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CRIMINALIDADE

PATRIMONIAL E DAS
EMPRESAS
PROFESSOR ANDRÉ LAMAS LEITE

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO

2020-2021

CATARINA VIEIRA

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Aula de 25 de setembro de 2020

NOÇÕES BÁSICAS: Noção de património, propriedade e direitos patrimoniais para efeitos


jurídico-penais

O Direito Penal, partindo de várias noções que são de Direito Civil, tem noções próprias do que
seja ‘PATRIMÓNIO’, do que seja ‘PROPRIEDADE’, do que seja ‘COISA’. A noção jurídico-civilística
de ‘coisa’ não é habitualmente coincidente com a noção jurídico-penal de ‘coisa’. – Esta é uma
questão prática que já ocupou os nossos tribunais.

Quando se estuda a distinção entre a interpretação extensiva e a analogia é habitual falar-se do


exemplo que diz respeito ao FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. Hoje em dia esta questão em relação
à energia elétrica está ultrapassada/devidamente cimentada na nossa jurisprudência, mas
durante muito tempo os nossos tribunais discutiram se era ou não necessário, tal como fez o CP
alemão, criar um crime de furto autónomo para o furto de energia elétrica em Portugal.
Começou a haver jurisprudência divergente. A questão era saber se o furto de energia elétrica
é, na verdade, um crime de furto.

Quando olhamos para o art.º 203 do CP, e quando olhamos para o tipo objetivo encontramos lá
“quem (…) subtrair coisa móvel ou animal alheios (…)”, a questão é a de saber se o conceito de
energia elétrica cabia ou não no conceito de coisa móvel.

Na interpretação das normas do Direito Penal qual é a doutrina maioritária que nós devemos
seguir? Como devemos interpretar as normas jurídico-penais?

As normas jurídico-penais são normas jurídicas e por isso o objetivo é sempre fazer o quê? Fazer
coincidir a letra com o espírito da lei, o elemento literal com o elemento teleológico. Mas isto
no DP tem uma forma específica de se dizer, utilizando até a expressão alemã moglisches
wortsinn (=sentido possível da palavra), o que significa que seguimos uma interpretação tendo
em conta os sentidos possíveis das palavras que a lei utiliza.

Neste caso temos, por um lado, ENERGIA ELÉTRICA e, por outro lado, COISA MÓVEL. Na
atividade hermenêutica vamos tentar perceber se a ‘energia elétrica’ cabe ou não dentro do
conjunto amplo de significados que a expressão “coisa móvel” tem. Ou seja, quando pensamos
em coisa móvel estamos também a pensar em energia elétrica? A noção de energia elétrica cabe
na noção de coisa móvel? A dificuldade está na existência de corporeidade da energia elétrica.
A energia elétrica não é algo que seja percetível pelos sentidos em si.

Houve decisões dos tribunais que associaram a ideia de coisa a uma ideia de corporeidade e
negaram a existência de furto de energia elétrica porque diziam que ‘ser uma coisa’ implicava
haver um mínimo de corporeidade, o que não acontece com a energia elétrica. Não se duvida
que seja móvel, mas não tem corporeidade e, portanto, não seria uma coisa. Se não é uma coisa
móvel também não temos crime.

Se nós formos à noção jurídico-civil de “coisa´” tudo se torna mais simples. Artigo 202º, nº1 do
CC “Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas”. Se transpusermos para
o DP a noção jurídico-civilística de coisa não há dúvidas de que a energia elétrica é objeto de
relações jurídicas. Ou seja, parte da jurisprudência foi pela noção jurídico-civilística de coisa. Não

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era necessário criar um novo crime para o furto de energia elétrica e, portanto, a energia elétrica
cabia no conceito de coisa móvel.

Quanto ao FURTO DE SINAL DE TV POR CABO: a jurisprudência minoritária entende que o furto
de sinal (seja de cabo, seja de wireless) não cabe no tipo legal de crime. Quanto ao sinal não se
pode ir pela noção de corporeidade e por isso os tribunais têm dito apenas que o sinal é
diferente da energia elétrica. Mas do ponto de vista jurídico se se aceita que a energia elétrica
pode ser objeto de furto então o sinal também. Mas este não tem sido o entendimento.

FIGUEIREDO DIAS entende que é inconstitucional esta aplicação que os tribunais fazem quanto ao
furto de energia elétrica; entende que os tribunais estão a fazer uma interpretação analógica,
ou quanto muito uma interpretação extensiva. Ora, a interpretação extensiva em DP, apesar de
não ser proibida, quando é contra reo, ou seja, quando vai prejudicar o arguido não deve ser
admitida. A posição de FIGUEIREDO DIAS não parece fazer sentido. Podemos representar
socialmente a energia elétrica. A energia elétrica é objeto de relações jurídicas.

Quando falamos no conceito de património/de propriedade, poderíamos dizer que


propriedade é aquilo que é entendido como tal em direito reais e quanto muito podemos
abranger na propriedade, para efeitos jurídico-penais, os chamados direitos reais menores e as
situações de posse e de detenção. Em geral esta é ainda uma posição defensável, ou seja, o
conceito de propriedade, o conceito de património do Direito Penal e o conceito de coisa que
depois é usado em vários artigos. O Direito Civil é um ponto de partida relativamente seguro.

Temos o artigo 62º, nº1 da CRP que protege o direito de propriedade.

No entanto, no Direito Penal não recebemos acriticamente a noção de coisa do Direito Civil, na
medida em que há aspetos em que divergimos do Direito Civil em relação ao conceito de coisa.

Há uma discussão na Alemanha quanto ao que é mais importante no conceito de propriedade,


de património, de direitos patrimoniais. O que é importante nestas matérias dos crimes
patrimoniais em geral é olhar para a substância da coisa ou para o valor da coisa?

Imaginemos que em minha casa tenho alguns cabelos da minha avó e que para mim não
esses cabelos não têm preço e alguém entra na minha casa e se apropria daquilo.

1) A TEORIA DA SUBSTÂNCIA DA COISA dir-me-á: estamos perante um crime de furto porque


a coisa não tem valor patrimonial mas tem valor sentimental para mim. Esta teoria diz que
o que releva é a proteção penal da coisa em si independentemente de ela ter ou não valor
de mercado/valor económico, o que significa que as coisas que tenham valor afetivo são
abrangidas pela tutela jurídico-penal.
2) A TEORIA DO VALOR MATERIAL DA COISA entende que a proteção jurídico-penal só entra
em ação se a coisa furtada tiver efetivamente valor patrimonial/valor de mercado. Os
cabelos não são objeto de proteção por parte do DP. O DP não serve para proteger questões
meramente afetivas.
3) TEORIA MISTA OU ECONÓMICO-JURÍDICA DE PATRIMÓNIO: segundo esta teoria deve
conferir-se tutela jurídico-penal aos bens suscetíveis de avaliação pecuniária mas também
se deve abranger bens que não sejam juridicamente desaprovados. Ou seja, também
merece tutela jurídico-penal bens economicamente legítimos mas cuja fonte de aquisição
pode ser ilegítima como, por exemplo, produtos estupefacientes. Quando se diz “bens que

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não sejam juridicamente desaprovados” quer-se significar o quê? Produtos estupefacientes
estamos a falar necessariamente da definição a partir da lei de 2000 que diz que
descriminalizou o consumo de produtos estupefacientes apenas para consumo individual e
em doses que não podem ultrapassar o consumo médio diário para 10 dias. É nesse sentido
que ALMEIDA COSTA E DAMIÃO DA CUNHA entendem que estes bens também podem ser objeto
de tutela por parte do DP, ou seja, é evidente que o produto estupefaciente tem uma
avaliação pecuniária, mas essa avaliação pecuniária está-se a aqui a partir do princípio que
não é juridicamente desaprovada. Não é juridicamente desaprovada de um ponto de vista
penal, mas é do ponto de vista contraordenacional. Isto porque sabemos que houve uma
descriminalização em sentido técnico, impuro porque isso não significa que estes
comportamentos passem a ser lícitos. Eles constituem contraordenações que a lei de 2000
pune.

Esta teoria mista não convence o prof. ANDRÉ LAMAS LEITE na medida em que mistura realidades.
Não parece que seja possível encontrar uma posição intermédia. Ou dizemos que as coisas são
jurídico-penalmente protegidas independentemente do seu valor pecuniário (teoria da
substância) ou dizemos que para serem objeto de tutela por parte do Direito Penal têm que ter
valor económico (teoria do valor económico da coisa). É difícil entender como é que os produtos
estupefacientes são coisas que o direito não desaprova.

Não há dúvidas de que o nosso legislador adotou uma teoria que reconhece que há tutela
jurídico-penal mesmo que as coisas que não tenham valor económico. Ou seja, parece que o
nosso CP tomou posição no sentido da teoria da substância.

Claro que esta teoria mista é também utilizada para um outro problema que diz respeito à
questão que na gíria se costuma dizer “ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão”. A
questão é a seguinte: é possível que quem apresente queixa crime por crime de furto simples
não seja o legítimo proprietário da coisa? Claro que é. Alguém se arroga do direito de
propriedade de uma coisa e diz que essa coisa lhe foi subtraída. E a não ser que no decurso do
inquérito, ou mais tarde, se venha a apurar que essa coisa teve uma proveniência ilícita pode
acontecer que uma coisa que veio à minha posse/propriedade por via da prática de um crime –
imaginemos que subtraio o telemóvel a outrem e esse outrem apresenta queixa crime e
passados uns anos eu começo a usar o telemóvel que por sua vez me é também subtraído e eu
apresento queixa-crime: mereço tutela penal ou não? Depende da posição de princípio. Esta
posição (teoria mista) ao defender que também merece tutela penal aquilo que não seja
juridicamente desaprovado é uma posição que mais facilmente se compatibiliza com os autores
que entendem que mesmo que se prove que eu entrei na posse ou propriedade de uma coisa
de forma ilícita, se ela por sua vez depois me foi furtada a mim eu mereço igualmente proteção
por parte do DP porque na verdade a coisa que me foi subtraída naquele momento era alheia
embora ilicitamente. A lei não exige que a coisa tenha entrado ilicitamente na minha esfera
jurídica. Há aqui a ideia de que o facto de ter entrada na propriedade de alguém e durante algum
tempo exerce os direitos subjacentes à utilização da coisa fazem com que ela deixe de ser
juridicamente desaprovada.

Outra posição que é defendida por PINTO DE ALBUQUERQUE, e com o qual o prof. concorda, que
nos diz o contrário. Esta posição concorda com o adágio popular (ladrão que rouba a ladrão tem
100 anos de perdão) porque diz que não tem a direito a tutela jurídico-penal quem por sua vez

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depois é vítima de um crime que tem por objeto uma coisa que entrou ilegitimamente na sua
posse ou na sua propriedade. E, portanto, consideram que é uma conduta de natureza atípica.

Quem defende a posição segundo o qual entende que “ladrão que rouba ladrão não tem 100
anos de perdão”, ou seja, que quem furta outra pessoa o segundo furto deve ser punido tem a
ideia de proteção máxima do bem jurídico, este tem que ser protegido independentemente de
como o bem entra na esfera jurídica do titular, seja quando essa coisa entra na esfera jurídica
de forma lícita ou de forma ilícita.

Aula de 2 de outubro de 2020

Na aula passada começamos a ver o tipo legal do crime de furto simples (art.º 203 do CP). Vimos
o conceito jurídico-penal de património. Vimos que se degladiavam duas teorias fundamentais
sobre esta matéria: a teoria da sustância que nos diz que uma coisa pode até não ter valor
económico, mas merece na mesma proteção do DP; teoria do valor material da coisa que diz
exatamente o contrário, ou seja, diz que o mais importante é que a coisa tenha valor
económico/valor de mercado, se não tiver não há lugar a tutela do DP. Tenta-se fazer uma teoria
que é uma espécie de teoria compromissória que é a teoria mista ou económico-jurídica de
património que parte do princípio do valor económico mas depois também que a esse conjunto
de bens temos que juntar outros que o ordenamento não proíbe.

O CP consagra que teoria? Seja no crime de furto simples ou furto qualificado não encontramos
uma única referência a que a coisa ou animal furtadas tenham necessariamente que ter algum
tipo de valor económico ou financeiro. Conclui-se dessa forma que a teoria que o nosso CP
consagra é a teoria da substância, ou seja, o que interessa é que a coisa seja objeto de relações
jurídicas.

Já começamos também a ver a noção de coisa para efeitos do DP e, mais concretamente, a


noção de coisa para efeitos do crime de furto, apesar de a noção de coisa nos acompanhe ao
longo de vários tipos legais de crime (desde logo, se virmos o artigo 205º também faz referência
a coisa, bem como o artigo 210º do CP. Não veremos os crimes de dano, mas estes também
exigem sempre a noção de coisa. No que respeita às burlas já não falamos de coisa porque
estamos a falar de uma vantagem patrimonial. Assim como quando estudarmos o crime de
infidelidade do artigo 204º do CP).

OS CRIMES DE FURTO
CRIME DE FURTO SIMPLES

O artigo 202º do CP contém um conjunto de definições legais, é uma norma definitória. As


normas definitórias são importantes. Quanto à questão dos crimes patrimoniais temos
precisamente o artigo 202º do CP que trabalha com a Unidade de Conta (1 UC = 102.00€).

A UC é um valor que serve de base para o cálculo das custas judiciais (Lei nº 34/2008, artigo 5º
[Reg. das Custas Processuais]). Determinado de acordo com critérios económico-financeiros.

Artigo 202º, al. a) do CP diz “valor elevado – aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no
momento da prática do facto”, ou seja, 5.100€.

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Certos atos processuais que importam o pagamento de uma taxa de justiça, como é o caso da
constituição como assistente. Em regra, a constituição como assistente exige o pagamento, a
não ser que haja uma isenção prevista no regulamento das custas processuais, nos termos do
artigo 8º, de uma unidade de conta (= 102,00€).

ESTATUTO DO ANIMAL → Lei nº 8/2017, de 3 de março : reconhecimento dos animais não como
coisas mas como “seres vivos dotados de sensibilidade”. Esta lei veio conferir aos animais uma
proteção crescida. Agora nós temos três realidades no ordenamento jurídico: temos as pessoas,
temos os animais e temos as coisas. Esta lei veio aditar uma série de artigos ao CC.

Isto fez com que com que houvesse uma neocriminalização. O DP para se manter adaptado aos
tempos tem dois mecanismos: o mecanismo da descriminalização e o mecanismo da
neocriminalização. A neocriminalização é quando o DP “cresce”, ou seja, alarga a sua área de
influência.

Em agosto de 2020 foi publicada a Lei nº 39/2020 que veio dar resposta a muitos anseios dos
aplicadores do direito acerca do conceito de animal de companhia – este é um conceito muito
aberto e que levanta dúvidas sobre saber se determinadas espécies de animais podem ser ou
não consideradas animais de companhia. Mas o problema principal não é este, mas sim a forma
como estava redigido o tipo legal de crime que agora se chama “morte e maus tratos de animais
de companhia” antes chamava-se “maus tratos de animal de companhia”, ou seja, estava
redigida de uma forma que não correspondia à teleologia da norma. A norma estava escrita de
uma forma que só punia na verdade quem infligia sofrimento ao animal. Se se provasse que a
morte tinha sido de uma forma em que não tinha sido causado sofrimento ao animal, em rigor,
não podíamos aplicar este tipo legal de crime. Esta situação era extremamente “estúpida” isto
porque provocar sofrimento ao animal mesmo que ele não morresse era crime, mas matar o
animal desde que ele não sofresse não era crime. Agora as coisas mudaram e já não há dúvidas
nenhumas de que a morte está dentro do objeto de proteção.

Discutia-se também se os animais errantes, que vagueiam pela cidade, eram ou não objeto de
proteção. Dizia-se que não são propriedade de ninguém nem estão na posse de ninguém. Mas
são protegidos pela norma.

Também levantava problemas o abandono dos animais de companhia. Até que ponto se eu
deixar o meu cão em frente a uma união zoófila com água e comida pratico um crime. A lei exigia
que se provasse que o animal tinha que ter estado em risco. Se não se provasse não teria
praticado crime nenhum.

A localização sistemática destes crimes não tem sentido nenhum. O legislador não sabia onde
os colocar e então colocou-os no final. O CP termina com o conceito de funcionário que cabe
dentro dos crimes contra o Estado. Depois abriu-se um título que diz “crimes contra animais de
companhia”. O que é que se protege? São crimes contra o Estado? Quem é o titular do bem
jurídico? É o Estado? Todo o crime tem que ter um bem jurídico identificado. Qual é o bem
jurídico que encontramos na CRP que permite a criminalização da morte, maus tratos ou
abandono dos animais selvagens? Direito ao ambiente, qualidade de vida.

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Há quem defenda que estes crimes são todos inconstitucionais porque não se consegue
vislumbrar um bem jurídico claro na proteção dos animais. O legislador português às vezes é
“estabalhoado”. Por exemplo, na Alemanha alteraram a Constituição porque lá fala da proteção
do ambiente e eles colocaram “e dos animais”. Em Portugal não o fizeram.

Os animais são eles próprios sujeitos de direitos? Quando protegemos criminalmente os animais
estamos a protege-los porque eles por si mesmo merecem essa proteção? Ou quem está a ser
protegida é a pessoa humana numa dimensão da sua realização que passa pela sua convivência
com os animais? Se assim for então os animais não são verdadeiramente sujeitos de direitos. Os
tipos justificadores funcionam em relação a quem? Ao animal em si ou ao seu titular?

Passemos agora para um aspeto particular do crime de furto qualificado previsto no artigo 204º,
nº4 do CP. O crime de furto qualificado diz-nos que há furto qualificado se a coisa furtada for de
valor elevado (ou seja, superior a 5.100 euros); se for de valor consideravelmente elevado
(superior a 200 unidades de conta). O nº4 tem um contratipo que nos diz que se a coisa furtada
tiver valor diminuto (inferior a 102 euros) então não há lugar à qualificação.

Exemplo: posso ter furtado uma coisa na gare do comboio transportada por passageiro
que entra numa das qualificações do artigo 204º do CP, é um furto qualificado. Mas se
a coisa furtada for de valor inferior a 102 euros já não é um furto qualificado mas sim
simples (passa para o artigo 203º do CP). Continua a ser crime mas não um crime
qualificado, mas sim um crime de furto simples.

Mas parece que isto contradiz aquilo que dissemos, que o DP português dá mais valor à
substância da coisa porque está a negar a qualificação a uma coisa por via do seu diminuto valor.
Parece que já é a questão do valor da coisa. NÃO. Não há aqui qualquer incongruência. A lei não
diz que se a coisa for de valor diminuto que deixa de ter proteção jurídica, mas apenas diz que
não se justifica que o agente seja punido com pena mais elevada prevista para o furto
qualificado, mas continua a ser punido com a pena para o crime de furto simples. Continuamos
aqui a ter que aquilo que interessa é a coisa em si. Não há qualquer contradição.

A doutrina tem levantado uma questão, nomeadamente o Dr. Damião da Cunha. No abuso de
confiança (artigo 205º do CP) não temos uma norma paralela ao artigo 204º, nº4. O artigo 205º,
nº1 fala do abuso de confiança simples. No nº4 e 5 temos as formas agravadas do abuso de
confiança.

O Dr. Damião da Cunha defende que apesar de o artigo 205º não o dizer devemos interpretar
esse artigo nesse mesmo sentido. Esta questão só aplica ao artigo 205º, nº5. Não dá para aplicar
esta ideia de que se a coisa apropriada for de valor diminuto não dá para aplicar ao nº4 do artigo
205º porque fala de valor elevado e de valor consideravelmente elevado. A questão só se
levanta no nº5. A questão do nº5 é um crime específico impuro ou impróprio porque se exigem
determinadas características ao agente: o agente apropria-se porque ele próprio tem o dever
de ser depositário da coisa ou porque em razão de ofício, emprego ou profissão, ou atua em
determinadas qualidades (tutor, curador ou depositário judiciário).

Exemplo: sou depositário judicial de um bem penhorado que vale 100 euros e eu
aproprio-me dessa coisa. Vou ser punido nos termos do nº5 com uma pena mais severa.
A razão desta agravação prende-se com o facto de haver uma razão de maior ilicitude e

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de culpa porque é exigível a uma pessoa que ocupa esta posição que tenha um
conhecimento do quadro funcional em que atua.

Sou depositário de um bem que foi penhorado, por exemplo uma caneta. Aproprio-me da
caneta. Cabe neste nº5. O que o Dr. Damião da Cunha questiona é da razoabilidade desta
questão. Se o bem vale tão pouco faz sentido punirmos o agente pela forma agravada do nº5?
Ou devemos aplicar analogicamente o artigo 204º, nº4 ao abuso de confiança? Do ponto de
vista constitucional esta posição não levanta problemas porque a aplicação analógica em DP só
é proibida se for desfavorável ao agente e neste caso é favorável. O problema está antes, está
em saber se há uma lacuna. Só se recorre a analogia se houver lacuna. A jurisprudência ainda
não teve que se pronunciar sobre esta questão porque normalmente quando há situações que
caem no nº5 do artigo 205º do CP na medida em que, normalmente, as coisas têm valor superior
a 102 euros. Mas pode acontecer que não tenham. A questão é então saber se há ou não lacuna.
O prof. André Lamas Leite entende que não há lacuna nenhuma porque a razão de ser da
agravação não tem a ver com a questão do valor da coisa de que o indivíduo se apropriou. Pune-
se mais gravemente o agente porque ele tinha esta função pública e aí tão grave é quem se
apropria de 1 euro como quem se apropria de 1.000.000 euros. No nº5 do artigo 205º não releva
apenas o património, há também interesses públicos. Há o interesse de que o depositário atue
de acordo com o quadro funcional que a lei exige. Não protege só um bem jurídico. Não protege
apenas a propriedade, mas também este interesse de natureza pública que é o exercício de
funções impostas por lei.

Damião da Cunha ainda apresenta um outro argumento. Anda se refere ao peculato (artigo
375º) que é um abuso de confiança mas é praticado por um funcionário. Um dirigente
desportivo pratica um crime de peculato? Sim, porque o clube é uma instituição de utilidade
pública. No crime de peculato o nº2 é ao fim ao cabo uma cópia do artigo 204º, nº4. Este é mais
um argumento de Damião da Cunha.

Há uma lacuna ou não? Aplicação analógica do artigo 375º.

CRIME DE FURTO SIMPLES (artigo 203º do CP)

Olhando para o artigo 203º, nº1 vamos classificar o crime de furto simples tendo em conta o
tipo objetivo. O bem jurídico é a propriedade, isto é, é a possibilidade de eu usufruir de uma
coisa nas suas vantagens habituais, ou seja, é a fruição das utilidades da coisa com o mínimo de
representação jurídica. Na prática, o bem jurídico serve para quê? Por exemplo, na violência
doméstica é muito importante saber qual é o bem jurídico protegido. Tradicionalmente
entendia-se que era a saúde, mas não parece ser o entendimento correto. A dada altura fruto
da doutrina começou a dizer-se que o bem jurídico protegido era o livre desenvolvimento da
personalidade. Não é indiferente saber qual é o bem jurídico. O bem jurídico serve como critério
de limitação típica, ou seja, serve para saber que comportamentos é que estão dentro do âmbito
do tipo incriminador, que comportamentos é que o legislador quis abranger com aquela
incriminação. Há situações de fronteira e para aí é que serve a questão do bem jurídico. Por
exemplo, dizer à mulher que ela cozinha mal e não presta para nada. Isto viola o bem jurídico?
Prova-se efetivamente que a senhora ficou psicologicamente afetada, sentiu-se deprimida. A
reiteração na violência doméstica não serve. Não é indiferente a questão de saber qual é o bem
jurídico. O bem jurídico é uma espécie de “luz” em relação aos comportamentos em que nós

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ficamos na dúvida. O bem jurídico é um critério delimitador que nos ajuda a interpretar que
condutas é que o legislador quis abranger na incriminação. Não é uma questão meramente
académica.

Caracterizar o crime de furto quanto ao tipo objetivo

O tipo objetivo implica classificar o crime tendo em conta três elementos (Eduardo Correia
chamava-os de tipos de tipicidade):

➔ Quanto ao AGENTE (“quem”)


• Crime comum – é um crime que pode ser praticado/realizado por qualquer
pessoa.
• Crime específico – é um crime que só pode ser praticado por determinadas
pessoas com certas qualidades, ou seja, só pode ser praticado por pessoas que
têm determinadas características em si ou reúnem determinadas características
na relação com a vítima.
o Crimes puros ou próprios – quando a conduta não é praticada pelo
sujeito indicado no tipo penal, deixa de ser crime. Ou seja, são aqueles
crimes que não têm correspondência com outros crimes – e, por isso,
só podem ser praticados por pessoas com determinadas qualidades.
→ Exemplo: a omissão impura é um crime específico próprio.
Porquê? Porque só pode ser praticado por quem tem especial
dever de agir.
o Crimes impuros ou impróprios – aqueles que exigem também
determinadas características do agente, mas se o agente não tiver essas
características a conduta continua a ser punida mas com uma pena
menos grave. Ou seja, são aqueles que têm correspondência com outro
crime que pode ser praticado por qualquer pessoa. Assim, o crime
específico impróprio é uma variante de um crime fundamental que
pode ser praticado por qualquer pessoa; mas o facto de ter sido
praticado por aquela pessoa agrava a responsabilidade.
→Exemplo: se houver violação de domicílio, praticada por
qualquer pessoa, vamos buscar o artigo 190º. Mas se esse crime
for praticado por um funcionário, aí aplica-se o artigo 378º.

NOTA: os crimes de mão própria são aqueles crimes que só podem ser praticados na forma de
autoria direta e singular. Isto é, o crime só pode ser praticado pelo próprio. Exemplo: o crime de
bigamia só pode ser praticado pelo próprio (mas a violência doméstica, por exemplo, já pode
ser a mando).

➔ Quanto à CONDUTA
• Crimes materiais ou de resultado – são aqueles crimes que pressupõem a
verificação de um certo resultado para o tipo ficar preenchido.
• Crimes formais ou de mera atividade – são aqueles crimes onde não é
necessário verificar-se um certo resultado para o tipo ficar preenchido, e, por
isso, basta que se verifique uma certa conduta. Pode haver crimes formais por
ação (mera atividade) e crimes formais por omissão (omissões puras).

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• Crimes de execução livre
• Crimes de execução vinculada
➔ Quanto ao BEM JURÍDICO
• Crimes de dano – é um crime para cuja consumação a lei exige a efetiva lesão
do bem jurídico.
→Exemplo: crime de homicídio. Para o crime de homicídio estar
preenchido, é preciso que haja efetiva lesão do bem jurídico “vida”.
• Crimes de perigo – ao contrário dos crimes de dano, não implicam a efetiva
lesão do bem jurídico e o perigo surge como fundamento da punição.
o Crimes de perigo abstrato – para o tipo estar preenchido, basta haver
uma ação adequada a produzir o perigo.
→Exemplo: crime de conduzir embriagado. Quem conduzir com
1,2 g/l preenche o tipo, bastando conduzir com 1,2 g/l.
o Crimes de perigo concreto – são aqueles para cuja consumação já se
exige que seja realmente colocado em perigo determinado bem
jurídico.
→Exemplo: exposição ou abandono. No caso da mãe que
abandona a criança à porta do orfanato, na esperança de que
alguém trate dela (sem dolo de homicídio, admitamos), para a
mãe ser punida pelo crime consumado, é preciso provar-se que
houve perigo. Isto para punir pelo crime consumado (também
poderia haver tentativa). Por que é que é um crime de perigo
concreto? Porque só o facto de abandonar não é crime –
admitindo que a mãe estava sempre a vigiar a criança à
distância.

Por exemplo, o crime de peculato (artigo 375º do CP). Quanto ao agente é um crime específico
porque só pode ser praticado por funcionários. Mas é um crime específico puro ou impuro? É
um crime específico impuro. Porquê? Nós temos crimes que só são crimes porque são praticados
por determinadas pessoas ou porque essa pessoa tem uma determinada relação com a vítima.
Se não houvesse essas características a conduta não interessaria ao Direito Penal. Exemplos de
crimes específicos próprios ou puros? Não existe no CP, mas há o exemplo do crime de
corrupção que, até 2008, era um crime específico puro porque a característica do agente era
fundamento da existência do crime. Se alguém recebesse alguma vantagem ou a sua promessa
para praticar um determinado ato, até 2008 se eu que, por exemplo, trabalho na contabilidade
de uma empresa, se eu pagasse mais depressa uma fatura a um fornecedor do que pagasse a
outro e até recebesse algum dinheiro para isso não era crime. Mas em 2008, na sequência da
transposição de uma decisão quadro da União Europeia, esta lei veio punir o crime de corrupção
no setor privado e no comércio internacional. Portanto, as condutas que habitualmente nós
diríamos que são um crime específico puro porque se essa conduta fosse praticada por quem
não era funcionário não tinha relevo penal agora passou a ter relevo penal desde 2008. Ou seja,
se aquela conduta não for praticada por quem tem aquelas características ela não tem interesse
para o DP. As características do agente são fundamento da incriminação.

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Os crimes específicos impuros são aqueles que exigem também determinadas características do
agente mas se o agente não tiver essas características a conduta continua a ser punida mas com
uma pena menos grave. Por exemplo, relação entre o abuso de confiança e o peculato. O
peculato é um crime específico impuro porque se aquilo que está descrito no tipo for praticado
por uma qualquer pessoa que não seja funcionária continua a ser crime mas cai no crime do
artigo 205º do CP. Por exemplo, os artigos 224º e 235º do CP – infidelidade e administração
danosa: a administração danosa também é um crime específico impuro. Uma pessoa que exerça
funções de gestão no setor do Estado ou no setor cooperativo e não atue de acordo com os
critérios de uma gestão prudente, racional e com isso intencionalmente cause prejuízos a esses
interesses que ele assumiu proteger pratica um crime de administração danosa. E se ele não for
um funcionário? Se não estiver no setor do Estado ou setor cooperativo não é crime? É, mas é
o crime da infidelidade do artigo 224º do CP e por isso quando se exigem determinadas
características para o agente a pena é mais grave.

É importante isto porque se eu tenho um crime específico puro e há discussão complexa de se


alguém é ou não funcionário posso ter uma situação em que consigo provar que a pessoa não
cometeu crime nenhum porque se consigo provar que não é funcionário então posso eliminar o
comportamento ilícito do agente.

Quanto à conduta os crimes podem ser: crimes materiais ou de resultado e crimes formais ou
de mera atividade. Há crimes que param estarem consumados exigem não só a conduta mas
também o resultado e há crimes que para estarem consumados se bastam com a mera atividade
do agente. A maior parte dos crimes no nosso ordenamento jurídico são materiais ou de
resultado. O que é o resultado? Significa que há para além da conduta uma alteração da
realidade que é externa ao agente e que é distinta da conduta do agente espácio-
temporalmente.

Exemplo do homicídio: crime material porque não basta a conduta (não basta dar um
tiro que é a conduta. O agente não morreu porque foi socorrido a tempo e sobrevive.
Não posso ser condenado por um crime de homicídio na forma consumada porque este
é um crime material que exige um resultado. Sem o resultado não tenho crime na forma
consumada). Para se punir a tentativa é preciso existência do dolo e atos de execução.

Há crimes em que as coisas não são tão simples. Por exemplo, o crime de injúria é um crime
formal ou um crime material? Artigo 181º/1 do CP “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe
factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou
consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
Há quem diga que é um crime formal, ou seja, o que basta é a conduta. Eu dirijo-me a A e digo
“tu és um grande filho da …”. Há quem diga que o crime está consumado porque leem a norma
e dizem que se dirige uma palavra que é ofensiva da honra. Mas esta ofensibidade é considerada
em abstrato, ou seja, eu estou a dizer que o que importa é que a expressão que foi dirigida seja
pelo ser humano médio. Eu posso não ficar ofendido com este insulto ou porque a mãe tem essa
profissão ou porque a pessoa que me insulta me merece tão pouca ou nenhuma consideração
que também não me afeta. Para se considerar que o crime de injúria está consumado não basta
que haja mera atividade, é preciso que se alegue e prove que a pessoa efetivamente se sentiu
ofendida na sua honra e consideração, ou seja, é preciso o resultado. Mas há quem defenda que
são crimes meramente formais, que basta a conduta.

11
A imputação objetiva do resultado à conduta só existe nos crimes materiais. Se eu considerar
um crime como crime formal estou dispensado de fazer o juízo de imputar o resultado à
conduta. É discutível se faz sentido punir a tentativa no crime de furto simples. Faz sentido a
intervenção do DP na tentativa de um furto simples? É discutível. Continua a haver um aspeto
patrimonialista no nosso CP que dá muito relevo à propriedade.

Ainda quanto à conduta podemos ter crimes de execução livre e crime de execução vinculada.
Um crime de execução livre pode ser praticado de qualquer forma, o modus operandi pode ser
qualquer um. O crime de execução vinculada exige uma particular forma de execução do crime,
um particular modus operandi. Por exemplo, artigo 224º do CP prevê o crime de infidelidade –
para que o crime esteja consumado exige-se que se cause prejuízo patrimonial importante.
Como se causa prejuízo patrimonial importante? Da forma descrita no artigo, ou seja,

- Tem que ser alguém a quem tenha sido confiado o encargo de dispor de interesses
patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar;

- Tem que causar o prejuízo de forma intencional (intencionalmente coloca logo de parte
o dolo eventual. Intencionalmente quer dizer que só pode ser praticado a título de dolo
direto ou necessário);

- Com grave violação dos deveres que lhe incumbem.

Artigo 235º do CP prevê o crime de administração danosa – é quase impossível provar este
crime.

- Infringir intencionalmente;

- Regras de controlo ou regras económicas

- De uma gestão racional;

- Provocar dano patrimonial importante em unidade económica do setor público ou


cooperativo

Esta norma, que é uma reminiscência do código da antiga RDA, é uma expressão literal da
expressão alemã “dano patrimonial importante”. Tem sido interpretado na doutrina, e a
jurisprudência tem seguido esse entendimento, no sentido de que dano património importante
significa que a empresa do setor público ou cooperativo tem de não ser capaz de, em função
desse prejuízo, cumprir as suas funções normais. Não é um prejuízo de 3.000.000 euros. Uma
empresa pública que tenha um fluxo financeiro mensal de 10.000.000 euros, 3.000.000 não
coloca em causa o seu funcionamento. Caso da administração danosa da STCP. Imaginemos que
em função dessa administração danosa a STCP em vez de circularem 1.000 autocarros passaram
a circular 500 autocarros por dia. Mesmo aqui a doutrina e a jurisprudência interpretaram isto
como dano patrimonial importante? Não. Há dano patrimonial, mas não é importante porque a
empresa continuou a laborar. Exige-se para haver a aplicação desta norma que a empresa deixe
de laborar. – Este é um crime de execução vinculada. É claramente mais difícil provar um crime
de execução vinculada do que um crime de execução livre.

Quanto ao bem jurídico os crimes podem ser: crimes de dano (é preciso que se prove efetiva
lesão do bem jurídico) e crimes de perigo. Dentro dos crimes de perigo temos os crimes de

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perigo em concreto e os crimes de perigo em abstrato. No crime de perigo abstrato existe uma
presunção inilidível de perigo, uma presunção que não podemos afastar. Exemplos: artigos 291º
e 292º do CP. O artigo 292º do CP é um crime de perigo abstrato.

Exemplo 1: imaginemos um indivíduo alcoolizado (2g/litro de taxa de alcoolemia) e que


entra no veículo automóvel e provoca a ignição do motor. No caso o indivíduo apenas
fez isso quando chega o militar da GNR. Faz o teste e foi condenado. O defensor interpôs
recurso para a Relação entendendo que não há crime porque não foi posto em causa
nenhum bem jurídico mesmo sendo um crime de perigo abstrato.

É um crime de perigo abstrato. Crime consumado. O bem jurídico protegido é a


segurança rodoviária e então a partir do momento em que o indivíduo inicia o processo
de condução automóvel, ou seja, provoca a ignição do motor, mesmo que não saia do
sítio, o crime já está consumado. Tese do ilícito pessoal: o agente quando inicia a ignição
do motor já tem a atitude de desconformidade com o direito penal. Este é um perigo
que não admite prova em contrário e é por isso que é uma presunção inilidível de crime.

Exemplo 2: dá à chave e faz marcha-atrás e pisa bota do militar. Diz que não é crime
nenhum porque não está consumado.

O crime do artigo 291º já é um crime de perigo concreto porque se eu pego numa mota
e vou para um descampado onde não há casas e se faço lá uns peões eu não criei perigo.

Caracterização do crime de furto simples quanto ao tipo objetivo

Quanto ao agente é um crime comum.

Quanto à conduta é um crime material (resultado aqui é a subtração de coisa móvel ou


animal alheio) e é um crime de execução livre. A consumação é muito importante. Há
vários posicionamentos que veremos.

Quanto ao bem jurídico é um crime de dano, é preciso que o crime esteja efetivamente
lesado.

Aula de 9 de outubro de 2020

CRIME DE FURTO SIMPLES (artigo 203º do CP) [cont.]

Este tipo legal de crime protege o bem jurídico “propriedade”. É um crime comum na medida
em que pode ser praticado por qualquer pessoa. Crime de execução livre porque não há nenhum
modus operandi específico para a sua consumação. Crime material ou de resultado. Crime de
dano, ou seja, para a consumação é necessário que o bem jurídico seja efetivamente violado.

Há algumas questões que são objeto de dúvidas que são as partes autónomas e
individualizáveis ou destacadas que podem ser objeto do crime de furto. Podem ser partes
relativas a coisas ou pessoas.

Exemplos: volante de automóvel é individualizável.

Nós também temos coisas destacáveis como é o caso do sangue, cabelo, próteses não
implantáveis. O SANGUE pode ser objeto de furto. As PRÓTESES FIXAS não podem ser objeto
de furto. São coisas que podem ser objeto de relações jurídicas.

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Poderíamos perguntar se o ESPERMA ou ÓVULOS são ou não objetos passiveis do crime de
furto. Tem-se entendido, e bem, embora Pinto de Albuquerque tenha uma posição contrária,
que tem que ver com a noção técnico-jurídica de coisa. Dissemos que por razões de certeza e
segurança jurídicas, a noção jurídico-penal de coisa parte da noção civilística e por isso o
esperma ou os óvulos não podem ser coisas para efeitos de aplicação do artigo 203º porque não
estão dentro do comércio, não é possível a incidência de relações jurídicas relativamente a elas.
Não são coisas e por isso não podem ser objeto de incriminação. Para Pinto de Albuquerque se
alguém entra num banco de esperma e se subtrai esse esperma comete crime de furto. Mas
para a doutrina maioritária não há crime de furto porque o esperma não é uma coisa do ponto
de vista juspenalista (apesar de ser coisa do ponto de vista do Direito Civil).

Do ponto de vista prático será a melhor solução? Não porque podemos ficar perante uma
situação de desproteção do bem jurídico. Para quem entende que o esperma e os óvulos não
são coisas pela sua ligação à natureza humana para o DP não devemos nunca imputar essa
conduta a título de furto simples. Também não podemos imputá-la a título de furto qualificado.
Por exemplo, poder-se-ia pensar que o indivíduo para furtar o esperma ou os óvulos terá que
entrar num espaço fechado e isso já seria um crime para a qualificação para o crime de furto.
Pois, mas o crime de furto tem que ter na sua base uma coisa móvel ou animal.

Assim…
→Posição maioritária – não há crime de furto em relação ao esperma e aos óvulos. Mas
não se aplica aqui a mesma razão do sangue, o sangue também não é uma extensão da
pessoa? Sim, mas aqui o que se entende é que em relação ao esperma e aos óvulos há
uma relação mais intrínseca com a natureza da pessoa. E por isso não são coisas para o
DP. A mesma coisa quanto ao cadáver.

→Posição minoritária de Pinto de Albuquerque – não entende o porquê de o esperma


e os óvulos serem diferente do sangue porque ao fim ao cabo são tudo extensões do ser
humano. Se defendo para o sangue que este pode ser objeto de furto então o esperma
e os óvulos porque não podem? A doutrina maioritária diz que não podem ser porque
têm uma maior ligação ao ser humano e porque considera-los coisas fere a noção que
temos de coisa para o DP. Isto é, no entanto, colocar o esperma e os óvulos numa
situação de desproteção jurídica. Pinto de Albuquerque em termos práticos terá muito
mais razão porque defende um programa de proteção muito mais lógico e mais amplo
que a doutrina maioritária.

Ou seja, não há crime de furto em relação ao esperma e óvulos. O sangue pode ser objeto de
furto. Entende-se que em relação ao esperma e óvulos há relação mais intrínseca com a natureza
da pessoa. Não são coisas para efeitos de DP, em relação a eles não há crime de furto. O mesmo
quanto ao cadáver. Sangue e próteses não implantadas podem ser objeto de furto. Doutrina
maioritária. Posição de Pinto de Albuquerque: não entende o porquê de a posição do sangue
esperma e óvulos ser diferente uma vez que tudo são extensões do ser humano. Não entende o
porquê de o esperma e os óvulos não poderem ser objeto de furto. A doutrina maioritária diz
que isso se deve à ligação com o ser humano e isso fere a noção que temos de coisa para o DP.
É colocar o esperma e os óvulos numa situação de desproteção jurídica.

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Se uma clínica de fertilidade for assaltada, aquilo que mais valor tem no mercado ilegal é o
esperma e os óvulos. E se o levaram? Não são coisas, mas alguém iria entender que não têm
tutela penal? Se não atribuirmos o carácter de coisa ao esperma e aos óvulos nunca há furtos
em relação a estes (nem simples nem qualificado). Portanto, na prática é insustentável porque
ninguém ia perceber na comunidade o porquê de não haver proteção penal em caso de furto de
esperma e de óvulos.

Quanto à INFORMAÇÃO: a informação não é coisa para este sentido. Imaginemos uma
informação que eu tenho porque tenho determinada profissão e tenho determinadas
informações. Podemos dizer que há furto dessa informação? Não, não é uma coisa. Poderá,
contudo, haver furto de informação ao nível informático. No crime de infidelidade ou
administração danosa, eu posso ser infiel aos interesses patrimoniais que me são confiáveis ou
praticar atos de administração danosa utilizando mal informação. Agora, o que está em causa
não é a informação, a informação é um mero instrumento para a prática desse crime.

DIREITOS DE CRÉDITO: podemos praticar um crime de infidelidade ou administração danosa por


má utilização de direitos de crédito. Exemplo: sou administrador de uma fundação que é credora
em um milhão de euros. Eu perdoo essa dívida sem qualquer tipo de contrapartida. Este é um
ato de gestão contrária às regras prudentes de uma administração normal. Não é uma coisa.
Esse direito de crédito pode ser instrumento para outros mas não é um crime em si mesmo. Não
podem ser alvo de um crime de furto.

RES NULLIUS: não podem ser objeto de furto. Não se preenche o carácter alheio da coisa.

As EXPECTATIVAS JURIDICAMENTE REVELADAS também não podem ser objeto do crime de


furto. Exemplo: eu não posso furtar a minha expectativa a vir a receber parte da herança dos
meus pais. É uma expectativa juridicamente tutelada e que tem valor comercial.

LÍQUIDOS E GASES SE NÃO CONTIDOS EM RECIPIENTES: o que se tem entendido


maioritariamente é que não são coisas para efeitos do DP. O DC dir-nos-ia que líquidos e gases
podem ser objeto de relações jurídicas e por isso são coisas. Mas para o DP não nos interessa a
ideia de corporeidade. Mas em relação aos gases e líquidos tem-se entendido, e o prof. discorda,
desta posição porque não estamos a ser congruentes: se dizemos que a energia elétrica é uma
coisa para efeitos de DP então e os gases e líquidos não é a mesma coisa? Há a distinção feita
por Miguez Garcia e Castela Rio que entende que se o líquido estiver dentro de um recipiente já
pode ser objeto de furto. O prof. entende que é uma forma artificiosa de lidar com a realidade.
E a água? Não se vê grande sentido na distinção, o prof. entende que podem ser também objeto
do crime de furto, são coisas para efeitos do DP.

Outra questão muito discutida diz respeito às situações que podem ser designadas por
CONTITULARIDADE, PROPRIEDADE DE MÃO COMUM, saber se pode haver crime de furto em
relação a elas. O património de um casal é a compropriedade. A noção mais consagrada ainda
que não seja a única é que o património comum do casal é uma propriedade de mão comum em
que na verdade nós o que dizemos é que tratando-se de um bem comum ambos têm
disponibilidade sobre a propriedade da totalidade do bem. Imaginemos alguém que é casado
no regime de comunhão de adquiridos e compra um automóvel – tem o direito à titularidade
total do automóvel e nem sequer se pode falar de uma quota ideal. O mesmo se passa com a
contitularidade e compropriedade. Imaginemos que eu compro um prédio rústico com mais três

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amigos. Aqui também há direito a uma quota ideal, tal como em relação à herança dos meus
pais.

A questão que se levanta é quando alguém se apropria a totalidade da coisa.

→Na constância do casamento mas numa situação de rutura da vida comum o cônjuge
marido passa a utilizar apenas ele e até desaparece com o veiculo para local onde a
mulher não sabe onde se encontra e passa ele a utilizar de forma exclusiva o automóvel.
A mulher apresenta queixa crime por furto.

→Eu que sou comproprietário do prédio urbano mudo as fechaduras da casa e não
permito que nenhum dos meus amigos que são comproprietários usufruam do bem. Os
outros comproprietários apresentam queixa crime por furto.

→Eu que sou sucessível e já herdeiro no âmbito de uma herança que é jacente (já aberta
ma que ainda não foi declara aceite ou declarada vaga) aproprio-me da totalidade dos
bens que compõem a herança. Os outros co-herdeiros apresentam queixa por furto.

NESTES CASOS HÁ EFETIVAMENTE CRIME DE FURTO OU NÃO? Aqui a dificuldade pauta-se por
saber, não o que é uma coisa móvel, mas sim o que é alheio. Na herança, a pessoa que se
apropriou da totalidade dos bens há uma parte dos bens que serão sua propriedade. O marido
que fica com o automóvel enquanto ainda não há processo de inventário na sequência de
divórcio sem consentimento do outro cônjuge, não podemos dizer que o indivíduo se esteja a
apropriar de uma coisa que seja totalmente alheia, na medida em que uma quota-ideal é sua, e
o mesmo se passa na compropriedade.

Aqui tem havido divergência relativamente a estes aspetos e a nossa jurisprudência tem tido
uma posição que ao prof. parece mais defensável que é a de que existe crime de furto, assim
como crime de abuso de confiança quando alguém se apropria de uma coisa móvel ou de um
animal que é apenas parcialmente alheio. Na verdade, até do ponto de vista literal, se virmos os
artigos 203º a 205º em lado nenhum se diz que a coisa tem que ser totalmente alheia, pode ser
parcialmente alheia. Argumento teleológico: bem jurídico é a propriedade. A propriedade não
fica lesada pelo facto de alguém que é simplesmente comproprietário se passar a comportar
como total proprietário da coisa? Que é apenas titular de uma propriedade de mão comum um
dos titulares passe a comportar-se como pleno proprietário? Sim, o bem jurídico está lesado.
Portanto, isto levanta logo a questão da legitimidade de queixa. A jurisprudência tem entendido
que também há furto. A preocupação que é o agente do crime ser também ser proprietário em
parte é levado em linha de conta não no sentido de não estar perfeito o crime, mas é levado em
linha de conta na medida da pena. Na medida da pena vai ter repercussão o facto de se tratar
de um comproprietário, co-herdeiro, etc. Há crime mas a pena não será tão severa.

Damião da Cunha entende, por sua vez, que na compropriedade não é possível e por isso nem
sequer se devia admitir a legitimidade do direito de queixa porque coisa é indivisível e uma parte
dela não está a ser objeto de subtração porque o agente do suposto crime tambem é titular de
parte do bem. Isto não é defensável porque não permite uma proteção plena do bem jurídico e
por outro lado traria do ponto de vista da segurança e certeza do comércio jurídico graves
problemas. Deixaríamos o bem jurídico desprotegido. Por outro lado, o facto de em parte ser
titular não é totalmente indiferente na medida da pena.

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COISA VENDIDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE: aqui o comprador não pagou o preço, o
vendedor que se vai apossar do bem e o locatário não pode apresentar queixa contra o locador
porque o veículo não é seu. Ac. TRP de 22/11/2000.

Quanto aos comodatários e usufrutuários: um comodatário pode praticar o crime de furto? Sim:
imaginemos que eu comodato o meu apartamento a X. X apropria-se de coisas que estão no
apartamento. Pratica um crime de furto. Tem um título para lá estar, mas há limitações nesse
título.

NOTA: O conceito de “coisa” para o Direito Penal desliga-se do seu valor comercial/económico,
abrangendo também o “valor sentimental”.

Conceito de “coisa” na jurisprudência:

• Ac. TRP de 26/10/2016 “I – O significado de coisa móvel que consta na descrição do


crime de furto não pode ser equiparado em termos absolutos ao conceito de coisa móvel
do Direito Civil. II – A água que corre nas canalizações de abastecimento público é um
bem de valor económico, controlável e quantificável, com autonomia em relação ao
seu meio de origem que, para efeitos penais, se integra no conceito de bem móvel. III
– Coisa alheia, para efeitos penais é aquela que esteja ligada por uma relação de
interesse juridicamente tutelado a uma pessoa diferente daquela que pratica a
infracção. IV – Os bens dominiais devem considerar-se alheios para efeitos penais,
dado que o seu uso e fruição comum não incluem o direito de os subtrair a quem tem
o domínio da sua exploração económica para uso próprio e exclusivo.”.
A água é um bem dominial. Se alguém se apropria comete um crime de furto.
• Ac. TRL de 17/12/2008 “V. O estabelecimento de uma ligação não autorizada à
infraestrutura de rede da «TV Cabo», que permite a fruição de um serviço não
contratualizado e, por isso, não pago e causa um prejuízo patrimonial àquela empresa,
não consubstancia a prática de um crime de furto, porquanto o sinal de televisão
recebido por cabo não é uma coisa, no sentido em que este conceito é utilizado no artigo
203.º do CP, não sendo o sinal equiparável a qualquer forma de energia. VI. Esses
mesmos factos também não integram o tipo descrito no n.º 2 do artigo 221.º do CP
(burla nas comunicações) uma vez que a ligação efectuada não se destina a «diminuir,
alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de
serviços de telecomunicações», nem tem sequer esse efeito. VII. Um tal comportamento
consubstancia apenas a contra-ordenação prevista e punida nos artigos 104º, nº 1,
alínea d), e 113º, nºs 1, alínea sss), e 3, da Lei nº 5/2004, de 10/2, na redacção que lhe
foi dada pelo Decreto-Lei nº 176/2007, de 8/5.”.

Portanto, no crime de furto tem que haver uma subtração.

Distinção de COISAS PERDIDAS ou COISAS ACHADAS: encontramos uma nota de 100 euros e
ficamos com ela. Crime do artigo 209º. Este é um crime que mais se pratica. Nº2 “Na mesma
pena [pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias] incorre quem se apropriar
ilegitimamente de coisa ou de animal alheios que haja encontrado”. É uma apropriação ilegítima
porque não é nossa e não encontra no direito nenhum título no direito.

Há a possibilidade deste crime de furto ser punido por omissão impura.

O artigo 10º, nº1 estabelece um princípio geral de equiparação entre o desvalor da ação e o
desvalor da omissão. Na omissão impura é preciso que seja possível determinar um dever legal

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de garante. Essencial para que possa haver punição por omissão imprópria será a existência de
um dever de garante que imponha ao sujeito o ónus de evitar um concreto resultado. E quais
são os deveres de garante? Estão previstos no CP? Artigo 10º, nº2 não dá uma exemplificação
do que sejam os deveres de garante.

A omissão pura corresponde a um crime de mera atividade e a omissão a um crime de resultado


– esta definição já se encontra ultrapassada. Segue-se o chamado critério tipológico.

Os crimes são de OMISSÃO PURA OU PRÓPRIA quando estão consagrados expressamente no


CP ou legislação penal extravagante como crime de non facere – artigo 200º, 348º do CP: estes
são dois crimes em que é a própria lei que transforma o ato de não praticar uma determinada
conduta num ato jurídico-penalmente censurável e passível de uma sanção criminal. Estes
crimes não levantam particulares dúvidas. Serão crimes de omissão própria ou omissão pura,
aqueles em que a lei para a sua verificação, não exige a produção de qualquer resultado;
tradicionalmente são também designados por crimes de forma ou crimes de perigo.

Os crimes que levantam maiores dúvidas são os CRIMES DE OMISSÃO IMPURA OU IMPRÓPRIA.
A maior parte dos crimes estão previstos numa perspetiva ativa. Aliás, se pensarmos na própria
noção de crime, se formos à etimologia da palavra crime, historicamente está ligada à palavra
maleficium. O crime foi sempre construído na base de uma conduta ativa. Serão crimes de
omissão imprópria aqueles em que o agente se encontra juridicamente investido na obrigação
de atuar, de modo a evitar a ocorrência de um resultado desvalioso previsto na lei. Será este o
caso, por exemplo, de crimes de homicídio ou de ofensas à integridade física, entre outros,
quando cometidos por omissão.

O DP teve dificuldade em gerir a omissão impura. Dizia-se que na omissão existia o chamado
princípio da indução, ou seja, tudo o que pensássemos para a ação, para a omissão tínhamos
que pensar exatamente o contrário. O CP diz que em regra tanto se pode lesar um bem jurídico
por ação como por omissão.

De acordo com o 10º, 2. do CP, não abrangem qualquer pessoa que preencha o tipo da omissão.
Só podem ser punidas por uma omissão impura a pessoa ou as pessoas sobre as quais recai um
especial dever de agir.

Há, no entanto, os chamados casos refratários à equiparação que estão no artigo 10º, nº2. Há
crimes que, pela sua própria natureza, não podem ser praticados pela omissão como é o caso
do crime de bigamia. Ou seja, há crimes que exigem comportamento ativo. Mas em geral tanto
é desvaliosa a conduta ativa como a conduta omissiva.

Hoje em dia segue-se a tese do Ilícito pessoal que dá primazia ao desvalor da ação ou da conduta
e menos ao desvalor do resultado. No momento em que alguém atua ou não atua aí é que está
o desvalor da ação no sentido de se demonstrar uma personalidade manifestada em ato (o DP
nunca julga diretamente uma personalidade porque se não teríamos um DP do agente e as
nossas constituições preveem que o DP seja sempre um DP do facto. Sem facto não há a
intervenção do DP), censuramos sim os atos que refletem uma personalidade.

Para se equiparar é preciso uma série de requisitos: exige-se que seja um dever que
pessoalmente obrigue o agente e que seja um dever legal/um dever jurídico. O CP apenas nos
dá a indicação de deveres extrajurídicos não podem levar à responsabilidade criminal.

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Quando a lei diz “dever pessoal” retira-se daqui que tem de ser uma ação que a pessoa estivesse
em condições de praticar.

Na prática quais as fontes ou planos do DEVER DE GARANTE? Conceito indeterminado que tem
que ser preenchidos. Vimos a teoria clássica que nos diz que o dever de garante pode derivar de
três grandes aspetos:

→A lei (dever de assistência entre cônjuges, dever de assistência dos filhos em relação
aos pais e vice-versa, dever que impende sobre o depositário por via da lei, etc.) pode
obrigar alguém a responsabilizar-se a atuar para evitar a lesão de um bem jurídico;

→O contrato: alguém por via de um negócio jurídico bilateral obriga-se a uma prestação
em virtude de um preço (exemplo: segurança, pessoa contratada para tomar conta de
uma criança, de um idoso, etc.);

→Situações de ingerência, ou seja, quando alguém cria uma situação de perigo para
bens jurídicos é obrigado a remover esses perigos.

Esta teoria clássica é a teoria mais determinada que o DP e a doutrina foi capaz de construir até
hoje. Se olharmos para o artigo 11º do CP espanhol encontramos isto mesmo, ou seja, são fontes
de dever de garante a lei, o contrato e deveres de ingerência.

O que é um dever de garante em Portugal? Ninguém sabe muito bem. Já se discutiu no TC se


esta norma não seria inconstitucional. O TC entendeu que não. Qual o subprincípio da legalidade
que está aqui em causa? É o subprincípio da determinabilidade ou da taxatividade. Mas quando
há um dever de garante?

Há, assim, um consenso quanto aos planos do dever de garante. Kaufmann escreveu a TEORIA
DAS FUNÇÕES. Há situações que não decorrem da lei mas há uma proximidade existencial.
Existe um conjunto de funções de proteção e funções de vigilância e contenção. Temos vigilância
em relação a fontes de perigo onde está a ingerência também. Kaufmann diz que o que interessa
é olharmos para as funções que as pessoas desempenham. Se forem funções de vigilância e
proteção e, por outro lado, funções de contenção, funções de controlar fontes de perigo, isso
sim são os planos do dever de garante. Portanto, o TC veio dizer que a determinabilidade não
se retira apenas da letra da lei. Também uma norma penal é determinada quando houver um
consenso em relação a ela na doutrina e na jurisprudência. Por exemplo, uma corrente
jurisprudencial inequívoca também dá ao interprete certeza e segurança.

Exemplo: segurança que foi contratado para impedir furtos. Nada faz pratica um crime
também.

Tesoureiro das finanças em coautoria há um outro colega que se apropria e eu nada faço
quando tinha o dever de agir.

O crime de furto pode ser praticado por ação ou por omissão. Alguém deixa outrem furtar
pratica um crime por omissão.

Omissão negligente não é impossível. Mas o mais normal é a omissão dolosa.

Diz-se que o furto é um crime de resultado parcial ou cortado. Crime de resultado parcial ou
coartado é o quê? Normalmente exige-se uma congruência entre o tipo objetivo e o tipo

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subjetivo. Mas há casos em que o tipo subjetivo vai além do tipo objetivo. O tipo subjetivo exige
mais do que o tipo objetivo. Para que o crime de furto esteja consumado basta que alguém
subtraia coisa móvel alheia mas com ilegítima intenção de apropriação. Em que se decompõe o
tipo objetivo? O tipo objetivo engloba o chamado dolo do tipo. O dolo é composto pelo
elemento intelectual, elemento volitivo e, para FD, há também o elemento emocional do dolo.
O dolo do tipo é composto pelo elemento intelectual + elemento volitivo = dolo natural. O dolo
do tipo é o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo. Portanto, exige-se dolo e em
alguns crimes exigem-se elementos subjetivos especiais (particulares intenções, particular
energia, tendência). No artigo 203º temos um elemento subjetivo especial a que a
jurisprudência chama de dolo específico. Sempre que a lei diz com intenção de, com ânimo de,
fazendo do furto modo de vida, são elementos subjetivos especiais e que têm que ser provados.

O tipo objetivo diz “quem subtrair coisa móvel alheia” porque isto nada tem nada de
subjetividade.

O elemento subjetivo diz o quê? Normalmente só se exige dolo do tipo. A lei diz que é preciso
também que haja uma “ilegítima intenção”. Esta ilegítima intenção é um elemento subjetivo
especial por isso é que dizemos que é de resultado parcial ou cortado. O elemento subjetivo do
tipo vai para além do elemento objetivo. Estes crimes de resultado parcial ou cortado têm um
aspeto importante: quando é que consideramos que o crime está consumado? Quando o
elemento objetivo corresponde ao subjetivo. Ou seja, logo que alguém subtraia coisa móvel
alheia o crime está consumado. É importante saber quando o crime está consumado para
distinguir a tentativa da consumação, para aplicação da lei no tempo. O crime de furto está
consumado logo que haja a subtração de coisa móvel alheia. Mas para punir o agente exige-se
que haja a prova também desta ilegítima intenção de apropriação.

No crime burla, se virmos o artigo 217º, vemos que esta se basta com a existência de um prejuízo
patrimonial para a vítima mesmo que o agente do crime não tenha nenhum enriquecimento.
Mas normalmente ao empobrecimento corresponde o enriquecimento. Pode não acontecer.
Imaginemos que estou a vender a X um telemóvel como sendo de marca e não ser, estou a
coloca-la em erro. X teve um prejuízo patrimonial. Logo a seguir alguém me furta o dinheiro que
X me pagou. Não tive enriquecimento. O que o direito quer é proteger a vítima. Logo que esta
tenha um prejuízo o crime está consumado. No artigo 217º também se diz com intenção de se
enriquecer. Mas para o crime estar consumado o crime basta-se com o empobrecimento da
vítima.

Se não há intenção de apropriação não há furto: liberto uma ave – é duvidoso que haja
apropriação porque não fiquei com ela e também não tinha a intenção de ficar com ela e por
isso não há crime de furto. E posso ser punido por crime de dano? Artigo 212º do CP – quanto
muito este meu comportamento poderá ter tutela penal se se considerar que libertar um animal
com o objetivo de causar sofrimento a outra pessoa é equivalente a tornar não utilizável. Tornar
não utilizável do artigo 212º foi no sentido de que a coisa se mantém, mas não na sua
integridade, já não cumpre as funções a que foi destinada. E aqui o animal não está a tornar-se
não utilizável, mas depende da interpretação. Podemos interpretar no sentido de tornar não
utilizável ser não poder usufruir das qualidades do animal. Esta libertação não tem tutela penal,
mas apenas cível.

20
Aula de 16 de outubro de 2020

CRIME DE FURTO (cont.)

Discute-se na doutrina se é ou não constitucional ou inconstitucional o art.º 10º, 2. do nosso CP,


porque ele vai equiparar a omissão à ação com base no especial dever de agir. Como já
percebemos, para a maior parte da doutrina, o especial dever de agir deve ser encontrado
através de um critério material. Sendo assim, qual é o princípio de direito penal que fica em
causa? O princípio da legalidade, nomeadamente o que exige que a norma penal seja
determinada – princípio da tipicidade.

Até que ponto o artigo 10º, nº2 do CP viola o princípio da determinabilidade ou da taxatividade
penal? A questão já foi resolvida, como dissemos na aula passada, pelo TC no sentido de não
inconstitucionalidade, no sentido de que desde que haja uma corrente doutrinária e/ou
jurisprudencial clara no sentido de identificar quais são esses planos do dever de garante isso
basta para cumprir o princípio da determinabilidade penal (este é um subprincípio da legalidade
criminal).

Questão de saber QUANDO É QUE UM CRIME DE FURTO SE ENCONTRA CONSUMADO? Ao


longo do tempo tivemos três teorias:

• Contrectatio
• Ablatio
• Illatio

A teoria da contrectatio era a teoria típica do direito penal romano e dizia-nos que o crime estava
consumado a partir do momento em que o agente tocasse na coisa que é objeto de furto. O
simples toque levava implícita uma vontade de apropriação de acordo com a teoria do DP
romano e essa vontade de apropriação era suficiente para se considerar que o crime estava
consumado. Hoje ninguém defende esta teoria, mas se virmos bem as coisas era uma teoria
profundamente alinhada com a chamada tese do ilícito pessoal porque mais desvalor da ação
do que tocar alguma coisa e daí retirar a ideia de que há uma intenção de apropriação para si
ou para terceiro é difícil. Esta teoria está hoje posta fora de hipótese na medida em que o simples
toque pode ser perfeitamente lícito e por isso não é um critério seguro para pudermos dizer que
há a consumação do crime.

No outro extremo temos a teoria da illatio. Esta teoria implica que só há consumação do crime
de furto quando haja a chamada posse pacífica. Só quando o agente se encontrar no lugar
seguro e poder usufruir com toda a tranquilidade de todas as vantagens/virtualidades
advenientes da cosia ou animal furtado. Era defendida entre nós por Eduardo Correia e alguma
jurisprudência ainda faz alguma alusão a ela. Hoje não é a teoria defendida.

A teoria maioritária entre nós defendida é a teoria da ablatio. Ablatio significa ablação que
significa corte/restrição/acabar com alguma coisa. Então aquilo que se vem defendendo na
doutrina e jurisprudência é que o crime de furto está consumado a partir do momento em que
o agente está em condições de poder fruir das virtualidades da coisa ainda que por um tempo
reduzido. Exige-se que o agente tenha ultrapassado as barreiras da resistência à propriedade/à
obtenção/à posse precária que exista anteriormente à sua atuação ativa ou passiva e que ao

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ultrapassar essas barreiras esteja em condições de poder fruir da coisa ainda que
momentaneamente.

Exemplo em que alguém furta alguma coisa na sala de aula. Tem a coisa no bolso. Tem
a sua intenção completamente formada. Só falta ele sair da sala. Enquanto o indivíduo
está na sala o crime está apenas na forma tentada. Enquanto o indivíduo não transpõe
a porta da sala o crime ainda não está consumado. Só depois de ele estar para além do
limiar da porta da entrada da sala é que o crime estará consumado.

Mas e se ele for imediatamente detido pelo segurança que lá se encontra ele não teve
ainda tempo para poder fruir da utilidade da coisa o crime não está consumado? Não
tem sido este o entendimento da doutrina e da jurisprudência.

Mesmo que seja por um período de tempo reduzido o que é certo é que o indivíduo
venceu as “resistências” que se colocavam ao direito de propriedade, à coisa ou animal
alheio.

Tem-se formado uma corrente jurisprudencial no sentido de que o crime está consumado a
partir do momento em que o agente ultrapassa a linha de onde devia efetuar o pagamento.

Distinção entre consumação e tentativa (artigos 22º e 23º). Enquanto o crime não está
consumado pode exercer-se legítima defesa em relação ao agente. A partir do momento em que
está consumado já não há uma agressão atual e então já não se pode exercer a legítima defesa
(artigo 32º).

Desistência da tentativa e arrependimento ativo (artigos 24º e 25º) e a inexistência de qualquer


comunicabilidade das circunstâncias (artigo 28º) – estes dois aspetos são dois importantes
reflexos da determinação do momento da consumação.

• Ac. TRE de 17/03/2015 “I. A «subtração» (elemento fundamental no furto) não é uma
«apropriação» (o exercício dos poderes que formam o conteúdo do direito de propriedade), mas
tão só a perda dos poderes de facto do detentor originário e a constituição de uma nova detenção
por parte do agente do crime. II. A investidura nessa situação de nova detenção (por parte do
agente do crime) dever-se-á considerar realizada quando o agente passa a controlar, de facto, a
coisa, passa a tê-la sob o seu domínio, em exclusividade, o que pressupõe que a coisa foi retirada
do poder de facto do anterior detentor, que sobre ela deixou de ter a possibilidade de controlo.
III. O arguido, ao colocar os objectos de cobre no interior de um carro de mão e ao transportá-los
para o laranjal contíguo ao empreendimento turístico do qual foram removidos, retirou os
mesmos da esfera patrimonial da sua proprietária, tendo eles entrado na esfera patrimonial do
arguido, pelo que este incorreu na prática de um crime de furto na forma consumada (e não na
forma tentada), sendo irrelevante a circunstância de, pouco depois, o arguido ter sido
surpreendido por agentes de autoridade.”. Neste acórdão temos um indivíduo que andava
a cobrar cobre. Ponto 3 do sumário diz que “O arguido, ao colocar os objectos de cobre no
interior de um carro de mão e ao transportá-los para o laranjal contíguo ao empreendimento
turístico do qual foram removidos, retirou os mesmos da esfera patrimonial da sua proprietária,
tendo eles entrado na esfera patrimonial do arguido, pelo que este incorreu na prática de um
crime de furto na forma consumada (e não na forma tentada), sendo irrelevante a circunstância
de, pouco depois, o arguido ter sido surpreendido por agentes de autoridade ” – estes objetos d
cobre estavam num determinado local e o indivíduo retirou-os para outro local. Ainda

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estavam dentro da mesma herdade mas o crime já estava consumado porque se retira
da esfera de influência/de domínio daquele que exercia poderes fácticos sobre a coisa.

Costuma dar-se até um exemplo da doutrina que um exemplo é eloquente que é o


exemplo da empregada doméstica: empregada doméstica que quer furtar anel da
patroa e então retira-o do local onde sabe que a patroa tinha habitualmente o anel e
coloca-o noutro gavetão de tal forma que a proprietária quando vau à procura dele não
o encontra. A patroa não o encontra e pensa que o perdeu e a empregada deixa passar
mais algum tempo e só depois leva o anel. Quando foi consumado o crime? A partir do
momento em que foi retirado o anel do lugar onde ele habitualmente era guardado
porque a esfera patrimonial da proprietária foi afetada. Ela guardou o anel sempre
naquele local. Quando a empregada muda o anel de lugar o crime já está antes
consumado e não apenas no momento em que o leva.

Antes fazia-se a distinção entre tentativa acabada e tentativa inacabada. Neste caso do
anel há primeiro há uma tentativa inacabada que depois se transforma numa tentativa
acabada. A tentativa acabada é a ideia da consumação material ou “exaurimento”. A
consumação formal é o primeiro momento. o crime está consumado a partir do
momento em que se retira o anel da esfera de influência, da esfera patrimonial da
proprietária (consumação formal), mas depois efetivamente a total consumação dá-se
quando há total apropriação das virtualidades da coisa, quando a empregadora tira o
anel da casa da patroa há o tal exaurimento ou consumação material. Hoje em dia não
é uma noção de grande relevo porque já não existe no código. Era importante na
questão da legítima defesa porque a possibilidade de exercer legítima defesa só acabava
com o exaurimento. Mas agora dizemos que quando há consumação, ainda que
consumação formal, já não há possibilidade de exercer a legítima defesa, que exige que
a agressão seja atual. Quanto muito pode recorrer-se à ação direta do Cód. Civil e que
por via do artigo 21º, nº1, que consagra o princípio da unidade da ordem jurídica, o DP
recebe, até pela sua natureza de direito de última rácio recebe os tipos justificadores
em caso de exclusão da culpa de todos os demais ramos de direito. Aquilo que é
considerado lícito noutro ramo do direito não pode o DP vir dizer que é ilícito. O DP só
diz que algo é ilícito quando os outros ramos do direito não são suficientes. E
normalmente quando há ilicitude penal também há ilicitude de outro ramo do direito.

• Ac. do STJ de 16/1/2002 que ainda fala do mínimo de tempo que permita à pessoa ter
um efetivo domínio de facto sobre a coisa. Imaginemos que o indivíduo sai do
estabelecimento comercial e é detido pelo segurança. O segurança pode deter desde
que o crime seja punível com pena de prisão e não seja um crime particular.

Posição de Damião da Cunha, concordante com Miguez Garcia e Castela Rio, é a ideia de que se
ultrapasse o círculo de poder do anterior proprietário/detentor/possuidor.

A consumação pode ou não ser acompanhada de PROCESSOS ASTUCIOSOS e mesmo assim não
há lugar à aplicação do concurso efetivo de crimes. Atenção: não existe concurso real em
Portugal. Existe na Alemanha. Dizer-se concurso real ou efetivo não é correto. Devemos dizer
apenas concurso efetivo.

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O concurso pode ser CONCURSO APARENTE ou pode ser CONCURSO EFETIVO. O que é o
concurso aparente (legal ou de normas)? Por exemplo, falsificação de um documento para
praticar um crime de burla. O concurso aparente legal ou de normas pode existir por via de
vários princípios/formas. Pode ser por via da chamada consunção.

As normas jurídico-penais estabelecem entre si relações, isto é, por exemplo, crime de roubo e
crime de ofensas à integridade física. O legislador quando criou a norma do roubo sabia que
muitas vezes o roubo é um furto (artigo 203º) mais uma ofensa à integridade física simples
(artigo 143º). E estes dois tipos legais de crimes o legislador depois construiu um único – artigo
210º – que absorve o conteúdo de ilicitude dos artigos 203º e 143º do CP. O legislador quando
cria tipos legais de crime é como quando uma pessoa vai à pesca e lança várias redes. As várias
redes têm zonas de sobreposição. As zonas de sobreposição entre as normas jurídico-penais são
as situações de concurso aparente legal ou de normas. “Se o peixe não for apanhado por uma
rede vai ser apanhado por outra na medida em que tem duas redes a cobrir a mesma parte”.
Aqui é a mesma coisa, temos mais do que uma norma que se pretendem aplicar à mesma
situação de facto. Exemplo: esfaqueio X e aproprio-me do seu computador – poderíamos ser
tentados a dizer que estamos perante um concurso efetivo de crimes, mas isso seria errado
porque na verdade existe já um tipo legal de crime em que o legislador levou em linha de conta
a ilicitude destes dois comportamentos em um. Depois de devidamente interpretada a situação
concluímos que apenas um tipo legal de crime se aplica, daí a designação concurso aparente
legal ou de normas. Esta matéria é complexa porque implica um domínio por parte do interprete
do âmbito de proteção da norma, daquilo que é a parte incriminadora, o que é que o legislador
quis abranger no tipo incriminador, e implica também que conheçamos o bem jurídico que é
protegido por cada uma das normas porque só assim podemos saber se há concurso aparente
ou concurso efetivo.

A doutrina foi desenvolvendo alguns instrumentos que nos ajudam a aperceber melhor quando
é que há um concurso aparente.

→Um dos instrumentos é o princípio da especialidade – quando houver alguma


circunstância que qualifica o furto não vamos aplicar o artigo 203º, mas sim o artigo
204º, apesar de o artigo 203º estar preenchido. A norma foi criada especificamente para
aquela situação.

→Depois temos o princípio da consunção que é mais difícil aplicação. Este princípio
implica que uma norma quando foi construída pelo legislador quis em termos de
conteúdo de ilicitude abranger o conteúdo de ilicitude de outra norma, o que implica a
comparação entre os âmbitos de aplicação.

→Temos também a relação de subsidiariedade que é simples quando é chamada de


subsidiariedade expressa. Ou seja, vamos falar de alguns tipos de legais em que o nosso
legislador usa sempre a mesma expressão “é punido com a pena X se pena mais grave
lhe não couber por outra disposição legal” – isto é um princípio de subsidiariedade.
Acontece, por exemplo, com o crime de violência doméstica do artigo 152º. É uma forma
que o legislador tem para assinalar a importância do tipo legal. Ou seja, a pena do artigo
152º pelo menos está garantida mas se o agente tiver praticado, por exemplo, sequestro
então aí continuamos a considerar que há violência doméstica mas aplica-se a pena do

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crime que é mais grave. Há também casos de subsidiariedade implícita em que nós
chegamos lá através da interpretação – imaginemos que a artigo 152º não dizia “se pena
mais grave lhe não couber”, mas provava-se que o marido violava a mulher, neste caso
há crime de violência doméstica mas isto traduz-se numa violência sexual.

Muitas vezes há efetivamente a utilização da falsificação para a prática da burla. Há muita gente
que defendia que quando são usados documentos falsos para praticar o crime de burla que
estamos perante um concurso aparente e como o crime de burla é mais gravemente punido este
absorvia o crime de falsificação de documentos. O agente seria só punido pelo crime de burla.
Um acórdão uniformizador veio dizer o contrário, veio dizer que entre o crime de falsificação e
o crime de burla quando a falsificação é utilizado como forma de praticar o crime de burla
estamos perante um concurso efetivo, ou seja, os dois têm que ser punidos nos quadros do
concurso do artigo 77º do CP. O prof. discorda desta posição do Supremo, mas está firmada esta
posição.

O concurso real existe na Alemanha e não em Portugal. Critério para considerarmos que
estamos perante um concurso efetivo está no artigo 30º, nº1 do CP. Há concurso efetivo quando
o agente pratica factos que se subsumem a vários tipos legais ou o mesmo tipo legal de crime
realizado de forma plurima (?), o que significa que temos que concluir que há vários projetos
criminosos, várias intenções criminosas. Exemplo das sete facadas: tanto podem ser sete crimes
como só um, dependendo de em sede de matéria dada como provada conseguir concluir se é
uma só função criminosa ou se há várias funções criminosas. Na Alemanha podemos sim falar
de concurso real porque o critério que eles têm para identificar o número de crimes no concurso
é ainda hoje um critério naturalístico, tem que ver com o número de ações praticados pelo
agente. No ato de matar X com uma pistola há vários atos – isto para a teoria alemã levanta
problemas porque há várias ações e seriam vários crimes. Então tiveram a necessidade de criar
ideia do concurso real e do concurso ideal. Concurso real quando há apenas uma ação e um só
crime e o concurso ideal quando há várias ações, mas um único sentido que é matar. Mas a
nossa conceção é normativista, valorativa e não naturalística. Não dizemos que há tantos crimes
quanto o número de ações do agente.

Como dissemos, o crime de furto pode ser praticado através de processos astuciosos e mesmo
assim existe apenas furto e não qualquer tipo de concurso de crimes. Também há um crime de
furto, e não crime de burla, se eu troco as etiquetas, ou seja, quero comprar um fato que é da
Zara e ao lado está um da Boss e eu mudo as etiquetas pagando um fato da Boss pelo preço do
casaco da Zara – isto é um furto mesmo que haja um processo enganador. Nunca seria uma
burla porque na burla tem que haver um de disposição por parte de quem é titular da coisa.

Concurso efetivo vs. Concurso aparente

No concurso aparente diz respeito a uma situação em que mais do que um tipo legal de crime
se pretende aplicar à situação de facto, mas depois quando se faz uma interpretação adequada
o interprete e aplicador da lei chega à conclusão que apenas uma das normas é que deve ser
apicada porque o conteúdo de sentido das outras já está incluída naquela ou porque há uma
relação de especialidade, ou porque há uma relação de subsidiariedade.

Num concurso efetivo há mais do que uma norma que vão aplicar-se àquela situação de facto.
O agente pratica em concurso um crime de ameaça, de ofensa à integridade física, de violação

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de domicílio. Aqui temos três crimes em que cada um deles protege bens jurídicos diversos. O
agente aqui preencheu vários tipos legais de crime e então preencheu o critério do artigo 30º,
nº1 que é a sede do concurso efetivo de crimes.

JURISPRUDÊNCIA QUANTO À CONSUMAÇÃO

• Ac. TRL de 12/5/2015 “1. Por ser um crime de consumação instantânea, para que o crime de furto
esteja consumado, basta a sua mera consumação formal, não sendo necessário verificar-se o
exaurimento total do plano do agente, não dependendo da duração de qualquer tempo
imprescindível para que se verifique a consumação. 2. Uma coisa é o apossamento/tomada da
posse de coisa alheia, tomando-a como sua, assumindo-se como dono. Outra a (eventual,
necessariamente posterior) recuperação. De um lado a assunção da posse, uti domino. Do outro
a destituição dessa posse/restituição do objecto, por efeito da descoberta, a posteriori, do crime.
3. O crime ficará consumado com a tomada da posse de coisa alheia pré-intencionada à
apropriação, uti domino, sem qualquer título de transmissão do direito. 4. In casu, o crime de
furto atingiu a sua perfeição quando o recorrente logrou colocar o motor em funcionamento, por
ser o momento em que adquire total controlo e domínio sobre o veículo, que lhe permitiu, após
efectuar ligação directa, a recolha das patolas do pesado de mercadorias e a sua deslocação do
local onde estava estacionado, sendo irrelevante se este logrou ou não concretizar o plano que
delineou, uma vez que, como referido supra, este é um crime de consumação instantânea, não
sendo, por isso, de exigir, como pretendido pelo recorrente, a posse pacífica da coisa, o que se
traduziria, in casu, no sentido interpretado pelo mesmo, na fuga bem-sucedida deste. 5. A
deslocação do veículo durante 7 metros do local onde se encontrava estacionado, com o motor
em funcionamento, demonstra a plena assumpção pelo arguido do veículo como coisa sua.”.
• Ac. TRP de 4/2/2009 “Há consumação do furto se o agente se introduziu na casa de residência do
ofendido e aí se foi apoderando de objectos, guardando-os numa bolsa, e, depois de se aperceber
que, no exterior, o seu comparticipante fora interceptado por agentes policiais, escondeu os
objectos de que se apoderara debaixo de um colchão, num quarto da casa, abandonando esta.”.
• Ac. TRP de 16/5/2012 “I. O crime de furto consuma-se quando a coisa sai da esfera de domínio
do seu dono e o agente adquire um mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente
ao seu apossamento – uma estabilidade que lhe assegure a possibilidade plausível, ainda que não
absoluta, de fruição e disposição da coisa subtraída. II. Comete, por isso, o crime de furto na
forma tentada aquele que retira um produto da prateleira de um supermercado, que oculta com
a intenção de o fazer seu sem o pagar, mas que, antes de passar e se afastar da linha das caixas,
é surpreendido e descoberto.”.
• Ac. TRC de 27/11/2007 “1. O furto é um crime de consumação instantânea. Torna-se perfeito
logo que a coisa entra na esfera patrimonial do agente, ficando à sua disposição ou seja, logo
que o agente passa a controlá-la, passa a tê-la sob o seu domínio, não se exigindo que este
domínio se exerça com sossego e tranquilidade. 2. Tendo o arguido já retirado do interior da casa
de habitação e colocado num terreno distante cerca de 50 metros, e para depois os transportar
para o veículo onde se encontrava a arguida, um número considerável de objectos pertencentes
ao ofendido, quando foi avistado e abordado pelos militares da GNR, é inquestionável que o
arguido já controlava de facto as coisas, já as tinha sob o seu domínio durante um mínimo de
tempo e de estabilidade pelo que se deve entender que o furto se consumou.”.
• Ac. TRE de 10/12/2013 “I. Tendo-se provado que o arguido, ao seguir na viatura do ofendido,
aproveitou-se da atenção que este prestava à condução para lhe subtrair a carteira, aí colocada,
incorreu na prática de um crime qualificado nos termos combinados dos artigos 203.º, n.º 1, e
204.º, n.º 1, al´. b) do CP. II. Houve clara intenção do legislador em equiparar o furto de coisa
móvel que se encontre numa relação de transporte com o veículo com aquela, que, simplesmente,
aí foi colocada ou deixada, em razão da especial censurabilidade que se prende com o aproveitar

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do contexto específico que facilita a prática delituosa, em concreto, a concentração do condutor
direccionada para a condução do veículo, ficando assim fragilizado e indefeso em relação às
agressões que o seu património possa desse modo ser alvo. III. É irrelevante, para o efeito, que a
entrada no veículo seja, ou não, legítima.”.
• Ac. TRG de 17/3/2014 “I. Para a consumação do crime de furto não é necessário que o agente
detenha a coisa de forma pacífica e segura, mas exige-se um mínimo plausível de fruição das suas
utilidades. II. Há mera tentativa de crime de furto quando o arguido foi surpreendido pelas
autoridades policiais, que o encontraram escondido debaixo dum balcão de atendimento ao
público, após ter retirado de uma das gavetas desse balcão um envelope com a quantia de €
485,00, que colocou nas cuecas.”.

TIPO SUBJETIVO

Exige-se para além do dolo do tipo, o elemento subjetivo especial da ilegítima intenção de
apropriação.

Hipóteses de erro

Em DP o que é o erro? Erros intelectuais ou de conhecimento e erros de valoração. O erro de


valoração é o erro sobre a ilicitude (artigo 17º do CP) ou sobre a proibição, ou seja, quando o
agente não tem a consciência da ilicitude, o agente não sabe que o seu comportamento é
proibido e punido por lei. É o tal elemento emocional do dolo. Diz o artigo 17º que se o erro for
censurável pode quanto muito levar a uma atenuação especial da pena, mas é uma atenuação
facultativa. Se o erro não for censurável então é uma causa de exclusão da culpa porque diz o
artigo 17º “age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe
for censurável”. O que é o erro? É uma ausência total de representação da realidade ou uma
representação incompleta da realidade.

Pode ser um erro de valoração o que significa que a consciência axiológica, consciência de
valores do agente não é correspondente àquela que o DP lhe exige.

Ou pode ser um erro de conhecimento ou intelectual e entre nós esse erro intelectual tem a
designação de erro sobre a factualidade típica ou erro sobre as circunstâncias de facto (artigo
16º). O nº1 do artigo 16º, 1ª parte diz-nos que “o erro sobre elementos de facto ou de direito
de um tipo de crime, (…), exclui o dolo” – o que está entre vírgulas é outro erro. Quando o agente
não conhece elementos de facto ou de direito do tipo objetivo – situação em que não sabe que
à sua frente está uma pessoa ou um animal e dispara e mata. Se excluir o dolo, em princípio, o
agente não vai ser punido porque a punição a título de negligência é excecional, nos termos do
artigo 13º do CP. Mas diz o nº3 que se o comportamento for punido por negligência e o agente
tiver atuado com inobservância do elemento material ressalva-se a punição por negligência, nos
termos do artigo 16º, nº3 do CP.

O nº2 do artigo 16º diz respeito ao erro intelectual, mas relativo a um tipo justificador ou
circunstância que exclui a culpa. “(…) abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir,
excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”.

Artigo 16º, nº1, 2ª parte onde se prevê outro tipo de erro. Erro sobre as proibições – erro
também de conhecimento, o agente não conhece a própria norma. “(…) erro sobre proibições
cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência
da ilicitude do facto exclui o dolo”. Um erro de não conhecer o carácter ilícito da conduta é um

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erro de valoração, então o porquê do artigo 16º, nº1, 2ª parte? O que é distintivo entre o artigo
16º, nº1, 2ª parte e o artigo 17º do CP, o critério distintivo diz respeito à natureza do bem jurídico
que a norma protege. Se estamos a falar de bens jurídicos que a generalidade das pessoas sabe
que a violação daquele bem jurídico implica a prática de um crime então aí estamos perante um
erro sobre a ilicitude do artigo 17º. Se estamos a falar de tipos legais de crime que protegem
bens jurídicos que devido à sua especificidade, ao seu carácter técnico, à sua novidade e por isso
ainda não estão interiorizados na consciência comunitária então aí estamos a falar de erro sobre
as proibições.

Exemplo 1: DL nº 28/84 que diz respeito às infrações contra a economia e contra a saúde
pública e neste DL temos um tipo legal que é um crime de abate clandestino. Ou seja,
imaginemos que um agricultor que toda a vida criou galinhas para vender no mercado
local e mata na sua casa essas galinhas e vai vendê-las. Praticou um crime de abate
clandestino porque está a fazer introduzir na cadeia alimentar humana um animal que
não foi morto cumprindo as regras de higiene sanitária. O animal no passou pelo
matadouro e por isso não se sabe se o animal estava ou não em condições de ser por
nós consumido. Imaginemos que daí acaba por derivar a morte de alguém porque o
animal está infetado por uma doença que acaba por ser mortal. O agente é o tal
agricultor que tem 80 anos e que toda a vez fez isso. Se for movido contra si um processo
ele não vai perceber o que fez de mal, não percebe o carácter ilícito da conduta porque
para ele este comportamento não está interiorizado na comunidade. Nós quando
aplicamos as normas jurídico-penais temos sempre que atender ao específico lugar, ao
específico agente, etc.

Exemplo 2: alguém que encontra 50 euros no chão. A maior parte das pessoas não sabe
que é crime.

A questão está em saber se é razoável exigir-se ou não que as pessoas conheçam as normas. No
caso do senhor que mata as galinhas para a vender não é exigível que conheça esta norma. Na
questão da nota achada no chão a generalidade das pessoas não tem consciência que é crime.

Ou seja, na generalidade dos crimes parte-se do princípio de que o agente conhece a natureza
ilícita da sua conduta. Mas há casos em que para que a consciência do agente se afirme é
necessário que se consiga provar que ele conhecia a norma, o carácter Ilícito da sua conduta. Se
não o conseguir há um erro sobre as proibições que exclui o dolo. Tendencialmente aquilo que
diz respeito ao artigo 17º é que os tipos legais de crime que estão no CP pela sua própria
natureza as pessoas têm a obrigação de conhecer, mas aqueles que estão em legislação avulsa
muitas vezes dizem respeito a normas que só conhece quem tem de lidar com essa legislação.

Erro sobre o processo causal. Erro sobre a execução. Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto –
estes erros não estão previstos no artigo 16º do CP, são casos especiais de erro sobre o elemento
intelectual do dolo e cuja solução resulta das normas gerais da interpretação objetiva.

CULPA

Para haver culpa é necessário que se verifiquem os seguintes elementos:

• Ausência de inimputabilidade
• Ausência de inexigibilidade

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• Consciência da ilicitude (elemento emocional do dolo).

Conceito de inexigibilidade:

Para haver culpa é preciso que seja exigível ao agente um comportamento diverso. Se formos a
uma das formulações mais clássicas do conceito de culpa encontramos esta noção: o agente
podia e devia ter agido de uma outra forma. Esta é uma noção criticada por Figueiredo Dias,
noção de culpa muito próxima de Eduardo Correia. Não lhe é exigível um comportamento
diverso. Eduardo Correia dizia que há pessoas que no momento da prática do facto não lhes é
exigível um comportamento diverso – os criminosos multireincidentes, delinquentes por
tendência – a sua “vida” é o crime. Isto levantava problemas no momento de aplicar a pena. Os
delinquentes por tendência são menos livres e se são menos livres são menos culpados e então
a pena é menor ou até podia não existir e, no entanto, a comunidade tem mais receio destas
pessoas porque podem ser mais perigosas. Para ultrapassar este problema, EC recorreu a uma
formulação de uma ideia de culpa de vários autores alemães, falava pela culpa pela não
condução ou má condução da vida, isto é, pode haver pessoas que têm uma particular tendência
para o crime, mas devem combater essa propensão para o crime. Se no tempus delicti eu não
posso censurar o agente porque ele não podia atuar de outra forma, eu posso censurar mais
atrás porque ele anteriormente não procurou todas as formas para combater essa tendência –
daí a culpa pela não formação da personalidade porque conduziu mal a sua vida (não procurou
ajuda psiquiátrica, psicológica).

Mas, como sabemos, há fatores externos/exógenos à conduta do agente que podem fazer com
que ele no tempus delicti não pudesse agir de outra forma perante a situação concreta – esta é
a ideia da inexigibilidade.

O nosso CP não tem uma cláusula geral de inexigibilidade, mas temos concretizações desta da
ideia da inexigibilidade.

Por exemplo, artigo 35º, nº2 que se refere ao estado de necessidade desculpante: há
uma situação externa tão forte que o agente não pode atuar de uma outra forma.

Outro exemplo de inexigibilidade é o artigo 37º.

Portanto, a inexigibilidade é um aspeto externo ao agente que faz com que não lhe fosse exigível
um outro comportamento.

Ou seja, para que alguém seja culpado tem que reunir requisitos de natureza endógena, ou seja,
tem que ser imputável (não pode ser menor de 16 anos e não pode ser portador de anomalia
psíquica); aspeto externo a ele, ou seja, não há nada externo a ele que o levasse a ter um
comportamento desconforma ao direito; tem que saber que a conduta é ilícita.

PENA

Prisão de 1 mês (artigo 41º, nº 1) a 3 anos ou multa de 10 dias a 360 dias (artigo 47º, nº 1).

Há desde 1995 uma certa racionalidade que não existia na versão originaria do código entre o
número de dias de multa e 1 ano de prisão. E tendencialmente quando o legislador faz prever a
1 ano de prisão quantos dias de multa? 120 dias de multa. × 3 = 360 dias. 3 anos correspondem
a 360 dias →tendência do legislador.

29
Sistema de multa alternativa e as suas vantagens. Artigo 70º do CP.

CONCURSO

Se há uma coisa titulada por várias pessoas temos um só crime. Se há várias coisas tituladas por
várias pessoas temos concurso efetivo.

Na falsificação e furto, o Supremo conclui, num acórdão uniformizador, que há um concurso


efetivo.

Se há um furto a que se segue a destruição:

→Pinto de Albuquerque defende que há apenas a punição por furto. Ou seja, eu furto
um computador e parto-o. Pratiquei um crime (concurso aparente) ou dois crimes
(concurso efetivo)? Pinto de Albuquerque diz que há uma relação de consunção: isto é,
quando o legislador previu a ilicitude do crime de furto com ela já está englobada a ideia
do dano.

→O prof. discorda e entende que há aqui concurso efetivo. O bem jurídico é o mesmo,
a propriedade, mas há o preenchimento de dois tipos legais autónomos, o artigo 203º e
o artigo 212º ou 213º. Qual o critério do artigo 30º, nº1? Diz-nos que há concurso efetivo
quando há preenchimento de vários tipos legais de crimes. Então aqui estamos perante
um caso de concurso efetivo entre o crime de furto e o crime de dano.

Quanto ao CRIME CONTINUADO:

O crime continuado é uma ficção legal. É um crime que (artigo 30º, nº2 e 3), hoje em dia, não
faz sentido nenhum. O crime continuado existe em poucos países. Baseou-se numa ideia, num
período em que o DP era particularmente severo, em que à terceira condenação o agente era
punido com pena de morte independentemente da natureza do crime.

Na verdade, o crime continuado é um concurso efetivo de crimes. Há várias resoluções


criminosas.

Exemplo: caixa registadora – X trabalha no supermercado Y. Vai tira dinheiro da caixa


hoje, amanhã e assim sucessivamente. Diz o artigo 30º, nº2 que é considerado um único
crime uma situação que é tecnicamente um concurso efetivo de crimes, em que há
várias resoluções criminosas, há tantas resoluções criminosas quantas os crimes que
efetivamente foram praticados em que o modus operandi é o mesmo, em que há uma
circunstância externa ao agente que diminui consideravelmente a sua culpa. qual é a
circunstância externa? É o facto de a patroa não se aperceber de nada. Externamente
ao agente há uma ideia de facilitação da prática do crime. em vez de se punir por vários
crimes em concurso pune-se por um só. Eduardo Correia foi quem introduziu entre nós
a figura do crime continuado.

Também há motivos processuais-penais que justificam a punição do crime continuado. Se no


processo penal tivéssemos que fazer prova de cada um dos atos, a prova seria muito mais difícil.

Em relação a bens jurídicos pessoais não há crime continuado, o que significa que não há crime
continuado, por exemplo, no abuso sexual de crianças, na violência doméstica, etc., e ainda

30
assim há, ainda hoje, condenações por abuso sexual de crianças na forma continuada (violando
o artigo 30º, nº3 do CP).

Não há crime continuado no crime de roubo porque tem uma parte pessoal. No furto sim.

• Ac. TRL de 13/8/2018 “Para haver condenação por crime cometido na forma continuada é
condição sine qua non verificar-se a ocorrência de uma situação externa ao agente, donde resulte
uma sensível diminuição da sua culpa. Uma vez apurado – que o agente utilizando o mesmo
“modus operandi” e num curto espaço temporal, isto é em dois dias consecutivos de Setembro de
2016, se dirigiu ao Posto de abastecimento de combustíveis da GALP na Cruz Quebrada e aí se
apoderou e fez suas, várias embalagens de óleo, cometeu um furto na forma continuada, estamos
perante um quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que facilitou a reiteração da
sua actuação ilícita – essas duas sucessivas apropriações das embalagens de óleo, foram
facilitadas pela circunstância de ter conseguido passar com aqueles artigos pelas caixas do supra
referido estabelecimento da GALP sem ser detectado pelo funcionário ou por qualquer sistema
electrónico (vulgo apito de alarme) propiciando-lhe essa ausência de fiscalização que
experimentou aquando da primeira subtração, uma falsa sensação de impunidade que o
incentivou a reiterar a sua conduta ilícita e a regressar ao mesmo local uma outra vez.” .

Aula de 23 de outubro de 2020

CRIME DE FURTO QUALIFICADO (artigo 204º do CP)

O artigo 204º prevê duas qualificações: a qualificação do nº1 e a chamada hiperqualificação do


nº 2. Temos que ver qual a razão de ser desta agravação: porque é que o legislador sentiu
necessidade de criar um crime de furto qualificado? A razão de ser para qualquer qualificação,
independentemente do tipo legal de crime que estejamos a falar, é sempre uma de três:

→ou uma razão de excesso de agravação da ilicitude do comportamento do agente de


tal forma que a ilicitude é tão grave que não se comporta a resposta, do ponto de vista
do ilícito, não é suficiente a que é dada pelo tipo matricial (no caso pelo artigo 203º)

→ou por razões de culpa que se exige pena mais grave

→ou pelas duas razões.

Devemos conjugar o artigo 204º com o artigo 203º. O conceito de furto está precisamente no
artigo 203º do CP.

Artigo 204º, nº1: “Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:”

→Al. a) “de valor elevado” – trata-se de um crime qualificado em razão do valor elevado. Justifica-
se porquê esta agravação? Por razões de ilicitude. É uma remissão para o artigo 202º do CP que
nos diz aquilo que assume “valor elevado”.

Tanto é crime de furto qualificado por via do valor elevado se o agente tiver uma culpa muito
elevada ou muito diminuta, tanto é este tipo legal se as condições económicas do agente forem
favoráveis ou não favoráveis, etc. É um juízo meramente objetivo, geral e abstrato.

Faria Costa anota este artigo e tem uma conceção com o qual o prof. discorda. Defende que a
circunstância de estarmos perante o preenchimento de alguma das alíneas do artigo 204º não

31
implica necessariamente que estejamos perante um crime de furto qualificado. Deve valorar-se
autonomamente o caso perante a situação. Isto é, vamos imaginar que alguém se apropria de
uma coisa móvel alheia, por exemplo um computador que não ultrapassará 5.100 euros. O prof.
entende que a posição de Faria Costa é insustentável, é uma posição que viola a perspetiva de
muitos autores desde logo Pinto de Albuquerque, viola o princípio da legalidade. O legislador
entendeu que as coisas que são furtadas e que têm um valor superior a 5.100 euros têm que ser
consideradas como crime de furto considerado, entendeu que em si mesmo esse valor faz com
que se justifique um juízo de censura do ponto de vista da ilicitude agravado. Não se pode dizer
que isto não chega, que é preciso uma valoração autónoma como diz Faria Costa. O
entendimento de Faria Costa não é seguido pela doutrina nem pela jurisprudência. Assim, logo
que se preencha alguma destas qualificativas o crime é qualificado. Não temos que fazer outro
tipo de valoração.

Talvez aqui a confusão tenha que ver com a situação do funcionamento dos exemplos-padrão.
O que é que são os exemplos-padrão? Técnica dos exemplos-padrão. Exemplo paradigmático é
o artigo 132º do CP: o nosso legislador diz que há lugar à qualificação quando do facto praticado
poder retirar-se que o agente atuou de forma particularmente censurável ou perversa. Se este
artigo ficasse por aqui o que diríamos em relação a esta norma? Estava a ser violado o princípio
da determinabilidade penal. Feuer Bach. Violaria o principio da determinabilidade penal que nos
exige o seguinte: qualquer norma penal quando o cidadão comum acede ao tipo objetivo tem
que perceber imediatamente quais são os comportamentos que o legislador quis proibir. Se isso
não for possível então há uma violação do princípio da determinabilidade penal – isto retira-se
até do artigo 29º da CRP que é o artigo onde repouso o princípio da legalidade criminalidade e
depois o artigo 1º do CP. Por isso mesmo se o legislador só dissesse isso havia um espaço
insustentável de indeterminação prática das circunstâncias em que o crime de homicídio
qualificado com consequências práticas do ponto de vista da certeza e segurança jurídicas. Então
o legislador recorreu à técnica dos exemplos-padrão, técnica essa que foi inventada pelos
alemães. Significa criar um conceito indeterminado, como o caso do nº1 do artigo 132º
(“especial censurabilidade ou perversidade”, e depois dar exemplos do que é que o legislador
entende como preenchendo essa cláusula geral/conceito indeterminado. Por exemplo, ser
cônjuge, ascendente, descendente são circunstancias que são exemplos-padrão para a
existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente do crime. Se eu matar o meu
pai, o meu filho, o meu cônjuge há um indício de que terei praticado um crime de homicídio. É
apenas indicio porquê? Há uma certa tendência para quando uma situação concreta se subsume
a um exemplo-padrão as pessoas dizerem imediatamente que o agente cometeu, neste caso,
um homicídio na forma qualificada. Está errado. Há apenas um indício porque a aplicação do
exemplo-padrão tem sempre que passar também pelo crime da cláusula geral (no caso pelo
nº1). Eu matei o meu pai e daí tem que se concluir que atuei de forma particularmente
censurável ou perversa. Isto porque posso ter matado o meu pai numa situação de discussão
violenta. Ou seja, quando se preenche algum dos exemplos-padrão não quer dizer que
imediatamente o crime seja qualificado, temos sempre que o conjugar com a cláusula geral.
Ainda relativamente aos exemplos-padrão, pode haver outras situações que não estejam
subsumíveis em nenhuma das alíneas e mesmo assim constituírem o crime, neste caso,
homicídio qualificado. É possível haver casos que só sejam justificados por via da cláusula penal.

32
Dizemos que esta técnica fica a meio caminho entre uma circunstância modificativa que é
eliminada, entre a mera indeterminação e a exemplificação taxativa.

Nenhum dos exemplos-padrões é de verificação automática porque tem sempre que passar pelo
nº1. Mas neste crime de furto qualificado não temos uma cláusula geral.

→Al. b) “Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos


ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na
estação, gare ou cais;”

“Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de


objectos (…)”

Auto-rádio, GPS, estofos, triângulo, emblema da marca de automóvel, volante. Estas peças estão
colocadas no veículo, são as partes componentes, estamos perante uma situação de
qualificação.

Considera-se que existe uma agravação em relação a estes casos porquê? Porque normalmente
as coisas transportadas em veiculo têm um maior conteúdo de vigilância no sentido em que não
deixamos o veiculo aberto. Há maior conteúdo de ilicitude que tem que vencer uma resistência
maior para o exterior.

Faria Costa faz uma analogia com a ideia da “paz dos caminhos” que é uma ideia da Idade Média.
Na Idade Média havia um certo consenso dentro da comunidade de que determinados caminhos
utilizados pelo público, nesses caminhos o Rei dava a sua própria proteção pessoal. Significava
que o Rei se responsabilizava pessoalmente pela segurança das pessoas que por aí passassem e
significava que a punição era mais grave porque não se tinha só praticado um crime de furto
apenas contra aquela pessoa mas também contra a figura do Monarca. Era um misto de crime
de furto e crime de desobediência.

Nesta alínea estamos a proteger as pessoas que se deslocam no veículo, coisas colocadas em
lugar destinado ao depósito de objetos (por exemplo, cacifos nas Estações de comboio – trata-
se de lugar destinado ao depósito de objetos e que cabem nesta alínea).

Aqui é a ideia de que há menor vigilância porque as coisas estão num local destinado ao seu
depósito e então temos um crime de furto na forma qualificada.

Imaginemos que vamos ao teatro ou museu e deixamos o casaco ou a mochila. Se alguém furtar
o casaco ou uma mochila que se encontre nesses locais, independentemente de estarem a ter
ou não algum tipo de vigilância, são lugares que estão destinados ao depósito de objetos.

“(…) transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção
tenha lugar na estação, gare ou cais”.

Se reparamos, o legislador juntou na mesma alínea três factualidade muitos diversas:

- Colocada ou transportada em veículos

- Colocada destinada ao depósito de objetos

- Transportada por passageiros utentes de transporte coletivo.

33
Imaginemos que vou no autocarro da STCP e que levo um colar. Quando diz “transportadas por
passageiros” está-se a referir apenas a coisas que são externas ao seu corpo? Levo um livro e
me furtam o livro ou uma mochila, uma mala – aqui não há dúvidas de que cabe nesta alínea
porque trata-se de coisa transportável. Mas a questão que já se levantou e que deu origem a
um acórdão em 2010 é que aqui também cabem as coisas que os passageiros trazem consigo,
constituam ou não bagagem.

Outra questão: falamos em transporte coletivo. Não importa a natureza desse transporte: pode
ser público ou privado. O mesmo não sucede em “partilha de custos”. Vamos imaginar que duas
pessoas estão a estudar em Coimbra e decidem levar o carro à vez. Eu deixo o meu casaco no
automóvel do meu casaco e o casaco é furtado. Estamos perante esta qualificação ou não? Por
via do transporte coletivo não. Quando se diz que não cabe neste segmento normativo de
transporte coletivo não cabe a partilha de custas é verdade. Mas pode abranger-se por via dos
outros casos da al. b).

E quanto às paragens? E se furta uma paragem? As paragens não se podem enquadrar aqui.
Então se eu furtar a placa não há crime nenhum? Há o crime simples. É crime de furto ou crime
de dano? Factos provados: A no dia 23/10 cerca das 23h na Rua X apoderou-se de um sinal
indicativo de uma paragem de autocarro. Mais tarde essa placa foi encontrada na sua habitação.
Se o indivíduo apenas se apropriar é crime de furto, mas se o danificar será um crime do artigo
213º, nº1, al. c) do CP (crime de dano qualificado). Artigo 204º, nº4 do CP. Se a placa não tiver
sido danificada não podemos falar de crime de dano é apenas crime de furto. A questão que se
pode levantar é: e se o indivíduo tem a placa em casa e ao final de um determinado tempo a
destrói? Podemos questionar se é uma situação de concurso efetivo ou se é uma situação de
concurso aparente. A resposta é que é uma situação de concurso efetivo – o crime de dano e o
crime de furto estão ambos no crime contra a propriedade mas o facto de ser o mesmo bem
jurídico protegido não quer dizer que não possa haver concurso efetivo. Depende do conteúdo
de ilicitude. Quando o legislador previu o crime de furto estava apensar numa factualidade que
nada tem que ver com o dano porque não se exige nenhum destruição para haver crime de
furto, mas se para além da subtração também se destrói então aí há um plus na conduta do
agente.

Retiro a placa do sítio e imediatamente a destruo, aqui há só dano porque a finalidade do agente,
o dolo do agente era a destruição. Nunca teve vontade de subtrair, mas apenas destruir.

• AUJ do STJ n.º 3/2010, DR, I Série de 5/3/2010 “A norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do
CP, no segmento «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», abrange as
coisas que esses passageiros trazem consigo, constituam ou não bagagem.”.
• Ac. TRE de 10/12/2013 “I. Tendo-se provado que o arguido, ao seguir na viatura do ofendido,
aproveitou-se da atenção que este prestava à condução para lhe subtrair a carteira, aí colocada,
incorreu na prática de um crime qualificado nos termos combinados dos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º,
n.º 1, alínea b) do CP. II. Houve clara intenção do legislador em equiparar o furto de coisa móvel
que se encontre numa relação de transporte com o veículo com aquela, que, simplesmente, aí foi
colocada ou deixada, em razão da especial censurabilidade que se prende com o aproveitar do
contexto específico que facilita a prática delituosa, em concreto, a concentração do condutor
direccionada para a condução do veículo, ficando assim fragilizado e indefeso em relação às
agressões que o seu património possa desse modo ser alvo. III. É irrelevante, para o efeito, que a
entrada no veículo seja, ou não, legítima.”.

34
• Ac. TRP de 28/9/2016 “Integra o crime de furto qualificado p.p. pelo art. 204º 1 al. b) CP na versão
de 1995, a apropriação de uma carteira que se encontrava no interior de um veículo automóvel.”.

O combustível que existe no veiculo é objeto de proteção da al. b)? O combustível em si não é
considerada uma coisa colocada ou transportada em veiculo. Para isso teria que ter autonomia
em relação em relação à própria coisa. Não tem essa autonomia em relação ao veiculo por si.

• Ac. TRP de 22/1/2020 “I – Da sistemática do artigo 204º o C. Penal decorre, com segurança, que
a protecção das coisas móveis colocadas ou transportadas em veículos está toda ela contida na
alínea b) do nº 1. II – O combustível existente no depósito de um veiculo é coisa imprescindível ao
funcionamento do veiculo, que não goza de autonomia relativamente a este, não pondendo ser
considerado como uma coisa “colocada ou transportada” em veiculo, para efeitos do
preenchimento da qualificativa legal”.

→Al. c) “Afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar
destinado ao culto ou em cemitério”.

Exemplo: numa procissão religiosa alguém chega à beira do Bispo que está a benzer
alguma coisa e retira-lhe o objeto com que o está a fazer. estamos perante furto
qualificado por via desta alínea? Imaginemos que o valor patrimonial não era elevado.
Cabe aqui? É uma coisa afeta ao culto religioso. A dúvida está na parte que diz “e que se
encontre em lugar destinado ao culto”. Olhando literalmente para o artigo parece que
não há lugar à qualificação porque quando pensamos em lugar destinado ao culto
estamos a pensar em alguma coisa que tenha algum caracter de permanência (igrejas,
sinagogas, mesquitas). Podíamos pensar que este caso não seria um lugar destinado ao
culto.

Qual o bem jurídico que aqui está em causa nesta alínea? É um bem jurídico complexo, na
medida em que está em causa a propriedade mas não só. O que faz com que as circunstâncias
de facto como esta sejam mais gravemente punidas? É a proteção da liberdade religiosa e o
respeito devido aos mortos. Aquilo que se pune é uma subtração de alguma coisa que não tendo
em si um valor tem um valor simbólico. Por exemplo, um Santo da igreja católica em termos de
valor patrimonial é diminuto, mas é de grande valor para aquela igreja e para os religiosos
daquela Santo. A proteção penal não se fica pelo lugar que tenha característica de permanência.
Se assim fosse o que aconteceria se alguém furtasse um cálice de uma missa campal? Dizíamos
que não está num lugar destinado ao culto quando na verdade não é esse o objetivo da norma.
O objetivo da norma é a tutela da liberdade religiosa que é tão posta em causa quando há o
furto de um Santo que vai numa procissão como quando se vai furtar o cálice numa missa
campal. Portanto, o lugar destinado ao culto não tem que ver com o carácter de permanência.
O que interessa é que esteja destinado ao culto. As ruas públicas obviamente não são destinadas
ao culto mas durante o período de tempo em que decorre a procissão essa rua está destinada
ao culto. E, por isso, se se furta um Santo que vai na procissão estamos perante esta norma.

Atende-se cumulativamente à característica intrínseca da coisa e ao local onde se encontra. A


falta de um dos elementos importa a ausência de qualificação e a punição pelo artigo 203º.

Há uma posição que Faria Costa defende que nos diz que se estamos perante um grupo religioso
que é pouco expressivo então não há lugar a esta qualificação. Vamos imaginar que existe a
igreja do 95º dia. Tendo em conta que este grupo, na opinião de Faria Costa, não é

35
representativo se houver o furto de algum objeto que esteja a ser utilizado por este grupo, não
caberá nesta alínea. Isto não pode ser aceite por vários motivos: desde logo porque a Lei da
Liberdade Religiosa não distingue as religiões em função do número de fiéis. Além do mais não
podemos esquecer que quando a lei fala de coisa afeta ao culto religioso temos que estar a falar
de uma pessoa coletiva que se encontre inscrita. A partir do momento em que a pessoa coletiva
cumpre os requisitos legais para estar inscrita como pessoa coletiva religiosa então tem que ter
a mesma proteção que as outras religiões.

Imaginemos as casas que têm capelas privadas. É furtado um Santo dessa capela. Essa capela é
um lugar destinado ao culto? Pode levantar uma questão importante que pode ser até uma
questão prejudicial. Para poderem ser praticados atos de culto tem que haver uma autorização
da autoridade eclesiástica competente, ou seja, para alguém poder, por exemplo, celebrar uma
missa numa dessas capelas particulares aquele lugar tem que estar reconhecido por essa
autoridade como lugar de culto. Vamos imaginar que numa dessas capelas privadas já caducou
essa autorização e entretanto a capela é recuperada. A questão que se pode colocar é a
seguinte: algo que se encontre destinado ao culto tem de ser confirmado pela religião em causa,
isto é, para merecer a proteção penal nós necessitamos que, por exemplo, a Igreja católica diga
que essa capela onde pode haver culto religioso? Não necessita o direito do Estado de que
aquele lugar seja considerado como um lugar destinado ao público de acordo com a religião em
causa porque parece que a teleologia da norma sendo a proteção da liberdade religiosa, o
importante é a forma como a comunidade no seu conjunto encara aquele lugar. Diríamos aqui
que a valoração penal é independente da valoração do Direito Canónico.

Questão do furto da caixa de esmolas: saber se é um crime de furto simples ou um crime de


furto qualificado. A doutrina diverge. Os desembargadores M. Miguez Garcia e Castela Rio
entendem que estamos perante um crime de furto simples (A. Lamas Leite concorda com esta
posição). Pinto de Albuquerque, pelo contrário, entende que estamos perante um crime de furto
qualificado. A caixa de esmolas em si não um objeto destinado ao público, é apenas um
recetáculo onde as pessoas voluntariamente deixam dinheiro para uma obra qualquer que
entendem meritória. Não parece que aqui estamos perante um objeto afeto ao culto religioso.
É algo que se encontra num lugar afeto ao culto, disso não há dúvidas, mas em si a coisa não em
valor religioso. Portanto, parece ser um caso de furto simples. Óbvio que depende do valor: se
lá estiver mais de 5.100 euros já será um crime de furto simples. Pinto de Albuquerque diz que
a caixa de esmolas, é verdade, não é um objeto que seja objeto de culto, mas está ao serviço de
uma função que é uma função de culto. É discutível porque não sabemos bem o destino das
esmolas.

→Al. d) “Explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública
ou perigo comum”.

Aqui a qualificação deve-se a uma maior ilicitude. Em abstrato furtar deixando alguém numa
situação destas de maior carência deve ser mais gravemente punido.

Estamos perante crime pluriofensivo porque não é só a propriedade que é lesada mas também
a proteção que a Constituição e leis avulsas dão a pessoas que se encontram em situação de
maior vulnerabilidade por estes motivos.

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Para perceber esta alínea temos que entender o que é a situação de perigo comum. O que se
entende por este conceito de perigo comum? Temos no CP os crimes de perigo comum (artigos
272º e seg. do CP). Qual o polo aglutinador dos crimes de perigo comum? Os crimes de perigos
comuns dizem respeito a uma série de condutas que parece difícil à primeira vista encontrar um
fio condutor. Qual o polo aglutinador? Crimes em relação aos quais não podemos determinar à
partida o leque de potenciais vítimas. São a contra-face no DP dos interesses coletivos.

Não há qualificação se o agente furta a residência de alguém que está internado (Miguel
Garcia/Castela Rio).

Al. e) “Fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura ou outro dispositivo
especialmente destinado à sua segurança”.

Esta alínea deu lugar a dúvidas que foram ultrapassadas há 20 anos. Muita gente qualificava o
furto em automóvel por via desta alínea, mas este acórdão veio dizer que o objetivo de um
veículo automóvel não é funcionar como recetáculo. A finalidade principal é garantir a
mobilidade de pessoas e bens e por isso se esta é a finalidade principal então não podemos
considerar o veículo como recetáculo.

• Ac. STJ n.º 7/2000, de 7/3/2000 “Não é enquadrável na previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo
204.º do Código Penal a conduta do agente que, em ordem à subtracção de coisa alheia, se
introduz em veículo automóvel através do rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em
parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada no interior daquele veículo”.

O furto nestas hipóteses é qualificado porquê? Porque do ponto de vista da ilicitude este é um
crime mais grave em que o agente tem que ultrapassar maior resistência para poder consumar
o crime porque estamos a falar de algo que está num dispositivo que está destinado a garantir
uma segurança acrescida. Por isso é que se eu deixar uma coisa qualquer numa gaveta aberta
não está preenchido esta agravação. Se eu deixar a chave na fechadura também não está
preenchido. Se um cofre está aberto a qualificação não pode ser por aqui.

Uma mala de viagem que tenha código cabe nesta alínea do recetáculo destinado à segurança.
Se não tiver código já não sabe nesta alínea.

• Ac. TRG 11/5/2020 “(…) VI – A agravação da punição da subtração prevista pela al. e) do arti.
204º/1 do C. Penal («fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo…») pressupõe que o agente
careça de desenvolver argúcia ou particular engenho e conhecimento adequados ao acesso que,
precisamente, se encontrava obstaculizado «com fechadura ou qualquer outro dispositivo
especialmente adequado à sua segurança», circunstância que, obviamente, não se preencheu
neste caso em que o arguido, para aceder ao interior de uma caixa registadora e subtrair coisa
nela contida, utilizou a chave que lá se encontrava, tendo cometido, pois, um crime de furto
simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº1, do C. Penal”.

Uma caixa registadora pode ser um recetáculo mas neste caso não há lugar à qualificação
porque tinha a chave, não estava a ser utilizado como recetáculo.

Aula de 6 de novembro de 2020

CRIME DE FURTO QUALIFICADO (artigo 204º, nº1 do CP) [Cont.]

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→Al. f) “Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou
industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar ”.

Nesta alínea temos três situações diferentes:

→Introdução ilegítima em habitação, ainda que móvel:

Não é por acaso que a lei usa a expressão “habitação” e não “residência”. A expressão
“residência” tem uma noção específica no CC assim como a noção de domicílio. A lei quis
conferir esta proteção acrescida usando uma circunstância qualificadora em reação a todo o
espaço seja ele uma coisa imóvel, seja uma coisa móvel (abrange roulottes, tendas,
embarcações em que as pessoas vivem). Quando nos deslocamos para uma viagem de lazer o
lugar onde nos encontramos (hotel, motel) são habitação para efeitos de proteção desta alínea.

Há jurisprudência no sentido de dizer que quando nos deslocamos para uma viagem de negócios
ou de lazer, o lugar onde nos encontramos (hotel, etc.) todos estes espaços são habitação para
efeitos de proteção desta al. e). O ac. ??? diz que quem se encontra hospedado num hotel e sem
autorização de quem é titular do quarto do hotel ao lado entra nesse quarto de hotel e subtrai
uma TV o crime cabe nesta alínea. Isso significa que a habitação é aquele lugar com carácter
permanente ou meramente temporário onde o sujeito, a vítima conduz a sua vida ainda que
essa condução da vida seja por poucas horas ou dias. (Claro que o titular do direito de queixa é
a sociedade comercial que detém o hotel). Se me roubarem o computador num hotel temos a
proteção desta alínea porque se entende que aquele quarto é, ainda que por poucas horas,
habitação e neste caso eu sou o titular do direito de queixa.

Ou seja, esta al. f) tem várias modalidades típicas. Estamos a ver a primeira parte. O facto de
alguém se introduzir num hotel e se apropriar de uma TV que é propriedade da sociedade
comercial que detém o hotel é sempre um crime de furto qualificado por via desta alínea mas
não por entrar em habitação mas sim por entrar em estabelecimento comercial. Porque não
podemos esquecer que um hotel é sempre um estabelecimento comercial. Para se considerar
que um hotel ou motel são, para efeitos da al. f), habitação é necessário que aquele quarto de
hotel esteja a cumprir naquele preciso momento em que o crime é praticado a função de
habitação. Imaginemos que tenho o quarto 135 livre e um outro cliente entra e apropria-se da
TV, aí não posso qualificar o crime por via desta primeira parte porque naquele momento o
quarto 135 não estava a ser utilizado como habitação. Se, pelo contrário, o quarto 135 estiver a
ser utilizado pelo sr. Manuel e se se apropriar mesmo de uma coisa que é propriedade da
sociedade comercial que detém o hotel, aí já basta a qualificação com base na primeira parte do
artigo porque aquele quarto está a ser utilizado como habitação. – Isto é uma coisa, o
preenchimento da qualificativa. Outra coisa é a titularidade do direito de queixa que depende
de quem é titular da coisa ou animal que foi furtada. Se a coisa é titulada pelo cliente, pelo
hóspede então é ele o titular do direito de queixa, mas se é titulada pela sociedade comercial
que detém o hotel a queixa tem que ser apresentada por essa sociedade comercial.

→Segunda parte da factualidade abrangida pela alínea é a introdução ilegítima em


estabelecimento comercial ou industrial

Conceito de estabelecimento comercial é dado pelo Direito Comercial (Tese de Doutoramento


do Dr. Coutinho de Abreu). Estabelecimento industrial também.

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Qualquer introdução num estabelecimento comercial também está abrangida por esta norma.
Podemos ter a situação do quarto que está ocupado em que se apropria do computador do
cliente e temos qualificação da al. f) simultaneamente porque se entra no estabelecimento
comercial e porque se entra na habitação. Do ponto de vista da medida concreta da pena o
tribunal vai ponderar a aplicação de uma punição mais severa porque há mais factualidades
típicas que são abrangidas pelo comportamento do agente.

Tem-se perguntado também se se exige uma entrada completa do corpo da pessoa ou se basta
uma parte do corpo. Tem-se entendido maioritariamente na doutrina que se exige uma entrada
completa do corpo, caso contrário não estaremos perante este tipo qualificado.

→Introdução ilegítima em espaço fechado

Apesar de existir um Ac. TRP de 21/2/2018, a grande unanimidade da jurisprudência tem


interpretado esta noção de espaço fechado de uma forma relativamente restrita, ou seja, tem
direito que este espaço fechado tem que ter uma ligação à habitação, ao estabelecimento
comercial ou ao estabelecimento industrial. Ligação em que sentido? Pode ser uma ligação do
ponto de vista geográfico, físico, ou seja, é um barracão que está ao lado de uma habitação ou
é um barracão que está ao lado de um estabelecimento comercial ou de um estabelecimento
industrial, mas fundamentalmente não é tanto a questão do carácter físico, da proximidade
física desse espaço fechado, mas fundamentalmente da função que esse espaço fechado
desempenha por referência à habitação, estabelecimento comercial ou estabelecimento
industrial.

A jurisprudência tem dito que esses espaços fechados têm que servir para a habitação, ou seja,
tem que se algo que as pessoas usam, por exemplo, como despensa, ou no caso de um
estabelecimento comercial é usado como uma espécie de armazém onde se guardam matérias-
primas, etc. Quando não há essa ligação a estabelecimento comercial ou industrial ou habitação,
então tem-se entendido que se alguém entra ilegitimamente nesse espaço fechado aí não há
lugar a esta qualificação, o que não quer dizer que não haja lugar à tutela do artigo 203º que é
uma tutela subsidiaria em relação ao artigo 204º.

• Ac. TRC de 30/10/2013 “Um «barracão de campo», embora fechado à chave, não preenche o
conceito “espaço fechado” constante da al. e) do nº 2 do artigo 204º do CP.”.
• Ac. TRP de 7/11/2012 “Não comete um crime de furto qualificado, por escalamento, do artigo
202º , nº 2, al. e) do CP, mas sim um crime de furto qualificado, por introdução ilegítima em
estabelecimento industrial, do artigo 202º , nº 1, al. f) do CP, aquele que acede a uma instalação
fabril passando, primeiro, uma vedação em rede que se encontrava cortada e danificada e,
depois, uma porta cuja fechadura já se encontrava forçada, retirando do interior das instalações
bens aí existentes, que faz seus.”. A noção de escalamento está no artigo 202º, al. e) do CP.
Se o indivíduo aproveitou que a vedação estava danificada/cortada e chegou depois a
uma porta do estabelecimento comercial, aqui a coisa é mais simples porque já não
estamos a falar de um espaço fechado. Encontrou a porta em que a fechadura já se
encontrava forçada, a lei considera que estamos perante este crime da al. f). A lei diz
aquele que se introduzir em estabelecimento industrial. Não se diz em lado nenhum que
o estabelecimento industrial tenha que estar fechado. O espaço fechado é para outro
espaço que tem que ter a tal ligação à habitação, ao EC ou EI.

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• Ac. TRP de 26/3/2015 “I. O que caracteriza e justifica a agravante qualificativo do furto não é o
facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas a circunstância de esse espaço estar
conexionado com uma habitação ou com um estabelecimento comercial ou industrial. II. Por isso,
a subtracção de objectos de um estaleiro (átrio, terreiro) ainda que vedado, integra a prática do
crime de furto, e não a de crime de furto qualificado.”. Relativamente ao ponto dois, diz-nos
“que a subtracção de objectos de um estaleiro (átrio, terreiro) ainda que vedado, integra a
prática do crime de furto, e não a de crime de furto qualificado” exatamente porque se
considera o espaço fechado tem que estar conexionado com uma habitação,
estabelecimento comercial ou industrial, não estando conexionado não há lugar a essa
proteção. Tem que ver com uma análise que contende com a questão do bem jurídico
protegido. Estamos ainda nos crimes contra a propriedade, mas aqui nesta introdução
ilegítima neste espaço não é só a propriedade que está a ser protegida mas também,
por exemplo, a reserva da vida privada no que diz respeito à habitação mas também a
proteção acrescida que o legislador entendeu atribuir a estabelecimentos comerciais,
industriais ou espaços fechados que estejam ao serviço destas duas coisas. Portanto,
aqui também temos um bem jurídico de natureza complexa. É uma tutela que o
legislador entendeu dar de forma acrescida. E aqui até como forma de proteção
acrescida da própria propriedade privada. O artigo 62º da CRP é a base de todos estes
crimes contra a propriedade, mas o legislador pode dar maior ou menor proteção à
propriedade, e aqui quis dar maior proteção, certamente porque aqui o legislador quer
proteger as funções desempenhadas pelos EC e EI no âmbito da economia. O legislador
não foi insensível ao papel económico que é desempenhado pelos EC e pelos EI.
• Ac. TRP de 26/5/2015 “Integra a prática de um crime de furto simples do art. 203.º 1 CP, a
apropriação de bens móveis retirados de «uns anexos» existentes numa propriedade vedada em
que o arguido se introduziu por escalamento do muro de vedação, por nenhuma conexão ter com
os conceitos de habitação e de estabelecimento comercial ou industrial e seus espaços fechados
dependentes, do art. 204º 2 f) CP.
• Ac. TRP de 11/7/2012 “I. A doutrina e a jurisprudência têm sustentado que o que caracteriza e
justifica a agravante qualificativa do furto da alínea f) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal [e
também da alínea e) do n.º 2] não é o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas
sim, a circunstância de o espaço fechado estar conexionado com a habitação ou com o
estabelecimento comercial ou industrial. II. A introdução em espaço fechado, só por si, não
representa um dano acrescido que justifique a previsão da qualificação proposta para a ação do
furto. III. O que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o
estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços
fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço
físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências
contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem
jurídico.”.
• Ac. TRP de 16/5/2012 “I. O que caracteriza e justifica a agravante «espaço fechado», enquanto
qualificativa do furto, não é o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas a
circunstância de este estar conexionado com a habitação ou um estabelecimento comercial ou
industrial. II. Não constitui, assim, «espaço fechado» para este efeito o estaleiro de uma obra de
construção civil, ainda que vedado. III. Assim, aquele que depois de subir a respectiva vedação,
se introduz no estaleiro de uma obra de construção civil e daí retira um cabo de cobre com cerca
de 25m, dois rolos de arame queimado, uma peça indiferenciada e dois rolos de metal, tudo num

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valor não superior a 102,00 €, comete um crime de furto, eventualmente em concurso real com
um crime de introdução de um lugar vedado ao público.”.
• Ac. do TRP de 24/5/2017 “Comete o crime de furto qualificado p. e p. pelo art. 204º, nº1, al. f) CP
(introdução ilegítima em espaço fechado) o hóspede de um motel, que se introduz num outro
quarto desocupado do mesmo motel, sem para tal estar autorizado e dali retira um televisor dele
se apropriando.”. Se ele entra num outro quarto que estava desocupado não podemos
falar de habitação.
• Ac. TRP de 21/2/2018 “A expressão “espaço fechado”, prevista no art. 204º, 1, f) e 2, e) CP, inclui
qualquer espaço fechado, e não apenas os que estão afectos ou integram as habitações e os
estabelecimentos comerciais ou industrial.”.
• Ac. de 10 de maio de 2000: aqui tínhamos uma área comum de prédio urbano. Nessa área
comum alguém aproveitou as portas da garagem abertas e apropriou-se de bicicleta que
estava na parte comum do prédio. Aqui o Supremo não teve necessidade de utilizar
espaço fechado, desde logo porque o espaço não estava fechado. Utilizou o conceito de
habitação e foi buscar as regras da propriedade horizontal. Fazem parte as partes
comuns. Tendo essa bicicleta sido retirada da parte comum estamos perante caso de
entrada ilegítima na habitação. A Relação tinha entendido que não havia lugar à
qualificação porque era área comum e as portas estavam abertas, mas o Supremo foi
buscar conceito do Direito Civil de habitação.

→Al. g) “Com usurpação de título, uniforme ou insígnia de empregado público, civil ou militar, ou
alegando falsa ordem de autoridade pública ”.

Bem jurídico complexo: propriedade e autonomia funcional da administração

Há lugar a uma qualificação sempre que se furte uma coisa móvel ou animal alheio com
usurpação de título, uniforme ou insígnia de empregado público, civil ou militar, ou alegando
falsa ordem de autoridade pública.

Aqui percebemos a razão de ser desta qualificativa. A razão de ser é uma razão de acrescida
ilicitude da conduta do agente. Acrescida ilicitude porque o agente aqui arroga-se de uma
qualidade de que não dispõe, utilizando mesmo sinais exteriores e que são indicativos do
exercício de uma autoridade pública (por exemplo, utilizar farda da PSP para mais facilmente
praticar crime de furto). Quem de alguma forma for portador de um símbolo que exteriorize
uma ideia de potestas, de autoridade pública em relação aos outros cidadãos, esses outros
cidadãos vão dispensar menos cuidado na guarda dos seus objetos. É a ideia de que se está a
aproveitar falsamente este título. Naturalmente que este crime está em concurso aparente com
o crime de usurpação de funções. Não há lugar a concurso efetivo entre este crime e o crime de
usurpação de funções.

→Al. h) “Fazendo da prática de furtos modo de vida”.

Levanta dificuldades porque utiliza uma expressão várias vezes utilizada ao longo do CP (no
artigo 218º, nº2, al. b) do CP – quem praticar a burla fazendo dela modo de vida vai ser mais
gravemente punido). Portanto, este artigo 204º não é a única hipótese em que a pena é mais
severa quando se faz da conduta modo de vida.

Levanta a dúvida de saber o que é isto de “MODO DE VIDA”. A lei não define. A lei não diz
também quantas vezes é que o crime tem que ser repetido para que se considere que faz dela

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modo de vida. Aquilo que o legislador está a contar é com a uma ideia de habitualidade. Há
duas visões: dois crimes de furto não é uma conduta habitual, a partir de três em diante já pode
ser uma conduta habitual em termos quantitativos. Mas há depois uma análise do ponto de vista
qualitativo: Pinto de Albuquerque entende que tem de ser atividade em que o agente sustenta
o essencial da sua vida, ou seja, eu vivo do furto, se me tirarem o furto não consigo viver, não
tenho rendimentos. Outra perspetiva (de M. Miguez Garcia e Castela Rio), que o prof. considera
mais viável é a seguinte: não tem que ser a única atividade. Tem que ser uma atividade que
represente ou que tenha uma importância na vida do agente, ou seja, se deixar de cometer
crime de furto não vai morrer à fome, mas vai haver um rombo no seu rendimento disponível.
Mas não tem que ser algo com que ele se sustente.

→Al. i) “Deixando a vítima em difícil situação económica”.

Temos aqui um conceito indeterminado. Aquilo que se quer dizer é o quê? O que é uma situação
económica difícil tem que ser vista caso a caso. Não são só aspetos de licitude mas também
aspetos de culpa que justificam esta qualificação porque se mostra uma falta de atenção ou de
cuidado em relação à situação económica de alguém. Também se diz aqui que este não é um
crime agravado pelo evento.

O que é um crime agravado pelo evento? Crime preterintencionais ou preterdolosos? Artigo 18º
do CP. Desde muito cedo a doutrina concluiu que havia determinados casos em que se provava
o dolo do agente mas o dolo do agente não era exatamente pelo incidente com a totalidade do
resultado que tinha sido praticado pelo mesmo, ou seja, o dolo do agente ficava aquém da
totalidade do resultado pretendido. Caso de violação do qual resulta a gravidez da mulher ou a
propagação de uma DST. Antes falava-se de crimes preterintencionais ou preterdolosos porque
o próprio resultado, o evento agravante, era em si mesmo um crime. Mas neste exemplo da
violação que resulta na gravidez, a gravidez não é crime, mas a propagação de doença
contagiosa é crime. Então reservava-se, historiamente, a designação de crimes preterdolosos ou
preterintencionais para os casos em que o evento agravante em si mesmo era um crime. Por
exemplo, caso de violência doméstica do qual deriva a morte da vítima: crime preterintencional.
Caso de roubo do qual resulta a morte da vítima: crime preterintencional. O agente não tinha o
dolo da morte, tinha apenas o dolo da violação ou da violência. Contudo, a morte surge como
uma sequência necessária que deriva da conduta do agente.

Há determinadas condutas que em si mesmo são tão graves e como o agente não controla a
totalidade do processo causal dessas condutas podem derivar resultados que apesar de não
pretendidas pelo agente ele devia tê-los ter configurado (quem rouba pode matar; quem pratica
violência doméstica pode matar). O que se tem de provar num crime preterintencional? Os
leigos podem achar que quem pratica crime de violência doméstica e na sequência disso a vítima
morre, o agente será punido por crime de violência doméstica + homicídio. Mas não é assim.
Isto porque o legislador tratou em alguns casos – o crime agravado pelo evento só existe se
estiver expressamente previsto na lei –, isto é, nos casos em que é mais comum que num crime
doloso fundamental possa advir um resultado que em si mesmo seja ou não crime, nesses casos
o legislador criou uma pena única que já corresponde à ilicitude do crime fundamental +
resultado agravante. É o que acontece no artigo 210º/3. É o próprio legislador que já constrói
medida penal abstrata para os casos em que para além do crime doloso fundamental haja um

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resultado agravante que pode em si mesmo ser ou não um crime. Mas não foi esse resultado
agravante não foi pretendido pelo agente.

Nesta al. i) do nº1 do artigo 204º do CP, o agente quis praticar o crime de furto qualificado e
além disso deixou a vítima em situação económica difícil, isso faz com que seja mais gravemente
punido, mas não é um crime agravado pelo evento. Um crime agravado pelo evento tem que
estar previsto na lei como tal.

O que faz o legislador no crime agravado pelo evento? Cria já uma moldura penal abstrata que
está pensada para o crime doloso fundamental que é agravado pelo evento que tem que ser
imputado ao agente pelo menos a título de negligência. Diz-se tem que ser imputada “PELO
MENOS a título de negligência”. Mas TEM QUE SER MESMO A TÍTULO DE NEGLIGÊNCIA porque
se se prova que o evento agravante é imputável ao agente a título de dolo e não é por
negligência então já não estamos perante um crime agravado pelo evento mas sim perante
concurso de crimes. A lei diz “pelo menos”, no artigo 18º, e isso pode levar a pensar que pode
ser a título de dolo, mas quando é a título de dolo já não há crime agravado pelo evento mas há
um concurso de crimes. Se representámos como possível a verificação do resultado ilícito e
mesmo assim atuamos, então qual o tribunal que vai dizer que devo ser punido pelo crime
agravado pelo evento? Nenhum, mas devo ser punido nos quadros do concurso de crime.

→Al. j) “Impedindo ou perturbando, por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou


de fornecimento ao público de água, luz, energia, calor, óleo, gasolina ou gás ”.

Esta enumeração é taxativa. O que não estiver aqui não pode ser abrangido pela qualificativa.

Pode haver dúvidas na interpretação de cada um destes conceitos. Não podemos perder de vista
que existe princípio da unidade da ordem jurídica que nos obriga a ter em conta leis de outros
ramos do direito que nos possam ajudar na interpretação das normas:

- Temos a Lei dos Serviços Públicos (Lei nº 23/96, de 26/7)

- O artigo 537º do Cód. de Trabalho que define em determinadas tarefas e funções a


existência de serviços mínimos

- A Lei nº 54/2012, de 6/9 para os crimes de recetação e furto de metais não precioso
com valor comercial (falamos aqui, por exemplo, de cobre).

Aqui está em causa o furto de um fusível, de uma componente qualquer de uma estação ou
subestação de energia elétrica, de uma componente qualquer da refinaria de Leixões e que tem
este efeito que impeça ou perturbe a exploração desses serviços.

A lei não se basta com a mera colocação em perigo de perturbação. É preciso que efetivamente
haja um crime de dano, que haja perturbação desse serviço. O que está em causa não é só e
apenas o bem jurídico da propriedade mas também a garantia de serviços que são essenciais
para a comunidade e por isso estamos aqui perante um crime pluriofensivo.

PENA → Pena de prisão até 5 anos ou pena de multa até 600 dias.

Artigo 204º/2 do CP “Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:”

→Al. a) “De valor consideravelmente elevado”

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Remissão para o artigo 202º, al. b): 200×102=20.400.

→Al. b) “Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico ”


Aqui estamos perante um conceito em relação ao qual é importante a prova pericial. Não somos
nós que vamos dizer se a coisa tem importante significado para o desenvolvimento tecnológico
ou económico.

→Al. c) “Que por sua natureza seja altamente perigosa”

Várias conclusões podemos retirar desta qualificativa: a análise tem que ser uma análise
marcadamente objetiva e por isso temos exemplos de coisas que são qualificadamente
perigosas (plutónio, reagentes químicos altamente tóxicos).

• Ac. TRL de 6/12/2011 “I. Coisa de «natureza altamente perigosa», para os efeitos de qualificação
do furto pela al. c), do nº 2, do art. 204º do CP, será aquela a que a generalidade das pessoas não
tem acesso livre e que numa avaliação tendencialmente objectiva, feita pelo normal ou comum
dos cidadãos, é por estes considerada como tal. II. O gás de uso doméstico, sendo perigoso, não
é por sua natureza «altamente perigoso», não integrando a sua subtracção, através do
restabelecimento não autorizado de ligação que havia sido cortada, a previsão da al. c), do nº 2,
do art. 204º do CP. (…)”.

→Al. d) “Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção
ou exposição públicas ou acessíveis ao público”.
Importância aqui da prova pericial. Não basta para que esta qualificativa exista que a coisa tenha
um determinado valor em si, a coisa tem que se encontrar em situação de vulnerabilidade em
relação ao agente do crime de furto qualificado. A coleção não tem que ser composta por coisas
que sejam públicas, pode ser uma coleção privada, tem é de estar acessível ao público ou em
exposição. Por exemplo, se for furtado um quadro da Fundação de Serralves de Julião Sarmento,
se esse quadro estiver no depósito do Museu só por aí podemos chegar à qualificação por esta
alínea porque esta não está numa coleção acessível ao público. Mas quando o quadro vai para
a exposição então aí já cabe nesta alínea.

Protege-se a propriedade mas também o próprio património cultural.

Para além de termos de recorrer à prova pericial temos aqui uma norma penal em branco que
pode ser preenchida com recurso à Lei nº 47/2004, de 19/8 (Lei-Quadro dos Museus
Portugueses), à Lei nº 107/2001, de 8/9 (Lei de Bases do Património Cultural), e ao DL nº
148/2015, de 4/8. Não importa aqui a titularidade das coisas, mas sim o menor grau de proteção
quando as coisas se encontram em exposição ao público. Aquilo que se censura ao agente é não
apenas o fruto da coisa em si mas o furto de uma coisa que tem interesse particularmente
importante e que se encontra de uma forma mais vulnerável.

→Al. e) “Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro
espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas ”.

Artigo 202º do CP: arrombamento, escalamento e chaves falsas.

O que justifica esta hiperqualificação? A forma/o modo de execução do crime que é um modo
considerado particularmente grave para a prática do mesmo.

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Este é um crime de execução vinculado porque tem que ser praticado de uma destas formas, se
não forma já não cabe nesta alínea.

• Acórdão uniformizador (Assento do STJ nº 7/2000, de 19/1) que nos diz que “Não é
enquadrável na previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal a conduta do
agente que, em ordem à subtracção de coisa alheia, se introduz em veículo automóvel através do
rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou
impedir a entrada no interior daquele veículo.”. O veículo não é um espaço fechado.
• Ac. TRP de 14/10/2015: furto de gasóleo num parque estabelecimento não cabe aqui nem
na al. f) do nº1 e nº2, al. e). Este furto cabe no crime de furto simples.

A doutrina maioritária tem entendido que se exige a entrada do corpo inteiro. Pinto de
Albuquerque entende que não se exige a entrada do corpo inteiro. Basicamente o que interessa
é o resultado.

→Al. f) “Trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta”.

O DL nº 48/95, de 15/3, que alterou o CP, tem uma DEFINIÇÃO DE ARMA e certamente que,
depois de uma forma mais específica, o regime jurídico das armas e munições a Lei nº 5/2006,
de 23/2 também tem essa definição. Arma é “qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida,
que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para esse fim ”. Interessa-nos não
só a sua utilização em ato mas também em potência.

Têm-se levantado dúvidas de saber o que é ARMA APARENTE ou ARMA OCULTA. A arma
aparente não levanta dúvidas – é aquela que tem aparência de arma mas, na verdade, não é
uma arma, ou seja, são reproduções muito fiéis de armas mas que não são armas. Isto é
importante para a questão do desvalor da conduta que significa que a pessoa a partir do
momento em que traz consigo uma arma aparente isto pode ser visto como algo que pode
aumentar o potencial ofensivo do agente para a comunidade em geral.

Esta alínea levanta mais problemas e que não são fáceis. Se X está a cometer um crime de furto
e puxa do bolso a coronha que parece ser de uma arma e me aponta a arma eu suponho que é
uma arma. Mas isto já não é furto, é roubo, isto porque há ameaça. Na prática estas alíneas são
de verificação difícil. Se a pessoa de alguma forma demonstra a existência da arma já é roubo.
Por isso é que esta alínea é de uma certa excentricidade. O grande objetivo qual é? Quando
alguém tem uma arma que aparenta ser verdadeira tem o potencial de perigo. Mas se quando
me fazem uma revista tenho uma arma oculta, podemos dizer que este indivíduo era mais
perigoso. Portanto, esta alínea não tem grande aplicação prática.

Se a arma está oculta, não a mostra a ninguém roubo também não é. Não é necessário que
utilize a arma. Se utiliza a arma, mesmo que a mostre apenas, já há roubo. Crime de execução
vinculada, embora a ocultação possa ocorrer na pessoa do agente ou em coisas que consigo
transporte ou mesmo em locais com proximidade física do locus delicti.

→Al. g) “Como membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a
colaboração de pelo menos outro membro do bando ”.

O que é um BANDO? Diz a jurisprudência que o bando não é uma associação porque esta implica
uma maior perenidade no tempo, as associações implicam uma certa ideia de organização (coisa

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que não existe no bando). O bando pode ser espontâneo. A jurisprudência diz que o bando é
algo menos do que uma associação mas algo mais do que um todo totalmente inorgânico.

• Ac. do STJ de 12/9/2007 “O bando é um grupo social ou institucionalizado com relativa


autonomia sociológica e psicológica que, dadas as suas características, pode desaguar na
criminalidade incontrolada, pela mobilidade que lhe é própria. (…) O bando situa-se (…) a meio
caminho entre a coautoria e a associação, (…) mas o bando é um minus (…) relativamente à
associação, um grupo desarticulado, em que os seus membros gozam de relativa autonomia, mas
visando a prática de crimes em comum, sem líder, distribuição de tarefas e especialização. ”.

Não basta ser membro do bando. Esse bando tem que ter uma finalidade destinada a prática
reiterada de crimes contra o património e pelo menos a colaboração de outro membro do
bando. Ou seja, pelo menos temos duas pessoas.

Há quem tenha atenção ao DE e ao DO. O bando final está a referir-se ao primeiro bando.

Porque é que se pune mais gravemente? O carácter imprevisível da conduta. O bando pode
formar-se inorganicamente, de forma espontânea.

PENA → Pena de prisão de 2 a 8 anos.

Artigo 204º, nº3 do CP “Se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos
nos números anteriores, só é considerado para efeito de determinação da pena aplicável o que tiver efeito
agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na medida da pena. ”. Este número trata do
princípio de proibição da dupla valoração. A conduta de furto qualificado pode subsumir-se a
uma alínea do nº1 e a uma alínea do nº2. Obviamente que o agente só vai ser punido por via da
alínea que tiver uma punição maior, ou seja, o nº2. Imaginemos que a questão era um crime
subsumível ao nº1 al. e) e nº2 al. e), claro que a condenação deve ser por via daquela que é mais
grave. E nos casos – por exemplo, individuo que furta uma coisa que tem um valor de 15.000
euros entrando na habitação, com escalamento, deixando a vítima numa situação difícil,
fazendo disso modo de vida, em temos várias alíneas do artigo 204º preenchidas? Duas coisas
diferentes:

1) determinação da moldura penal abstrata – é aquela que é maior, que no caso é a do


nº2 (2 a 8 anos).

2) determinação da medida concreta da pena – aqui o facto de o comportamento se


subsumir a várias alíneas vai ser importante porque isso implica que a conduta é mais
ilícita/culposa e por isso a MCP será necessariamente mais grave. Mas as outras alíneas
só entram para a determinação da MCP, entram como fatores de medida da pena.
Sempre que houver a valoração da mesma factualidade não podemos fazer uma
valoração dupla (artigo 71º, nº2 do CP “não fazendo parte do tipo de crime” – princípio da
proibição da dupla valoração).

Artigo 204º, nº4 do CP “Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor. ”. Ou seja,
caímos no furto simples.

Crime público. Apesar disso há a possibilidade de constituição como assistente na generalidade


dos casos, com exceção do Estado.

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A nossa jurisprudência passou a entender que os bens jurídicos mesmo aqueles que dizem
respeito a crimes públicos, o que importa é que tenham uma nota de disponibilidade pessoal.
Quando há um interesse pessoal então há uma nota de pessoalidade.

• Ac. TRP de 13/5/2015 “I – A desqualificação do crime de furto, por força do valor diminuto dos
bens, não faz renascer o crime de violação de domicílio, quando se concretizou na introdução na
habitação por arrombamento. II – Entre o crime de furto, praticado com introdução na habitação
por arrombamento e o crime de violação de domicílio existe um concurso aparente de crimes,
abrangendo a punição por aquele a totalidade da conduta do arguido.”.

CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA (artigo 205º do CP)

Enquadramento jurídico da situação seguinte tendo em conta o crime dos artigos 224º e 205º
do CP, ou seja, o crime de infidelidade e o crime de abuso de confiança:

Estrutura empresarial em que a repartição do capital social de faz da seguinte forma: o acionista
maioritário tem 60% e os outros dois acionistas têm 20% cada um (SA). Os filhos discordam da
estratégia empresarial do pai e querem pô-lo fora. A destituição do pai não é fácil dado que o
pai tem a maioria do capital social. Os filhos começam a recolher prova que aponta no seguinte
sentido: o pai recebe para além do salário, recebe por mês uma elevada quantia que tira da
caixa, quantia não declarada fiscalmente. O pai é sócio único de uma sociedade por quotas
unipessoal que faz concorrência direta a outras sociedades do grupo. Temos prova documental
que diz que em vários prédios adquiridos por essas SQU o pagamento foi feito pelo dinheiro da
outra sociedade comercial. Temos a utilização do cartão de credito em nome da sociedade e em
que temos acesso ao que ele comprou que não tem ligação ao objeto social. Temos documentos
particulares de rendas relativas a imóveis detidos pela sociedade assinados pelo acionista
maioritário. Temos faturação da Conforama onde se compraram coisas para equipar alojamento
local que está na propriedade da sociedade só dele.

Que crimes temos aqui? Quem tem legitimidade para o direito de queixa? Cuidados a ter para
apresentar a queixa?

Não podem ser os administradores da sociedade a apresentar queixa em nome próprio porque
eles não são lesados. Temos que ver de onde saiu o dinheiro para saber quem são os lesados.

O primeiro passo é convocar uma reunião entre os conselhos de administração para deliberar
sobre apresentação de queixa crime contra o administrador. Tenho que juntar à convocatória o
suporte documental que já reuni e que ajuda a tomar a decisão? Quem pode estar presente na
reunião? Quem é que pode votar na reunião?

É preciso juntar documentação? Não. É preciso que seja feito o relato na própria reunião por
parte dos administradores em que se diga os ilícitos que existem, mas não é preciso haver junção
desses documentos (até porque aqui estamos na fase da preparação da apresentação de queixa
crime, nada está garantido).

Só depois dessa deliberação. Tenho que juntar a convocatória, a ata com as deliberações do
conselho de administração e tenho que juntar procuração forense outorgada pelas duas pessoas
coletivas assinada. Quando a ação apresentada por pessoa coletiva contra um dos seus
administradores, se não houver deliberação do conselho de administração a queixa não está
validamente apresentada.

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O TRL veio dizer que só há crime de abuso de confiança e não há crime de infidelidade. Diz que
o artigo 205º consome o artigo 224º. Porquê? O artigo 224º implica apenas que se causem
prejuízos, mas não implica que quem os causou tenha tido um enriquecimento.

Aula de 13 de novembro de 2020

CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA (artigo 205º do CP)

• Ac. TRE de 18/6/2013 “III. O elemento subjectivo deste tipo de crime consiste no facto de o agente
saber que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que detém em seu poder e
mesmo assim querer apropriar-se dela, isto é, integrá-la no seu património. IV. Para que exista o
elemento apropriação ilegítima de coisa móvel, é necessário que o agente pratique actos como
se seu proprietário fosse, fazendo entrá-la no seu património, dispondo dela como coisa sua. Ou
seja, não tem qualquer propósito de a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada,
ou sabendo que não mais o poderia fazer. V. Todavia, a mera negação de restituição não significa
necessariamente que a apropriação seja ilegítima. Tem sido defendido pela doutrina que a
apropriação não é «ilegítima» quando ela não contraria as regras do direito civil. O agente pode
invocar as causas de justificação do estado de necessidade jurídico-civil (artigo 339º do CC), da
acção directa (artigo 336º do CC), do direito de retenção (artigo 754º do CC) ou da compensação
(artigo 847º do CC).”.
• Ac. TRL de 29/1/2014 “IV. Num acordo consubstanciado num contrato de provisionamento
bancário, com vista à celebração de um contrato de mútuo, em benefício de terceiros,
subordinado ao tempo que demorasse a aprovação do crédito por parte de uma instituição
bancária, contrato este que não se chegou a concretizar, a interpelação para a restituição da
quantia provisionada, e a sua não devolução atempada, constitui a violação de um direito de
crédito. V. A violação desse direito de crédito, consubstanciada na interpelação para o respectivo
pagamento, e a sua não restituição atempada, por si só, não integra o conceito de apropriação,
como elemento objectivo do tipo de ilícito de abuso de confiança.”.

Nº 1 “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não
translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.

Construção de um tipo legal de crime que começa por prever uma factualidade simples e depois
prevê uma factualidade agravada sem que haja necessidade de construir um tipo
agravado/qualificado autónomo como aconteceu com o artigo 203º e 204º.

Os nºs 4 e 5 poderiam configurar um novo artigo mas o legislador não segue essa técnica
logística e isso tem consequências ao nível do princípio da oficialidade. O nº1 do artigo 205º,
quanto ao princípio da oficialidade, configura um crime semipúblico porque nos termos do nº3
depende de queixa. E os nºs 4 e 5? De acordo com a legística (= ciência que estuda a forma de
legislar), o nº3 só se está a referir ao que está antes dele. O nº3 só se aplica ao crime de abuso
de confiança simples seja na forma consumada do nº1 ou na forma tentada do nº2. Nos nºs 4 e
5 temos crimes públicos são crimes de abuso de confiança agravada.

Qual a nota distintiva do crime de abuso de confiança relativamente ao crime de furto? No crime
de furto existe subtração e no crime de abuso de confiança não há subtração, mas sim
apropriação da coisa. Uma apropriação de coisas imóveis nunca tem lugar nos termos do artigo
205º do CP. Existe o artigo 215º que dá para a apropriação de coisa imóvel. (Artigo 205º ≠ artigo
215º).

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Qual a marca distintiva que marca a ideia de APROPRIAÇÃO? Como sabemos, a translação ou
transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato. O que se censura do ponto de
vista jurídico-criminal e, portanto, o bem jurídico protegido é a propriedade, mas vista numa
diferente perspetiva porque é vista na ideia do incumprimento do dever de fidúcia. A coisa
móvel ou animal alheios são entregues ao agente do crime a um título que não é translativo da
propriedade. Aquilo que se tutela é a circunstância de se ter entregado a alguém, que é o agente
do crime, uma coisa móvel ou animal com uma determinada finalidade, finalidade essa que não
pode nunca levar envolvida a ideia de que há uma translação da propriedade. Por exemplo, a
circunstância de se vender um automóvel com recurso a leasing. Se a pessoa deixa de liquidar a
prestação e continua a utilizar o automóvel aqui existe apropriação. O ordenamento jurídico
que sancionar a ideia de apropriação. A apropriação significa a atuação como se fosse o senhor
da coisa, o proprietário da coisa. Comete o crime abuso de confiança o individuo que pratica
uma situação destas bem como o individuo a quem entrego um cheque e ele deposita na sua
conta, bem como alguém que na sequência de contrato de arrendamento de casa mobilada se
apropria das coisas móveis.

Normalmente no crime de abuso de confiança existe um ato prévio de entrega da coisa, mas
pode não haver. Ato prévio é um ato prévio próximo da prática do crime. Mas pode ter
acontecido um ato prévio que se tenha realizado anos antes da prática do crime. Imaginemos
que confio a alguém as minhas joias de família. Passam alguns anos e a pessoa que ficou com as
joias nunca se lembra delas, mas a dada altura lembra-se e vende-as. Ou seja, o ato de entrega
pode anteceder em muito o crime. Ou até pode nem haver esse ato de entrega. Quando falamos
aqui de coisas móveis ou animais não estamos a abranger direitos de crédito. Os direitos não
são coisas. Imaginemos que X fica de entregar a Y o relógio que eu já lhe tinha pago e que X
devia entregar a Y como pagamento de uma dívida que eu tinha para com Y. X não entrega o
relógio e fica com o dinheiro que eu lhe paguei pelo relógio. Eu nunca vi o relógio e por isso não
há ato de entrega. Isto não impede que exista abuso de confiança. A ideia fundamental é a ideia
de apropriação.

Ou seja, no crime de abuso de confiança normalmente há um ato de entrega, mas não tem que
existir.

• Ac. TRC de 4/2/2009 “I. No crime de abuso de confiança protege-se o bem jurídico propriedade
alheia, no contexto de uma relação de fidúcia entre o agente e o proprietário, inscrevendo-se a
essência típica do ilícito na inversão do título de posse, o que acontece quando o agente adquire
por título não translativo da propriedade uma relação fáctica de domínio sobre a coisa para lhe
dar um certo destino mas dá-lhe outro, passando a comportar-se como seu proprietário, agindo
com animo domini.”.

Classificar este tipo legal quanto aos tipos de tipicidade:

- Quanto ao tipo objetivo

Quanto ao agente é CRIME COMUM

Quanto à conduta é um CRIME DE RESULTADO que é a apropriação (exige-se um


resultado que se traduz na inversão do título de propriedade). É um CRIME DE
EXECUÇÃO LIVRE porque a apropriação pode acontecer por qualquer forma.

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Quanto ao bem jurídico é um CRIME DE DANO (não basta colocar em risco de lesar, tem
que haver efetivamente apropriação).

Crime doloso e por isso há uma vontade por parte do agente de se apropriar da coisa.

Pune-se a tentativa, nos termos do artigo 205º, nº3 do CP.

Nos nºs 4 e 5 estamos perante crimes públicos, crimes de abuso de confiança agravada. Al. a) e
b) do nº4 remissão para o artigo 202º do CP.

Nº5 “Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou
profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8
anos.”. Este número tem uma razão de ser diferente da razão de ser do nº4. Justifica-se só no
plano da ilicitude. Se quisermos encontrar um polo aglutinador da razão de ser da punição mais
severa do nº5 tem a ver com as características do próprio agente. No nº5 já não temos um crime
comum, passamos a ter um crime específico. É específico porque o agente tem que ter
determinadas características. O polo aglutinador é que estas pessoas, por via da lei, contrato ou
ato jurídico, refletem na comunidade uma maior fidúcia, uma maior ideia de uma relação de
confiança e como tal compreende-se que a pena tenha que ser mais severa. Muitas destas
pessoas não são funcionários para o direito penal (artigo 386º do CP), mas são situações
próximas, situações em que alguém tem poder de autoridade público e por isso mesmo é que
se justifica a agravação do ponto de vista da ilicitude.

É usar-se utilizar-se a expressão alemã “Pflichtdelikt” que significa, literalmente, “delito de


dever”. O delito de dever é uma construção que tem algumas consequências ao nível da
comparticipação, mas fundamentalmente significa que há uma obrigação pessoal que impende
sobre o agente. Por exemplo, o crime de furto não é um delito de dever porque não há uma
obrigação específica sobre o agente. Aqui é um delito de dever porque em relação à pessoa a
quem é entregue uma coisa há um dever específico dessa pessoa. Por exemplo, a omissão de
auxílio é um delito de dever porque impende pessoalmente sobre aquela pessoa. Quando é um
dever que impende pessoalmente sobre alguém, não é um dever genérico e abstrato, a doutrina
alemã criou esta expressão de “delito de dever”.

Como já dissemos, na noção de coisa móvel não cabem os direitos de crédito. Os documentos
sim cabem. Há uma série de documentos que podem ser detidos de forma uti dominus. Como
vimos, não é necessário um ato prévio de entrega, o que se exige é que haja uma relação fáctica
de domínio.

Consumação do crime de abuso de confiança: consuma-se quando há inversão do título da


posse. Tem que ser demonstrado por atos objetivos.

Temos que atender sempre a outras causas de justificação de outros ramos do direito,
nomeadamente do direito de retenção. Se há direito de retenção não há abuso de confiança
porque não me estou a apropriar de nada que me tenha sido entregue.

• Ac. TRE de 21/1/2015 “I. O crime de abuso de confiança não se tem por praticado com a mera
confusão da quantia titulada por cheque no património do arguido através do respectivo depósito
em conta bancária sua, pois não pode considerar-se que tal depósito constitua necessariamente
acto concludente de apropriação, exigindo-se ainda no plano objectivo a não restituição ou

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entrega da quantia em causa conforme acordado, ou a futura disposição da mesma de forma
injustificada, a que deve acrescer o dolo correspondente.”.
• Ac. TRE de 14/7/2015 “I. A transferência da quantia correspondente ao reembolso do IRS do
assistente para a conta bancária da arguida (que a gastou em proveito próprio), devido a erro do
contabilista, que indicou na declaração respectiva o número de conta da conta bancária da
arguida em vez do número do assistente, não integra os elementos constitutivos do crime de
abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 do CP, uma vez que este tipo legal pressupõe a
apropriação de coisa alheia que veio à posse do agente com base numa relação de confiança que
se viola através da inversão do título de posse ou detenção por parte do mesmo agente. II. A
situação descrita ajusta-se, antes, à descrição típica do crime de «apropriação ilegítima em caso
de acessão ou de coisa achada», previsto no artigo 209º do CP, que inclui entre as situações aí
previstas os casos em que a coisa alheia tenha entrado na posse ou detenção do agente por efeito
de erro.”.

O crime de abuso de confiança pode ser praticado por ação ou omissão impura.

PENA→Pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias.

Crime semipúblico de tipo matricial (nº1 e 2). Crime público (nºs 4 e 5). Nº4 é um tipo agravado
em função do valor (remissão para o artigo 202º, al. a) e b) do CP). Nº5 é um tipo agravado
devido à especial relação de confiança derivada do cargo exercido ou da lei.

Concurso aparente com o artigo 224.º ou com o abuso de confiança fiscal.

Relativamente a bens de comunhão de mão comum, tem sido entendido que pode haver crime
de abuso de confiança entre cônjuges relativamente a bens comuns. Continua com a nota de
ser alheio em relação a esse indivíduo.

• Ac. TRC de 14/9/2016 “Os bens comuns do casal têm, em relação a cada um dos cônjuges, a
característica de alheios. Consequentemente, ao danificar elemento componente de um veículo
automóvel, bem integrado no património comum do casal, qualquer um dos dois cônjuges
comete o crime tipificado no artigo 212.º, n.º 1 do CP.”.
• Ac. TRP de 15/4/2019 – a apropriação tem que ser para si. Mesmo que o agente dê a coisa
garantidamente a outra pessoa, tem que haver um momento em que o agente se
apropria da coisa. Não quer dizer que não possa beneficiar um terceiro mas para haver
o crime de abuso de confiança o agente tem que ter contacto com a coisa. Se não há
contacto nenhum não há tutela penal.
• Ac. TRL de 20/03/2018. Situação em que haja um maranhado de créditos, de
compensações de créditos. Nem sempre é fácil perceber se nestes casos há um crime
de abuso de confiança- Neste acórdão interessou conseguir fazer a prova.

RESTITUIÇÃO OU REPARAÇÃO (artigo 206º do CP)

Não podemos perceber este artigo se não atendermos a um instituto que é a AE-
Wiedergutmachung. Gut significa bem/bom, machung significa fazer, wieder significa outra vez,
ou seja, faz bem outra vez. O que é fazer bem outra vez? É reparar. AE significa projeto
alternativo. Projeto alternativo de reparação.

A justiça restaurativa assume várias modalidades. Podemos dizer que esta justiça, há uma série
de autores da criminologia que dizem que a reparação pode ser:

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- Económica

- Por via de prestação de trabalho

- Reparação de natureza oral

O pensamento da reparação do bem é o pensamento que está na base do artigo 206º.

Lei nº 21/2007, de 12 de Junho (mediação penal de adultos) e LTE.

Só em relação a alguns casos do crime de furto qualificado e em relação à hipótese do nº4 do


artigo 204º é que se previu a forma mais forte desta reparação. É criticável. Estamos a admitir a
consequência mais forte que pode existir por via da reparação que é a extinção da
responsabilidade criminal, que é o que está previsto no artigo 206º, nº1 do CP relativamente a
crimes qualificados, como o artigo 204º, mas não o estamos a prever em relação ao artigo 203º.
O artigo 205º, nº4 merece a mesma crítica. Se o legislador prevê a possibilidade de haver
extinção do procedimento criminal percebe-se que não o diga em relação ao artigo 205º, nº5
porque este diz respeito aos casos mais graves que têm que ver com o incumprimento de
deveres funcionais, mas a mesma crítica pode fazer-se a prever-se aqui uma possibilidade
agravada no nº4 e não se prever a possibilidade de extinção do procedimento criminal em
relação à forma mais simples do artigo 205º que é o nº1. Ora, em relação ao nº1 do artigo 205º
admite-se a desistência de queixa.

Nº1 do artigo 206º “Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 do artigo
204º e no nº 4 do artigo 205º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do
ofendido [que não tem de ser assistente] e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da
sentença da 1ª instância [depósito na secretaria judicial], desde que tenha havido restituição da coisa
furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados.”.

“…até à publicação da sentença da 1ª instância…” isto já deu origem a várias dúvidas. Havia
quem entendesse que era a data da prolação da decisão e havia quem entendesse a
data do depósito da decisão. A resposta correta é a data de depósito. É a partir do
depósito e não da prolação, nos termos do artigo 411º do CPP, que se conta os prazos
de recurso.

Reparação integral é por mero equivalente. A restituição da coisa é a reintegração in natura.

Nº2 do artigo 206º “Quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou tiver lugar
a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de
julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.” . – Atenuação especial obrigatória.

Nº3 do artigo 206º “Se a restituição ou a reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente
atenuada.”. – Atenuação especial facultativa.

Em nenhum deles se exige a concordância do ofendido e/ou do arguido.

→Jurisprudência relevante

• Ac. TRC de 27/6/2012 “1. Não ocorre a restituição da coisa apropriada, para os efeitos do art.
206º, nº 2 do CP, quando o arguido, depois de furtar um veículo automóvel e de o passar a
conduzir na via pública, é interceptado pela GNR e, perguntado pelos militares desta força sobre
a identidade do dono da viatura e a razão da existência da ligação directa, diz que a havia furtado,

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vindo a viatura, em consequência, a ser rebocada para as instalações da autoridade, ficando sob
a guarda desta. 2. A restituição da coisa, que pressupõe a sua entrega ao ofendido reunindo o
conjunto essencial das suas qualidades e aptidões, deve ser feita por iniciativa do agente do
crime, pois só assim será possível alcançar o efeito ressocializador que fundamenta a atenuação
especial da pena.“.
• Ac. TRE de 14/2/2012 “1. A restituição ou a reparação previstas no art. 206º do CP pressupõem
uma acção do agente. 2. Aquilo que justifica a atenuação especial da pena é precisamente a
fragilização das necessidades preventivas relativamente ao autor da infracção que procede à
reposição integral da coisa no estado em que se encontrava antes do crime. 3. Provando-se que
o arguido foi detido «na sequência dos factos» e que «os objectos foram recuperados pelo
queixoso», e tendo já o arguido beneficiado indevidamente da atenuação especial de pena, não
pode a recuperação da coisa subtraída ser (re)valorada como atenuante geral, sob pena de
violação da proibição da dupla valoração, extensível a todas as operações de determinação da
pena. (…)”.
• Ac. do STJ de 5/6/2006 “I - Numa situação em que, tendo sido formulado pela demandante contra
o arguido um pic no montante de € 287.007, na data designada para a segunda sessão da
audiência de julgamento foi junta aos autos uma transacção sobre o pedido civil, no qual o
demandado se comprometeu a pagar à demandante a referida quantia no prazo de 240 meses,
acordo que foi homologado nessa audiência, não se pode dizer que tenha havido reparação,
parcial ou total, nem a suposta reparação que resultaria da transacção teve lugar até ao início
da audiência de julgamento. II - Com efeito, o arguido limitou-se a reconhecer o montante da
dívida peticionada e a assumir a obrigação de a pagar dentro de um certo prazo, nada tendo
entregado para reparar os danos; para além disso, o montante da transacção representa uma
pequena parte do total dos prejuízos causados com a prática do crime, não se podendo ficcionar
que na parte em que a demandante foi ressarcida pela seguradora não houve danos; e, por fim,
a reparação só seria eficaz para o efeito pretendido se ocorresse até ao início da audiência de
julgamento: é que só assim se verificaria o carácter de voluntariedade e de espontaneidade que
domina a reparação até esse momento. III - Perante tais circunstâncias, não era possível atenuar
especialmente a pena com fundamento no art. 206º do CP.”.
• Ac. TRP de 8/3/2017 “Não integra o conceito de reparação integral para os fins do art. 206º, 1
CP, nomeadamente extinção do procedimento criminal, a transacção entre as partes sobre o
pedido civil deduzido no processo penal, tendo em vista o pagamento em prestações da
indemnização acordada.”. A reparação e restituição está na parte criminal e não na parte
civil.

ACUSAÇÃO PARTICULAR (artigo 207º do CP)

Nº1 “No caso do artigo 203º e do nº 1 do artigo 205º, o procedimento criminal depende de acusação
particular se:

a) O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao
2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges; ou
b) A coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for de valor diminuto e destinada a utilização
imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa
mencionada na alínea a).”.

O nº1 é uma que tem uma incidência processual penal. Transforma o furto simples do artigo
203º e o nº1 do artigo 205º em crimes particulares tendo em conta dois critérios:

- O critério da al. b) diz respeito ao chamado furto formigueiro, aquele furto que está
balizado na lei como de valor diminuto (inferior a 102 euros). É um furto que tem um

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valor pequeno e que se destina à satisfação de uma necessidade essencial do agente ou
dos seus próprios. Na verdade, é uma situação em que não estão preenchidos os tipos
justificadores todos. Parece uma questão de estado de necessidade mas por algum
motivo faltam os requisitos do artigo 34º ou artigo 35º e mesmo assim o legislador não
foi insensível.

- Quanto à al. a) estamos a falar de pessoas ligadas entre si por laços de parentesco ou
de afinidade ou por conjugalidade ou relações análogas às dos cônjuges. O legislador
quis que fossem crimes de natureza particular tendo em contra a proteção que o penal
faz relativamente aos laços familiares. A ideia de que não é razoável que o DP exija a
alguém que se ponha no sentido de que possa incriminar um pai ou mãe, filho, etc. O
legislador é sensível às relações familiares. É a ideia de que o DP não pode exigir às
pessoas mais do que aquilo que elas podem dar.

Sendo um crime de natureza particular vai exigir muito mais ao ofendido quer do ponto de vista
patrimonial não existindo dispensa do pagamento de taxa de justiça, exige a constituição de
mandatário bem como mais reflexão.

Nº2 “No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta
ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à
subtracção de coisas móveis ou animais expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação
imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.”.

Há vários ordenamentos jurídicos que respondem à questão dos furtos em massa. Temos
litigantes de massa para o direito penal assim como para o direito civil.

Aquilo que for de valor diminuto e for retirado de uma superfície comercial não tem tutela penal.
Aqui tenta-se encontrar o equilíbrio entre não negar o acesso à proteção penal aos litigantes de
massa mas por outro lado também não entupir os tribunais e encontrar uma solução que seja
proporcional.

Em 2013, o legislador alterou a natureza do crime tornando-o crime de natureza particular. Os


tribunais fizeram passar a ideia, dado que recebem taxas de justiça, de que iriam tomar em
atenção esses casos do ponto de vista penal. Desde que se preencham um conjunto de
requisitos.

Exemplo: a polícia foi chamada a um hipermercado porque um senhor tinha pegado


numa garrafa de vinho e nuns pães e passou a linha da caixa de pagamento mas o
segurança agarrou-o. A advogada diz que é um crime na forma consumada. No entanto,
pode ser um caso que levanta dúvidas.

O crime é de natureza particular quer o crime esteja consumado ou não.

A advogada diz que terá que ser destruído. Esta recuperação tem que implicar que as
coisas furtadas têm que continuar a ter as virtualidades para servir a fim a que se
destinavam. Se o indivíduo pega o vinho ele continua intacto. Eles ao destruírem é uma
manobra para não caírem neste número.

Artigo 281º/9 do CPP também foi alterado.

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→Jurisprudência relevante

• Ac. TRP de 19/2/2014 “I. Às normas processuais materiais é aplicável o princípio constitucional
da retroactividade da lei penal mais favorável, e da irretroactividade desfavorável, não valendo,
quanto a elas, o princípio tempus regit actum, da aplicação imediata da lei vigente à data da
prática dos actos, estabelecido no art. 5.º, n.º 1 do CPP, cujo âmbito de aplicação se restringe às
leis processuais de natureza meramente formal. II. O actual n.º 2 do artigo 207º do CP, ao
transformar de semi-públicos, em particulares alguns tipos legais, é norma processual material.
III. Porque a nova lei se apresenta como mais favorável ao arguido tem aplicação retroactiva. IV.
No âmbito da lei nova, o MP carece de legitimidade para prosseguir com a acção penal pois que
a ofendida, que havia apresentado queixa, não se constituiu assistente e nem deduziu acusação
particular. V. Apesar da alteração legislativa não pode, sem mais, declarar-se a ilegitimidade do
MP para deduzir a acusação e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal. VI. Tal
solução agrava, de forma insuportável, a posição da ofendida que, também na lei nova, continua
a ser a titular do direito criminalmente protegido e, não obstante, não teve sequer oportunidade
para cumprir os requisitos de que, aquela mesma lei, passou a fazer depender o procedimento
criminal. Deverá, por isso, a ofendida ser advertida da obrigatoriedade de se constituir assistente
e dos procedimentos a observar, nos termos do disposto no n.º 4 do art. 246.º do CPP. VIII. O
prazo peremptório para a constituição como assistente, conta-se a partir daquela advertência.”.
• Ac. TRC de 3/6/2014 “1.O art. 207.º, n.º 1 do CP apenas se reporta aos tipos aí referidos, 203.º e
205.º, n.º 1, ou seja, furto (não qualificado) e abuso de confiança (não agravado). Só nesses casos
o procedimento criminal depende de acusação particular, nomeadamente, quando se verificar a
relação de parentesco aí prevista.”.
• Ac. TRP de 22/2/2017 “A «recuperação imediata» dos bens furtados prevista no art. 207.º, 2 CP
e necessária para preencher aquele requisito, exige que os mesmos se encontrem no seu estado
original, o que não acontece se os mesmos se encontram parcialmente danificados e impróprios
para venda.”.

Aula de 20 de novembro de 2020

CRIME DE ROUBO (artigo 210º do CP)

Nº1 “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger
a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de
ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de
resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. ”.

O crime de roubo é um crime de resultado parcial ou cortado porque não há uma total sincronia
entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo. O crime consuma-se com a verificação dos elementos
comuns do tipo subjetivo (o elemento intelectual e o elemento volitivo), mas este crime exige
também elementos subjetivos especiais, ou seja, a ilegítima intenção de apropriação para si ou
para terceiro. Aqui o núcleo da ilicitude do roubo é a subtração tal como tinha acontecido já no
furto. Mas esta subtração é uma subtração que ocorre de uma forma específica porque tem que
ser de um determinado modo: tem que ser por meio de violência contra uma pessoa (a violência
não pode ser contra coisas, mas apenas contra coisas). Também pode ser ameça com perigo
iminente para a vida ou integridade física. Outra modalidade típica do crime de roubo é colocar
alguém na impossibilidade de resistir. Esta última modalidade típica tem uma similitude com o
crime de violação. O crime de violação pode ser colocar alguém na possibilidade de resistir à
prática do crime.

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Por outro lado, em relação a este crime assinalar o facto de ter por objeto de ação uma coisa
móvel ou animal alheio. E se disser respeito a bens imóveis não há responsabilidade criminal?
Sim, o artigo 215º que prevê a usurpação de coisa imóvel. A ideia de usurpação é de alterar a
situação de posse anterior utilizando violência ou ameaça grave.

Nº2 “A pena é a de prisão de 3 a 15 anos se:

a) Qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por
negligência, ofensa à integridade física grave; ou
b) Se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.ºs 1 e 2 do
artigo 204.º, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.”.

No nº2 temos o crime agravado e não qualificado. Punição considerável (máximo de 15 anos).
Há uma diferença: quando se diz “quando produzir perigo para a vida da vítima”, esta produção
de perigo para a vida da vítima tem que ser produção de perigo dolosa. Só por isso é que este
artigo não é redundante. Porquê? Porque se virmos o crime de ofensa à integridade física grave
do artigo 144º, uma das hipóteses é o perigo para a vida (al. d)). Porque é que há esta
autonomização do perigo para a vida se há o crime de ofensa à integridade física grave? É que o
perigo para a vida na sequência de um crime de roubo é um crime que é protegido de duas
formas: é protegido de forma dolosa (nº2, al. a) do artigo 210º do CP), e o crime para a vida que
faz parte do artigo 144º, al. d) do CP e neste caso será a título de negligência. O artigo 144º é
um crime doloso. Este artigo 144º tem que ser conciliado com o artigo 210º, nº2, al. a) do CP, é
um artigo que suscita algumas questões, nomeadamente suscita-se a questão de saber o porquê
de o legislador ter utilizado o adjetivo “importante”.

Uma das hipóteses de ofensa à integridade física grave é quando se priva o indivíduo de um
importante órgão ou membro. No entanto, não são todos os órgãos e membros importantes?

Na al. b) do artigo 144º temos a hipótese em que se tira ou se lhe afeta à vítima, de maneira
grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais de procriação ou de fruição sexual,
ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem.

Atenção à questão do DIREITO PENAL SIMBÓLICO: cada vez vão surgindo mais tipos legais de
crime que na verdade não têm muita razão de ser do ponto de vista jurídico-penal. Por exemplo,
a introdução da neocriminalização do artigo 144º-A, referente à mutilação genital feminina, na
sequência da Conferência de Estrasburgo, em 2015. Dizia-se que faltava esta norma. Mas não é
totalmente verdade porque nunca faltou norma a nenhum tribunal para punir a mutilação
genital feminina, na medida em que podemos admitir que cabe no artigo 144º, al. b) do CP. É
que a pena do artigo 144º-A nem sequer é mais pesada. A única coisa que, no entender do prof.,
tem esta norma de útil é a punição autónoma dos atos preparatórios que consta do artigo 144º-
A, nº2 do CP. Sabemos que, em regra, os atos preparatórios não são puníveis (artigo 21º do CP)
e, neste caso, são puníveis. No entanto, a prova dos atos preparatórios neste crime é difícil.
Portanto, é preciso ter algum cuidado com este direito penal simbólico isto porque o direito
penal não deve servir determinadas ideologias.

Outra forma de agravar o crime de roubo é por verificação, singular ou cumulativa, de algum
dos requisitos do artigo 204º, nºs 1 e 2 relativo à burla qualificada, sendo também aplicável o
artigo 204º, nº4 do CP. Pode haver um roubo com introdução ilegítima na habitação de outra

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pessoa. Pode haver um roubo em que o valor seja elevado ou consideravelmente elevado. – Isto
faz com que o roubo seja agravado, nos termos do artigo 210º, nº2, al. b) do CP.

Ac. TRP de 5/6/2013 “(…) III. Comete um crime de roubo (agravado) do art. 210.º, n.º 2, al. b), ex vi do
art. 204.º, n.º 2, al. f), ambos do CP, o agente que encosta um objecto cortante, tipo canivete, ao pescoço
da ofendida e exerce pressão enquanto lhe arranca os brincos, uma volta e uma medalha, provocando-lhe
o receio de ser atingida na sua integridade física ou até na sua vida .”.

Nº3 “Se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. ”.
Neste nº3 temos o crime agravado pelo evento. O que é um crime agravado pelo evento? Tese
de doutoramento de Helena Moniz. Nos crimes gravados pelo evento temos um crime
fundamenta que é aquele que é desejado pelo agente. Há um crime doloso fundamental e em
relação a este estão preenchidos todos os elementos do dolo. Mas nem sempre o agente domina
todas as consequências práticas/fáticas da sua conduta. Quando amos inicio a um processo
causal não sabemos muito bem onde é que ele pode parar. Há situações em que se consegue
fazer prova que o dolo do agente ia só até determinado limite. Neste caso não existia dolo em
relação à morte da outra pessoa. O dolo do agente era o dolo da prática do crime de roubo.
Simplesmente o processo causal saiu dos trilhos, foi uma situação que não era controlada pelo
agente que provocou o evento que neste caso é um crime por sio só que é causar a morte de
outra pessoa. Ora, aqui está a distinção entre um crime agravado pelo evento e um crime
preterintencional ou preterdoloso. É que nos crimes preterintencionais ou preterdolosos o
evento agravante tem que ser necessariamente sempre um crime. Nos crimes agravados pelo
evento o evento agravante não tem que ser necessariamente um crime. Por exemplo, no crime
de violação, a gravidez não é um crime por si só, mas pode ser um evento agravante da violação.
O legislador tinha duas vias: ou punia o crime doloso fundamental + o evento agravante – podia
ter escolhido puni-los nos termos concurso de crimes. Mas o problema é que só funcionava se
o evento fosse um crime. Aqui era porque se se provasse que o dolo do agente foi no sentido
do roubo mas que em virtude dessa conduta empurrou o agente ele cai e morre tínhamos aqui
um concurso. Na verdade o que temos é uma punição de um concurso de crimes que o legislador
modificou e em que estabeleceu uma moldura penal abstrata punível de 8 a 16 anos de prisão.
Se é mais ou menos grave depende do caso concreto. O legislador quis transformar isto num
único crime e assim ultrapassa a questão de o evento não ser em si mesmo um crime.

Qual a razão de ser da punição do evento agravante?

O artigo 18º diz que o evento agravante tem que ser imputado ao agente pelo menos a título de
negligência. Pode ser imputável a título de dolo. Se se puder imputar o evento agravante a título
de dolo então não posso estar perante um crime agravado pelo evento. Mas sim perante um
concurso efetivo de crimes. Este está pensado para as situações em que o evento acontece por
via negligente. O artigo 18º é enganador porque diz “pelo menos” o que leva a pensar que
também pode ser por dolo, mas não pode, tem que ser por negligência. Neste caso o evento
que é a morte ocorre por negligência. O agente não quer a morte do indivíduio.

O crime de roubo é um crime público, crime pluriofensivo, crime comum, crime de resultado,
crime de execução vinculada, crime de dano. É um crime pluriofensivo na medida em que atinge
mais do que um bem jurídico, isto é, protege-se a propriedade e a liberdade pessoal (a vida, a
integridade física, coação). Crime comum na medida em que pode ser cometido por qualquer
pessoa, não exigindo uma qualificação especial. A subtração não é praticada por qualquer forma,

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tem que se provar o modus operandi, ou seja, é um crime de execução vinculada. Crime de dano.
Crime de resultado parcial ou cortado.

Quem pode ser o sujeito passivo, ou seja, quem pode sofrer a prática do crime é o proprietário,
detentor ou terceiro que tente evitar a subtração, ou seja, qualquer pessoa que exerça algum
direito real sobre a coisa.

O crime ameaçado pode visar terceiro.

Exemplo: eu vejo alguém a ser-lhe roubado um computador e vou em seu auxílio e o


ladrão exerce violência sobre mim. A mim não me foi subtraído nada. Em relação a mim
não podemos dizer que tenha sido cometido um crime de roubo mas sim um crime de
ofensa à integridade física.

Mas pode acontecer que em relação a um terceiro que intervém para auxiliar alguém e
para ajudar pega na mala do computador e o ladrão dá um morro e pega no
computador. Mesmo neste caso a mim nada foi subtraído porque não era a proprietária
da coisa. Portanto, quando se diz que se pode abranger também um terceiro que tente
evitar a subtração para se poder falar de crime de roubo é preciso que o terceiro seja
proprietário. Neste caso em que eu pego no computador, durante breves momentos
pode entender-se que há aqui o exercício de uma posse, mesmo que uma posse
precária. Mas a posse exige corpus e animus, o que não se verifica. Portanto, esta
situação de um terceiro poder também ser sujeito passivo do crime de roubo é vista
pelo prof. com alguma dificuldade, mas tem-se admitido. Ao prof. parece que haverá
concurso de crimes: crime de roubo em relação ao individuo que exerce algum tipo de
direito real em relação à coisa e crime de ofensas à integridade física praticado contra
quem tentou auxiliar.

Quando a lei fala na violência em relação aos bens não tem que ser uma violência em relação
ao sujeito passivo. Eu posso impelir à subtração dizendo que se isso não acontecer mato o filho
do sujeito passivo, ou seja, pode ser um terceiro ameaçado.

A violência é contra pessoa e não em relação a objetos. “Roubo por esticão”, se é por esticão
claramente que é roubo.

• Ac. TRG de 31/3/2014 “I. Para o preenchimento do tipo de crime de roubo, constitui violência
todo o uso de força física necessária e adequada para se efectivar a subtracção/apropriação. A
lei não exige o emprego de violência de certa intensidade. II. Comete um crime de roubo e não de
furto o arguido que aborda a vítima por trás e lhe tapa os olhos, enquanto agarra e tira o
telemóvel que ela tem na mão.”.
• Ac. TRP de 3/4/2013 “I. O crime de roubo exige que a apropriação de coisa alheia seja feita com
recurso à violência. II. Violência, para este efeito, consiste no desenvolvimento de força física para
vencer a resistência (real ou suposta) da vítima. III. Comete o crime de roubo aquele que,
aproximando-se por trás, arranca das mãos do ofendido o telemóvel que, na altura, ele utiliza na
via pública, apoderando-se dele.”.
• Ac. STJ de 20/2/2013 “I. A subtracção de uma chave de um veículo automóvel, que é retirada da
respectiva ignição, aproveitando a distracção do taxista, na altura em que este emitia a factura
do transporte efectuado, sem que tenha havido qualquer violência, ameaça relevante ou
colocação da vítima na impossibilidade de resistir, não integra o crime de roubo.”.

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• Ac. STJ de 12/7/2012 “II. Para que ocorra o crime de roubo tem de existir um nexo de imputação
entre os meios utilizados para provocar um efectivo constrangimento e a subsequente
subtracção. II. Tendo o ofendido apenas entregue o dinheiro com o receio de uma reacção do
agente, que antes lhe tinha exibido um canivete e lhe dito que «lhe fazia a folha» caso este não
falasse com um outro indivíduo para este lhe dar certa quantia de dinheiro, sem que tenha havido
a permanência da ameaça ou qualquer tipo de violência prévia, não ocorre aquele nexo de
imputação entre a existência de um efectivo constrangimento e aquela entrega de dinheiro.”.
• Ac. TRL de 12/11/2008 “II. A violência, no crime de roubo, é a violência física sobre uma pessoa.
III. Nesse mesmo crime, a colocação na impossibilidade de resistir nada tem a ver com a surpresa
da actuação do agente. A impossibilidade de resistir é uma forma de violência imprópria que se
verifica quando o constrangimento da vontade é obtido através de meios diferentes da força
física sobre a própria pessoa, o que acontece, por exemplo, quando são utilizadas substâncias
psico-activas ou a hipnose.”.
• Ac. TRL de 13/4/2011 “II. Existem diversas espécies de violência: - Violência própria, quando se
utiliza a força física; - Violência imprópria, quando o constrangimento da vontade é feito por
outros meios, como o uso de substâncias psicoactivas ou o hipnotismo; - Violência directa, em
que a violência incide no corpo da pessoa; - Violência indirecta, em que a violência incide sobre
coisas, só afectando mediatamente as pessoas. III. A violência incluída sob tal conceito no crime
de roubo é a violência própria e directa que supõe uma actuação física sobre a vítima. IV. A
violência que se exerça sobre terceiro é relevante na medida em que constitua uma ameaça
implícita sobre a vítima. V. A impossibilidade de resistir consubstancia uma forma de violência
imprópria. Nada tem a ver com a surpresa do ataque. VI. A ameaça tem de ter por efeito intimidar
a vítima de forma a conseguir viciar a sua liberdade de determinação. A intimidação é o efeito
psicológico causado pela utilização da ameaça. VII. A ameaça pode ter lugar por palavras, por
gestos, por actos concludentes ou por qualquer outra forma de procedimento que manifeste à
vítima a intenção de ameaçar. VIII. É relevante a ameaça com meios fingidos, como a que é
realizada, por exemplo, com pistolas ou outras armas falsas ou através da simulação da
existência de uma arma no bolso.”.

CONCURSO

→Com o crime de sequestro

Há um concurso efetivo ou um concurso meramente aparente entre crime de roubo e o crime


de sequestro? A jurisprudência é unânime e faz a distinção. Se é concurso real ou concurso
aparente depende das circunstâncias concretas. Isto é, se restringimos a liberdade pelo tempo
necessário para consumar o crime de roubo então é um concurso meramente aparente. Se, pelo
contrário, nós até já tínhamos batido e ficado com as coisas e para o assustar o indivíduo,
andamos pela cidade e só o deixamos no final do dia então o crime de roubo já estava
consumado e então há concurso efetivo entre os crimes. Ou seja, só há concurso aparente se o
mesmo se prolongar pelo tempo essencial ao roubo; para além dele há acumulação delitual.

• Ac. STJ de 29/4/2014 “(…) II - A jurisprudência do STJ tem considerado que o sequestro, quando
existe, integra o roubo, mas, nas situações em que as restrições à liberdade se prolongam para
além do razoável, admite-se a punição do agente em concurso real de infracções. III - Tem-se
entendido que a violência empregue na subtracção deve ser adequada e proporcionada à
obtenção do resultado «subtracção». Se ela for excessiva, o agente cometerá, para além do
roubo, em acumulação com este, o crime correspondente ao enquadramento penal do excesso
da violência utilizada.”.

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• Ac. TRC de 11/3/2009 “(…) V. O crime de sequestro é um crime de execução permanente e não
vinculada, em que se tutela o bem jurídico liberdade de locomoção, sendo a privação da liberdade
e o constrangimento daí resultante uma das possibilidades de execução do crime de roubo.
Quando a subtracção ou a entrega por constrangimento de coisa móvel é precedida ou
contemporânea de privação da liberdade ambulatória, o critério reconhecido pela doutrina e pela
jurisprudência para discernir entre as situações de concurso real e de concurso aparente passa
pela ultrapassagem, ou não, da medida naturalmente associada à prática do crime de roubo.
Para tanto, a perspectiva que nos deve nortear encontra-se na vontade que, em concreto, animou
o agente do crime, i.e. no desígnio criminoso.”.

Quanto à violência, se esta for desadequada ao projeto criminoso, existe concurso efetivo.

→Com o crime de detenção de arma proibida

Quanto à detenção de arma proibida tem entendido que há um concurso efetivo. Se o crime de
roubo for em relação a várias pessoas é um concurso efetivo.

• Ac. TRP de 11/9/2013 “O crime de roubo agravado p. e p. pelo art. 210.º, n.º 2, al. b), por
referência ao art. 204.º, n.º 2, al. f), ambos os preceitos do CP, está em concurso efectivo com o
crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos arts.
2.º, n.º 1, alíneas m) e av), 3.º, n.º 2, alínea e), 4.º, n.º 1, 97.º, n.º 1, 2.º e 3.º, n.º 2, alínea g), 11.º,
2 e 6, todos da Lei 5/2006, de 23/2. (RJAM).”.
• Ac. TRP de 24/10/2012 “O número de crimes de roubo efectivamente praticados determina-se
em função do número de pessoas, detentoras de um interesse legítimo em opor-se ao acto de
subtracção, sobre quem foi exercida acção violenta, intimidatória ou constrangedora como meio
para atingir o crime-fim.”.
• Ac. do STJ de 14/12/2006 “VII - Resultando dos factos provados, naquele dia 6 de Fevereiro de
2006, (…) o arguido fazendo-se transportar no motociclo identificado, dirigiu-se à farmácia com
o intuito de se apropriar das quantias em dinheiro que se encontrassem na posse das
funcionárias, mesmo que para o efeito tivesse de as atemorizar, molestar no seu corpo ou na sua
saúde, ou até disparar sobre elas, se necessário; para tanto, muniu-se da pistola identificada, e,
uma vez no interior da farmácia, aproximou-se da funcionária CC, apontou-lhe a pistola e
ordenou-lhe, em tom grave e sério, que lhe entregasse o dinheiro que estava nas caixas
registadoras, junto ao balcão de atendimento, o arguido, mesmo antes de consumar o crime de
roubo, transportou consigo, ao menos enquanto se deslocou no motociclo, a arma ilegal, e assim
criou perigo do seu uso, portanto, pelo menos, desde o local onde a guardava até ao da
consumação do roubo. VIII - Não é assim correcta a afirmação do acórdão recorrido segundo a
qual não resulta que o arguido tenha detido a arma em outras circunstâncias que não as cingidas
à prática do roubo, e, assim, a punição do roubo não abarca esta ofensa autónoma do bem
jurídico subjacente à incriminação do uso de arma ilegal, pelo que não é legítimo, no caso, falar
em consunção ou exclusão de aplicação desta incriminação, antes havendo concurso real de
infracções.”.

→Crime de extorsão

A extorsão e roubo dizemos que estão numa relação de exclusão. Pela própria natureza que as
normas estão construídas não é possível aplicar-se ambas as normas: ou se aplica a extorsão ou
se aplica o roubo. Basta ler o artigo 223º para perceber isso. Ao contrário do roubo, na extorsão
não há uma subtração. A extorsão tutela o património em geral; intenção de apropriação ou de
enriquecimento ilegítimo; ameaça na extorsão é mais abrangente.

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→Concurso aparente com

- Ofensa à integridade física (consumada ou tentada)

- Coação (artigo 154º)

- Ameaça (artigo 153º)

- Homicídio negligente (na hipótese de roubo agravado pelo resultado morte) – artigo
137º.

É possível a punição do crime continuado de roubo? O crime de roubo tem uma nota de
pessoalidade e como tal não se pode aplicar a forma continuada ao crime de roubo. (Atenção
que quando temos várias vítimas não podemos falar de crime continuado, é sempre concurso
de crimes).

• Ac. TRE de 19/5/2015 “(…) 3 - O crime de roubo visa proteger um bem jurídico plúrimo: o direito
de propriedade e de detenção de coisas móveis, por um lado, e, embora como meio de lesão dos
primeiros, também a liberdade individual de decisão e acção, a integridade física e a vida. 4 -
Assim, nos termos do disposto no artigo 30º, nº 3 do CP, por se tratar da lesão de um bem jurídico
pessoal, afastada resulta a possibilidade de a conduta do arguido ser subsumível à figura jurídica
do crime continuado.”.
• Ac. TRE de 18/2/2012.

Não é unânime por causa do advérbio de modo “eminentemente” que consta do artigo 30º, nº3
do CP. Há jurisprudência que diz o contrário desta no sentido em que diz que o crime de roubo
tem uma nota de pessoalidade mas ele não é eminentemente pessoal. Ou seja, o que é central
no crime de roubo é o facto de estar em causa um crime de natureza pessoal ou um bem jurídico
de natureza patrimonial? Há jurisprudência que diz que o que continua a ser mais importante é
a parte patrimonial e que por isso pode haver aplicação do crime continuado.

VIOLÊNCIA DEPOIS DA SUBTRAÇÃO (artigo 211º do CP)

Artigo 211º do CP “As penas previstas no artigo anterior são, conforme os casos, aplicáveis a quem
utilizar os meios previstos no mesmo artigo para, quando encontrado em flagrante delito de furto,
conservar ou não restituir as coisas subtraídas.”.

Este é um crime que diz respeito apenas ao crime de roubo. Este artigo as penas são do anterior,
mas o artigo aplica-se a uma situação de furto simples ou qualificado. Norma autónoma que
serve para agravar apenas os casos do crime de furto. Serve para agravar quando o agente for
encontrado em flagrante delito (artigos 255º e seg. do CPP) e o indivíduo reage através de uma
das formas do artigo 210º para tentar conservar ou não restituir as coisas subtraídas. Portanto,
aqui o que está em causa é de alguma maneira garantir que quando há um contacto de uma
pessoa no sentido da detenção em flagrante delito (estamos a falar da detenção por órgão de
polícia criminal mas também de detenção por qualquer cidadão), o objetivo do legislador é
agravar as hipóteses em que há este encontro do agente de um crime de furto com uma pessoa
que o detém e em relação a essa pessoa o agente do crime de furto usa de violência ou de
ameaça violência. O núcleo fundamental deste artigo 211º é uma ideia pessoal, de proteção de
um bem jurídico pessoal e não de um bem jurídico de natureza patrimonial. Ou se quisermos
são os dois que estão em causa: há o furto e depois há a violência em relação à pessoa que

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detém em flagrante delito. Nunca este artigo é pensado para a detenção fora do flagrante delito
porque o legislador terá partido do princípio que na detenção fora do flagrante delito há um
espaço temporal de maior reflexão do que aquela que existe na detenção em flagrante delito.
Na detenção em flagrante delito é mais habitual que possa haver o exercício desta violência ou
desta ameaça de violência.

Tecnicamente é um ato posterior punível. Não é crime agravado pelo evento. Não se trata de
um crime doloso fundamental + resultado, mas sim de uma punição por um tipo legal de crime
autónomo. Aqui é uma punição do tipo legal de crime autónomo em que do ponto de vista da
técnica legislativa nós não temos indicação da moldura penal abstrata nem precisamos porque
há uma remissão para o artigo 210º.

• Ac. TRC de 21/6/2017 “III – (…) no tipo de crime de violência após a subtracção estão em causa
os valores da propriedade e da integridade física de quem é desapossado de determinado objecto.
IV – Mesmo quando a arma constitui o objecto da subtracção, existe concurso efectivo entre os
dois referidos ilícitos penais (no caso versado nos autos, o crime de violência após a subtracção
consumiu o crime de furto da arma de fogo).”.
• Ac. TRP de 7/2/2018 “I – O momento de subtracção é aquele em que a coisa entra no domínio de
facto do autor da infracção, de forma estável, quando a coisa sai do domínio do seu fruidor. II –
O momento que marca essa estabilidade nos espaços comerciais é o lugar do pagamento nas
respectivas caixas. III – Se o arguido quis conservar os bens furtados em momento posterior à
subtracção, quando já se aprestava para sair porta fora depois de passar as caixas registadoras
e uma vez interpelado reagiu de forma a conservar os bens em seu poder, comete o crime p. e p.
pelo art.º 211 CP”.

CRIME DE BURLA (artigo 217º do CP)

A burla é um crime que se refere não à propriedade, mas sim ao património. Crime que na
prática acontece com regularidade.

Nº1 “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou
engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem,
ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de
multa.”.

Este crime tem uma série de características:

- Quanto ao agente é um crime comum (“Quem”).

- Quanto à conduta

- É um crime de resultado ou material (“exigência de que se cause um prejuízo


patrimonial; há um resultado externo temporalmente distinto da conduta do
agente”);

- Crime de execução vinculada.

- Quanto ao bem jurídico é um crime de dano (tem que haver prejuízo).

- Crime de resultado parcial ou cortado. Basta o empobrecimento da vítima. Mas para a


condenação do agente tem que se provar a intenção. A consumação do delito não
depende da efetiva existência de um enriquecimento do agente, embora o tipo

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subjetivo exija que o agente atue com a intenção de o obter; basta a existência de um
empobrecimento do ofendido.

- Crime com participação da vítima. Aqui não há uma subtração. A vítima entrega
voluntariamente ao sujeito que pratica o crime ou faz a disposição patrimonial ao agente
do crime. Faz porque está numa situação de erro que pode ser um erro preexistente ou
pode ser erro que foi criado pelo agente. A lei parece apontar numa primeira abordagem
que o agente tem de ter criado ele mesmo o erro e se ele se limita a aproveitar um erro
preexistente de forma literal parece que o agente não provocou o crime. Se ele se
aproveitou de um erro que ele não provocou parece que falta o modus operandi, mas
vamos ver que não é exatamente assim quando discutirmos se este crime pode ser
praticado por omissão impura.

- Este crime de burla é um crime que para além de ser com participação da vítima é um
crime em que há um duplo nexo de imputação objetiva porque tem que se alegar e
provar que houve uma conduta do agente burlão que praticou o erro ou se aproveitou
do erro ou que aprofundou o erro, e o segundo nexo de imputação objetiva é que tem
que se alegar e provar que foi em virtude desse erro que a vítima fez aquela disposição
patrimonial. Ou seja, duplo nexo causal/imputação objetiva entre: a conduta do agente
e o erro; e o erro e a disposição patrimonial.

→Ac. TRP de 11/12/2013 “I. Para que se esteja perante um crime de burla, do art. 217º
do CP, não basta o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele
consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De
outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro:
requer-se que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, de actos de que
decorram prejuízos patrimoniais. II. A consumação do crime passa, assim, por um duplo
nexo de imputação objetiva: i) entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo
burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio); e ii)
entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo.”.

Punição é pena de multa ou pena de prisão até três anos. Crime de natureza semipúblico na
medida em que depende de queixa. Quanto à restituição e à reparação aplica-se os artigos 206º
e 207º do CP. O artigo 207º, nº 2 não se pode aplicar à burla porque esse é para o furto de coisas
móveis que estejam expostas em estabelecimento comercial.

→JURISPRUDÊNCIA sobre o momento da CONSUMAÇÃO

• Ac. TRL de 3/9/2013 “I. O momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado
abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem
disponibilidade sobre esse património II. Assim, o crime de burla ficou consumado com a imediata
transferência da quantia para outra conta de qualquer agência, em qualquer localidade, e
bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima.”.
• Ac. TRE de 20/1/2015 “I. Exigindo-se, para a consumação do crime de burla, o efectivo prejuízo
patrimonial do burlado ou de terceiro, o mesmo não acontece com o enriquecimento ilegítimo,
que se basta com a intenção do agente em o obter, como, aliás, decorre da redacção do art. 217º
do CP. II. Ao nível objectivo, basta, pois, que se observe o empobrecimento (dano) da vítima, dado
se configurar como um crime de resultado parcial ou cortado, pela descontinuidade ou falta de
congruência entre os correspondentes tipos (subjectivo e objectivo).”.

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→Modalidades do crime de burla

- Palavras ou declarações expressas

- Atos concludentes: situação de o agente não só poder criar o erro como aprofundá-lo.
Se pensarmos no caso da burla do artigo 220º do CP aí é uma burla por atos
concludentes porque vou pedindo comida sabendo que não tenho dinheiro para pagar,
ou seja, estou a criar uma falsa convicção no proprietário do restaurante. O mesmo caso
quando utilizo serviços de self-service e não procedo ao pagamento.

- Omissão: o agente não provoca o erro do ofendido, limitando-se a aproveitar-se desse


estado prévio. O agente não pratica qualquer ato positivo, apenas aproveita o erro em
que o sujeito passivo já se encontra.

→Punição da omissão impura?

- Fernanda Palma e Rui Pereira entendem que NÃO.

- Almeida Costa e A. Lamas Leite entendem que SIM.

- Ac. TRL de 1/10/2013 diz que o crime de burla NÃO pode ser cometido por omissão.

Quanto à questão da OMISSÃO IMPURA:

→Fernanda PALMA e Rui PEREIRA defendem que o crime de burla nunca pode ser
praticado por omissão impura. Consideram que nos crimes de execução vinculada nunca
pode haver a prática de um crime por omissão porque se tem que existir um particular
modus operandi para preencher o tipo legal de crime se aqui na omissão há uma
ausência de ação então é impossível logicamente falar-se de uma burla por omissão.

→Há quem defenda o contrário com base na seguinte circunstância: o que está em
causa na burla por omissão impura é o domínio do erro. Há poucos casos de burla por
omissão.

Exemplo: imaginemos que alguém tem uma loja de antiguidades e alguém vai à
loja e olha para um quadro e diz “que bela Josefa de Óbidos”. O vendedor sabe
que não é Josefa de Óbidos e nem está o preço afixado. O vendedor não diz nada
sobre o facto de não ser o quadro que o indivíduo achava. Vende o quadro. Do
ponto de vista das modalidades que vimos não há um ato expresso, também
não há ato concludente porque tem que haver uma ação na conduta. O
vendedor apercebeu-se que havia um erro preexistente e aproveitou-o (não o
aprofundou). Limitou-se a aproveitar um erro preexistente.

Admitir a punição da omissão impura trata-se de uma proteção mais completa


do bem jurídico. Aquilo que é discutido é: havia um dever de garante em relação
ao vendedor?

Assim, o facto de se tratar de um crime de execução vinculada nada diz porque


não há nada na lei que diga que nos crimes de execução vinculada não pode
haver equiparação entre o valor da ação e o valor da omissão. O facto de haver

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um particular numa posição de garante não significa que não possa ser praticado
por omissão.

Esta é uma questão em aberto. É maioritária a jurisprudência que admite a punição da burla por
omissão impura.

• O Ac. STJ de 18-06-2008 tem assumido uma orientação jurisprudencial claramente em


sentido convergente com a posição doutrinal exposta e defendida por Almeida Costa
Resultando, em síntese, da factualidade assente pelo acórdão da Relação que: - o
arguido, agindo sempre em nome da sociedade G, tinha celebrado, como locatário, um contrato
de locação financeira sobre um determinado prédio rústico; - posteriormente celebrou com a
assistente um contrato-promessa de compra e venda, prometendo vender-lhe o referido prédio,
ao qual previamente se deslocou acompanhado do gerente da assistente e do advogado desta; -
nunca o arguido referiu que o prédio estava sujeito àquele contrato de locação financeira e que,
portanto, a firma por ele representada não era proprietária do mesmo; - por conta do preço
estipulado, o arguido recebeu PTE 47 500 000$00; - cerca de dois meses depois da celebração do
contrato-promessa, a assistente, que celebrou esse contrato na convicção de serem verdadeiras
as disposições nele contidas, veio a saber que o prédio não era propriedade da firma representada
pelo arguido; - tentou então que o arguido celebrasse a prometida venda ou, ao menos, cedesse
a sua posição no contrato de locação, mas o arguido inviabilizou tal negócio; conquanto da
mesma não conste quem tomou a iniciativa do negócio, nem como foram iniciados os contactos
entre as partes, podemos concluir que a assistente outorgou o contrato-promessa de compra e
venda na convicção de que o arguido representava a proprietária do prédio e que este, mesmo
depois de se deslocar ao local com o promitente-comprador e o seu advogado, nunca o(s)
esclareceu de que era apenas locatário financeiro do imóvel. Mais, o arguido sabia que o
promitente-comprador estava a agir de boa-fé, ou seja, estava convencido de que ele
representava a proprietária do prédio, tendo ocultado sempre que o verdadeiro proprietário era
outro, facto que veio a ser conhecido pela assistente por outra fonte, já depois da celebração do
dito contrato-promessa. XVII. A indicada sucessão de actos, embora nunca envolvendo uma
declaração expressa por parte do mesmo arrogando-se ou admitindo a qualidade de proprietário
do prédio, constitui sem qualquer dúvida um conjunto de actos concludentes .

→ASTÚCIA

É um elemento de tipo objetivo. O agente tem que atuar com astúcia. Alguém atua
astuciosamente quando incumpre as regras que o normal operador no tráfego jurídico devia
cumprir.

• Ac. TRE de 20/5/2014 “III. Se num primeiro momento a postura da arguida, ao arrogar-se dona
do artefacto em ouro que pretendia alienar, não passa de uma mentira, num segundo momento,
a sua postura, assumindo por escrito que era a dona de tal objecto, configura já alguma
habilidade, no sentido de convencer a funcionária, como convenceu, de que ela era, de facto, a
dona de tal objecto, razão que determinou o pagamento do seu preço. IV - Não era exigível à
assistente, de acordo com a postura de um bonus pater familiae, que tivesse feito outras
diligências para comprovar a proveniência lícita do objecto, o que seria e é incompatível com o
normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa-fé que devem nortear as
relações comerciais entre as pessoas.”.
• Ac. TRP de 19/2/2014 “II. O acto de enganar (astucioso) tem de ser anterior à entrega (ou logo
seguido) pois em primeiro lugar tem de existir o convencimento (feito por acção do arguido) do
ofendido a fazer a posterior disposição patrimonial, devendo uma (a acção enganosa do arguido)

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ser causa da outra (entrega/disposição patrimonial pelo ofendido). III. Se o ofendido entrega ao
arguido veículos automóveis para que este os venda e lhe entregue o dinheiro acordado das
vendas, e este vende os veículos e não lhe entrega o dinheiro, ficando com ele e dele se
apropriando, não comete o crime de burla mas o de abuso de confiança.”.
• Ac. TRG de 8/6/2015 “II. Não comete tal tipo de ilícito, o arguido que com prévia intenção de não
pagamento, se dirige à oficina de montagem de pneus do demandante civil, pretendendo e
obtendo a troca dos quatro pneus do veículo que conduzia, por outros novos no valor de 260,00
euros cada um, sem montagem, sem efectivamente os pagar. III. É que o arguido, apesar de ter
usado de uma conduta astuciosa para o não pagamento, quis de facto obter os pneus em causa,
não referindo qualquer facto falso para a obtenção desse resultado.”.

Aula de 27 de novembro de 2020

CRIME DE BURLA (artigo 217º do CP) – [cont.]

→Acórdãos uniformizadores

• Assento do STJ nº 8/2000, de 4/5/2000: No caso de a conduta do agente preencher as


previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217.º, nº 1,
respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se
concurso real ou efectivo de crimes.
• AUJ do STJ nº 10/2013: A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal do crime de
falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo
especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de
Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles
constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de
burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um
concurso real ou efectivo de crimes.

Houve uma grande discussão quanto à relação de concurso aparente ou efetivo entre o crime
de falsificação de documentos e o crime de burla. Há uma série de acórdãos. O Supremo para
resolver os problemas de concurso efetiva e aparente recorre a um crime simples de aplicação
que é atender à natureza dos bens jurídicos. O bem jurídico protegido pela falsificação é o
documento e o bem jurídico protegido pela burla é o património. O Supremo diz que como há
bens jurídicos diferentes o concurso é sempre efetivo. Utilizar um documento como instrumento
para praticar uma burla, na verdade o dolo do agente existe em relação às duas coisas, ou seja,
existe dolo do agente na falsificação e dolo na burla, mas há uma relação, aquilo que podemos
chamar de bens jurídicos instrumentais relativamente a bens jurídicos originais. Usa-se o bem
jurídico instrumentar para atingir aquilo que é o verdadeiro objetivo criminoso do agente que é
praticar o crime de burla. Quando assim é trata-se apenas de um instrumento para a prática do
crime de burla e nesse caso diz-se que temos um concurso meramente aparente. Portanto, o
agente incorre na pena do crime de burla por ser aquela que é mais gravosa relativamente ao
crime de falsificação de documentos. A relação do ponto de vista do concurso aparente seria
por via de uma relação de consunção. O conteúdo de ilicitude do crime de burla abrangeria o
conteúdo de ilicitude do crime de falsificação de documentos. Este não é o entendimento do
Supremo. A sua posição foi reafirmada em 2013. Em 2013 porquê? Porque a reforma de 2007
alterou a redação do crime de falsificação e como há muita gente que discorda desta posição do
Supremo começou também a haver jurisprudência de tribunais a defender que em face da nova
redação do crime de falsificação tinha havido uma caducidade do primeiro acórdão

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uniformizador e o Supremo veio dizer em 2013 que apesar da nova redação do crime de
falsificação isso não importa a caducidade do anterior acórdão uniformizador.

BURLA QUALIFICADA (artigo 218º do CP)

Nº1 “Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de
valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.”. Este nº 1 não
tem nada que se lhe diga. Atende-se apenas ao valor. Há aqui uma qualificação tendo em conta
um critério meramente de ilicitude, um critério objetivo, geral, abstrato, aplicando-se a norma
definitória do artigo 202º quando se refere a “valor elevado” (superior a 50 UC = 5.100 euros).

No nº2 temos uma hiperqualificação (como vimos para o crime de furto). “A pena é a de prisão
de dois a oito anos se:” se verificar alguma das situações taxativamente previstas nas alíneas do
nº2.

• Al. a) “o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado”. Esta alínea


corresponde ao nº1 mas na modalidade mais grave do ponto de vista da ilicitude tendo
em conta o valor consideravelmente elevado (= a 200 UC = 20.400 euros).

• Al. b) “o agente fizer da burla modo de vida”. Levanta maiores dúvidas de aplicação
prática porque nos diz que a burla é mais gravemente punida se o agente fizer dela
modo de vida. O que é o “modo de vida”? Os tribunais têm dito que o facto de se fazer
de um crime modo de vida (acontece aqui no crime de burla mas não só) não significa
que a totalidade dos rendimentos deste agente tenham que advir da prática do crime
de burla. Tem é de ser um fator importante no rendimento do agente a prática destes
crimes, tem que ser um fator de rendimento considerável. Imaginemos que o indivíduo
tem um rendimento mensal médio de 1.000 euros: dizer-se que fazer da burla modo de
vida implicará necessariamente que mais de metade desse rendimento médio mensal
provenha da prática da burla – aí é que se pode dizer que tem um considerável peso no
rendimento disponível do agente. Modo de vida implica pluralidade de condutas,
implica uma reiteração criminosa, reincidência. E neste modo de vida há um apelo ao
instituo da reincidência e até um apelo a outros casos. Isto é, a circunstância
modificativa da reincidência é muito curiosa.
A questão da reincidência levanta sempre o problema da homotropia ou da politropia,
isto é, só há reincidência quando estamos perante crimes da mesma natureza? Ou
crimes de natureza diversa? O que é que é um crime da mesma natureza? Tudo isto são
dificuldades a que se segue uma dificuldade portuguesa que é a pouca relevância prática
da reincidência. Artigos 75º e 76º do CP. Um reincidente só é mais culpado ou também
demonstra ser mais perigoso? A questão é: mas se ele é mais perigoso faz sentido reagir
com uma pena ou devemos reagir com uma medida de segurança? Num sistema como
o nosso que até conhece a Pena Relativamente Indeterminada que é uma mistura de
pena e de medida de segurança e que está pensada para delinquentes por tendência faz
sentido manter a reincidência? E ainda por cima o artigo 76º do CP diz-nos que a PRI
prevalece sobre a reincidência.

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Se o agente é considerado reincidente o limite máximo permanece inalterado, o máximo
que acontece é o limite mínimo ser aumentado em 1/3 (se o limite mínimo for de 1 mês
é aumentado em 10 dias). Portanto, há muitos juízes que preferem não julgar por
reincidência dada a sua dificuldade.
Portanto, o modo de vida implica a reincidência, mas também implica, para tender ao
modo de vida, a existência de participações criminais, queixas crimes que não tenham
seguimento.
No modo de vida estamos a censurar fundamentalmente não a ilicitude mas a culpa do
agente. Aqui a qualificação do modo de vida não é uma qualificação pela ilicitude. Aqui
é uma agravação em função da culpa.

• Al. c) “o agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão


de idade, deficiência ou doença; ou”. Merece alguma crítica porque diz-se que o agente
se aproveita de uma situação de especial vulnerabilidade da vítima. É taxativo. Mas não
há outros critérios que do ponto de vista teleológico têm a mesma razão de ser? Ao
prof. parece que sim. Portanto, estes elementos de especial vulnerabilidade deviam ser
meramente exemplificativos e não taxativos como são.

• Al. d) “a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”. Não significa que fique
insolvente. Significa que há um prejuízo patrimonial que tem uma diminuição grande na
situação económica da pessoa. Tem influência grande na condição económica do
agente.

A lei manda aplicar quanto à burla qualificada o nº 2 e 3 do artigo 206º. Quanto à restituição e
reparação o nº1 não se aplica e o nº1 diz respeito ao efeito mais forte que a instituição reparação
pode ter relativamente ao crime e que é o efeito da extinção da responsabilidade criminal. O
legislador entendeu que estando aqui perante uma modalidade intensificada do crime de burla
não podia dar abertura a esta possibilidade mesmo que a restituição fosse integral. Também
não se pode defender uma interpretação extensiva com aplicação analógica do nº1 porque isso
violaria o principio da legalidade.

O nº1 do artigo 206º aplica-se à al. a) e c). Não se aplica na al. b) e d) do nº1 do artigo 218º: na
al. b) porque há uma culpa acrescida do agente. A al. c) e a al. d) são semelhantes. Na al. c) ele
já é vulnerável e eu aproveito-me disso. Na al. d) ele até pode não ser vulnerável mas eu deixo-
o numa situação vulnerável. Das duas uma: ou não se aplica à al. c) ou então também se aplica
à al. d).

• Quanto ao MODO DE VIDA temos o Ac. TRC de 16/6/2015 que nos diz que “I. Para
preenchimento da qualificativa «modo de vida», não se exige que o agente se dedique de forma
exclusiva à prática de um daqueles tipos legais de crime, mas sim que a série de ilícitos contra o
património que o agente pratique seja factor determinante para que se possa concluir que disso
também faz modo de vida. II. Deve entender-se como fazendo da burla modo de vida não é
suficiente que as infracções singulares tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o
fim de outro proveito económico, mas o complexo das infracções deve revelar um sistema de
vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos delitos
(cf. Manzini, Tratado, vol. III, p. 223). III. Entende-se como fazendo “da burla modo de vida”, a
entrega habitual à burla, que se basta com a plurireincidência, devendo ser tomadas em

68
consideração, não só as anteriores condenações do agente constantes do seu registo criminal,
mas também as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais
e todos os outros elementos testemunhais ou documentais.”.

BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES (artigo 221º do CP)

Esta norma do ponto de vista do bem jurídico diz respeito ao mesmo bem jurídico de todas as
burlas que é o bem jurídico património. Há vários comportamentos em que há uma punição por
concurso efetivo entre o crime de burla informática e o crime previsto na Lei do Cibercrime (por
exemplo, o crime de falsidade informática do artigo 3º).

Nº1 “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra
pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação
incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados
sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido
com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”. Crime comum. Crime de execução vinculada
porque é causada da forma aqui descrita (“…interferindo no resultado de tratamento de dados ou
mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados,
utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no
processamento…”). Quando se diz “…qualquer outro modo não autorizada no processamento …” o
legislador quer abranger o máximo de condutas.

É um crime material, crime de resultado, crime de dano. Não se protege a integridade dos
sistemas informáticos ou das telecomunicações. Não se protege a questão de saber se os
sistemas informáticos apenas têm dados verídicos ou se têm dados que podem ser falseados.
Não é um crime pluriofensivo em que há mais do que um bem jurídico protegido. Só há um que
é o património. Temos depois a Lei do Cibercrime onde se protege a ideia da integridade e
agilidade dos sistemas informáticos, mas a burla informática é simplesmente um crime de burla
específica. Aliás, há autores que dizem que não precisávamos deste crime de burla, na medida
em que o que aqui está previsto caberia no artigo 217º do CP.

A burla relativa a seguros (artigo 219º do CP) ou a burla relativa a trabalho ou emprego (artigo
222º do CP) ou burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços (artigo 220º do CP) –
nestas é muito discutível no plano do direito se faz sentido manter-se, isto porque caem na regra
geral do artigo 217º do CP. Na burla do artigo 220º, burla para obtenção de alimentos, bebidas
ou serviços, é discutível se faz sentido a tutela penal. O prof. entende que não. Há autores, como
Damião da Cunha, que defendem que alguém que celebra um contrato sabendo de antemão
que não tem condições para o cumprir está a praticar um crime de burla, está a induzir em erro
ou engano alguém, está a usar de astúcia e com isto provoca um prejuízo patrimonial.

Nº 2 “A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício
ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos electrónicos ou outros
meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou
parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.”. Este nº2 trata
da burla nas comunicações.

Pune-se a tentativa, nos termos do artigo 221º, nº3 do CP.

A burla informática e nas comunicações simples é um crime semipúblico (na medida em que,
nos termos do artigo 221º, nº4 depende de queixa), mas já não é um crime semipúblico se for

69
um crime de burla informática ou burla nas comunicações agravada nos termos do artigo 221º,
nº5.

O legislador, congruentemente com o que tinha feito com o artigo 218º, diz-nos que é de aplicar
o artigo 206º todo (artigo 221º, nº6 do CP).

Exemplos de burla informática:

Exemplo 1: alguém fez clonagem do cartão de crédito de X e com ele fez compras na
internet.

Exemplo 2: cartão multibanco que contém os códigos junto. Imaginemos que alguém
furta o cartão e levanta dinheiro. Aqui temos dois crimes: o crime de furto e o crime de
burla informática em concurso efetivo.

Exemplo 3: alguém aponta uma arma a alguém que está a levantar dinheiro e obrigo a
levantar o máximo que der: temos um crime de roubo e um crime de burla informática
também.

Temos que conjugar alguns destes elementos do tipo objetivo, nomeadamente a noção de
programa informático. Temos uma noção empírica, mas não chega, temos que recorrer à Lei do
Cibercrime.

Não se exige diretamente neste crime de burla informática o erro ou engano, mas as formas que
encontramos aqui de execução do crime, fazendo dele um crime de execução vinculada, são
todos elas formas de erro ou engano. Por isso é que o legislador não teve necessidade de
autonomizar no tipo legal a expressão “erro ou engano” porque as formas típicas de
preenchimento do crime de burla informática em si também são formas de engano. É um
elemento ilícito do tipo.

LEI DO CIBERCRIME (Lei nº 109/2009, de 15 de setembro)

Artigo 2º “Para efeitos da presente lei, considera-se:”

• Al. a): “«Sistema informático», qualquer dispositivo ou conjunto de dispositivos interligados ou


associados, em que um ou mais de entre eles desenvolve, em execução de um programa, o
tratamento automatizado de dados informáticos, bem como a rede que suporta a comunicação
entre eles e o conjunto de dados informáticos armazenados, tratados, recuperados ou
transmitidos por aquele ou aqueles dispositivos, tendo em vista o seu funcionamento, utilização,
protecção e manutenção;”.
• Al. b): “«Dados informáticos», qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob
uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas
aptos a fazerem um sistema informático executar uma função;”.
• Al. e): “«Intercepção», o acto destinado a captar informações contidas num sistema
informático, através de dispositivos electromagnéticos, acústicos, mecânicos ou
outros;”.

Artigo 3º: CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA

Nº1 “Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou
suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados,

70
produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou
utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5
anos ou multa de 120 a 600 dias.”.

Pode haver concurso efetivo entre o crime de falsidade informática e o crime de burla
informática. Por exemplo, senhor que era funcionário da segurança social e era informático da
segurança social. Ia aos registos a que tinha acesso, à carreira contributiva do pai e alterou o
número de anos de descontos. Obviamente que isso fez com que a reforma subisse. Aqui temos
um crime de falsidade informática em concurso efetivo com uma burla informática. Causa-se
um prejuízo ao Estado por introdução de dados informáticos que não correspondem à verdade.

Este crime quer defender que os dados informáticos correspondam à verdade, não sejam
alterados, de alguma forma manipulados. Há aqui, de certa forma, se quisermos fazer um
paralelo entre este crime e um previsto no CPP, podemos falar do crime de falsificação de
documentos em que também há a introdução de uma alteração, a realização de um documento
novo que introduz uma série de factos que não correspondem à realidade sendo que o objetivo
é que tenham efeitos jurídicos contrários à realidade.

Nº2 “Quando as acções descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados ou incorporados
em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou
meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5
anos de prisão.”.

Tanto é punido aquele que comete o crime de falsidade informática como aquele que depois
utiliza esses dados informáticos falsos. Neste caso, tanto é punido o indivíduo que introduziu os
dados falsos do pai como o pai dado que se apercebeu que recebeu mais dinheiro e sabia da
situação. Se o pai pode ser punido como cúmplice (coautor não porque ela não tinha participado
na execução apesar de poder ter participado no plano).

Imaginemos que recebo dinheiro na minha conta bancária por engano de alguém. Temos aqui
algum crime? Podemos ter. Que crime? Não há burla, não há furto. Há abuso de confiança? Esta
situação cabe no artigo 209º, nº1 do CP. Se entra dinheiro na minha conta por efeito de erro e
eu me aproveito disso cabe no artigo 209º, nº1. Trata-se de um crime semipúblico, na medida
em que depende de apresentação de queixa, nos termos do artigo 209º, nº3. Aplica-se o previsto
nos artigos 206º e 207º do CP.

Quando é utilizado qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento
também é punido, nos termos do artigo 3º, nº2..

→Jurisprudência relevante

• Ac. TRE de 26/5/2012 “1. A burla informática consiste sempre em um comportamento que
constitui um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação
a uma pessoa (como na burla p. e p. pelo art. 217.º), mas por intermediação da manipulação de
um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de
dados. Mas, prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, actos
com conteúdo material e final idênticos: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização
sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial. O tipo
pretendeu abranger a utilização indevida de máquinas automáticas de pagamento (ATM),
incluindo os casos de manipulação ou utilização indevida no sentido de utilização sem a vontade

71
do titular. 2. Não se pode concluir que o digitar aleatório de 3 códigos seja manifestamente
inidóneo para a produção do resultado almejado de proceder ao levantamento de dinheiro com
um cartão multibanco a que se acedeu ilicitamente e contra a vontade do legítimo titular e do
qual não se tem o código. 3. Digitar à sorte 3 códigos não é, por natureza, um meio inapto, de
uma inidoneidade absoluta, para acertar no código do cartão multibanco. ”.

Alguém se apropriou de um cartão de crédito de outra pessoa. Não tinha o código.


Acertou no código dentro das três tentativas. O defensor veio alegar junto da Relação
de Évora que o indivíduo não devia ser punido porque na verdade ele praticou uma
tentativa impossível. Em termos de probabilidade estatística acertar na combinação de
quatro dígitos em três tentativas é uma probabilidade ínfima e, por isso, é uma tentativa
impossível. A Relação de Évora vem dizer que não é uma tentativa impossível. Apesar
da verificação muito improvável não é de todo impossível que alguém possa acertar nos
códigos.

• Ac. TRP de 14/3/2012 “Integra uma das modalidades da acção típica do crime de burla
informática, a apropriação de dinheiro através da introdução e utilização no sistema informático
das ATM de dados sem autorização (introdução do cartão e digitação do código de acesso), com
intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial. ”.
• Ac. TRL de 8/5/2013 “I. O crime de burla informática é um delito contra o património e só
secundariamente visa proteger o correcto funcionamento e a inviolabilidade dos sistemas
informáticos. II. Por isso, quanto àquele crime, pode constituir-se assistente aquele que teve
prejuízo patrimonial mas já não assim o proprietário ou utente de dados ou programas
informáticos.”.
• Ac. TRE de 20/1/2015 “Tendo os arguidos subtraído à ofendida, e levado consigo, dois cartões
de multibanco, e, de seguida, tendo retirado e levantado quantias em dinheiro de caixa de ATM,
prejudicando a ofendida, cometeram, em concurso efectivo, dois crimes - um de furto e outro de
burla informática.”.
• Ac. TRP de 30/4/2008 “Se a burla se realizou mediante a introdução de dados
incorrectos/falsos no sistema informático da Segurança Social, existe concurso efectivo de burla
e falsidade informática.”.
• Ac. TRP de 14/9/2016 “Entre os crimes de burla informática e o crime de falsidade informática
(art. 3.º da Lei n.º 109/2009, de 15/9) existe concurso real de infracções. ”.
• Ac. TRP de 5/6/2013 “Comete o crime de burla informática quem utiliza um cartão bancário de
débito para pagamentos, sem autorização do legítimo titular do cartão, ainda que para o efeito
não seja necessária a marcação de qualquer código. Este crime tutela a utilização correcta dos
meios informáticos e também o património de outrem.”.
• Ac. STJ de 5/11/2008 “A utilização de um cartão multibanco obtido por via de violência ou
coacção, para levantamento de dinheiro é ainda parte da prática do crime de roubo, perdendo
qualquer autonomia, ou estando mesmo tipicamente excluída, a integração do crime de burla
informática.”.
• Ac. STJ de 29/5/2008 “Se o agente do crime força a vítima a revelar o PIN do seu cartão de
débito ou de crédito que lhe retira, para depois se apoderar dos proventos económicos que a
utilização desse cartão obtém através do sistema bancário, em prejuízo da vítima, há uma
consumpção de normas entre os crimes de roubo e os de burla informática. ”.

EXTORSÃO (artigo 223º do CP)

72
Já falamos do crime de extorsão a propósito da relação de exclusão que existe entre o artigo
207º ou este artigo 223º. Na burla há uma representação que é a astúcia. Na extorsão também
há uma representação que é a forma como o agente atua. O agente faz com que o ofendido faça
a disposição patrimonial porque está numa situação de ameaça. A extorsão é uma ameaça com
um prejuízo patrimonial. Há um constrangimento do ofendido com um mal para si ou para
terceiro e este constrangimento tem que ser praticado de uma determinada forma (crime de
execução vinculada: tem que ser por meio de violência ou de ameaça com mal importante). A
violência aqui tem sido entendida também como violência física. O que é um “mal importante”?
É a lesão de bens jurídicos que sejam considerados dignos de tutela penal pelo ordenamento
jurídico. Esse enriquecimento tem que ser ilegítimo.

No nº3 temos a construção de tipos agravados de extorsão que apontam para circunstâncias
agravantes do artigo 204º. Há tambem extorsão na forma agravada se atuar através do meio
previsto no artigo 210º, nº2, al. a) do CP. Se da extorsão resultar a morte da vítima temos um
crime agravado pelo evento (nº3 remete para o artigo 210º, nº3 do CP).

Nº4 diz-nos que “O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias
se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento
que possa dar causa a procedimento criminal. ”. Tem que haver relação creditícia. Tem que haver
situação de necessidade. O devedor da relação creditícia tem que arranjar um documento que
seja em si a prática de um crime mas pode ser também um documento que possa dar causa a
procedimento criminal. Sou um instigador porque o meu devedor não queria praticar crime
nenhum, eu é que o levei a isso.

Na extorsão há sempre uma certa limitação da liberdade individual. O artigo 223º protege não
só o património, mas também a liberdade de livre disposição da vítima, a liberdade pessoal da
vítima. (Nunca houve uma condenação pelo artigo 223º, nº4 do CP).

O sujeito passivo pode ser uma pessoa singular ou uma pessoa coletiva.

Se estivermos perante obrigações naturais entende a jurisprudência e a doutrina que não


estamos perante um crime de extorsão. Quanto muito há crime de coação.

O conceito de “mal importante” é um conceito indeterminado. Tem sempre bens jurídicos que
não só pessoais ou patrimoniais importantes.

Há uma relação de especialidade entre o crime de ameaça e o crime de coação. Há exclusão do


crime continuado do artigo 30º, nº3 do CP porque há uma nota de pessoalidade no crime de
extorsão. Concurso efetivo quanto aos lesados.

O crime de extorsão é um crime comum, material, de execução vinculada e de dano .


→Jurisprudência relevante

• Ac. STJ de 10/10/2007 “(…) XXXIII - Nas situações em que a conduta possa ser (ou aparente ser)
subsumível tanto ao crime de roubo como ao de extorsão, pela ampla coincidência típica (casos
de constrangimento, mediante violência ou ameaça de execução iminente contra a vida ou
integridade física, à entrega de coisa móvel alheia, com intenção de apropriação), o critério final
de distinção poderá ser o da «entrega imediata, ou não, da coisa móvel alheia». «Se a coacção
visa a entrega imediata, trata-se de um crime de roubo; se visar uma entrega diferida no tempo

73
(corresponda esta dilação a dias ou a horas), será crime de extorsão» (cf. CCCP, t. II, p. 342). XXXIV
- Perante os factos provados, a SN foi constrangida, por meio de violência e ameaça de um mal
importante (o que pudesse acontecer aos seus familiares em poder dos arguidos), à entrega de
dinheiro, que estava no cofre no interior ao estabelecimento, a que tinha acesso e de onde o
retirou; a actuação dos arguidos, através dos modos visíveis e locais do constrangimento e da
ameaça, tinha por finalidade a entrega imediata do dinheiro, e foi assim que a ofendida sentiu a
ameaça e, em consequência, reagiu. Os elementos de facto aproximam-se, assim, mais do crime
de roubo (…)”.
• Ac. STJ de 21/10/2009 “(…) VI - Como no crime de extorsão se protegem simultaneamente bens
patrimoniais e pessoais, no caso de serem vários os sujeitos passivos atingidos pelo
constrangimento perpetrado pelo agente criminoso, só haverá concurso de crimes de extorsão se
cada uma das vítimas for atingido tanto nos seus bens patrimoniais como pessoais, verificando-
se um outro crime para quem apenas for vítima de crime contra a sua pessoa. VII - Como o
recorrente, com intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, constrangeu duas
pessoas, por meio de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarretou,
só para uma delas, prejuízo, cometeu um único crime de extorsão (na pessoa do pai da “B”), em
concurso efectivo com um outro crime contra a pessoa da “B”, o crime de coacção agravada.
(…)”.
• Ac. STJ de 30/10/2003 “1 - Se num caso de extorsão, o arguido invoca a sua convicção de o
benefício pretendido não era ilegítimo por corresponder a uma dívida que o extorquido tinha
para com o co-arguido, mas se prova que essa dívida não existe, essa questão configura um erro
sobre as circunstâncias do facto. 2 - Importa então estabelecer se o arguido recorrente agiu
(sempre) na errónea convicção da existência da dívida, o que não acontece quando a decisão
recorrida, embora dê como provado que o co-arguido lhe referiu a existência dessa dívida, não
estabelece que agiu sempre naquele convencimento, antes assenta que «os arguidos actuaram
com a intenção de (...) os obrigarem a entregar uma determinada quantia em dinheiro, o que
conseguiram, assim obtendo vantagens patrimoniais que sabiam ser indevidas e a que não
tinham qualquer direito». (…).”.
• Ac. STJ de 5/3/1997 “I - O agente provocador actua movido pelo ímpeto de obter provas no
âmbito criminal, determinando assim outrem à prática de um crime, condicionando e motivando
a sua vontade criminosa. II - Não se verifica essa actuação quando o crime já está consumado
antes da actuação da obtenção dessas provas, como sucede no caso de dois agentes da PSP no
momento em que começam a investigar um acidente em que interveio o ofendido, logo dele
recebem algum dinheiro para não procederem judicialmente, o ameaçam de que fariam a
participação por esse acidente se ele no dia seguinte não lhes entregasse mais dinheiro e este vir
a fazê-lo, já conluiado com oficiais da PSP e com a entrega de notas marcadas. III - Verificase a
ameaça causadora de constrangimento do crime de extorsão, pela afirmação feita pelos arguidos
ao ofendido, feita de modo sério, que o caso era muito grave pois, por causa dele, teria de ficar
sem carta de condução e de ir responder em tribunal, apresentando-se os arguidos como guardas
da PSP em serviço. IV - A lei não exige que a vítima, em consequência das ameaças, seja posta na
impossibilidade de reagir.”.
• Ac. STJ de 6/5/1998 “I - Para haver ameaça com "mal importante" basta que a concretização
da ameaça seja alta segundo as regras da experiência comum para conseguir-se o objectivo que
se deseja com ela. II - Não é necessário que a ameaça seja de um mal ilícito. (…)”.
• Ac. TRP de 13/2/1998 “(…) 2. Não há tentativa de extorsão na conduta do advogado que, tendo
em seu poder o passaporte de um seu cliente, cidadão de outro país, diz a este que só lhe
devolverá esse documento quando lhe forem pagos os seus honorários. ”.

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• Ac. TRL de 5/2/2009 “I – Ao exigir à mãe daquele que tem confinado, e crê ter-se apoderado
de objectos seus em ouro, que lhe pague o valor desse ouro, sob pena de causar mal ao seu filho,
o agente está a tentar obter um enriquecimento ilegítimo, para efeitos do crime de extorsão p. e
p. pelo art. 223.º do CP. (…)”.
• Ac. TRL de 2/5/2002 “(…) II - Esse delito [extorsão] apresenta-se não como crime contra a
liberdade pessoal, mas contra uma situação de aproveitamento pelo credor, do devedor, coagido,
a futuramente, poder ser alvo de procedimento criminal. III - Não integra a prática de tal crime a
conduta do que exija a entrega de cheque de garantia, uma vez que a obrigação já existia antes
e tal cheque não merece protecção penal.”.

Aula de 4 de dezembro de 2020

CRIME DE INFIDELIDADE (artigo 224º do CP)

O artigo 224º do CP insere-se dentro dos crimes contra o património em geral, mas diz respeito
a um crime que tem uma série de ligações, até do ponto de vista da forma de construção, com
o crime de abuso de confiança (artigo 205º do CP).

Temos que ver o artigo 224º em conjugação com o artigo 235º (?).

O objetivo do legislador é que a lesão do património que é infligida por alguém está investido
numa função. Aqui tem mais relevo a noção dos chamados CRIMES DE DEVER em que o agente
da prática destes crimes de infidelidade e administração danosa está investido de um dever
jurídico. Um dever jurídico é, como diz o artigo 224º, nº1 do CP, um dever de fiscalizar,
administrar ou de dispor de interesses patrimoniais. Esses interesses patrimoniais são
naturalmente interesses patrimoniais de outro.

Estamos perante um CRIME COMUM, na medida em que pode ser praticado por qualquer
agente. CRIME DE RESULTADO OU MATERIAL, ou seja, exige-se que o agente cause um prejuízo
patrimonial. É um CRIME DE DANO, ou seja, o bem jurídico património ao qual podemos ligar
uma especial relação de confiança que resulta da circunstância de se ter escolhido ou por via da
lei essa pessoa para assumir o encargo de fiscalizar, administrar ou dispor desses bens. CRIME
DE EXECUÇÃO VINCULADA do ponto de vista da conduta porque esse prejuízo não pode ser
causado de qualquer forma, é preciso que seja causa tendo em conta dois aspetos quanto ao
modus operandi: tem que ser causado intencionalmente e tem que causado pela grave violação
dos deveres que incumbem a esse sujeito.

Este é um crime de prova bastante complexo pela natureza do crime que está em causa. O nosso
ordenamento jurídico não tem uma noção de criminalidade económico-financeira. Essa noção
começa por ser a noção da área da criminologia. Na criminologia Sutherland começa por definir
os crimes de colarinho branco como crimes de oportunidade, ou seja, crimes que são
habitualmente cometidos por pessoa quem têm uma posição social elevada e que aproveitam
determinadas oportunidades que lhe são conferidas por essa mesma posição, nomeadamente
pelo facto de se aproveitarem de determinados cargos para praticarem determinados crimes.
Esta noção foi bastante criticada porque se atacou a ideia de que são crimes que têm uma
ligação com uma determinada classe social e também se criticou a ideia de serem crimes de
oportunidade. Muitas vezes não são crimes que resultam de uma oportunidade. Aqui na
infidelidade não são propriamente crimes de oportunidade, muitas vezes trata-se simplesmente
de alguém que está a gerir interesses patrimoniais alheios.

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Para além das dificuldades de prova, o tipo legal também é bastante exigente. Desde logo pelo
facto de se exigir que o comportamento do agente seja um comportamento intencional. Sempre
que o CP português se refere a esta expressão significa que há uma modalidade de dolo que está
afastada que é a modalidade do dolo eventual. Por outro lado, é também necessário que haja
uma grave violação dos deveres que incumbem ao agente.

Qual o critério que devemos ter em conta para aferir a grave violação de deveres? É o critério
do gestor médio, o critério de quem tem um poder de fiscalização médio. Não estamos a falar
de um bom gestor, de um gestor de topo, mas sim de um gestor médio. A prova pericial vai ser
bastante importante.

O “intencionalmente” não diz respeito ao tipo objetivo, mas sim ao tipo subjetivo, ou seja, à
modalidade do dolo.

Uma terceira dificuldade encontrada diz respeito ao prejuízo patrimonial importante. Não se
exige um qualquer prejuízo patrimonial, mas que ele seja importante. Como vamos interpretar
o “importante”? Já houve autores que defenderam que a noção de prejuízo patrimonial
importante deve partir daquilo que está no artigo 202º do valor patrimonial particularmente
elevado. Não é correta esta perspetiva porque o legislador di-lo-ia. Aqui o legislador quis apontar
para outro tipo de regime em que possamos dizer que as relações de prejuízo elevado e
fundamentalmente prejuízo consideravelmente elevados podem ser pontos de partida, de
hermenêutica inicial para uma noção do que são prejuízos patrimoniais importantes. Não
podemos ficar por aí. Por isso mesmo um “prejuízo importante” tem que significar que em
função da prática daquele ato as atividades do objeto social ou que a situação patrimonial do
particular fica afetada na sua atividade normal, isto é, se se tratar de uma sociedade comercial,
a sociedade comercial, não tem que ficar numa total incapacidade de funcionar, mas tem que
ficar numa situação de não poder cumprir habitualmente com as suas obrigações. Quando aqui
estamos a falar de cumprir com as suas obrigações estamos a falar de obrigações de vontade
bem como de obrigações para com os fornecedores e para com os clientes. Portanto, a
sociedade em função desta lesão grave dos seus interesses patrimoniais deixa de poder adquirir
matéria-prima pelo menos durante algum tempo e ao deixar de poder adquirir matéria-prima
deixa de poder produzir. Portanto, tem que haver um reflexo na atividade efetiva deste
interesse patrimonial. Tem que se notar uma quebra, uma dificuldade. Se se trata, por exemplo,
de uma fundação tem que ficar numa situação em que durante algum tempo não tem meios
para poder prosseguir o seu objeto social por exemplo não pode durante algum tempo ajudar
os carenciados. Se for uma pessoa singular esta tem que ter uma diminuição patrimonial muito
elevada. O legislador é bastante rigoroso. No entanto, a pena não acompanha a rigorosidade do
legislador na medida em que não é assim tão rigorosa porque a moldura penal abstrata é uma
pena de prisão até três anos ou pena de multa.

Nos termos do artigo 224º, nº2 do CP pune-se a tentativa. Mas se não se pune o crime
consumado muito menos a tentativa.

Crime de natureza semipúblico na medida em que depende de queixa, nos termos do artigo
224º, nº3 do CP.

Aplica-se, nos termos do artigo 224º, nº4 do CP o artigo 206º do CP. Não há possibilidade de
extinção da responsabilidade criminal. Transformação do crime de semipúblico em crime

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particular quando afete as relações patrimoniais. Em Portugal, a aplicação da parte final do nº4,
que remete para o artigo 207º, nº1, al. a) do CP, é relativamente mais comum a partir do
momento em que o nosso tecido empresarial é maioritariamente constituído por PME, ou seja,
pais e filhos, marido e mulher – aqui é comum haver esta transformação em crime particular.

Temos um outro aspeto que contende com o processo penal e não contende com o direito penal
substantivo: tirando os casos em que os interesses dizem respeito a pessoa singulares, quando
esses casos dizem respeito a pessoas coletivas, do ponto de vista processual penal, exigem que
a queixa seja apresentada pela própria pessoa coletiva. Tratando-se de uma sociedade comercial
o titular do direito de queixa não é o sócio e sim a sociedade comercial, o que significa que, nos
termos do CSC, é necessária autorização por parte do órgão deliberativo por excelência. Sem
essa deliberação não há legitimidade para o exercício da queixa e não havendo essa legitimidade
falta um pressuposto processual.

Este é um crime de difícil preenchimento ao nível do tipo objetivo e do tipo subjetivo. É um


crime também de difícil preenchimento do ponto de vista do direito penal. Já houve a tentativa
de explorar esta linha de raciocínio dizendo: eu sou sócio da sociedade comercial, este indivíduo
que é o gerente ou o administrador que contratamos causou um prejuízo de 3 milhões de euros
na SC. Vem o sócio dizer que também foi afetado no direito de quinhoar nos lucros, na
expectativa jurídica quanto ao valor da SC, mas isto é um interesse reflexo, indireto. Sendo um
interesse indireto não cabe no artigo 113º do CP – este artigo nunca diz respeito a interesses
patrimoniais indiretos, mas sempre diretos.

Este é um crime específico impuro ou impróprio. Seria um crime específico puro se o artigo 224º
não houvesse nenhum outro tipo legal de crime que na fosse este sujeito (crime comum), mas
há o artigo 235º que é um crie em que a estrutura é muito parecida, ainda mais exigente no seu
preenchimento, mas tem que ser praticado por determinadas pessoas que exercem as
atividades no âmbito do setor privado ou setor coletivo. Quer um quer outro são crimes
específicos impuros ou impróprios. Impuro é aquele em que a existência de determinadas
características do agente não é o motivo da punição do tipo legal mas é o motivo de uma
agravação da responsabilidade criminal do agente. É o caso porque se nós compararmos o artigo
224º com o artigo 235º vemos que a pena do artigo 235º é mais grave.

O agente deste crime pode ser um mero gestor de negócios. Quando se diz que por lei ou ato
jurídico – já se discutiu se um mero gestor de negócios podia ou não ser considerado como um
agente destes crimes. Não é totalmente pacífico. Do ponto de vista prático é uma hipótese mais
académica porque alguém como mero gestor de negócios, para já ninguém deixa interesses
patrimoniais importantes à mercê de um gestor menor, sem ninguém a gerir. Desde logo, o
elemento literal não ajuda. A lei no CC a gestão de negócios é uma fonte de obrigações, mas
aqui mesmo que sejam trabalhos preparatórios quando se diz aqui lei é quando há uma norma
jurídica específica que entrega a administração a determinadas pessoas ou por via do CC entrega
a administração a determinadas pessoas ou a obrigação de fiscalizar a um conselho fiscal. Desde
logo, do ponto de vista literal não parece que possa incorporar a hipótese de mero gestor de
negócios. Por outro lado, se se diz que este crime de infidelidade tem alguns traços de
semelhança com o crime de abuso de confiança tem que haver relação de fidúcia/de confiança
e essa relação de confiança não se estabelece entre o dono do negócio e o gestor de negócios.
As pessoas coletivas têm órgãos e por isso mesmo que temporariamente mesmo que um

77
gerente esteja fora não há alguém que avance para ser gestor de negócios. Não parece que haja
aqui essa possibilidade. Quando a lei fala no “confiado por ato jurídico” este ao jurídico tem sido
interpretado no sentido de que quem interessa é quem tem os poderes efetivos de gestão em
relação a uma sociedade comercial. Quem tem o poder efetivo é o gestor de facto. Não
precisamos desta figura da gestão de negócios como ela é concebida no CC para podermos
abranger também os gerentes de facto. Conseguimos chegar aos gerentes de facto sem esta
figura da gestão de negócios. Desde logo, na verdadeira gestão de negócios o único ato jurídico
é o ato de ratificação da gestão.

Outra questão relevante é a questão da invalidade seja de que forma for do ato jurídico que
confere o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios. Aqui o direito é coerente.
Mesmo que o contrato seja inválido continua a haver dever de garante, isto porque a valoração
do direito penal é uma valoração diferente da do Direito Civil. Mesmo que o ato jurídico padeça
de algum vício na perspetiva do DC isso não invalida que possa ser praticado o crime.
Imaginemos que se trata de um ato jurídico anulável mesmo assim isso não afasta a
responsabilidade criminal do agente.

Quando falamos aqui em administração tem sido discutido se são atos de administração
ordinária ou extraordinária – tem-se dito e bem que deve ser o mais amplo possível. Todo o ato
de administração. Aqui não podia ser de outra forma porque aquilo que se visa evitar é que se
cause prejuízo patrimonial importante.

Outra questão que se tem levantado na doutrina é a de saber relativamente a uma dívida
prescrita, se há o pagamento de uma dívida prescrita por parte do agente do crime temos ou
não o crime consumado? As dívidas prescritas geram meras obrigações naturais e não
obrigações civis, mas entende-se que isso não obsta à consumação do crime. imaginemos, um
administrador de uma SA que liquida uma dívida prescrita no valor de 50 milhões de euros
conhecendo que se tratava de uma dívida prescrita continua a ser uma forma de conseguir o
prejuízo patrimonial importante. Aliás se é o pagamento de uma dívida civil que é exigida aí já
não se pode falar de um ato que é lesivo dos interesses da SC. Agora se é uma obrigação natural
que não é judicialmente exigível isso já poderá ser. Quem recebe o valor pode fazer esse valor
seu e não tem que o devolver. Aí nesse caso até uma obrigação natural pode ser do ponto de
vista do ilícito probatório pode ser mais interessante para o preenchimento deste tipo.

O artigo 235º acha-se numa relação de especialidade com o artigo 224º. Aqui diz respeito a esta
diferença quanto ao objeto da ação. O objeto da ação aqui diz respeito a uma unidade do setor
privado e no artigo 235º diz respeito a unidades do setor público ou cooperativo.

JURISPRUDÊNCIA RELEVANTE

Ac. STJ de 26/6/1991: I - O crime de infidelidade previsto no artigo 319.º do Código Penal tem por
actividade típica a actuação do agente que, administrando património alheio e actuando em nome de
outrem, prejudica patrimonialmente o representado, tendo como requisitos o dolo especifico e a
verificação de prejuízo patrimonial importante. II - O dolo específico consiste na representação pelo agente
do tipo legal do crime com consciência da ilicitude do seu procedimento e ainda na vontade do efeito
verificado ou na consciência de que o mesmo resulta da sua actividade. III - Não se mostra que haja dolo
especifico do arguido e prejuízo importante do ofendido na actuação do agente que, na situação referida
(socio gerente de uma sociedade), emite 2 cheques do montante total de 2400000 escudos a favor de um

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seu filho, com animus donandi, quando esses cheques são contabilizados na escrita do ofendido, o que
permite crer na possibilidade de reposição da citada quantia.

Aqui o que interessa é a questão do dolo específico (evitar esta terminologia). O que é o dolo
específico? É a intenção. No artigo 224º exige-se a intenção. Para além do dolo natural, isto é, o
elemento volitivo do dolo, exige-se outros elementos especiais. Não é correto porque não faz
parte do dolo, são outros elementos para além do dolo que estão dentro do tipo subjetivo mas
não fazem parte do dolo. Mas isto também se explica porque a expressão é importada do
italiano onde existe dolo específico e durante muito tempo o direito penal português foi
influenciado pelo direito italiano.

Ponto três do sumário contém um caso concreto e diz-nos que “não se mostra que haja dolo
especifico do arguido e prejuízo importante do ofendido na actuação do agente que, na situação referida
(socio gerente de uma sociedade), emite 2 cheques do montante total de 240000 escudos a favor de um
seu filho, com animus donandi, quando esses cheques são contabilizados na escrita do ofendido, o que
permite crer na possibilidade de reposição da citada quantia”. Aqui o sócio emitiu os cheques a favor
de um filho e ele queria era dar esse dinheiro. Entretanto esse cheque era da sociedade. Aquilo
que aconteceu é que se pensava era que este indivíduo estava a causa um prejuízo patrimonial
importante porque estava a desviar 240 contos de uma sociedade comercial.

Ac. STJ 23/3/2006: (…) 3 – No tipo de crime de infidelidade adoptou-se uma formulação genérica, mas
limitando suficientemente o tipo que é integrado pelos: — encargo por lei ou acto jurídico de dispor,
administrar ou fiscalizar interesses patrimoniais alheios – a ideia ética da confiança, cuja violação, nas
condições prescritas neste artigo, leva à punição criminal; — provocação de prejuízo patrimonial
importante, intencionalmente e com grave violação dos respectivos deveres – não releva todo e qualquer
prejuízo patrimonial, mas tão só o prejuízo importante nos termos já referidos acima.

Ac. TRP de 13/1/2016: I - Se a arguida faz transferências de dinheiro de terceira pessoa, à qual tem
acesso por virtude das suas funções, para a conta da sua filha sem que nada o justifique, e à qual o
ofendido não tem acesso, a arguida passa a agir como dona das quantias transferidas e assim procede de
modo inequívoco à inversão do titulo de posse, independentemente da existência ou não de uma
interpelação para a devolução das quantias, uma vez que estas já se encontravam na disponibilidade de
terceira pessoa que não a arguida. II - O crime de infidelidade pressupõe a inexistência de apropriação,
pelo que existindo aquela verifica-se um concurso aparente com o crime de abuso de confiança.

Diz-nos que não há apropriação no crime de infidelidade. Ou seja, o indivíduo que causa um
prejuízo patrimonial importante mas também fica com o dinheiro. Na infidelidade ele não se
apropria, ele quer prejudicar os interesses mais nada, mas não se apropria.

O que pode acontecer é que o agente do crime de infidelidade também se apropria desse
dinheiro. Se se apropria desse dinheiro diz a Relação do Porto que existe um concurso aparente.
O prof. não concorda porque acha que é um concurso efetivo. O artigo 224º visa proteger o
próprio interesse patrimonial alheio.

Ac. TRP de 2/3/2011: em processo por crime de infidelidade cometido contra uma sociedade, só esta
tem legitimidade para se constituir como assistente, e não um sócio . Aqui não é a questão da queixa,
mas da legitimidade que está relacionada.

Ac. TRP de 2/12/2015: para apresentação da queixa em nome da sociedade comercial e para que tal
seja feito por representante especial, é necessário que a sociedade tal delibere em assembleia geral .

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Ac. TRE de 19/12/2019

Ac. TRC de 3/6/2014

Ac. TRG de 10/2/2018: errado porque não é um crime especial puro.

CRIME DE ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA OU DE CRÉDITO (artigo 225º do CP)

Aqui pune-se o facto de uma pessoa a quem foi entregue voluntariamente um cartão e que
abusando dessa possibilidade, conferida pela posse de cartão, faz pagamentos e causa prejuízo
ao titular desse cartão de garantia ou de crédito.

Podemos questionar se necessitaríamos deste artigo do ponto de vista da tutela penal ou se


poderíamos ficar pelo abuso de confiança. Precisamos dele porque no abuso de confiança tem
que haver um ato de entrega.

Pune-se a tentativa, nos termos do artigo 225º, nº 2 do CP. Crime semipúblico (depende de
queixa).

Transformação deste crime em crime particular. Aplicação dos artigos 206º e 207º do CP.

Crime agravado no nº5: necessidade de aplicação do 206º se o valor for elevado ou


consideravelmente elevado.

Quanto ao sujeito é um CRIME COMUM. Quanto à conduta é de CRIME DE RESULTADO. CRIME


DE DANO. Quanto à execução é um CRIME DE EXECUÇÃO LIVRE.

Não importa a forma como o cartão entra na esfera de disponibilidade fáctica do agente. o
agente não tem que enriquecer, não tem que haver um beneficio patrimonial. Basta que acha
um dano.

Ac. do STJ de 8/3/2000: integra um crime de abuso de cartão de crédito previsto e punido pelo art.
225.º, n.º 1, do CP, a conduta do arguido que utilizou um cartão de crédito da ofendida, sem o acordo
desta, para, com ele, fazer um pagamento e retirar dinheiro de uma caixa do estabelecimento comercial
em que trabalhava, causando assim prejuízo patrimonial à titular do cartão, e tendo agido livre e
conscientemente, sabendo da ilicitude da sua conduta.

A questão de saber se há enriquecimento ou não. Neste caso tratava-se de um cartão que não
estava ainda ativado. Este ac. diz que há concurso efetivo entre o crime de falsificação e o crime
de abuso de cartão de garantia ou de crédito. Para quem discordar do concurso efetivo quanto
à falsificação apenas como meio para praticar a burla também discorda desta posição.

O individuo furta e depois ativa o cartão. Depois utiliza-o. Temos aqui um crime de furto primeiro
porque este crime de abuso de cartão de garantia ou crédito apenas pune a utilização
independentemente da forma como ele chega à pose do agente. Depois entendemos que há
concurso meramente aparente e vamos punir apenas pelo crime de abuso de cartão de garantia
ou de crédito. Para quem defender a existência do concurso efetivo há também o crime de furto.

APROPRIAÇÃO ILEGÍTIMA (artigo 234º do CP)

Este crime não pode ser praticado por qualquer pessoa – CRIME ESPECÍFICO.

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Este é um crime específico impuro porque ele próprio não tem a indicação de uma moldura
penal abstrata, apenas nos diz que a punição de quem praticar o que está descrito no tipo
objetivo é do crime ao qual o agente tiver praticado é agravado em 1/3 no limite mínimo e
máximo.

Vamos imaginar que eu que sou um gestor público, ou seja, por força do meu cargo tenho a
administração de um bem do setor público, e me aproprio desses bens ou permito que outra
pessoa se aproprie desses bens. O artigo 234º tem que ser sempre aplicado com outro tipo legal
de crime. Eu se me aproprio de uma outra coisa que me foi entregue por via do cargo eu
praticaria um crime de abuso de confiança. Agora se eu também for funcionário então eu não
tenho crime de abuso de confiança mas sim um crime de peculato do artigo 375º. E aqui há
várias possibilidades: posso não ser funcionário para efeitos penais do artigo 386º e exercer
funções de administração de bens do setor público – o mais normal não é isto. se repararmos o
artigo 386º não exige que se seja só funcionário público no sentido de alguém que esteja ligado
ao Estado através de um contrato de trabalho de funções públicas. Porque depois, por exemplo,
o nº2 do artigo 386º do CP fala na equiparação do gestor, titulares dos órgãos de fiscalização e
trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação
maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos. Ou seja,
estes funcionários e estes gestores podem estar vinculados ao Estado sem ser por via da Lei
Geral de Trabalho e Funções Públicas, podem estar vinculados por via do Cód. de Trabalho,
podem estar vinculadas ao Estado por um simples contrato de prestações de serviços. Por
exemplo, alguém que é prestador de serviços e é contratado nessa qualidade para ser gestor de
uma empresa.

Portanto, eu à partida para praticar este crime, porque vou ter a capacidade de dispor de bens
do setor público ou cooperativo, serei à partida funcionário para efeitos do artigo 386º, nº2 do
CP, e se assim é e se me aproprio ilegitimamente desses bens não há furto porque eu tinha
capacidade para dispor desses bens, mas sim um crime de peculato do artigo 375º. Qual a
vantagem em relação ao artigo 375º? O artigo 375º fala-nos da apropriação de dinheiro, coisa
móvel ou imóvel, ou animal e estabelece uma punição com pena de prisão de 1 a 8 anos. Mas
depois o crime de peculato estabelece um princípio de subsidiariedade expressa porque diz “se
pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Portanto, temos que
conjugar o artigo 375º com o artigo 234º. O artigo 234º é um tipo legal, mas é um tipo legal de
crime que funciona sempre na dependência de um outro. E para efeitos de preenchimento desta
cláusula de subsidiariedade expressa é uma outra disposição legal. O legislador não diz “se pena
mais grave lhe couber por força de outro tipo legal de crime”, ele quer dizer que esta é a pena
a menos que haja outra norma que estabeleça uma pena mais grave. Quem praticar o crime de
peculato e couber na pena do artigo 234º sendo um bem do setor público ou cooperativo é a
pena moldura abstrata já não é de 1 a 8 anos, mas é agravada em 1/3 nos seus limites máximo
e mínimo (a pena de prisão passa para 1 ano e 4 meses). Se, porventura, couber esta descrição
num outro tipo legal de crime esta norma estabelece uma designação do novo tipo legal, mas
dispensa que para se aplicar ela tem que ser sempre aplicada cumulativamente com outro tipo
legal de crime. Se o artigo 234º não preencher nenhum crime não tenho que aplicar esta norma.
Se não há crime não posso aplicar o artigo 234º. Esta norma, na verdade, é uma agravação
relativamente a outro tipo legal de crime.

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Depois uma coisa que parece estranha é o nº2. O nº2 manda punir a tentativa. De que pena?
Parece estúpido, mas na verdade não é porque se nós não tivéssemos o nº2 poderíamos ficar
na dúvida. Imaginemos que o tipo legal não permite a punição da tentativa mas por via da
agravação deste artigo 234º já permite. Poderíamos ficar na dúvida sobre o que deve prevalecer:
é o tipo legal de crime primário que é agora agravado por via deste, e se fosse não se punia a
tentativa. O legislador deu a resposta ao dizer que logo que por via deste artigo 234º mesmo
que a moldura penal não ultrapasse o 2 anos e 6 meses de prisão, o crime que o agente
preencheu – imaginemos que é punido com pena de prisão até 10 anos e não diz que a tentativa
é punida, mas por via deste como se acrescenta mais 1/3 já vai ser possível punir a tentativa.
Então não precisamos do nº2? Não, mas podia surgir a tal dúvida porque como o crime
fundamental não previa a possibilidade de punir a tentativa então o nº2 dá-nos a resposta. O
que o artigo 234º o que faz é mudar a moldura penal abstrata do tipo legal de crime então já
podíamos concluir que se ultrapassasse os 6 anos a tentativa já seria punível, mas o legislador
quis deixar isso claro e previu isso no nº2.

Tem-se admitido também, e parece que faz sentido, que para o agente ser punido desta forma?!
Afasta-se, desde logo, o dolo eventual, mas aqui até se diz que afasta o dolo necessário. Parece
que estamos aqui perante uma forma de agravação. Há uma agravação, por exemplo, do crime
de peculato. Se há uma agravação do crime de peculato é porque o agente atuou com dolo
direto. Este “intencionalmente” tendo em conta o facto de haver agravação dos limites da
moldura penal só se admite a modalidade de dolo direito. Há quem diga que se afasta o dolo
necessário e o dolo eventual e há quem diga que se afasta apenas o dolo eventual.

Este tipo legal, se virmos bem as coisas, é um tipo legal em que há aqui uma violação do princípio
do ne bis in idem porque o crime de peculato já é um crime praticado por um funcionário e é
praticado por um funcionário com todo o conteúdo de ilicitude acrescida que isso comporta e,
portanto, o artigo 375º do CP já tem uma moldura penal agravada relativamente ao crime de
abuso de confiança. Não se pode dizer, por outro lado, que o artigo 234º do CP queira proteger
de uma forma particular os bens do setor público ou cooperativo. Este artigo só em relação às
unidades do setor cooperativo é que faz sentido. Imaginemos que sou gestor público e tenho
acesso a um determinado automóvel e levo-o para o fim de semana e fico com ele e passo a ser
eu a utilizá-lo. Pratiquei este crime, apropriei-me. Eu estar a apropriar-me desse bem do setor
público já provoca uma agravação. É certo que o artigo 375º também diz se pena mais grave lhe
não couber. Do ponto de vista literal tenho margem para aplicar o artigo 234º, mas na realidade
eu já puni o facto de me apropriar do automóvel por ser funcionário mais gravemente ao
transformar o crime de abuso de confiança em peculato, e eu agora ainda vou ter uma outra
norma que repete o que está no artigo 375º que diz que se agrave mais 1/3. Portanto, do ponto
de vista da ilicitude/da culpa o prof. tem dúvidas sobre se esta norma não será inconstitucional
quando aplicada ao artigo 375º do CP porque estamos a valorar o mesmo ponto de ilicitude. Se
não houvesse nenhum crime que punisse de uma forma mais grave quem é funcionário aí
percebia-se esta norma. Mas a partir do momento em que temos já um crime de peculato feito
propositadamente para quem é funcionário e se tenha apropriado de uma determinada coisa e
essa coisa faz parte do setor público isso esvazia o conteúdo de sentido do artigo 234º e para
além disso há dúvidas quanto à sua constitucionalidade isto porque não estaremos a punir duas
vezes o mesmo conteúdo de ilicitude? Não haverá violação do princípio do ne bis in idem?

82
Ac. TRP de 2/10/1991:

I – Nada impede a acumulação real entre os dois tipos de crime de abuso de apropriação
ilegítima de bens do setor cooperativo e de administração danosa de unidades económicas
desses sectores. Aqui poderíamos pensar na agravação do artigo 234º funcionar em relação ao
artigo 235º? Não. A agravação é em função da qualidade do agente. O artigo 235º é
aproximadamente o crime de infidelidade mas quanto ao setor público ou cooperativo e ainda
se exigindo mais relativamente à violação por parte do agente porque se exige que ele viole
normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, provocando dano patrimonial
importante. Portanto, aqui no artigo 235º ele não se apropria de nada, pura e simplesmente
provoca danos. Não podemos, por isso, aplicar o artigo 234º ao artigo 235º do CP. Este acórdão
o que diz é que não há nada que impeça que uma pessoa que seja punida nos termos do artigo
234º pratique também uma administração danosa do artigo 235º. Diz que alguém que pratique
um crime de administração danosa pode depois ser punido também pelo concurso efetivo com
apropriar-se. Vamos fazer o raciocínio para a infidelidade que é o contraponto da administração
danosa para o setor privado: neste acórdão, fazendo o paralelo, temos a infidelidade e depois
temos a apropriação ilegítima a que chamos de abuso de confiança mas os fundamentos dos
tipos legais são os mesmos. Este acórdão vai no sentido de que entre o crime de administração
danosa e o crime de apropriação legítima há um concurso efetivo, e bem.

II – O arguido, gerente bancário de unidade cooperativa do sector, que saca ou permite que
outrem saque a descoberto, sabendo que vai lesar esse estabelecimento bancário e se conforma
com esse resultado, comete o crime de abuso de confiança agravado nos termos do art. 332º do
CP. III – Verifica-se o crime de falsificação de documento na aposição num cheque da declaração
de “visado” feita pelo gerente bancário combinado com o respectivo sacador, ambos sabendo
que a conta desse sacador já nesse momento apresentava saldo negativo. IV – A apresentação
desse cheque a pagamento noutra instituição bancária com o consequente recebimento da
importância do cheque integra o crime de burla. Aqui o gerente saca a descoberto em relação
ao seu próprio banco. Diz a Relação do Porto que pratica o crime de abuso de confiança agravada
do artigo 205º, nº5 do CP. Mas, verdade, ele apropria-se fazendo parte de uma unidade do setor
cooperativo do Estado e então não parece ser o crime de abuso de confiança agravado do artigo
205º, nº5, seria o crime do artigo 234º. O gerente de um banco que seja um banco cooperativo
(se fosse um banco público não haveria dúvidas nenhumas de que caberia) não cabe na noção
de funcionário do artigo 386º. E então não pode caber no crime de peculato e então resta o
crime do artigo 205º que é o crime correspondente ao crime de peculato para quem não tem
característica de funcionário. E dentro do artigo 205º é um dever que lhe é imposto por via da
sua profissão e, portanto, o artigo 205º/5. Ou seja, está bem porque é abuso de confiança
agravado do artigo 205º.

ADMINISTRAÇÃO DANOSA (artigo 235º do CP)

Aplicável às unidades do setor público e do setor cooperativo. “Intencionalmente” afasta pelo


menos o dolo eventual. Exige-se o quê? Que se infrinjam normas de controlo ou regras
económicas de uma gestão racional.

Aquilo que se visa é punir mais gravemente aqueles que por via da posição que ocupam em
função de numa unidade integrada no setor público ou cooperativo provocam dano patrimonial

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importante. Bastava criar um outro número na infidelidade e dizer isto. Seria mais fácil porque
este artigo quanto ao dano patrimonial importante é o mesmo que vimos à antes. Mas aqui a
doutrina interpretando o que se dizia na ex-RDA diz que o serviço tem que ter falhas no
funcionamento, não tem que falhar completamente. Estas normas de controlo ou regras
económicas de gestão racional é a tradução daquilo que dizia no código da ex-RDA.

O que são normas de controlo ou regras económicas de gestão racional? Prova pericial. Não é
muito diferente, apesar do artigo 224º não usar esta expressão usa “grave violação dos poderes
que lhe incumbem” no fundo isto não é muito diferente. Não usou a mesma expressão porquê?
Porque a grave violação dos poderes que incumbem tem mais ligação ao Direito Privado. Aqui
não podemos esquecer que nós estamos numa economia da ex-RDa planificada. Portanto, fala-
se em regras de controlo ou regras económicas – estas eram fixadas pelo Estado (economia
planificada). Isto no que diz respeito à ex-RDA era muito mais fácil preencher. A partir do
momento em que não temos economia planificada, mas sim de mercado, isto é mais difícil de
preencher porque as regras de controlo ou regras económicas não podemos ir buscar ao Estado
que ele não nos vai dizer.

Basicamente é ultrapassar aquilo que o gestor público ou de unidade cooperativa devia ter como
regras comuns. É o gestor público médio, é o gestor de uma cooperativa média; não é aquele
que é brilhante mas também não é aquele que é o pior de todos (é aquele que é habitualmente
prudente e diligente). Se incumpre esse patamar então aí é que pode provocar este crime.

A moldura penal abstrata é mais grave em função do objeto de ação, em função de se tratar de
uma unidade do setor público ou do setor cooperativo. Partilha de uma certa visão estatizante
da economia. Esta norma nasceu velha.

Crime específico impuro ou impróprio. Crime de execução vinculada, material e de dano. Crime
de infidelidade específica (ou especial). A consumação exige a produção do dano patrimonial.
Não se exige qualquer enriquecimento do agente.

Aula de 18 de dezembro de 2020

CRIME DE BRANQUEAMENTO (artigo 268º-A do CP)

O crime designa-se como crime de branqueamento. Mas nós já ouvimos dizer “crime de
branqueamento de capitais”. Não está errada esta última expressa, mas apenas incompleta, isto
porque os capitais não são a única coisa que pode ser branqueada.

As vantagens são o decréscimo patrimonial do património do agente em virtude da prática do


ilícito. Na maior parte dos casos, é verdade, as vantagens derivadas da prática de um crime são
dinheiro, capitais. Mas não tem que ser necessariamente assim. Por exemplo, no caso da burla
a pessoa pode pagar-me através de uma coisa móvel (joia, relógio, etc.). Ou seja, a vantagem
pode ser outra coisa móvel que não dinheiro. Também pode a vantagem ser obtida por via de
coisas imóveis: eu posso obter em virtude da prática de um crime a titularidade como
proprietário de um prédio; ou o caso em que está em causa, por exemplo, um crime de uma
dação em cumprimento e a dação em cumprimento resulta na entrega de determinado imóvel.
Portanto, a nossa terminologia legal “crime de branqueamento” está correta, mas muitas vezes
o próprio legislador nacional e o legislador comunitário usam a expressão “branqueamento de

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capitais”. Assim, a expressão correta é apenas “crime de branqueamento” e não “crime de
branqueamento de capitais” porque não são apenas os capitais que podem ser branqueados.

Apenas em 2002 o crime de branqueamento é inserido no CP através de um aditamento (artigo


368º-A do CP).

O crime de branqueamento é um crime de natureza compósita/crime dual/crime


bifronte/bifrontal.

O que é que temos no branqueamento? Alguém pratica um crime e retira vantagens em virtude
desse crime. Quando há a prática de um crime há o problema de saber o que “fazer” com o
produto do crime? O problema é que as vantagens estão “manchadas” no sentido em que
enquanto não me desfizer das vantagens tenho uma prova do crime. Na década de 20 do séc.
passado, e daí o nome de branqueamento, essas organizações criminosas e terroristas tinham
elevados fluxos monetários. O problema era eles introduzirem esses fluxos monetários no giro
comercial como se aquele dinheiro tivesse uma origem ilícita. A ideia foi criar uma grande cadeia
de lavagem de dinheiro. O objetivo é introduzir no giro comercial/na economia algo que provém
do dinheiro tornando em algo que tenha a aparência de licitude. Se não conseguisse provar o
crime, por exemplo, de tráfico de estupefacientes, é evidente que caia o crime de
branqueamento porque o crime de branqueamento dependia sempre de um crime
anterior/antecedente/precedente. Havia esta relação e por isso é que se fala em crime dual
porque era preciso haver um crime anterior para depois haver o ato de branquear e o crime de
branqueamento. Se não se conseguisse fazer a prova da existência do delito anterior o
branqueamento também caia. Percebemos isto porque o crime de branqueamento no fundo é
um crime de aproveitamento, ou seja, o branqueamento claro que tem um conteúdo autónomo
de ilicitude porque, por exemplo, eu posso furtar e ficar com o dinheiro e posso não tentar
branquear e ir usando o dinheiro na minha vida normal e neste caso não é branquear porque
não estou a dificultar a ação da justiça. Outra coisa é pegar nesse dinheiro e depositar na outra
de outra pessoa e essa outra pessoa deposita na conta de uma outra pessoa que vive na Suíça.
Em 2013 o legislador mudou isto.

O legislador comunitário, crítica feita por várias pessoas inclusive pelo professor – artigo acerca
do crime de branqueamento do professor acerca das alterações de 2017 em que passa a haver
crimes de branqueamento duais e crimes de branqueamento não duais em que não se exige a
prova do anterior. A União Europeia tem aqui um problema com o branqueamento: tanto quer
punir o branqueamento de qualquer forma que acaba por chegar a soluções que parecem
inconstitucionais porque em alguns casos nem sequer exige um crime precedente, mas como
sabemos só se pode branquear aquilo que tem origem ilícita. Porque se eu oculto/escondo o
meu salário não há qualquer problema porque não é de origem ilícita. As offshores não são
ilícitas, o que é ilícito é colocar dinheiro ilícito nas offshores. Portanto, a partir de 2017 há a
hipótese de mesmo que não se prove o crime precedente se pune o agente pelo crime de
branqueamento. – Isto é uma contradição: como é que posso branquear alguma coisa que eu
não sei que tem uma origem ilícita?

O que é que se protege com o crime de branqueamento?

1. Se fizermos uma análise meramente sistemática verificamos que o que está em


causa é a ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. Há muita gente, onde se inclui o prof., que

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considera que o que está em causa no branqueamento é a proteção da realização
da justiça, é a boa administração da justiça. Ou seja, o que faz o agente quando
branqueia? O agente tenta impedir ou dificultar a ação da justiça porque vai ocultar,
dissimular, vai até tornar não utilizável, vai destruir aquilo que são vantagens ilícitas.
Portanto, aquilo que ele está a fazer é colocar obstáculos à administração da justiça.
– Esta é uma das teorias que é a posição maioritária.

2. Há outros autores, porém, que dizem que o que está em causa no branqueamento
é a INTEGRIDADE DOS SISTEMAS ECONÓMICO-FINANCEIROS porque quando se
está a introduzir no giro comercial estas vantagens ilícitas está-se a pôr em causa a
confiança que as pessoas possam ter no sistema financeiro e económico, deixa de
haver confiança no tráfego jurídico.

3. Outros autores dizem que o bem jurídico em causa é o CONFISCO DAS VANTAGENS
PROVENIENTES DA PRÁTICA DE UM CRIME, ou seja, é garantir que o crime não
compensa, confiscando aquilo que é objeto da prática de um crime.

A posição quanto ao bem jurídico terá reflexos concretos nomeadamente em sede de concursos
aparente ou efetivo.

O legislador procurou sempre que o crime de branqueamento só existisse em relação a um


catálogo fechado de crimes. Desde 1993 este catálogo foi sendo cada vez mais aumentado. A
redação atual do artigo 368ºA do CP é fruto da Lei nº 58/2020, de 31 de agosto. No nº1 temos
os factos ilícitos típicos relativamente aos quais pode haver branqueamento. Se nós estamos
perante um facto ilícito típico:

▪ Al. a) tem a ver com crimes contra a autodeterminação sexual


▪ Al. b) refere-se às burlas (não todas)
▪ A al. c) contém os crimes que estão previstos na Lei do Cibercrime
▪ A al. d) contém o crime de associação criminosa do artigo 299º do CP
▪ A al. e) contém o crime de terrorismo (previsto em legislação avulsa)
▪ A al. f) consagra o tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas
▪ Al. g) refere-se ao crime de tráfico de armas
▪ Al. h) tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos
▪ Al. i) contém os crimes contra a natureza/crimes ambientais
▪ Al. j) fraude fiscal ou contra a segurança social
▪ Al. k) tráfico de influências
▪ Al. l) abuso de informação privilegiada (insider trading) ou manipulação de mercado (previsto no
Cód. de Valores Mobiliários)
▪ Al. m) previsto no Cód. da Propriedade Industrial.

Tem que ser um dos crimes acima mencionados. No entanto, não é necessariamente um
catálogo fechado. Isto porque o legislador percebeu que fazer uma enumeração taxativa
deixaria de fora outros crimes. Então utilizou uma cláusula geral que nos diz que também podem
ser objeto de crime de branqueamento os crimes puníveis com pena de prisão cujo mínimo seja
superior a 6 meses ou cujo máximo seja superior a 5 anos. Por exemplo, o crime de burla
qualificada do artigo 218º, nº2 do CP não consta do catálogo mas pode ser objeto de
branqueamento.

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O nº1 é uma norma definitória que nos diz quais os crimes que podem ser objeto de
branqueamento. “(…) consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer
forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos (…)”. Estes ilícitos têm que ser consumados
ou pode ser apenas a tentativa? A lei não distingue e por isso pode ser um crime apenas na
forma tentada. Portanto, estes ilícitos abrangem quer os crimes na forma consumado quer os
crimes na forma meramente tentada. O agente que praticou o ilícito anterior e que branqueou
foi um mero cúmplice – isso importa? Não. Qualquer forma de comparticipação. A lei fala de
“bens ilícitos típicos” e não de crimes – mais uma vez isto é um alargamento da tutela penal
porque, como sabemos, ao falar-se em factos ilícitos típicos estamos a permitir, desde logo, que
se trate de factos praticados por um inimputável. Um inimputável pode praticar o facto anterior
e pode praticar o branqueamento porque aquilo que se exige é um facto ilícito típico e não um
crime (no crime exige-se culpa e o inimputável só não tem o requisito da culpa). Quando dizemos
“crime precedente” devemos ler “ilícito precedente” (um ilícito tanto pode ser um crime como
um facto ilícito típico).

Nº2 “Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número
anterior”. Ou seja, se eu por via de um crime de abuso de informação privilegiada ganhei, em
mais-valias, 1 milhão de euros, e se com isso adquiri participações sociais numa sociedade
comercial, essas participações sociais também se consideram vantagens.

Nº3 “Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de
vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem
ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou
submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos ”. Apenas neste nº3 está
descrito o crime. Quanto ao agente é, atendendo ao tipo objetivo, um crime comum (“Quem”).
Depois temos as várias formas típicas de realização deste ilícito: “converter, transferir, auxiliar ou
facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro,
direta ou indiretamente, com o fim de (…)” – até aqui temos vários verbos que traduzem as
modalidades típicas. Atua-se com uma determinada finalidade o que significa que quando se diz
“a fim de” em termos técnicos é o mesmo que dizer “com intenção de” – estes são os tais
elementos subjetivos especiais (no tipo subjetivo há duas grandes categorias: o dolo do tipo e
os elementos subjetivos especiais). O crime de branqueamento é um crime que, para além do
dolo tipo, exige também que o agente atue com uma de duas alternativas: ou finalidade de
dissimular a sua origem (das vantagens) ilícita; ou evitar que quem praticou algum dos ilícitos
seja submetido a uma reação criminal. Esta finalidade é uma finalidade igual ao crime de
favorecimento pessoal do artigo 367º do CP. Moldura penal abstrata: pena de prisão até 12
anos.

Nº4 “na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos ”. Esta é apenas
outra forma de praticar o crime de branqueamento, mas o legislador autonomizou. No nº3,
normalmente, implicam ações e no nº4 omissões.

Nº5 “incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as
vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento
inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade”. Esta é outra forma típica de punição. Ou seja,
temos três números para três formas típicas de punição. O nº5 é próximo do crime de recetação

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do artigo 231º do CP. A pessoa não praticou o facto ilícito típico, mas adquire, detém ou utiliza,
com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização,
dessa qualidade.

Nº 6 “a punição pelos crimes previstos nos nºs 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos
factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais
factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei
do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5º ”.
Não interessa saber onde é que os factos ilícitos típicos que dão origem ao branqueamento
foram praticados.

Prescinde-se da identidade dos autores, ou seja, logo que haja alguma destas atividades não
interessa quem as praticou e, portanto, são igualmente punidas. Claro que aqui estamos a partir
do princípio de que quem branqueia é diferente de quem praticou o ilícito típico porque se eu
não sei quem é que praticou o facto ilícito típico então também não vou saber quem é que
praticou o branqueamento. Portanto, isto é para os casos em não há autobranqueamento, ou
seja, os casos em que é o próprio agente que pratica o facto ilícito típico que branqueia a origem
dessas vantagens. O mais normal é eu praticar o facto ilícito típico e branquear. Neste caso só
poderá ser punido o agente que praticou o crime de branqueamento se for diferente do agente
que praticou o ilícito antecedente.

“Ainda que vários factos tenham sido praticados fora do território nacional”. Portanto, aqui
importa fazer uma revisão da teoria da lei penal, ou seja, da aplicação da lei no espaço. Temos
que ver as normas de direito interno que disciplinam em que circunstâncias é que os nossos
órgãos penais se consideram competentes para julgar um determinado facto que ocorreu
dentro ou fora do território nacional. Como acontece na generalidade dos países vigora o
princípio da territorialidade que consta do artigo 4º do CP. Este princípio da territorialidade é
integrado pelo princípio do pavilhão, ou seja, os factos praticados a bordo de navios ou
aeronaves registadas em território português consideram-se que são praticados em território
nacional – há, portanto, um alargamento do território nacional. Este é um princípio que é
seguido pelos Estados desde logo porque é aquele que melhor corresponde às regras do direito
nacional. Do ponto de vista das finalidades da punição é no lugar onde o crime foi perpetrado
que se fazem sentir estas finalidades.

Contudo, o artigo 5º do CP consagra uma série de princípios complementares ao princípio da


territorialidade. Ou seja, há factos que apesar de serem praticados fora do território nacional
que o legislador considera que são igualmente puníveis porque há algum fator de conexão que
ligue o facto ao território nacional. O artigo 5º do CP consagra, por exemplo, o princípio da
proteção dos interesses nacionais, ou seja, há crimes que independentemente do lugar onde
são praticados (por exemplo, crime de falsificação de moeda) é o próprio agente que estabelece
o elemento de conexão com o território português; consagra também o princípio da
nacionalidade, ativa ou passiva, o princípio da proteção dos interesses universais, o princípio da
universalidade.

Portanto, o que se diz é que se também se pune mesmo que os factos antecedentes tenham
sido praticados fora do território nacional. Se não tivesse mais nada era um alargamento
extraordinário da esfera de aplicação do direito penal português porque se prescindia de fatores

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conexão. Mas o legislador em 2017 acrescentou “salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do
local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5º ”.

A maior dificuldade levanta-se no nº7 e que faz com que o crime de branqueamento perdesse a
sua natureza dual. Hoje em dia nós temos crimes que se mantêm com natureza dual e crimes
que já não têm essa natureza dual por causa deste nº7 que nos diz que “o facto é punível ainda
que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de
queixa e esta não tiver sido apresentada ”. Até 2017 dizia-se que se o ilícito subjacente é um crime
semipúblico ou particular e não se cumpriram os pressupostos exigidos nos artigos 49º e 50º do
CPP, então não se pode punir por branqueamento. Fazia sentido e mantinha a tal natureza
compósita porque se eu não posso perseguir o crime antecedente também não posso perseguir
o crime de branqueamento. Mas em 2017 diz-se que mesmo que o ilícito antecedente dependa
de queixa e ela não tenha sido apresentada ou tenha sido apresentada de forma intempestiva.
Isto levanta uma situação que para o professor é inconstitucional porque viola o princípio da
legalidade criminal. Nós só podemos dizer que existe um facto ilícito típico processualmente em
que momento? Quando há uma decisão e quando ela transitar em julgado, até lá não posso
dizer que o individuo praticou um facto Ilícito típico. Então como posso dizer que um facto ilícito
típico subjacente que era de natureza semipúblico em que não houve queixa ou foi apresentada
intempestivamente, como é que podemos dizer que houve ilícito típico que deu origem a
vantagens ilícitas que vão ser branqueadas? Não posso dizer isso. Ou seja, mesmo que o ilícito
subjacente não tenha sido perseguido criminalmente se há branqueamento pune-se o
branqueamento. Mas como é que se pode punir o branqueamento? Porque há vantagens. Mas
como é que sabemos que essas vantagens são ilícitas? Não sabemos. Mas elas podem ser lícitas
e só podemos punir vantagens que sejam ilícitas. Portanto, esta norma é inconstitucional.

Nº8 “a pena prevista nos nºs 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma
habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3º ou no artigo 4º da Lei nº 83/2017, de 18 de
agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais ”. Neste número
temos o crime de branqueamento agravado em 1/3 se o agente fizer das condutas uma forma
habitual ou se for uma das entidades referidas na Lei nº 23/2017. Esta lei estabelece uma série
de instituições, que a lei distingue em instituições financeiras e não financeiras, que têm uma
série de obrigações no sentido de prevenir a prática de branqueamento e de financiamento ao
terrorismo e que abrange, por exemplo, tudo o que sejam instituições financeiras, bancos, etc.,
ou seja, há uma série de negócios jurídicos que tem que ser reportados às entidades
supervisoras. E depois as entidades não financeiras entre as quais estão os advogados. A partir
do momento em que esta lei entra em vigor, os advogados quando, por exemplo, assessoram
uma cliente que vai comprar um imóvel e celebram contrato-promessa, fazem escritura pública,
etc., e se o advogado tem alguma suspeita de que o dinheiro que está a ser utilizado para a
compra do imóvel tem origem ilícita passa a estar obrigado a denunciar esse facto ao seu
bastonário que vai funcionar como uma espécie de “caixa de correio” que as irá remeter para a
Procuradoria-Geral da República. Esta norma levanta problemas do ponto de vista da sua
“coabitação” com o dever de sigilo profissional. Mas o sigilo profissional não existe
relativamente a factos que sejam crime e que sejam praticados a partir do momento em que os
advogados sejam contactados e para os quais muitas vezes são verdadeiramente cúmplices. Ou
seja, há muitos advogadores que “apelam” ao planeamento fiscal que por si só é licito. Mas há
casos em que se sabe da origem ilícita do dinheiro e se constitui uma offshore. Se alguém relata

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ao seu advogado os factos de branqueamento, não há obrigação de os relatar, mas se quiser
praticar a partir daí outros factos que impliquem branqueamento aí já tem a obrigação de
denunciar.

Nos nºs 9 a 11 temos o efeito que determinadas ações do agente podem ter do ponto de vista
da punição.

Nº 9 “quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja
prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em
1.ª instância, a pena é especialmente atenuada”. O nº9 é algo semelhante ao artigo 206º do CP, ou
seja, a importância da reparação ou da restituição. Tem que ser reparação integral do bem ao
ofendido. Artigo 73º diz como se faz a atenuação especial que neste caso é obrigatória.

Se for uma reparação parcial é uma atenuação facultativa da pena. Nº 10 “verificados os requisitos
previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial ”.

Nº11 “a pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas
decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde
provêm as vantagens”. Este número foi muitas vezes utilizado quando em Portugal se falou muito
sobre o instituto da colaboração premiada. Em Portugal discutiu-se até que ponto devemos ou
não adotar o regime da colaboração premiada. O único consenso que houve é que se porventura
Portugal adotar o regime de colaboração premiada nunca será como o Brasil. Nós sempre
tivemos manifestações daquilo que chamamos direito premial (a tentativa é direito premial
porque se pune a tentativa menos gravemente). Em 1993 disse-se que quem auxiliar a polícia a
descobrir outros meliantes ou ajudar o MP de forma decisiva a encontrar meios de prova
relevantes ou objetos ligados de alguma forma ao crime tem, por exemplo, uma atenuação
especial da pena. – Esta é mais uma marca de direito premial. A norma do rapto também diz
que se houver coautoria e se um dos raptores disser onde se encontra a vítima também há lugar
ao prémio. Ora, no branqueamento, na questão da droga também há direito premial. Porquê
que isto não é colaboração premiada? Nós não temos colaboração premiada. A lei diz que o
arguido até pode ajudar o MP, mas o MP não lhe pode garantir nada. No julgamento se o arguido
realmente ajudar o MP e se o auxiliar então aí o juiz do julgamento ele é que pode dar um
prémio. E que garantias tem o arguido até ao julgamento? Nenhumas. Neste aspeto o sistema
brasileiro é mais garantista para o arguido que decide colaborar porque é celebrado um acordo.
Neste sentido, um arguido que decida delatar no Brasil está mais protegido.

Nº12 “a pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da
pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens ”. Ou
seja, imaginemos que o agente praticou um crime de fraude fiscal e o crime contra a segurança
social. Que garantia é que ele tem que a pena que se aplique pelo branqueamento que se lhe
seguiu não pode superior à mais grave das penas concretas aplicadas? No crime de fraude fiscal
a pena de prisão é de 1 a 5 anos e no crime contra a segurança social é de 2 a 7 anos. Então o
agente sabe que pelo branqueamento, que ele praticou por via das vantagens que lhe advieram
desses crimes, ele não vai poder ser punido com mais de 4 anos de prisão porque é a mais grave
das medidas penais abstratas. Ou seja, temos que olhar para as medidas penais abstratas. Eu sei
que não posso ser punido com mais de 7 anos porque é o limite máximo mais grave. Mesmo
que depois a medida concreta da pena seja inferior a este limite máximo. “penas previstas” são
as molduras penais abstratas.

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