Você está na página 1de 5

Artigo

A Relevância
Metabólica dos
Receptores de Sabor
Marcio C. Mancini - Chefe do Grupo de
Obesidade e Síndrome Metabólica da mas somente em 1917 Luciani de-
Disciplina de Endocrinologia e Metabologia finiu que ligantes ácidos estimulam
do Hospital das Clínicas da FMUSP.
papilas linguais sensíveis a azedo (ou
ácido), que sais estimulam as sensí-
Um Pouco de História do Sabor veis a salgado, que ligantes alcaloi-

C
inco séculos a.C., na Gré- des são amargos e que carboidratos
cia Antiga, Alcmaeon pos- têm gosto doce. Luciani descreveu
tulava que partículas de sa- ainda que compostos químicos di-
bor adentrassem no sensório (que ferentes podem estimular as papilas
seria localizado no cérebro) através linguais (como por exemplo, a saca-
de pequenos poros localizados na rina, que estimula papilas de sabor
superfície da língua. Subsequente- doce). Poucos anos antes, em 1908,
mente, outras teorias foram elabo- Kikunae Ikeda, da Universidade Im-

Foto: Wallenrock
radas. Demócritus, contemporâneo perial de Tokio, descreveu um sabor
de Hipócrates, achava que cada sa- que denominou “umami” (derivado
bor teria um formato diferente, mas de “umai”, que significa saboroso,
foi Aristóteles que pela primeira vez delicioso, em japonês).
definiu os sabores doce, amargo, áci-
do e salgado (aceitos até os dias atu- Os Tipos Básicos de Sabor e
ais), acrescentando ainda sabores de- a Transmissão da Informação
finidos como pungente e austero. O do Sabor
médico siciliano Galeno, no sécu- A determinação da palatabilida-
lo II d.C., dissecou e identificou os de envolve vários sistemas senso-
nervos que inervam a língua. Pas- riais, incluindo a visão (aparência
sada a Idade Média, outros descri- e cor do alimento a ser ingerido),
tores de sabores foram acrescidos à o olfato (sensibilidade a compostos
listagem inicial, incluindo o sabor voláteis desprendidos do alimen-
gorduroso, viscoso, nauseoso, urino- to), a audição (como, por exemplo,
so, pútrido, aromático e espirituoso. quando ouvimos o som ao masti-
Em 1742, Haller descreveu o “mapa garmos alimentos crocantes), o
da língua” (hoje desacreditado) de- tato (sensação de alimentos com
finindo locais específicos de sabor, diferentes texturas), a termocep-

8 – ABESO 58 – agosto 2012


Tabela 1. Tipos primários (ou básicos) de sabor, exemplo de alimentos ligantes e comportamento.
Sabor Exemplo de alimentos ligantes Comportamento
Doce Carboidrato, açúcar Atração inata (neonatos)
Salgado Sal Atração
Azedo/ácido Frutas cítricas, vinagre, soluções carbonatadas Aversão, tolerância ou atração por aprendizado
Amargo Cafeína, rúcula, jiló Aversão, tolerância ou atração por aprendizado
Umami GMS: Leite materno, queijos curados, algas, cogumelos secos, ostras, Atração inata (~ a doce)
anchovas, lula, tomate, aminoácidos

agosto 2012 – ABESO 58 – 9


Tabela 2. Caracterização dos receptores de sabor.
Sabor Receptors Células Tipo de receptor Local
Doce Heterodímero T1R2/T1R3 Tipo II (receptor) Família C (III) de GPCRs Oral + TGI
Umami Heterodímero T1R1/T1R3 Tipo II (receptor) Família C (III) de GPCRs Oral + TGI
Amargo Família T2R (35 tipos) Tipo II (receptor) Família A (I) de GPCRs Oral + TGI
Azedo PKD1L3, PKD2L1, ASIC, HCN Tipo III (pré-sináptica) Receptores tipo canal iônico (cálcio) Oral
Salgado ENaC Tipo III (pré-sináptica) Receptores tipo canal iônico (sódio) Oral

ção, a propriocepção e, finalmen- dos receptores de sabor responde so- de decisão da ingesta, a predição de
te, a gustação propriamente dita. mente a um tipo básico. O receptor conforto e recompensa e a consoli-
Além dos sistemas sensoriais, a localiza-se na extremidade apical da dação do sabor através de respostas
decisão de ingerir determinado ali- célula e na extremidade basal ocorre multissensoriais.
mento pode ocorrer secundaria- a conexão com neurônio transmissor
mente a comandos oriundos do hi- do sinal de sabor. Recentemente, foi Caracterização dos
potálamo (neurônios envolvidos na documentada a existência de recep- Receptores de Sabor
homeostase energética) e/ou do sis- tores de sabor também no trato gas- Os receptores de sabor podem ser
tema límbico (neurônios envolvidos trintestinal, fazendo-nos especular divididos em dois tipos. O primeiro
em propriedades de recompensa a que a importância dos mesmos pode são as células tipo receptor (chama-
sensações de conforto pela ingestão estar ligada a outra função, além de das também de tipo II), que contêm
de determinados alimentos – assim somente a sensação gustatória. receptores acoplados à proteína G. É
denominado valor hedônico do ali- As papilas gustativas ou linguais o caso dos receptores de sabor doce,
mento). Estes comportamentos não são aproximadamente 5 mil grupa- umami e amargo. O segundo tipo
serão aqui abordados. mentos de cerca de cem células de são as células pré-sinápticas (chama-
O sistema gustatório foi de pri- sabor que se projetam através do epi- das de tipo III), que contêm recep-
mordial importância na evolução télio da língua num assim chamado tores tipo canal iônico. É o caso dos
e sobrevivência da espécie huma- “poro” de sabor e (diferentemente de receptores de sabor azedo e salgado.
na, por auxiliar na identificação de outras células de outros sistemas sen- A caracterização das células de recep-
alimentos benéficos à saúde e dele- soriais) é uma população celular que tor de sabor está descrita na Tabela
térios ou mesmo letais. O sistema se renova continuamente. 2, incluindo os tipos de receptores
gustatório fornece “pistas gustato- A língua é inervada por ramos envolvidos.
riais” que permitem detectar fon- aferentes dos nervos facial (VII), As células de receptor tipo II
tes de energia e nutrientes essenciais glossofaríngeo (IX), trigêmeo (V) e apresentam diferenças no compri-
(como alimentos fonte de carboidra- vago (X). Esses ramos transmitem o mento do ectodomínio de ligação
tos e proteínas), e alimentos não di- sinal de sabor para o núcleo do tra- N-terminal. Enquanto as células de
geríveis ou perigosos (como alimen- to solitário e para a formação reticu- receptor de sabor amargo apresen-
tos que contém toxinas, alimentos lar medular no tronco cerebral. Daí tam ecodomínio curto da família
estragados ou venenosos). as fibras nervosas conectam-se com de receptores GPCR T2R forman-
Atualmente, são reconhecidos o núcleo medial ventroposterior do do dímeros, as células de sabor doce
cinco tipos primários (ou básicos) de tálamo, que por sua vez conecta-se e umami apresentam ectodomínios
sabor: doce, salgado, azedo ou ácido, ao hipotálamo e ao córtex gustatório de ligação bem longos (chamados
amargo e umami. Exemplo de ali- e córtex frontal. O tronco cerebral é de “vênus flytrap” por lembrarem as
mentos ligantes e atração ou aversão responsável pelas funções oromoto- plantas que prendem e se alimentam
inata são descritos na Tabela 1. ras básicas como mastigar, lamber, de moscas) formando heterodímeros
As células dos receptores de sa- salivar, etc. No tálamo, ocorre o pro- de T1R2/T1R3 (doce) ou de T1R1/
bor localizam-se nas papilas linguais, cessamento do sabor e a formação da T1R3 (umami).
que são os órgãos sensoriais finais da memória do sabor. No cortex gusta- A transmissão do sinal para o
cavidade oral. A maioria das células tório e frontal acontece o processo SNC também é diferente quando

10 – ABESO 58 – agosto 2012


O sistema gustatório foi de primordial importância na evolução e sobrevivência da espécie humana,
por auxiliar na identificação de alimentos benéficos à saúde e deletérios ou mesmo letais.

comparamos as células tipo receptor seletivamente o sabor doce, já que a antagônica a sensibilidade ao sabor
e as células pré-sinápticas. Enquan- administração de 2-araquidonoilgli- doce.
to as células tipo receptor apresen- cerol promove aumento da resposta Sabemos que o peptídeo seme-
tam uma cisterna em contato íntimo neural do receptor de sabor doce a lhante ao glucagon-1 (GLP-1) tam-
com a terminação nervosa, as célu- sacarose, sucralose, glicose, mas não bém é capaz de produzir uma dimi-
las pré-sinápticas possuem sinapses a quinino (agonista da célula de re- nuição da sensibilidade do receptor
convencionais. ceptor de sabor amargo), cloreto de de sabor doce, em receptores locali-
sódio (agonista da célula de recep- zados no intestino, causando respos-
Influência dos Receptores tor de sabor salgado), ácido clorídri- tas aferentes neurais via nervo vago
de Sabor na Homeostase co (agonista da célula de receptor de que podem participar da modulação
Energética sabor azedo) e glutamato monossó- do equilíbrio energético.
A maior parte dos estudos é recen- dico (agonista da célula de receptor Em conclusão, os receptores de
te e envolve células de sabor doce e de sabor umami). sabor são uma nova fonte, ainda re-
amargo. Sabe-se que substâncias en- De forma antagônica, a leptina lativamente pouco explorada, que
volvidas na homeostase energética age no seu receptor Ob-Rb na célu- oferecem uma conexão bastante
modulam a sensibilidade ao sabor. la de sabor doce, reduzindo a exci- plausível entre preferências alimen-
A administração de agonistas cana- tabilidade da célula de sabor e im- tares, modulação energética e varia-
binoides aumenta a resposta nervo- pedindo a despolarização, que gera ções metabólicas e do peso corporal.
sa após estímulo do receptor de sa- o potencial de ação deflagrador da Variações gênicas desses receptores e
bor doce a sacarose, o que não ocorre liberação de ATP na cisterna e a con- a busca de novos receptores de sabor
em camundongos com deleção gê- sequente estimulação neuronal. (por exemplo, receptor para gordu-
nica do receptor endocanabinoide. Assim, a leptina e o sistema en- ra) são um campo vasto de pesquisa
O sistema endocanabinoide modula docanabinoide modulam de forma futura. c

Referências Bibliográficas: gustatory system. Trends Neurosci. 33:326- riphery: detection, transmission and modu-
1. 1. Behrens M, et al. Sweet and umami tas- 34 (2010). lation of taste information. Biol Pharm Bull.
te: natural products, chemosensory targets, 3. 3. Chaudhari N & Roper SD. The cell 33:1772-7 (2010).
and beyond. Angew Chem Int Ed.;50:2220- biology of taste. J Cell Biol. 190:285-96 5. 5. Yoshida R, et al. Endocannabinoids selecti-
42 (2011). (2010). vely enhance sweet taste. Proc Natl Acad Sci
2. 2. Carleton et al. Coding in the mammalian 4. 4. Niki M, et al. Gustatory signaling in the pe- U S A. 107(2): 935–9 (2010).

agosto 2012 – ABESO 58 – 11


Avaliação da Função
Artigo

Hepática em Obesos
Lívio Fiolo Duarte, Roberto de Cleva,
Caroline Nicolau Nardi, Denis Pajecki,
Marco Aurelio Santo, Ivan Cecconello -
Departamento de Gastroenterologia da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo -
USP.

A
tualmente a obesidade, defi-
nida como índice de massa
corpórea (IMC) maior que
30 kg/m², é considerada uma epi-
demia no mundo ocidental.
Alterações do hábito alimentar
associadas ao sedentarismo estão re-
lacionadas com o crescente aumento
de sua prevalência nas últimas déca-
das, tanto no Brasil como no restan-
te do mundo1,2,3.
A obesidade grave está associada a
diversas doenças crônicas como a hi-
pertensão arterial sistêmica (HAS),
dislipidemia, diabetes tipo II / re-
sistência à insulina e doença hepáti-
ca gordurosa não alcoólica (DHG-
NA)3,4, todas manifestações clínicas
associadas à síndrome plurimetabó-
lica4,5.
A prevalência da DHGNA na
população geral varia, em algumas
séries, entre 10 e 30%, enquanto
entre obesos mórbidos pode atingir
mais de 80% dos pacientes6,7.
No início dos anos 1980, Lu-
dwig e colaboradores8 sugeriram o
Ilustração: Maxi_m

termo esteatohepatite não alcoólica


(EHNA) em uma série de casos que
apresentavam uma condição histo-
lógica semelhante à hepatite alcoó-
lica em pacientes sem história de in-

12 – ABESO 58 – agosto 2012

Você também pode gostar