Você está na página 1de 48

Saúde Mental

e Assistência
Farmacêutica
Mariana Martins Garcia

Unidade 01

A reforma
psiquiátrica
no Brasil
Diretor Executivo
DAVID LIRA STEPHEN BARROS
Diretora Editorial
ANDRÉA CÉSAR PEDROSA
Projeto Gráfico
MANUELA CÉSAR ARRUDA
Autora
MARIANA MARTINS GARCIA
Desenvolvedor
CAIO BENTO GOMES DOS SANTOS
A AUTORA
MARIANA MARTINS GARCIA

Olá. Meu nome é Mariana Martins Garcia. Sou formada em


Farmácia pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Ciências
Farmacêuticas pela mesma instituição. Já atuei em farmácia de
dispensação, farmácia hospitalar, prática clínica e manipulação de
nutrição parenteral e quimioterapia, além de ser palestrante e professora.
Passei por empresas com a Droga Raia, Hospital da Policia Militar,
Stiefel, CEQNEP, Equilibra. Atualmente sou professora conteudista para
instituições como a São Braz e a própria Telesapiens. Sou apaixonada
pelo que faço e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que
estão iniciando em suas profissões. Por isso fui convidada pela Editora
Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou
muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho.
Conte comigo!
ICONOGRAFIA
Olá. Meu nome é Manuela César de Arruda. Sou a responsável pelo
projeto gráfico de seu material. Esses ícones irão aparecer em sua trilha
de aprendizagem toda vez que:

INTRODUÇÃO: DEFINIÇÃO:
para o início do desen- houver necessidade
volvimento de uma de se apresentar
nova competência; um novo conceito;

NOTA: IMPORTANTE:
quando forem as observações es-
necessários obser- critas tiveram que ser
vações ou comple- priorizadas para você;
mentações para o
seu conhecimento;
EXPLICANDO VOCÊ SABIA?
MELHOR: curiosidades e inda-
algo precisa ser gações lúdicas sobre
melhor explicado o tema em estudo, se
ou detalhado; forem necessárias;
SAIBA MAIS: REFLITA:
textos, referências se houver a neces-
bibliográficas e links sidade de chamar a
para aprofundamento atenção sobre algo
do seu conhecimento; a ser refletido ou
discutido sobre;
ACESSE: RESUMINDO:
se for preciso aces- quando for preciso
sar um ou mais sites se fazer um resumo
para fazer download, acumulativo das
assistir vídeos, ler últimas abordagens;
textos, ouvir podcast;
ATIVIDADES: TESTANDO:
quando alguma ativi- quando o desen-
dade de autoaprendi- volvimento de uma
zagem for aplicada; competência for
concluído e questões
forem explicadas;
SUMÁRIO
Conceito histórico sobre a reforma psiquiátrica
brasileira.................................................................11
Os transtornos mentais no passado....................11
Evolução da assistência à saúde mental........................15
Assistência à saúde mental no Brasil............................18
Procedimentos durante a antiguidade.......................22
As práticas psiquiátricas.....................................................22
Afogamento........................................................23
Cirurgia ginecológica..............................................23
Hidroterapia........................................................23
Berço de Utica.......................................................23
Cadeira giratória.....................................................24
Lobotomia........................................................24
Choque cardiazólico...............................................25
Eletroconvulsoterapia........................................................26
Insulinoterapia...................................................................26
Cubículo ou cela forte.......................................................27
Lençol de contenção e camisa de força...............................27
Praxiterapia.......................................................................28
Medicamentos....................................................................29
A legislação referente à reforma psiquiátrica brasileira...30
Era da institucionalização..................................................30
Processo de desinstitucionalização.....................................31
Portaria SAS/MS n° 224, de 29 de janeiro de 1992..32
Portaria MS/GM n.º 106, de 11/2/2000...............33
Lei Antimanicomial n.º 10.216, de 6 de abril de 2001..34
Portaria n 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002..........35
Últimas legislações e o retrocesso da Luta antimanicomial..36
Decreto 7.179 20 de maio de 2010..........................36
Portaria 3.588/2017................................................36
Nota Técnica do Ministério da Saúde n. 11/2019...........37
Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019........................37
Analise dos impactos e debate sobre a reforma psiquiátrica
brasileira........................................................................38
Início do movimento...........................................................39
Movimento antimanicomial................................................39
Assistência à saúde mental nos últimos anos (2010-2019).....42
8 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

01
UNIDADE

A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL


Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 9

INTRODUÇÃO
Nessa aula vamos conhecer a história dos tratamentos para saúde
mental, pelos autores antigos é chama de loucura, pelos médicos atuais
chamada de transtornos mentais.
Inicialmente era vista, como todas as doenças, como manifestação
de maus espíritos sendo tratada como um mau adquirido ou como
castigo pelos pecados. Por isso, as pessoas eram tratadas com práticas
de exorcismos que, muitas vezes, levavam a morte do indivíduo.
Quando o foco deixa de ser religioso, a sociedade passa a acreditar
que esses indivíduos são um problema e devem ser excluídos do convívio,
por isso, a criação de manicômios para “limpar” a sociedade desse mal.
Inicia, então, a hospicialização dos pacientes e profissionais da
saúde começam a buscar tratamentos para curar essa doença. Por muitos
anos foram utilizados tratamentos físicos que, hoje, são considerados
desumanos e, por isso, os próprios profissionais da saúde começam
um movimento para humanização das condutas e começam a luta para
humanizar os tratamentos e minimizar as internações, deixando como
última opção e que seja feita pelo menor tempo possível.
Esses movimentos tiveram inúmeras conquistas em relação às
mudanças na assistência à saúde mental por meio de legislações para a
regulamentação desses procedimentos. Porém, nos últimos anos, novas
legislações são consideradas um retrocesso das conquistas. Ao longo
desta unidade letiva você vai mergulhar neste universo!
10 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

OBJETIVOS
Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 1. Nosso propósito é auxiliar
você no desenvolvimento das seguintes objetivos de aprendizagem até o
término desta etapa de estudos:

1. Entender a evolução histórica da psiquiatria no Brasil.


2. Conhecer o funcionamento da Estratégia de Saúde da Família e da
atenção psicossocial.
Compreender
3. as abordagens terapêuticas na atenção
psicossocial.
4. Entender o funcionamento do Centro e da Rede de Atenção
Psicossocial.

Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao


conhecimento? Ao trabalho!
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 11

Conceito histórico sobre a reforma


psiquiátrica brasileira
INTRODUÇÃO
Ao final dessa aula você entenderá a evolução da
assistência à saúde mental no mundo e no Brasil. Vamos
conhecer os procedimentos que eram utilizados no
passado, majoritariamente relacionados à exclusão social,
como acontece, por meio de movimentações sociais e dos
próprios profissionais da saúde, a quebra de paradigmas
relacionados ao transtornos mentais e as mudanças nos
tratamentos utilizados. E então? Motivado para aprofundar
seus conhecimentos? Então, vamos lá!

Os transtornos mentais no passado


Os primeiros relatos sobre problemas psicossociais são
encontrados na antiguidade grega e romana. Nessa época tanto os
transtornos físicos como os mentais eram tratados como manifestações
sobrenaturais, tendo forte influência religiosa.

DEFINIÇÃO
Quando você for aprofundar seus conhecimentos em
relação à história, você vai ver muitos textos sobre os
transtornos mentais. Esses textos têm características
filosóficas e chamam esse transtorno de loucura, por isso,
vamos usar esse termo no decorrer do texto.

Essa influência religiosa se manteve forte durante a


Inquisição, nessa época, a loucura era entendida como
manifestações demoníacas e satânicas, eram considerados
uma expressão de bruxaria. Devido à alta influência da
Igreja, os indivíduos que não concordavam com a ideologia
cristã, chamados de hereges, eram considerados loucos,
12 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

bruxos ou feiticeiros, sendo todos perseguidos pela


própria Igreja. (MILLANI & VALENTE, 2008; FIQUEIREDO,
DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007).
Percebam que, pessoas com transtornos mentais não recebiam
tratamento, mas eram perseguidas como se fizessem parte de seitas e,
muitas vezes, mortas da mesma forma que as pessoas que iam contra a
ideologia cristã da época.
Nos transtornos mentais associados a uma possessão demoníaca,
utilizavam-se técnicas de exorcismo para livrar o indivíduo do obsessor.
Dentre elas estava a trepanação, que consistia em fazer uma perfuração
no crânio com uma pedra pontiaguda abrindo um buraco no crânio por
onde os demônios abandonariam o corpo. A figura 1, quadro retratado
por Hieronymus Bosh, chamado de “A extração da pedra da loucura”
mostra o procedimento de trepanação. Vale ressaltar que nessa época
não existia anestesia para nenhum tipo de procedimento.

Figura 1: “A extração da pedra da loucura”, por Hieronymus Bosh.

Fonte: Wikimedia Commons


Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 13

Com o declínio da supremacia da Igreja, esse enfoque diabólico


se extingue prevalecendo a teoria patológica na qual o delírio era marca
da insanidade, influenciada por Hipócrates.
No período Renascentista, existiam os Nau dos Loucos, eram
embarcações que os indivíduos eram colocados e lançados ao mar,
sendo considerado como um ritual para libertar a sociedade dos
“doidos”, evitando que ficassem vagando pelas cidades. Dessa forma,
tornavam-se prisioneiros de sua própria partida tendo como sua prisão
seu próprio mundo.
A loucura se insere no universo moral no século XV, sendo muitas
vezes representadas em obras de arte e na literatura. Porém, devido
às mudanças que ocorrem com o crescimento das cidades, no século
XVII com a industrialização e o poder das relações políticas volta-se ao
modelo de exclusão do indivíduo.
Dessa forma são criados, primeiramente na Europa,
estabelecimentos para a internação onde se aprisionavam não apenas
pessoas com transtornos mentais, mas também pessoas com de
doenças venéreas, libertinos, bandidos, enfim, todos aqueles que eram
considerados fonte de desorganização moral da sociedade. Assim,
foi fundado em 1656 o Hospital Geral, em Paris, não tendo caráter de
tratamento médico, mas sim, uma estrutura semijurídica. Em 1676 são
criadas instituições por toda a França a partir de uma ordem real, dessa
forma cada cidade tinha seu Hospital Geral, esse período foi conhecido
como a Grande Internação.
Os tratamentos começam para os indivíduos que se submetiam
ao tratamento no século XVIII, no chamado Hotel-Dieu. Nessa instituição
os indivíduos eram separados por sexo sem condições adequadas
e sem assistência médica e, os tratamentos eram banhos, sangrias e
purgações para buscar a cura. (MILLANI & VALENTE, 2008; FIQUEIREDO,
DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007).
14 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Figura 2: Hotel-Dieu, França

Fonte: Wikimedia Commons

Um dos hospitais mais antigos da Europa o Hotel Dieu, é datado de


cerca de 651 d.C. Era uma instituição polivalente que atendia os pobres
e doentes, oferecendo comida e abrigo, bem como cuidados médicos.
Foi danificado pelo fogo em 1772 e não totalmente reconstruído até o
reinado de Napoleão. As camas eram colocadas em todos os quartos
disponíveis e às vezes havia até seis pacientes em uma cama de solteiro.
Tornou-se o hospital mais insalubre e desconfortável da França, talvez
até da Europa. O número de leitos no Hotel Dieu permaneceu inalterado
até 1400, mas, com a criação de novos hospitais, começou a receber
menos pacientes, de modo que todos agora tinham sua própria cama.
Hoje, continua sendo o primeiro centro de atendimento a casos de
emergência em Paris, com aproximadamente 350 leitos. O Hotel Dieu
era popular entre os médicos, pois admitia casos interessantes. Embora
transformada em uma instituição médica científica, sua natureza religiosa
original é mantida viva em seu nome, a "Hospedaria de Deus"
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 15

Evolução da assistência à saúde mental


A tentativa de tratamento humanizado acontece com a fundação
de asilos cujo objetivo era de reconstruir uma de família fictícia para os
internos, porém ainda com característica de controle social e moral.
Dentre os estudiosos da época podemos destacar Phillippe
Pinel, pela característica humanitária de seu tratamento baseado em
estudos e observações a partir do comportamento. Por meio de seus
estudos, Pinel constatou que os transtornos mentais eram resultado de
tensões sociais e psicológicas excessivas, podendo ter como causa a
hereditariedade ou, ainda, acidentes físicos extinguindo a crença de
possessão demoníaca. Dessa forma ele rompe paradigmas descrevendo
a existência de vários tipos de psicose e seus sintomas e, inclui o contato
próximo e amigável ao indivíduo como parte da terapia.
Os médicos que se dedicavam a conhecer as doenças mentais e
acompanhar esses pacientes eram chamados de alienistas.

Figura 3: Phillippe Pinel – o alienista

Fonte: Wikimedia Commons


16 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Pinel separava os indivíduos em alas de acordo com o


perfil do transtorno mental, começando a reconhecer,
nomear e estudar essas doenças. Esse foi o começo de
uma mudança e evolução da medicina em relação a esses
transtornos. (MILLANI & VALENTE, 2008; FIQUEIREDO,
DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007).]]
Apesar da rápida disseminação da doutrina de Pinel, ela foi
ofuscada por tratamentos inadequados em manicômios, deixando de
ser recurso terapêutico e volta a ser instrumento de segregação social.
Dessa forma, mesmo a loucura passando ao domínio da ciência
o tratamento não ficou mais humanizado. Pois, segundo estudiosos
da época, o que diferencia o ser humano dos animais é a razão, por
isso, esses indivíduos eram considerados animais e eram tratados com
ameaças, algemas, bofetadas e muita disciplina. Dessa forma, o medo
desses castigos funcionava como mecanismos de controle.
Essas instituições eram chamadas de manicômios, asilos ou
hospitais, mas devido seus tratamentos eram ambientes de verdadeiro
terror, pois além dos tratamentos, considerados hoje desumanos, eram
ambientes extremamente precários. Com a justificativa de estarem
fazendo uma limpeza da sociedade, por retirarem dela indivíduos
considerados desprezíveis e desajustados com comportamentos
indesejáveis. Esses pacientes eram infantilizados, tendo como castigo
viver com sua culpa e excluídos da sociedade.
Dentre os tratamentos estavam confinamento em salas escuras
acorrentados injeção de metrazol para provocar convulsão, esterilização,
nas mulheres retirada de útero castração, privação da alimentação,
violência mental e física, indução de coma provocado por insulina,
cadeira giratória, eletrochoque, berço de Utica (você verá do que se
trata no subitem 2.1.4), hibernação, uso de camisa de força e até mesmo
assassinato pelos próprios funcionários das instituições.
“Apesar da brutalidade, novas instituições eram abertas e
as que já existiam eram superlotadas, piorando cada vez
mais as condições de saúde do indivíduo” Isso causava
certo alívio às famílias que não teriam mais que lidar com
esses indivíduos, pois os abandonavam nessas instituições
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 17

deixando-os esquecidos até a morte. (MILLANI & VALENTE,


2008; FIQUEIREDO, DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO,
2007).
Em meados do século XIX, o médico Jean-Martin Charcot assume
a direção do hospital La Salpêtrière tornando-o um cetro de estudos
psiquiátrico. O hospital recebia estudantes de todo o mundo para assistir
suas aulas sobre doenças mentais e para assistir seus experimentos.
Dentre esses estudantes estava Sigmund Freud, especializado em
neurologia, conheceu a terapia de hipnose com Charcot e a partir desse
momento trabalha na evolução da psicanálise.
A partir do século XX começou-se a busca por entender a fala da
loucura, a partir de construções teóricas complexas, o diálogo entre o
indivíduo transtornado e o indivíduo pesquisador, desde que esse fosse
capaz de desvendar e interpretar o mistério da fala do louco, por meio
de uma linguagem especializada.
Nesse momento as escolas se dividem em duas vertentes,
a psicanalista e a organicista, sendo a primeira a que entendendo os
transtornos metais como psicológicos enquanto a segunda relacionada
à fisiologia e a anatomia.
A psicanálise inicia primeiramente com a hipnose, mas,
posteriormente, Freud percebe que a não utilização dessa técnica
permitindo que o paciente falasse livremente sobre o que vinha à
memória, chamado de associação livre, traria a reconstrução do trauma
original e com acesso ao inconsciente, criando o conceito de cura pela
fala.
Em contrapartida, estudiosos organicistas buscam
medicamentos capazes de atuar no tratamento dos
transtornos mentais. Na década de 50 o primeiro
medicamento conhecido e utilizado foi a clorpromazina
que acalmava os pacientes psicóticos. Posteriormente,
outros medicamentos antidepressivos e benzodiazepínicos
começaram a ser utilizados e a eficácia comprovada leva a
uma mudança na psiquiatria. (MILLANI & VALENTE, 2008;
FIQUEIREDO, DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007).
18 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Assistência à saúde mental no Brasil


O primeiro hospital psiquiátrico fundado no Brasil foi o Hospício
de Pedro II, inaugurado em 1852 na cidade do Rio de Janeiro. Em seguida
no número de instituições cresce, mas acaba saindo do planejado e as
instituições se tornam superlotadas e insalubres.
Sua estrutura grandiosa representa a fortaleza simbólica para
enfrentar as forças desagregadoras do jogo político do início da
independência do Brasil.
O Brasil se torna o primeiro país da América Latina a fundar uma
instituição com base no alienismo, nome dado ao estudo dos transtornos
mentais na França.
Esse hospício demonstra de forma clara para o mundo que no
Brasil começava a cultivar a ciência. Em 1838, na França, é promulgada
uma Lei que coloca hospícios e asilos na posição de vanguarda da
medicina hospitalar, dessa forma, exibir um hospício de tamanha
grandeza demonstrava a modernidade científica e tecnológica de
uma nação. Além disso, na época, eram valorizadas as causas morais
da loucura, sendo considerada que a própria civilização era fonte do
adoecimento mental. Dessa forma, o Hospício de Pedro II anuncia a
participação do Brasil no mundo civilizado da época.
Posteriormente, foi renomeado como Hospício Nacional
dos Alienados, quando se desvencilha da administração
da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e fica
subordinado a administração pública. (RAMOS & TEIXEIRA,
2012)
O Hospício Nacional dos Alienados passou pela administração
de vários diretores, dentre eles podemos destacar Juliano Moreira,
psiquiatra baiano, teve seu foco no combate intelectual ao racismo
científico, contestando a ideia da época que as doenças mentais
estavam relacionadas à origem racial e à miscigenação. Acreditava que
os transtornos mentais tinham origens em fatores físicos e psicossociais
relacionadas à dignidade humana, como condições precárias de higiene
e dificuldade de acesso à educação.
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 19

Figura 4J :uliano Moreira

Fonte: Wikimedia Commons

Esse estudioso, conhecido pela abordagem humanitária, exclui o


aprisionamento dos indivíduos e inclui nos hospitais laboratórios e novas
técnicas de diagnóstico e tratamento, inserindo a psicanálise de Freud
aos estudos de medicina no Brasil. Moreira fundou o primeiro Manicômio
Judiciário do Brasil em 1911, direcionado ao tratamento de indivíduos que
cometeram crimes após surtos psicóticos. (ODA & DALGALARRONDO, 2000)
Você já ouviu a expressão “ficou pinel!”. Em geral, usamos essa
frase em tom de brincadeira, mas algumas vezes utilizamos para dizer
que a pessoa está agindo como louca. Consegue imaginar por que surgiu
esse termo? Se respondeu por causa de Phillipe Pinel, você acertou!
O Hospício de Pedro II foi batizado com outros nomes no decorrer
da história e, em 1965 passa a se chamar, pela segunda vez, Instituto
20 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Philippe Pinel, em homenagem ao psiquiatra. Por ser um sobrenome


curto e diferente rapidamente entra na lista de expressões populares]]
Há o surgimento de outros hospícios e em todos as formas de
tratamento iniciavam com a reclusão, entendendo a necessidade de
retirar da sociedade esses indivíduos. A medicalização fazia parte
importante do tratamento dessas pessoas, porém, além de haver
excesso de medicação, há relatos de tratamentos como o eletrochoque,
hidroterapia e até a lobotomia, hoje considerados desumanos.
No Brasil, também acontece a internação não apenas de
indivíduos com transtornos mentais, mas indigentes, mães
solteiras e até criminosos, ou seja, indivíduos que eram
caracterizados como problema para a sociedade como
aconteceu nos países da Europa. (FIQUEIREDO, DELEVATI,
& TAVARES, 2014; TILIO, 2007)
Outra personagem marcante na história da assistência à saúde
mental do Brasil é a médica Nise da Silveira. A médica tem uma história
relacionada à luta social e feminista chegando até a ser presa na ditadura
Vargas. Mas é em 1944 que assume seu cargo no Centro Psiquiátrico em
Engenho de Dentro, onde se depara com tratamentos comuns como
eletrochoque, coma induzido por insulina, e a lobotomia, além das altas
doses de psicofármacos em todos os pacientes. A médica acreditava
que o tratamento medicamentoso deveria ser utilizado em surtos agudo
e discordava dos tratamentos físicos por consideram maus tratos.
Discordar dos tratamentos convencionais procurou por alternativas
restando o setor de terapia ocupacional. Buscou conhecimento nos
tratados convencionais europeus como psicanálise, filosofia, literatura,
artes plásticas e a terapia ocupacional além da psicologia analítica.
Encontrou fundamentos teóricos necessários para capacitar monitores
para o setor de terapia ocupacional, a qual cresceu rapidamente dentro
dessa instituição, e começou a ter atividades como costura, jardinagem,
teatro, sapataria, salão de beleza, carpintaria e atividades expressivas
como modelagem em argila, pintura etc. A partir desse crescimento,
foi possível organizar mostras dos trabalhos feitos pelos pacientes em
todo o país e no exterior. (CARVALHO & AMPARO, 2006; FIQUEIREDO,
DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007)
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 21

Denúncias contra a violência em hospícios e as péssimas


condições de trabalhos nas instituições psiquiátricas no final da década
de 1970, inicia o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM). Isso para combater as internações que eram realizadas de forma
arbitrária e automática privando o paciente da liberdade e mantendo-o
em cativeiro, como um sequestro autorizado. Com as reivindicações,
inicia-se a multiprofissionalidade nas instituições com a inserção da
psicologia na saúde pública, mas ainda incapaz de iniciar o processo de
desospitalização.
As propostas de reforma chegam ao governo levando a criação
de Diretrizes para a área da Saúde Mental no final da década de 1980,
defendendo o limite de internação, reintegração familiar, tratamento
fora do hospital e pesquisas epidemiológicas.
Acontecem grandes eventos para discussão do tema, mas o
Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil surge de forma clara, em
1987, no I Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental com lema
“por uma sociedade sem manicômios” com o intuito de reestabelecer a
relação do indivíduo com o próprio corpo, direito e capacidade do uso
da palavra, entre outros, para a reinserção do indivíduo à sociedade.
Nessa época, o Brasil está em mudanças com movimentos sociais
que acontecem em várias áreas e em especial da saúde por meio de
conferencias. Na área da Saúde Mental, dentre as discussões e novas
experiências um dos pontos defendidos é o trabalho interdisciplinar com
a valorização desses profissionais.
No final da década de 80, surgem serviços como Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção
Psicossocial (NASP) proporcionando consultas médicas,
atendimentos com psicólogos, serviço social, terapia
ocupacional entre outros, sendo o início da Reforma
Psiquiátrica Brasileira, mas esse assunto aprofundaremos
em outra aula. (CARVALHO & AMPARO, 2006; FIQUEIREDO,
DELEVATI, & TAVARES, 2014; TILIO, 2007)
Vimos a evolução dos tratamentos psiquiátricos no mundo e no
Brasil. Com a evolução da própria humanidade os tratamentos da época
são considerados desumanos e, por isso, os movimentos dos próprios
22 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

profissionais da saúde e da sociedade foram de extrema importância


para a mudança, não apenas dos tratamentos mas também na visão
da sociedade em relação ao indivíduo com transtornos mentais. E
então? Qual sua impressão sobre as formas de tratamento nos séculos
passados? Consegue perceber a importância dessa evolução?

As práticas psiquiátricas
INTRODUÇÃO
Vimos a história da psiquiatria no Brasil e no mundo, agora
vamos conhecer a evolução das práticas psiquiátricas,
desde as primeiras, hoje consideradas desumanas, até as
atuais e como chegamos até aqui. Motivado para mais essa
aventura? Então, vamos lá!

Procedimentos durante a antiguidade


Como já vimos, na antiguidade as doenças físicas e as doenças
mentais eram vistas como atuação de forças externas, geralmente
demônios, no indivíduo e, por isso, eram tratadas pela Igreja com
métodos de exorcismo e, quando não curadas dessa forma, a morte era
a solução.
Com a instituição dos hospícios o foco do tratamento
não era a pessoa, mas sim a doença. Dessa forma, as
instituições tinham por responsabilidade eliminar os
sintomas de desordem mental. Para isso, os tratamentos
utilizados iniciavam com a internação e exclusão
da sociedade. Dentro das instituições utilizavam-se
métodos como hidroterapia, administração excessiva de
medicamentos, até aplicação de estímulos elétricos ou o
uso de procedimentos cirúrgicos. Vamos conhecer alguns
desses tratamentos. (GUIMARÃES & al, 2013; BORENSTEIN,
2007)
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 23

Afogamento
O paciente era colocado em um caixão com furos e
submerso em água, esperava-se todo o ar sair de dentro
do caixão, observando quando não apareciam mais bolhas,
depois o paciente era retirado e reanimado. Acreditava-se
que, quando as funções vitais cessavam, a reanimação
possibilitava que o paciente voltasse a vida de forma
mais adequada e ajustada perante a moral da sociedade.
(GUIMARÃES & al, 2013; BORENSTEIN, 2007)

Cirurgia ginecológica
Por acreditar que clitóris e útero estavam relacionados
com a histeria feminina, eram realizadas amputação
desses órgãos como tratamento. (GUIMARÃES & al, 2013;
BORENSTEIN, 2007)

Hidroterapia
Para os psiquiatras da época o banho prolongado induziria
à fadiga psicológica e estimularia secreções dos rins e
da pele podendo reestruturar as funções cerebrais. O
tratamento consistia em enrolar o paciente em uma rede
e mantê-lo em uma banheira apenas com a cabeça de
fora e coberto por uma lona, podendo permanecer por
horas ou até mesmo dias em água gelada e fervente
alternadamente. (GUIMARÃES & al, 2013; BORENSTEIN,
2007)

Berço de Utica
Na cidade de Utica, no estado de Nova York, os pacientes
eram forçados a ficar em um berço de madeira ou metal
fechado de todos os lados, sem possibilidade de se
movimentar, isso para evitar a interação com outros
indivíduos. Era usado apenas em pacientes agressivos.
(GUIMARÃES & al, 2013; BORENSTEIN, 2007)
24 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Cadeira giratória
Na época era considerado um tratamento humanizado
e por isso, esse tratamento era sempre complementado
com as outras terapias como hidroterapia e a lobotomia
frontal, por exemplo. A cadeira era girada até o paciente
desmaiar, pois acreditava-se que ao rodar poderia curar a
esquizofrenia por “embaralhar” o cérebro. (GUIMARÃES &
al, 2013; BORENSTEIN, 2007)

Lobotomia
Já vimos no tópico anterior sobre a trepanação na antiguidade para
a “retirada dos maus espíritos” sendo um método de exorcismo, porém
esse procedimento perdurou por anos nas instituições. Foi aprimorado
e se torna um procedimento cirúrgico chamado de Lobotomia. O
procedimento consiste em fazer inicialmente uma abertura na parte
frontal do crânio e posteriormente utilizando-se a cavidade ocular
para chegar até os lobos frontais utilizando o orbitoclast (instrumento
semelhante ao picador de gelo) e um martelo.

Figura 5: Procedimento de lobotomia

Fonte: Wikimedia Commons


Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 25

Nesse procedimento se cortava a conexão dos lobos frontal do


restante do cérebro. Apesar da maioria dos procedimentos terminarem
em morte ou em estado vegetativo, os sobreviventes se tornavam
pessoas apáticas devido desligamento da resposta cerebral das
emoções e adquiriam problemas motores.
O estudo desse procedimento gerou, na época, um prêmio
Nobel de medicina para o médico português António Egas
Moniz, por isso, essa prática perdurou como tratamento
por séculos. (FIQUEIREDO, DELEVATI, & TAVARES, 2014;
TILIO, 2007).

Choque cardiazólico
Utilizava-se o medicamento cardiozol via endovenoso
levando o paciente a convulsão de forma rápida e violeta a
ponto de causar fraturas graves, entre elas fratura espinhal.
Por esse motivo foi utilizada por pouco tempos, sendo
substituída pela eletroconvulsoterapia. (GUIMARÃES & al,
2013; BORENSTEIN, 2007)

SAIBA MAIS
O uso de convulsões para o tratamento da loucura iniciou
com Paracelsus no século XVI, o qual usava cânfora via oral.
Essa prática foi esquecida por muitos anos sendo retomada
em 1934 pelo neuropsiquiatra húngaro Ladislas von
Meduna que utilizou a cânfora, inicialmente intramuscular
e posteriormente passou para uma substância menos
tóxica, o metrazol, também conhecido como cardiazol,
intravenosa.
26 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Eletroconvulsoterapia
Desde o início de sua utilização foi vista como eficaz para diminuir
a agitação e amenizar os sintomas psicóticos. Também chamada
de eletrochoque, a eletroconvulsoterapia (ECT) era utilizada para o
tratamento da esquizofrenia, consistindo na passagem de uma corrente
alternada através da caixa craniana do paciente provocando convulsões
imediatas. Durante a passagem da corrente elétrica há perda da
consciência e espasmos musculares generalizados, características
de uma crise convulsiva, posteriormente o sono de alguns minutos e,
em seguida, o paciente acorda espontaneamente de forma tranquila e
observa-se a saída do quadro psiquiátrico agudo, sem recordar o que
aconteceu.
Essa técnica era utilizada para conter o paciente e apagar suas
memórias sendo uma experiência traumatizante para os indivíduos, por
isso, em alguns casos, era usada para castigar e controlar os internos da
instituição.
Com o início do uso de psicofármacos, o ECT teve um declínio
em seu uso, porém, nos últimos anos sua prática volta a ganhar
destaque para alguns tratamentos específicos, utilizando anestésicos,
consentimento do paciente ou do seu responsável. Esse procedimento
é normatizado pelo Conselho Federal de medicina com a Resolução n.
1.640/2002 e com estudos, como o realizado pelo Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostrando ser um bom
método para a remissão de sintomas graves. (GUIMARÃES & al, 2013;
BORENSTEIN, 2007)

Insulinoterapia
A introdução da insulinoterapia acontece em 1933 pelo médico
polonês Manfred Sakel, o qual causa convulsão com uma dose excessiva
de insulina acidentalmente, porém percebe que era um tratamento
eficaz para pacientes com psicose e com esquizofrenia. Porém, entra
em desuso quando os estudos mostraram que não levava a cura dos
transtornos, apenas a melhora momentânea. (GUIMARÃES & al, 2013;
BORENSTEIN, 2007)
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 27

Figura 5: Paciente em choque insulínico

Fonte: Wikimedia Commons

Cubículo ou cela forte


Quando os pacientes se encontravam em quadros extremos de
agitação e agressividade eles eram levados para um quarto ou cela
individual muito pequeno com portas reforçadas e abertura para que
os profissionais pudessem observar o paciente, quando necessário
e entregar comida. No ambiente havia um lugar para que o indivíduo
fizesse suas necessidades fisiológicas. Não havia um tempo delimitado
podendo ser de poucas horas até dias e, em alguns casos, os
profissionais utilizavam como castigo aos pacientes. (GUIMARÃES & al,
2013; BORENSTEIN, 2007)

Lençol de contenção e camisa de força


Tanto o lençol de contenção quanto a camisa de força serviam
para conter pacientes agressivos, porém, havia risco de machucar o
paciente, no momento de colocar o lençol e, no caso da camisa, riscos
de queda do paciente. Introduzido nas instituições por Pinel, no século
28 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

XIX, para substituir algemas e celas fortes utilizadas em manicômios por


ser considerada uma contenção física menos dolorosa. (GUIMARÃES &
al, 2013; BORENSTEIN, 2007)
Outro método de contenção utilizado era a contenção no leito
com faixas de tecido de algodão que, em casos extremos, é utilizado até
hoje, porém, como proteção do próprio paciente e de outros indivíduos.
Contudo é necessário muito cuidado no momento da aplicação da
técnica para não machucar o paciente. A verificação dos sinais vitais
deve ser constantemente monitorada. A utilização deve acontecer
como último recurso, ou depois de esgotadas todas as alternativas para
acalmar o paciente.

Praxiterapia
É o desenvolvimento de tarefas laborais como trabalho agrícola
e criação de galináceos e suínos. Era utilizada como ocupação integral
do tempo dos pacientes como prática terapêutica. Essas práticas eram
desenvolvidas de acordo com condições físicas e aptidões de cada
indivíduo, sendo considerado o tratamento mais indicado nos casos de
esquizofrenia.
Dentre os métodos empregados, esse é o único feito de forma
coletiva, incentivando o convívio e o exercício físico dos pacientes sendo
supervisionados pelos profissionais da enfermagem.
Atividades em outras áreas também eram desempenhadas pelos
pacientes como a serraria, olaria, carpintaria, moinhos de trigo, engenho
de cana e produção de mandioca, destilaria, lavanderia, costura, cozinha
e limpeza.
Essas atividades tinham como objetivos:
• Reencaminhar o paciente para a via do trabalho;
• Sublimar seus impulsos (sob a ótica da psicanálise);
• Manter controle sobre os pacientes internados.
Outro recurso utilizado era a assistência hetero-familiar, a qual
consistia em encaminhar o paciente ao convívio com famílias de
empregados das colônias, dependendo do seu desempenho o indivíduo
poderia ser considerado apto para voltar ao convívio na sociedade
recebendo alta hospitalar.
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 29

Mas, essas atividades não eram apenas de trabalho, existiam


atividades de lazer e recreação, como assistir filmes leves
de agrado dos pacientes e dos funcionários, sessões
de teatro, pequenas festas religiosas e até atividades
esportivas. (GUIMARÃES & al, 2013; BORENSTEIN, 2007)

Medicamentos
O início da medicalização acontece nos anos 50, com
psicofármacos empregados no tratamento dos pacientes. Esses
medicamentos não substituíam os métodos tradicionais. Eram utilizados
como coadjuvantes. Os primeiros sintetizados foram:
• Cloropromazina (amplictil);
• Levopromazina (neozine);
• Haloperidol (haldol).
Por não existirem muitas opções e essas não serem tão eficazes
para minimizar sintomas, os psicofármacos eram utilizados de forma
excessiva principalmente para induzir o sono no paciente.
A clorpromazina foi a substancia estudada em 1952 pelos
pesquisadores Jean Delay e Pierre G. Deniker, que obtiveram sucesso
por reduzir a agitação psicomotora, alucinações e delírios.
Atualmente a psicoterapia e as atividades comunitárias
dão lugar à exclusão da sociedade herdada do modelo
manicomial. E são de extrema importância a avaliação
do uso racional e acompanhamento farmacoterapêutico
desses pacientes. Existem muitos psicofármacos que
podem ser utilizados para os vários transtornos mentais
diagnosticados nos dias de hoje, mas teremos uma aula
para falar mais sobre medicalização. (GUIMARÃES & al,
2013; BORENSTEIN, 2007)
Vimos até aqui as práticas utilizadas nos tratamentos de
transtornos mentais desde a antiguidade, com tratamentos meramente
físicos com pouco ou nenhum resultado até os tempos atuais onde
30 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

vemos a evolução dos tratamentos a ponto de ser possível a inclusão


desses indivíduos na sociedade.

A legislação referente à reforma


INTRODUÇÃO
Como podemos perceber nos tópicos anteriores, os
tratamentos existentes eram considerados eficazes, porém,
nos dias atuais, esses tratamentos e, principalmente, a
forma de utilizá-los são considerados brutais e desumanos.
Nesse tópico vamos conhecer as legislações relacionadas
à mudança na estrutura da atenção à saúde mental e toda
a reforma psiquiátrica que aconteceu no Brasil.

Era da institucionalização
Em 1840 o provedor da Santa Casa do Rio de Janeiro, José
Clemente Pereira, faz um pedido para criação de um hospital específico
para os pacientes com transtornos mentais, alegando que essa
separação facilitaria a cura desses pacientes. Por isso, em 1841, com o
Decreto nº 82, de 18 de julho de 1841, Dom Pedro II atende esse pedido
e inicia a construção do Hospício de Pedro II cuja inauguração acontece
em 8 de dezembro de 1852.
Já em 1890, o Decreto nº 206-A/1890 desvincula o Hospício
de Pedro II da Santa Casa, o qual passa a denomina-lo como Hospício
Nacional dos Alienados e o Decreto nº 791, de 27 de setembro de 1890
institui a escola profissional de enfermeiros dentro desse hospital.
Outra legislação de importância da época foi o Decreto nº
1.132, de 22 de dezembro de 1903, a qual descreve que
indivíduos, por moléstia mental, congênita ou adquirida,
que possa comprometer a ordem pública ou a segurança
das pessoas, deverão ser recolhidos a um estabelecimento
de alienados. Porém, só permaneceria no estabelecimento
por meio de comprovação de seu estado mental. Isso para
evitar que indivíduos considerados não aptos ao convívio
da sociedade como ladrões, indigentes, mães solteiras,
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 31

entre outros, fossem internados apenas para “limpar” a


sociedade. (SAIOL, 2016)
Esse decreto é revogado durante o governo provisório de
Getúlio Vargas pelo Decreto 24.559 de 1934, o qual “Dispõe
sobre a profilaxia mental, a assistência e a proteção à
pessoa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos
serviços psiquiátricos (...)” retirando o termo alienados,
sendo referido como psicopata, considerado um termo
mais amplo. Reafirma a incapacidade do doente mental
facilitando a internação por qualquer motivo que dificulte a
convivência do psicopata em sua residência, considerando
a internação como regra e o tratamento domiciliar uma
exceção. (SAIOL, 2016)

SAIBA MAIS
Há outras legislações interessantes dessa época, e
principalmente as discussões entre os profissionais sobre
elas. Mas, nessa aula, vamos focar nas legislações mais
atualizadas e relacionadas à reforma psiquiátrica. Mesmo
assim, vale a busca por esse conhecimento!

Processo de desinstitucionalização
O questionamento sobre os procedimentos para tratamento dos
transtornos mentais começa na década de 60 no mundo e na década
de 70 no Brasil.
Ocorreram vários movimentos sociais para reduzir a exclusão
desse indivíduo da sociedade, buscando um modelo assistencial com
a promoção da saúde mental, não apenas o tratamento dos doentes.
Dentre os profissionais da saúde esse movimento antimanicomial
inicia com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM),
com o lema “Por uma sociedade sem manicômios" no qual se debate
sobre as péssimas condições do sistema de saúde e da legislação
vigente, propondo modificações.
32 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Portaria SAS/MS n° 224, de 29 de janeiro de 1992


Essa portaria institui a criação dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) juntamente com os Núcleos de Assistência Psicossocial (NAPS).
Tem como princípios e diretrizes os mesmos do Sistema Único
de Saúde (SUS) principalmente a universalidade, a hierarquização, a
regionalização e integralidade das ações e serviços de saúde, garantindo
a continuidade da atenção em vários níveis. Utilizando a diversidade de
métodos e técnicas terapêuticas junto com uma equipe multiprofissional
juntamente com a participação social desde a formulação das políticas
de saúde mental até o controle de sua execução.

SAIBA MAIS
Conforme descrito nessa legislação os NAPS/CAPS são
unidades de saúde locais/regionalizadas que contam
com uma população adscrita definida pelo nível local e
que oferecem atendimento de cuidados intermediários
entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em
um ou dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional.
Podem constituir-se também em porta de entrada da
rede de serviços para as ações relativas à saúde mental,
considerando sua característica de unidade de saúde
local e regionalizada. Atendem também a pacientes
referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de
urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar.
Deverão estar integrados a uma rede descentralizada e
hierarquizada de cuidados em saúde mental.

É possível observar nessa portaria as normas para o atendimento


ambulatorial, além dos recursos humanos que devem ser empregados
relacionados aos atendimentos individuais, atendimentos em grupo e
as atividades comunitárias. Também traz as normas relacionadas aos
atendimentos hospitalares, chamado de hospital dia, sendo considerado
um recurso intermediário entre a internação e o atendimento
ambulatorial. Além disso, existe a modalidade de serviço de Urgência
Psiquiátrica em Hospital Geral para casos de emergência em prontos-
socorros disponíveis 24 horas com leito de internação de, no máximo, 72
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 33

horas também com equipes multiprofissionais. (BRASIL, Portaria SAS/


MS n 224, de 29 de janeiro de 1992, 1992)
Essa legislação necessitou de atualizações que acontece em
2002 com a Portaria n 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002

Portaria MS/GM n.º 106, de 11/2/2000


Essa legislação vem para suprir algumas necessidades como:
• Reestruturação do modelo de atenção ao portador de
transtornos mentais, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS;
• Garantir uma assistência integral em saúde mental e eficaz para
a reabilitação psicossocial;
• Humanização do atendimento psiquiátrico no âmbito do SUS,
visando à reintegração social do usuário;
• Implementação de políticas de melhoria de qualidade da
assistência à saúde mental, objetivando a redução das internações em
hospitais psiquiátricos.
Para isso é criado os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) em
Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Essas residências
são moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade,
destinadas a cuidar dos indivíduos com transtornos mentais, egressos
de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam
suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social
sendo uma modalidade que substitui a internação prolongada. (BRASIL,
Portaria n106 de 11 de fevereiro de 2000, 2000)
No artigo 2 dessa legislação, observa-se o início da redução de
leitos em hospícios, pois nela se descreve que para cada transferência
do hospital especializado para o serviço de residência terapêutica, deve
ocorrer a redução ou descredenciamento do SUS do mesmo número
de leitos naquele hospital e, dessa forma, o recurso também deve ser
realocado para os tetos orçamentários do estado ou município que se
responsabilizará pela assistência ao paciente e pela rede substitutiva de
cuidados em saúde mental.
Os SRT são divididos em modalidades:
34 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

• SRT Tipo I: são moradias destinadas a pessoas com transtorno


mental em processo de desinstitucionalização, devendo acolher no
máximo oito moradores;
• SRT Tipo II: são modalidades de moradia destinadas às pessoas
com transtorno mental e acentuado nível de dependência, especialmente
em função do seu comprometimento físico, que necessitam de cuidados
permanentes específicos, devendo acolher no máximo dez moradores.
Cada tipo de SRT deve se enquadrar nas características descritas
no anexo da Portaria, e o repasse é feito para as residências que tenham,
no mínimo quatro moradores além de se enquadrarem nos princípios e
diretrizes destacadas nessa legislação.

Lei Antimanicomial n.º 10.216, de 6 de abril de


2001
“Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”
Essa Lei começa falando sobre o direito das pessoas com
transtornos mentais de terem acesso ao modelo assistencial de saúde
mental sem discriminação em relação à raça, cor, sexo, orientação
sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos
econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu
transtorno, ou qualquer outra.
O desenvolvimento de Políticas de Saúde Mental é de
responsabilidade do Estado e a internação, seja ela voluntária, involuntária
ou compulsória, só será realizada se os recursos extra-hospitalares
forem insuficientes e a internação deve ser o mais curta possível.
Os direitos das pessoas com deficiência intelectual estão descritos
na Lei da seguinte forma:
Ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, coerente
às suas necessidades;
Ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo
de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção
na família, no trabalho e na comunidade;
Ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 35

Ter garantia de sigilo nas informações prestadas;


Ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para
esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
 Ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
 Receber o maior número de informações a respeito de sua
doença e de seu tratamento;
 Ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos
invasivos possíveis;
 Ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de
saúde mental.
Além disso, para o desenvolvimento de pesquisas com
esses pacientes tanto de fins diagnósticos quanto fins
terapêuticos devem ser consentidos pelo paciente ou
pelo responsável legal e, devem ser comunicadas aos
conselhos profissionais competentes e ao Conselho
Nacional de Saúde o qual criará uma comissão nacional
para acompanhar a implantação dessa Lei. (BRASIL, Lei n
10.216, de 6 de abril de 2001, 2001)

Portaria n 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002


Com os CAPS já instituídos, essa portaria Estabelece que poderão
constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II
e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e
abrangência populacional. Devendo estar capacitadas para realizar
prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais
severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento
intensivo, semi-intensivo e não-intensivo.
Vale ressaltar que essa legislação descreve quando o CAPS
se encontrar em áreas físicas hospitalares ou instituições
universitárias de saúde, deve ter acesso privado e equipe
multiprofissional própria. (BRASIL, Portaria n 336, de 19 de
fevereiro de 2002, 2002)
36 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Últimas legislações e o retrocesso da Luta


antimanicomial
Nos últimos 10 anos, entraram em vigor legislações relacionadas
principalmente sobre drogas de abuso, com ênfase no crack, mas
em outras drogas também. Porém, essas legislações vão de encontro
ao movimento de desinstitucionalização conquistado pela luta
antimanicomial iniciada nos anos 70, vamos conhecê-las e, discuti-las
melhor no próximo tópico.

Decreto 7.179 20 de maio de 2010


O Decreto 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas cria o seu Comitê Gestor, e
dá outras providências. Com esse decreto é instituído o Plano Integrado
de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas para a prevenção do uso,
ao tratamento e à reinserção social de usuários e ao enfrentamento do
tráfico de crack e outras drogas ilícitas.
As ações devem ser executadas de forma descentralizada
e integrada entre as três esferas de governo de forma intersetorial,
interdisciplinas, integrada com participação da sociedade civil e o
controle social.
Com objetivo de estruturar, ampliar e fortalecer as redes
de atenção à saúde e de assistência social para usuários de
crack e outras drogas, por meio da articulação das ações
do Sistema Único de Saúde (SUS) para capacitar de forma
continuada atores governamentais e não governamentais
envolvidos nas ações. (BRASIL, DECRETO Nº 7.179, DE 20
DE MAIO DE 2010., 2010)

Portaria 3.588/2017
Descreve sobre Rede de Atenção Psicossocial e dá outras
providências tendo como objetivo atender pessoas de todas as faixas
etárias proporcionando serviços de atenção contínua durante vinte
quatro horas incluindo feriados e finais de semana e ofertar assistência a
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 37

urgências e emergências, contando com leitos de observação.


Define as características da equipe multiprofissional
envolvida no cuidado dos pacientes, reforça o conceito
dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e relata
como deve ser o funcionamento, a estrutura física e a
implantação. (BRASIL, PORTARIA Nº 3.588, DE 21 DE
DEZEMBRO DE 2017, 2017)

Nota Técnica do Ministério da Saúde n. 11/2019


No dia 04 de fevereiro de 2019, Quirino Cordeiro Junior,
Coordenador Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério
da Saúde institui a Nota Técnica 11/2019 intitulada “Esclarecimentos
sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes
na Política Nacional sobre Drogas”.
Abrange uma série de mudanças que, a despeito de
serem descritas como “processo evolutivo de reforma do
modelo de assistência em saúde mental, que necessitava
de aprimoramentos, sem perder a essência de respeito à
lei 10.216/2001”. Descreve como característica uma nova
reforma na assistência à saúde mental. (BRASIL, NOTA
TÉCNICA Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, 2019)

Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019


Essa Lei foi sancionada durante a produção desse material,
por isso podemos encontrar muitas discussões sobre ela nas mídias
promovendo algumas mudanças na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006)
e, consequentemente no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (SISNAD).
Essa legislação descreve o SISNAD como “conjunto ordenado
de princípios, regras, critérios e recursos materiais e humanos que
envolvem as políticas, planos, programas, ações e projetos sobre drogas,
incluindo-se nele, por adesão, os Sistemas de Políticas Públicas sobre
Drogas dos Estados, Distrito Federal e Municípios”.
38 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Discorre sobre as políticas sobre drogas, acompanhamento


e avaliação, as diretrizes, entre outras providências, mas o ponto
em debate é a possibilidade de internação compulsória por meio do
pedido dos familiares os responsáveis,por escrito, feito pelo médico
psiquiatra (internação involuntária) ou determinada pelo juiz competente
(internação compulsória), ambos já descritos em legislação vigente.
Porém, essa nova legislação traz medidas para o
cumprimento dessa legislação, pois, a indicação por
indicação médica for pela internação compulsória, muitas
vezes, a emissão da ordem judicial é demorada impedindo
a equipe médica atuar de forma rápida. O processo
continuará o mesmo, porém, representantes do Judiciário
farão plantão em um equipamento médico, dessa forma,
o paciente é avaliado no primeiro atendimento e, caso o
paciente não queira se internar, o juiz de plantão, pode
acelerar esse processo. (BRASIL, LEI Nº 13.840, DE 5 DE
JUNHO DE 2019, 2019).
Podemos observar que as mudanças que acontecem no Brasil,
estão relacionadas com as mudanças da sociedade, que está cada vez
mais buscando pelos seus direitos em relação ao cuidado da saúde pelo
Estado. Além disso, os próprios profissionais da saúde perceberam que
os tratamentos utilizados eram brutais e exigiam melhoras para devolver
aos pacientes sua dignidade. E as legislações em vigor estão baseadas
nos princípios e diretrizes do SUS.

Analise dos impactos e debate sobre a


reforma psiquiátrica brasileira

INTRODUÇÃO
Vamos entender como aconteceram os movimentos
sociais para a reforma psiquiátrica no Brasil. Os encontros
mais relevantes e suas discussões que deram base para as
legislações estudadas no tópico anterior.
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 39

Início do movimento
Como podemos ver, grande parte dos tratamentos para
transtornos mentais, hoje, são considerados desumanos, dentre eles a
exclusão da sociedade a partir da internação e a separação da família.
Juntamente com a superlotação dos hospícios e o alto custo para se
manter esses indivíduos hospitalizados por grandes períodos geraram
uma movimentação social, que iniciam na década de setenta que está
relacionada aos direitos e à dignidade humana no tratamento da saúde
mental.
Esse movimento inicia em um momento peculiar da
história do Brasil, que após vinte anos de ditadura o país
começa um movimento de redemocratização e ascensão
de movimentos sociais por um sistema de saúde de
qualidade, universal, gratuito e igualitário. (AMARANTE &
NUNES, 2018; BEZARRA, 2007; BARBOSA & al, 2012; MELO,
2012)

Movimento antimanicomial
O movimento antimanicomial inicia com o Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), constituído em 1978, com
o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica no Brasil. O I
Congresso de Saúde Mental aconteceu em 1979 na cidade de São Paulo
e foi organizado pelo MTSM, mesmo sem qualquer apoio financeiro.
Em 1986 muitos participantes do MSTM participaram da 8ª
Conferência Nacional de Saúde a qual revolucionou a forma de
participação social para elaboração de políticas públicas relacionadas
à saúde como direito, reformulação do sistema nacional de saúde e
financiamento do setor. Devido à complexidade da discussão sobre
os transtornos mentais, foi decidido realizar, nesse mesmo ano, a I
Conferência Nacional de Saúde Mental em Brasília, porém sem muito
êxito, pois o setor de Saúde Mental do Ministério da Saúde era contrário
às reformulações propostas.
Franco Basaglia, médico psiquiatria, iniciou o processo de reforma
na psiquiatria na Itália e influenciou todo o movimento de reformas no
40 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

mundo e o Brasil. Assumiu a direção de um hospital em 1961, onde


iniciou mudanças para transformá-lo em uma comunidade terapêutica.
Ele percebeu que a simples humanização não seria suficiente por isso
critica a postura tradicional dos médicos por acreditar que a psiquiatria
não era capaz de dar conta do fenômeno complexo que é a loucura.
Basaglia viajou pelo mundo para levar as suas ideias e esteve algumas
vezes no Brasil realizando seminários e conferências contribuindo,
assim, para o movimento pela Reforma Psiquiátrica no país.
Sem a anuência do governo federal, o MTSM decide convocar o II
Congresso Nacional, em 18 de maio 1987, realizado na cidade de Bauru
com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, esse momento o
movimento ganha força com outros ativistas de direitos humanos.
Com esse lema, fica claro que a luta não é apenas contra a violência, a
discriminação e segregação, mas também pela extinção das instituições
e concepções manicomiais, a partir de então se transforma em um
Movimento da Luta Antimanicomial. Com isso o movimento ganha
força contando com profissionais da saúde, instituições acadêmicas,
representantes políticos, usuários e familiares além de outros segmentos
da sociedade, todos questionando o modelo clássico de internações em
hospícios como assistência à saúde mental denunciando as violações
aos direitos dos pacientes e propondo reorganização do modelo de
atenção à saúde mental utilizando serviços abertos e comunitários
buscando a garantia da dignidade de usuários e familiares.
Dia 18 de maio é chamado de Dia Nacional da Luta Antimanicomial,
o qual representa o dia do Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
A denominação Reforma Psiquiátrica foi adotada em 1989 a
partir da aproximação do Movimento Sanitarista e da Reforma Sanitária
que deram origem ao Sistema Único de Saúde (SUS). O termo reforma
reflete a necessidade de uma mudança no modelo biomédico em
psiquiatria buscando destacar que a reforma psiquiátrica necessária não
era apenas em relação aos serviços e tecnologias de cuidado, mas sim
a necessidade de uma estratégia para desinstitucionalização.
A II Conferência Nacional de Saúde Mental acontece em 1992
convocada pelo então presidente Fernando Collor (cinco anos após a
primeira), e a III em 2001 convocada por Fernando Henrique Cardoso
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 41

(quase dez anos após a primeira). A quarta edição da Conferência,


acontece no último ano do segundo mandato do governo Lula da Silva,
em 2010, após grande pressão popular. (AMARANTE & NUNES, 2018;
BEZARRA, 2007; BARBOSA & al, 2012; MELO, 2012)
Com a autonomia e descentralização do proposta pelo SUS,
acontece o desenvolvimento das políticas municipais de saúde, em
Santos/SP os gestores apressam a instalação do SUS e realizam
intervenção em hospital psiquiátrico onde ocorriam graves violações dos
direitos humanos criando uma rede substitutiva composta por serviços
focados não apenas no tratamento terapêutico mas que pudessem
contemplar outras dimensões e demandas da vida, como moradia, lazer,
trabalho, etc. Foram criados cinco NAPS para egressos do hospital, uma
cooperativa de trabalho além de outros programas. Em pouco tempo,
outros municípios criam seus NAPS e CAPS que, posteriormente, entram
para tabela do SUS e a Portaria 224/1992 define as unidades de saúde
como responsáveis por oferecer os cuidados intermediários entre a
rede ambulatorial e a internação hospitalar.
A III Conferência Nacional de Saúde Mental construindo um
cenário favorável para a saúde mental no SUS quando a política de
Saúde Mental é regulamentada pela Lei 10.216 de 2001 após muita
pressão social. É importante ressaltar que o Projeto de Lei 3.657/89
tramitou pelo Congresso por quase 12 anos e, mesmo sem aprovação,
tornou-se base para esse substitutivo aprovado em 2001.
Dos encontros nacionais relacionados a essa luta surgiram
conquistas consideráveis a cada novo encontro. Dentre elas a criação
dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção
Psicossocial (NAPS) que vamos entender melhor em outra aula. Com
essa estrutura é possível tratar o paciente em seu domicílio e, quando
necessário, interna-lo por um período curto apenas reestruturar esse
indivíduo e recoloca-lo no convívio de seus familiares. (AMARANTE &
NUNES, 2018; BEZARRA, 2007; BARBOSA & al, 2012; MELO, 2012)
42 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Assistência à saúde mental nos últimos


anos (2010-2019)
A partir de 2010, apesar dos estudos mostrarem o consumo de
álcool de forma abusiva sendo o principal problema de drogas no país,
os recursos do governo são investidos na “epidemia do crack”, com esse
pretexto, as legislações tratam sobre o abuso de drogas.
Em 2011, a inserção das Comunidades Terapêuticas na Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS) como substitutivo sem atender às
exigências para ser considerado um serviço de saúde, pois atua na
perspectiva manicomial, tendo cunho religioso e sem uma equipe
técnica para compor a rede de saúde mental.
Propostas conservadoras e neoliberais geram mudanças na
gestão da Política Nacional de Saúde Mental em 2015. Logo depois,
houve mudanças no indicador de avaliação de saúde mental sendo
substituído pelas ações de matriciamento realizadas por CAPS com
equipes de Atenção Básica e as Comunidades Terapêuticas (CT) são
consideradas estabelecimentos de saúde capacitando-as a receberem
recursos do SUS.
Dois pontos são importantes nesse momento: primeiro, já
vimos que as CTs não contam com equipe técnica, segundo que a
verba pública é transferida para o serviço privado, como terceirização
do serviço, porém, essas CTs não têm as mesmas características de
universalidade e integralidade do SUS, tendo por vezes restrições
no atendimento como, por exemplo, não permitirem pacientes com
orientação sexual considerada “desviante” por pautarem sua intervenção
predominantemente na religião, gerando uma divisão de trabalho entre
CTs e os CAPS.
No Governo Temer, a Portaria 3.588/2017 foi aprovada a qual
gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde Mental,
caminhando contra a Reforma Psiquiátrica no Brasil que, até então,
preconizava a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial, dessa
forma, essa política retrocede os avanços das três décadas da Reforma
Psiquiátrica.
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 43

Dentre os elementos dessa Portaria, podemos destacar a


remanicomialização da saúde mental através de investimento financeiro
dos recursos do Governo Federal, aumentando o valor da diária nos
manicômios sem aumento do repasse para os CAPS levando a um
serviço cada vez mais precário. O aumento da capacidade dos leitos
de Hospitais Gerais para alas psiquiátricas, levando, na prática, a
presença de mini-hospícios nos hospitais gerais, ou seja, multiplicação
de internações dos pacientes, além de outras alterações relacionadas a
repasse.
Com essas mudanças geradas pelas novas legislações e novas
formas de repasse fica nítido que a internação em CTs e o modelo
manicomial se tornam o foco central do cuidado ao paciente.
Por fim, em fevereiro de 2019, Nota Técnica de n.º 11/2019 vem
para esclarecer os motivos dessas mudanças no perfil de atendimento
ao paciente com transtorno mental. Conselhos dos profissionais de
saúde lançaram notas e cartas discordando dessas decisões, em muitas
delas, aparece o repudio a internação de crianças e adolescentes em
hospitais psiquiátricos, podendo acontecer em alas de adultos, além
do redirecionamento do financiamento público. Além disso, a nova
visão do Ministério da Saúde em relação aos CAPS’s, deixando de
serem considerados serviços sendo substitutos de outros, deixando de
lado o fechamento de leitos em hospícios para a redução dos leitos
psiquiátricos. (GUIMARÃES & ROSA, 2019)
A Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019 foi sancionada durante
a produção desse material, por isso não há dados para embasar uma
discussão mais profunda, mas é nítido que ela vai de encontro ao
movimento antimanicomial, pois, considerando o abuso de drogas um
transtorno mental, a exclusão desse paciente da sociedade de forma
involuntária, remete aos procedimentos psiquiátricos antigos. Se ela irá
trazer benefícios ou traumas mais graves a esses pacientes apenas o
tempo dirá.
Conhecemos as lutas do movimento antimanicomial, todas
as conquistas em relação à redução de internações e o tempo delas
quando consideradas necessárias através de legislações instituídas
após conferencias e congressos com movimentos não apenas dos
44 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

profissionais da saúde, mas com outros atores como pacientes e


familiares e ativistas dos direitos humanos simpatizantes a essa causa.
Mas percebemos que toda essa luta está retrocedendo, mas esse
movimento não foi abalado, por isso, podemos acreditar que ainda
haverá muitas mudanças nos próximos anos.


Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 45

BIBLIOGRAFIA
 AMARANTE,P.,&NUNES,M.(2018).AreformapsiquiátricanoSUSealutapor
uma sociedade sem manicômios. cIÊNCIA & sAPUDE coLETIVA, 23(6), 2067-
2074. Acesso em 10 de 06 de 2019, disponível em https://www.scielosp.org/
pdf/csc/2018.v23n6/2067-2074/pt

 BARBOSA, G., & al, e. (2012). Movimento da luta antimanicomial: trajetória,


avanços e desafios. Cad. Bras. Saúde Mental, 4, 45-50. Acesso em 05 de 06 de
2019, disponível em https://rets.org.br/sites/default/files/2017-8050-1-PB.pdf

 BEZARRA,B.J.(2007).DesafiosdaReformaPsiquiátricanoBrasil.Physis,17(2).
Acesso em 10 de 06 de 2019, disponível em http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312007000200002

 BORENSTEIN,M.(2007).TerapiasutilizadasnoHospitalColôniaSant’Ana:
berço da psiquiatria catarinense (1941-1960). Revista Brasileira de Enfermagem,
665-9. Acesso em 05 de 06 de 2019, disponível em http://www.scielo.br/pdf/
reben/v60n6/08.pdf

 BRASIL. (1992). Portaria SAS/MS n 224, de 29 de janeiro de 1992. Acesso


em 07 de 06 de 2019, disponível em http://www.saude.mg.gov.br/index.
php?option=com_gmg&controller=document&id=836

 BRASIL.(2000).Portarian106de11defevereirode2000.Acessoem07de06
de 2019, disponível em http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2015/
marco/10/PORTARIA-106-11-FEVEREIRO-2000.pdf

 BRASIL. (2001). Lei n 10.216, de 6 de abril de 2001. Acesso em 07 de 06 de


2019, disponível em https://hpm.org.br/wp-content/uploads/2014/09/lei-
no-10.216-de-6-de-abril-de-2001.pdf

 BRASIL.(2002).Portarian336,de19defevereirode2002.Acessoem07de06
de 2019, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/
prt0336_19_02_2002.html
46 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

 BRASIL. (2010). DECRETO Nº 7.179, DE 20 DE MAIO DE 2010.Acesso em 11


de 06 de 2019, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Decreto/D7179.htm

 BRASIL.(2017).PORTARIANº3.588,DE21DEDEZEMBRODE2017.Acessoem
11 de 06 de 2019, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
gm/2017/prt3588_22_12_2017.html

 BRASIL. (2019). NOTATÉCNICANº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS.


Acesso em 11 de 06 de 2019, disponível em http://pbpd.org.br/wp-content/
uploads/2019/02/0656ad6e.pdf

 CARVALHO, S., & AMPARO, P. (março de 2006). Nice da Silveira: a mãe da


humana-idade. Revista LatinoAmericana de Psicolofia Fundamental. Acesso
em 03 de 06 de 2019, disponível em http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v9n1/1415-
4714-rlpf-9-1-0126.pdf

 FIQUEIREDO,M.,DELEVATI,D.,&TAVARES,G.(11de2014).ENTRELOUCOS
E MANICÔMIOS: HISTÓRIA DA LOUCURA E A REFORMA PSIQUIÁTRICA
NO BRASIL. Cadernos de Graduação. Acesso em 03 de 06 de 2019,
disponível em https://periodicos.set.edu.br/index.php/fitshumanas/article/
viewFile/1797/1067

 GUIMARÃES, A., & al, e. (2013). Tratamento em saúde mental no modelo


manicomial (1960 a 2000): histórias narradas por profissionais de enfermagem.
Texto COntexto Enferm., 361-9. Acesso em 05 de 06 de 2019, disponível em
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n2/v22n2a12.pdf

 GUIMARÃES, T., & ROSA, L. (2019). A remanicomialização do cuidado em


saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura
antirreformista. O Social em Questão(44). Acesso em 12 de 06 de 2019,
disponível em http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_44_art5.pdf

 MELO,A.(2012).ApontamentossobreaReformaPsiquiátricanoBrasil.Cadernos
Brasileiros de Saúde Mental, 84-95. Acesso em 11 de 06 de 2019, disponível em
incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/download/2127/2920
Saúde Mental e Assistência Farmacêutica 47

 MILLANI,H.,&VALENTE,M.(2008).Ocaminhodaloucuraeatransformacao
da assistencia aos portadores de sofrimento mental. Revista Eletronicao Saude
Mental Alcool e Drogas, p. 19. Acesso em 03 de 06 de 2019, disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v4n2/v4n2a09.pdf

 ODA, A., & DALGALARRONDO, P. (2000). Juliano Moreira: um psiquiatra


negro frente ao racismo científico. Rev. Bras. Psiquiatr., 22. Acesso em 03
de 06 de 2019, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1516-44462000000400007

 PACHECO,J.(2011).Representaçõessociaisdaloucuraepráticassociais:o
desafio cotidiano da desinstitucionalização. Brasília: Universidade de Brasília.
Acesso em 03 de 06 de 2019, disponível em http://repositorio.unb.br/
bitstream/10482/10194/1/2011_JulianaGarciaPacheco.pdf

 RAMOS,F.,&TEIXEIRA,M.(06de2012).AsorigensdoalienismonoBrasil:dois
artigos pioneiro sobre o Hospício de Pedro II. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., pp.
364-81. Acesso em 03 de 06 de 2019, disponível em http://www.scielo.br/pdf/
rlpf/v15n2/11.pdf

 SAIOL, J. (2016). Legislação psiquiátrica no início da República: entre o


protagonismo do Hospício Nacional de Alienaods e a interiorização da
assistência. Anais do XVII Encontro de História da Anpuh-Rio. Acesso em 06 de
06 de 2019, disponível em http://www.encontro2016.rj.anpuh.org/resources/
anais/42/1466992560_ARQUIVO_TextoANPUH-Rio-JoseRoberto.pdf

 TILIO,R.(2007).“Aquereladosdireitos”:loucos,doentesmentaiseportadores
de transtornos e sofrimentos mentais. Paidéia, 195-206. Acesso em 03 de 06
de 2019, disponível em http://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n37/a04v17n37.
pdf
48 Saúde Mental e Assistência Farmacêutica

Saúde Mental e
Assistência Farmacêutica

Mariana Martins Garcia

Você também pode gostar