneci em silêncio mesmo depois da sua
provocação anterior. — Praticamente consigo ver as engrenagens do
seu cérebro trabalhando, Maísa. Que tal se, ao invés de interpretar
dois papéis dentro da sua própria cabeça, você falar a sua parte em
voz alta, e me deixar interpretar eu mesmo para você? As coisas vão
ser mais divertidas.
Ele sorriu, como se a perspectiva de realmente termos uma
conversa sobre o elefante na sala, a noite passada, não o assustasse
nem um pouco.
Estendi a mão, começando a servir meu prato enquanto tentava
pensar numa resposta inteligente. Nada me ocorreu, então levei
uma garfada à boca, ainda sem responder. Henrique estreitou os
olhos, mas fez o mesmo.
Eu sabia que ele estava certo. Era verdade; eu estava tão presa
em minha cabeça, tentando antecipar cada direção que nossa
conversa poderia tomar, que havia esquecido a simplicidade de
apenas falar, de compartilhar meus pensamentos e ouvir os dele em
troca.
— Você tem razão — consegui dizer finalmente, minha voz mais
firme do que esperava. — Eu só... — Pausei, olhando para ele com
uma sinceridade renovada. — Estou nervosa, Henrique. Sobre o que
aconteceu, eu... Não esperava.

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O momento que até noite passada tinha se transformado num
poço de normalidade na nossa rotina, essa noite pulsava com uma
energia ansiosa que parecia consumir meu estômago pelas beiradas.
A mesa estava posta de maneira simples, pratos e talheres
dispostos sem cerimônia. E diante das minhas palavras, até mesmo
a segurança e a leveza que Henrique vinha demonstrando
pareceram vacilar. Seus olhos se fixaram em mim, como se ele
tentasse decifrar meus pensamentos antes mesmo que eu desse voz
a eles.
Ele respirou fundo, quebrando o silêncio que se esticava entre
nós com um peso quase tangível.
— Precisamos conversar — ele disse, soltando os talheres e essas
simples palavras pareciam carregar todo o peso do mundo.
Uma parte de mim queria recuar, insistir que estávamos bem, que
poderíamos simplesmente seguir em frente sem ter que dissecar
cada emoção, cada medo que a noite anterior havia despertado.
Mas havia também uma necessidade profunda, quase
desesperada, de ouvir o que ele tinha a dizer, de entender o que
aquela noite significava para ele, para nós. Ainda assim, minha
primeira reação foi proteger meu coração, já tão marcado por
cicatrizes passadas.
— Está tudo bem, Henrique. O que aconteceu... não precisa
significar nada. Nós... — Tropecei nas palavras, tentando construir
uma muralha de indiferença ao redor de mim, mas a sinceridade em
seus olhos desmoronava cada pedra antes mesmo de ser colocada.
Sua mão encontrou a minha, um gesto que enviou ondas de calor
através de meu corpo, um lembrete físico da proximidade que
compartilhamos.
— O que aconteceu — ele repetiu minhas palavras, fazendo o ar
ficar preso nos meus pulmões. — Significa tudo. — Sua voz estava
carregada de emoção, cada palavra cuidadosamente escolhida, para
transbordar sinceridade.
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Suas palavras, tão cheias de intenção e desejo por um futuro


juntos, fizeram meu coração bater mais rápido. Havia uma parte de
mim, talvez a mais vulnerável, que queria acreditar nele, que queria
se jogar nessa possibilidade de nós, apesar de todas as incertezas.
— Eu tenho medo — confessei, vulnerabilidade tingindo minha
voz.
— Entendo isso, mas eu te juro, Maísa, não quero apenas uma
noite com você, Maísa. Quero todas as noites, todos os dias. Uma
vida inteira.
A intensidade de seu olhar me imobilizou, e por um momento, eu
me vi refletida em seus olhos, sentindo-me completamente nua em
minhas emoções. Minha respiração se soltou apenas para se prender
outra vez, no instante seguinte. Um misto de medo e desejo se
contorcendo dentro de mim.
A ideia de nos entregarmos a uma vida juntos, após tudo que
havíamos enfrentado, era tão assustadora quanto era
profundamente desejada. As lembranças da noite anterior, cada
toque e sussurro, ainda ardiam em minha pele.
Era mais do que medo, era pavor. E não apenas pelo meu
coração, mas pelo futuro incerto que uma decisão dessas poderia
traçar para nossos filhos.
— Você não precisa ter medo, amor — ele garantiu e meus olhos
se fecharam.
— Não me chame assim — era uma súplica, porque eu não me
sentia capaz de continuar resistindo a ideia de ser o seu amor. Deus,
como eu queria ser o seu amor.
— Mas eu não quero te chamar de nenhum outro jeito, Maísa,
nunca mais. Você é o meu amor.
— Quero acreditar nisso, Henrique. Quero acreditar que podemos
fazer isso funcionar, mas... — Minha voz vacilou, a realidade dos
nossos desafios pressionando contra a bolha de esperança que suas
palavras haviam criado.

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— Mas? — ele incentivou, inclinando-se para frente, capturando
minha outra mão sobre a mesa.
— Mas temos que ir devagar. Por nós, pelos bebês... por tudo o
que estamos tentando construir aqui — completei, encontrando
coragem no calor do seu toque. Ele inclinou a cabeça, dizendo com
um aceno lento que não concordava com aquilo. — Henrique —
sussurrei, e ele deu um leve puxão no meu braço, um convite.
Refiz o mesmo caminho da noite anterior, dessa vez, guiada pelo
coração e não apenas pelo desejo. Me sentei em seu colo. Henrique
colou nossas testas naquele gesto que tinha se tornado tão
significativo entre nós.
— Eu te amo — ele disse, roubando o pouco ar que ainda havia
em meus pulmões. — Eu te amo, e passei os últimos meses me
debatendo e arrependendo de não ter te dito isso em cada
oportunidade, me perguntando se teria feito com que as coisas
fossem diferentes, me perguntando se eu teria sido menos idiota. Eu
te amo, Maísa. Com cada fibra do meu ser, com cada fôlego dos
meus pulmões, com cada célula do meu corpo. Eu te amo — Seus
lábios roçaram os meus, levemente. Havia um milhão de promessas
naquele toque. — Eu te amo. Eu amo a família que estamos
construindo. Eu amo a vida que você me deu. Eu amo você —
repetiu, e lágrimas desceram pelas minhas bochechas, deixando
rastros úmidos a serem seguidos pelas próximas e pelas próximas e
pelas próximas.
— Eu prometo a você, Maísa, eu prometo a você, amor —
Henrique repetiu. — Que você não precisa ter medo, de nada, nunca
mais. Eu nunca mais vou errar como errei, nunca mais vou deixar
nada ficar entre nós. Eu vou fazer besteiras, não sou perfeito, mas
eu nunca mais vou fazer nada para te magoar, amor. Eu juro. Me dá
uma chance — pediu, implorou. — Só uma chance de te provar que
eu estou falando a verdade. Eu quero nossa família, amor. Nossa
família completa.
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Fechei os olhos, me deixando ser embalada pelo seu cheiro e por


cada uma das palavras proferidas pela sua boca. Elas, tão simples e
ao mesmo tempo tão carregadas de um futuro, me envolveram
como um abraço, apertado e reconfortante.
Henrique me prendeu com mais força, empurrando meu corpo
contra o seu enquanto mantinha nossas testas coladas e nossos
olhares presos um ao outro.
Sua promessa de enfrentarmos juntos qualquer desafio, de nunca
permitir que nada nos separasse novamente, soava como um farol
no meio da tempestade que era minha indecisão. Ela dissipou a
última das minhas hesitações.
Olhando nos olhos dele, encontrei não apenas o amor que nunca
havíamos perdido, mas também a força para acreditar em nós
novamente. Minha mão acariciou seu rosto, um gesto que carregava
minha rendição e minha esperança.
— Eu também te amo — confessei. — Nunca deixei de amar. —
Um sorriso iluminou o rosto de Henrique e lágrimas despencaram de
seus olhos também, se misturando às minhas. Eu sentia o sabor da
mistura delas entre os nossos lábios. — E esses últimos meses...
Eles... Eles tem sido como dormir e acordar num sonho, mas um
sonho incompleto — admiti. — Eu não quero mais me sentir
incompleta, Henrique. Não quero mais.
Henrique encaixou nossas bocas, tomando meus lábios num beijo
lento, molhado e salgado. Nossas línguas se tocaram com
reverência, adoração e lentidão.
— E não vai — ele me garantiu, recuando a cabeça apenas o
suficiente para que eu pudesse ver seu rosto inteiro. — Nada, nunca
mais, vai ficar entre nós. Nunca mais — Seu apelo era tanto uma
declaração quanto uma súplica, e cada palavra parecia encontrar um
eco dentro de mim, reverberando em espaços do meu coração que
eu pensava ter fechado para sempre.
Eu estava morrendo de medo. Medo de me machucar novamente,
medo de confiar e perder, medo de dar um passo em uma direção

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que não tinha garantias.
Mas, em algum lugar ao longo da jornada de sermos pais juntos,
de compartilharmos risadas e lágrimas, de nos apoiarmos nos
momentos de exaustão e de alegria, meu coração havia tomado sua
decisão, muito antes de minha mente se dar conta.
E enquanto permanecíamos em silêncio, nossas bocas se
procuraram e o beijo pareceu ter um sabor mais doce do que
qualquer outro que já tínhamos trocado antes.
Finalmente, permiti a mim mesma fazer mais do que desejar.
Eu me permiti acreditar. Acreditar no perdão, no amor e na
possibilidade de um novo começo.
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O vento fazia as árvores balançarem e a sensação que eu tinha


era a de estar vivendo um sonho. Ou, melhor, a de finalmente ter
acordado do meu pior pesadelo.
Maísa e eu havíamos percorrido um longo caminho, superando
desafios e mal-entendidos, para finalmente encontrar um lugar de
felicidade e contentamento um no outro.
Os últimos dois três tinham sido um período de redescoberta, de
construção de uma vida juntos, não apenas como um casal, mas
como uma família com Leon, Gael, e Eduardo.
O parque estava vibrante naquela manhã, as cores do outono
pintando um cenário perfeito para o ensaio fotográfico que Maísa
decidiu fazer em comemoração aos mesversário dos bebês, na
próxima semana.
Os meninos estavam prestes a completar seis meses, e minha
mulher se apaixonou perdidamente pela ideia de um "smash the
cake[2]" triplo. O dia, ao que parecia, concordava com ela que aquela
era mesmo um excelente plano.
O sol filtrava-se suavemente através das copas das árvores,
criando um jogo de luz e sombra no chão coberto de folhas,
oferecendo um cenário quase mágico para nosso ensaio fotográfico
e a brisa fresca trazia consigo o leve aroma de terra e folhas secas.
Ao nosso redor, o parque estava tranquilo, com algumas famílias
espalhadas aqui e ali, aproveitando o clima agradável. Crianças

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corriam e brincavam, seus risos mesclando-se aos sons da natureza,
criando uma trilha sonora viva para o dia.
Apesar da presença dessas outras famílias, havia uma sensação
de privacidade em nosso pequeno canto do parque, como se
estivéssemos em nosso próprio mundo, isolados no tempo e no
espaço.
A fotógrafa, uma mulher jovem com um olhar atento e uma
paciência infinita, movia-se ao nosso redor com uma energia calma,
mas focada.
Ela tinha uma maneira especial de interagir com os bebês,
capturando suas expressões mais puras e momentos de alegria
espontânea. Com sua câmera em mãos, ela se abaixava para ficar
no nível dos olhos dos meninos, incentivando-os com palavras
suaves e brincadeiras, conseguindo assim os sorrisos mais genuínos
e as gargalhadas mais contagiantes.
— Henrique, olha isso, eles estão adorando! — Maísa exclamou,
seu rosto iluminado por uma alegria pura enquanto observava
nossos filhos se deleitando com o glacê dos bolinhos colocados à
frente deles.
Leon, sempre o mais destemido, parecia encantado com a
atenção, esmagando o bolo entre seus dedinhos com uma energia
que só uma criança de seis meses poderia ter.
Gael, por sua vez, analisava cada pedaço de bolo antes de
experimentá-lo, seus olhos grandes e curiosos refletindo cada nova
descoberta.
Eduardo, nosso pensador, observava seus irmãos, talvez
ponderando se deveria se juntar à bagunça ou manter sua dignidade
intacta.
A fotógrafa, habilmente, aproveitava cada momento, suas lentes
capturando não apenas as expressões dos bebês, mas também os
detalhes ao redor: a maneira como a luz do sol dourava seus
cabelinhos, como as folhas caídas criavam um tapete colorido sob
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suas pequenas formas, e como, mesmo no meio dessa bagunça


doce, cada criança revelava seu próprio temperamento e
personalidade.
— Eles vão precisar de um bom banho depois disso — comentei,
rindo enquanto babava na minha família.
— Vamos tentar uma com todos juntos agora — a fotógrafa
sugeriu, um sorriso animado no rosto.
Maísa e eu nos aproximamos, posicionando-nos atrás dos
meninos, prontos para a foto de família. Mesmo cobertos de glacê,
os meninos pareciam pequenos anjos.
Maísa me olhou, seus olhos castanhos brilhando com amor e
gratidão, e embora sua boca não houvesse se mexido, eu
praticamente podia ouvir as palavras não ditas “Nunca imaginei que
poderíamos ser tão felizes.”
— Amo você — sussurrei para que apenas ela ouvisse, e seu
sorriso se ampliou. Por aquele sorriso, eu poderia passar o resto da
minha vida repetindo aquelas palavras. — Amo você.

— Meus pés estão me matando — Maísa choramingou, esticando


as pernas sobre o sofá e franzindo a testa em desconforto, enquanto
eu acariciava seus cabelos. Ela estava deitada sobre as minhas
pernas, com os olhos focados na televisão.
Depois de um dia exaustivo no parque com os trigêmeos, e toda
a logística em limpar glacê de lugares que não fazemos ideia de
como os bebês sujaram, Maísa e eu nos acomodamos na sala,
apenas nós dois, depois que as crianças dormiram.

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O dia havia sido longo, mas a felicidade que permeava cada
momento fazia qualquer cansaço valer a pena. Estávamos assistindo
a um filme, um clássico que ambos amamos, mas suas palavras
foram o suficiente para me tirar do transe em que o filme havia me
colocado.
Olhei para ela, observando a expressão de desconforto que
marcava as linhas do seu rosto, ela era tão linda que fazia meu peito
doer.
Sem hesitar, Ajustei sua cabeça sobre uma almofada e me
levantei.
— Aonde você vai? — ela perguntou, com a testa franzida,
virando o rosto em minha direção.
— Um minuto — pedi, já indo até o banheiro, onde sabia que ela
tinha um óleo hidratante.
— Vou cuidar disso para você — declarei, ao voltar para a sala, o
frasco de óleo em mãos.
As sobrancelhas de Maísa se ergueram e o sorriso que cominou
meu rosto continha uma promessa sensual. Ela mordeu o lábio e se
ajustou no sofá para que eu pudesse me sentar, agora, com seus
pés sobre as minhas coxas.
Despejei um pouco do óleo nas minhas mãos, esfregando-as para
aquecer o líquido antes de aplicá-lo em seu pé direito. Comecei a
massagear suavemente, explorando cada contorno, cada tensão,
dedicando-me a proporcionar-lhe o máximo de conforto.
Maísa suspirou, um som de puro alívio, e se recostou ainda mais
no sofá, fechando os olhos para melhor apreciar a sensação. Ela
soltou um gemido longo e arrastado que fez minha virilha se
contrair. Porra.
— Isso está incrível — murmurou, a voz pesada.
— Então é oficial, a partir de hoje, vou fazer isso todas as noites
— respondi, mantendo o tom leve, embora as reações do meu corpo
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à moleza do dela estivessem começando a mudar o ritmo da minha


respiração.
Ela soltou uma risada suave, um som que sempre me aquecia por
dentro, mesmo que suas palavras fossem poucas, perdidas entre
suspiros de alívio.
— Você vai se arrepender de ter oferecido isso.
Passei mais óleo nas mãos e peguei o outro pé de Maísa.
Comecei pelo calcanhar, usando os polegares para aplicar uma
pressão firme, mas gentil, movendo-os em círculos lentos e
deliberados.
— Duvido muito — assegurei. — Ver você relaxada e feliz é tudo
o que eu quero. E você sempre pode retribuir, amor. Sou muito fácil
de agradar — provoquei, minha voz saindo enrouquecida.
— Tão bom... — ela respondeu à minha provocação com outro
gemido arrastado que me arrancou uma risada curta.
Desloquei meus dedos para a planta do pé, tracei linhas
imaginárias com meus polegares. Gradualmente, movi-me para os
seus dedos, manipulando cada um suavemente, estendendo e
flexionando-os para aliviar qualquer rigidez.
— Ah, meu Deus! — ela arfou e senti meu pau endurecer
imediatamente.
— Porra, amor — murmurei, incapaz de me conter.
Movi-me com cuidado para suas panturrilhas, estendendo a
massagem em silêncio, nós dois perdidos nas sensações de dar e
receber.
— Henrique... — ela disse depois de um tempo, as palavras
saindo lentamente, como se estivesse lutando para permanecer
presente, as sensações arrebatando sua capacidade de formar
pensamentos coerentes, e, dessa vez, seu tom era de pura
necessidade.
— Oi, amor...

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— Acho que... — ela abriu a boca para expirar quando minhas
palmas aplicaram um pouco mais de pressão, perto da parte de trás
dos seus joelhos. — Acho que preciso que você suba um pouco
mais...
— Um pouco mais, é? — Deslizei as mãos para cima, alcançando
as coxas firmes e deliciosas. Maísa se contorceu no sofá,
esfregando-se nele e abrindo levemente as pernas. — Aqui?
— Um pouco mais para cima — disse mordendo o lábio inferior e
obedeci, mas parei antes do lugar onde eu sabia que ela estava me
pedindo para tocar.
— Está bom?
— Mais para cima — suplicou e abriu os olhos, perdendo-os nos
meus. E, encarando-a, minhas mãos foram subindo até alcançarem
a boceta quente, coberta por um pedaço mínimo de algodão branco.
— Aqui, amor? — perguntei, roçando o dedo indicador pela fenda
coberta. O tecido estava arruinado. Maísa gemeu e balançou a
cabeça lentamente.
— Aí, bem aí.

Guirlandas coloridas, balões brilhantes ou luzinhas piscando? Os


três? Talvez? Eu me sentia prestes a enlouquecer enquanto encarava
a tela do computador. Por que todos os temas de festa pareciam tão
absolutamente encantadores?
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Cada clique me levava a uma nova ideia, cada ideia parecia


indispensável.
— Como eu deveria ser capaz de escolher? — resmunguei para
mim mesma, avançando para a próxima página, em que uma festa
com o tema safari era exibida em dezenas de fotos.
Só de imaginar meus bebês vestidos, cada um de um animalzinho
diferente, ou melhor, de exploradores, meu peito vibrou e eu mordi o
lábio. Eu não precisava de um espelho para saber que meus olhos
estavam brilhando.
O problema era que eles haviam brilhado para todas as outras
quinze ideias que eu havia visto, só naquela noite. O caderno ao
meu lado, com anotações para o aniversário de um ano dos
trigêmeos, parecia debochar de mim.
Eu estava há quase duas semanas empacada na primeira tarefa:
escolher um tema para a festa. Mas não era minha culpa. Não era
mesmo! Meus filhos eram lindos e toda e qualquer coisa linda e fofa
combinava com meus anjinhos.
A tela do computador havia se tornado praticamente um portal
para um mundo onde os temas de festas infantis eram tão vastos
quanto o próprio universo.
Festa na selva? Super-heróis? Ou talvez espaço? Com pequenos
astronautas e foguetes?
Meu Deus, eles ficariam lindos vestidos de astronautas! Tanto
quanto ficariam incríveis vestidos de foguetes. Jesus! Eu estava
perdida. Completamente perdida.
E Henrique não me ajudava! Ele só continuava dizendo que
faríamos o que eu quisesse, e que, se essa fosse a minha vontade,
poderíamos fazer uma festa por dia do mês de aniversário dos
meninos, assim, daríamos conta de todos os temas, e se não
déssemos, sempre haveria o ano seguinte, pelo menos, até as
crianças se cansarem da gente e começarem a escolher como
queriam comemorar os próprios aniversários.

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Ele era terrível. Terrivelmente incrível, e bastou pensar nisso para
que um suspiro bobo e apaixonado deixasse meus lábios. Eu era
mesmo uma boba apaixonada, pelo pai dos meus filhos, e pelos
meus bebês. Pela minha família e pela vida que estávamos
construindo, dia a dia.
— E então, como vai o planejamento da grande festa? —
Henrique apareceu, seu tom leve carregado com um sorriso que
precisei ver. — Eles dormiram.
Olhei por cima do ombro, vendo-o descer as escadas de casa.
— Continuo perdida em um labirinto de temas de festas, cada um
mais tentador que o outro — confessei. — Acho que posso precisar
de uma intervenção.
— Eu já te disse... Podemos fazer uma festa por dia.
Revirei os olhos.
— Isso não é solução, Henrique.
— E se jogássemos um dado e deixássemos o destino decidir?
— Você está brincando, mas eu realmente considerei isso —
admiti, meio séria. — Até porque, acho que se eu não resolver isso
na próxima semana, Geórgia vai desistir de mim e fazer tudo
sozinha.
Henrique chegou ao último degrau da escada gargalhando, mas
ao invés de se aproximar de mim, contornou para a esquerda, indo
até o móvel sobre o qual estava apoiado o controle da televisão.
Estreitei os olhos, espiando por cima do ombro o que exatamente
ele faria, e minha sobrancelha se arqueou em surpresa quando ele
abriu um aplicativo de músicas.
Não reconheci o nome, quando ele a digitou na barra de busca,
mas quando a melodia suave preencheu a sala, foi a minha vez de
gargalhar baixinho.
Foi como ser transportada, para aquela noite, meses atrás,
quando conheci a sala de discos de Henrique, em sua cobertura em
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São Paulo. E exatamente como fez naquela noite, ele praticamente


planou até mim, com passos leves e exagerados, antes de me
estender a mão.
— Considere isso uma intervenção — avisou com um sorriso que
iluminava seu rosto.
Levantei-me, aceitando sua mão, permitindo-me ser guiada para
longe da tela. A música nos envolveu, uma canção suave que
parecia perfeita para o momento.
— Acho que essa é a nossa música — murmurei, roçando nossos
lábios. Sorridentes.
— Ela é. E eu adoro dançá-la com você.
Henrique me puxou para perto, seus braços envolvendo minha
cintura com uma familiaridade que aquecia meu coração. Deixei
minha cabeça repousar em seu ombro, fechando os olhos para
melhor me perder na sensação do nosso abraço, do movimento
sincronizado que nos levava para além do espaço da nossa sala de
estar.
— Eu estava com saudades disso — confessei, minha voz abafada
contra o tecido da sua camisa.
— Eu também, Maísa. — Sua resposta foi um sussurro, seu hálito
quente contra meu cabelo. — Eu amo você. Mais do que tudo.
Suspirei, me sentido ser tão embalada pelas palavras quanto
pelas notas da música. Henrique dizia que me amava o tempo todo
e, ainda assim, a cada vez, mesmo depois de meses, eu ainda sentia
meu coração saltar.
— Eu também te amo — respondi. — Muito. E quero dançar mais
com você — pedi, afastando-me ligeiramente para olhar em seus
olhos.
— Tudo o que te fizer feliz, amor — ele disse, e havia uma
certeza em sua voz, um compromisso que não precisava de mais
palavras para ser entendido. — Tudo o que te fizer feliz.

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Leon estava com as sobrancelhas franzidas, concentrado em
tentar empilhar os blocos de montar coloridos, um sobre o outro. O
esforço que ele fazia me arrancava risadas enquanto o mais novo
dos gêmeos se lutava para entender como equilibrar as peças.
Cada vez que um bloco caía, ele soltava um pequeno grunhido de
frustração antes de tentar novamente. Sentado no chão da sala,
sobre um tapete colorido que se tornara o epicentro de muitas de
nossas brincadeiras familiares, eu estava cercado por um caos
colorido de blocos espalhados, risadas de bebê, e os sons suaves de
Maísa, na cozinha atrás de nós, preparando as mamadeiras dos
meninos.
Gael, com sua curiosidade inata, preferia explorar os blocos
sozinho, examinando-os com grande interesse. Ele virava um bloco
verde-claro de um lado para o outro nas mãos pequeninas, levando-
o ocasionalmente à boca para um teste de sabor, apesar das nossas
constantes tentativas de ensiná-lo a não fazer isso.
Depois de "degustar" o bloco, Gael o batia suavemente no chão,
como se tentasse descobrir que tipo de som aquela ação produziria,
completamente absorto em suas descobertas.
Já Eduardo estava um pouco afastado dos irmãos, sentado com
as perninhas cruzadas, segurando um bloco azul. Ele não estava tão
interessado em empilhar ou explorar os blocos quanto em observar.
Seus olhos iam do Leon ao Gael e depois para mim, como se
estivesse tentando entender a dinâmica do que acontecia ao seu
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redor. De vez em quando, ele tentava imitar o que Leon fazia, mas
com menos fervor, mais interessado no processo do que no
resultado.
Leon, Gael, e Eduardo, agora com dez meses de idade, babavam
e já engatinhavam ao meu redor quando se cansavam dos
brinquedos, suas risadas e gritinhos enchendo o ar de uma música
que eu jamais me cansaria de ouvir.
— Vamos lá, meninos, digam "papai" — incentivava eu,
segurando um bloco acima da cabeça de Leon, tentando capturar
sua atenção. — Papai. Pode dizer, Leon?
Maísa, da cozinha, ria da minha tentativa persistente de ensinar a
primeira palavra aos nossos filhos. Seu riso, melodioso e cheio de
vida, atravessava o espaço entre nós, aquecendo meu coração.
— Você acha que eles vão dizer "papai" antes de "mamãe"? — ela
debochou. — Estou ouvindo você aí, sabia?
— É uma competição justa — respondi, sorrindo, mesmo sabendo
que ela não podia ver meu sorriso. — Mas, imagine só, se a primeira
palavra deles for "papai".
Os meninos, alheios à nossa pequena competição, continuavam a
explorar os blocos com curiosidade infantil, tentando encaixá-los uns
nos outros e, mais frequentemente, levando-os à boca.
— Aposto que consigo fazer um deles dizer "papai" antes que
você os faça dizer "mamãe" — declarei enquanto tentava, sem muito
sucesso, empilhar alguns blocos para chamar a atenção de Leon.
Da cozinha, Maísa riu ainda mais alta, o som de sua alegria se
misturando ao barulho da água correndo da torneira.
— Isso é uma aposta, Henrique? Porque você sabe que o vínculo
mãe e filho é inquebrável. Eles vão dizer "mamãe" primeiro, com
certeza — ela respondeu, sua voz cheia de confiança e um toque de
desafio.

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Eu olhei para os meninos, cada um em seu próprio mundo.
Eduardo era o único de quem eu realmente tinha a atenção naquele
momento, ele alternava o olhar entre a mãe e eu, como se tentasse
entender a dinâmica entre seus pais.
— Bem, vamos ver se a determinação do pai pode superar esse
suposto vínculo inquebrável — eu disse. — Vem, Eduardo, diga
"papai". Você consegue.
Fui ignorado por ele, mas Leon me olhou, os olhos brilhando com
uma mistura de curiosidade e diversão, claramente mais interessado
nos blocos.
Maísa apareceu na entrada da sala, as mamadeiras prontas em
uma bandeja, um sorriso brincando em seus lábios enquanto
observava minha tentativa de "treinamento".
— Vocês estão entendendo alguma coisa do que o papai está
tentando fazer? — ela perguntou aos meninos, sua voz carregada de
humor. — Porque eu acho que ele está perdendo tempo.
— Ah, mas tempo é mesmo tudo de que eu preciso, você vai ver
—retruquei, ainda focado em Leon, que agora havia abandonado
completamente os blocos para rastejar em minha direção.
Eu o peguei no colo assim que ele me alcançou. Leon me
escalou, até que seus bracinhos gorduchos estivessem ao redor do
meu pescoço. Encarando o bebê de cabelinhos ralos e escuros, me
perdi na simples alegria de ser pai.
— Paaaaaaaaaaaaaapai — Leon disse e meus olhos se
arregalaram.
A palavra, simples, mas carregada de significado, ecoou pela sala.
Por um instante, fiquei paralisado, incrédulo, até que a realidade do
momento me atingiu em cheio.
— Maísa! Você ouviu isso? — gritei ainda olhando para o bebê no
meu colo, a emoção transbordando em minha voz. — Leon disse
"papai"!
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— Eu... eu ouvi — Maísa respondeu, aproximando-se para se


ajoelhar ao nosso lado. — Meu Deus, Henrique, ele disse "papai"!
Meu peito se expandiu, cheio de orgulho e um milhão de outros
sentimentos. Era como se cada pedacinho de luta, cada desafio
enfrentado e cada vitória compartilhada com Maísa ao longo de
nossa jornada juntos, tivesse sido condensado naquele instante
singular.
Eu podia jurar que meu coração estava tentando escapar, não de
medo, mas de uma alegria avassaladora. A mistura de sentimentos o
dominando era tão complexa que eu mal conseguia distinguir todos.
Havia orgulho, claro, um orgulho profundo e puro por nosso filho
ter alcançado esse marco. Mas havia também gratidão - gratidão por
Maísa, por sua força, sua paciência e seu amor inabalável, gratidão
por nossos filhos e pela família que havíamos criado juntos.
E, acima de tudo, havia amor, um amor tão imenso que parecia
preencher cada canto vazio do universo.
Meu corpo reagiu de maneiras que eu não esperava. Uma lágrima
solitária, precursora de um turbilhão de emoções, deslizou pela
minha bochecha.
Sempre me considerei uma pessoa bastante contida, mas quando
se tratava da minha família, da mulher que eu amava e dos meus
filhos, o muro que eu havia construído ao redor de minhas emoções
mais profundas era constantemente derrubado.
As lágrimas vieram, não como um sinal de tristeza, mas como a
expressão mais pura da felicidade e do amor que transbordavam de
dentro de mim.
Abracei Maísa, olhando para Leon, e minha mente fez uma rápida
retrospectiva de tudo que havíamos vivido passou por minha cabeça
em um piscar de olhos.
Eu não apenas chorei; eu ri também, um riso que brotou do mais
profundo do meu coração, um riso que dizia "nós conseguimos". Nós

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havíamos navegado pelas águas turbulentas e chegamos a um lugar
de calmaria e alegria.
A palavra "papai", pronunciada pela boca pequena de nosso filho,
era mais do que apenas um marco em seu desenvolvimento; era um
testemunho do amor, da resiliência e da unidade da nossa família.
Era uma promessa de todos os momentos que ainda viriam, dos
desafios que enfrentaríamos juntos e das alegrias que
compartilharíamos.
— Um de três — eu disse para Maísa. — Faltam dois.
Ela gargalhou.
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A mesa de centro estava coberta por listas de convidados, ideias


para decorações e receitas de bolos que pareciam deliciosas, mas
desafiadoras.
Eu lia atentamente um guia sobre como criar uma decoração
temática de selva, repleta de animais selvagens de pelúcia, lianas
feitas de papel crepom verde e um bolo em forma de elefante.
Meus dedos deslizavam pelo tablet, alternando entre abas de
blogs de festas infantis, Pinterest cheio de inspirações e e-mails de
fornecedores confirmando os últimos detalhes.
De vez em quando, levantava os olhos para verificar os trigêmeos
brincando no tapete, garantindo que estavam seguros e felizes. Leon
estava entretido com um livro de imagens, virando as páginas com
mais entusiasmo do que cuidado.
Gael tinha encontrado um brinquedo musical e apertava os
botões repetidamente, encantado com os sons. Eduardo, por sua
vez, estava um pouco afastado, concentrado em empilhar blocos
coloridos.
Ele era determinado, uma vez que se apegava a uma tarefa, não
a largava enquanto não a executasse com perfeição, por isso,
enquanto os irmãos tinham o hábito de pular de brinquedo em
brinquedo, ou de brincar com vários ao mesmo tempo, Eduardo
estava havia meses apegado aos blocos.

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Eu me movia entre a sala e a cozinha, conferindo anotações,
ajustando planos e, de vez em quando, preparando pequenos
lanches para manter os meninos contentes.
Cada movimento era calculado para manter um olho nos bebês e
outro nas tarefas em mãos, uma dança materna que eu estava
aprendendo a aperfeiçoar com o tempo.
Meu celular vibrou em cima da mesa e um ping suave anunciou a
chegada de uma nova mensagem. Era de Geórgia.
Minha irmã estava encarregada das doçuras do aniversário dos
meninos e é claro que com um entusiasmo que só ela tinha, estava
enlouquecendo e me deixando louca também.
Abri a conversa e me deparei com uma série de fotos dos doces
que ela estava confeitando. Eram pequenos elefantes de açúcar,
leões de chocolate e macacos de marshmallow, cada um mais
encantador que o outro.
Eu não pude deixar de sorrir, e digitei rapidamente uma resposta.
Maísa: Estão incríveis, Gi! Os meninos vão
amar (e os adultos também).
Quase imediatamente, a resposta de Geórgia apareceu na tela.
Geórgia: Ah, você sabe, magia de tia! (Ou,
Dinda... Quando você vai admitir isso,
inclusive?) Acha que devemos adicionar girafas
de caramelo na lista? Achei uma receita que
parece perfeita.
Lendo sua sugestão, não pude evitar uma risada. Geórgia já
havia se autodeclarado madrinha das crianças, mesmo que Henrique
e eu ainda não tivéssemos conversado sobre o assunto. Estava na
lista, é claro, mas quando se tem três bebês, há sempre muitas
coisas na lista.
Maísa: Quem é a louca dos doces
personalizados agora, hein? A lista já está
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enorme, Gi!
Geórgia: Louca por doces? Eu? Apenas uma
tia dedicada querendo estragar os sobrinhos
com açúcar e amor. Além disso, acho que uma
girafa de caramelo seria a estrela da mesa!
Maísa: Ok, ok, você venceu. Vamos de girafa
de caramelo também. Mas só porque você é a
confeiteira-mágica. Os meninos e os pais
agradecem antecipadamente pelo aumento de
peso.
Geórgia: Perfeito! Será uma selva de
sabores deliciosos. E não se preocupe, a tia
(dinda, cof-cof!) Gi já tem planos de atividades
pós-festa para queimar todas essas calorias.
Maísa: Já que estamos no tema, numa escala
de 0 a 10, o quanto você me odiaria se eu
dissesse que mudei de ideia sobre o bolo? K k
crying.
Geórgia: De novo?
Maísa: Alguém precisa cancelar minha conta
no Pinterest.
Geórgia: Vou pedir ao meu cunhado para
providenciar isso.
Maísa: Até parece! Ele é muito pior do que
eu! Henrique me mostra ideias fofas de bolos a
cada cinco minutos. Nossa conversa do
WhatsApp se resume a fotos de festas, nas
últimas semanas.
Geórgia: Vocês querem me deixar de cabelo
branco antes do tempo, isso sim! O que você
pensou para o bolo? De novo...

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Maísa: O que você acha de um bolo em
camadas com o tema da selva? Estava pensando
em algo mais colorido.
Geórgia: Pelo menos essa é uma ideia mais
fácil do que o elefante esculpido que você queria
na semana passada.
Geórgia: Adoro a ideia! Que tal um bolo verde
com vinhas de açúcar descendo pelas laterais e
um topo com um leão, um elefante e, claro, uma
girafa? Poderíamos usar pasta americana para os
detalhes.
Maísa: Sim, sim, SIM!! Meu Deus, Geórgia! Eu
amei!!!
Geórgia: Vamos ver se você continua amando
pelos próximos dias, só não esquece que a festa
é semana que vem e que, em algum momento,
eu vou precisar realmente começar a fazer esse
bolo.
Maísa: Você é a melhor irmã do mundo!
Geórgia: E a melhor dinda também!
Ri da mensagem nada sutil da minha irmã, e me senti
incrivelmente grata por ela. Guardando o celular, olhei novamente
para os meninos brincando no tapete, meu coração cheio de amor
por minha família.
Foi nesse momento de distração feliz que Eduardo, até então
contente em sua brincadeira solitária, se apoiou no sofá e, de forma
hesitante, mas decidida, se colocou de pé.
Minha atenção imediatamente se voltou para ele, esquecendo
completamente a conversa sobre doces. O progresso de Eduardo era
um doce em si, um momento de pura alegria que superava qualquer
confeito.
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Ele permaneceu paradinho por um momento, balançando


levemente, como se testasse sua própria estabilidade. Meu coração
parou. Tudo ao redor pareceu congelar, exceto por Eduardo, que
olhou em volta, talvez surpreso com sua nova perspectiva do
mundo.
Quase sem respirar, vi Eduardo dar um passo vacilante, depois
outro, seus pequenos pés se movendo com uma determinação
trôpega. Queria chamar Henrique, queria que ele testemunhasse
aquele momento, mas temia que qualquer som abrupto pudesse
quebrar o encanto e assustar Eduardo.
— Henrique... — chamei, tentando manter minha voz calma e
baixa, apesar da emoção que borbulhava dentro de mim. — Vem
aqui, rápido, mas fica quieto...
Henrique apareceu no umbral da porta, um olhar de interrogação
em seu rosto que rapidamente se transformou em pura admiração
ao ver nosso pequeno dando seus primeiros passos incertos.
Nós dois ficamos em silêncio, assistindo, quase não ousando
respirar, enquanto Eduardo avançava pelo tapete, cada passo mais
confiante que o anterior, até que, inevitavelmente, suas perninhas
não aguentaram mais, e ele caiu de bumbum no chão.
O tombo pareceu não o abalar; ele simplesmente voltou a brincar
com seus blocos, como se dar passos não fosse a coisa mais incrível
que ele havia feito na vida.
Henrique e eu trocamos olhares, um misto de alegria, orgulho e
um pouco de incredulidade brilhando em nossos olhos.
Sem uma palavra, nos abraçamos, um abraço que dizia tudo. Era
um daqueles momentos simples, do dia a dia, que, eu sabia,
guardaria em minha mente e coração para sempre.
— Você não precisa voltar ao trabalho? — perguntei, curiosa,
quando Henrique permaneceu sentado conosco, um sorriso ainda
estampado em seu rosto, mesmo vários minutos depois de Eduardo
se juntar aos irmãos.

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Apesar de realmente estar presencialmente afastado da Borges &
associados, Henrique normalmente aproveitava qualquer momento
de calma para se dedicar aos seus projetos, fosse trabalhando
sozinho ou atendendo à conferências e videochamadas.
Ele sacudiu a cabeça, seu olhar fixo nos meninos.
— O trabalho pode esperar — disse ele, pegando o celular. — E
se ele fizer de novo? Não quero perder. — Com cuidado, ele tirou
uma foto dos trigêmeos brincando.
— Vou mandar para o Thomaz — anunciou, digitando
rapidamente uma mensagem. — Ele com certeza vai dizer que seus
afilhados são as crianças mais inteligentes do mundo.
Eu ri, concordando com a cabeça. Thomaz, o melhor amigo de
Henrique, e Geórgia, minha irmã, já haviam se autoproclamado
padrinhos dos meninos, uma titulação que nós ainda não havíamos
oficializado, mas que parecia tão certa quanto qualquer coisa.
— E Geórgia já está agindo como madrinha desde o dia em que
eles nasceram.
Henrique sorriu, parecendo contemplar uma ideia por um
momento antes de falar.
— Que tal oficializarmos isso na festa de um ano? Podemos fazer
um convite formal para Geórgia e Thomaz assumirem o posto
oficialmente.
A sugestão me aqueceu o coração. A ideia parecia perfeita
— Eu adoraria isso — respondi. — Seria um momento tão
especial, não só para nós, mas para eles também.
— Vamos fazer isso, então — disse Henrique e beijou meus lábios
com suavidade. — E se eles já são difíceis agora, que Deus nos
ajude depois que forem oficialmente padrinhos — resmungou
baixinho.
Eu ri.
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O silêncio na sala era um contraste gritante com o habitual


burburinho da presença de Maísa e dos meninos.
Sozinho, encarava a tela do computador, onde as palavras de um
e-mail recém-aberto pareciam dançar diante dos meus olhos, cada
letra um peso adicional sobre meus ombros. Na quietude da nossa
casa, o som do meu coração batendo parecia ensurdecedor.
Durante os últimos meses, havia dedicado cada momento ao
fortalecimento da nossa família, um tempo precioso que nos
permitiu curar as feridas do passado e reconstruir a confiança
perdida.
Esse período de reclusão da minha vida profissional, embora
necessário, havia cobrado seu preço, um preço que, até aquele
momento, eu não havia compreendido completamente.
O e-mail era claro: um grande contrato estava em jogo, um
daqueles contratos que podem definir o futuro de uma empresa, o
tipo de oportunidade que eu teria abraçado sem hesitação no
passado.
Mas agora, a exigência de retornar a São Paulo em caráter
definitivo pelos próximos seis meses lançava uma sombra sobre a
felicidade que havíamos construído. Como poderia deixar Maísa e as
crianças agora, quando cada dia parecia trazer um novo motivo para
ficar?

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Senti o peso do mundo sobre meus ombros, uma sensação
opressiva que tornava difícil até mesmo respirar. Minhas mãos
tremiam levemente enquanto relia o e-mail, procurando alguma
saída que até então me escapara.
A decisão parecia impossível: permanecer e potencialmente
sacrificar um futuro profissional pelo qual havia trabalhado tão
arduamente, ou partir e arriscar a felicidade que só recentemente
havíamos conseguido restaurar.
— Puta que pariu! — murmurei para mim mesmo, a voz baixa,
quase engolida pela vastidão da sala vazia.
A ideia de discutir isso com Maísa me enchia de ansiedade. Ela
havia sido minha rocha, meu farol durante os tempos mais sombrios,
e a última coisa que desejava era adicionar qualquer sombra de
dúvida ou preocupação à nossa vida.
Eu havia feito uma promessa a ela, a promessa de ficar, de nunca
mais nos colocar em uma posição como a que nos coloquei antes.
Ao mesmo tempo, sentia que guardar isso para mim não seria justo
com ela, nem com a garantia tácita de transparência que havíamos
dado um ao outro.
Levantei-me do computador, andando de um lado para o outro na
sala, tentando acalmar a tempestade dentro de mim. Cada passo era
um lembrete dos passos trôpegos de Eduardo, da risada de Leon, do
olhar curioso de Gael — momentos que poderia perder se escolhesse
partir.
Meu olhar foi atraído por um pequeno objeto caído sob a mesa de
centro — um carrinho de brinquedo, vermelho e desgastado pelo
uso, pertencente a Leon.
Agachei-me para pegá-lo, e o toque do plástico frio nas minhas
mãos desencadeou uma avalanche de memórias, transportando-me
para um momento que parecia tanto ontem quanto uma eternidade
atrás.
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Era uma tarde ensolarada, similar a esta, e eu estava no jardim


com os meninos. Leon tinha acabado de receber o carrinho como
presente e, com os olhos brilhando de excitação, o batia no
gramado, empurrando o brinquedo com uma alegria contagiante.
Eduardo e Gael, observavam fascinados, seus olhares fixos no
irmão como se esperassem pelas suas vezes de fazer o mesmo.
Apesar de também terem brinquedos novinhos aos seus lados.
Eduardo havia ganhado novos blocos e Gael, um livro
emborrachado. Escolhi de acordo com os brinquedos preferidos que
eles já tinham.
Maísa estava ao meu lado, sua cabeça apoiada no meu ombro,
enquanto compartilhávamos risadas e comentários carinhosos sobre
as travessuras dos meninos. Minha vida tinha mudado tanto nos
últimos meses, que eu me sentia um homem completamente
diferente.
Eu não era mais a mesma pessoa amarga que havia sofrido
aquele acidente, meses atrás, arriscando a própria vida e a de
outras pessoas num esforço inútil de se punir.
Cada um dos meus filhos havia trazido um novo significado à
minha existência. E receber uma segunda chance com a mãe deles?
Maísa e os meninos eram tudo o que eu não sabia que faltava na
minha vida, até encontrá-los.
Segurando o carrinho em minhas mãos, senti uma onda de
emoção me invadir. A lembrança daquela tarde, do calor do sol em
nossa pele e do som das risadas dos nossos filhos ecoando pelo ar,
era um lembrete palpável do que estava em jogo.
O peso da decisão que eu tinha que tomar parecia ainda mais
avassalador, cada possibilidade carregada com o potencial de mudar
o curso das nossas vidas. E se Maísa não entendesse?
Coloquei o carrinho sobre a mesa e encarei a sala vazia. Eu não
queria voltar para o tempo em que cada canto da minha vida era um
reflexo daquela sala. Jamais.

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Mas eu também não queria preocupar Maísa e arriscar estragar a
experiência da festa de um ano das crianças. Minha mulher estava
preparando cada detalhe da comemoração havia meses. Nós
tínhamos feito muitos planos, Thomaz estava enlouquecido, ansioso
para finalmente conhecer Leon, Gael e Eduardo pessoalmente.
Depois da festa de aniversário dos meninos, decidi.
Em dois dias, eu compartilharia minhas preocupações com Maísa
e discutiríamos nosso futuro com honestidade e abertura. Qualquer
que fosse a decisão, nós a tomaríamos juntos, como a família que
éramos.
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— Você viu isso, Henrique? — disse eu, apontando para Leon,


que tentava abraçar um rinoceronte de pelúcia quase do seu
tamanho. — Ele já escolheu seu animal favorito.
A festa de aniversário dos trigêmeos transbordava alegria e amor
em cada detalhe cuidadosamente planejado.
O tema safari transformou o jardim dos fundos da casa dos meus
pais em uma pequena selva, com decorações que variavam de lianas
de papel crepom penduradas no teto a animais selvagens de pelúcia
espalhados por todos os cantos.
Com a conta bancária dos pais dos meus filhos, eu poderia ter
feito uma festa em qualquer lugar, mas achava importante que os
meninos entendessem o significado dos lugares desde cedo. O
quintal dos meus pais era enorme, com uma área gramada e outra
de piso, espaço mais do que o bastante para a festa intimista que eu
havia organizado.
A felicidade parecia estar saindo pelos meus poros. Eu sorria
tanto que minhas bochechas doíam, vestindo uma blusa com
estampa de zebra e uma saia confortável que me permitia mover-me
com facilidade enquanto recebia os convidados ao lado de Henrique.
Os meninos, cada um com um macacão estampado de animais
diferentes - leão, girafa e elefante - exploravam o espaço com
olhares curiosos e risadas contagiantes. Era evidente que eles
estavam aproveitando cada momento, fascinados pelas cores e
formas que os rodeavam.

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Henrique riu, seu braço envolvendo minha cintura enquanto
observávamos nossos filhos brincando.
— E parece que o Gael prefere o tigre. Olha só como ele não
desgruda dele — ele respondeu, seu olhar cheio de ternura.
Eduardo, por sua vez, estava mais interessado em uma caixa de
blocos que montava e desmontava com concentração,
completamente alheio à temática selvagem ao seu redor.
Após observar Eduardo absorto em sua própria pequena
engenharia de blocos, completamente imerso em um mundo que só
ele entendia, Geórgia se aproximou dele com um sorriso carinhoso e
brilho nos olhos.
Ela se agachou ao lado dele, admirando por um momento sua
concentração antes de interagir.
— Dudu, quer voar alto como um avião? — perguntou, sua voz
cheia de entusiasmo e carinho.
Sem esperar por uma resposta verbal, Geórgia o levantou com
cuidado, segurando-o firme sob os braços.
Com um movimento suave e seguro, começou a jogá-lo
levemente para o ar, pegando-o de volta em seus braços com a
mesma suavidade. Eduardo soltou gargalhadas alegres, o som
contagiante enchendo o ambiente.
Os olhinhos dele brilhavam de emoção a cada "voo", e um sorriso
encantador iluminava seu rosto.
Não demorou muito para que Leon e Gael, atraídos pelas risadas
do irmão, se aproximassem de Geórgia, estendendo os bracinhos em
uma clara solicitação por atenção e carinho.
Eles olhavam para ela com uma mistura de admiração e desejo
de participar da brincadeira, seus rostinhos expressando uma
expectativa inocente.
— Oh, parece que temos mais passageiros para o voo — Geórgia
exclamou, rindo, enquanto tentava equilibrar Eduardo em um braço
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e estender o outro para acolher Leon ou Gael.


Vendo a cena, Henrique e eu nos aproximamos, sorrindo com a
interação entre a tia e os sobrinhos. Henrique pegou Gael, imitando
o gesto de Geórgia e lançando-o suavemente para o ar, provocando
mais risadinhas.
Eu me abaixei ao lado de Leon, levantando-o em um abraço e
rodopiando com ele.
— Acho que vamos precisar de mais braços aqui — brinquei,
olhando para Henrique e Geórgia.
— Ou talvez de um avião maior — Henrique acrescentou,
colocando Gael no chão e pegando Leon para dar-lhe sua vez de
"voar".
Os risos e gritinhos empolgados dos meninos e as conversas
alegres dos convidados enchiam o espaço aberto. Foi nesse
momento que Thomaz fez sua entrada triunfal.
Eu sabia que o melhor amigo de Henrique estava muito
empolgado com sua primeira visita aos meninos, mas eu jamais teria
imaginado que isso o faria aparecer como um papai noel fora de
época na festa de aniversário de Leon, Gael e Eduardo.
Thomaz entrou no jardim carregado de presentes tão grandes e
coloridos que quase não passavam pela entrada, cada um adornado
com laços extravagantes e brilhantes, chamando a atenção de todos.
— Preparem-se para a invasão dos presentes mais incríveis que
esses pequenos já viram! — ele anunciou, me arrancando uma
gargalhada, tanto pelo tom quanto pelo seu esforço equilibrar um
monte de caixas enquanto andava até nós.
Os meninos, imediatamente atraídos pela novidade e pelo
colorido das embalagens, abandonaram suas brincadeiras e se
aproximaram, olhinhos arregalados e curiosos.
Leon foi o primeiro a chegar até o tio, tentando tocar os laços
brilhantes, seguido de perto por Gael e Eduardo, que engatinhavam

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apressadamente em direção aos presentes.
Geórgia, que até então havia sido a tia favorita indiscutívelmente,
observava a cena com uma expressão mista de surpresa e um leve
ciuminho divertido.
— Ah, então é assim, Thomaz? Tentando comprar o amor dos
meus sobrinhos com presentes gigantes? — brincou, cruzando os
braços e fingindo estar ofendida, mas o sorriso em seu rosto
entregava sua diversão com a situação.
Thomaz colocou as caixas no chão com um exagero teatral e se
ajoelhou ao lado dos meninos, abrindo os braços para recebê-los.
— Nada de comprar amor aqui, Geórgia! Estou apenas garantindo
que meus afilhados saibam quem é o padrinho mais legal — disse
ele, rindo, enquanto Leon, Gael e Eduardo se aproximavam, mais
interessados nos laços e embalagens do que no conteúdo, ou no
homem que os trouxe, propriamente dito.
Henrique e eu nos juntamos à cena, observando com alegria a
interação. Era impossível não rir do entusiasmo de Thomaz e da
maneira como os meninos, ainda tão pequenos, já pareciam
entender que aquele momento era especial.
— Bem, Thomaz, parece que você causou uma ótima primeira
impressão — comentei, ajudando a organizar os presentes para que
os meninos pudessem explorá-los com mais facilidade.
— Oh, eu apenas comecei, Maísa. Espere até eles verem o que
tem dentro do carro. — Thomaz piscou um olho, claramente
satisfeito com a comoção que havia causado.
— Tem mais? — Geórgia meio perguntou, meio exclamou e
Thomaz assentiu, muito satisfeito consigo mesmo. Eu gargalhei.
— E a mãe dos sobrinhos? Não ganha um abraço?
Thomaz, com um sorriso travesso ainda brincando em seus
lábios, levantou-se rapidamente e abriu os braços para mim.
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— Claro que sim. — Ele me abraçou, e, logo depois, foi


cumprimentar Geórgia. — E a tia mais dedicada do mundo merece
não só um abraço, mas também uma medalha — disse ele,
envolvendo-a num abraço caloroso. Era a primeira vez que ele a via
pessoalmente também, embora os dois já tivessem se conhecido por
videochamadas.
Minha irmã riu, finalmente cedendo ao charme inegável de
Thomaz.

— Só não me faça competir com os presentes, hein? — brincou


Geórgia, retribuindo o abraço com igual afeto. — Eu não tenho um
carro cheio de surpresas.
Henrique se aproximou, estalando a língua e balançando a
cabeça em uma falsa repreensão aos padrinhos que escolhemos
para os nossos filhos.
— Acho que vamos precisar de um estacionamento só para os
presentes do Thomaz a partir de agora — disse ele, provocando
ainda mais risadas.
Thomaz, aproveitando a deixa, abraçou o amigo com força. Eles
não se viam havia meses.
— Senti sua falta, Henrique — disse.
— Também senti a sua, Thomaz — ele respondeu, em meio ao
abraço.
Quando se desvencilhou de Henrique, Thomaz imediatamente
pegou dois dos meninos no colo e indicou com a cabeça para que o
pai pegasse o terceiro.
— Bem, então, que tal irmos ver o que mais o Tio Thomaz trouxe
para vocês? — sugeriu aos meninos, que, embora não entendessem
completamente, sentiram a excitação no ar e começaram a se agitar
com expectativa.
Todos nós nos dirigimos para fora, seguindo Thomaz, que parecia
um pavão, de tão orgulhoso, carregando um bebê em cada braço.

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Ao chegarmos ao carro, Thomaz me pediu para abrir o porta-
malas do SUV, revelando uma pilha de brinquedos ainda maiores e
mais coloridos do que aqueles com que entrou na festa.
— Você realmente não faz as coisas pela metade, não é? —
Geórgia disse, admirada.
— Quando se trata dos meus afilhados, só o melhor!

— A festa está incrível, sério! — Thomaz disse. — Vocês dois,


definitivamente, merecem ganhar o prêmio de pais do ano!
Após a euforia dos presentes e a alegria contagiante dos
meninos, encontramos um momento de calmaria em um canto mais
reservado do jardim, onde as risadas e brincadeiras das crianças
chegavam até nós como um eco distante.
— Obrigada, Thomaz! Nós amamos planejar cada detalhe, não é,
Henrique?
— Sim, amor — ele concordou e beijou meus cabelos.
Thomaz nos observou com um sorriso contido.
— Estou muito feliz por vocês, de verdade — disse, e eu sabia
que não estávamos mais falando da feta. Sorri para ele e deixei um
suspiro de felicidade escapar pelos meus lábios. Me acomodei
melhor na cadeira, — E acho que esse é um momento tão bom
quanto qualquer outro para eu contar que, acreditem ou não, estou
apaixonado — anunciou ele, uma mistura de entusiasmo e um pouco
de autoironia na voz.
Eu não pude evitar uma risada, lembrando-me que Henrique
havia me contado que se apaixonar era basicamente um traço da
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personalidade de seu melhor amigo.


— Segundo Henrique, você vive se apaixonando — brinquei,
lançando um olhar cúmplice em direção a Henrique, que nem tentou
conter um sorriso.
— Ei, eu posso ou não ter um coração um pouco... volúvel —
Thomaz admitiu, encolhendo os ombros. — Mas desta vez é
diferente, prometo. Ela é incrível.
Henrique, finalmente cedendo ao sorriso, acrescentou:
— Thomaz, meu amigo, se tivéssemos um centavo para cada vez
que você disse isso...
— Ah, mas vejam, vocês dois encontraram o amor verdadeiro.
Por que eu não posso?
— Claro que pode, Thomaz. Estamos apenas brincando com você.
Conte mais sobre ela. O que a torna tão especial?
Thomaz então se lançou em uma descrição encantada de sua
nova paixão, detalhando suas qualidades, desde sua inteligência
afiada e senso de humor até a maneira como ela o fazia querer ser
uma versão melhor de si mesmo.
Era evidente pelo modo como falava que algo nele havia mudado,
que talvez, desta vez, o amor tivesse mesmo encontrado uma
maneira de se enraizar mais profundamente em seu coração.
Henrique e eu nos entreolhamos, um reconhecimento silencioso
de que, apesar das brincadeiras, nada nos deixaria mais felizes do
que ver nosso amigo encontrar alguém que o completasse da
mesma maneira que nós havíamos nos encontrado.
— Espero que vocês a conheçam em breve — Thomaz disse com
um sorriso amplo e eu balancei a cabeça, concordando.
— Claro! Vamos organizar isso.
— Já já isso vai ser fácil de resolver — garantiu, me lançando
uma piscadinha. — Nem acredito que, muito em breve, terei os
meus afilhados pertinho de mim o tempo todo.

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Uma onda de confusão me atingiu e franzi as sobrancelhas,
completamente alheia à conversa que parecia já ter acontecido sem
a minha presença.
— Pertinho de você? Como assim? — perguntei, a confusão clara
em minha voz.
Olhei para Henrique, buscando alguma pista em seu rosto, que,
para minha surpresa, tinha perdido um pouco da cor.
— Da mudança de vocês para São Paulo, é claro — Thomaz disse,
tão casualmente que por um momento, pensei ter ouvido errado.
— Que mudança?
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Maísa e eu nos sentamos na sala, um espaço que tantas vezes


havia sido preenchido por risadas e conversas leves, mas que agora
estava silenciosa, carregada por uma tensão palpável.
O clima entre nós havia se tornado estranho no momento em que
Thomaz falou mais do que deveria, mas em meio à festa, foi
impossível desfazer o mal-entendido.
Maísa olhou para o lado, seu olhar fugindo do meu. Ela estava
claramente magoada, seus braços cruzados numa postura defensiva
que eu não via havia meses. Eu praticamente podia sentir a mistura
de tristeza e traição, que eu nunca quisera causar, emanando dela.
— Maísa, eu... — comecei, tentando encontrar as palavras certas,
mas a hesitação em minha voz só parecia aprofundar a distância
entre nós.
— Henrique, como você pôde sequer considerar isso sem falar
comigo primeiro? — ela me interrompeu e sua voz estava carregada
de emoção, e seus voltaram a encarar os meus, buscando uma
explicação, qualquer coisa que fizesse sentido.
Engoli em seco, sentindo um aperto no peito. A dor em suas
írises escuras era insuportável para mim.
— Eu não tomei nenhuma decisão — me apressei em explicar. —
Eu queria conversar com você, mas não queria atrapalhar a festa na
qual você passou os últimos meses trabalhando duro. Achei melhor
esperar para conversarmos depois.

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Maísa se levantou do sofá, como se ficar parada ali tivesse se
tornado uma tarefa difícil demais.
— Para conversarmos ou para você me informar o que vai fazer?
— desfiou e me levantei também.
Espalmei as mãos em suas bochechas, forçando seu olhar a
permanecer no meu e ela não me afastou, considerei isso uma
vitória.
— Conversarmos. Sim, eu recebi um ultimato para voltar à São
Paulo, um contrato que só vai ser assinado se eu me comprometer a
estar presencialmente na Borges pelos próximos seis meses...
— Seis meses — ela sussurrou num fio de voz, seus olhos já se
enchendo de lágrimas.
— Mas — recomecei, enfatizando a palavra com tanta força
quanto era possível sem arriscar acordar os bebês, que dormiam no
andar de cima. — Eu sempre soube que era algo que precisávamos
decidir juntos. Thomaz assumiu que eu já havia me decidido, porque
antes de você, antes dos nossos filhos, eu provavelmente já teria
decidido mesmo, nada ficaria entre mim e o um trabalho, mas eu te
fiz uma promessa, Maísa. Você se lembra da promessa que eu te fiz?
— perguntei, sentindo-me desesperado para que ela acreditasse em
mim.
Maísa me observava atentamente, processando minhas palavras.
A mágoa parecendo finalmente abrir espaço para outros
sentimentos.
— Então você ainda está em dúvida sobre o que fazer? Você quer
um conselho? Quer que eu te libere da promessa? — questionou
cautelosa.
Neguei, ainda segurando seu rosto.
— O que eu quero, amor, é que decidamos juntos o que fazer. É
sobre a nossa família, nosso futuro... isso é algo que construímos
juntos.
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Ao dizer isso, notei Maísa desfazendo o cruzado dos braços, um


sinal claro de que as barreiras entre nós começavam a se
desmanchar. Senti um alívio imenso, como se um peso enorme
tivesse sido retirado dos meus ombros.
— O que você quer dizer? — perguntou ela, sua voz mais suave
agora, substituindo a defensiva inicial por uma curiosidade
cautelosa.
— Que se você ainda não quiser voltar para São Paulo, eu não
vou voltar. Não sem você, não sem nossos filhos. Contrato nenhum é
mais importante do que vocês.
Ao ouvir minhas palavras, Maísa cobriu o rosto com as mãos, e
seus ombros começaram a tremer levemente. Quando ela as baixou,
vi lágrimas brilhando em seus olhos, um misto de alívio e emoção
pura.
— Eu estava tão apavorada — confessou ela, a voz embargada
pelo choro. — Apavorada com a perspectiva de você estar
planejando ir embora... sem nós.
Eu me levantei e a abracei, colando nossas testas.
— Eu nunca faria isso, Maísa. Nunca. Nossa família, você... são a
parte mais importante da minha vida. — Enquanto a abraçava, senti
uma onda de determinação me invadir.
Era o momento de renovar não apenas nossas promessas do
passado, mas também de olhar para o futuro com esperança e
compromisso.
— Eu quero que você saiba — continuei, me afastando apenas o
suficiente para que ela pudesse ver todo o meu rosto, — que não há
nada neste mundo que eu valorize mais do que você e nossos filhos.
Então, movido por um impulso de amor e certeza, ajoelhei-me
diante dela, segurando suas mãos entre as minhas. Meu coração
batia com uma força que eu nunca havia sentido antes.

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Era como se cada batida ecoasse o amor profundo e a gratidão
que eu sentia por ter ela na minha vida, por termos superado juntos
tantos desafios para chegar até aqui.
Meu peito estava cheio de uma mistura de nervosismo e
excitação, mas acima de tudo, de certeza. Certeza de que queria
passar o resto da minha vida ao lado dela, enfrentando o que quer
que o futuro nos reservasse, juntos.
Pensava em tudo o que havíamos construído: uma família linda,
uma casa cheia de amor e risadas, momentos de alegria e até os de
desafio que, de alguma forma, nos trouxeram ainda mais perto um
do outro.
Pensava nos nossos filhos, na felicidade que irradiavam, e na
família que continuaríamos a ser, não importava o que acontecesse.
Era essa visão de futuro, essa promessa de dias compartilhados e
sonhos realizados, que me impulsionava.
O que me fez ajoelhar foi uma necessidade incontrolável de
solidificar e celebrar nosso amor de uma maneira que fosse tão real
e permanente quanto o sentimento que nos unia.
Queria dar a Maísa, e a mim mesmo, a certeza de um
compromisso que superava as palavras, que se enraizava em ações
e escolhas diárias. Era um desejo de mostrar a ela, de maneira
incontestável, que ela era minha prioridade, meu amor, minha vida.
A surpresa em seu rosto, seguida pela alegria pura que iluminou
suas feições, foi o único sinal de que eu precisava saber que havia
tomado a decisão certa.
— Maísa, você é o amor da minha vida, a mãe dos meus filhos,
minha parceira em tudo. — As palavras fluíam de mim com uma
clareza e uma verdade que nunca havia sentido antes. — Quero que
sejamos uma família não apenas no coração, mas em todos os
sentidos possíveis. Casa comigo?
As lágrimas em seus olhos agora brilhavam com algo mais —
amor, felicidade. Ela assentiu freneticamente, incapaz de falar, mas a
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mensagem era clara em seu sorriso radiante e no aperto firme de


suas mãos nas minhas.
— Sim, Henrique. Sim, eu aceito.
Sua voz, embora embargada pela emoção, carregava uma força e
uma certeza que me envolveram como um abraço.
Levantei-me rapidamente, envolvendo-a em meus braços,
sentindo o coração dela batendo contra o meu. O abraço era nosso
refúgio, um lugar onde palavras não eram necessárias, pois tudo
que importava estava contido naquele gesto de união.
As lágrimas de Maísa molhavam minha camisa, mas eu mal as
notava, perdido na magnitude do momento. Havia um sentimento de
renovação, como se, ao dizer sim ao casamento, estivéssemos
também reafirmando nosso compromisso de enfrentar juntos
qualquer desafio que a vida nos trouxesse.
— Eu te amo, Maísa. Mais do que palavras podem expressar —
sussurrei, meu rosto enterrado em seus cabelos. — E prometo,
todos os dias, fazer você se sentir tão amada quanto você me faz
sentir.
As dúvidas que cercavam a sala quando nos sentamos no sofá,
minutos antes, foram imediatamente substituídas por uma alegria
profunda e uma certeza inabalável com sua resposta.
Estávamos juntos nisso, hoje e sempre, unidos por um amor que
havia resistido às provas do tempo e crescido ainda mais forte diante
dos desafios.
Selei nossa promessa com um beijo que carregava todas as
esperanças e sonhos para o nosso futuro. E, naquela noite,
enquanto a casa dormia, nós dois estávamos acordados, abraçados,
e fazendo planos para uma vida inteira juntos.

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A luz suave da manhã acariciou meu rosto, despertando-me para
o dia que mudaria minha vida para sempre.
Por um momento, permaneci imóvel na cama, permitindo-me
absorver a serenidade que antecedia a tempestade de emoções e
acontecimentos. Era o dia do meu casamento, o dia em que
Henrique e eu, junto aos nossos preciosos trigêmeos, começaríamos
um novo capítulo da nossa história.
Levantei-me, sentindo uma mistura de nervosismo e excitação
pulsando em minhas veias. O reflexo no espelho mostrava um
sorriso que mal podia conter, um sorriso que falava de sonhos
prestes a se tornar realidade.
Enquanto me vestia com um roupão leve, meu coração batia em
um ritmo acelerado, cada batida ecoando a promessa de amor e
união que o dia trazia.
Ao descer para o café da manhã, encontrei minha família reunida,
os rostos iluminados por sorrisos e bons desejos. Meus pais me
abraçaram, seus olhos brilhando com lágrimas de felicidade,
enquanto Geórgia, sempre a mais expressiva, pulava de alegria,
incapaz de conter sua emoção.
— Maísa, você vai estar deslumbrante! — ela exclamou,
escolhendo meu café da manhã para mim. Consciente dos nervos
que dançavam em meu estômago, ela serviu apenas algumas frutas
e duas torradas no prato.
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O dia passou em um borrão de risadas e preparativos. Quando o


vestido de casamento foi trazido para o quarto, um suspiro coletivo
encheu o espaço.
Ele era uma obra de arte, simples e elegante, com detalhes sutis
de renda e uma cauda que parecia flutuar como uma nuvem. Cada
detalhe do vestido simbolizava a pureza e a força do amor que
Henrique e eu compartilhávamos, um amor que havia resistido ao
teste do tempo e das adversidades.
Minha mãe e Geórgia me ajudaram a vesti-lo, seus movimentos
cheios de cuidado e carinho.
Permiti-me mergulhar nas reflexões sobre a jornada tortuosa e,
ao mesmo tempo, maravilhosa que Henrique e eu percorremos
juntos. Cada toque de renda, cada prega do tecido parecia contar a
história de nossa união, das tempestades que enfrentamos até a
calmaria que agora nos envolvia.
Até mesmo o quarto da minha infância, onde eu estava naquele
momento, de certa forma, contava parte da nossa história.
Lembranças da dor da separação, dos dias nublados em que o
futuro parecia incerto, vieram à tona, contrastando vividamente com
o brilho do amor reacendido que agora iluminava nosso caminho.
Foi em nossos momentos mais difíceis que aprendemos o
verdadeiro significado da força, da paciência e do perdão,
reconstruindo nosso relacionamento peça por peça com mais solidez
e profundidade do que jamais imaginamos.
Entre essas reflexões, a vibração do meu celular sobre a
penteadeira trouxe-me de volta ao presente. Era uma mensagem de
Thomaz, sempre oportuno, acompanhada de uma foto do mais belo
buquê de flores que já vi, suas cores vibrantes um lembrete da
alegria e do apoio que nossos amigos e familiares nos ofereciam.
Thomaz: Para a noiva mais radiante,
que sua caminhada até o altar seja tão

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luminosa quanto seu sorriso. Estamos
todos aqui por você, hoje e sempre.
— Olha só o que o Thomaz mandou — disse, mostrando a
mensagem para minha mãe e Geórgia, que se juntaram a mim em
um coro de exclamações admiradas.
— Você está pronta para começar este novo capítulo, querida? —
minha mãe perguntou, sua voz embargada pela emoção.
— Com todo o meu coração — respondi, minha voz firme apesar
das lágrimas que ameaçavam cair. — Com Henrique ao meu lado,
sinto que podemos enfrentar qualquer coisa.
— Henrique vai perder o fôlego quando te ver — Geórgia
garantiu, sorrindo, seu tom brincalhão escondendo a profundidade
de seu afeto.
Nós compartilhamos risadas e lágrimas, cada abraço e palavra
trocada tecendo uma tapeçaria de amor e apoio que eu levaria
comigo ao altar.
O reflexo no espelho agora mostrava uma noiva pronta para
caminhar em direção ao seu futuro.
O vestido abraçava cada curva com suavidade, a renda
desenhando padrões intrincados sobre a pele, e o véu caía como
uma cascata de luz ao redor dos meus ombros. Meus cabelos
estavam presos em um coque baixo e com cachos modelados
emoldurando meu rosto, e minha maquiagem era leve.
Meus pais e minha irmã ao meu lado, segurando minha mão,
reforçavam a certeza de que esse passo era apenas o começo de
uma jornada maravilhosa.
— Vamos fazer isso — disse Geórgia, sorrindo através das
lágrimas, enquanto nos dirigíamos para a cerimônia.
O caminho até a igreja foi feito em um silêncio contemplativo, o
mundo lá fora parecia mover-se em câmera lenta, cada rua e cada
rosto um borrão à margem da minha consciência focada.
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Ao chegar à igreja, o realismo do momento finalmente se


assentou sobre mim. Respirei fundo, segurando o buquê que
Thomaz havia enviado um pouco mais forte, como se ele fosse um
talismã contra o nervosismo que ameaçava surgir.
Caminhar pela nave foi um verdadeiro desfile de emoções.
Amigos e familiares se voltavam para me ver, seus rostos iluminados
por sorrisos e lágrimas de felicidade. Cada passo que dava era
acompanhado por uma onda de amor e apoio emanando deles,
fortalecendo meu coração.
Mas nada se comparou à emoção que senti ao ver Henrique no
altar, esperando por mim. Ele vestia um fraque chumbo, e conjunto
da sua imagem deixou minhas pernas bambas.
Ao seu lado, nossos trigêmeos, pequenos em seus trajes de festa,
completavam a cena que há tempos sonhávamos.
Henrique me olhava com uma mistura de admiração e emoção,
um brilho de lágrimas em seus olhos ao testemunhar o momento
pelo qual tanto havíamos lutado para chegar.
Enquanto eu me aproximava do altar, cada passo parecia
suspender o tempo, ampliando a intensidade do momento que se
aproximava.
Meu noivo me esperava, um pilar de força e amor, seus olhos
encontrando os meus com uma profundidade que prometia
eternidade. O ambiente estava impregnado de expectativa e alegria,
enquanto familiares e amigos se reuniam para testemunhar nossa
união.
Caminhar em direção a ele, com nossos filhos por perto, foi o
momento mais significativo da minha vida. Cada passo era um
lembrete da força do nosso amor, da beleza da família que havíamos
construído e da promessa de um futuro juntos, cheio de amor,
desafios compartilhados e alegrias incontáveis.
Ao alcançar o altar e entregar meu buquê para que Geórgia o
segurasse, Henrique e eu trocamos olhares que diziam tudo que as

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palavras não podiam expressar.
Nossas mãos se encontraram, e uma corrente elétrica de amor e
compromisso nos uniu ainda mais. O padre começou a cerimônia,
mas o mundo ao redor desvaneceu, deixando apenas Henrique e eu
em nosso próprio universo particular.
Quando chegou o momento de trocar nossos votos, palavras que
havíamos escrito um para o outro, o silêncio se acomodou sobre
nós. Eu comecei, minha voz trêmula, mas firme, cada palavra
carregada de significado e história.
— Henrique, diante de todos aqui presentes, eu prometo te amar
e te respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos
os dias de nossa vida. Você me mostrou o verdadeiro significado da
força e do perdão, e juntos, superamos obstáculos que pareciam
intransponíveis. Nossa jornada até aqui não foi fácil, mas cada
desafio nos fez mais fortes, mais unidos. Hoje, eu escolho você para
ser meu companheiro de vida, meu porto seguro, meu grande amor.
Juntos, enfrentaremos o que vier, construindo uma vida repleta de
amor, risadas e sonhos compartilhados.
Henrique então falou, sua voz cheia de emoção e certeza.
— Maísa, minha amada, minha parceira, minha melhor amiga,
diante de Deus e de todos que nos são queridos, eu prometo ser teu
apoio, teu confidente, teu abrigo. Em cada olhar, em cada toque, eu
te prometo meu amor incondicional, minha lealdade eterna, minha
dedicação sem fim. Você é a luz que guia meu caminho, a força que
me sustenta, a paz que acalma minha alma. Eu te escolho hoje e
sempre, para caminhar ao meu lado, compartilhando cada alegria,
superando cada adversidade, celebrando cada vitória. Juntos,
criaremos uma vida de infinitas possibilidades, ancorados no amor
que nos une.
Após a troca de votos, o padre nos declarou marido e mulher, e o
beijo que selou nossa união foi um testemunho do poder
transformador do amor, da paciência e da fé um no outro.
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Não importava o que o futuro reservasse, enfrentaríamos juntos,


e depois, celebraríamos, exatamente como estávamos fazendo
naquele dia.

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TRÊS ANOS E MEIO DEPOIS
— Cuidado com a roseira, Leon! — minha voz se elevava em um
misto de alerta e riso, enquanto Leon fazia uma curva perigosa perto
do nosso pequeno jardim. Ele atendia com um aceno, o sorriso
brilhante no rosto marcado pela diversão.
Eduardo, o aventureiro contemplativo, parava para examinar uma
borboleta que pousara brevemente em sua mão, seus olhinhos
arregalados de admiração.
Gael, sempre o mais destemido, tentava escalar uma pequena
árvore, seus esforços observados atentamente por Henrique, pronto
para intervir se necessário.
Era uma cena de caos organizado, um retrato perfeito da vida
que havíamos escolhido e construído juntos. A decisão de nos
mudarmos para São Paulo havia se revelado a escolha certa,
permitindo-nos crescer enquanto família, enfrentar novos desafios e
aproveitar cada momento de alegria.
Olhando para Henrique, que agora tentava resgatar Gael da
árvore, sentia uma onda de amor e admiração por esse homem que
era meu parceiro em cada aspecto da vida, e que assim como vinho,
parecia só melhorar com o tempo.
Ele olhou para mim, um sorriso cúmplice compartilhado, e em seu
olhar, vi refletido tudo o que sentíamos: felicidade, realização e um
amor profundo que continuava a crescer a cada dia.
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— Mãe, olha o que eu consegui! — Eduardo correu até mim, a


borboleta tendo partido, mas em suas mãos, ele trazia uma flor
despretensiosa, colhida do nosso jardim.
— É linda, Dudu. Depois que vocês encontrarem o tesouro que o
papai escondeu, vamos colocá-la em um vaso dentro de casa, o que
acha? — sugeri, e ele assentiu com entusiasmo, depois, voltou a
correr atrás do prêmio que Henrique prometeu. A tarde avançava, e
a caça ao tesouro organizada por Henrique estava a todo vapor.
Cada um dos trigêmeos, exibia traços de personalidade que
Henrique e eu havíamos observado e nutrido com tanto amor ao
longo dos anos. Leon, com sua determinação e liderança nata,
tomava a frente, analisando cuidadosamente cada pista.
Eduardo, parava para contemplar cada detalhe do jardim,
buscando significados ocultos nas pistas. E Gael corria de um lado
para o outro, a excitação pulsando em cada passo.
Da varanda, eu observava tudo através da lente da minha câmera
fotográfica, capturando não apenas imagens, mas pedaços de
tempo, risos e travessuras que formariam as memórias preciosas de
nossa família.
— Achei! — o grito de triunfo de Leon ecoou pelo jardim, seguido
pelos risos empolgados de Gael e Eduardo, que se reuniram ao redor
do irmão para ver o tesouro descoberto.
Henrique se juntou a ele e eu continuei a registrar tudo, cada
sorriso, cada abraço, imortalizando a alegria daquele dia.
Quando a caça ao tesouro chegou ao fim, e os prêmios foram
compartilhados entre risadas e histórias animadas, senti uma onda
de gratidão me envolver.
Grata por Henrique, meu parceiro incansável na jornada da vida;
grata pelos nossos filhos, fontes inesgotáveis de alegria e inspiração;
e grata pela vida que tínhamos, repleta de amor, aventura e
felicidade.

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Quando o céu começou a escurecer, os trigêmeos, agora
cansados mas imensamente felizes, se aconchegaram em nossos
braços. A vida em São Paulo, com seus desafios e recompensas,
havia se tornado o cenário perfeito para nossa família crescer e
florescer.
Olhando para Henrique, que compartilhava do mesmo sentimento
de contentamento e gratidão, percebi que não importava onde
estivéssemos, desde que estivéssemos juntos.
Nossa família era nosso maior tesouro, e cada dia era uma
oportunidade para celebrar o amor que nos unia. Virei a câmera
ainda em mãos, para nós, tirando uma selfie de nós cinco.
Os meninos fizeram careta e Henrique colocou “chifrinhos” em
mim. Eu sorri. O que mais eu poderia fazer? Eu era a mulher mais
feliz do mundo.
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Ei, você! Sim, você que segurou firme até o fim desta montanha-
russa literária. Agarre-se, porque agora vem a parte em que eu
tento agradecer a todos sem soar como um discurso de Oscar (mas
se a música começar a tocar, prometo terminar rápido).
Primeiro, um MUITO OBRIGADA gigante para a minha família, a
verdadeira liga da justiça, sempre pronta para me salvar do vilão da
procrastinação e dos monstros da dúvida. Mãe, pai, irmão(a),
cachorro, papagaio: vocês são os heróis dessa história. Sem vocês,
eu provavelmente estaria falando sozinha em algum canto, em vez
de escrever livros.
Aos meus amigos, que me viram nos meus melhores e piores
dias, e foram ignorados no whatsapp muitas vezes enquanto eu
escrevia esse livro (Pois é, vocês ainda estão aqui). Obrigada por
alimentarem minha criatividade com noites inesquecíveis e ideias
malucas que só fazem sentido para nós.
Um abraço especial para minha equipe maravilhosa: assessora,
designer, revisora e betas (vocês são as melhores, juro!). Sem vocês,
este livro seria apenas um monte de ideias perdidas em um caderno
de rabiscos. Vocês transformaram meus devaneios em realidade, e
por isso, sou eternamente grata.
E claro, não posso esquecer de você, querida leitora. Se você riu,
chorou ou apenas revirou os olhos com as minhas palavras, saiba
que cada reação sua é como um abraço virtual para mim.

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Escrevo por você e para você. Bora marcar um encontro no
próximo livro?

Aos meus ídolos literários, que me ensinaram que é possível sim


viver de inventar histórias: obrigada por iluminarem o caminho e,
por favor, continuem deixando migalhas de pão para que eu possa
seguir.
Por último, mas não menos importante, um agradecimento à
vida, essa professora maluca que insiste em me jogar em enredos
dignos de telenovela. Cada reviravolta, cada sorriso e cada lágrima
foram essenciais para que eu chegasse aqui, fazendo o que amo.
Então é isso, galera. Fim dos créditos. Agora, vamos voltar ao
nosso programa. Até a próxima!
Manoela Barsi.
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Quer ficar por dentro de todos os meus lançamentos e conhecer


um pouco mais sobre os personagens que você acabou de ler? Me
segue no instagram: @autoramanoelabarsi

[1]
O tamagotchi é uma franquia de mídia japonesa, distribuída pela Bandai e criada por
Akihiro Yokoi. O primeiro lançamento da franquia foi um brinquedo em que se cria um
animal de estimação virtual lançado em 1996.
[2]
Ensaio de fotos esmagando um bolo.

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