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Relaciorundo o seu estt4do col \ d (lltt'xt(lo (lcl
AIDS, JurandiT Freive Crosta coT\cltli {ltll' d nt'l\ça
na existência de uma ''sextulida.l.. Itotltn\Kt' \t{.il''
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14809C
H lí mais de zím séczz/o. a
homossexualidade tem fascinado e
aterrorizado a imaginação ocidental. Em
campos tão diversos como a literatura, o Jurandir Freira Costa
cinema, a psiquiatria, a psicarlálise, a
medicina social e Q sociobiobgia , o ocidente
[em tetttado desvendar m raízes do desejo
homossexual e classificar o homossuuat.
Ao mesmo tempo, a Fgura do homossextta! t

tornou-se o 'pilão prl:aferido do elaborado


teatro da moralidade burguesa -- a o-
pressão mais clara do desvio e do perigo
suual num inundo que insiste erit dividir a
realidade vivencimla da uperiêttcia suual
l

A Inocência e o Vício
eM tlormat e patológico. Isso ltunca esiex-e
tão evidettte como na década passada.
quatro o espearo da AIDS esucl msocia ção
ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTISMO
aparente com a homossexualidade \
masculina reproduziram, de Jornta
especialmente grotesca, as imagens mais
terríveis de periga, contágio e doettça, l
usando essa representa ções parajusti$cclr
fitos discrimi»Glórias, cruéis e desltmat\os l

cotttra m pessoas afetadm pela epidemia.


Com a claro'a e a intetigênci« que
caraclerizant toda sua obra , Jura t\dir Fteire
Coi/a despe/zda, em A Inocência e o Vício
- Estudos sobre o homoerotismo, a co/n-
[rução histórica da "homossuuctlid«te
Ao desconstruir as diversas práticas
discursivas que íêm constituído a
holtlossexualidade no imaginário soa«L do
mundo ocidental contentporâneo desde
meados do sécttto X}X, e ao cotttrastar
essmformações com a orgattiznção social
e cultura! das rotações cona o tt\esmo sexo
em outros cettários coltio a Grécia e {i
Romã antigas , ele questiona a própria R' ' UM ' #d@ ' U M "«Á
noção de um muttdo dividido enl Rio de Ja
homossexuais" e "heterossuliais" e a
própria realidade da " homossexualidade"
© Copa right 1992, Jurandir Freira Costa
ceG is para esta edição à
DUMARÁ DISTRIBUDORA OE PUBLICAÇÕES L'rDA
Rua Barata Ribeiro, 17 -- sala 202
cep 2201 1-000 Rio de Janeiro, RJ
tel: (021) 542-0248 fax: (02 1 ) 275-0294

Coordenação editorial
Alberto Schprejer
Para Célia, Ciça e Guia, o melhor de minha vida.
Copidesque u' o s ta, ..;uran d if Fr e ir e
André Telles Para minha mãe e meus irmãos, Janda, Liça e Cera

Para Teresa, amiga do dia a dia, que sempre sabe


CulosAUlertoHerszterg A inocência e o vicio eStIJdQS rir cúmplice e carinhosamente dos sonhos com o
3 Q b I'' e n h omo el" o t; i 3mGn Brasil de meus sonhos, das bobas emoções
rubro-negras e de minha paixão gauche pela
Capa
Vector Burton &í 3. 883/ç837 i /3. ed psican alise.

( 1 48090/98 ) Para aqueles meus clientes que em um outro


Ilustração da capa momento foram impedidos de amar em paz, pela
Auto-retrato de Aubrey Beardsley violência da intolerância.

B iBLt OTECA CENTRAL


UFE$
H.'p

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros
Costa, Jurandir Freira, 1944-
C873i A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo /
Jurandir Freira Costa. -- Rio de Janeiro: Resume-Dumará,
1992.
Bibliografia
ISBN 85-85427-17 5
1 . Homossexualismo na literatura. 2. Homosexualismo masculino

1. Título
CDD - 306.76
92-0694 CDU - 3-055 .3

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação


por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988.

,- n h.l P Ç:! A
Estes estudos fazem parte de uma pesquisa sobre
o impacto da AIDS no imaginário social. A
pesquisa foi financiada pela Fundação Ford e
realizada no Instituto de Medicina Social de
Saúde Coletiva da UERJ, de onde sou professor.
Gostaria de agradecer a colaboração que me foi
dada pelos colegas do Departamento de Políticas
e Instituições de Saúde, em especial a Richard
Parker. Sem a ajuda pronta e generosa de Ri-
chard, dificilmente teria podido levar este traba-
lho a tempo. Gostaria de agradecer igualmente a
competência, o carinho e a paciência com que
Resina Marchese ajudoume na preparação dos
ongtnais.
Sumário

Prefácio

Introdução 13

CAPÍTULO l
Os amores que não se deixam dizer 41

CAPITULO 2
impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 59

CAPITULO 3
Coniugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 77

CAPITULO 4
A inocência e o vício: du câté de chez Proust 105

CAPITULO 5
O homoerotismo diante da AIDS 127
Prefácio

Este trabalho trata da questão do homoerotismo masculino. A palavra


homoerotismo é empregada para aludir ao que chamamos de "homosse-
xualismo'' na língua corrente. As razões da preferência pelo termo são
explicitadas, ao longo dos textos que formam este livro, de diversas
maneiras. Na Introdução detenho-me sobretudo nas razões ético-teóricas.
Teoricamente, como procuro mostrar, homoerotismo é preferível a "ho-
mossexualidade" ou "homossexualismo" porque tais palavras remetem
quem as emprega ao vocabulário do século XIX, que deu origem à idéia
do "homossexual". Isto significa, em breves palavras, que toda vez que as
empregamos, continuamos pensando, falando e agindo emocionalmente
inspirados na crença de que existem uma sexualidade e um tipo humanos
homossexuais", independentes do hábito lingüístico que os criou. Etica-
mente, sugiro que persistir utilizando tais noções significa manter costu-
mes morais prisioneiros do sistema de nominação preconceituoso que
qualifica certos sujeitos como moralmente inferiores pelo fato de apresen-
tarem inclinações eróticas por outros do mesmo sexo biológico. Ora, com
base em outras convicções, sustento que não temos nem motivos éticos
nem teórico-científicos consistentes para defender a legitimidade dessas
opiniões. Nesse tópico, advirão, além do mais, que a carga de preconceito
contida no uso de palavras como ''homossexualismo" ou "homossexual"
é autónoma em relação à intenção moral de quem as emprega. A questão,
portanto, não é a de saber qua] a crença moral que cada usuário destas
noções possui, mas a de mostrar que conseqüências éticas elas acarretam
ou que limites são impostos ao que podemos saber sobre o problema,
quando nos limitamos a entendê-lo do modo convencional.
12 A inocência e o vício

Nos capítulos 1 , 2 e 4 trato da construção histórica da figura imaginária


do "homossexual" a partir de fontes literárias do século XIX e das
primeiras décadas do século XX. Sugiro que antes desse período não se
tinha nem se podia ter a noção de que existe uma "personalidade" ou um
perfil psicológico" comum a "todos os homossexuais", como acredita-
mos hoje em dia. Espero ter conseguido sustentar plausivelmente que
nossas idéias aparentemente espontâneas e intuitivas sobre o que ''é um
homossexual" nada mais são do que decantações imaginárias de um Introdução
estereótipo humano, inventado para funcionar como antinorma do ideal de
conduta sexual masculina adequado à formação da família burguesa.
Através da comparação com outras formas de organização sócio-cultural ,
sobretudo aquelas da Antigüidade greco-romana, tento fazer ver que a
idéia de uma "homossexualidade" transhistórica e "natural" não é defen
sável, salvo quando falamos do interior da crença que a torna razoável.
Essa crença no entanto é uma crença culturalmente arbitrária, opcional, e No conto Teddy,* J.D. Salinger narra como o garoto Teddy, voltando da
não "científica" ou "racional", como a maioria de nós é levada a acreditar. Europa, tem o seguinte diálogo com Nicholson, um outro passageiro do
navio em que vIaJava:
No capítulo 3 abordo de maneira incipiente as relações da teoria
psicanalítica com a questão do homoerotismo masculino. Este ponto será '(Teddy) Eu gostaria de saber porque as pessoas pensam que é tão importante
desenvolvido posteriormente, em um estudo exclusivamente dedicado ao ser emocional. Minha mãe e meu pai acham que uma pessoa só é humana se
tema. Finalmente, o último capítulo trata da vinculação, no imaginário pensa que uma porção de coisas são muito tristes, ou muito aborrecidas ou
social e individual. da AIDS com o homoerotismo. Na verdade, toda a muito.- injustas, sei lá. Meu pai se emociona até quando lêjomal. Ele acha que
sou desumano
seqüência destes estudos tinha por principal objetivo a análise do proble-
ma. Nesse capítulo proponho a tese de que a crença na existência de uma Quer dizer que você não tem emoções?
;sexualidade homossexual" é em parte responsável pelo tipo de resposta Teddy pensou antes de responder:
Se eu tenho, não me lembro de tê-las usado em momento nenhum. Não vejo
que os sujeitos homoeroticamente inclinados dão ao risco de infecção pelo qual a utilidade delas.
vírus conhecido como HIV. Concluo por fim que o modo como os sujeitos -- Você ama a Deus, não ama?
lidam com o preconceito sexual contra suas sexualidades homoeróticas é -- Sim, claro. Eu amo a Deus. Mas não o amo sentimentalmente. Ele nunca disse
decisivo para o destino das políticas culturais de combate à epidemia da que alguém tinha que amá-lo sentimentalmente. Se eu fosse Deus não ia querer
AIDS que as pessoas me amassem sentimentalmente. E incerto demais.
Você ama seus pais, não ama?
Amo sim. Mas você quer que eu use essa palavra com o sentido que você quer
que ela tenha, eu sei disso
-- Está bem. Em que sentido você quer usá-la?
Teddy pensou um pouco e perguntou, virando o rosto para Nicholson:
-- Você sabe o que significa a palavra "aHlnidade"?
-- Tenho uma ligeira idéia -- respondeu Nicholson secamente.
Eu tenho uma afinidade muito forte por eles. São meus pais, e todos nós
fazemos parte da harmonia uns dos outros, e porque eles gostam de ser felizes...

Devo a Á]varo a indicação da leitura do conto de Salinger


14 A inocência e o vício
Introdução 15

Mas não é assim que eles amam a mim e a Booper, minha imtã. Acho que eles
não são capazes de nos amar como nós somos. Parecem incapazes de nos amar disse Rorty apoiado em Davidson, a linguagem não tem tarefa fixa a
a menos que consigam ficar mudando a gente um pouquinho. Eles amam os desempenhar. Seu trabalho nem sempre é o mesmo. Em todo caso, quando
motivos que têm para nos amar tanto quanto amam a nós, e quase sempre mais. trabalha, o trabalho não pode ser o de "representar" algo que Ihe preexiste
Assim não é tão bom." (Salinger, 1969, p. 172.) c cuja essência será tanto mais verdadeiramente revelada quanto mais
verdadeiramente for lingüisticamente representada, ou seja, quanto mais
Teddy mostra que existem várias maneiras de se experimentar e descrever
o "vocabulário" usado corresponder ou adequar-se à "verdadeira natureza"
emoções, senffmenfos o amor. No vocabulário de seus pais amar "é amar
sentimentalmente a Deus" e "amar nos filhos os motivos que têm para do "algo" ou da "coisa". A tarefa mais interessante da linguagem, para
esses autores, não é a de "representar" mas a de criar laços discursivos
amá-los". Em seu vocabulário a gramática afetiva dos pais é dispensável, entre os sujeitos e/ou entre eles e as coisas e estados de coisas ao redor. de
tanto para amar a Deus quanto para amar ao próximo ou mesmo para
modo a estruturar um universo de sentido minimamente compatível com
;sentir emoção". Teddy diz nunca ter usado a palavra emoção e, embora
esteja habilitado a conhecer o que Nicholson quer dizer coH ela, não sabe
a sobrevida dos humanos. É essa a tarefa erótica da linguagem; é esse o
sentido freudiano de "ligação" significativa da pulsão sexual ou mera-
o que é "emocionar-se". Assim como alguém que sabe o que é "uma dor mente pulsão de vida.
de dentes" sem necessariamente tê-la sentido, Nicholson por seu turno não
sabia o que era não senflr emoção e mostra toda a estranheza de quem está Outra ressonância indesejável do termo linguagem vem do contexto
sendo introduzido a um novo vocabulário. cssencialista e idealista em que se costuma defina-lo. Entendo. como
Vocabulários diversos criam ou reproduzem subjetividades diversas. sugerem Rorty e Davidson, que não existe tal coisa como "a Linguagem"
proposição defendida por Lacan em certas passagens de sua obra (Lacan,
E, conforme a descrição de nossas subjetividades, interpretamos a subjeti-
1 976). A linguagem, de acordo com os dois primeiros autores, não possui
vidade do outro como idêntica, familiar ou como estranha, exótica e até
uma única natureza. Não é uma entidade em meio a outras entidades. com
mesmo desumana, como diziam os pais de Teddy a seu respeito. Assim o
regras fixas e estáveis de estruturação que determinam, em abstrato e sem
termo vocabulário, tal como o emprego, não tem o sentido de simples
ajuda de exemplos, os critérios de sua aplicação correta de termos gerais
glossário. Uso a palavra vocabulário como sinónimo de prática lingüística,
a exemplo de Rorty (1982, 1986a, 1986b, 1986c, 1989), ou de jogo de ou particulares, cada vez que falamos. Seguindo essa filiação, penso que
uma questão do tipo "qual a verdadeira natureza da linguagem?" é uma
linguagem ou forma de vida, segundo Wittgenstein. Nesta acepção voga
questão desinteressante pois para respondê-la teríamos que analisar a
bulário tem o mesmo significado de linguagem. No entanto a palavra
linguagem "fora dela", o que é inconcebível. Até segunda ordem acho que
linguagem, em seu uso psicanalítico tradicional, está fortemente associada
questões assim devem ser substituídas por outras como: "que posso fazer
à idéia de linguagem como instrumento de representação, e a associação
com a linguagem que utilizo para resolver tais ou quais problemas de meu
dificulta o entendimento de certas questões, como a da formação da
tempo?", "que alternativas linguísticas posso inventar para tornar minha
subyetividade, por exemplo. A partir de Frcud, mas especialmente depois
de Lacan, a linguagem não é um "ser simbólico", um fer/íum gula, (:Üo vida e a dos outros melhor ou mais satisfatória?", enfim, "que contexto
orienta o uso que faço de tais ou quais expressões para significar de tal ou
substrato material, gráfico ou sonoro, tem por função "representar", para qual maneira meus desejos e ações?" etc.
a Razão, a Mente, o Sujeito, a Consciência, o Espírito etc., aquilo que Ihe
é exterior ou extrínseco. Essa suposta função universal da linguagem, que Em síntese, o termo vocabulário tem a vantagem de evitar os equívocos
de que padece o sentido tradicional do termo linguagem, mantendo toda a
coincidiria com "sua natureza", é, diz Wittgenstein, só um./ago de /íngua-
gem ou mais umjogo de /l/zguagem. O jogo em que a linguagem tem a idéia de força performativa que a linguagem tem na construção das
subjetividades.
tarefa de "representar" falsa ou verdadeiramente o sujeito e o objeto
empíricos; o físico e o mental; a fantasia e a realidade; a imaginação e a E desse prisma que descrevo o que chamamos de subjetividade. A
percepção; idéias e sensações simples ou juízos lógicos complexos; "o subjetividadc é um efeito das linguagens, das práticas lingüísticas que
mundo ta] qual é" ou "o mundo lingüisticamente representado" etc. Mas, determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público:
O sujeito, no sentido de experiência subjetiva, nada mais é, na expressão
16 A inocência e o vício Introdução 17

davidsoniana, do que "uma rede de crenças e desejos". Seria a versão mais rimentação ou da reinvenção de estilos de existência individuais melhores
próxima do que em psicanálise postulamos como a correlação necessária ou mais belos. Nicholson portanto é quem aparece como um conservador,
entre sujeito e linguagem. As subjetividades então são uma decorrência um homem incapaz de relativizar o vocabulário final que emprega para
do uso de nossos vocabulários ou da maneira como ensinamos e apren- descrever e valorar suas crenças sobre emoções ou sentimentos íntimos.
demos a ser sujeitos. E verdade, se a disputa ocorresse em torno do objeto do desejo sexual,
Voltemos agora aos casos exemplares . Suponhamos que Teddy, em vez da posse de bens materiais ou pela supremacia de valores ideológicos etc.,
do garoto inteligente e excepcional por seus dotes premonitórios, como no a deferência pela vida e pela liberdade do outro talvez não fosse observada
conto, fosse um homem adulto chamado Michii pertencente à tribo dos da mesma maneira. Teddy e Nicholson poderiam vir a agredir ou a matar
Akaramas. Michii, para a maioria de nós seria alguém que fazia indistin- um ao outro. Nem tal eventualidade, porém, desfazia o laço social ou
tamente amor com homens e mulheres de sua tribo, e periodicamente, após
discursivo que os une a uma mesma comunidade de tradição. Nenhum dos
masturbar-se em rituais coletivos, atacava povos vizinhos matando outros dois poderia "esquecer" que estava "matando um humano". A prática
sujeitos e comendo-lhes o coração. lingüística fundadora de suas subjetividades teria imposto a ambos a
O terror de um indivíduo ocidental diante de tal cena seria quase necessidade de reconhecer no outro, mesmo sendo um inimigo, um igual
indescritível. Tíbias Schneebaum, um novaiorquino que viveu entre os em humanidade, ou seja, alguém para quem a vida é a última coisa da qual
Akaramas experimentou-o quando foi levado a participar de um desses se pode ser privado.
rituais (Schneebaum, 1971). Nosso espanto contudo revela o retorno do Michii ao contrário não teve como aprender a ver nos outros que não
recalcado. O que emerge em situações semelhantes é algo ao mesmo tempo os de sua üibo a "humanidade" que vemos. Na construção de sua subjeti-
sabido e esquecido: Michii e Teddy "são zlm de /zós". São sujeitos como vidade, por exemplo, sexualidade não é equivalente à privacidade ou
nós e o que os distingue da média de todos nós é a modalidade pela qual intimidade, e o gozo com a morte e a devoração dos que não são como ele
introjetaram a linguagem e aprenderam a sentir e a dizer ''o que é dor, é um hábito tão admissível e desejável quanto qualquer outro que Ihe
prazer, satisfação ou reconhecimento do valor de suas vidas e da vida dos ensinaram a exercitar. Aos nossos olhos Michii tende a ser visto como "um
outros". Ou sda, dito de outra forma e acentuando outro aspecto, o que monstro"; como um "homem quase aquém da fronteira da /zumanldade'
distingue Michii de Teddy e o que os distingue de nós é a maneira como No entanto quando Schneebaum foi admitido entre os.Akaramas, passou
utilizam a linguagem para lidar com as solicitações da morte e da des- a receber deles uma cortesia, um carinho, uma atenção e uma amizade que
truição, sempre prementes em nossa vida psíquica. nunca havia recebido em seu mundo de origem. Ao tornar-se um deles ou
Teddy é filho de uma cultura que o ensinou a respeitar a vida, a alguém como eles teve direito ao benefício da vida e da consideração,
liberdade e a busca da felicidade como a melhor maneira de alcançar a direito implacavelmente negado aos outros.
perfeição ética. Ele é um ocidental como a maioria de nós se julga. Por Em geral nossas condutas morais obedecem a esse tipo de ordenação.
isso ao discordar de Nicholson não o ofende, de imediato, física e moral Aqueles que se assemelham a nós, ou que se aproximam dos ideais morais
mente -- sentindo ou não vontade de fazê-lo --, não o mata e,'n aos quais aspiramos, merecem nosso respeito e têm suas condutas apro
excepcionalmente chegasse a este extremo, dificilmente conseguiria gozar vadas, ou seja, apresentadas como modelos a serem seguidos. Em contra-
devorando as vísceras de seu rival. Teddy exprime-se num vocabulário em partida os que se afastam dos modelos são reprovados e apontados como
que esse tipo de conflito, o conflito dc opiniões ou preferências que transgressores, anormais ou criminosos, conforme a infração cometida.
concernem à moral privada, é conciliável com o respeito pela integridade Na cu]tura de Teddy e Nicho]son o modelo ideal do ser humano impede
físico-moral do adversário. Salinger o apresenta como uma espécie de a "humanidade" de Michii de vir à luz, sob pena de ser punida com a prisão,
exemplar bem sucedido do que seria o homem ocidental, radicalmente com tratamentos médicos ou simplesmente com a morte. Na cultura de
convertido ao exercício da livre recriação das linguagens formadoras das Michii, Teddy c Nicholson, caso pertencessem à tribo vizinha dos Akara-
convicções éticas pessoais, sem relevância para a esfera pública. No mas possivelmente seriam assassinados,já que não faziam parte da huma-
vocabulário de Rorty ele seria um "cronista"; um praticante da expe- nidade da qual ele era membro. Por não falarem sua língua e portanto
18 A inocência e o vício
Introdução 19

não sentirem o que ele sentia, não fazerem amor como ele fazia, não psicanálise, por conseguinte, é o de pontuar a existência e a exigência de
partilharem suas crenças sobre a origem do mundo e dos homens etc., uma "moral mínima" em que a morte e seus derivados, "a dor física e a
Michii os teria abatido e comido como fazemos com os animais que nos
humilhação ou dor moral", sejam vistos e sentidos como "a pior coisa que
fornecem alimento. Nenhum instinto de sobrevivência da espécie, como
se pode fazer ao semelhante", como afimla Rorty (1 988).
pensa o senso comum, viria em seu auxílio para fazê-lo reconhecer a No entanto, prosseguiu Freud, instituir regras culturais não é o ponto
identidade humana de seus inimigos. Nós como ele somos aquilo que a
final na luta de Eros contra Tanatos. Com a cultura impedimos a morte de
linguagem nos permite ser; acreditamos naquilo que ela nos permite instalar-se em sua plenitude ou em seu nada, mas a tendência para gozar
acreditar e só ela pode fazer-nos aceitar algo do outro como familiar, com a destruição insiste e uma das maneiras de insistir tem por suporte o
natural, ou pelo contrário, repudia-lo como estranho, antinatural e amea-
a próprio equipamento cultural criado para limitar suas manifestações.
çador
Explico melhor. Não conhecemos culturas capazes de integrar simultd.
Em suma, porque somos produtos da contingência da linguagem e do neamente todas as formações imaginárias por meio das quais os sujeitos
desejo nossas morais são igualmente confíngenfes. Evito equívocos, toda- desejam e se relacionam. Cultura significa inclusão e exclusão de certas
via. Afirmar que as morais são contingentes não é o mesmo que dizer que possibilidades expressivas do sujeito e seu desejo. Uma cultura que tudo
todas as morais se equivalem; que tudo é relativo ou que qualquer conduta permitisse seria uma "cultura impossível", como a chamou Rieff. Em
é eticamente indiferente, posto que nenhum preceito absoluto pode ga-
outros termos, é o que depois de Lacan denominamos castração pela
rantir a posse do verdadeiro bem por quem quer que seja. A tal afirmação linguagem. Essa castração pode receber váüas traduções imaginárias, ou
caberia o ónus de mostrar onde fica esse ponto de Arquimedes, do qual se
seja, várias formas de ensinar aos sujeitos como seguir regras morais.
vê a relatividade de todas as morais sem ser ele próprio relativo. Ora, em Seguindo essas regras estruturamos nossas subjetividades de acordo com
psicanálise podemos dizer somente que, ao enunciarmos uma regra moral, os ideais de eu ou subjetividades modelares pressupostas nas descrições
falamos do interior de uma prática linguística que sempre exprime pre- do que "deve ser o sujeito" e que fazem parte de toda recomendação ética.
ferências por certas condutas. Não podemos fugir desses limites excito se Acontece que a estabilidade da cultura, sem a qual não existiriam
optarmos pela morte. Resta-nos então admitir a particularidade da con- recorrência de regras e tampouco subjetividades que se reconhecessem
dição humana, dela extraindo as conseqüências que nosso horizonte histó- como subjetividades, dá-se às custas de diferenças e oposições ao que não
rico permite extrair. é idêntico. Uma cultura só reconhece sua identidade distinguindo-se de
Uma delas foi a que Freud fez derivar da psicanálise. Criando o mito
outras. À/afafís mulandfs, o mesmo ocorre com a identidade do sujeito e,
do parricídio primordial Freud afirmou que ou aceitamos regras indi- finalmente, com os ideais de eu. Para que um ideal de eu mantenha-se
cativas do que é permitido, proibido ou prescrito, em matéria de relações operante é preciso que existam casos ou ocorrências subjetivas que contra-'
entre humanos, ou poderemos vir a exterminar-nos. Não porque o homem riem ou não cumpram os requisitos exigidos para a realização do ideal.
é o lobo do homem -- lobos não se exterminam enquanto espécie -- mas
Assim a construção de subjetividades ideais implica, Ipso Jacto, a
porque podemos gozar com a morre. E as formas de gozo com a destruição
do outro são virtualmente ilimitadas pois dependem apenas de nosso figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que não
podem, não sabem ou não querem seguir as injunções ideais. A esses, diz
imaginário individual e coletivo. Freud, é reservada a posição de objeto do desdQ.de destruição da maioria
Estes são a meu ver o paradoxo e a responsabilidade culturais da que em nome da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruir física
psicanálise. Embora sabendo que as morais são arbitrárias e que podemos ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam. E
aprender a respeitar a vida do outro ou a gozar com sua morte, a psicanálise o mecanismo da rivalidade em torno do "narcisismo das pequenas dife-
não pode escapar das sombras da história. Ela é herdeira de uma cultura renças", uma das mo]as de sua interpretação do fato cu]tura]
na qual o desejo de gozo com a destruição humana é sinónimo de Acirrar, Nossa tradição habilitou-nos a lidar com o problema, primeiro, reco-
donde o imperativo: "Não matarás". Nessa cultura a morte só se justifica n/zecelzdo sua exisfêncía; não negando que o desejo de matar existe!
quando se trata de manter vivo o princípio moral. O ideal ético da Segundo, modulando as instituições culturais de modo a responderem aos
20 A inocência e o vício
Introdução 21

apelos de gozo com a morte, discriminada e seletivamente. Dizemos por


derado no dia a dia como "homossexual" é um fardo moral e psíquico
exemplo que é proibido matar. Mas preferencialmente não matamos quem
extremamente custoso para muitos homens. IJma vez etiquetados assim
mata porque sabemos que matando criminosos podemos legalizar a pos-
são constantemente identificados por suas preferências sexuais, as quais
sibilidade de gozo imaginário com a morte por parte dos "não-assassinos'
por seu turno são moralmente desaprovadas, sqa pelo ridículo sda pela
Ao contrário, privando o homicida do poder de matar protegemos as classificação no rol das patologias médico-psiquiátricas ou mesmo
possíveis vítimas desse seu desejo afirmando ao mesmo tempo que até psicanalíticas. Evidentemente alguns conseguem superar a barreira do
uma vida pequena e mesquinha como essa, que se arroga o poder de retirar preconceito, criticando-o e propondo novos modos de julgamento moral
a vida de outrem, até ela merece ser respeitada no direito de viver. do homoerotismo. Grande parte entretanto não encontra respostas satisfa-
De maneira similar condenamos quem faz sofrer moralmente seu tónas para suas aspirações eróticas nos modelos de identidade sócio-se
próximo, confrontando o prepotente com a infração ao ideal moral e duais disponíveis, isto é, nos modelos "heterossexuais", "homossexuais'
mostrando-lhe que ser moralmente rebaixado é uma das piores experiên ou "bissexuais". Desenvolvem então formas de reação emocional ao
das a que podemos ser submetidos. Nos dois casos busca-se desincentivar preconceito que incluem muitas vezes a opção pelo risco de contágio, se
a estabilização de formas imaginárias de gozar com a destruição, trans isso vier ajuda-los a exorcizar o fantasma de uma vida pessoal esvaziada
mitindo aos sujeitos a capacidade de identificação com o sofrimento do de afeto e satisfação erótica.
outro, princípio regulador de nosso convívio. SÓ pela aquisição dessa A premissa destes ensaios portanto é a de que a discriminação é um
capacidade podemos experimentar velhas e novas alternativas de busca de tipo de crença que deve ser repudiado por este e outros efeitos do gênero.
felicidade individual, sem atentar contra a liberdade de experimentação de Apresentando certas práticas sexuais como anormais, doentes. antinaturais
nossos iguais. ou moralmente incorretas a linguagem da discriminação estigmatiza nu-
Tendo em vista esse efAos ídea/ pretendo analisar nesta coletânea de merosos sujeitos que se afastam dos ideais sexuais da maioria. Criticar a
estudos a questão do homoerotismo masculino por diversos ângulos.* A crença discriminatória significa desse modo criticar também o vocabulário
escolha contudo não foi aleatória nem motivada exclusivamente por preo que permite sua enunciação e que a torna razoável aos olhos dos crentes.
cupações acadêmicas. Ela deveu-se à importância ganha pelo tema diante No caso a crítica visa o emprego dos termos "homossexual'' e "homosse-
do surgimento público da A]DS. De início o homoerotismo foi associado xualismo". Em minha opinião essa temlinologia determina a priori as
com a AIDS à maneira hoje obsoleta de antecâmara da morte. Esse perguntas que fazemos e as respostas que podemos encontrar quando
primeiro período passou. Já não mais se ouve dizer que a AIDS é "um analisamos as práticas homoeróticas. Portanto espero poder justificar a
câncer gay". No entanto o preconceito sexual permanece. Continuase a escolha que fiz da noção de homoerotismo, mostrando sua importância
descrever as possibilidades de realização afetivo-sexual homoeróticas para a discussão do preconceito.
como doença, anomalia, neurose, perversão, indecência etc. Com isso, Prefiro a noção de homoerotismo à de "homossexualismo" por três
querendo ou não criam-se problemas morais graves para muitos indivíduos principais razões. A primeira é de ordem teórica. Diz respeito à maior
com esse tipo de inclinação sexual, que vão refletir-se na forma como clareza que proporciona o uso do primeiro termo e não dos termos
reagem diante do risco de infecção pelo HIV. convencionais de "homossexualismo" e "homossexualidade". Homoero-
Como procurei mostrar nos trabalhos que se seguem, principalmente tismo é uma noção mais flexível e que descreve melhor a pluralidade das
no estudo sobre "o homoerotismo diante da AIDS", viver sendo consi- práticas ou desejos dos homens some-iex oríepzfed. Como ressaltam Lewes
(1989) e Stoller (1979, 1987, 1989), interpretar a idéia de "homos-
sexualidade" como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual
A questão do homoerotismo feminino não será analisada no trabalho, dados sua menor comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer num
relevância para o problema da AIDS e os limites próprios a esta investigação. De qualquer
forma, a história do homoerotismo feminino é bastante diversa da de seu homólogo masculino grande erro etnocêntrico. Penso que a noção de homoerotismo tem a
Espero que, brevemente, os estudos de Daniela Rapa venham trazer maiores esclarecimentos
à questão.
vantagem de tentar afastar-se tanto quafito possível desse engano. Primei-
ro, porque exclui toda e qualquer alusão a doença, desvio, anormalidade,
22 A inocência e o vício Introdução 23

perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra "homos- comum" quando analisamos homens com inclinações homoeróticas em
sexual". Segundo, porque nega a idéia de que existe algo como "uma nossa sociedade. Ir além é trafegar no terreno pantanoso de um vocabulário
substância homossexual" orgânica ou psíquica comum a todos os homens criado para fazer-nos ver homogeneidades onde, com uma pequena volta
com tendências homoeróticas. Terceiro, enfim, porque o termo não possui do parafuso, podemos ver multiplicidades e heterogeneidades.
a forma substantiva que indica identidade, como no caso do "homossexua- Mesmo o uso da palavra homoerotismo, escolhida por sua maior
lismo" de onde derivou o substantivo "homossexual". isenção em relação à conotação moral imputada à palavra "homossexua-
O último aspecto é importante por seus efeitos imaginários. Porque lismo", porém, deve ser visto como tática argumentativa e não como
usamos na linguagem ordinária o substantivo "homossexual" terminamos proposição conceptual com pretensões à validade universal. Como procuro
reféns de nossos hábitos. O emprego freqüente do termo leva-nos a crer mostrar adiante, homoerotismo guarda do costume lingüístico admitido a
que realmente existe um tipo humano específico designado por esse idéia de "atração pelo mesmo sexo", ideia que deve ser aceita com
substantivo comum. Vamos além, acreditamos que a peculiaridade apre- reservas, dada sua ambigüidade semântica. Melhor seria dizer, então, que
sentada por esse tipo é uma propriedade permanente da natureza de certos o emprego do termo visa sobretudo distanciar o interlocutor de sua
homens, que independe das descrições que a tornam visível e plausível aos familiaridade com a noção de "homossexualidade". Tal familiaridade
nossos hábitos linguísticos. Ou sda, é uma qualidade de certos humanos pode fazê-lo traduzir o que pretendo dizer como uma nova reavaliação
que antecede os vocabulários responsáveis pela invenção do termo "ho- moral do "homossexualismo". Não é esse meu intento. Tenho a intenção
mossexual" e do suposto tipo de homem que Ihe corresponde. de mostrar que o "homem homossexual" nada mais é que uma realidade
Em vista disso não há porque substituir o termo "homossexual" por um lingüística, e não uma realidade natural. É uma forma de subjetividade que
substantivo homólogo derivado de homoerotismo. Tal démarcAe caucio- como qualquer subjetividade pode ser historicamente circunscrita em seu
naria a crença de que existe "algo comum a todos os homossexuais" fora modo de expressão e reconhecimento. E, assim como em épocas preceden-
daquilo que nossa prática lingüística habituou-nos a ver e a interpretar tes outras crenças linguísticas conferiram foros de realidade natural ou
como o que existe em comum" entre todos os sujeitos homoeroticamente universal a certas formas de subjetivação, em nossa época fizemos da
inclinados. Assim sendo, quando emprego a palavra Aomoerofísmo refiro- 'homossexualidade" uma "realidade psíquica e sexual" que nos aparece
me meramente à possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos como um modo de ser do sujeito, natural e universalmente necessário, e
tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de diversas manei- não culturalmente arbitrário. Durante muito tempo por exemplo acreditou-
ras com outros do mesmo sexo biológico. Em outras palavras, o homem se que certos homens eram "por natureza escravos", outros, "por destino
homoeroticamente inclinado não é, como facilmente acreditamos, alguém espiritual, hereges", e certas mulheres primeiro por serem mulheres e
que possui um baço ou conjunto de traços psíquicos que determinariam a depois por apresentarem condutas que as afastavam da média, feiticeiras.
inevitável e necessária expressão da sexualidade homoerótica em quem No entanto como sou obrigado a referir-me a essa subjetividade, reco-
quer que os possuísse. A particularidade do homoerotismo em nossa nhecida pelo imaginário social como a "subjetividade homossexual", devo
cultura não se deve à pretensa uniform idade psíquica da estrutura do desejo designa-la de alguma maneira para fazer-me entender sobre o que quero
comum a todos os homossexuais; deve-se, sugiro, ao fato de ser uma falar. Por isso emprego a noção de homoerotismo. Volto entretanto a
experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maio- insistir que o termo não é um novo nome de batismo para uma mesma e
ria. Dizer isto é dizer que numa cultura como a nossa, voltada para a idéia velha realidade existencial, a "realidade homossexual". Tampouco pre-
de realização afetiva e sexual, privar certos sujeitos dessa realização é tendo dizer que homoerotismo é um conceito que em sua transparência
extremamente problemático. Tanto mais quanto os mesmos sujeitos foram racional exibe a verdadeira realidade psíquica e moral do homossexua-
ensinados a desejar esse tipo de satisfação. Conviver com essa espécie de lismo, coisa em que não acredito.
paradoxo emocional exige uma montagem imaginária em que certas A segunda razão por que prefiro homoerotismo a "homosscxualismo'
defesas psíquicas são recorrentes porquanto mostraram-se eficientes na é de ordem histórica. Concerne à construção social do preconceito contra
proteção contra o preconceito. Isso é o que podemos encontrar "em o homoerotismo. A palavra "homossexual" está excessivamente compro-
24 A inocência e o vício
Introdução 25

metida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, serológico e higienista


palavra "homossexual" são preconceituosas, ? -meçar pelos próprios
de onde surgiu. O "homossexual", como tento mostrar, foi uma persona- sujeitos homoeroticamente inclinados, que nãe dispõem na língua corrente
gem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade de outro termo para falar da identidade sócio-sexual que assumiram. E
requerido pela família burguesa oitocentista. Sempre que a palavra é usada verdade. Porém quando alega que a palavra "homossexualismo" ou "ho-
evoca-se, querendo ou não, o contexto da crença preconceituosa que até mossexual" tem seu sentido subordinado ao contexto discriminatório em
hoje faz parecer natural dividir os homens em "homossexuais" e "heteros- que apareceu, isso independe da intenção dos falantes. Seria estúpido,
sexuais' injusto e violento dizer que todas as pessoas que se referem a "homosse-
Explicito todavia que uso a palavra preconceito em seu sentido ordi- xualismo" são preconceituosas, como seria tolo e despropositado querer
nário, como uma crença moralmente indesejável posto que fundada na de agora em diante policiar o uso de termos como "homossexualidade" ou
intolerância. Não pretendo com isso afirmar que existem "crenças mais 'homossexualismo". Linguagem não é, compulsoriamente, acerto de con-
próximas da Razão" e portanto "menos preconceituosas'', e "crenças mais tas ou convenção parlamentar. E, repito, uma forma de vida, uma apare-
distantes da Razão" e portanto "mais irracionais'', "mais emocionais lhagem simbólica complexa por meio da qual lidamos com nossas
:mais subjetivas", enfim, "mais preconceituosas". De acordo com Rorty circunstâncias ambientais. Com a introdução do termo homoerotismo.
não creio que exista maior ou menor coeficiente de "Razão" ou, in- tomado de Ferenczi e que teve o assentimento de Freud, tive o intuito de
versamente, de "irracionalidade" entre os que condenam moralmente o apontar para aspectos do problema que permanecem ocultos enquanto
homoerotismo do que entre os que não vêem nenhum mo/ivo humana- persistirmos usando as noções de "homossexualismo", "homossexual" ou
mente úrlZ para manter essa condenação, como é o meu caso (Rorty, 1 990). 'homossexualidade". Acredito aliás que o preconceito mantém-se em
Acredito, isto sim, que recusar a algumas pessoas a possibilidade de se parte graças a essa ocultação, o que não significa, reinsisto, que empregar
realizar afetivo-sexualmente só porque não têm a mesma preferência a palavra "homossexual" é o mesmo que ser intolerante em relação ao
sexual da maioria significa ferir um dos esteios de nosso credo moral . Mas homoerotismo.
isto não é uma inferência racional feita a partir de dados objetivos e do Na verdade quando admitimos a dicotomia entre o "homossexual« e o
alto de uma linguagem de observação neutra. Ê a manifestação de uma heterossexual", que nos parece absolutamente intuitiva e evidente por si
preferência ética, isto é, optar por dizer como Rorty sugere, algo mais ou mesma, elajá é um elemento da crença que põe em relevo e sublinha as
menos assim: "se eu fosse posto num lugar desses certamente sofreria características sexuais dos sujeitos. Tal oposição nada tem de perceptual-
muito e assim como eu sofreria, o outro também deve sofrer sem que exista mente espontânea. Nenhuma divisão das pessoas em classes lógicas,
nenhum motivo plausível que justifique a necessidade ou inevitabilidade famílias naturais ou conjuntos gesráZrfcos é natural. Todos esses arranjos
desse sofrimento". Em outros termos, preferindo estender tanto quanto exigem uma seleção de predicados relevantes para certos interesses, que
possível a referência do pronome "nós" ou reconhecer um número cada são tão antinaturais quanto qualquer construto teórico que venhamos a
vez maior de pessoas como "um de nós", poderemos tentar evitar o imaginar. Nunca perguntamos -- até porque é assim que formamos
crescimento da ípzdeferença, com certeza o mais desumanizante de todos crenças -- o que nos levou a crer que existe "algo de muito importante
os sentimentos que podemos experimentar em relação ao outro.
de muito fundamental" para nossa vida moral no fato de aprendermos a
Não nos enganámos com a aparente simplicidade da recomendação dividir os humanos em "homossexuais" e "heterossexuais". Mas se a
moral que Rorty enuncia, a partir de Sellars. Para um psicanalista, além pergunta for formulada a partir de eventos que contrariem a pretensa
do quilate filosófico desse pensador, a recomendação traz também o aviso universalidade de classificação, então já dispomos de estratégias discur-
de que é na manutenção dos pequenos poderes que cotidianamente exer- sivas prontas a imunizar nosso pensamento contra a crítica, como disse
citamos a capacidade de gozar imaginariamente com o sofrimento alheio. Popper.
Por esta razão utilizei a palavra preconceito quando decidi prescindir do Quando por exemplo constatamos que em certas sociedades históricas
termo "homossexualismo" para referir-me ao homoerotismo masculino. ou etnológicas seria totalmente impensável distribuir os sujeitos em con-
Naturalmente pode-se objetar que nem todas as pessoas que se servem da juntos descritivo-valorativos de "homossexuais" e "heterossexuais", rea-
26 A inocência e o vício Introdução 27

gimos afirmando que se trata de uma "exceção". A regra, pensamos, é homens, raramente pensamos em Sócrates, Júlio César, Adriano, Ricardo
perceber a divisão como natural ; a exceção é não nota-la ou não valoriza-la Coração de Leão, nos heróis das epopéias gregas como Aquêles e Pátro-
como o fazemos. Mas a exceção só é "excepcional" vista do ângulo dc cles, ou no fato de que, dos quinze pri melros imperadores romanos Cláudio
quem está fora dela. Em sociedades onde o homoerotismo era tão ou mais foi o único exclusivamente "heterossexual" (Boswel1, 1980, p. 61). Essas
difundido quanto o heteroerotismo, excepcional era não adotar tais valo- imagens de homoerotismo contradizem nossos esquemas cognitivos ou,
res. E difícil imaginar um ateniense culto ou um guerreiro espartano da psicanaliticamente falando, nossas imagens narcísícas prqetadas em nos-
Antigüidade achando-se uma "exceção" à regra da sexualidade humana, sos ideais morais. Homoerotismo para a maioria de nós é sinónimo de
quando sabemos que se consideravam os representantes do que a "humani- pulsilanimidade, efeminamento e não da virilidade ou masculinidade das
dade" tinha de mais nobre e elevado. lendárias personagens que estão nas origens míticas da civilização ociden-
Nesse caso, replica-se, a exceção de que se fala não diz respeito a uma tal a que pertencemos ou queremos pertencer. Aqueles homens todos
cultura em particular e sim à espécie humana em sua totalidade. O tinham esposas, filhos, praticavam as artes da guerra, a filosofia, a mate.
contra-argumento é simultaneamente simples e simplista. Em resumo diz mática, a astronomia e alguns inclusive ensinaram-nos que a democracia
o seguinte: se todos os homens perdessem o interesse erótico por mulheres é a melhor forma de governo. Portanto é quase impossível para nossos
e passassem a se interessar exclusivamente por homens a humanidade hábitos lingüísticos associa-los à prática do homoerotismo. Não obstante
perderia a aptidão para reproduzir-se. Não é preciso muito esforço para a resistência afetiva e intelectual, o fato é que eles cultivavam "os amores
notar a fragilidade do raciocínio: ele parte de dois pressupostos falsos. masculi nos", segundo a expressão de Peter Gay, como cultivamos o "amor
Primeiro, o de que a prática do homoerotismo é incompatível com as heterossexual romântico", ou sqa, como o modelo de felicidade afetivo-
relações heteroeróticas. Ou sqa, faz-se coincidir todas as possibilidades sexual ao qual devemos aspirar. Onde, pergunto, o risco da "humanidade'
de expressão homoerótica com uma de suas figuras, qual seja, a do homem extinguir-se por falta de reprodutores? Trata-se de exceção, de anomalia
cuja afiação por outro homem exclui a capacidade de manter relações da natureza ou de manifestação da pluralidade possível da sexualidade
sexuais com mulheres. Isso entretanto é uma caricatura. Não é verdade que humana?
todos os homens com aptidão para se relacionar homoeroticamente sejam Entretanto se a solução teórica da exceção mostra-se insustentável,
incapazes de se relacionar sexualmente com mulheres. Manejando essa entra em cena o ''argumento da ignorância", um outro mecanismo homeos-
imagem do apocalipse o argumento conservador simplesmente introduz, tático do dispositivo de crença. Os antigos "civilizados", diz-se, assim
sem anunciar, um segundo pressuposto igualmente desmentido pelos fatos como os "povos primitivos", eram "homossexuais" que ignoravam sua
histórico-etnológicos: o de que uma cultura com um padrão de conduta/' 'homossexualidade" ! Pelo fato de não disporem do vocabulário cientíHlco
m4oritariamente homoerótico tornar-se-ia inviável do ponto de vista de de que dispomos eram incapazes de descrever corretamente a verdadeira
sua reprodução biológica. Não há melhor prova em contrário do que o natureza de suas inclinações sexuais. Acontece que aceitar essa hipótese
exemplo greco-romano da Antiguidade. implica em aceitar suas decorrências. Se de fato todos aqueles homens
Porém se tais exemplos não nos vêm mais facilmente à cabeça quando eram "homossexuais" sem saber, o que teriam de tão particular a ponto de
pensamos em homoerotismo, é porque além do silêncio do preconceito admitir, incentivar, louvar e gozar com práticas sexuais que hoje são
não conseguimos vincular a idéia do "homossexual" ou do "homos veementemente reprovadas pela maioria heteroerótica? Seriam eles espe
sexualismo" aos hábitos eróticos de tais culturas. No que temos razão em cialmente propensos ao "vício" e à "imoralidade"? Suponhamos que assim
parte, embora informados pelo preconceito, o que é aparentemente para- fosse. Suponhamos que a severa pedagogia grega e sua rígida éflca
doxal. De fato, como procuro defender em um dos trabalhos, os gregos poderá fica, como mostram Boswel1(1980) e Dover( 1 978), tivessem feito
eram "pederastas" e não "homossexuais". A pederastia como o "homos- proliferar a indecência e a perversão! Ainda assim, o que naqueles cida-
sexualismo" são duas formas de cristalização do imaginário cultural sobre dãos virtuosos e democratas teria respondido tão facilmente ao apelo da
a potencialidade homoerótica, e não dois nomes para um mesmo referente. pederastia? Tinham eles um património genético diverso do nosso, como
Como quer que seja, sempre que pensamos em relações eróticas entre sonham alguns partidários da teoria dos genes específicos da "ho-
28 A inocência e o vício Introdução 29

mossexualidade"? Se tinham, como explicar a miraculosa mutação que ao c aqueles que se sentem atraídos por homens mas por uma outra razão
cabo de algumas dezenas ou no máximo centenas de anos dizimou a nunca mantiveram contatos físicos dessa natureza? São fusos ou ver-
;espécie pederástica" sem deixar rastros? Essa crença obviamente não dadeiros homossexuais? E os que se sentem sensualmente atraídos por
teria sustentáculo científico algum. Sua inconsistência reafirma o que homens mas só têm relações físicas com mulheres? E os que só sabem ou
nossos costumes culturais têm dificuldade em admitir: o homoerotismo é só podem sentir-se atraídos ternamente por homens mas não têm nenhuma
uma questão de prática lingüística. Não existe objeto sexual "instinti- atração física particular por eles? E os que se sentem atraídos por homens
vamente adequado ao desejo" ou vice-versa, como reitera a psicanálise. só na fantasia mas preferem claramente, de todos os pontos de vista,
Todo objeto de desejo é produto da linguagem que aponta para o que ''é relações afetivo-sexuais com mulheres? E, finalmente, os que se sentem
digno de ser desejado" e para o que "deve ser desprezado" ou tido como atraídos apenas por partes do corpo masculino mas que não querem, não
indiferente; como incapaz de despertar excitação erótica. gostam e não pretendem relacionar-se com homens porque têm muito
A essa altura pode-se retrucar que a aprovação cultural do homo mais prazer ou só têm prazer no contato amoroso sexual com mulheres?
erotismo não demonstra que todos os sujeitos podem ser "homossexuais' O que são?
ou "heterossexuais"; demonstra apenas que a maioria de nós pode "com
Casos assim não são hipóteses teóricas. São exemplos de tipos de
portar-se homossexualmente ou heterossexualmente". Porém isso não desejos e comportamentos homoeróticos que tive ocasião de discutir no
significa que não possamos distinguir entre os "verdadeiros homos artigojá citado sobre "0 homoerotismo diante da AIDS". Tais sujeitos na
sexuais" e os "homossexuais de ocasião". Assim como na cultura "hete-
maioria acreditavam que eram em maior ou menor grau "homossexuais'
rossexual" dominante muitos "homossexuais" comportam-se como Por que fazem parte de nossa cultura não possuíam outra maneira de
;heterossexuais" sem sê-lo, assim também em culturas mdoritariamente
demarcar e denominar o que sentiam, a não ser apelando para o voca-
homoeróticas muitos "heterossexuais" podiam comportar-se "homosse-
bulário da "homossexualidade & heterossexualidade". Mas, pergunto, se
xualmente" sendo "heterossexuais". Além disso os "verdadeiros hemos
esses sujeitos são todos "homossexuais", o que têm em comum para se
sexuais" seriam aqueles que,. com ou sem estímulo moral da cultura, acharem membros de um mesmo conjunto de individualidades? A pri-
sentir-se-iam de qualquer modo mais atraídos por homens que por mu'
meira vista a resposta é simples: a atração pelo mesmo sexo l Porém várias
Iheres.
Mas esse mito "adâmico" da "homossexualidade natural", prévio a questões se escondem debaixo da resposta inocente. Primeiro, por que
imagmamos que exista uma aü'ação única, uniforme e suficiente para
qualquer intervenção cultural, é um mito retrospectivo. Um mito criado definir a identidade sexual, social e moral de uma pessoa por trás de todos
para fornecer um aparente fundamento objetivo a crenças que, com ou sem Í esses desejos e condutas díspares? Por acaso tal atração é feita de uma
ele, manter-se-iam de pé. O sentimento de racionalidade ou plausibilidade
mesma substância", reconhecível em suas propriedades estáveis e capaz
que ele inspira, para falar como William James, não vem de sua obje- de reproduzir-se e repetir-se emocionalmente em pessoas tão diversas
tividade fatual ou teórica; vem da verossimilitude que Ihe é dada pelo
quanto aquelas que acabamos de descrever? O que nessa atração, por
corpo de crenças que o sustenta e que ele é solicitado a reforçar. exemplo, nos permite saber que "sentir-se atraído e manter relações físicas
O mito é pouco aceitável por vários motivos. Em primeiro lugar, não homoeróticas" e "sentir-se atraído mas não ter proximidade física ou
conhecemos até agora nenhum critério público neutro ou objetivo para emocional com outro homem" sejam ocorrências da "mesma atração
dizer se alguém é ou não "um verdadeiro homossexual". Não existe essa erótica" que torna dois sujeitos "verdadeiramente homossexuais"? Quan-
pretensa posição epistemicamente privilegiada de onde possamos apontar
do se trata de linguagem de sensações e sentimentos sexuais existe algo
para o que é ''o verdadeiro homossexual" sem recorrer a petições de que preexista à própria identificação e ao reconhecimento linguísticos? É
princípio ou circularidades de raciocínios cuidadosamente escondidas. possível imaginar uma "sensação'' ou uma "atração homossexuais" cruas,
Perguntámos logo de início, o que se entende por "um verdadeiro homos- que se impusessem de imediato à consciência do sujeito sem a mediação
sexual".Um verdadeiro homossexual é aquele que só se sente atraído e só cla linguagem? Freud, Lacan e Wittgenstein dariam um rotundo não à
se relaciona sexualmente com homens? E isso? Se for, então perguntámos:
pergunta. SÓ podemos saber que "tal atração é homossexual" por que
30 A inocência e o vício
Introdução 31

dispomos com antecedência do conceito de "homossexual". Do contrário homens cuja atração pe]a penetração ana] faz da polaridade "atividade &
jamais poderíamos saber se o que sentimos é ou não "homossexual". A passividade" o critério de valoração de suas identidades ou atitudes se-
questão volta assim ao ponto de partida. Nada esclarecemos afirmando que xuais. E se considerarmos o exemplo da cultura grega o contraste com
a atração é "homossexual" porque, sabendo o que é "homossexualidade nossa moral sexual é ainda mais patente. Para um cidadão grego mulheres,
toda vez que a atração surgir saberemos reconhecê-la. O "ho- crianças, escravos e estrangeiros eram todos passíveis de ser legitima-
mossexualismo" que deveria ser explicado pela atração é que passa a mente investidos sexualmente, sem consideração pela diferença sexual
explica-la. entre masculino e feminino tal como a percebemos. Conclusão: a saída
Pode-se argumentar, no entanto, ainda instruído pelo senso comum teórica da "atração homossexual", definida como "atração pelo mesmo
linguístico, que a atração é um nome dado à pulsão sexual ligada a um sexo", não resolve a questão. O mesmo sexo, anatomicamente descrito,
objeto. Ora, a pulsão é indiferenciada; o que a distingue fenomenolo- nem sempre é o "mesmo" eroticamente investido. No que concerne à
gicamente é sua característica objetal. Então o problema foi mal colocado. finalidade do desejo a realidade anatómica é fragmentada na pluralidade
O que interessa não é a essência da atração e sim o objeto que define sua dos objetos parciais, como dizemos em psicanálise, e são esses objetos que
qualidade. Quando se diz que uma "atração é homossexual" quer-se dizer determinam, aí sim, as características da estrutura psíquica. Tomar o
que estamos diante de uma "atração por uma pessoa do mesmo sexo" . Aqui mesmo sexo anatómico como critério para deduzir a irredutibilidade da
de novo a aparente simplicidade da resposta esbarra em sérias questões de 'atração'' que definiria o "verdadeiro homossexual" ou o "verdadeiro
linguagem. Acho que neste como em outros casos estamos diante de um desço homossexual" é contrabandear a divisão sócio-cultural da "homos-
problema análogo ao problema do "coelho de Quino" ou da possibilidade sexualidade & heterossexualidade" pondo-a como premissa sem revela-la
da "tradução radica]" (Ver Murphy, ]990). O que é o mesmo sexo? O conceitualmente.
mesmo sexo é a identidade de género como a entendemos em psicanálise? Mas antes de prosseguir no jogo de linguagem da atração, pergun-
São as características sócio-sexuais do que chamamos masculino e fe- támos: por que o critério escolhido para ser o divisor de águas entre a falsa
minino? Mas, se do ponto de vista dos papéis sociais essas identidades e a verdadeira homossexualidade é o critério da "atração"? Por que não,
sexuais são razoavelmente percebidas de maneira uniforme, para fins por exemplo, o do comportamento, da prática física dos contatos homo-
práticos de orientação cultural, do ponto de vista da atração erótica que é eróticos? Deixo a interrogação aqui para retoma-la adiante em função do
o que nos interessa, a regra que estabelece o reconhecimento do que é ''o aporte de novos elementos teóricos. Continuemos a investigação por outra
mesmo sexo" em absoluto é seguida da mesma maneira. O "mesmo sexo" , via
para um sujeito que só se sente atraído pelos genitais ou outras partes l
Se na Grécia os "verdadeiros homossexuais" eram os que se sentiam
físicas do parceiro não é o "mesmo sexo" para um outro, para quem o 'verdadeiramente atraídos por seus parceiros homens", como saber disso
parceiro é predominantemente visto como objeto de amor. Da mesma sem perguntar a um grego se sua atração era ou não verdadeira? Se pudesse
forma o "mesmo sexo" para um prostituto que só mantém relações sexuais
contudo responder à pergunta, só saberia o que é a genuína ''atração''
por dinheiro e que tem nojo ou despreza seus clientes, ou ainda para os utilizando os critérios de "autenticidade" ou "veridicidade" de seu tempo.
que não se consideram "homossexuais" porque sempre são atlvos na Ora, esses critérios nada teriam a ver com os nossos. A começar, como
parceria, pois bem, o "mesmo sexo" nesses casos ê o "mesmo sexo nota Foucault (1 984, 1985), pela ênfase dada às cona /as e não ao desço,
descrito no caso da parceria que busca a felicidade do amor romântico? na ética sexual antiga. Isto quer dizer que "a verdadeira atração", como a
Vê-se assim que o "mesmo sexo", entendido como mesma realidade concebemos, é mais verdadeira que a "verdadeira atração grega"? Na
anatómica, não garante por si só a identidade da atração presumidamente verdade não existe "atração verdadeira" s b specle aefernífafls. Toda
comum a todos "os verdadeiros homossexuais". Um mesmo sexo anatómi-
atração verdadeira é aquela que aprendemos a reconhecer como a "ver-
co pode ser suporte de diversos investimentos eróticos, fato sobdamente dadeira atração" segundo a descrição de uma época. Neste ponto tenho
repetido pela psicanálise. Da mesma forma diferentes realidades anató- boas razões para acreditar que o mito "adâmico" da "homossexualidade
micas podem ter um mesmo investimento erótico, como no caso de natural" nada mais é que um subcapítulo do código erótico oitocentista,
32 A inocência e o vício Introdução 33

patrono da idéia de "homossexualidade". Suspeito de que quando se fala pelas ideologias instintivistas, evolucionistas e racistas do século XIX para
de "verdadeira homossexualidade" ou "verdadeira atração homossexual" justificar o modelo da sexualidade familiar, conjugal e heterossexual
a imagem evocada é a do amor romântico ou do apaixonamento heteros- enquanto fortaleza da moral privada e signo da superioridade da cultura
sexual. Donde a tónica posta no "desejo", na "atração'' e não no ''compor' burguesa frente as outras classes sociais e aos povos colonizados. Entre-
lamento". Faz parte do imaginário sexual-amoroso da burguesia do século tanto basta alterarmos um pouco a perspectiva do problema para que a
XIX entender que a verdade de um sentimento éÉtá em sua "profundidade crença na universalidade e generalidade dessa classificação sexual dos
e intimidade psicológica": O verdadeiro "homossexual" seria aquele que humanos perca seu interesse. No ensaio intitulado "Os amores que não se
encarnaria o ideal do erotismo romântico, só que dirigido a pessoas do
deixam dizer" busco mostrar como o homoerotismo masculino pôde ser
mesmo sexo. pensado e avaliado de maneira bastante diferente da nossa em pleno século
No entanto se essa figura imaginária pode de fato servir de norma para XIX. Em segundo lugar, o mito da "homossexualidade natural", além de
qüe aprettdamos a seguir a regra de como reconhecer qlle algtlém é procurar sustentar-se na idéia indefensável de que podemos saber o que
perdadeiramepzfe /zomossexua/, não vqo em que e por que o "verdadeiro
seria a suposta "verdadeira homossexualidade" do "homossexual", pro-
homossexual" possa ser dado como exemplo de um tipo humano que cura legitimar sua racionalidade a partir dos testemunhos da primeira
existiria transhistoricamente portando consigo um desejo igualmente infância, oferecidos por certos sujeitos. Ou seja, considerando que alguns
trans-histórico, o "verdadeiro desejo homossexual". Do meu ponto de
homens homoeroticamente inclinados afirmam ter sentido atração pelo
vista o "adio homossexual" do mito da "homossexualidade natural" é um
mesmo sexo desde a primeira infância, infere-se que existe "uma homos-
;adão romântico" que aprendeu que há regras de intensidade, qualidade, sexualidade natural" que dispensa o concurso de qualquer interveniência
exclusividade etc., em certas experiências "homossexuais", que as tornam
lingüística para tornar-se uma experiência subjetiva. Mas se a primeira
mais verdadeiras ou mais fidedignas quando comparadas a outras. Porém parte da assertiva é verdadeira, a segunda parte, a inferência feita a partir
o implícito está justamente aí. A medida de comparação para avaliar o dela, é falsa. Antes de mais nada lembrar e saber que lembra é uma prática
teor de homossexualidade" de tal ou qual experiência homoerótica intro-
lingüística como qualquer outra. Depois, selecionar a ''sensação homos
duz, ela própria, o interesse por uma especificação que não teria sentido sexual" para ser "lembrada" exige que se tenha bem claro o "sentimento'
algum numa cultura que não tivesse previamente distribuído os sujeitos , de diferença, que pode ter sido vivido de maneira mais ou menos intensa
em grupos de "homossexuais" e "heterossexuais". Saber o que é um l
mas que, de qualquer forma, só pede ter sido vivido e lembrado porque já
verdadeiro homossexual" seria uma questão que um grego jamais colo- não era mais "natural" e sim um fenómeno codificado pela linguagem.
caria, o que mostra que a distinção não tinha pertinência alguma para a Finalmente, os adultos que recordam ter sentido precocemente atração
moral antiga. No século XIX, entretanto, ela começou a surgir a fim de pelo mesmo sexo não são necessariamente aqueles com inclinação ho-
que os médicos, sexólogos, psiquiatras, juristas etc., pudessem entender-se moerótica mais forte. Existem sujeitos cujas inclinações homoeróticas
sobre quem dentre os "homossexuais" era um "verdadeiro degenerado' apareceram mais tarde e que são quase exclusivamente atraídos por
um "verdadeiro pervertido", um "invertido simples sem outros sinais de homens. Novamente surge a pergunta: dispomos de critérios seguros para
degenaração" ou, por fim, um "vicioso", um "obsceno" que mesmo não afirmar que motivos ou particularidades tornam alguém "mais verdadei-
sendo "verdadeiramente homossexual" praticava o "homossexualismo ramente homossexual" que outros?
pelo gosto da depravação. Essas questões nada tinham de teóricas. Eram Concedamos porém, em favor do esclarecimento da discussão, que a
questões jurídico-legais e tratavam dos limites histórico-sociais do ideário 'homossexualidade" seja um fenómeno comportamental geneticamente
burguês, então triunfante e em pleno apogeu Tratavam de "até onde a idéia determinado. A questão no caso seria: por que tamanho interesse nisso?
de igualdade, liberdade e direito à privacidade podia ser respeitada" sem Por que seria indispensável encontrar genes responsáveis pelo fato de
que o modo de vida burguês fosse contestado ou posto em xeque. Por homens se sentirem eroticamente atraídos por outros homens? Por que não
conseguinte a preocupação com a "verdadeira homossexualidade", na nos interessamos em pesquisar que genes são responsáveis pela "verda-
versão "adâmica" do "homossexualismo natural", reflete a obsessão criada
deira musicalidade dos verdadeiros músicos", a fim de distingui-los dos
34 A inocência e o vício Introdução 35

'músicos de ocasião" ou dos "músicos que aceitam fazer música e que se que sda de suas crenças preconceituosas. No século XIX como no início
comportam como músicos, mas que não são verdadeiros músicos porque do século XX os esforços de literatos, moralistas, filósofos, médicos,
lhes faltam a verdadeira sensibilidade musical e os genes da musicalida-
juristas, sexólogos, políticos etc. para convencer o Ocidente Europeu de
de"? Por que não temos interesse em fazer o mesmo com a "futebolistici- que a "homossexualidade'' era uma pura e simples variação do instinto
dade" dos "verdadeiros jogadores de futebol", a fim de distingui-los dos sexual, foram em vão. Daqueles debates restaram sobras, algumas das
jogadores de ocasião" ou dos "pernas de pau" da várzea do lado? Ora, quais apresento nos textos sobre Gide e Proust. A grande ilusão hoje como
porque não interessa à nossa cultura, como não interessava à cultura grega, ontem é a de acreditar na força persuasiva de argumentos científicos ou
"saber quem verdadeiramente sentia-se atraído pelos adolescentes" para
cientificamente fundados. Ninguém abandona suas crenças preconcei-
distingui-los dos que "simplesmente se acomodavam à injunção cultural
tuosas porque um outro pode "provar-lhe" que aquilo que pensa sobre tal
que incentivava a pederastia". A atração que em nossa sociedade sentimos
ou qual coisa é cientificamente errado. Ainda menos alegando que "é
pela diferenciação entre "homossexuais" e "heterossexuais", a ponto de errado pensar assim porque contradiz a concepção científica da natureza:
imaginar que não podemos viver sem ela, é tão "naturalmente" determi-
Se o argumento fosse eficiente não haveria racismo no mundo. Cada
nada quanto a divisão entre gentios e cristãos, católicos e protestantes,
castos e libertinos, metropolitanos e colonizados, ocidentais e orientais, sistema de crenças tem sua natureza de algibeira disposta a justificar a
imagem opcional de homem ou de mundo que se tem. Portanto não creio
civilizados e primitivos, etc. Todas essas distinções foram ou são, em
certas circunstâncias, tão ou mais importantes quanto a divisão dos ho que a tática político-moral, que insiste em converter a palavra "ho-
mens em "homossexuais" e heterossexuais". A diferença é que, como na mossexual" num vocábulo sem resíduo de preconceito, possa dar certo
divisão entre brancos e negros ou enfie indivíduos de outras origens simplesmente porque afirma a pretensa naturalidade das tendências ho-
raciais, no caso da sexualidade acreditamos que deve existir um suporte moeróticas. Creio até o momento que continuar empregando o termo
'homossexual" como sinónimo de denominador sexual comum a todas as
físico para a diferença comportamental, já que o sexo é um fenómeno
biológico. A dimensão biológica do sexo entretanto é a que menos importa possibilidades de atração homoerótica é um equívoco. Como também
à moral. Como costumavam dizer os psiquiatras positivistas do século julgo equivocado afirmar a existência de uma tendência natural de uma
XIX, vistos no quadrante da biologia, sexo é só "volúpia" e portanto não minoria de homens a ser, sempre e em qualquer circunstância, exemplar
há porque hierarquizar moralmente as formas de gozar. A busca de uma de uma "mesma variação natural de homossexualismo". Em meu entender
constituição genética particular aos sujeitos com inclinações homoeróticas continuar perpetuando tal crença significa manter o sistema de nominação
só pode ter, então, um objetivo moralmente normativo. Mas por que essa criado para fazer do homoerotismo a contrapartida rebaixada e degradada
necessidade de uma ética sexual naturalista fundada na biologia? Por que da sexualidade heteroerótica.
procurar legitimar uma determinada moral sexual recorrendo à bênção da Esta é a terceira e última razão pela qual prefiro utilizar homoerotismo
natureza? a "homossexualismo". Penso, e aqui devo muitos dos argumentos a
A essa altura pode-se dizer que por meio deste procedimento busca-se Contardo Calligaris, que em todo laço social marcado pelo preconceito
combater o preconceito. No momento em que todos entenderem que o não há como escapar da montagem imaginária da discriminação, guaF
homossexualismo" não é uma doença, uma perversão ou uma imorali- dando o sistema de nominação responsável pela identificação e fixação
dade. mas um fenómeno tão natural quanto qualquer outro fenómeno dos sujeitos nos lugares prescritos pela montagem. A maneira que temos
sexual, apenas com a peculiaridade de dirigir-se a pessoas do mesmo sexo, de sair da engrenagem é desfazê-la, e não reforma-la preservando os
pois bem, nesse momento é possível que uma grande batalha contra a termos de sua definição e deixando-a intocada na base. A partir disso penso
intolerância tenha sido ganha. que a tentativa de combater o preconceito, mantendo íntegra a crença de
Não nego a legitimidade desse propósito que, diga-se de passagem, que os sujeitos humanos são "naturalmente divididos em homossexuais e
partilho. Entretanto não tenho nenhum bom motivo para acreditar que o heterossexuais", se não for impossível, será no mínimo extraordinaria-
suposto aval da natureza seja razão suficiente para dissuadir quem quer mente difícil. Tenho sérias dúvidas quanto ao sucesso desse tipo de
36 A inocência e o vício
Introdução 37

empreitada, e o caso do racismo antinegro nos Estados Unidos vem ao o vocabulário que define automaticamente os "superiores'' e os "infe-
encontro do que penso riores". Autodefinindo-se como úlÁrfcan-amerícalzs, os negros impõem
Os negros norte-americanos, sem dúvida alguma o exemplo mais uma outra apresentação de suas identidades sócio-morais, onde a cor da
eloquente de luta pelos direitos civis de minorias, parecem ter desistido de pele deixa de ofuscar os hábitos lingüísticos como no caso do termo
se chamar b/aras, optando pela expressão afrlcan-amerlcans para se 'negro". Assim, creio, aumentam as chances de romperem com uma
designarem. Recentemente, quando uma revista norte-americana publi- montagem em que se mantêm dependentes da nominação do outro precon-
cava em sua capa uma matéria intitulada Beyond B/ack & Whífe, fazia coro ccituoso para terem acesso à própria identidade.
àquilo que a prática política ensinara. O vocabulário do "negro & branco A preservação do vocabulário "homossexualidade & heterossexua-
revelou-se completamente ineficiente na luta contra o racismo. Do ponto lidade" corre risco semelhante ao da preservação do vocabulário do
de vista da atenuação do preconceito pouco adiantaram as lutas em torno
branco & negro". Não vejo como alterar os fundamentos perceptivos,
de palavras de ordem como "negro é bonito", "é orgulhoso" ou afirmações descritivos e valorativos desse modo de classificar homens e mulheres
de que "o negro é uma mera variação natural do gênero humano". A crença
mantendo inalterado o sistema de nominação. Além da óbvia conotação
da sociedade racista branca de que existem no mundo dois grupos raciais,
pejorativa que o termo "homossexualismo" possui, dada sua origem mé-
o dos "brancos" e o dos "negros", ensinou a todos os norte-americanos
dico-psiquiátrica, seu uso estabelece um desequilíbrio no tratamento moral
que ser capaz de reconhecer corretamente quem "era realmente branco'' e dos ''homossexuais", em tudo contrário aos ideais éticos de nossa cultura.
quem era realmente negro" era uma questão moral fundamental à sobre- Uma vez identificado como "homossexual" o sujeito dificilmente conse
vida sócio-cultural dos Estados l.Jnidos. Como resultado, brancos e negros
gue proteger sua privacidade sexual do espaço do público, pelo simples
jamais puderam trocar de olhar e posição nessa montagem cruel e violenta. fato de ser sistematicamente interpelado em nome de sua preferência
As lutas pelos direitos civis expandiram a faixa de benefícios materiais ou erótica. A exemplo do "negro" na sociedade racista, que tem, de modo
legais de que usufruíam os negros mas não lhes devolveram a consideração
geral, todas as facetas de sua identidade subestimadas em favor da parti-
moral esperada. O pólo da "culpabilidade & perseguição" continuou a cularidade de seu tom de pele ou traços físicos, o "homossexual" no mais
reger as relações entre negros e brancos, que passaram a odiar-se agora
das vezes também passa a responder socialmente como se toda sua pessoa
em condições de "igualdadejurídica" e reciprocidade de desprezo e rancor.
se resumisse à singularidade de sua inclinação erótica. SÓ excepcional-
Os negros norte-americanos gostariam de ter tido direito à mesma mente alguns conseguem impor outros traços de sua subjetividade à
consideração social e moral de que gozavam os brancos. No entanto aquele consideração pública. Para muitos isso é uma violência insuportável. Em
tipo de consideração, a "consideração racial", só é disputado porque existe alguns depoimentos que analiso o mal-estar é evidente. Poucas vezes a
o racismo. Se não existisse um sistema moral afirmando que certas pessoas
maioria heteroerótica é capaz de identificar-se com essa posição e pensar
são superiores a outras por causa de sua cor de pele ou de certos traços em suas conseqüências moralmente constrangedoras. Jamais fazemos o
físicos, a hierarquia de prestígio ou poder em função do pertencimento exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado
racial perderia o sentido. Lutando pela mesma consideração racial do sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua
branco os negros tornaram-se cúmplices de um sistema de crenças onde preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver
definitivamente não há espaço para dois primeiros lugares. Enquanto apreciadas e respeitadas pelos outros. No entanto seria interessante ima-
persistir a valorização dos traços físicos ou o tom de pele para distinguir ginar como reagiriam certos homens heteroeroticamente orientados, caso
grupos que competem pela consideração racial, o resultado é a eternização tivessem que conviver com a exposição pública de algumas de suas
da alternativa persecutória do tipo "quem não está comigo está contra
tendências sexuais, costumeiramente resguardadas do olhar público por
mim" ou da alternativa culpabilizante ou culpabilizada do tipo ''quem nossos hábitos culturais. Não custa nada perguntar como esses homens
começou a oprimir quem e de quem é a vez de oprimir". Esses impasses reagiriam se tivessem que responder socialmente, não enquanto maridos,
são insolúveis. Os interessados em sua resolução sem se darem conta pais, profissionais, artistas, trabalhadores, cidadãos honestos, indivíduos
retomam sempre a discussão do ponto zero quanto atualizam ritualmente moralmente íntegros etc., e sim enquanto "praticantes do coito anal":
38 A inocência e o vício Introdução 39

"adeptos do sexo oral", "masturbadores contumazes" ou mesmo "usuários podemos querer deixar de falar e desejar, mas enquanto sqeitos da vontade
freqüentes de filmes e revistas pornográficas". O exemplo nada tem de podemos redescrever moralmente as conseqüências daquilo que não pu-
caricato. Ele é apenas ilustrativo do respeito que dedicamos à privacidade demos escolher. Portanto, com a remontagem de nosso vocabulário des-
da maioria heteroerótica e do desrespeito com que tratamos a preferência critivo e valorativo do homoerotismo, não tenho a vã e tola pretensão de
sexual das minorias. A preservação do vocabulário da "homossexualidade querer construir, ín varro, novas formas imaginárias de gozar com nossas
& heterossexualidade", entre outros efeitos humanamente nocivos, priva scxualidades e subjetividades. Ninguém transforma sexualidades em la-
os indivíduos com tendências homoeróticas de um privilégio que por boratório de idéias. Tampouco trata-se de querer, e isto é da maior
direito e por exigências éticas também é seu. importância, fazer da defesa da livre expressão social do homoerotismo
A essa altura pode-se retrucar que para numerosos homens homoero- uma cruzada contra os costumes heteroeróticos maioritários. A grande
ticamente inclinados a apresentação pública de suas preferências sexuais questão não é inverter a mão da cultura, até porque a maioria de todos nós,
em absoluto é fonte de incomodo particular. Concordo e concedo que seja idealização romântica à parte, está razoavelmente satisfeita com as pos-
verdade. Mas é uma prerrogativa que deve ser objeto de deliberação sibilidades de realização individual pelo exercício da sexualidade hetero-
pessoal. No momento em que aquilo que deve ser decidido por cada um croticamente dirigida. Retomar a discussão na vertente da "perseguição &
torna-se compulsório para todos, estamos no terreno da violência segundo culpabilização" significa manter-se fiel à engrenagem perversa da dis-
nossos valores. Estamos atenuando contra a liberdade que todos devem ter criminação. Alterando o verbete de nosso vocabulário dedicado ao homo-
de optar pela melhor forma de se apresentarem ao olhar do outro publi- erotismo, penso tão somente revolver velhas crenças e com isso, quem
camente e pela melhor forma de procurarem ser felizes em suas vidas sabe, solucionar os problemas que podemos resolver e abandonar muitos
privadas. outros, como falsos problemas ou problemas sem sentido. Vejo sentido
Por essas razões creio que a tentativa de lutar contra o preconceito por exemplo em reafirmar o direito que têm os sujeitos homoeroticamente
invocando a condição natural da "homossexualidade" encontra seu prin- inclinados de ver seus modos de amar e fazer amor respeitados, ao mesmo
cipal obstáculo na linguagem escolhida como instrumento de luta. Essa título que aqueles heteroeroticamente orientados. Esse direito, acredito,
linguagem é um jogo de cartas marcadas, onde o discriminado é forçado deve ser assegurado a todos que consintam em obedecer às exigências de
a recorrer ao vocabulário do discriminador para identificar-se como sujeito nossa "mínima moral". Em contrapartida não vejo sentido em procurar
e para reivindicar a consideração moral à qual aspira. Por outro lado não justificar esse direito por meio da indulgência concedida aos fatos naturais
basta. a meu ver. tomar a natureza como aval dessa causa. A natureza, que só aceitamos porque são inexoráveis. Exigir a consideração moral
conforme o preconceito, também tem seus "aleijões, anormalidades e devida ao homoerotismo sob o peso desse argumento é retira-lo do "poço
desvios" ! De resto foi por este viés que as teorias positivistas, instintivistas do vício'' para devolvê-lo à "irresponsabilidade da inocência". Essa foi a
e evolucionistas do século XIX começaram a descrever e a explicar a tentativa de Gide e Proust, tentativa bem-sucedida na arte e frustrada na
patologia" da "perversão homossexual" ou da "inversão genital'', ou sela, vida. O álibi da inocência, entre outros inconvenientes, apresenta um
como desvio do instinto de seu rumo "natural" e "normal" em direção à especialmente grave: isenta nossa sociedade de seu compromisso com a
reprodução da espécie. tolerância e o respeito à diferença, razão de ser do ideal ético que está em
Por último, não se trata de imaginar, como pensava ingenuamente sua fundação.
Oscar Wilde, que recusando falar a linguagem do amor burguês venhamos Nada na condição humana, diz Hannah Arendt, é mais frágil e "mais
a transformar a realidade das práticas sexuais e de seus respectivos humano" que aquilo sustentado pela prática do discurso. A responsa-
determinantes lingüísticos. Não podemos mudar nossos padrões sexuais bilidade para com aquilo que dizemos e ensinamos às novas gerações a
por decisão de um ou de muitos, assim como não podemos "desaprender dizer é um desses tesouros cuja única garantia é a caução da confiança
a língua em que aprendemos a falar. Mas se não podemos "desaprender depositada na palavra do outro. Não podemos assim, transmitir a sujeitos
nossas linguagens e sexualidades maternas e paternas, podemos aprender como nós que a busca da felicidade é um direito que lhes cabe, negando
outras línguas. Enquanto sujeitos da linguagem e da sexualidade não em seguida essa crença a golpes de violência contra suas pessoas morais.
\
40 A inocência e o vício \

Uma cultura que faz de seus pactos "trapos de palavras" destrói insidio-
samente seu mais precioso bem, a capacidade de prometer e cumprir
promessas. Isso tem um preço. A AIDS, como outras misérias, mostrou
que ele pode ser caro. Excessivamente caro.

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um "monomaníaco", caso tivesse tido acesso à literatura médico-
STOLLER, Robert J., e HERD, Gilbert,/nrfmare coram nícarlons -- Erofícs and //ze
srudy oÍcu/jure. Nova York-Oxford, Columbia University Press, 1990. psiquiátrica disponível . Porém, uma vez descartadas essas hipóteses, como
parecem indicar os registros autobiográficos, restava-lhe falar da ternura
e da atração sexual que sentia por seus amigos, no vocabulário do amor
42 A inocência e o vício Os amores que não se deixam dizer 43

romântico. E, o que é mais inüigante para nossa sensibilidade anual, não responsabilidades outras, além do gozo dos indivíduos. Estava compro-
se via, por isso, despojado de sua identidade masculina. metida com a questão do indivíduo x família, da população x Estado, do
Essa história de vida é, assim, paradigmática da forma como podemos civilizado colonizador x primitivo colonizado etc. Era preciso, então,
reconhecer e denominar sentimentos ou emoções que formam a percepção mostrar que os limites do gozo estavam seguramente inscritos na ordem
ou a experiência que temos de nossa subjetividade ou identidade. Porque do parentesco e na fronteira da morte, mas também nos interesses da raça,
nasceu antes da invenção histórica do "homossexual", Dodd podia refe das classes, das nações, dos estados, das metrópoles e impérios, em suma,
rir-se a seus amores masculinos na linguagem do romantismo, mantendo, nos interesses da cultura e civilização burguesas. Portanto, era igualmente
ao mesmo tempo, a imagem de virilidade que tinha de si mesmo. Livre, necessário controlar e redirecionar esse tipo de erotismo rebelde e in-
como pode-se supor, da consciência do pecado e da execução pública, diferenciado, convertendo-o no que veio efetivamente a tornar-se: /zomos-
tomava Deus como testemunha de seu amor e, reafirmando constantemen- sexttalismo .
te sua masculinidade, afastava qualquer possibilidade de descrever-se Nos fins do sécu]o X]X a empresa chegava a seu termo. O antigo "vício
como um a/forma/, um doente, um anfinarüraJ, um perverso ou qualquer
que não tinha nome" transformara-se no "amor que não ousa dizer seu
outro termo criado para adjetivar as posteriores acepções da palavra nome". O homoerotismo vivia sua era científica de culpa, vergonha e
homossexual. Aos seus olhos, o fato de amar homens não o fazia repre- maldição. Antes, pecado contra a alma, era, agora, aberração moral,
sentante de uma outra espécie de homem. Ele era apenas um homem capaz psíquica e cívica. Assim, quando Maurice, herói do romance de mesmo
de sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo. nome de E.M. Forster, ouve a declaração de amor que Ihe faz seu colega
A biografia de Dodd, como algumas outras reveladas por Peter Gay, de escola, Durham, responde: "Oh, podridãol Durham, você é um cidadão
desmente, deste modo, a crença de que existe uma homossexualidade inglês. Eu também sou um cidadão inglês. Não diga tolices. Não estou
idêntica a si mesma, em qualquer tempo e espaço. Fazendo coro ao que ofendido, porque sei que não foi essa a sua intenção, mas este é o único
afirmaram, entre outros, Boswel1 (1 981): e Foucault (1976; 1984; 1985),'
assunto absolutamente inadmissível, você sabe. É o pior crime que se pode
para citar os mais inovadores estudos sobre o tema, Gay demonstra que cometer e você nunca mais deve falar sobre isto, Durham, uma idéia
Dodd não era um "homossexual" que desconhecia sua condição porque a realmente podre".4
ciência ainda não tivera tempo de descobrir e ensinar-lhe qual a verdadeira
essência de suas tendências eróticas. Era um homem com inclinações E sobre essa metamorfose do homoerotismo em homossexualismo que
penso refletir, a partir da elaboração do tema na literatura do final do século
homoeróticas, e que só dispunha do vocabulário sentimental do roman- XIX e primeiras décadas do século XX. Não sem antes esclarecer o que
tismo para perceber, sentir e descrever os aspectos positivos de suas
entendo por homoerotismo. Homoerotismo é um termo usado por Sandor
relações amorosas. Por essa razão, e não por ignorância científica, não Ferenczi,s psicanalista húngaro, contemporâneo de Freud, para discutir o
conseguia ver em seu amor pelos amigos uma forma abastardada ou tema da homossexualidade. Corrente no século XIX, este termo parece-me
corrompida de amar. Ou sua atração por homens era uma maneira peca' preferível a homossexualismo por várias razões. Em primeiro lugar, o fato
minosa de viver a sexualidade, ou era um modo tão aceitável e idealizado
de Ferenczi ser húngaro ressalta o fato de ter sido justamente um outro
de amar quanto aquele que o ligava às mulheres. O código da intimidade médico húngaro, Benkert, quem inventou, em 1 869, o termo homossexual.
e afetividade nascentes só deixava a Dodd a escolha entre o inferno
Benkert, em seu tempo, tentava combater a legislação alemã contra o
religioso do pecado ou o paraíso açucarado do sentimentalismo burguês. homossexualismo, e Ferenczi, de modo análogo, mostrou pela primeira
Ora, essa regulação grosseira da vida erótica, pouco a pouco, mostrouse vez, na literatura psicanalítica, que o rótulo de homossexualidade era
incompatível com os novos tempos. Nada mais anacrónico diante da
largamente insuficiente para descrever a diversidade das experiências
burguesia triunfante que esta sexualidade cheirando a Ancíen Réglme. O
psíquicas dos sujeitos homoeroticamente inclinados. Em segundo lugar, o
novo cidadão não podia exibir o "padrão Dodd" de conduta sexual. Não emprego de homoerotismo em vez de homossexualismo tem a vantagem
podia admitir o erotismo fluido, ambíguo e "inocente" do jovem de de evocar a oposição similar, proposta por Parker, entre erotismo e
Connecticut. A sexualidade burguesa, em sua plenitude oitocentista, tinha sexualidade. Parker,ó em seu estudo sobre a homossexualidade no Brasil,
44 A inocência e o vício
Os amores que não se deixam dizer 45

diz que erotismo é a experiência da atração sexual e a descrição dos atos


e afetos enganados nessas práticas, conforme a percepção e a linguagem rosa desfaz o silêncio tecido pela sociedade em torno de sua origem e
do senso comum. Sexualidade, em contrapartida, é um construto teórico, funcionamento escusos. Em Balzac, a defesa do "homossexual" como um
nascido da racionalidade científica ou com pretensões à cientificidade. O marginal ou como um rebelde romântico é explícita e levada ao extremo.
erotismo é uma experiência orientada por finalidades ético-estéticas que Vautrin, anta-herói da Comédia Hzimana, odeia as máscaras das conven-
visam constituir domínios eróticos onde os prazeres proibidos ou permiti- ções sociais. E o protótipo do contestador que se apropria do jogo da
dos não obedecem à codificação moral criada pela ciência. De modo cscroqueria para desmontar a corvupção bem pensante. Em O paf Goríof,
semelhante, diria, o homoerotismo oitocentista foi o terreno prévio for diz que um homem, após "examinar as coisas daqui de baixo", só tem «dois
mado pela prática amorosa entre pessoas do mesmo sexo biológico, partidos a tomar: ou uma obediência estúpida ou a revolta. Eu não obedeço
terreno onde se deu a intervenção dos agentes de produção do homos- a nada".' Continuando, em outra passagem, afirma: "É preciso comer uns
sexualismo. O que não quer dizer que, antes dessa intervenção, o ho aos outros, como aranhas num pote, já que não existem cinqüenta mil
moerotismo exprimisse a Verdadeira natureza dos amores masculinos. postos Você sabe como se abre caminho aqui? Pelo brilho do gênio ou
Nunca houve algo assim como um homoerotismo puro, livre de coerções pela habilidade da corrupção... A honestidade não serve para nada".o Por
ideológicas e representante da autêntica essência do sexual. Isto significa fim, como fecho de suas lições de moral a Rastignac, conclui: "Se ainda
simplesmente que a atual divisão dos homens em homossexuais e heteros tiver um conselho a dar-lhe, meu anjo, é o de não se manter fiel nem às
sexuais é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra. E, assim como suas opiniões nem às suas palavras. Se Ihe pedirem ambas, venda-as... Não
heterossexualidade é uma rubrica que serve para designar fatos tão dis- existem princípios, só acontecimentos; não existem leis, só circunstâncias:
paratados quanto as orgias filosófico-sexuais de Sade e as tímidas trocas
de cartas entre Elizabeth Barrett e Robert Browning, como observou o homem superior desposa os acontecimentos e as circunstâncias para
conduzi-los. Se houvesse princípios e leis fixas as pessoas não os trocariam
Stoller (1985),' assim também homossexualidade designa experiências
onde sequer a atração pelo mesmo sexo é suficiente, enquanto predicado como trocamos de camisa... Por que dois meses de prisão para o dândi que,
deülnitório comum a todas elas. A diversidade de atos, sentimentos e em uma noite, furta de uma criança metade de sua fortuna, e por que o
xilindró para o pobre diabo que rouba uma nota de mil francos com
auto-definições incluídos nessa etiqueta, quando examinada de perto, circunstâncias atenuantes? Eis aí as vossas leisl"io
mostra que a suposta homogeneidade teorizado nada tem a ver com
heterogeneidade vivida. Aliás, o caráter histórico-estratégico dessa defi Nas //usões perdidas, diz a Lucien de Rubempré: "Não veja nos
nação salta aos olhos, quando pensamos que seu interesse ou relevância homens, e principalmente nas mulheres, senão instrumentos; mas não
deixariam de existir num mundo em que o sexo não tivesse sido entroni- deixe que eles o percebam. Adore como ao próprio Deus aquele que,
zado como "sexo-rei", para usar a expressão de Foucault. Na Antiguidade colocado acima do senhor, Ihe pode ser útil, e não o abandone até que eje
greco-romana ou na ficção futurística do "THX- 1 1 38", dividir os homens Ihe tenha pago bem caro a sua servidão... Hoje, entre vós, o sucesso é a
em homossexuais e heterossexuais poderia parecer tão estapafúrdio quan- razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas. O fato é pois
to tentar, em nossos dias, dividi-los em castos e devassos,/Zrfels e lptfZrreis mais nada por si mesmo, consiste inteiramente na idéia que os outros
ou .#éls e fll#éls, maritalmente falando. formam a seu respeito. Vem daí, jovem, o segundo preceito: Tenha um
Isso posto, vd amos como a literatura do período analisado, interagindo belo exterior! esconda o avesso de sua vida e apresente um direito muito
com outros saberes, ajudou a definir o perfil ou a "essência" do homos brilhante. A discrição, essa divisa dos ambiciosos, é da nossa ordem:
sexualismo masculino. adote-a como sua. Os grandes cometem quase tantas covardias como os
A primeira vertente de idéias, perceptível na literatura do século XIX, miseráveis; mas cometem-nas nas sombras e fazem ostentação das suas
procura fazer do "homossexual" um instrumento de denúncia social. Q virtudes; permanecem grandes. Os pobres exercem suas virtudes na som-
preconceito confia o homoerotismo seria mais um sinal da hipocrisia dos bra e expõem suas misérias ao sol: são desprezados... Não há mais leis. só
costumes. O "homossexual", diz-se, é um o {fsidel" cuja preferência amo-
há costumes, isto é, macaquices, sempre a forma".i'
46 A inocência e o vício Os amores que não se deixam dizer 47

Finalmente. em certo trecho de Esple/odores e misérias das cortesãs,


vida é a morte de Lucien de Rubempré. E uma mágoa da qual nunca pude
afirma que a prostituição e o roubo são "dois protestos vivos, macho e me livrar completamente". Em outras palavras, Wilde fora levado a sentir
fêmea. do estado natural contra o estado social".':
o que Balzac fez com que Vautrin sentisse, quando Lucien suicidou-se.
Em sua depravação, Vauüin revelava a intensidade, a força e a auten- Essa conversão ao imaginário de Balzac não atingiu apenas Wilde. De uma
ticidade dos sentimentos vividos à margem dos pactos sociais acentos. Era ou de outra maneira, vemos o vocabulário balzaqueano repetido pelo senso
ladrão, gigolâ, chantagista, impostor, delator e, como se não bastasse, comum de sua época ou de épocas posteriores. Na faceta positiva, ou de
passou, em certa parte do romance, de bandido a colaborador da polícia. aprovação social, a fantasia do homossexual levo/zlcloníírío e anfl-
Através de seus crimes, representava o lado inescrupuloso da sociedade cor!Ãormlsfa contagiou inúmeros artistas e pensadores. Imerso nessa lenda.
burguesa, hipnotizada pelo poder do dinheiro. Por outro lado, na devoção que ele próprio mudou a difundir e solidificar, Wilde respondia aojuiz que
terna e amorosa que tinha por Françhessini, Rastignac, Calva e, sobretudo, acompanhou o processo de Alfred Douglas: "o amor que não ousa dizer
em sua louca paixão por Lucien de Rubempré, Vautrin negava todo o modo seu nome... é belo, extraordinário, e constitui a mais nobre forma de abeto...
de pensar dominante, mostrando que a mais alta abnegação brotava do que por ele é que me vejo agora sentado neste banco... o mundo furta-se a ele
era avultado e desprezado pela sociedade. Pouco tempo após o suicídio de
e não o entende".'s No pólo oposto, mas sob o peso da mesma crença no
Lucien. Vautrin dizia: "... estão enterrando nesta hora a minha vida, a caráter "extraordinário", "excepcional" e "contestador" do homossexual.
minha beleza, a minha virtude, a minha consciência, toda a minha força! Máximo Gorki diria: "Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da
Imagine um cão a quem um químico extraiu o sangue... assim sou.eu.'''' juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado
E, quando decide entrar para a polícia em troca da salvação da vida de alcançou o poder social, a homossexualidade foi declarada um delito social
Calvi, que estava condenado à morte, afirma: "Lucien levou consigo a e severamente castigada".''
minha felicidade e a minha alma; vejo diante de mim trinta anos de vida
aborrecida, e estou sem coração. Em vez de ser o mestre dos galés serei o Sem dúvida, o "homossexual" inventado por Balzac foi uma figura
tattcamente importante na luta contra a discriminação dos sujeitos homo-
Fígaro da justiça e vinga o meu Lucien".'' eroticamente inclinados. Os ecos de sua aura libertária encontram-se em
A tese romântica faz de Vautrin afirmação do "ser autêntico'' contra a boa parte da literatura militante, dos movimentos gay. Porém, como
estreiteza do universo sócio-sentimental burguês. O homossexual bal- mostrou MacRae,t7 yma coisa é valorizar a identidade gay e reconhecer
zaqueano é uma espécie de bom selvagem em meio à selva parisiense. SÓ sua importância no combate ao preconceito; outra coisa é afirma-la como
que o elogio mostrou-se, com o tempo, índice de exclusão e estigma. a única identidade possível ou desejável para todos os sujeitos homoero-
Vautrin não era um homem comum que, entre outras coisas, amava outros ticamente inclinados. A identidade gay é, sob muitos aspectos,jedçira dal
homens. Era um fora-da-lei, ou melhor, um fora-de-série. Um ser de idealização romântica do J'homossexual. aursíder". Além'disso. coma
exceção que, por ser excepcional, era "homossexual". Ou, leitura igual- observou Foucault,iB depende diretamente do modelo de organização po l
mente possível, foi por ser capaz de amar pessoas do mesmo sexo que lítica fundada na consciência de interesses de classe, e está profundamente
Balzac o escolheu para desempenhar o papel de oüfro do conformismo enraizada na tradição norte-americana do associacionismo comunitário e
burguês. Como quer que seja, a associação imediata entre anticonvencio- da luta pelos direitos civis, de indivíduos ou minorias. Essa circunscrição
na[ismo sexual e rebe]dia moral será responsável pela formação de um dos
histórico-social, obviamente, não tem o propósito de atingir a legitimidade
clichês constitutivos da pretensa "identidade homossexual". Nela inspira- dos movimentosgay, até porque cabe à comunidade interessada a primeira
se o lugar comum que vê no "homossexual" um homem naturalmente apto e última palavra sobre o assunto. Mostrar a relatividade e localização
a subverter moralmente a sociedade.
político-cultural da "identidade gay" visa apenas defender a pluralidade
Oscar Wilde disse certa vez: "0 século XIX, como o conhecemos, é de identidades possíveis de serem assumidas pelos indivíduos com incli-
em grande parte uma invenção de Balzac". Faltou acrescentar: o "homos- nações homoeróticas. Além do que, exibe o poder imaginário das metáfo-
sexual" oitocentista também. Não por acaso, o mesmo Wilde afirmou em ras oitocentistas na criação da noção de "homossexualismo" e do
outra ocasião, sem se dar conta, que ''uma das maiores tragédias de minha 'homossexual"
48 A inocência e o vício
Os amores que não se deixam dizer 49

Ainda na bilha das idéias que buscaram realçar o homoerotismo


masculino como expressão da revolta contra o social, encontramos a ção de Darwin, ilustrado pelas teorias sexológicas dos autores alemães, e
versão naturalista da sexualidade. No Brasil, dos filhos de Zola, Adolfo por suas próprias teorias míticas sobre as origens dos seres homoeróticos.23
Caminha é o que mais interessa. Em Caminha,'9 a ruptura com a ordem O "homossexual", segundo Proust, é um exemplar da natureza. Neste
sentido, o artista deve observa-lo e descrevê-lo como o naturalista analisa
estabelecida não é propriedade de um sujeito moral que delibera e age
contra as aparências, em favor da autenticidade. Bom-Crioulo, persona- plantas ou insetos, em suainfinita diversidade de formas, funções e modos
gem central do romance homónimo, não é Vautrin. Naturalista, Caminha de vida. Mas tal natureza é uma natureza especial. E a natureza depois da
quer provar que o sujeito é social ou anui-social conforme ordena sua queda; depois de banida do Éden ou da cidade, pelo castigo dos deuses. O
natureza animal. Se Bom-Crioulo, como aponta o apelido, é dócil, é apenas homossexual, diz Proust, é um descendente da raça de Sodoma; dos que
porque o animal dentro dele adormece. Não é porque julga ou deixa de escaparam à ira de Deus. Sua linhagem é a mesma dos seres platânícos
julgar; é porque simplesmente submete-se aos apelos da carne. Quando imaginados por Aristófanes, em seu discurso no Ba/zqzzere. O sorriso
obedece, não é por consentimento voluntário, em função da melhor es- lúbrico de Charlus e a resposta automática de Jupien não são sintomas de
colha moral, e quando desafia as leis, não o faz porque as ache injustas ou degradação moral ou perversão de hábitos. São signos de reconhecimento
mesquinhas. Sua transgressão é mera submissão aos mandamentos do irrefletidos, atávicos, de seres fadados a se atraírem mutuamente. Com eles
instinto. No momento em que foi afastado involuntariamente de Aleixo, ocorre o mesmo que ocorre com a abelha polinizando a flor.
sonhava "em proceder conforme seu Jemperamenro'' e entregar-se ao O homoerotismo proustiano é, assim, uma transfiguração do infame.
"amor físico por uma criatura do mesmo sexo que o seu, extraordina- Da baixeza Proust extrai o sublime, a fusão físico-espiritual de almas e
riamente querida, como Aleixo".:' Nos estertores do ciúme, via o "grumete corpos desde sempre gêmeos. Os sodomitas encontram-se e atraem-se
nos braços doutro homem" e pensava tê-lo de volta, "como dantes, para si como o zangão e a orquídea. Porém, o encontro inevitável não visa a
unicamente",:' e dizia de si para si que "sentia-se forte ainda para grandes reprodução biológica. O produto desse acasalamento é a fecundidade
cometimentos, para maiores provas de virilidade, e nenhuma criatura espiritual. Uma fertilidade superior, que gera o belo, o artístico, o amor
humana, fosse a mais bela de todas as mulheres, alcançaria proporcionar; pelo elevado. Proust, com sua natureza helenicamente idealizada, inaugura
Ihe tanto gozo, tanta felicidade, num só momento, como Aleixo, o delicio- um dos mais tenazes mitos sobre a natureza do "homossexualj:,. qual sqa
so e incomparável grumete, que era, agora, o seu único desejo, a sua única o de sua re$zzada serzslbl/idade. À imagem do homossexual depravado,
ambição no mundo. Havia de o possuir, havia de o gozar, como dantes, perverso e corruptor de menores, ele opunha o retrato do sodomita aureo-
por que não''." lado de flores, pólens, insetos e delicados aromas. Sua interpretação do
O desejo voraz e tempestuoso de possuir Aleixo, tornava Bom-Crioulo homoerotismo mostra como o mito das origens pode ser manipulado e
um obcecado; um joguete da besta no coração do homem. No naturalismo, dirigido para fins ético-políticos. O sodomita enquanto ser natural era um
a relação entre criminalidade e homoerotismo, visível em Balzac por desviante, mas enquanto descendente de Sodoma era um anjo decaído,
outros motivos, expande-se e reforça a imagem do "homossexualismo" vítima da prepotência dos deuses. Era um híbrido, não por ter "uma alma
como desejo ou comportamento anui-social. O aspecto crítico da con- feminina num corpo masculino", como queria l.Jlrichs, mas pela alma
testação balzaqueana perde-se, deixando em primeiro plano a superfície celestial enxertada no humano. No desvio estava a virtude. Mais que isso,
das condutas desabridas. A aparente descrição ou constatação naturalista estava a mdestade de um destino, reservado aos Aappyjew. Deste modo,
no fundo nada mais faz do que insinuar que homossexualismo é isso; é reduzindo o "homossexual" ora a um vicioso, ora a um inocente, Proust
sexo animal, sem feios, vergonha ou moral. mostrava e negava, ao mesmo tempo, o vínculo de sua versão do homo-
Em Proust, ao contrário, a exceção homoerótica abandona as hipóteses erotismo com a be//e é$oque em que viveu. E, pela maestria de seu gênio,
naturalistas e da crítica social para mergulhar em especulações sobre Q acabou universalizando a idéia de "uma identidade homossexual", aquém
acaso e a necessidade dos sentimentos e condutas humanas. Na versão
e além do "espírito de Guermantes" e do "espírito de Combray", de fato
proustiana, o homoerotismo é entendido como um caso das leis da evolu- suas verdadeiras parteiras.
50 A inocência e o vício
Os amores que não se deixam dizer 51

Esse modelo interpretativo, com variações, terá um futuro promissor.


c do sujeito, mas, ainda assim, sucumbiu aos preconceitos de seu tempo.
Nos anos 60-70, será incorporado pela literatura gay, em busca de sua
Certa vez, afirmau= "je ne stlis jamais; je deviens. Je devierts celüi qüe je
história perdida. Os militantes e estudiosos, na tentativa de retomar a
cross (ou q e vaus croyez,) q eje suis".27 Apesar disso, não cessou de pedir
trajetória dos movimentos de liberação homossexual, encontraram, no
a Deus e à natureza que desculpassem ou aprovassem seu amor por outros
passado, a grandeza e a nobreza que necessitavam e esperavam enconüar. homens. O homoerotismo, em sua literatura, não se tornou um estilo de
A galeria de heróis, mártires, inimigos, pais fundadores e mesmo san existência, que caberia aperfeiçoar com vistas a uma vida melhor e mais
tuários, como Aquela, cidade onde IJlrichs viveu seus últimos dias, em
exílio auto-imposto, virá enobrecer e justificar a causa dos movimentos bela. Embora tudo em seu pensamento fizesse supor o contrário, não
gay.24 No entanto, o preço da estratégia de glorificação do passado será o aplicou à vida o que tão bem soube aplicar à artc. Ninguém na obra de
reforço da idéia de que o "homossexual'' representa uma espécie de povo,
lide "torna-se" homossexual; nasce, vive e morre "sendo" homossexual.
etnia, agrupamento político ou seita religiosa, com seus momentos de Paralelamente a esse modo de conceber o homoerotismo, que deli-
apogeu, declínio, opressão e liberação. Como conseqüência, pede-se, beradamente buscava redima-]o do opróbrio social, outras correntes de
implicitamente, a todos os indivíduos com inclinações homoeróticas que pensamento contribuíram decisivamente para a moderna percepção que
aceitem pertencer a essa comunidade de tradição, aceitando um só pas- temos do fenómeno. No caso, não se trata de absolver a exceção, mos-
sado, uma só herança cultural e, por fim, uma só identidade de desejos e trando a rigidez e a obtusidade da regra. O homoerotismo, em tais versões,
aspiraçoes. não é uma variação da conduta sexual humana que cumpre respeitar ou
Finalmente, ainda na órbita dos que defendiam o direito à livre expres- tolerar. E um potencial comum a todos os homens. Melhor dito, faz parte
são social do homoerotismo, a partir do argumento da excepcionalidade. do repertório possível do comportamento do sujeito, mas a título de
encontramos a obra de Gide. Para Gide, o homossexual é um ser de estágio, em sua evo]ução psíquica ou moral. Na vida adulta, o homo-
conflito. Diferente de Dodd, Vautrin, Bom-Crioulo ou Charlus, o herói crotismo é uma excrescência. Um resíduo da experiência sexual infantil
gideano reflete e transpõe para o homoerotismo os dilemas do exame de que, sem controle ou domesticação, virá perturbar o bom funcionamento
consciência, característicos do protestantismo do autor. Aqui, nada de do adulto e da sociedade. Espelho ou simulacro das ideologias evolu-
abandonar-se ao destino grego, às demandas do instinto ou ao impulso de cionistas, abundantemente encontradas no século XIX, o homoerotismo
revolta social. A personagem gideana, por excelência, é o homem indeciso aparece, nessas criações, como sinal do arcaico, do primitivo, do dis-
diante de opções morais conflitantes. Gide faz de seus escritos um tribunal funcional, quando não do monstruoso, que vêm parasitar a harmonia da
onde o livre arbíüio é a grande questão. As crises de consciência, o evolução desejável.
sofrimento, o tema da responsabilidade individual face a Deus, são a As relações homoeróticas são apresentadas como exemplo de latência
matéria de sua literatura, no que toca ao sexo. O homoerotismo é um caso perversa que todos possuímos e que, na infância, manifesta-se à luz do dia.
particular da luta entre o bem e o mal, o. pecado e a virtude, a falta e a E o caso de romances que procuram mostrar a existência da perversão, no
reparação, a carne e o espírito, a razão e a emoção, o hedonismo e o convívio indisciplinado de crianças, adolescentes ou adultos jovens. Em
ascetismo, etc. Mesmo quando recorre a justificativas médico-científicas O Áfenez{, de Raul Pompéia,28 em O a/uno 7br/esx, de Musil,29 em /l/aurice,
para legitimar suas tendências homoeróticas, Gide as descreve como uma dc E.M. Forster,30 em O remo/o, de Stephen Spender,3' em Os ja/sos
fatalidade. O homossexual que ele cria é um ser dilacerado, um exemplo
nioedelroi, de Gide,3z em Ás amizades barrica/ares, de Roger Peyrefitte,33
da consciência infeliz e da divisão ontológica do sujeito. Em função disso,
c mesmo em A cidade e o pí/ar, escrito por Gore Vidal" bem depois, os
a única saída para a oposição irreconciliável entre inclinação erótica e contatos homoeróticos na infância, puberdade e juventude são vinculados
ideais morais é o esquecimento e a resignação.
a cenários de violência, sadomasoquismo, delações, ciúmes mórbidos e
Em toda sua vida e obra, como disse Baldwin,:s Gide permaneceu atado
abuso dos mais fracos pelos mais fortes, em tudo feitos para provocar
a suas origens protestantes e à "prisão do macho''.2' Foi responsável por repulsa e reprovação. O homoerotismo, dá-se a entender, é a inocente face
algumas das mais belas e notáveis intuições sobre a contingência do desejo
do terror. E uma etapa de vida que deve ser meticulosamente vigiada e
52 A inocência e o vício
Os amores que não se deixam dizer 53

punida para, enfim, poder ser controlada e esquecida. Prova que, quando como peça no xadrez do poder, com enormes custos sociais e emocionais
persiste, degenera em atrocidades inconcebíveis. para os indivíduos nele implicados.
A sequência imaginária do Aomossex a/esmo de asco/a é o /zomos- Enfim, o terceiro elemento na fabricação imaginária do /zomosse.[ua/
sexua/esmo de g arte/. Sem freios, a perversão infantil passa facilmente à pnoderPzo teve sua matriz no exo/fumo. A marca do exótico e do excêntrico
vida adulta. Resultado: o transviado da infância será o assassino e o foi colada à personagem homossexual, por razões similares àquelas antes
torturador da maturidade. Em novelas e romances como Bom-Criou/o, de descritas. Fazer do homossexual um exó/ico cumpria três importantes
Caminha,as O cl/!cia/ pr ssíana, de Lawrence3' ou Golpe de misericórdia tarefas ideológicas. Em primeiro lugar, tarefa mais grosseira, afirmava a
de Yourcenar,:' o sono da repressão produz monstros. Nos ambientes superioridade do burguês branco, civilizado, metropolitano e colonizador.
inflexíveis, rígidos e impiedosos das casernas, militares homoerotica- face ao primitivo colonizado ou aos representantes de classes que, no seio
mente inclinados entregam-se a verdadeiras orgias de brutalidade contra da metrópole, não dispunham de poder social. Como exemplo das relações
as ''vítimas" de suas aspirações sexuais. O desejo amoroso torna-se uma com o colonizado, temos Gide. Quando em seu JozlmaZ,'' em Se o grão
descida aos infernos. As personagens vivem uma atmosfera de aflição e pião morre42 ou no /mora/fera,43 Gide situa suas relações homoeróticas em
desespero que só o assassinato e o suicídio vêm remediar. lusa ou Biskhra, realiza o que criticava em Proust. Em um certo momento.
Sem muito esforço, vemos hoje, no Aomossex a/limo do ff/70 esmo/a- lide dissera que os romances de Proust eram "cheios de duquesas" e que
q arfa/, um retrato dos combates ideológicos do século XIX. Por um lado, nao eram "para nós", ou seja, o francês republicano ou pe/ir-boargeols,
como mostraram Ariês e Green,s8 na condenação dessas sociedades ex- como se prefira. Mas deslocando o homoerotismo para a Africa do Norte,
clusivas de homens decretava-se paulatinamente a morte do ef/zos da excedeu em muito o expediente proustiano. Em meio a dunas. areias
amizade, que regulava os bandos de camaradagem. Coerente com a reno- escaldantes, absinto, danças de ventre e peles escuras, qualquer desvario
vação médico-pedagógica da família e de outros locais de produção do sexual justificava-se. Todo "imoralismo" torna-se parte da aventura colo-
cidadão burguês, procurava-se, com essas táticas, rebater a sexualidade nizadora, como vieram demonstrar o coronel Kurtz e Lawrence da Arábia.
masculina para o interior da família e da casa. Acentuar os perigos da Pecado e falta fazem sentido em terras cristãs e civilizadas. Junto aos
perversão homosse-rua/ em escolas e casemas fazia parte do mesmo fracos e infiéis, tudo é permitido ao forte. Os "Moktir". os "Ali" e os
movimento que atacava igualmente as figuras sociais do celibatário, do 'Maomé" não eram de cACa /zoui. No calor rescendendo a incenso. o
libertino, do sifilítico etc.'ç O objetivo era fazer do homem o domem-paí, civilizado burguês está autorizado a despir-se de casacos, chapéus, benga-
las, bons modos e restrições morais. Ali, no deserto de Deus. o homoero-
cidadão ocupado exclusivamente em trabalhar, cuidar dos filhos e fis-
tismo apaga-se dos dez mandamentos.
calizar a moral sexual das esposas- Nada disso era compatível com a
irresponsabilidade homoerótica que perpassava as redes de camaradagem, Procedimento semelhante acontece com Proust. No tempo perdido, o
exclusivas de sociedades masculinas. Por outro lado, na importância dada homossexualismo é da aristocracia. Ou seja, de uma classe social decaden-
ao Aomossex a/esmo de caserna, estava a questão dos escândalos sexuais te e fantasmática, com seus espectros de duques, condes e barões que, em
do exército alemão. Surgido no bojo das disputas pelo poderio militar, vias de extinção, exibem condutas e desdos do passado. O homossexual
proustiano é a contraface da saudável sociedade burguesa. Existe como
entre as nações imperialistas da Europa, o mito do militar homossexual
serviu durante muito tempo de pretexto à desmoralização dos exércitos antinorma, como um fóssil social, exemplar de um mundo que se fai. O
burguês, diante dele, sente-se tranqüilo e reassegurado de seu bom cami-
adversários.40 Na Alemanha, em particular, o problem a ganhou proporções
nho e de sua boa vida. Em Gide, o exótico era o submisso e o atrasado: em
nacionais e misturou-se indissociavelmente às lutas pelos direitos civis
Proust era o arcaico, o pano de fundo pálido, onde desfilavam a vitalidade.
dos homossexuais. Até a solução final nazista, o Aomossexüallsmo de
caserna foi simultânea ou sucessivamente usado como arma ideológica na o progresso e o expansionismo do imperialismo burguês. Por último, a
estratégia do exotismo encena a sujeição dos despossuídos, dentro da
luta pela supremacia política, de nazistas, stalinistas, nacionalistas e libe-
própria cidade. As relações homoeróticas de Maurice com seu guarda-ca-
rais europeus. O homoerotismo masculino, uma vez mais, foi utilizado
ças Alem Scudder, em Forster, ou de Michel, com os empregados dc sua
54 A inocência e o vício
Os amores que não se deixam dizer 55

fazenda, em O amora/lsfa, de Gide, mostram que o homossexual é um geração que, nos anos 50, 60 e 70, sobretudo a partir dos Estados Unidos
trânsfuga de classe. Não podendo exercitar sua perversão entre pares,
recorre à dissimetria social e faz-se aceitar por aqueles que não possuem livre do macartismo, lentamente virá propor e inventar um novo lugar
social para o homoerotismo masculino. Retecendo novas crenças e criando
a moral do verdadeiro cidadão. Numa espécie de simulacro da ética antiga,
novas linguagens de desejos e sentimentos privados, essa massa de dis-
permite-se ao senhor toda liberdade diante do escravo, liberdade esta cursos e práticas permite-nos, hoje em dia, olhar para trás e dar razão ao
impensável entre iguais. personagem de Genet: "Somos todos vítimas de pos/ers". Se os amores
Em segundo lugar, o homoerotismo exótico dava mostras do libe- não dizem seus nomes, não é só por falta de ousadia, mas porque, no fundo,
ralismo que a sociedade burguesa, no auge de seu poder, permitia-se nunca se deixam totalmente dizer.
ostentar. Desde que confinado, o homossexual podia manifestar-se sem
riscos. Nas escolas e quartéis, onde a fibra nacional e de classe estava BIBLIOGRAFIA
sendo temperada, ele devia ser perseguido e expulso; mas nos salões
mundanos, em meio a quadros, concertos e saraus literários, ele podia 1 . GAY, Peter, .4 paixão terna. São Paulo, Companhia das Letras, 1990; pp. 182 1 83.

circular, para entretenimento das horas de lazer. Em Proust e Gide, esta 2. BOSWELL, John, CArlsrfaniO, social ro/france, and Aomosexua/fQ. Chicago e
imagem do homossexual mundano, transitando entre periódicos literários, Londres, The University of Chicago Press, 1980
cafés, balneários, hotéis, cidades turísticas e estações de veraneio de luxo, 3. Ver
mostrou como a ideologia do exotismo impregnava a consciência que FOUCAULT, Michel, Hlsfórla da sexta/idade / -- A Honrada de saber. Rio.
esses autores tinham do problema. Porém, foi sobretudo com Oscar Wilde Graal, 1983
que a figura do dandismo homossexual alcançou seu zênite. Wilde culti- -- FOUCAULT, Michel, Hixfórla da sexta/Idade//-- O uso dos prazeres. Rio,
vava a excentricidade, o histrionismo e a exibição pública de seus dotes Graal, 1984
mundanos e, conscientemente, procurava associar esse estilo de vida à FOIJCAULT, Michel, Hísfória da sexuaZídade // -- O c idade de sí. Rio.
Graal, 1985
realização homoerótica. Quando na prisão deu-se conta da falácia do
liberalismo vitoriano, era tarde demais. Na Ba/ada da prisão de Reczdfng " 4. FORSTER, E.M., A/aurlce. Rio, Rocco, 1990; p. 56.
5. FÍERENCZI, Sandor, "L'homoérotisme: nosologie de I'homosexualité masculino'
e em Z)e prcláulzdls's ele percebeu a farsa da liberdade que usufruíra. Fora
í/z: Oeuvrei como/ê/es, tomo H: 1913-1919. Payot, 1970; pp. 1 17-1 30.
apenas um instrumento de diversão do que Hannah Arendt tão bem
6. PARKER, Richard, "Bodies and pleasures: on the construction of erotic meanings
chamou de "filisteísmo cultivado" burguês. in contemporary Brazil", Irz: .4nfbropo/o8y a/zd Humalzfsm Q aNely; 14(2), 1989,
Em terceiro lugar, o exotismo do homossexual preenchia, finalmente, PP 58-64.
uma função mais importante. Representando o homoerotismo como um 7. STOLLER, Robert, "Observing the Erotic Imagination". New Haven e Londres,
caso-limite da vida social e individual "normal", deixando-o exprimir-se Yale University Press, 1985.
apenas nos confins ou nas franjas de seu núcleo produtivo, a sociedade 8. BALZAC, Honoré de, Z,e pêra Garlof. Paras, Bordas, 1949; p. 81
burguesa fez do homossexual um parasita. Uma espécie de ser ocioso, Ver ainda a propósito de BALZAC e o homoerotismo:
dispensável, que, dependendo da necessidade, podia ser apresentado ora STORZER, Geram H. "'lbe homosexual paradigm in Balzac, Gide and Genes,
como um homem descartável, ora com um vampiro que sugava as forças, f/z Homoiexua/fffes a/zd .P'erzcA /llerarure, org. George Stambolian e Elaine
a saúde, a moralidade e o ímpeto para crescer, progredir e produzir, que Marks. lthaca and London, Cornell University Press, 1 979; pp. 1 86-209.
9. Üfd., P. 83.
eram a alma social da burguesia. Esse lugar fantasmagórico de oüíro do
IO. /b;d., P. 87.
homem normal, disciplinado, produtivo, obediente e partidário da ordem
apontava para o homoerotismo como o reinado do excesso, da desordem, 11 . BALZAC, Honoré de, /J iões perdidas. São Pau]o, Abril Cultural, 1978; pp. 342-
344
do êxtase ou da dissipação. 12. BALZAC, Honoré de, "Esplendores e misérias das cortesãs" ín À Comédia /lume/za
Assim, acredito, rodaram-se, em grande parte, os atributos da "identi- /X. Rio Porto Alegre - São Paulo, Editora Globo, 1952; p. 391
dade homossexual" que conhecemos. Depois disso, será preciso esperar a 13. /bíd., P. 449.
56 A inocência e o vício Os amores que não se deixam dizer 57

14. /bjd., PP. 460-461. Homosexuality in literature


GREEN, Martin, "Homosexuality literatura", frz Sa/ma8 /zdf. Op. cl/« pp. 393-
15. Citado por RONAI, Paulo, iPZ BALZAC, Honoré de, op. cif. , 1949; p. 10. 405
\6. ibid. 39 COSTA, Jurandir Freira, Ordem rnédlca e no/malamí/lar. Rio, Graal, 1 979.
17. MacRAE, Edward, A conslr ção da água/Jade. Campinas, Editora da Unicamp, 40 HOCQUENGHEM, Guy, Rate D 'Ep z{/z xíêc/e d'imagem de Z'Aomosexua//íé.
1990. Paras, Editions Librés/Hallier. 1 979
18. FOUCAULT, Michel, "Sexual choice, sexual act: An interview with Michel Fou 41 GIDE, André, JournaJ. Op. ci/.
cault", ín Salmagundí; n' 58-59, outono 1982, invemo 1983, pp. 15- 1 6. 42 LIDE, André, Se o grão /zão morre. Rio, Nova Fronteira, 1982.
lg. CAMINHA, Adolfo, Bom-Criou/o. São Paulo, Atiça, 1983. 43 GIDE, André, O amora/lx/a. São Paulo, Círculo do Livro, s/d
20. Ibid. 44 WILDE, Oscar, "La ballade de la geâle de Reading" -- l)e pr(!»/zdís. Paria, Editions
21 .!bid. Stock, 1973.
22. /bfd., P. 64 45 W\LDE, Oscar, De pr(#ündis. Op. cit.
23. Ver: PROUST, Marcel, 4 /a rechercbe d rerPzps perda, tomo dois. Paria, Gal limard,
1947. Em especial, Sodome ef Gomorre.
Também sobre PROUST:
RIVERS, J.E., "Fhe myth and science of homosexuality", frz Á la rec&ercAe
du temos perda, in Homosexualities and .Fench !iterature. Op. cü., pp.
262 278.
-- ALTER, Robert, "Proust and the ideological reader", in Sa/mag ndi. Op. c'if. ,
PP. 347-357
24. LAURITSEN. John e THORSTAD, David, Z,os prlmerox movi/rzlerzlos e/zlapor de
ros derecAos Aomoiexlialei 1 864-1935. Barcelona, Tuspuets Editor, 1974;
PP. 138-139
25. BALDWIN, James, Nobody inows my Rama. Nova York, Tbe Dual Press, 1961; pp.
155-1 62.
26. Ver sobre estes aspectos da obra de Gide: STORZER, Geram H., "The homosexual
paradigm in Balzac, Gide and Genet". Op. cif.
FOWLIE, Wallace, "Sexuality in Gide's self-poruait", [n Homosexuali íes aria
JPerzcA /f/eram re. Op. clr., pp. 243:26 1.
27. GIDE, André, Jaurrzal -- /890-/939. Pauis, Gallimard, 1 948; pp. 852.
28. POMPEIA, Raul, O Alerzeu. Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d.
29. MUSIL, Robert, Ojovem TõrZess. Rio, Nova Fronteira, 1978.
30. FORSTER, E.M. Op. cíf.
31. SPENDER, Stephen, O remo/o. Rio, Rocco, 1989.
32. GI DE, André, Z,eslaulx-mo/zn(D'euro.Paria, Gallimard, 1 986
33. PEYREFI'l'r'E, Rogar, Zzs amifié parricu/lares. Paria, Editions J'ai lu, 1 945.
34. VIDAL, Gere, A cidade e o pí/ar. Rio, Ronco, 1989.
35. CAMINHA, Adolfo. Op. clf.
36. LAWRENCE, D.H., "The Prussian Officer", in The ponab/e D.H. Zawre/zce. Nova
York, The Viking Press, 1954.
37. YOURCENAR, Marguerite, Z,e coup de fraca. Pauis, Gallimard, 1989.
38. ARIES, Philippe, "Reflexões sobre a história da homossexualidade", fn Sexuallda-
des ocldenrals, org. Philippe Ariês e André Bejin. São Paulo, Brasiliense, 1 985.
Impasses da ética naturalista
Gide e o homoerotismo

Começo por uma definição suficiente para meus propósitos. Por ética
naturalista entendo toda ética que busca na natureza os fundamentos da
vida moral. O naturalismo é uma variante do fundacionalismo ético, ou
seja, do pensamento segundo o qual nossas convicções morais, para serem
verdadeiras, devem partir de "proposições básicas, epistemicamente privi-
legiadas, que conferem justificação a todas proposições empíricas, aceitas
pelo sujeito moral" (Triplett, 1987, p. 1 15). Mais simplesmente, para o
fundacionalismo, as decisões éticas podem ser fundadas ou demonstradas
com base em argumentos racionais, independentes de crenças particulares
e contingentes. No naturalismo, tais fundamentos encontram-se nos impe-
rativos da vida biológica ou, de modo mais geral, na natureza. A boa vida,
nessa concepção, é a resultante da adequação das regras éticas às leis
naturais. O imoral ou amoral é o antinatural. Etica, portanto, sem des-
perdício ou possibilidade de equívoco.
A esse ponto de vista opõe-se um outro que Larmore resume como se
segue: ' .jamais somos desprovidos de crenças. E nossas crenças não têm
nenhuma necessidade de justificação. A questão da justificação só se
apresenta quando temos uma razão positiva para acreditar que algumas
delas são falsas. Mas, mesmo quando reexaminamos essas crenças, nossa
avaliação crítica perfila-se sobre o fundo de outras crenças" (Larmore,
1 988, p. 209). Dito de outro modo, ajustificação de nossas crenças não é

uma questão de adequação à natureza das coisas; aos dados elementares


do espírito ou da sensação; às regras lógicas da razão ou às exigências
internas da estrutura da linguagem; é uma questão de prática social ou
contexto conversaciona] (Trip]ett, ibid., p. 1 ]5). A essa ética, podemos
chamar de historicista. A ética naturalista, então, visa descobrir o fun-
60 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 61

damento trans-histórico e universal capaz de justificar a necessidade das que acreditava livre de preconceitos, porquanto ancorada na moral natural.
mesmas obrigações morais para todos os indivíduos . O desejo que a anima, Enganou-se, e seu engano, creio, mostra pelo menos duas coisas. Mostra,
para retomar a dicotomia proposta por Rorty (Rorty, ]9b3), e o desCIa ae em primeiro lugar, o que de longa data é afirmado pela psicanálise: não
obÜeüvídade. O historicismo ético, ao contrário, é animado pelo desejo de cxiste outro objeto do desejo a não ser as metáforas do objeto desde sempre
solidariedade. Abrindo mão da intenção fundacionalista, o historicismo e para sempre perdido. Isto é, a coisa nada mais é que sua falta. Mostra,
entende que qualquer exame crítico de um corpo de crenças pressupor a cm segundo lugar, que no fundamento do ideal de tolerância, ou, o que dá
validade de outras crenças que fornecem o padrão de avaliação das idéias no mesmo, do direito à diferença, nada pode ser achado, além do desejo
criticadas. Em vez de recorrer ao que transcende incondicionalmente a narcísico de reafirmação de uma tradição de ideais que se quer manter.
reflexão moral, reconhece seu pertencimento e sua solidariedade a.uma lide, contudo, não pensava assim. Era um intelectual honesto, um
dada comunidade e a uma dada tradição. Não pretendo "descobrir" o artista virtuoso e, num certo sentido, radical. Por isso, sonhou em alcançar
naturalmente dado" que deve obrigar todos indivíduos a aceitarem uma o umbigo do limbo e de lá trazer o código Ur da verdadeira moralidade
mesma moral, mas perceber o que os distingue uns dos outros e o que se sexual. Não conseguiu. No entanto, deixou-nos como recompensa um belo
pode fazer p ara aJ udá-los a melhor conviver com a pluralidade da condição retrato moral e intelectual de sua época, o que, por si, merece respeito e
humana Ao objetivismo naturalista importa a/undação de sí; ao histo- admiração.
ricismo. os diversos modos de cz$1rmação de s1. . .
E contra esse pano de fundo que penso contrastar o esforço intelectual Um homem de seu tempo
de Gide na defesa da "condição homossexual". Esclareço, entretanto, que
só usarem o termo "homossexual" citando o pensamento de.Gide ou de André Gide nasceu na França em ]869. Data ou lugar, aqui, não são
autores que, como ele, acreditam na isenção valorativa e descritiva da indiferentes ao percurso do pensador. Nascer na França em 1869 sig-
;;i;;;L'=Ü« -ã. é m« .«.. A'h' q" ' p''"'' h'm';sex:?l. '=; nificava nascer no ano em que Karoly Benkert, médico húngaro, inventou
inevitavelmente comprometida com a ideologia médica que Ihe deu ori- a palavra homossexual. Esse neologismo macarrõnico, como assinalou
gem e, por conseguinte, saturada de preconceitos. A meu ver, o chamado Boswell, veio posteriormente a condensar todo o imaginário ocidental e
homossexualismo ou a homossexualidade é apenas um episódio na história oitocentista tecido em torno do homoerotismo. Gide não escapou de sua
das práticas homoeróticas, muito mais amplasl diversificadas e cultural teia como, aliás, a maioria de todos nós. Nascer na trança, por outro lado,
mente avaliadas do que o termo oitocentista dá a entender. Por acreditar significava nascer sob a proteção do código napoleónico. Isso quer dizer
nisso, prefiro falar deliberadamente de homoerotismo, embora sem a não estar sujeito a punições pelo crime de homossexualismo, como os
pretensão de canonizar o termo, que pode ser trocado por qualquer outro, ingleses sob a Emenda Labouchêre ou os alemães sob o parágrafo 1 75 do
contando que, na troca, não se venha a perder o sentido. código penal alemão. Por essa razão, Gide pede escrever e publicar
Essa ressalva introduz a matéria de estudo. Ao contrário de um Freud, livremente o que pensava sobre o homoerotismo, sem arriscar-se à cadeia
das
que, não obstante o uso de noções datadas, viu na multiplicidade ou a perseguições jurídico-policiais. Mas, por isso mesmo, deixou-se,
morais sexuais uma expressão da contingência do desejo ou de sua talvez, envolver com mais facilidade na trama do mito da homossexua-
contrapartida egóica, o narcisismo das pequenas diferenças; à diferença, lidade e de sua origem natural. - :.:;:.
ainda. de um Foucault, que fragmentou o campo do sexo, mostrando a Na França, depois da Revolução, a liberdade sexual deixou de ser vista
ilusão de sua pretensa homogeneidade, Gide quis fazer do homoerotismo como um problema de Estado. O código napoleónico ratificou a idéia de
homo-
uma obrigação natural. Mais que isso, reduziu a multiplicidade que o poder público nada tinha a ver com a vida privada do cidadão. No
erótica ao homossexualismo, dando-lhe uma essência nominal e uma entanto, como seria de esperar, ser livre jurídico-politicamente não podia
realidade objetivo, inexistentes antes da medicalização e da moralizaç:o significar ir de encontro à ordem social burguesa. A retórica dos direitos
burguesa do sexo, nos ülnais do século XIX e começos do seculo XX. individuais tinha limites. Uma coisa era a Revolução, com suas palavras
Tomando como um dado esses consüutos culturais, elaborou uma teoria de ordem política e suas fantasias intelectuais; outra coisa era a burguesia,
62 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 63

com seus interesses de raça, classe e suas aspirações imperialistas e hábitos, aprendemos, no presente histórico, a desejar a heterossexualidade
nacionais. A liberdade política tinha de encontrar um freio, sob pena de e a repudiar a homossexualidade: "Pense que, em nossa sociedade, em
minar a rede de poderes que mantinham de pé o edifício burguês. Desco- nossos costumes, tudo predestina um sexo ao outro; tudo ensina a heteros-
briu-se, então, que a liberdade só era realmente livre quando obedecia à sexualidade, tudo convida a ela, tudo a provoca: teatro, livro, jornais,
liberdade moral, cqo solo era a necessidade natural. Donde o relevo dado exemplo dos mais velhos, jogos de salão, de rua. Se com tudo isto, não
ao instinto e à evolução. As noções de instinto e evolução sexuais foram nos tornamos amo reltx, é que fomos mal educados, grita-se" (/bid. p. 4 1 ).
para as liberdades morais o que o progressismo e o transformismo foram Ora, o hábito heterossexual, afirma Corydon, era uma contrafação do
para as liberdades sociais. Forneceram as justificativas para o controle dos verdadeiro rumo da natureza. Contrafação que, entretanto, era facilmente
sexos e corpos sem aparentemente ferir as leis das virtudes cívicas. Com desmontável quando se analisava a fragilidade das idéias que a sus-
o instinto e a evolução, passou-se a saber cientificamente o que devia ser tentavam. Por exemplo, a idéia de "instinto de reprodução". lide diz que
a norma]idade moral, fronteira natural da liberdade política. A natureza
a noção de instinto sexual como sinónimo de instinto de reprodução é uma
não errava; simplesmente seguia sua tendência para a evolução. Portanto, falsa idéia. Não existe na natureza algo que "precipita irresistivelmente
o que fugisse a essa tendência era desvio, arcaísmo ou regressão. um sexo para o outro", ou que age como uma "força imperativa cata.
Daí para as teorias da degenerescência ou das anomalias instintivas o górica", à semelhança de um "mecanismo infalível" (/bfd., pp. 40-45).
passo foi ü'anqüilo. O imoral era o anormal, e o anormal era um degenerado Todas essas noções são "ídolos" que os antiteístas puseram no lugar de
ou um anómalo. Anómalo que, logo em seguida, tornou-se o perverso, Deus. O homem, quanto mais se eleva na escala animal, mais se afasta do
termo que, assim criado, veio adjetivar ou substantivar todo sujeito com determinismo instintivo. O que o orienta, em matéria de sexo, não é o
inclinações homoeróticas. O que outrora era crime, agora era um misto de instinto de reprodução, é a volúpia. "Não é a fecundação que o animal
vício e doença; doença dos espíritos viciosos ou espírito vicioso de doentes busca, é simplesmente a volúpia. Ele busca a volúpia e encontra, por acaso,
mentais degenerados ou portadores de observações instintivas. a fecundação" (/bld., p. 48).
Gide herdou esse legado, que procurou reverter em favor de suas A primeira vista, a afirmação parece ter uma certa sonoridade psica-
inclinações sexuais. Em 191 1, começou a escrever Carydon, pequeno nal ítica. O princípio da volúpia poderia evocar o princípio do prazer, noção
romance de tese, onde pretendia criticar cientificamente os preconceitos criada por Freud para emancipar o sexual da coerção instintiva. Mas o
contra o homoerotismo, provando que a pederastia era a forma mais parentesco é superficial. A volúpia, como usa lide, estava mais próxima
adequada da moral sexual inscrever-se na natureza (Gide, 1987). Por da volúpia positivista, termo empregado pela medicina psiquiátrica para
escrúpulo e receio de reprovação social o livro só foi publicamente editado explicar a fisiologia do amor. Enquanto para Freud o princípio do prazer
em 1920. Nesse meio tempo, Gide amadureceu seus argumentos que, cra uma mera figuração da contingência e da indeterminação instintiva do
diga-se de passagem, continuaram os mesmos após a publicação do desejo sexual, para Gide a volúpia era o que fazia do homoerotismo uma
trabalho. Corydon, ao lado do Jourrza/, é o único texto em que o homo- nota previsível da natureza. Dito de outra forma, era a condição .Fine g a
erotismo é explicitamente defendido, com base em doutrinas científicas. no/z do homoerotismo natural. A tese era a seguinte: Corydon, recorrendo
Do ponto de vista da forma, organiza-se como um diálogo em que o médico a Lester Ward, "economista-biólogo" americano e criador da "teoria
Corydon procura persuadir o adversário que sua opinião é científica ginecocêntrica", dizia que "nas ordens inferiores, o excesso de machos em
enquanto a dele, adversário, nasce do senso comum. No final, compete aa relação às fêmeas era um fato natural" (/bíd. p. 53). O macho era um luxo
leitor decidir a quem cabe a vitória argumentativa. biológico. Poucos machos bastavam para o trabalho da reprodução. Esta
De início, Gide leva seu interlocutor imaginário a desconfiar da natu- mesma opinião era defendida por Pender, um discípulo de Bergson, para
ralidade de seu modo usual de pensar. O artifício usado é o argumento de quem o "sexo feminino era o sexo da previdência fisiológica", enquanto
autoridade. Por intermédio de Pascal, Montaigne e La Rochefoucauld, diz
o masculino era o do "dispêndio luxuoso mas improdutivo" (/bíd., pp. 58-
que tudo o que sabemos sobre o instinto sexual ou sobre a natureza do 59). Além do mais, a prodigalidade do macho manifestava-se não só no
amor e do sexo é produto de nossos hábitos e costumes. Em função desses número, mas também na disponibilidade para a volúpia. Conclusão, o
64 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 65

grande problema da natureza não era o que fazer para manter-se ou erotismo, impondo a volúpia à reprodução enquanto princípio básico da
perpetuar-se -- problema da reprodução -- mas como lidar com o excesso evolução natural e social. Não percebeu que, virando pelo avesso o
de machos e de sua disposição para o coito -- problema da volúpia. .. naturalismo, continuava preso às noções preconceituosas de rzorma e
Tendo em conta os postulados evolucionistas, constantemente afir- de.çvío }zafuraís. Insistindo em buscar fora da história a caução moral para
mamos no estudo, a saída plausível seria o controle discriminado da suas preferências sexuais, concedeu ao inimigo o que pensou subtrair-lhe.
população dos machos. Mas isso não resolvia o dilema moral de Gide. A O direito à escolha do estilo erótico de vida, no sistema de Gide, continuou
boa olução seria aquela que impusesse, logicamente, a necessidade das sendo custodiado por fatores externos à liberdade política. A tolerância
corolário não era reclamada em nome dos direitos individuais, era uma concessão
práticas homoeróticas. Sendo assim, não houve outra saída. O
da "teoria ginecocêntrica" era o de que, na maioria das espécies, inclusive benfazda das leis naturais. Sem suspeitar, o artista punha sua arte contra
na espécie humana, os machos eram mais bonitos e, portanto, sentiam-se a vida, atrelando a ética ao tacão da necessidade.
mais atraídos uns pelos ouü'os do que pelas fêmeas. Assim, as fêmeas,
vendo- se livres da volúpia, podiam dedicar-se com tranqiiilidade à criação A ética gideana: entre o ser e o tornar-se
dos filhotes. Precavido, Corydon adverte o interlocutor de que ele se
engana vendo aí a defesa do uranismo por um. uranista. A supremacia da Para nossa sensibilidade atual, Corydon envelheceu. Mas se os argumentos
beleza masculina havia sido constatada por cientistas e pensadores que, de Gide, hoje, parecem-nos desusados, cómicos ou pueris, na época
em absoluto, eram homossexuais. estavam amparados por um formidável dispositivo intelectual. A Gide não
Goethe, por exemplo, dizia que a existência da "aberração".homoeró- faltaram nem conhecimento, nem erudição, nem capacidade para refletir
tica devia-se ao fato de que do "ponto de vista da regra puramente estética, sobre os próprios limites da razão científica. Em certas páginas, Corydon
o corpo do homem era muito mais bonito, muito mais perfeito e muito parece fazer eco às modernas idéias de Kuhn sobre a presença de paradig-
mais bem acabado que o corpo da mulher" (Ibid., p. 104). Stevenson, um mas na orientação da produção científica. Assim, vemos lide negar a
naturalista, notara que, entre os polinésios, "a beleza dos jovens ultrapassa unidade metodológica da ciência ou descrever a prática cotidiana do
de muito à das mulheres" (/bld., p. 97). Por último, Darwin, quando, no
cientista como se segue: "0 grande homem de ciência é tão raro quanto
Taiti, escreveu: "Confesso que as mulheres me decepcionaram um pouco qualquer outro homem de gênio. Os meio-sábios são numerosos o bastante
Elas estão longe de serem tão belas quanto os homens ' (/bld., P 97)
para aceitar uma teoria de tradição, que os guia ou desencaminha, e para
Assentada a base natural, o raciocínio invertia-se. Agora era a cultura,
tudo 'observar' segundo ela. Tudo, durante muito tempo, confirma o
no que tinha de melhor, que vinha demonsüar a cientificidade da espe-
horror que a Natureza tinha do vazio; sim, todas as observações. Tudo,
culação naturalista. A Grécia, mostrava Gide, realizara plenamente a
durante muito tempo, confirmou a existência de duas eletricidades dife-
intenção da natureza. Plutarco, por exemplo, séculos antes dele, já tinha rentes e que eram atraídas por uma espécie de instinto quase sexual. Tudo,
observado que as mulheres, para se fazer atraentes, precisavam de unguen-
no presente, confirma ainda esta feorla do fnsfinfo sexual. .." (/bld., p. 7 1 ).
tos, pinturas, filtros e enfeites, enquanto os homens eram naturalmente
belos. De outro ângulo, era visível que a grandeza da mulher na tragédia Outras passagens curiosamente se aproximam das atuais posições
neopragmáticas no que diz respeito ao valor e à função das teorias
e na epopeia só existiu graças à pederastia. Sem .a pederastia, a mulher
teria sido exposta ao adultério, ou chamada à prostituição: pela volúpia do
científicas. Corydon diz: "E preciso reconhecer, de início, que é muito
macho. A pederastia preservou o s/aftas de mãe-esposa da mulher grega, difícil supor que uma observação possa ser efeito do acaso, e que caia num
fazendo com que o excesso da volúpia masculina fosse dispendida entre cérebro como uma resposta fortuita a uma questão que o cérebro não teria
formulado (-.) As respostas que a Natureza gritou ou murmurou-me, peço
eles, diretamente, pelas relações sexuais, ou indiretamente, pelos jogos,
competições, guerras e demais atividades exclusivas de sociedade de que se as verifique. SÓ quero reler uma coisa: tendo interrogado a natureza
homens Desprezando todo o contexto da erótica grega, em especial a com uma preocupação diferente, ela respondeu-me de maneira diferente'
questão dos amores masculinos, Gide lutava para enobrecer o homo- (/bÍd., P. 73).
66 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 67

Ou ainda: "Quero dizer que a importância de um novo sistema propos' tava. Persistindo em cultuá-la e em fazê-la responsável pela superioridade
to, de uma nova explicação de certos fenómenos, não se mede de modo cultural da vida homoerótica, Çidç, à revelia de suas intenções, ajudou a
algum unicamente por sua exatidão, mas também e sobretudo pelo élaíz consolidar o mito de que o "homossexual" é um tipo natural e, como tal,
que ela fornece ao espírito por novas descobertas, novas constatações possui um "perfil psicológico", singular e intransferível.
(mesmo que estas neguem a dita teoria), negue rotas que ela abre, pelos A segunda ordem, creio eu, vem de seu ideal estético. Gide propôs-se,
impedimentos que ela levanta, as armas que ela fornece" (/bld., p. 87)- enquanto escritor, a seguir a regra da máxima objetividade e precisão.
Como, diante disso, compreender a ingenuidade do cientificismo de Detestava o desmedido e o preciosismo, fosse de sentimentos ou palavras.
Gide? Penso que três ordens de motivos influenciaram sua pretensão em Certa vez indignou-se quando um crítico disse que seus escritos eram
derivar normas morais de leis naturais. A primeira, mais evidente, radica
p/eíns de /armes ef c/alr de /zznes. Em outra ocasião, respondeu à acusação
no clima cultural da época. Gide viveu num tempo mergulhado na espe de "coqueteria no arranjo das frases", dizendo: "nada é mais falso. Eu só
rança positivista em uma humanidade livre por obra da ciência. Nesse amo o estrito e o nu. Quando comecei a escrever ]Vourrífures, compreendi
sentido, era um espírito crédulo. Ainda em 1930, lendo A/oby l)lck, que o propósito mesmo de meu livro era banir dele toda metáfora. Não
comentava: "Melville fala das cachalotes fêmeas presididas por um único
existe um único movimento de minha frase que não responda a uma
macho furo /enfo ejovem; e quanto aos machos excluídos, e que não terão
necessidade de meu espírito; o mais freqüentemente é apenas uma neces-
acesso ao gineceu, que farão eles? O que se tornarão? Esta questão, tão sidade de ordem" (Gide, 1 948, pp. 71 6-717). Quando dialogava consigo,
simples, é possível que eu seja o primeiro a coloca-la? E possível que eu podia admitir que "o determinismo, ao qual nosso espírito e nosso corpo
seja o único? É possível que só se responda a ela por meio de risos, ou não parecem não poder escapar, responde a causas tão diversas, tão múltiplas
se responda absolutamente?" (Gide, 1948, p. 997). Sua confiança na e tão tênues que parece infantil procurar desmembrá-las e, mais ainda.
natureza ou numa explicação natural ao direito social ao homoerotismo reduzi-las" (/bíd., p. 813). No entanto, quando escrevia, negava-se a
jamais arrefeceu. Embora sabendo que a natureza dá respostas diversas a aceitar o caos, a improbabilidade e a imprecisão. Dizia que "não existe
questões diversas, continuava desejando tê-la como aliada na luta contra pior inimigo do pensamento que o demónio da analogia"; ou, então,
o preconceito. No fundo, respeitava o que a maioria pensava. Basta, para perguntava: ''o que pode existir de mais cansativo que a mania de certos
tanto, comparar Corydon com a rebeldia de Vautíin, anti-herói de Balzac. literatos, que não podem ver um objeto sem pensar, logo em seguida, em
Livre da hegemonia ideológica do instintivismo e do evolucionismo, um outro?" (/bíd., p. 822). Seu ideal pode ser resumido na seguinte frase:
Balzac, algumas décadas antes, fizera de Vautrin o protótipo do rebelde "Todos nossos escritores de hoje, falo dos melhores, são preciosos. Espero
romântico. Em sua paixão por Rastignac Calvi e sobretudo por Lucien de adquirir cada vez mais pobreza. No desnudamento, a salvação" (/bld., p.
Rubempré, Vautrin ridicularizava a comédia burguesa, sem prestar contas )
a nenhum de seus tótens. Queria o máximo de liberdade e autenticidade,
Essa estética do despojamento sintonizava-se seguramente com o es-
e para isso dispensava o auxílio de qualquer força natural ou convenção
social pírito do burguês protestante. Como quer que seja, parece ter invadido sua
ética sexual, tornando-se parâmetro para justificação de seus desejos
Gide, não. Desejava a todo custo ingressar na sociedade dos outros, homoeróticos. Nada mais objetivo e nu que uma ética sexual natural. Nela.
dos que supunha conformes à lei. E, não podendo, quis transformar essa nada de metáfora ou indecisões, ambiva]ências ou deslizamentos. ])ela
sociedade fazendo sua revolução naturalista-antropológica. Assim, Córydon
deveriam desaparecer toda a volubilidade dos desejos humanos e toda a
diz: "o o f/ove que sou pode aceitar ser posto no index, abominado pelas
arbitrariedade das práticas sócio-culturais. Na natureza, o que não pode
leis humanas, pelos costumes de seu tempo e de seu país; mas nunca viver ser, não é; o que deve ser, é. l.Jm homoerotismo natural seria aquele onde
à margem da natureza" (/óld., p. 49). Bem dito, mas meia verdade. Pois a
o sentimento e a descrição do sentimento, o desejo e sua expressão,
única natureza que Ihe interessava era a natureza que Ihe permitisse ser coincidiriam com a essência da coisa, sem restos ou ambiguidade. Talvez,
iccito, e não abominado pelas leis humanas. Natureza que, aliás, forneceu por isso, Freud o incomodasse tanto e fosse por ele chamado de "imbecil
ojargão legitimador da prática social excludente, que o vitimava e infelici- de gênio" (/bld., p. 785). Diante da ética-estética do nu, o mundo alucinado
68 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 69

dos fantasmas, dos desejos ou das imagens plurais do sujeito parecia a localizar-se nela de modo a não contrariar suas sagradas finalidades.
Gide desordenado, supérfluo e precioso. Seu propósito era ultmpassar a Mesmo sendo responsável pela presença do homoerotismo entre os ho
metáfora e alcançar o sexual, antes da linguagem inventa-lo. Freud, em mens, a natureza, refletindo a sabedoria de Deus, sabia separar o joio do
oposição, só entendia o sexo mediado por metáforas. trigo. Buscando aplacar a consciência da infração, Gide quis ver a marca
r'.Éll;lm. a terceira ordem de motivos deve-se, a nosso ver, à tradição do perdão mesmo quando entregue à volúpia. Os homossexuais, segundo
religiosa de Gide. A consciência cristã protestante e o fome apego a ele, não eram todos iguais. Existiam aqueles conforme à natureza e aqueles
moralidade materna de sua infância nunca deixaram-no verdadeiramente contra a natureza. Entre 191 8-1919:
em paz com suas inclinações homoeróticas. . , iehamopederai/a aquele que, como a pal avra indica, sente-se atraído porjovens.
Em 191 1, em seu JournaZ, dizia temer que alguns vissem em.Corydon Chamo sodomíra(-.) aquele cujo desejo dirige-se a homens feitos. Chamo
enas a marca de uma obsessão doentia, ou de uma impossibilidade de íPzt,erf/do aquele que, na comédia do amor, assume o papel de mulher e deseja
afastar o espírito de um assunto perturbador (Gide, 1948, p.- 340). Pelo ser possuído. Estas três espécies de homossexuais não são de comia alguma
c(nltrário, afirmava ele, "a dificuldade vem precisamente de que devo claramente diferenciadas; existem deslizamentos possíveis de uma a outra; mas,
reatualizar artificialmente um problema ao qual, de minha parte, dei uma com freqüência, a diferença entre eles é tal que experimentam, uns pelos outros,
uma profunda repulsa, repulsa acompanhada por uma reprovação que em nada
solução prática. De modo que, para dizer a verdade, ele não me atormenta
fica a dever àquela que os heterossexuais sentem pelos três. Os pederastas, entre
mais" (/bld.). A verdade, no entanto, é que, ainda em 19] 6,égide debatia-se
os quais me incluo (por que não posso dizer isto simplesmente, sem que logo
com o problema que acreditava, em 191 1, ter solucionado praticamente. vocês pretendam ver, em minha confissão, fanfarronada), são muito mais raros
Naquele momento, escrevia: "Senhor, Vós o sabeis, eu renuncio a ter razão e os sodomitas muito mais numerosos do que de início pude crer. (-.) Quanto aos
contra quem quer que seja. Ah! Senhor, desatai os elos que me retêm. invertidos, que frequentei muito pouco, sempre me pareceu que eles unicamente
Libertei- me do peso apavorante deste corpo. Ah!.que eu viva um pouco; mereciam a reprovação de deformação moral e intelectual e cair sob os ataques
que eu respire! Arrancai-me do mal. Não me deixeis sufocar Lloia, p. (-.) comumente dirigidos a todos os homossexuais" (Gide, 1 948, p. 671-672).
573). Perseguido pela consciência do mal e do pecador jamais pode
Essa opinião havia sido, com nuances, emitida por Corydon: "a homos-
suportar a imagem de transgressão, associada ao homoerotismo. Não por
acaso, suas primeiras experiências homoeróücas só vieram a ocorrer na sexualidade, assim como a heterossexualidade, têm seus degenerados,
Áfnca do Norte, como sabemos por meio de Se o grão não morre e de O seus viciosos e seus doentes; como médico pude isolar, junto com outros
confrades, muitos casos vistes, desoladores e duvidosos; pouparei, deles,
jmoraZisfa (Gide, 1983; s/d). Entre as dunas e oásis da Tunísia, ele parece
ter conseguido fugir da atmosfera caseira de sua Fiança religiosa. Em meio
meus leitores: uma vez mais, meu livro tratará do uranismo blerz porranr,
ao deserto, longe do protestantismo vetusto dos Gide, pede entregar-se à ou como você dizia há pouco; dapederasfla normal'. (Gide, 1 987, p. 32)
paixão homoerótica sem recear o dedo de Deus que ali pareci?. repaousar
A pederastia normal, ou seja, a preferência homoerótica de Gide, era
e sua eterna vigilância. Mas, de volta à Europa, novamente as dúvidas, o responsável pela cultura da gloriosa Grécia, ou pelo apogeu da beleza
masculina na escultura renascentista. Já os outros, os "invertidos", eram
remorso e a autopumçao.
A descoberta da natureza foi uma solução de compromj$so-uma-üegBa degenerados, maníacos, ou doentes(/bíd., p. 132). Pouco importaque Gide
no conflito Se o homoerotismo era um fato natural, o raspe!!a-à'lei-de temperasse a acusação feita a eles, afirmando que eram um fruto da
Deus estava garantido, já que, para Gide, a natureza nunca foi de fato oposição entre costumes sociais e apetites naturais. O importante é que sua
dessacralizada. Ela era apenas uma manifestação da grandeza del)eus. Em 'pederastia normal" brotava da natureza como a água da fonte, enquanto
1 921, falando a propósito da evolução, dizia: "Compreendo que Deus é o
o homoerotismo alheio era uma aberração natural e social.
ponto culminante e não o ponto de.partida de qualquer criação.O que em É verdade; entre os médicos, psiquiatras e sexologistas do século XIX,
nada impediria, aliás, a criação inteira de ser sua obra. Mas ele só se realiza essa mesma hierarquia do estigma, no domínio das práticas homoeróticas,
depois de nós. Toda evolução deve culminar em Deus" (/bld, P: .{nJ. E foi moeda corrente. Mas em Gide era signo de sua vontade de transfiguram
porque a natureza deveria cumprir os desígnios divinos, Gide tinha que o mal e o vício, mesmo às custas da fabricação de uma outra categoria dc
70 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 71

malditos. A benevolência divina tinha um preço, a danação do diferente. afirmação da vida ou os padrões funcionais e disfuncionais de compor-
A natureza por ele inventada previa o lugar da pena e do pecador. Em tamentos adquiridos. A verdade fala por si e, querendo ou não, os homens
outros termos, de um lado falava a língua da economia, da biologia, da sempre encontram seus verdadeiros intérpretes, apesar da estupidez dos
história e da antropologia; de outro, em contraponto, repetia o decálogo e que tentam emudecê la.
os sete pecados capitais. O burguês cultivado, liberal e vítima do pre- O outro Gide, pelo contrário, falava do oratório que existe ao lado de
conceito defendia o princípio da volúpia; a criança protestante, frágil e todo laboratório, como jocosamente rimou Lenoble. Sem aceitar que
amedrontada buscava um remédio leigo para a alma atormentada. pudesse ser pecado o que sentia, resolveu o impasse pelo caminho mais
Qual dos dois era o verdadeiro lide? Deixamos de lado o jargão da curto. Recriou uma filiação onde o que era pecado tornou-se graça. Assim
autenticidade. Depois de Freud, sabemos que somos apenas um feixe de como Proust criou o mito da raça de Sodoma, plena em sua origem, e,
crenças e desejos. E, para evitar a acusação de advogar em causa própna, agora, voltada à produção do belo e sublime, no caminho de volta à
ou em defesa da corporação de praticantes da disciplina que exerço, repito perfeição perdida, Gide também criou sua Idade de Ouro. No começo era
com Genet: "Somos todos vítimas de posters". O Gide conformista, a Grécia. Ali, os machos amavam uns aos outros, o casamento era santi-
delegado das ideologias do século XIX, pretendia objetivar a natureza do ficado, a esposa-mãe idealizada e, a infância, protegida. Os homens, todos
erotismo humano recorrendo à posse, auto-atribuída, do conhecimento das
viris, cultivavam o gosto pela cidadania, pela honra, pela bravura, pela
leis da natureza. Como muitos espíritos atuais, temia aceitar a mortalidade coragem, pelo companheirismo e pela abnegação ascética. Desejo de
dos vocabulários que, em cada época, apresentam-se como o fim das Deus, ordem natural e mandamentos éticos eram indistintos. Depois veio
interrogações, e da conversão da humanidade. Este Gide, como tantos a queda, o império do mal e, com eles, a primazia do heterossexual.
outros, &ntes e agora, queria exorcizar o fantasma da futilidade das insti- Contrariando a harmonia das coisas, inventou-se o "instinto de repro-
tuições humanas. Queria encontrar um critério a-histórico que, revelado à dução", bisonho álibi da decadência moral. Mesmo assim, algo do Eden
razão pela intuição, permitisse aos homens afirmar fn per/o o que Rorty resistiu à desgraça. Por exemplo, dizia Gide, o código napoleónico c os
denunciou em alto e bom som: mesmo que os persas tivessem exterminado costumes sexuais dos militares alemães. Segundo Corydon, se o código
os gregos, mesmo que os romanos tivessem eliminando o cristianismo, napoleónico evitava punir a pederastia era porque Napoleão, sabiamente,
mesmo que a restauração tivesse apagado os traços da revolução, mesmo quis proteger seus generais da infâmia e seus exércitos da derrota. E feliz
que a Inglaterra tivesse esmagado a revolução norteamencana, mesmo que era o país que, como a Alemanha, cultivava a pederastia em suas fileiras
Freud tivesse morrido em lugar de Fleischel, mesmo que Galileu tivesse armadas. Um exército de amantes é imbatível. A sabedoria clássica intuirá
sido queimado pela Inquisição, mesmo que Newton e Maré tivessem isso, ou melhor, descobrira isso. Se assim não fosse, como explicar o
morrido prematuramente, ainda assim, um dia, os homens futuros desco- sucesso de Esparta? E o que fazer dos exemplos de Agesilau, Epaminondas
bririam os valores e crenças da cultura ocidental, e construiriam um mundo e, por fim, do exemplo mais que exemplo de Aquiles e Pátrocles? O paraíso
à nossa imagem e semelhança. (Rorty, op. clr., p 937) era homoerótico; quem duvidasse, que olhasse o exemplo dos homens de
Esse medo narcísico de que nossa comunidade não tenha, a exemplo Atenas, da vida animal ou dos militares franceses e alemães.
dos crentes, o direito à ressurreição, fez-nos temer a morte e acreditar que Essa imagem da decadência dos tempos modernos foi a mesma usada
tudo aquilo que respeitamos e queremos conservar só é respeitável e por Morei, psiquiatra francês, criador da teoria da degenerescência. Para
desdável porque assim está escrito nas estrelas ou no coração de cada um. explicar a degeneração sexual, Morei, com seu catolicismo conservador.
Esse medo, que Freud tão bem diagnosticou em "0 futuro de uma ilusão" também serviu-se da idéia de um paraíso perdido, cujas sobras eram as
O mal-estar da cultura", "Moisés e a religião monoteísta" etc., diz-nos aberrações mentais e sexuais que o século XIX presenciava. Gide, é claro,
que Deus ou a natureza falham mas não tardam; portanto, se no prmcípio não reproduzia as teses de Morei, que não conhecia, ao que tudo indica.
não cra a "reprodução", então era a volúpia; e se não for a volúpia, então Reproduzia, isto sim, a ideologia que o manteve atado ao que Baldwin
serão os códigos genéticos, as leis da economia, os invariantes psíquicos, chamou "a prisão do macho". À semelhança de Ulrichs, criador daimagem
us estruturas de parentesco e da linguagem, as permutações simbólicas, a do uranista como "uma alma de mulher num corpo de homem", Gidc
72 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 73

procurava convencer-se e convencer os outros de que a verdadeira alma única ética sexual a ela adequada, porque dela decorrente: este foi o
masculina era a alma do pederasta. Não pede dar-se conta do contrasenso equívoco de Gide. Penso apenas em propor que: se descrevermos o
ideológico implícito nessa idéia. O código moral que o discriminava homoerotismo como uma possibilidade a mais que têm os indivíduos de
definia a subjetividade masculina burguesa, entre outras coisas, como se realizar afetiva e sexualmente; se descrevermos as práticas homo-
aquela que se opunha à forma abortada de masculinidade que era o eróticas como um campo polimorfo e múltiplo, cujo enquadre numa classe
homossexual. Querendo salvar a masculinidade da pederastia, não só
ou família natural deve-se apenas ao modo como cataiõÉãmoi ÍMalo
remava contra a maré, como engrossava a rasteira propaganda nacionalista
rezamos as condutas sexuais entre nós; se, enfim, desistirmos de +er o
e chauvinista que, na Europa, em especial na trança, buscava desmoralizar
homossexual" como uma realidade natural ou psíquica que antecede as
o agressivo e belicoso exército prussiano, pintando-o como covil de
homossexuais. Pior que isso, comprando essa grosseira idéia feita, des- formas de vida e os jogos de linguagens que o produzüain; póii bem,.se
conhecia que a suposta difusão do homoerotismo no exército era um clichê procedermos assim, poderemos mais facilmente continuar respeitaDdn e
cultivando outras crenças igualmente importantes paro.Passas vidas. Con-
manipulado pelo conservadorismo alemão, com vistas à defesa das insti-
tinuaremos cultivando, por exemplo, a crença de que o direito à vida, à
tuições germ únicas contra a praga homossexual que infestava a sociedade.
liberdade e à busca da felicidade são direitos inalienáveis de todos os
Inadvertidamente, por submissão à ideologia da masculinidade, alinhava-
se ao que de pior havia em matéria de repressão aos direitos individuais, indivíduos; continuaremos cultivando a crença de que se a vida e a
liberdade são problemas de todos e que por todos devem ser discutidos e
e que redundou tempos depois, na presença dos triângulos rosas nos
campos de concentração. resolvidos, a busca da felicidade é problema de cada um; finalmente.
Porém. ao lado do Gide cientificista e do Gide protestante, havia o Gide continuaremos cultivando a crença de que a busca da felicidade não precisa
artista. Este sim, podemos dizer, sabia sem saber ou sabia e não acreditou justificar-se, excito quando esbarra na dor e na humilhação do outro.
saber. Quando na maturidade, aos 58 anos, escreveu "Je ne suis./amais, ./e Uma vez mais, entretanto, proponho que acreditar nisso tudo não é o
deviens. Je deviens celui quere cross ou que voas croyez ql+eje suis", G\de mesmo que afirmar que todos os sujeitos, em todos os m undos logicamente
superou seu tempo Não nascemos e morremos sendo; todos, no curso da possíveis, levarão a sério tais idéias éticas. Mais importante que tentar
vida. nos tornamos. Tornamo-nos aquilo que as circunstâncias nos permi' saber se os andróides da galáxia XPTO serão obrigados por uma necessi-
tem ou aquilo que inventamos para modificar as circunstâncias. Porém, dade lógica ou estrutural a descobrir a verdade daquilo em que acredita-
tanto as circunstâncias quanto o que as altera não são leis ou descobertas mos, mais importante, penso, é estarmos dispostos a discutir suas idéias
de leis que decretam o que a natureza humana verdadeiramente é sub e, eventualmente, a aceita-las, se parecerem melhores que as nossas. Por
specíe aeferní/ans. São coisas ou estado de coisas; eventos ou interpreta- enquanto, se mantemos nossas crenças e ideais, não é por acha-los funda-
ções de eventos criados pelos homens, na interação com o mundo. Tudo dos em princípios da razão cogente, mas porque, até o momento, nenhum
isso, concordo, num certo sentido é trivial. Mas sempre que esquecemos outro candidato ou competidor apresentou credenciais suficientes para
essa banalidade, passamos a querer que nossas convicções, ou as crenças ocupar seu posto. Por tentar inventar uma verdade moral que fosse algo
que aprovámos, tornem-se uma obrigação de todos, inclusive daqueles que mais que as crenças que nos são úteis e que não exigem, no anual estado
não pensam, não sentem e não vivem como nos. de conversação, razões suplementares para serem admitidas, Gide trope
Com este último Gide, e não obstante ele próprio, entendo que não çou na própria pretensão. Quanto mais tentava naturalizar o "ho-
existe tal coisa como uma "identidade homossexual", uma "essência mossexualismo", mais reforçava o preconceito que define os indivíduos
natural do homossexualismo" ou uma "esuutura da homossexualidade", homoeroticamente inclinados como uma espécie à parte de homens ou
sc com estas expressões pensamos designar uma realidade objetiva, que subhomens. Seu exemplo, apesar de restrito ao sexual, pode ilustrar a
prcexista às descrições e crenças contingentes que temos do assunto. Não tendência que temos a fazer dos nossos valores e ideais, em qualquer esfera
penso, porém, substituir tais concepções por uma outra que diga qual a da prática social, norma natural para a condenação do diferente.
74 A inocência e o vício Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo 75

Enfim, para concluir, não pretendo justificar o que penso postulando a BIBLIOGRAFIA
ideia de uma cultura sem interditos, cuja regra fosse tudo permitir. Tal
ficção não é só inconcebível; é falaciosa. Falaciosa porque formulada GIDE, André,
justamente para exigir critérios a-históricos que definam o bem e o mal. /ourrzal (1 899-1 939). Pauis, Gallimard, 1948.
A hipótese de uma cultura permissiva, tal como podemos imagina-la -- O Imoralls/a. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
atualmente, carrega consigo a ameaça do horror. Ora, uma cultura to- -- Se o grão não morre. Rio, Nova Fronteira, 1983.
lerante não é aquela que tudo permite. Esta seria, no melhor dos casos, -- Colydorz. Paras, Gallimard, 1987.
uma cultura impossível, como disse Philips Rieff (Rieff, 1982); no pior FOUCAULT, Michel, Hfsrórla da sex a/idade// -- O uio dos prazeres. Rio, Graal.
dos casos. uma cultura do cinismo e da indiferença, sala de entrada da 1984

monstruosidade. Tolerante é a cultura que não aceita viver seus ideais; mas LARMORE, Charles, "Les limites de laréflexion en éthique", üz Z.ec/ respAf/osop&íques
aceita de bom grado rediscuti-los, em função de ganhos e vantagens -- E/dique e/ p&l/osopAfe po/fraque, direção de François Recanati, vários autores
Paria, Edition Odile Jacob, 1 988.
práticas. Ganhos e vantagens que só fazem sentido quando apreciados do
RIEFTF, Philip, "The impossible culture: Wilde as a modem prophet", irz Sa/magundi ;
prisma do vocabulário que criou a própria idéia de tolerância, ou seja, do n' 58-59, outono 1982-invemo ] 983; pp. 407426.
vocabulário da tradição democrática. SÓ com base nesse vocabulário é ROR'lY,923
Richard, "Solidarité ou objectivité", in Crliique; dezembro de 1 983, n' 439, pp.
possível falar-se de uma ética da tolerância e, portanto, a circularidade da 940. ''
justificação não é aqui ocultada, é exposta e assumida. Ser tolerante, a meu TRIPLE'IT, T., "Rorty's critique of foundationalisme", IPZ Pãí/osopAlca/ Srudlei; n' 52
ver, não é agir, pensar e falar conforme ordena a essência da tolerância, (1987), PP. 1 15-129.
ou a "essência" da idéia de tolerância ou do conceito de tolerância. E agir,
pensar e falar de modo a evitar os exemplos de intolerância que conhe-
cemos: intolerância racial, sexual, étnica, estética, religiosa, política, so-
cial etc. Assim, creio eu, aprendemos a reconhecer o que é tolerância e
intolerância, e não lançando mão de critérios ou regras de correspondência
que permitam, em qualquer tempo e lugar, aplicar corretamente tais
conceitos, independentemente do uso que se faz deles.
Ser tolerante com respeito ao homoerotismo, como de resto com
qualquer uma das chamadas minorias, não significa afirmar que toda
conduta humana é to]eráve] e pode aspirar ao direito de cidade. Esse
raciocínio é típico do terrorismo-conservador, que, explícita ou sibili-
namente, deixa entender que se dizemos sim às práticas homoeróticas, por
que dizer não, por exemplo, à violência sexual contra os mais fracos? Isso
é falso porque parte da premissa de que não temos ideais. A prática
homoerótica entre iguais que consentem em participar da experiência não
é lesiva a nenhum de nossos credos e ideais; o abuso de força, ao contrário,
anula automaticamente ou o direito à vida, ou à liberdade, ou à busca da
felicidade de quem a ele é submetido. Não é bastante? Pois bem, aceito
tliscutir algo melhor. Até lá, repito com Freud: a quem renunciou encontrar
o ponto onde as trevas se separam da luz, resta apenas tentar aclarar as
pequenas e vizinhas obscuridades.
Conjugalidade, ética sexual
e parceria homoerótica

Neste trabalho pretendo analisar o papel da ética sexual conjugal no


destino da parceria homoerótica masculina. Antes, porém, uma precisão.
Prefiro o termo homoerotismo a homossexualismo porque este último,
além da conotação preconceituosa do senso comum, está excessivamente
comprometido com a ideologia psiquiátrica que Ihe deu origem. Fora isso,
homossexualismo tem a desvantagem de ser uma noção teoricamente
frouxa e clinicamente pobre. Sem meias palavras, é uma noção que,
quando não atrapalha, também não ajuda. Homoerotismo, ao contrário,
obriga-nos a rever o modo como pensamos no fenómeno da atração pelo
mesmo sexo. Historicamente, a palavra foi empregada com sentido pró-
prio, distinto de homossexualidade, por Ferenczi, em um dos melhores
estudos sobre o tema produzidos pela literatura psicanalítica (Ferenczi,
1970). Nesse estudo, Ferenczi mostrou que o grupo das práticas homo-
eróticas ultrapassa a extensão e a significação habituais do conceito de
homossexualidade. Na tradição desse pensamento, proponho que assumi
lar homoerotismo a homossexualismo significa amarrar teorias, analistas
e analisandos à teia imaginária responsável pelo nascimento histórico do
:homossexual". Por esse motivo, cada vez que utilizar os termos ho-
mossexualismo, homossexualidade ou homossexual, estarei citando o
pensamento ou falando do ponto de vista de quem identifica algum outro
ou a si como homossexual. De minha parte, acho que homossexualismo é
uma configuração histórica particular das práticas homoeróticas, donde a
preferência pelo termo homoerotismo, descritiva e clinicamente mai s rico.
Isso dito, passemos ao tema central do trabalho. A relação entre
conjugalidade e ética sexual pode ser analisada de vários ângulos. Deixo
de lado, por razões de método, o aspecto jurídico-político do problema,
78 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 79

assim como a dimensão estrutural que subordina o laço conjugal à ética modernamente, de discutir a mutualidade ou equivalência de direitos entre
sexual da ordem do parentesco. Embora saiba o quanto essa dimensão é adultos dos dois sexos, mas que tipo de reciprocidade deveria haver entre
enfatizada pela psicanálise, meu intuito é explorar a ética sexual conjugal desiguais na ordem das gerações e iguais na ordem política. Assim, as
enquanto ideal moral social. recomendações éticas preocupavam-se sobretudo em louvar a beleza dos
Começo, então, por uma afirmação mais ou menos consensual entre os adolescentes homens; em protegê-los dos abusos sexuais dos adultos; em
historiadores das mentalidades ou das vidas privadas. Nem sempre o ideal condenar a compra de favores sexuais, contrafação da pederastia; em
moral das condutas sexuais esteve associado à conjugalidade. Na Grécia repudiar e proibir a prática da penetração anal, aviltante para o erómenos;
clássica, por exemplo, as éticas sexuais eram sobretudo referidas aos em determinar até que ponto se devia ser passivo sem rebaixar sua
chamados amores masculinos e tinham como modelo não a conjugalidade
condição de cidadão; em elogiar a renúncia ou contenção do prazer; em
mas as relações pederásticas. Com pequenas variantes, como afirma incentivar a abnegação e a fidelidade ao amado etc.
Veyne, o mesmo poderia ser dito dos costumes romanos, pelo menos Durante séculos, filósofos, literatos, poetas e moralistas levaram esses
aqueles vigentes no apogeu da República e do Império (Veyne, 1987)- ideais a sério; durante séculos, o ideal da ética sexual nada teve a ver com
Com suas numerosas prescrições e interdições, as relações pederásticas a conjugalidade ou com a parceria homem-mulher, e nem por isso deixou /f
monopolizavam o imaginário social antigo, deixando pouco espaço para de ser considerado suporte da boa vida política e da boa vida moral. O que
a tematização do vínculo conjugal. O casamento não existia entre homens, atualmente parece estranho, ridículo, segregador ou constrangedor para
pelo menos na Grécia. Em Romã, os poucos casos referidos por Boswell alguns, um dia foi privilégio dos espíritos elevados e de civilizações que
não chegam a demonstrar a relevância das uniões conjugais masculinas. acreditavam representar, no que pensavam, a última e verdadeira palavra
(Boswel1, 1 980). O laço conjugal era, portanto, um contrato entre homens da Razão humana.
e mulheres, informalmente regido pelas obrigações religiosas e pelas Esse ideal, no ocaso do Império Romano, como mostram, entre outros.
necessidades próprias à reprodução da família e ao bom governo da casa. Dover (1989), Boswel1 (1980), Brown (1990a), Veyne (1987; 1990) e
Isto é. tratava-se de um fato da vida idiossincrática do sujeito, da esfera
Foucault (1985; 1989), caiu em desuso. As crenças que o sustentavam
do privado, e não da vida pública, do pios po/írfkos que, para os gregos, foram desinvestidas política, filosófica e moralmente. Com a hegemonia
era a verdadeira esfera da liberdade. Portanto, àjustiça da pólis importava
do ascetismo pagão e cristão, o imaginário cultural deixou-se empolgar
pouco a questão da conj ugalidade, exceto no tocante à transmissão de bens. por outras convicções e prioridades. Após o advento da temática da carne
Mulheres, escravos e crianças, os habitantes da casa, não participavam da
e do sexo, os sujeitos passaram a ser concebidos como iguais diante do
vida em comum ou da esfera do público. Estavam presos ao reino da
pecado, da tentação, da graça ou da salvação, dependendo da maneira
necessidade, e a ética grega era primordialmente uma ética dirigida ao
como se entregavam ou refreavam a volúpia e a concupiscência (Brown,
homem livre.
1990a; 1990b; Foucau]t, 1987). A ética sexual masculina do uso dos
Em contrapartida, a relação entre homens e adolescentes livres era prazeres e do cuidado de si deu lugar à ética daiirgindadé e da castidade,
objeto de um verdadeiro bombardeia de discursos éticos. Estes eram da proteção à família, às esposas, às viúvas e às crianças (Boswel1, 1980;
cidadãos ou futuros cidadãos e, por isso, suas relações deveriam tender,
Foucau[t, 1 984; ] 985; 1989). Expurgadas dos conteúdos pederásticos, as
tanto quanto possível, para a harmonia, para a boa medida. Ou sda, deviam
regras da erótica masculina foram reelaboradas e enxertadas na conju-
ser purificados de todo excesso ou iniquidade. Assim, a ética sexual grega galidade heteroerótica. Desde então, temas como a fidelidade e o adultério.
era uma ética masculina, que discriminava mulheres, crianças, escravos e
que nunca intervieram na relação dos senhores com suas esposas, hetairas
estrangeiros, voltando-se exclusivamente para os cidadãos livres e iguais e favoritos, começaram pouco a pouco a definir o novo padrão da morali-
diante da cidade. A conjugalidade só entrava em cena para ilustrar o direito
dade sexual e conjugal. Inicialmente, tal mudança ocorreu em sintonia com
do senhor sobre os sujeitos privados de cidadania. O casal sexual, por a rura]ização da vida feudal e o centralismo político e doutrinário da Igreja
excelência, era formado pelo erasfes e pelo erõmenos, e não pelo homem Católica(Boswel1, 1 980), e depois com o lento aburguesamento do núcleo
e pela mulher, na relação de casamento. Além disso, não se tratava, como
familiar europeu (Costa, 1979; Donzelot, 1977; Foucault, 1976; Lasch,
80 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 81

1979a; 1979b; 1979c; 1979). Finalmente, ao término do século XVlll e conjugais. E, daí por diante, a ética sexua] conjuga] pesa sobre a moral de
começo do século XIX, a ética sexual chegava à completa simbiose seus trânsfugas, como os mandamentos sobre a alma dos crentes. em
imaginária com a conjugalidade. Esta, penso eu, é uma das mais plausíveis
especial dos pecadores. Aqui começa propriamente o assunto de que vou
interpretações da gênese de nossa moral sexual civilizada, onde o laço ocupar-me e que, sem esta introdução, perderia grande parte de seu
conjugal ocupa a função de modelo e norma frente às demais práticas sentido.
sexuais.
Tendo assistido dezessete homens adultos que procuraram análise
Acontece que esse ideal moral, não obstante atender razoavelmente queixando-se de "homossexualismo", "medo de homossexualismo" ou
bem à maioria de todos nós, deixa órfãos de aprovação muitos outros
suspeita de homossexualismo"; tendo assistido, além do mais, outros que,
pleitos eróticos. Entre eles, todos os catalogados por Kraft-Ebing, na sua sem esta queixa explícita, revelaram no curso da análise terem tido
Psyc/dopar/zfa sexualis. Kraft-Ebing, se não foi o pai fundador, foi se
experiências homoeróticas ou algum tipo de atração homoerótica rele-
guramente o sumo sacerdote do decálogo sexual moderno. Sua influência
vante; tendo enfim consultado 25 entrevistas feitas com homossexuais. de
e seu prestígio sequer foram abalados por Kinsey e por toda a força da
um total de 1 00 até agora realizadas por colegas antropólogos, atualmente
mídia norte-americana. No entanto, quando analisamos seu trabalho em
ocupados com a questão do impacto psicossocial da AIDS, pois bem, a
retrospectiva, vemos que apesar de volumoso ele é espantosamente sim-
partir dessas fontes, pude notar uma curiosa convergência no que concerne
ples. Kraft-Ebing herdou de seus contemporâneos as noções de pzorma e
desvio /zal país, originadas do instintivismo, do evolucionismo, do psico- à importância do ideal sexual conjugal na trama sintomática apresentada
por tais sujeitos. Estas observações, é óbvio, são passíveis de reinter-
fisicalismo e das demais correntes do positivismo naturalista do século
pretação, bem como as conclusões parciais a que cheguei até o momento.
XIX. Em seguida, classificou e arquivou todas as aberrações, degenera- Mesmo assim, acredito que podem ajudar-nos a entender alguma coisa a
ções, anormalidades e anomalias sexuais que pululavam anarquicamente mais sobre a chamada homossexualidade.
naquelas teorias, em torno de um duplo eixo semântico, a /i/z/za do prazer
e a /ín/za da reprodüçâo. Como resultado, organizou de um lado a fileira
Em primeiro lugar, pude notar o que de certa forma já antecipei. Em
todos os casos de auto-rotulação de "homossexualidade", dois fatores
dos blen porranrs, dos normais, que se excitavam com pessoas do sexo
oposto e punham a excitação a serviço da reprodução; de outro, os promoviam a inclusão dos sujeitos na família natural ou classe lógica dos
homossexuais, segundo a definição da família e classe dada por Thomas
perversos, que só se excitavam com partes dos corpos das pessoas e que
Kuhn ( 1 989). Primeiro, a presença do sintoma da ãtração homoerótica ou
não tinham compromissos com a reprodução; e, por fim, entre os dois, no
no man 's /and sexual, acomodou os invertidos que, apesar de se excitarem da dúvida quanto ao homoerotismo da atração sentida; segundo, a con-
versão automática e imediata dessa atração, em crença na identidade:
com pessoas, só sentiam atração pelo mesmo sexo e, portanto, também estrutura ou essência homossexual da própria sexualidade. Nos dois casos,
traíam a finalidade reprodutiva da natureza e do instinto de conservação o parâmetro para o julgamento emitido era a noção de desvio da forma
da espécie. O homossexual, o invertido, ocupou assim todas as posições 'natural" da sexualidade, que era o heterossexualismo. A ética sexual
bordei-/Ine do sistema. Quando não pecava por excesso ou distorção do
conjugal, aqui, funcionava como norma implícita para a avaliação do
prazer, pecava por crime de lesa-natureza ou lesa-humanidade (Kraft- desvio. Embora sem estar manifestamente tematizada, como nos dois
Ebing, 1969). próximos itens, era responsável pela divisão dos homens em homossexuais
Com esse esquema simples, Kraft-Ebing traduziu tudo o que a men-
e heterossexuais, mito que ganhou foros de realidade psíquica para os
talidade ocidental, leira ou científica, quis saber sobre o sexo. Com essa sqeitos.
simples invenção, convenceu a maioria de todos nós de que o homos- Contudo, a aparente redundância ou identificação imaginária da atra-
scxualismo existe, e que sua teoria era um espelho da realidade ou uma ção homoerótica com a homossexualidade é aquilo mesmo que precisa ser
descoberta intuitiva e objetiva da verdadeira natureza da sexualidade. A
analisado, e não tomado como um dado. A suposta identidade nem é um
partir de Kraft-Ebing, a nova cidade sexual estava pronta, com seus
fenómeno natural, nem uma realidade objetiva, independente dos jogos dc
cidadãos de primeira classe, os cônjuges, e com seus párias, os deficientes
linguagem e das formas de vida em que é pensada. Pelo que pude inter-
82 A inocência e Q vício Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 83

pregar, o sintoma da atração homoerótica ocupava funções totalmente carinho ou ternura pelas esposas, mas apenas atração física. Outros, ainda,
diversas na economia psíquica dos sujeitos. A crença em que toda tendên- envolviam-se afetivo-sexualmente com mulheres, mas, mesmo durante o
cia some-se.l criem/ed é atributo de uma mesma identidade homossexual envolvimento, continuavam sentindo-se atraídos por partes do corpo mas-
era apenas o recurso de que eles dispunham para assegurar narcisicamente culino. Finalmente, no que diz respeito à inibição sexual, traduzida por
a posse de uma identidade social, no universo da heterossexuajidade impotência ou ejaculação precoce no coito heterossexual, a variação não
conjugal. Se observarmos com cuidado, veremos que o sujeito com incli- era menor. Quase todos tinham dúvidas quanto à capacidade de manter
nações homoeróticas não dispõe de modelos identificatórios que possam relações heteroeróticas, mas quase todos conseguiam concretiza-las; al-
compatibilizar essas inclinações com o ideal da ética sexual conjugal. A guns, sem nenhuma dificuldade.
presença do desço pelo mesmo sexo retira-lhe a possibilidade de identi- Naturalmente, pode-se dizer que a amostra de que me sirvo não é
ficar-se como um homem, e só esse homem, diante dos ideais, atende às
exaustiva nem representativa de todo "homossexualismo". Por exemplo,
exigências prévias da sexualidade conjugal. Resta-lhe, então, identificas- daqueles homossexuais exclusivos que nunca procuram nem jamais pro-
se como o que sobra. E o que sobra é a figura do homem manqllé, do curarão análise, posto que se sentem muito bem adaptados à própria
homossexual. com um "a-menos" da virilidade fálica imposta pelo ideal
homossexualidade. Relembrada, em primeiro lugar, que não estou me
moral, com o qual, de resto, a maioria dos homens assim rotulados sonha referindo apenas às pessoas que me consultaram, pedindo análise. Todas
e aspira. as entrevistas antropológicas que usei como fonte foram feitas com indiví-
Mas a identificação sócio-sexual é produto do imaginário histórico. duos que nunca pensaram em analisar-se e que são, segundo a visão
Nem a fenomenologia da atração homoerótica, nem a singularidade dos corrente, homossexuais exclusivos. Em segundo lugar, acho que tal crítica
complexos fantasmáticos levaram-me a acreditar na existência de uma é informada pela crença que pretendo combater, qual sqa, a de que existe
estrutura psíquica comum a todos esses sujeitos, fato já notado por Stoller,
um "homossexual típico". Mas pergunto: o que entendemos por homos-
em seus trabalhos psicanalíticos sobre o assunto (Stoller, 1979; 1 987) Do
sexual típico? "Homossexual típico", para falar livremente do que pode
ponto de vista da intensidade da atração, o homoerotismo variava desde ser falado, é o homossexual personificado nos romances de Genet ou nas
um forte apelo por relações físicas até um mitigado desejo de com- biografias de Pasolini e Fassbinder? Ou os "homossexuais típicos" são os
panheirismo erotizado, batizado de amizade. Entre os dois pólos, as atormentados personagens de Gide, Christopher lsherwood, Forster, Ju-
fronteiras contraíam-se e dilatavam-se, em função das mais diversas lien Green, Gore Vidal, Dominique Fernandez ou David Leavitt? Ou.
posições subjetivas. Frustrações ou gratificações amorosas, fracassos ou ainda, os "homossexuais típicos" são os desinibidos heróis de alguns livros
sucessos profissionais, períodos de maior ou menor depressão etc., tudo de Peyrefitte e James Baldwin, ou de Stephen Spender, Marcos Rádice,
fazia pender a balança do desço homoerótico para um ou outro lado. Do Alexander Ziegler etc. sem contar com toda a literatura sobre o tema.
mesmo modo, o fantasma ou fantasmas que davam acesso ao objeto e ao
surgida depois da AIDS? Ou, por último, o "homossexual típico'' é o
gozo imaginário também eram extremamente diversificados. Alguns con- homem portador de trejeitos e maneiras efeminadas? Se é um desses. os
tentavam-se em alimentar a dúvida sobre sua homossexualidade, fan-
outros, o que são? Se são todos esses, o que têm em comum para serem
tasiando encontros românticos com amigos ou relações esporádicas com catalogados numa mesma rubrica?
parceiros anónimos, mas sem jamais passarem ao ato. Muitos sequer (.AJnçilyç!..Q.=homossexual típico", como toda figura de exclusão, é
concebiam a idéia de uma relação sexual com um indivíduo que "de fato um puro estereótipo do preconceito/O "homossexual típico" é uma reali-
fosse homossexual". Isto é, só se imaginavam tendo relações sexuais
dade tão palpável quanto o português da anedota, o 'ljudeu típico", o
impossíveis, dado que o parceiro fantasiada, por ser heterossexual, estava 'negro típico" ou, de maneira mais inocente, o "paulista típico", para o
automaticamente posto fora da hipotética parceria.
carioca, e o "carioca típico", para o paulista. O que existe dç típico no
No que tange à atração por mulheres, a variação era igual mente enorme. homossexual é a Crença de que todo sintoma ou signo do desejo homo-
Uns tinham histórias de apaixonamento e satisfação sexual plena nesse erótico é sinal de ::homossexualismo". Mas é precisamente a mecânica
tipo de relação; outros eram casados, com filhos, sem nunca terem sentido dessa tradução automática de homoerotismo em homossexualismo quc
84 A inocência e o vício
Conjuga[idade, ética sexual e parceria homoerótica 85

está sendo posta em questãol Em minha opinião, todos esses sujeitos são
levados a identificar-se como homossexuais da mesma maneira que a marcha pelos sujeitos diante das injunções morais desqualificantes pro
duzidas pelo preconceito.
monja, a braços com a tentação carnal, tornava-se possuída, e a megera Considerando, entretanto, os limites deste trabalho, vou deter-me na
linguaruda, rabujenta e abusada do vilarejo medieval tornava-se feiticeira. acepção psicanalítica da homossexualidade como perversão, pois consi-
Antes da invenção do homossexual, Vautrin, na Comédia Humana de dero que esta é a visão predominante na produção intelectual sobre o
Balzac, nunca fez de seus desejos homoeróticos prova da deficiência de
assunto, não obstante a opinião contrária de uns poucos autores, inclusive
sua masculinidade ou incompetência conjugal. Pelo contrário, usava o do mais importante deles, Jacques Lacan. Essa concepção, acredito, é
homoerotismo, na boa tradição do romantismo rebelde, como forma de produto de uma dupla crença, sujeita a discussão. Em primeiro lugar,
desmascarar a hipocrisia burguesa, inc]usive a hipocrisia conjugal. Toma- reinsisto, é produto da crença na realidade objetiva de "um homossexua-
va seu modo de amar como mais verdadeiro e mais autêntico que as lismo", propriedade comum de todos os "homossexuais"; em segundo
relações de interesse, comandadas pelo dinheiro e vontade de ascensão lugar, da crença em que o traço comum a toda "estrutura homossexual'' é
social, regra corrente na burguesia e aristocracia parisienses (Ba]zac, ] 949; o traço da perversão.
1952; 1978). De modo similar, Bom-Crioulo, personagem de Adolfo Ca C)ra, ao que entendo, a idéia da estrutura homossexual como uma
minha, nunca entendeu sua paixão sensual e tresloucada pelo grumete modalidade da estrutura perversa é uma idéia filha de Kraft-Ebing e de
como índice negativo de sua virilidade. Cedia a seu desejo como cedia à alguns momentos infelizes de Freud que, em certos estudos, deixou-se
fome, sem fazer de sua preferência sexual algo contra sua identidade contagiar pelo vírus do preconceito psiquiátrico do século XIX. l)igo bem,
masculina (Caminha, 1983). do século XIX, porque tal afirmação sequer seriajusta se considerássemos
E verdade, pode-se fetrucar que esse dédalo imaginário nada acrescenta as classificações psiquiátricas recentes. Diante destas, a perversão homos-
à psicanálise. Superestimar sintomas é apenas levar Freud de volta à sexual da psicanálise faz a triste e pífia figura de guardiã da be//e l@oqzle.
taxonomia psicológica e culturalista, com que ele rompeu. O importante, A noção de homossexualidade como perversão parece-me indefensável
dir-se-á, é a estrutura ou a economia psíquica comum a todos os homos- pelo simples fato de não dispormos ainda, em psicanálise, de uma teoria
sexuais. Porém, até prova suficiente em contrário, sugiro que não existe sobre o fenómeno perverso que seja ao mesmo tempo coerente nos pró-
tal coisa como o /zomossexua/ e, consequentemente, buscar a ordem do prios termos, e razoavelmente aplicável aos casos diagnosticados como
desejo comum a todas as instâncias teóricas ou empíricas desse conceito casos de homossexualismo. Dado que este não é o meu principal problema,
é uma falácia. Do mesmo modo, sustento que, mesmo a versão mitigada vou apenas aludir rapidamente a esse ponto.
da afirmação, qual sqa, a de que homossexualismo é sempre expressão de Em minha opinião, todos os elementos aos quais habitualmente re-
alguma neurose -- no sentido da clínica psiquiáü'ica -- ou de alguma corremos para descrever o que é uma perversão ou são teoricamente
perversão -- no sentido da clínica psicanalítica --, e não traço de uma inconsistentes ou não são exclusivos dessa estrutura, se é que ela existe.
estrutura particular, mesmo esta versão parece-me inaceitável. Do meu Em psicanálise, a perversão foi sucessiva ou simultaneamente definida
ponto de vista, o que há de comum no funcionamento psíquico dos como o efeito da autonomia das pulsões parciais frente ao primado genital,
homossexuais não é alguma coisa correlata a uma mesma economia do sqa por regressão, seja por fixação; ou como falha identificatória na
desço ou a uma mesma posição subjetiva diante de um mesmo fantasma travessia do Edipo onde, no caso homossexual, havia identificação com a
ou cenário fantasmático. O que une os "homossexuais" num mesmo mulher, de diversas formas; ou como manifestação da posição subjetiva
conjunto perceptivo-interpretativo ou numa mesma jamí/ía rzaruraJ, na de desafio e transgressão à lei da castração; ou como um correlato da
divisão do ego ou do sujeito, face à recusa dessa castração; ou como recusa
acepção de l(uhn, são as regras de identificação sexual geradas pelo
da diferença dos sexos também subproduto do mesmo fenómeno; ou,
imaginário social da exclusão. Assim, aquilo que é chamado por alguns
finalmente, como recusa em aceitar a diferença dos sexos, como causa do
autores de traços de personalidade ou de estrutura psíquica da homos-
desejo. Convenhamos, a esmagadora maioria dos escritos psicanalíticos
sexualidade, chamo de resposta psi'qzzíca ou esfra/égua dé:$e/zslva posta em
gira em torno de tais noções quando abordam a questão da perversão fo /
86 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 87

court ou a questão da perversão homossexual. Ocorre que nenhum desses Minha hipótese para o fato é a seguinte: se não nos preocupamos em
elementos é específico das perversões que conhecemos. Podemos encon- teorizar a estrutura c]ínica da heterossexualidade é porque, de um lado, ao
tra-los em outras estruturas clínicas, como neuroses obsessivas, neuroses
contrário de Freud, (por exemplo, em "0 ego e o id", ou na "Psicologia
histéricas, psicoses etc. SÓ recentemente, trabalhos como os de Barande das massas e análise do eu"), tomamos como natural e normal que a
( 1 972), Stoller (1979;1987), alguns textos de Perder (1 967) e a seqüência
maioria dos sujeitos seja heterossexual; de outro lado porque, cons-
de estudos de Calligaris (1986; 1988; 1991) vêm conseguindo, ao que cientemente ou não, sabemos que essa noção é imprestável do ponto de
conheço, propor uma teoria das perversões em que a estrutura descrita é vista clínico. Imprestável, antes de mais nada, porque a heterossexualidade
irredutível a outras estruturas, e a própria teoria, irredutível ao moralismo e egossintõnica, com respeito ao imaginário. Ou seja, ninguém procura
estigmatizante das teorias anteriores. análise queixando-se de "heterossexualismo". Conseqüentemente, porque
Assim sendo, pergunto, onde encontrar a pretensa unidade e ho- não nos perguntamos como alguém é ou torna-se heterossexual. en
mogeneidade da "estrutura homossexual"? Barande, por exemplo, nega cerramos o assunto e damos a questão por resolvida. Imprestável depois,
inclusive a idéia de que exista uma estrutura perversa, definindo perversão e isto é o mais importante, porque sabemos que existem tantas maneiras
como aquilo que foge à estrutura (Barande, 1 972). No caso de Calligaris, de ser-se heterossexual quantas permite a fantasia de cada um. Não
a noção de estrutura realça sobretudo a idéia da perversão no laço social, pensamos em reduzir a heterossexualidade a uma única estrutura, porque
na montagem imaginária que liga dois ou mais sujeitos, e não na esfrufura
vemos que o possível traço comum entre a paixão de Tereza D'Ávida por
dos sujeitos presos à montagem, como se costuma, às vezes, conceber "o Deus, as orgias de Sade e o amor de Tristão por lsolda não tem nenhuma
perverso", de forma inclusive pré-freudiana e, mais ainda, pré-lacaniana. pertinência clínica.
Quanto a Perder e Stoller, não só criticam as teorias correntes sobre
Não há como negar, quando se trata de heterossexualismo; passamos
perversão como, pelos critérios de seus pontos de vista, excluem, do de imediato a falar de fobia, obsessão, histeria, perversão, psicose etc. Por
mesmo modo que Calligaris, a possibilidade de se associar indiscrimi- que, então, diante do homossexualismo, voltamos com toda carga à clas-
nadamente homossexualismo à perversão. Onde, então, repito a pergunta,
sificação médico-sexológica do século XIX? A resposta pronta, no caso,
alicerçar a idéia da estrutura perversa homossexual? Minha impressão é a
é que o heterossexual reconhece a diferença de sexos como causa de desejo
de que a "estrutura homossexual" não se funda em nenhuma hipótese
e o homossexual não. É um rebelde empedernido diante da lei castração,
psicanalítica consistente. Inspira-se, isto sim, na percepção social ordi- logo tem que tcr uma estrutura psíquica à parte. Creio, no entanto, que esse
nária de que os homens são natural e estruturalmente repartidos em
pízsse-parrour conceptual, por mais cómodo que seja, abre menos portas
homossexuais e heterossexuais.
do que se imagina. Passo à segunda observação, onde posso demorar-me
Para ilustrar o que penso, vou usar o artifício do contra-exemplo. Por mais neste problema.
que, pergunto, não perdemos tempo e fosfato tentando isolar e caracterizar
a estrutura heterossexual? Perguntar o que é uma mulher, qual o sentido
A segunda observação sobre a influência da ética sexual conjugal na
parceria homoerótica diz respeito à idealização da mulher. Com a hege-
feminino, ou o que é o masculino, não é a mesma coisa. Tais questões
monia da conjugalidade, a mulher no Ocidente veio a ocupar o lugar do
podem ser feitas igualmente aos sujeitos homossexuais. Pergunto outra
adolescente na cultura pederástica. E ao brilho erótico da mulher jovem
coisa; pergunto por que não nos inquietamos com a presença da heteros- veio somar-se a aura da mulher mãe e esposa. Tal combinação, aliada a
sexualidade entre os homens e mulheres. Não respondam, por favor, que numerosas outras variáveis, redundou no enorme valor da mulher como
isso é óbvio, intuitivo e, em consequência, dispensa explicações: Número
objeto de desejo no imaginário instituído, e repercute de maneira intensa
um, nada para a psicanálise é óbvio; número dois, a teoria de Freud
na vida afetiva dos sujeitos às voltas com a atração homoerótica. Com uma
alcançou o sucesso que tem justamente por ter deposto a rainha intuição só exceção, todos os indivíduos analisados e a imensa maioria dos entre-
de seu papel de motor da assimilação do psíquico ao consciente; número
vistados lamentavam não sentir exclusivamente atração por mulheres. Os
três, diante do desejo e do sujeito, heterossexualidade é tão sintomático
motivos alegados incluíam, evidentemente, o peso do preconceito, o que,
quanto homossexualidade. por si, já é indicativo da introjeção dos padrões de preferência sexual da
88 A inocência e o vício
Conjuga[idade, ética sexual e parceria homoerótica 89

maioria. Além disso, um outro fator pesava na escolha homoerótica. As


antes de discutir essa questão genérica, que afirma a validade de uma
mulheres eram vistas como um grupo uniforme de parceiras possíveis,
premissa que acho discutível, a da estrutura perversa da homossexua-
enquanto os homens eram vistos, basicamente, como divididos em dois
lidade, proponho um percurso mais simples na abordagem do tema.
grupos, o dos efeminados e o dos homens másculos. Essa divisão restringia Pergunto: o que se entende por reconhecimento da diferença sexual como
as opções da maioria dos indivíduos, que não suportavam a idéia de se causa do desejo? Tomo esse enunciado porque nele, de hábito, estancam
relacionar com homens efeminados, levando-os, de modo mais ou menos
inconsciente, a proceder a uma espécie de rebaixamento libidinal, no as interrogações dos analistas quando pensam no homoerotismo. Indago
então: recusar a diferença de sexos significa desconhecer a diferença entre
sentido freudiano, de inúmeros parceiros virtuais. Nesse caso, novamente,
homem e mulher? É claro que não. Afirma-lo seria dar marcha à ré na
independentemente do preconceito social contra o homoerotismo em si,
as mulheres eram percebidas como não oferecendo esse tipo de obstáculo
psicanálise, até a psiquiatria pré-freudiana. SÓ os positivistas psicofisi-
calistas do século XIX acreditavam que os homossexuais sofriam de uma
à realização amorosa. O segundo fator dizia respeito ao investimento em
homens heteroticamente orientados. Aqui, a idealização se dava no nível espécie de agnosia ou daltonismo sexual, trocando neurofisiologicamente
as respostas corretas por respostas erradas aos estímulos. Isto é. o homos-
do desde feminino pelo homem. Não queremos dizer com isso que os sexual excitava-se "erradamente": percebia homens e mulheres correta-
homens que desejavam outros homens "heterossexuais" tivessem como
mente, mas atraía-se por quem não devia, dado o descontrole das funções
suporte de desejo fantasias de passividade, como em geral se supõe. Pelo corticais anteriores ou posteriores.
contrário, a maioria dos que preferiam parceiros viris e heteroeroticamente Para a psicanálise, a diferença sexual concerne à dialética fálica. e não
inclinados era desprovida de tais fantasias. A idealização a que me refiro
à identificação de gênero, que a criançajá é capaz de operar mesmo antes
é a do objeto sexual que, por princípio, corresponde ao desejo da mulher.
do Edipo. Então, abreviando a significação desta proposição, diria que
Ou sda, ao contrário da cultura grega, por exemplo, onde o adolescente recusar a diferença de sexos é desconhecer que todos são castrados. excito
homem, desdado pelos adultos homens, fornecia o padrão de beleza e de
o pai primordial. Em conseqüência, aceitar a castração é aceitar que, no
atração erótica, entre nós, o objeto do deseljo dos sujeitos com tendências
sujeito como no Outro ou nos outros, o desejo é a marca da falta e. como
homoeróticas é aquele que a mulher deseja. Por fim, o rebaixamento do
Lacan habituou-nos a pensar, aceitar que desejar é desejar o desejo do
parceiro devia-se ao fato de que, com homens, muitos indivíduos sabiam nutro
que estariam provavelmente privados da possibilidade de serem pais. O Então, pergunto, o que nos permite dizer que todos os sujeitos homo-
desejo de ter filhos e a constatação de que não só a impossibilidade
eroticamente inclinados são incapazes de reconhecer o desejo do Outro
biológica como a impossibilidade social da ação derivavam da parceria
como falta e, por extensão, incapazes de admitir a própria castração e a do
masculina faziam do parceiro fonte de frustração, muitas vezes mcom-
parceiro? Por que se sentem atraídos por uma pessoa do mesmo sexo
patível com a perspectiva de uma vida amorosa satisfatória.
biológico ou com uma mesma identidade sócio-sexual? Ou por que ser
A interpretação standard seguramente veria nessa idealização da mu- levado a esse tipo de escolha erótica significa escolher conforme o fan-
lher e na fantasia do parceiro homoerótico impossível o selo do desafio à
tasma da mãe fálica, traduzido na idealização da mulher? Se é assim, se
lei e a recusa da castração, características da estrutura perversa. Na
nos contentarmos com esta explicação, então teremos que resolver, de um
idealização, diz-se, estaria a mãe fálica que, desde o Leonardo freudiano,
lado, o truísmo lógico que ela comporta e, de outro, questões substantivas
sabemos estar no coração da recusa da diferença dos sexos como causa do
deixadas em aberto e que invalidam a generalidade da afirmação. No caso
desejo. Para preservar a mãe da falta, coloca-se a mulher no pedestal e do truísmo lógico, dá-se como fundamento da explicação o que deveria
vai-se em busca de outros homens, duplos narcísicos ou representantes do
pai que falhou na imposição da lei à mãe. ser explicado, e faz-se da circularidade explicativa prova do que se
pretendia demonstrar. Explico melhor. Sabe-se que o fantasma da mãe
Não nego que este seja o ponto de alguns casos; duvido que seja o ponto
fálica existe, pela análise de homossexuais; e sabe-se que a estrutura da
de todos os casos. É possível que, em certos sujeitos, o sintoma da atração
homossexualidade existe, pelo fantasma da mãe fálica Ora, o raciocínio
homoerótica responda ao comando da estruturação do desejo. No entanto, é recorrente. Num dado momento, a mãe fálica é sintoma da "homos-
90 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 91

sexualidade". em outro é o fulcro estrutural do sintoma "homossexua- outra? Por que, nesse caso, faríamos o que de hábito recusamos fazer em
lismo". Para que a mãe fálica possa ser aceita como elemento central da psicanálise, ou seja, tomar categorias de divisão social como descritivas
estrutura homossexual é preciso que se possa mostrar a independência da
de estruturas clínicas? Ao que me conste, o analista, cada vez que se
estrutura face ao sintoma ou da causa face ao efeito. Sem querer forçar
defronta com tipos ou papéis sociais, costuma reduzi-los à terminologia
analogias, quando se diz que a força gravitacional é o que explica a própria à psicanálise justamente por considerar que tais tipos ou papéis
existência da queda livre dos corpos, é porque essa força pode ser testada, informam pouco, à teoria, sobre o que quer que tenha interesse clínico. No
independentemente deste fenómeno, em outros casos, como no movi- caso da homossexualidade, curiosamente, nãos Nenhuma distância entre
mento pendular. Do contrário, caímos na situação do médico de Moliêre a estrutura inconsciente e o preconceito histórico-sexual corrente. Por que
que explicava que o ópio fazia dormir em virtude de sua "propriedade volto à pergunta, dividir os homens segundo a atração pelo sexo biológico
dormitava". Portanto, ou a mãe-fálica é a "virtude homossexualista" do diz mais sobre a estrutura do desço do que dividi-los socialmente de
homossexualismo ou aparece em outros casos que não o homossexua- qualquer outra maneira? É porque esta divisão, mais que outras, revela a
lismo. E se aparece em outros que não o homossexualismo, e se esses casos dinâmica da castração e da rivalidade fálica? Porém, inúmeras outras
não são casos de perversão, onde então a justificativa para a "perversão dicotomias imaginárias foram e são capazes de enganar os sqeitos na
estrutural" do homossexualismo?
rivalidade pelo falo. Durante muitíssimo tempo, foi mais importante
Passemos às questões substantivas, e a resposta fica mais fácil. O separar os sujeitos entre cristãos e hereges, bárbaros e civilizados, castos
fantasma da mãe fálica, cujo corolário é a idealização da mulher, não é e devassos, católicos ou reformados do que entre homossexuais e he-
privilégio nem da perversão, nem tampouco dos homossexuais. Essa terossexuais. Por isso, muitos mataram e morreram. foram felizes ou
fantasia repete-se em numerosas outras estruturas clínicas, que nada têm infelizes, cruéis ou piedosos etc. Por que apenas o século XIX, com a
a ver com a recusa da castração. A começar pelo próprio Leonardo da Venci
moralização burguesa dos costumes e a redução conservadora das liber-
que, segundo Freud, era um obsessivo. Além do que, como entender, a dades individuais a assunto de bozídoír teria acertado na mosca psi-
partir dessa idéia estereotipada, o desço de paternidade e o empenho dos canalítica?
"homossexuais" aos quais me referi em entrar na legalidade imaginária do Hoje em dia, para a maioria dos sujeitos, ser ou não ser homossexual
social pela via do desejo do desejo do Outro? Ou como explicar o caso dos
é uma questão mais aflitiva ou mais vital do que a de ser ou não ser herege
sujeitos que, apesar das tendências homoeróticas, também sentem atração ser ou não ser religioso, ser ou não ser revolucionário, ser ou não ser
por mulheres e são capazes de, com elas, manter relações estáveis e conupto, ser ou não ser oportunista e mesquinho, ser ou não ser generoso
satisfatórias? Todos estes seriam "heterossexuais latentes", "falsos ho-
mossexuais" ou "homossexuais latentes", absurdo teórico tão bem denun- e tolerante para com o outro etc. Porém, isso significa que a preocupação
com o homossexualismo é menos recalcada e mais próxima da sexualidade
ciado por Otto Rank, já em 1923? (Rank, 1923.) Vamos adiante; e se não ou do inconsciente freudianos? Ou será que, enquanto analistas, temos um
se trata de nenhum destes casos, então a "esüutura homossexual" é uma discurso externo, para o grapzd morzde intelectual, onde bochechamos
metaestrutura que subsume uma "estrutura x", onde a mãe fálica não contingência do desejo, falta no sqeito e no Outro, lógica e estrutura da
impede o desejo de paternidade nem a atração por mulheres, e uma linguagem, e outro discurso secreto, pronunciado em voz baixa, onde
estrutura y", onde os mesmos desdos são inibidos? Convenhamos, se- despedimos o blá-blá-blá e confessamos que o que importa mesmo é como
melhante procedimento teria mais a ver com a psiquiatria das espécies do os umbigos se encontram e o que está abaixo deles?
que com a psicanálise. Não sei bem o que ganhamos com tal preciosismo Evito mal-entendidos. Não pretendo desvincular a sexualidade nem do
classificatório, a não ser reafirmar nossa lealdade a Kraft-Ebing e às corpo -- o que seria absurdo --, nem do desço inconsciente, nem das
ideologias sexuais do século XIX. conseqüências psíquicas das diferenças anatómicas entre os sexos. Psica-
Vou além: mesmo aceitando a eficácia imaginária da divisão dos nálise ocupa-se com o sexo dos homens e não com o sexo dos anjos. Mas,
homens entre homossexuais e heterossexuais, por que essa polaridade
precisamente porque vejo assim, gostaria de recordar o que Freud revelou
social estaria mais próxima da verdade do inconsciente que qualquer e o que a Liga de Decência norte-americana impediu que o público ouvisse,
92 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 93

quando censurou o diálogo de Sparracus, filme de Kubrik, em que Lau- Inferência similar pode ser feita a partir dos casos individuais de
rence Olivier dizia a Tony Curtas: "Uns gostam de ostras; outros de
homoerotismo entre nós. Deste aspecto ouso mesmo avançar uma hipó-
escargof. Eu gosto dos dois". Gostar dos dois, ou só de escargof, pode tese, ainda em germe, mas que suponho frutífera: há provavelmente mais
parecer mau-gosto, para quem gosta de ostra. Mas seria o bastante para risco de perversão na montagem social que opõe heterossexuais a homos-
falar de perversão do apetite? sexuais do que nas chamadas relações homossexuais. Sobretudo naquelas
Retomo a via de interrogações sobre nosso narcisismo etnocêntrico. Se formas extremas de preconceito, onde o heterossexual posiciona-se como
o homoerotismo é uma perversão, se em qualquer prática homoerótica sabendo qua[ a ]ega]idade da natureza e fazendo do homossexual insüu-
esconde-se a estrutura perversa da homossexualidade, eram os gregos mento de seu suposto acesso ao saber paterno. Nessa posição subjetiva, a
perversos ou pederastas? Pensemos bem, seria cómico ou irónico, depois obediência à lei da cultura ou à lei natural não é equivalente à obediência
de torcer e retorcer a mãe fálica e o desafio e transgressão à lei da castração, à lei da castração; é equivalente ao gozo imaginário de quem se acha
concluir pela existência da "perversão grega"! No. entanto, conforme a possuidor da verdadeira lei do desejo, e que não hesita, se julgar ne-
teoria da estrutura homossexual, a cultura que cria Edipo, Lato, Jocasta e cessário, em destruir fisicamente todo aquele que ousa desafiar o bem
o discurso de Diotima só poderia ser perversa. fundado desse saber. Foi assim com o homossexualismo sob o nazismo e
Na verdade, o que ocorre é outra coisa. O homoerotismo das relações o stalinismo; foi assim com os grupos de extermínio que, no Rio de Janeiro.
pederásticas, malgrado contrariar nossos hábitos mentais, era severamente metralharam, degolaram e incendiaram travestis com gasolina, para depois
submetido à lei da castração, como aliás inúmeros casos de homoerotismo Jogar os corpos em montes de lixo. E, se na aparência o estilo de vida de
ritual em sociedades etnográficas, o que não é o caso do grego. Nem por certos homossexuais ou grupos de homossexuais mostra-sc extravagante
incentivar, cultivar e idealizar a relação sexual entre homens, a cultura aos nossos olhos, isso não se deve a nenhuma perversão intrínseca à
pederástica era uma cultura de especularidade narcísica e da fixação na estrutura homossexua], mas ao modo de vida de minorias sexualmente
mãe fálica. Na Grécia, os discursos sobre a sedução fálica, o desejo do discriminadas. Este é o assunto de minha terceira observação.
Outro, a lei, o Outro e o objeto perdido do desejo eram tão presentes e tão Um dos fatos que mais me chamaram atenção na parceria homoerótica
obsessivamente discutidos quanto em nossa cultura da ética sexual con- foi a ausência de um vocabulário que permitisse a expressão de sen-
jugal. O eróme/zos só é "falo da mãe" e o erasles só é "mãe fálica" para timentos positivos entre os parceiros. Em nossa cultura, toda linguagem
quem vê a Antiguidade imerso no imaginário da sexualidade conjugal amorosa, que é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi ima-
moderna. A relação pederástica de maneira alguma possuía as cp'ante: ginariamente rebatida sobre o casal heteroerótico. Da primeira "paquera
rústicas de um laço perverso. Pelo menos se aceitamos, como é o meu caso, até o altar e depois ao berçário, tudo que podemos dizer sobre o amor está
a noção de perversão enquanto montagem ou estrutura, proposta por imediatamente associado às imagens do homem e da mulher. Estamos
Contardo Calligaris, ou mesmo a idéia menos feliz, mas não menos longe do século Xll, onde monges, bispos, fidalgos letrados e trovadores
importante de Stojler, da perversão como desejo de fazer mal ao objeto usavam indistintamente a mesma gramática para cantar o amor a Deus. o
sexual. Uma coisa é dizer, conforme esses dois autores, que a relação amor entre homens e o amor pela Dama (Boswel1, 1980). Hoje, quando
pederástica, como qualquer outro laço social instituído, traz em si a um homossexual sente amor por outro homem, torna-se, querendo ou não,
possibilidade da perversão; outra coisa é dizer que, porque eram homo- um i/zfruso, como o personagem do romance homónimo de Faulkner.
eróticas as relações pederásticas eram ípsojacro perversas. Aliás, todas as Assim como o negro de Faulkner, para ingressar no convívio dos senhores.
contas feitas, se perversão existisse na cultura grega, ela seria mais tinha que imitar as maneiras de mesa e de salão da burguesia branca,
facilmente encontrável na relação conjugal ou na relação do senhor com aristocratiforme e racista do sul dos Estados Unidos, assim também o
os demais habitantes da casa. Mulheres e escravos, por força da dis- homossexual é visto como um impostor ou um usurpador quando se
criminação sofrida eram, para o cidadão adulto e livre, objeto de gozo sem apropria de um vocabulário que não é o seu para exprimir-se amoro-
samente. Tudo que parece sublime ou edificante na boca de um homem
nenhuma outra interdição, a não ser o próprio arbítrio do senhor.
ou de uma mulher, ao se dirigirem um ao outro na situação amorosa, soa
94 A inocência e o vício Conjuga[idade, ética sexual e parceria homoerótica 95

grotesco, ridículo e "aviadado" na boca de um homossexual. Na tradição acentuando maneiras mal vistas ou discriminadas. No entendimento de
do preconceito, homossexualismo é perversão, e perversão é parente Sontag, o vamp é uma reação ao domínio opressivo da "heterossexua-
próximo da animalidade. Para que, então, preocupar'se com essa pnvaçao, lidade" pela exacerbação dos estereótipos. Algo assim como o teatro de
se o que existe é suficiente para que os perversos falem do que fazem e do Brecht, onde o excesso denuncia a ilusão. Na cultura vamp, os homens são
que sentem? O vocabulário do homoerotismo já foi codificado por. médi- ridicularizados enquanto "machões" e as mulheres na figura de "boneca
cos, religiosos, psicanalistas e pela vox popa/l. Nos costumes leigos, ou da "bicha louca". Às vezes, porém, o humor que perpassa as brinca-
científicos ou literários, homossexual e relação homossexual pertencem à deiras é ácido e extremamente agressivo. Os sujeitos tratam uns aos ouros
gramática da devassidão, obscenidade, pecado, hermafroditismo, pro' por nomes femininos, em geral diminutivos, e reagem a qualquer mani-
miscuidade. bestialidade, inversão, doença, perversão, falta de vergonha,
festação de pudor ou desaprovação de alguns, com grande violência,
sadismo, masoquismo, passividade etc. No Brasil, nada ilustra tão bem o tachando-os de "enrustidos" ou moralistas. No jogo de linguagem vamp,
estatuto de meio-homem, meio-besta do homossexual quanto a palavra
portanto, existe um código de comunicação que, como todo código, é
bicha". Bicha, segundo Parker, é um tipo de verme e, ao mesmo tempo, semanticamente ambíguo. Num certo contexto, o excesso e a zombaria
um animal, um bicho, neologisticamente feminilizado (Parker, 1990). exprimem a condenação do preconceito. As maneiras de agir e falar, entre
Mas, mesmo na linguagem culta da literatura de primeiro escalão, sobre os parceiros do código, não significam desprezo ou desqualificação moral
tudo a européia, do final do século XIX e começo do século XX, é notável dos termos usados, e sim retomada lúdica e sarcástica do que o preconceito
ver como o homossexual foi associado a cenários sociais e emocionais
leva a sério. Num segundo contextos. o do dissenso ou rivalidade, a
onde o estupro, o assassinato e o sadismo dos mais fortes contra os mais utilização da linguagem vamp revela a intenção de atacar moralmente o
fracos eram a conseqüência necessária do "homossexualismo" das perso' opositor.
nagens, como abordei no primeiro capítulo. Portanto, nessa cultura, tanto do ângulo da rivalidade quanto do ângulo
Não é de esü'anhar que, numa cultura onde tudo conspira nessa direção,
da ridicularização do preconceito, emerge o laço imaginário que mantém
o ideal da felicidade conjugal apareça com um brilho fálico inusitado. E é atados os sujeitos homoeroticamente inclinados às figuras idealizadas das
essa realidade que força a parceria erótica dos homossexuais a assumir os identidades sócio-sexuais do homem e da mulher. Plagiando constan-
traços que são retraduzidos pela cultura heterossexual dominante como temente essas figuras, mesmo sob o modo da farsa, os sujeitos mostram o
prova da perversão. Diante da opressão do ideal sexual conjugal e da desejo inconsciente de ocupar e anular os lugares definidos pela pola-
privação de um vocabulário social aprovado para a expressão dos sen- rização sexual, que lhes reserva a posição de puro desvio do padrão
timentos homoeróticos, surgiram pelo menos três pautas de condutas normal" de conduta erótica. Apresentando o feminino e o masculino
possíveis como mode]o de reação do homossexual à cultura da privação. como mascaradas, ressarcem-se imaginariamente da discriminação sofri-
Deixo de lado, no momento, a resposta da "militância gay" ou a resposta da, que, no entanto, acaba por surgir onde parecia enterrada. Parece-me
de certos setores da elite cultural e social por não considera-las reações
plausível supor que todos esses homens continuam presos ao ideal da
passivas e inconscientes ao preconceito, e sim respostas críticas e afir- conjugalidade que os marginaliza. Gostariam de tornar a parceria homo-
mativas, quaisquer que sejam, aliás, o alcance, eficácia ou limite de cada erótica um Ersafz do víncu lo heterossexual, mas, não podendo, contentam-
uma delas.
se com o simu]acro. Na paródia, em geral, falta o contrapeso positivo da
A primeira das respostas é a criação da subcultura vamp. vamp, como afirmação de valores próprios. Os atores não se esforçam em criar um
mostra Susan Sontag, é a palavra da gíria americana para designar o
vocábulo novo: adaptado a suas aspirações afetivo-sexuais; repetem o que
comportamento exagerado, escandaloso, propositalmente efeminado de
certos homossexuais ou de certos círculos homossexuais. (MacRae, 1 989).
já existe, em falsete. Assim, tendem a reforçar cada vez mais o que o
preconceito quer ver: o "homossexual" é um bufão da naturezas um bobo
No Brasil, segundo MacRae, o equivalente do vamp é a chamada "fecha- da corte, em meio à "nobreza heterossexual". Ao contrário de certos
rão". Diz-se que alguém tem um comportamento "fechativo" quando setores da subcultura gczy, onde o código vamp é um item de menor
procura romper as regras do bom-tom ou escandalizar o preconceito, importância, ou da cultura das minorias étnicas ou raciais, a cultura vamp,
96 A inocência e o vício
Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 97

como hábito irrefletido, parece enredada e submissa aos ideais morais que
sqa positivamente, sqa negativamente, donde o sentimento de frustração
fazem do homoerotismo uma "aberração'
afetiva dos parceiros. O que chamamos de abeto ou sentimento é aquilo
A outra resposta do homoerotismo ao social é a criação da cultura que, na relação sexual, só pode ser dito e não mostrado. É aquilo que
clandestina do gueto. O gueto é formado por um circuito de locais de excede o contato físico e que só a palavra pode trazer à luz.
encontro exclusivos de homossexuais, que vão de praias a pontos de Não é difícil prever que, nessas circunstâncias, o ideal da conjugalidade
prostituição masculina. Nesses locais, alguns extremamente sórdidos, os heterossexual reforce sua aura normativa. Enquanto o gueto mostra as
indivíduos gozam da "liberdade" que a discriminação permite. Mas, jus- relações amorosas do prisma do anonimato, da parcialização do contato,
tamente por tratar-se de uma liberdade vigiada e concedida, carrega todas da burocratização do orgasmo ou da exclusiva dimensão da sensualidade.
as sequelas do preconceito. Os sujeitos sabem, mesmo quando não exp.li- o amor romântico heterossexual é mostrado a céu aberto, respirando ar
mitam, que a liberdade vivida no gueto é precária e, num certo sentido, fresco e vendendo eloqüência, sob refletores coloridos e musicado eH
artificial. Quase todos acham esses lugares desagradáveis e queixam-se, do/by s/erro. Não há o que discutir: entre a sujeira, a tristeza,'a escuridão
freqüentemente, da sensação de vazio e insatisfação que acompanha tais
incursões clandestinas. No entanto, não podem deixar de freqüentá-los e a ilicitude de um e a alegria luminosa e loquaz de outro, a opção está
feita. Pouco importa que, finda a sessão de cinema, desligado o televisor
compulsivamente, pois não vislumbram outra alternativa para suas vidas ou fechada a última página do romance, comece a guerra conjugal. O
sexuais. No gueto, é voz unânime, vai-se em busca de uma "transe". No importante é que o homossexual sabe que não pode ser candidato àquela
mais das vezes, as características pessoais do parceiro pouco importam.
felicidade, enquanto o heterossexual, mesmo que não sela eleito, pode
Da mesma maneira, não adianta criar expectativas de que, nessas ocasiões, postular sua candidatura. Na distância intransponível entre o ideal sexual
possa surgir alguma relação amorosa mais estável e menos imediata. da maioria e a efetiva condição homossexual da minoria instalam-se a
Quem acreditou nisso, decepcionou-se. Por fim, participando da cultura aflição, a ansiedade, o ressentimento e o sentimento de vida abortada. o
do gueto, sobretudo nas idas a saunas, boatos e locais de prostituição, todos que leva os sujeitos às mais extravagantes posições subjetivas na vida
se sentem promíscuos e convivendo com a promiscuidade, realizando, amorosa.
assim, a imagem do "homossexual" criada pelo estereótipo do preconceito.
O estilo de vida da ansiedade, da depressão crónica e dos acre/zg-ouf
Pollak sugeriu que a subcultura do gueto é forma44 por yma série de sexuais ê a terceira resposta do homoerotismo à hegemonia opressiva da
estratégias que visam a otimização e a maximização do prazer, no curto heterossexualidade conjugal. Sob o peso do idea] imaginário, muitos
espaço e no pouco tempo que a vida clandestina permite (Pollak, 1987). sujeitos naufragam na amargura e na mais soturna desesperança. Para
E, junto com Ariês, ressaltou o aspecto racionalizado dos contitos sexuais esses, a mulher e a relação conjugal não são objeto de zombaria ou humor.
que ali se dão como fazendo parte do "mercado do orgasmo", expressão como na "cultura vamp"; são objeto de um temor e de uma reverência
de Ariês (Ariês, 1987). Essas opiniões me parecem oportunas. No entanto,
quase totêmicos. Em geral, são sujeitos que repelem a "cultura vamp" e a
não penso, como Ariês, que a linguagem do gueto represente apenas.a 'cultura do gueto" e que, salvo no que concerne à aspiração homoerótica,
recusa ilusória da paixão do coração ou da ilusão do amor romântico" sentem-se perfeitamente à vontade no papel de homem, ditado pelo mo-
ou a "sacralização do orgasmo", consoante a moral sexual atual (Ariês, delo ideal da masculinidade sócio-sexual. Um de meus clientes tentava
íbfd.). Penso que essa "linguagem" procura contornar a privação do 'esquecer" seu homossexualismo entregando-se a um verdadeiro ritual de
vocabulário do amor romântico imposta aos amores masculinos, criando expiação, por meio de exercícios físicos exaustivos e do excesso de
um estilo de comunicação que o torna dispensável. No gueto dS!!pjBa-o
dedicação ao trabalho. Não suportava a idéia de sentir atração física por
ideal da "mínima fala" e da inflação de gestos, sinais e atos. dQmodo a homens, ele que em tudo o mais achava-se perfeitamente masculino. Todo
indicar com a máxima precisão onde está o desejo. Tudo se organiza para esse esforço, no entanto, esfarelava-se nos finais de semana, com incursões
que o encontro sexual não passe pela palavra, posto que toda palavra sobre sonambúlicas ao gueto, de onde saía cada vez mais deprimido, ansioso e
o "homossexualismo" aponta para a dominação. Assiste-se, assim, a uma
culpado. Um outro, casado, pessoa extremamente inteligente e íntegra, e
tentativa de relação sexual sem metáforas, sem um discurso que a sublinhe que Jamais teve contatos homoeróticos, criou uma espécie de defesa
98 A inocência e o vício Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 99

masoquista extremamente forte diante da mulher e da relação conjugal. a perversão é mais um traço do laço social entre "heterossexualidade e
Porque sentia-se atraído por partes do corpo masculino negava a "auten- homossexualidade" do que uma característica inerente às relações homoe
ticidade" de qualquer apaixonamento ou satisfação sexual e amorosa róticas. Não é no homoerotismo, por si, que reside a transgressão ou a
experimentada com as inúmeras parceiras que teve. Aceitava qualquer recusa da castração, exgeto, evidentemente, no caso de sujeitos presos a
proposta de relação heterossexual como um favor que as mulheres Ihe montagens perversas. E na relação entre parceiros, comandada por um
faziam e que, portanto, ele não tinha o direito de recusar. Não se outorgava ideal sexual incompatível com a posição subjetiva homoerótica, que a
o direito de escolher a mulher com quem queria relacionar-se, pois isso perversão pode vir a instalar-se. Perversão existe quando e se um dado
significava mentir, ocultar sua "natureza homossexual" justamente da homossexual", identificando-se com o ideal "heterossexual", passa ima-
pessoa de quem gostava. Em nome da verdade e da honestidade, numero- ginariamente a achar-se possuidor do saber atribuído ao pai, fazendo de si
sas vezes amedrontou mulheres que dele se aproximavam, confessando de ou do objeto instrumento para o gozo do Outro. Em resumo, na montagem
forma abrupta e sem mais nem quê o seu "homossexualismo". Quando que opõe homossexuais e heterossexuais, podem entrar tanto parceiros
casado ou vivendo numa relação estável, costumava culpar-se por tudo homoeróticos quanto parceiros ou situações sociais do tipo "comando de
que não dava certo na vida conjugal, qualquer que fosse, aliás, a partici- caça a homossexuais" ou versões mitigadas do gênero. Ainda assim.
pação da mulher no conflito do casal. Outras vezes, para compensar.a acrescento que mesmo no caso da vida de gueto, a compulsão, a ansiedade,
deficiência" de sua masculinidade, lançava-se num verdadeiro frenesi de a insatisfação, a culpa e o sofHmento que perseguem os sujeitos nada têm
atividades heterossexuais, geralmente mecânicas e sem nenhuma satis- a ver com a fenomenologia ou a estrutura das perversões. Nesses casos.
fação afetiva. Parte dessa defesa masoquista só veio a ser parcialmente que são inúmeros, talvez mesmo a maioria, os sujeitos enganados na prática
abalada quando, já em análise, foi obrigado a defender os filhos do homoerótica estão longe de exibir a "modalidade tranqüila do gozo" que,
despotismo fálico de uma das mulheres com quem foi casado. Por fim, um como analisou Calligaris, caracteriza o laço social do burocmta com a
outro, jovem de 23 anos, usava a mulher como um objeto contrafóbico. burocracia, ou do cidadão acima de qualquer suspeita com a sociedade dos
Procurava ter o máximo de relações sexuais com ela para diminuir os bem-pensantes. Tais sujeitos, a meu ver, em nada se distinguem de
rompantes do desejo homossexual. Evitava também qualquer ocasião de qualquer um de nós, exceto pelo fato de apresentarem um sintoma ou uma
estar sozinho nas ruas, com medo de ser "tentado homossexualmente", e história do desejo vistos em nossa cultura como signo de infâmia e
acabou por colar-se de tal modo à parceira que transformou a vida do casal maldição. Condenados da conjugalidade, os homossexuais são, hoje em
num inferno de ciúmes e brigas. Tudo concluiu-se por um acflng-ouf típico dia, o que as histéricas foram nos tempos de Charcot ou os histéricos foram
da formação reativa contra a ansiedade: teve relações sexuais com o nos tempos da criação dos c/zemllzofs, ou sqa, o preço que pagamos em
marido da cunhada no banheiro de sua própria casa. E é igualmente mal-estar, quando decidimos que só um certo estilo de vida sexual é de
compreensível que tenha descrito essa relação sem o sentimento de culpa ./ure, universal, natural e obrigatório para todos os homens e mulheres.
e opressão que, de hábito, acompanhava suas fantasias homoeróticas . Para finalizar, uma ponderação dirigida ao argumento conservador.
Em todos esses casos, dependendo do olhar, é possível ver a "marca da Pode-se perguntar se toda esta arenga em torno da homossexualidade não
perversão". Já se disse, por exemplo, que no gueto tudo é permitido e, visa converter o pensamento freudiano num subcapítulo da fábula marcu-
nesse clima de permissividade, a única lei é a do desejo e da transgressão. seana do Eros livre de conflito ou do naturalismo de certas correntes de
No gueto, argumenta-se, o corpo do outro é o lugar do gozo, sem limites pensamento, que termina por propor uma sorte de "indiferença ética ou
ou interdição. Uma vez mais, é provável que isso, de fato, ocorra em alguns moral", onde tudo é "relativo", e tudo pode ser feito, contanto que traga
casos. E provável que a idealização da mulher, na cultura heterossexual, prazer. Quem garante que essa defesa da livre expressão cultural do
tenha sua contrapartida na degradação do objeto homoerótico, e que este homoerotismo não sqa um sintoma da cultura atual do narcisismo. ou
venha a ser designado como instrumento ou objeto de gozo, ao mesmo pior, uma pregação do "vale tudo" sexual, contrapartida privada do nosso
título do "objeto exótico", conforme mostrou Octávio Souza em seu estudo vale tudo" social? Quem garante que negar a "perversão" da homos-
sobre o "exotismo". No entanto, mesmo admitindo tal hipótese, creio que sexualidade não sda indício da entrada da psicanálise na "cultura da
100 A inocência e o vício Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica 101

perversão''? Além do mais, pode-se ainda dizer, toda essa querel a em torno Esse ideal é histórico e não a forma transcendental de todos os ideais. Ele
da homossexualidade não é feita em nome de um fetiche nominalista com
nasceu na Grécia, passou por Romã e, no percurso até hoje, foi enxertado
pés de barro? Se aceitamos que o homossexualismo é a camisa-de-força por outros ideais como: "ama teu próximo como a ti mesmo", ''a vida é
das práticas homoeróticas, por que não fazer o mesmo com as outras um bem em si", "todos são iguais perante à lei" etc. É da perspectiva ideal
perversões"? Por que não defender a tese de que a necrofilia é o "aburgue de apreço pelo futuro, de cuidado para com as novas gerações ou de
samento e a medicalização das práticas cadavéricas"; a pedofilia, das respeito pelos ideais de justiça e igualdade que falamos, quando apro-
práticas infantófilas"; o bestialismo, das "práticas zoofílicas"; o sadismo vámos certos traços culturais e desaprovamos outros.
e o masoquismo, das "práticas chicotescas" etc.? Onde começa a psicaná- Nossos ideais morais, entretanto, não estão inscritos nas coisas. no
lise do imaginário, e onde terminam a complacência e a cumplicidade com
coração dos homens, na forma da razão ou da lógica e estrutura da
a perversão, a monstruosidade e o horror?
linguagem ou do inconsciente. Do ponto de vista do desejo inconsciente,
A resposta a essa objeção é: uma cultura que tudo permitisse seria uma tanto faz viver com ou sem esses ideais; tanto faz ter escravos e arrogar-se
cultura impossível, como disse Rieff. A cultura da tolerância não é a da o direito de mata-los, como deixar crianças famintas e abandonadas
permissividade. Nesta, o que existe não é respeito pela diferença; é morrerem de inanição, em favor da superconcentração de riquezas ou do
indiferença, cinismo e violência. Mas, se com as objeções levantadas pagamento da dívida externa a banqueiros cristãos e civilizados. Nenhuma
pretende-se insinuar que podemos decretar, desde sempre e para sempre, lei do desejo, nenhuma castração do Outro, nenhuma ética do inconsciente
o que é permitido ou proibido, diria que não acredito nessa possibilidade. deixam de existir estruturalmente porque tudo isso acontece. Porém.
O escândalo de Freud foi justamente o de dizer que tudo é imaginável e diante dos ideais morais imaginários que são os nossos, muda muito viver
tudo pode ser desejável. É possível imaginar, sim, uma cultura onde a numa sociedade justa ou injusta. Do mesmo modo, quando afirmo minha
necrofilia, por exemplo, fosse aprovada, assim como em algumas outras convicção de que o homoerotismo deveria usufruir do direito à livre
aprovou-se o canibalismo ritual, o sacrifício de crianças, o incesto entre expressão social, e quando afirmo que a maior parte da teoria psicanalítica
irmãos, a morte obrigatória de anciãos, o coito com animais etc. O fato de
sobre o "homossexualismo'' está fundada no preconceito contra o homo-
não conhecermos culturas necrofílicas não as torna logicamente impos-
erotismo, isso não é o mesmo que aceitar e aprovar toda e qualquer
síveis, como também não nos obriga -- longe dissol -- a considera-las
inclinação erótica. Posso teoricamente admitir a eventualidade de que
menos odiosas e menos repulsivas do que as consideramos. existam estruturas psíquicas diversas subsumidas na etiqueta "fetichis-
Volto, portanto, a insistir no que já pude dizer outras vezes. Se todo o mo", por exemplo, sem que isso me comprometa com o ideal de uma
rol das práticas sexuais mencionadas nos espanta e causa horror, não é por cultura fetichista". A primeira hipótese em nada me escandaliza, já que
ser incompatível com o desejo e com a lei da castração; é porque é faz parte de minha tradição ou dos ideais intelectuais de minha cultura
absolutamente conüastante com nossos ideais morais vigentes, tão imagi-
rever criticamente teorias adquiridas. Mas ser-me-ia inaceitável viver
nários e contingentes quanto quaisquer outros. O desço, em si, é "amoral numa cultura que dissesse: "ensina a teus filhos gozar sexualmente com
imoral" ou indiferente às moralidades sociais. Dele não há como deduzir
objetos inanimados", ou "mata teu próximo", ou "profana cadáveres", ou
ou inferir uma ética compatível, a priori, com as exigências morais de 'violenta sexualmente crianças" etc. E o escândalo, como o vdo, não viria
nossa cultura ou de outras culturas que a ela se assemelhem. No limite, é apenas do fato de encontrar-me, nesse caso, vivendo sob o "império da
possível mesmo conceber uma modalidade de estruturação do desejo que perversão". Este seria o menor e o mais inocente motivo. Eu. assim como
leve à destruição de nossas instituições e de todas as regras e leis que muitos de meus pares, de cidadania ou profissão, vivemos numa sociedade
constituem nosso património cultural. Portanto, a idéia da permanência de onde a perversão viaja muitas vezes de ponte aérea, ocupa chefias de
nossa cultura, a idéia de que nela e por ela venhamos a imortalizar a governos ou instituições psicanalíticas, sem que isso nos impeça dc
memória de nossos feitos, discursos e instituições é, segundo Freud, um
dormir, excito em algumas noites. O escândalo está em outro lugar. O
ideal tão imaginário quanto qualquer outro, e não a expressão da única e escândalo está em que, ao contrário das perversões com as quais convi-
vcrdadeira aceitação da lei da castração ou da falta no desço do Outro. vemos, a prática do abuso sexual de crianças, a necrofilia ou a monstruo-
102 A inocência e o vício
Conjuga[idade, ética sexual e parceria homoerótica 103

sidade, por exemplo, aproximam-nos perigosamente de uma modalidade CALLIGARIS, Contando, Perversão um /aço iDeIa/? /rzfrod ção a uma c/írzica
de gozo com a morte e a destruição do outro, incompatíveis com nossa pxlcana/ülca. Sa]vador, Cooperativa Cu]tura] Jacques Lacan, 1986
tradição democrática e humanitária. Como mostrei na introdução a esses CALLIGARIS. Contando, "Bem-estar na civilização: a perversão como um laço social
trabalhos, nossa concepção do que é "o humano" e "a humanidade' conferência proferida na Reunião Lacano-americana de Psicanálise. Gramado.
repudia toda violência contra a integridade física e moral de nosso se 1988, exemplar fotocopiado.
melhante. Violar corpos inermes, abusar de crianças, assassinar pessoas CALLIGARIS, Contando, "A sedução totalitária", fn C/z'mica do sacia/, Luiz Tarlei de
como nós só porque divergem politicamente de nossa opinião ou porque Aragão e outros. São Paulo. Escuta, 1991 ; pp. 105-1 8. 1

possuem traços étnicos e raciais distintos da maioria ideologicamente CAMINHA, Adolfo, Bom Crloz{/o. São Paulo, Anca, 1983.
dominante, isto sim é permissividade e indulgência para com o horror. COSTA, Jurandir, "Os amores que não se deixam dizer", texto apresentado no encontro
Falar de tolerância e respeito ao modo de vida homoerótico não é, sobre AIDS. IMS/UERJ, 1990, inédito.
portanto, argumentar em favor da pulsão de morte e de seus derivados, o COSTA, Jurandir, Ordem rnédfca e normalam//far. Rio, Graal, 1 979/1983 2' ed
sadismo e o masoquismo, erógeno ou moral. Falar de tolerância é procurar DONZELOT. J.,.Za po/lce beijam///es. Paria, Minuit, 1977.
apontar para as brechas culturais por onde a pulsão de morte se insinua, DOVER, K.J., Greek#omoie.rua/fO. Cambridge, Harvard University Press, 1 989, 2' ed.
como por exemplo, através do "narcisismo das pequenas diferenças". E é FERENCZI, Sandor, "L'homoérotisme: nosologie de I'homosexualité masculine". f/z
em nome desse ideal de tolerância, em tudo e por tudo oposto ao ideal da Oeavrei como/êles, tomo 11: 1913-1919, Psychanalyse 11. Pauis, PUF, 1970;
PP 1 17-130.
perversão, que perguntamos: em quê e por que o homoerotismo entre
adultos que consentem mutuamente na relação sexual pode atentar contra FOUCAULT. Michel, Hisfóría da sexta/Idade /-- O uso doiprazere.ç. Rio, Graal, 1984
Ed. original: Gallimard, Pauis, 1 976.
a vida, a liberdade ou o direito à busca da felicidade de cada um de nós?
FOUCAULT, Michel, HlstóHa da sexta/idade// -- O cuidado de sf. Rio, Graal. 985
Até segunda ordem, sem hesitar, responderia: em nadam Nada nesse estilo
1

FOUCAULT, Michel, "0 combate da castidade", f/z Sexta/Idades ocfderzraís. São Paulo.
de existência inviabiliza ou contradiz os ideais que fundam nossa cultura, Brasiliense, 1989, 3' ed.; pp. 25-39.
e, isso, a meu ver, basta para assegurar seu livre direito à expressão social,
KRAFI'-EBING, R.V., Psyc#opar#fa seirua/is. Paria, Payot, 1969; 16' e 17' edições
sem constrangimentos morais ou coerções físicas. alemãs, refomluladas pelo doutor Albert Mail.
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A inocência e o vício:
dti, câté de chez, Proa,st

Em 1909. Proust acrescenta a Con/re Saínfe-Z?enfie um tema estranho à


crítica literária, objeto daquele trabalho. O Narrador, encontrando o Sr. de
Guercy numa recepção dos Guermantes, é "surpreendido pela revelação
de que o infeliz aristocrata não só parece uma mulher mas é uma mulher,
visto que pertence à raça dos homens que amam outros homens".t Em
seguida, diz seu biógrafo, Painter, ele escreveria a mais longa frase dc sua
vida: "como se não ousasse parar, pois se parasse seria para sempre. No
que a frase continha de angustiada crueldade, magoada piedade e trágica
beleza se encontravam, respectivamente, a acusação de Proust, sua defesa
e sua confissão de homossexualismo".z
A frase fazia parte de um ensaio sobre o "homossexualismo", quc
deveria ter sido publicado no ano anterior. Motivado pelo escândalo do
processo penal de Phillip von Eulenburg, nobre diplomata e amigo do
Kafser Guilherme 11, da Alemanha, Proust decidira escrever algo sobre o
assunto. Entretanto, dissuadido pelo amigo Robert Dreyfus, adiou o pro-
jeto, retomando-o, com alterações, no ensaio Contra Saípzfe-Beuve, sob o
título "A raça maldita
Em 1921, voltou a abordar a questão do modo como apareceu na
redação final de Sodoma e Gomorra /. Proust estava temeroso por ocasião
da edição desse livro. Acreditava que a longa dissertação sobre a incli-
nação sexual do barão de Charlus, personagem que viera a substituir o Sr.
de Guercy, provocasse celeuma. O teor das críticas, no entanto, dissipou
tal apreensão. Jacques Riviêre, da Gallimard, editora de Proust, disse: "Eu
saboreio, entre outras coisas (é ruim de dizer, você não o repetirá), uma
espécie de vingança ao ler as páginas terríveis (e tornadas ainda mais
tcrríveis por sua eqüidade mesma), em que você descreveu a raça dos
106 A inocência e o vício A inocência e o vício: dzz café de jaez Prousf 107

Sodomitas. Eu necessitava da espécie de descongestão que me dão essas obsessivamente a sexualidade homoerótica oitocentista, problema cultural
páginas. Sem me abalar, escutei muito freqüentemente ao meu redor e pessoal comum a ambos, inventaram o vocabulário com que nos habitua-
falsearem a noção de amor, e por isso experimento um alívio delicioso mos a reconhecer, designar ou descrever a "pretensa realidade psicológi-
escutando alguém, tão sadio e tão felizmente equilibrado como você, ca" de todos os sujeitos inclinados aos "amores masculinos". conforme a
tratando do assunto".3 Rogar Allard, da mesma Gallimard, afirmou: "Essas expressão de Peter Gay.'
páginas de ardente eloqüência, essa poesia áspera e nobre, quebram o Gide, no entanto, pensava alcançar a verdade quando confessava, a
feitiço estético da inversão sexual, que há muito tempo vem escravizando despeito do pudor, suas tendências e experiências homoeróticas. Proust,
as artes e a literatura".4 Finalmente, Gide, relatando um encontro com não. Dissimulava deliberada ou inconscientemente o que o outro se atrevia
Proust, anotava em seu diário de 15 de maio de 1921: "Ainda esta noite, a exibir. Porém, a dissimulação não se devia apenas ao medo da reprovação
só falamos de uranismo; ele diz reprovar-se pela indecisão que o levou, do Faubourg. Se, de fato, ele temia a opinião do grama monde de Saint-
para nutrir a parte heterossexual de seu livro, a transpor para Z 'ombro de Germain, simultaneamente odiado e idolatrado, através do receio dizia
jeünes.P//es tudo o que suas lembranças homossexuais tinham de gracioso, coisas que Gide não soube ouvir. Quando disse que se podia contar tudo
terno e [Aarmanf, de modo que só Ihe restou para Sodoma o grotesco e o mas nunca dizer je, era porta-voz das "intermitências do coração", peça-
abjeto".' Em 2 de dezembro do mesmo ano, Gide voltava ao tema: "LI as chave de sua redescoberta do tempo perdido. Recusando-se a falar do sexo
últimas páginas de Proust (...), de início, com um sobressalto de in- em primeira pessoa, exprimia sua ambigüidade ética, mas também a
dignação. Conhecendo o que ele pensa, o que ele é, é difícil para mim ver convicção tardiamente conquistada de que um nome próprio é a morada
aí algo além de um fingimento, de um desço de se proteger, de uma de vários "eus". Como apontou magistralmente Deleuze, o homocrotismo
camuflagem, que não podia ser mais hábil, pois ninguém pode tirar em Proust foi sempre, ao mesmo tempo, "p/afdoyer pela inocência do
vantagem em denuncia-la. Mais do que isso; essa ofensa à verdade corre sexo" e "pedido de perdão pelo vício". Cada um desses desejos é suporte
o risco de agradar a todos: aos heterossexuais, cujas prevenções ela de um ./e. Ao apresentar-se como mestre da verdade sobre o amor, ele
justifica e cujas repugnâncias lisonjeia; aos outros, que tirarão proveito do oculta necessariamente, ao olhar do outro, desejos e "eus" indizíveis ou
álibi e da pouca semelhança com aqueles que ele retrata. Em suma, a não ditos. Para Gide, nunca dizerje era mentir; para Proust, era mentir e
covardia geral ajudando, eu não conheço nenhum escrito que, mais que afirmar, em cada mentira, que para cada eu que fala há pelo menos um
Sodoma de Proust, sda capaz de enterrar a opinião pública no erro".' outro eu que é obrigado a calar.
Gide, com certeza, tinha em mente a conversa tida meses antes com
Proust. Sobre ela, escrevera em 1 4 de maio de 1 921 : "Eu Ihe dou Corydon, As intermitências do coração
do qual ele me promete não falar com ninguém; e como Ihe digo algumas
coisas de minhas À/emórias: 'Você pode contar tudo', gritou ele mas com O trecho de Sodoma e Gamorra em que o Narrador descobre o ho-
a condição de jamais dizer./e. O que não é meu gênero".' Proust e Gide, moerotismo do barão de Charlus é uma obra-prima de ambiguidade e
com a força e densidade de seus textos, indubitavelmente ajudaram a clarividência inconscientes. Nele, Proust resume o ef/zos de uma época e
conferir substância imaginária à crença de que os homens dividem-se as indecisões de uma alma à procura de si mesma. Proust era um homem
intuitiva e naturalmente em "homossexuais" e "heterossexuais". Sem eles, entre dois mundos. De um lado, estavam as ilusões da infância ejuventude,
a idéia hoje quase indiscutível para a maioria de todos nós de que existe ou sqa, o encantamento por Combray e pelo Faubourg Saint-Germain; de
um tipo humano homossexua/ com características próprias e irredutíveis outro, a maturidade artística e a decepção com as convenções burguesas e
a outros homens provavelmente perderia grande parte de seu poder persua- aristocráticas. A busca do tempo perdido é o sintoma desse conflito
sivo. A genialidade do primeiro e a equivocada e comovente honestidade insolúvel. O tempo social de Proust era um tempo em transformação. A
intelectual do segundo deram verossimilhança humana à descarnada dicção aristocracia representava o passado, o apego à tradição, ao nome e aos
médica, serológica e jurídica do sodomlra, uranlsla, sa/urnlano, pe- rituais de convivência exclusiva dos que se achavam os "melhores"; a
derasra, inverrldo, perverso e, por fim, "homossexual". Tematizando burguesia, em oposição, representava o anseio pela competição, mobi-
108 A inocência e o vício A inocência e o vício: da café de c#ez Prozzif 109

cidade e individualidade, e pelo culto à intimidade da vida privada e aos


espiritualidade estaria encerrada, que nos induz a supor que todos nossos
valores da pequena família nuclear.9 A exemplo de tantos outros burgueses bens interiores, nossas alegrias passadas, todas nossas dores estão perpe
de então, Proust vivia a tensão espiritual dos que já não sabiam o que devia
tuamente em nossa posse. Talvez também seja inexato acreditar que elas
mudar e o que devia continuar. se evadem ou retornam. De qualquer modo, se elas permanecem em nós,
Walter Bagehot, um grande burguês e pequeno intelectual britânico, estão, na maioria do tempo, em um domínio desconhecido onde não têm
escreveu: "0 homem modems precisa que Ihe digam o que pensar -- em
serventia alguma e onde mesmo as mais usuais estão recalcadas por
poucas palavras, sem dúvida --, mas precisa que Ihe digam".'' Proust, lembranças de ordem diferente e que excluem toda simultaniedade com
entretanto, ao desencantar-se com o mundo dos Guermantes, depois do
elas na consciência. Mas, se o quadro de sensações com que estão conser-
caso Dreyfus, percebeu que ninguém nem nada poderia dar-lhe a última vadas é reapreendido (resczlxi), elas têm, por sua vez, o mesmo poder de
palavra sobre o mundo e os homens. "0 caso Z)re)Z/üs", diz Painter, expulsar o que lhes é incompatível, de, sozinhas instalar em nós o ego que
''quebrara o encantamento do caminho de Guermantes. Proust via seus
amigos despojados da aura de poesia com que ele próprio os revestiu: uma
as viveu. ( ..) O ego que eu era então, e que havia por tanto tempo
desaparecido, estava novamente tão perto de mim que me parecia ainda
duquesa não passava de uma mulher usando tiara; um duque era apenas escutar as palavras que tinham imediatamente precedido e que no entanto
um burguês com um grau exagerado de altivez ou afabilidade. Proust não eram mais que um sonho, como um homem mal acordado acredita
compreendeu que ao entrar no mundo cruel e vazio dos Guermantes, e ao perceber bem próximo dele os ruídos do sonho que se evade".is
buscar nele algo superior a si mesmo, cometera um pecado e um ato
absurdo".'' Isto é, percebeu que podia criar uma visão do mundo e dos Revisitando o passado para dar sentido ao presente, compreendeu quc
não existe nenhum apoio extramundano e extra-humano para a verdade dc
homens, cuja medida era sua fantasia. A partir de então, entendeu que o
nossas crenças no sexo e no amor. Não existem memórias dc um sujeito;
fundamento de nossas crenças não tem outra garantia a não ser as infide-
existem sujeitos de memórias, que são independentes dc quem sc julga
lidades do desejo ou as "intermitências do coração". Viu que o ./e, como
seus autores. Não existe um mundo mental sempre lá, contínuo, igual a si
observou Rorty': a seu respeito, é apenas um tecido de contingências, e
mesmo e juiz de nossos erros e acertos sobre o que enunciámos sobre ele;
que a vida do Faubourg, para ele idêntica ao mundo ideal, era só mais um
caricato baile de máscaras, como notou Arendt.'' existem imagens e narrativas deste mundo, que espelham nossas aspi-
rações ao prazer ou à dor. Enfim, não existe outra verdade da lembrança,
Foi a "dor da idéia nova", como dizia Bagehot, que o surpreendeu na exceto aquelas das "intermitências do coração". Quando disse a Gide
busca do tempo perdido. Era inútil procurar nos caminhos do eu ou nos 'jamais diga eu", dizia que a mentira era a contraface da verdade. de-
caminhos do mundo o recanto tranqüilo onde um verdadeiro sujeito
pendendo do "coração" que mente e do coração a quem ela é dita.
reconhecesse e tomasse posse do verdadeiro amor e do verdadeiro bem. O
c/zez sof, como o c/zez Swann, não era um sólido edifício de estórias e
lide, sabemos, afirmou num dado momento: "Je ne sz#lx jamais, je
devielts; je deviens ceiui que je cross que je stlis". Porém, assim falando.
memórias perenes do que verdadeiramente é ou tinha sido; era um teatro inspirava-se na verdade de sua consciência burguesa e protestante. Ora,
de espectros e sombras, um novo salão, que, em sua própria imagem, vivia
para essa consciência havia um ponto em que o dele/zfr do ./e deveria
povoado de "romances inconscientes''.'' Tendo uma aguda consciência estancar, pondo um fim à dúvida sobre si. Esse ponto era a a fenflcldade.
disso, afirmou certa vez: "A qualquer momento que a considerarmos,
Era o ponto onde o./e abandonava a dissimulação e, através da revelação
nossa alma total tem somente um valor quase fictício, malgrado o nume-
do verdadeiro desde, expunha-se ao outro, na sua suposta capacidade de
roso balanço de suas riquezas, pois ora umas ora outras são indisponíveis, entender, amar e perdoar. Nessa crença, Gide testemunhava sua confiança
quer se trate, aliás, de riquezas afetivas ou daquelas da imaginação, e, para na onisciência e bondade divinas. Ela foi a marca indelével da retidão
mim, por exemplo, tanto quanto o nome de Guermantes, quanto aquelas calvinista de seu caráter e sensibilizou a todos quantos o conheceram ou
mais graves, da lembrança verdadeira de minha avó. Pois: aos distúrbios t iveram contato com sua obra. Não é à toa que um espírito descrente, cínico
da memória estão ligadas as lpzfermffê/zcfas do coração. E sem dúvida a
c histriânico, como Oscar Wilde, desconfiava dela e sentia-se instigado a
existência de nosso corpo, para nós semelhante a um vaso em que nossa destruí-la. Quando Wilde encontrou Gide em Paris e procurou seduza-lo
1 10 A inocência e o vício
A inocência e o vício: du có/é de c'Àcz Pro sf 111

intelectualmente com suas frases de efeito, disse depois a Douglas, seu


amante, que ele era um "protestante francês, a pior espécie, salvo, é claro, no combate de valores. O que estava em jogo era o controle dos corpos,
o protestante irlandês", aludindo, assim, às suas origens religiosas.'' sexos e mentalidades da massa de súditos ou subordinados, apelidados de
;Queixou-se, ainda, de que os lábios de Gide eram demasiado retilíneos, indivíduos ou clfoye/zs. Para exorcizar o fantasma da queda de prestígio,
lábios de alguém que jamais mentiu".'' E, por último, concluiu: "Preciso ou o supremo inimigo da época, a democratização dos direitos políticos e
dos costumes sociais, todas as armas eram válidas. Os bemnascidos
ensina-lo a mentir, para que seus lábios sejam belos e curvos como os de
uma máscara antiga".'' queriam continuar monopolizando os sinais de superioridade de casta; os
O destino de Proust foi outro. O acaso nunca deixou que encontrasse filhos da Revolução queriam transformar a casta em "raça" e, todos juntos,
aliavam-se para excluir da sociedade dos "homens bons" os condenados
face a face esse Deus magnânimo e compassivo, não obstante a severidade.
Seus deuses ou outros eram o mundo dos Guermantes e o amor materno, da terra e os explorados das cidades.
com sua estrita moralidade burguesa. Ambos pareciam ignorar o perdão e Em 1 890, na revista Z.a F'ín de Slêc/e, o editor escrevia: "Nada de
classes, títulos ou raças. Tudo é misturado, confundido. indistinto e reem-
só reconhecer umje e um desejo de Marcel Proust, o de pertencer-lhes de
corpo e alma e o de duvidar eternamente da veracidade do amor recebido baralhado, numa visão caleidoscópica".'o Em Fín-de-slêc/e. ecoava o
Com a morte da mãe e a queda do Faubourg, Proust liberou-se da coerção visconde d'Avenel, discutindo sobre os transportes públicos, "duquesas e
milionários se acotovelam com cozinheiras e funcionários".zo Essa retórica
real, mas não da dívida ética que contraíra imaginariamente com os dois.
A encarnação do Bem, fundida na aristocracia e na figura materna, não grandiloqüente e sensacionalista, bem ao gosto de uma imprensa embria-
gada com o aumento de seu poder social, soava às elites como um alarme.
mais existia, mas deixou como herança o fantasma da culpa e da necessida-
de de punição. Desse fantasma, Proust extraiu a matéria de sua ficção do No Faubourg ela evocava a Comuna, as cabeças cortadas c o ostracismo
Narrador e da prodigiosa invenção da Inocência e do w'cío da "inversão", insuportável vivido sob a República. Nobres e burgueses, circulando cm
uma e outro feitos de medo e dissimulação. Recriando as metáforas da salões ociosos, exauriam-se assim em disputas intermináveis para resta-
Inocênt fa e do vüío homoeróticos, livremente disponíveis no imaginário belecer a ordem e a hierarquia, ameaçadas pelo caos da proletarização e
social de seu tempo, legou-nos a fantasiosa ídéia da ''natureza do inver- do aburguesamento generalizado. Quando Proust, comentando o prosaico
tido", cuja extraordinária sedução estética sobrevive até hoje. ar burguês do duque de Bouillon, afirmou que "um grama seígnezír do
tempo de Luís Felipe é menos diferente de um burguês do tempo de Luís
A linguagem da inocência Felipe que de um granel seigneur do tempo de Luís XV", observou. de
modo ameno, o que para os freqüentadores dos salões era uma questão
Proust vivia um tempo sem compaixão. A moralidade do sécu lo XIX, pano
incendiária.'' A guerra da distinção era torpe: violência odiosa dos mais
fortes, servilismo obsceno dos mais fracos. Mme. de Guermantes diz.
de fundo de sua ética erótica, não perdoava os indecisos. Exigia, sobretudo
das elites, que tomassem partido no conflito ideológico que opunha as duas respondendo a certa solicitação do marido: "Ah, não, isto nãos Penso que
classes dominantes, a aristocracia e a burguesia. A aristocracia francesa você está me gozando. Eu nem sei porque cargas d'água conheço o nome
.#n-de-síêc/e havia perdido todo poder político, económico e social. Eco- dessa anta. Isto é a borra da sociedades É como se você me pedisse para
nomicamente, limitava-se à especulação e ao agendamento de terras; que eu Ihe apresentasse a minha costureira. E, olhe lá, não é verdade, pois
minha costureira é c/zarmanfe".:: O episódio em que o barão de Charlus
politicamente, a ocupar postos na hierarquia militar; socialmente, a ence-
humilha cruelmente Mme. Saint-Euverte é em tudo semelhante ao ante-
nar uma supremacia inexistente, simulando gosto, sensibilidade e libera-
lidade diante do novo e do exótico, desde que, evidentemente, não dissesse rior. Proust, no entanto, constatando que a ofendida aceita passivamente
respeito às questões políticas. A alta burguesia, por sua vez, dispunha de l humilhação e reage como quem se "ajoelha diante de seu senhor
poder político-económico mas carecia de distinção social. Os salões mun- comenta: "Infelizmente, no mundo, como no mundo político, as vítimas
danos traduziam essa rivalidade nas alianças e lutas estratégicas entre o são tão covardes que não se pode ficar muito tempo zangado com os
dinheiro de uns e os brasões de outros. Ninguém podia permanecer neutro carrascos".23 O mesmo barão de Charjus, em outra passagem, ilustra a
prepotência dos que se achavam acima dos demais mortais. Dizia, a
1 12 A inocência e o vício A inocência e o vício: dzí café de jaez Proizsf 113

propósito das famílias nobres que, na França, elas eram quando muito riência singular, secreta, refinada e monstruosa da qual ele as havia
onze, e acrescentava: "Quanto a todos esses pe/írs messíeürs que se extraído, ganhavam, para os fiéis, o charme de estranhamento de que se
chamam marquês de Cambremerde [a]udindo aos Cambremer] ou Fatefai- reveste uma psicologia(-.) em uma peça russa oujaponesa, desempenhada
refiche [corruptela homofõnica da expressão grosseira 'va rejaíre.Pc/ze' por artistas daqueles lugares".30 O Faubourg havia transformado o crime
equivalente mais pesado da expressão 'vai te catar' ou 'vai te danar'], não em vício para seu deleite. Porém os casos de Wilde e Eulenburg mostraram
existe nenhuma diferença entre eles e o último dos franguinhos(Fiou Fiou) que o vício sem charme era implacavelmente massacrado. Sendo francês,
de seu regimento. Que você vá fazer xixi na casa da condessa Coca, ou meio judeu, burguês e acreditando-se "homossexual", ele agia como se
coca na casa da baronesa Xixi, é a mesma coisa, você comprometeu sua tivesse ouvido o que Metternich dissera sobre a França: "A fraternidade
reputação e usou um pano de chão cagado (brenez4x) como papel higiênico. como é praticada na trança me levou a concluir que, se tivesse um irmão,
O que é sujo"." deveria chama-lo de primo".''
O Faubourg era o retrato dos grupos sociais sem função ou sentido A dissimulação, na busca do tempo perdido, tornou-se, assim, o pri
históricos.2s Nele, o estilo de vida era marcado pela monotonia das pe- melro mandamento da arte de falar de si. Dizendo o que achava que era,
quenas intrigas ridículas e previsíveis. Para vencer o tédio e mostrar aos sem se nomear, Proust tentava sobreviver no único universo que conhecia.
burgueses a excelência do viver aristocrático, as maffresses dos salões Construiu uma imagem do homoerotismo que obedeceu aos cânones da
disputavam ferozmente a presença de celebridades da cultura e das artes, vida em salão. Ou seja, apresentava o "invertido" mascarado de aristocrata
ou de obscuros exemplares de vidas exóticas. Essa elite fazia ddtcinismo torpe ou de burguês arrivista, para desmoralizar o Faubourg, e aceitava
e da manipulação da vaidade tola dos parvenz4s remédio para seupcansaço simultaneamente as premissas morais que repudiava, associando a "in-
mundano e sua inutilidade social. Incapaz de produzir valores mini- versão'' ao mundo dos homens ocos. Suas personagens eram vítimas ou
mamente aceitáveis para sua época, comprazia-se em afetar uma largueza algozes, conforme o ângulo visto, mas de qualquer perspectiva con-
de mentalidade que nada mais era do que um sintoma do culto ao "três tinuavam situadas por ódio, ressentimento e humilhação.
puissarzí l)leu /e-À/en-Fou", como dizia Brichot, fazendo Mme. Verdurin Quando Proust buscava absolver-se da culpa por seus desejos homo-
morrer de rir.:õ Por indiferença e falta de escrúpulo, e não por tolerância, cróticos, inocentando a inversão (preferia este termo ao termo homos-
o Faubourg admitiu judeus e "homossexuais" em seu meio.:' Mas o sexual, que julgava "frop germanlqtle ef pédalzl")," repetia os jargões
interesse pelos novos eleitos só se conservava enquanto o mistério de seus naturalistas da época, os únicos capazes de ser afeitos sem levantar
exotismos persistia; enquanto o segredo de suas "raças" ou de suas suspeitas. A inversão, dizia ele, era uma rara, zzma doença, a qualidade de
"psicologias" mantivesse acesa a conversação e a curiosidade dos rotos uma raça, um dado da heredírariedade ou o produto de um acaso infeliz
espantos de seus /zabírués.2s na evolução natural.33 O substrato do homoerotismo que descreve está
Proust era perfeitamente ciente do papel ocupado pelo vicioso e pelo próximo das generalidades médico-legais, psiquiátricas, sexológicas ou
exótico na vida do Faubourg. Referindo-se à vã tentativa de Charlus em jurídicas, correntes no século XIX. Todas elas, de uma ou outra maneira.
ocultar de seus hóspedes suas reais tendências sexuais, diz: "E, aliás, de eram ramos das ideologias evolucionistas, em especial das teorias da
qualquer maneira ele estaria errado, buscando caia-]a [a inc[inação sexua]], degenerescência, verdadeiro espantalho cultural da burguesia oitocen-
pois não existe nenhum vício que não encontre no grarzd monde apoios tista.m Na ciência, pensava Proust, estava o aval da inocência. Estava a
complacentes.-"zP Em outro trecho, referindo-se ao mesmo Charlus, es- verdade que permitia redimir o homoerotismo, sem devolver sua se-
creveu: "Nesse primeiro período, tinha-se, então, terminado por achar M. xualidade à sarjeta ou ao crime. As freqüentes alusões a Oscar Wilde
de Charlus inteligente, não obstante seu vício (ou o que se chama geral- comprovam esta preocupação. Comentando a tagarelice e o hisüionismo
mente assim). Agora, sem que se dessem conta, era por causa desse veio dc Wilde, que fizeram-no acreditar na possibilidade teatral de transformar
qtze achavam-no mais in/e/ígenfe q e os outros. As máximas mais simples 'sua vida em obra de arte", subestimando a truculência da hipócrita
que, devidamente provocado por um universitário ou um escultor, M. de l)urguesia inglesa, disse: "Wilde que, depois de afirmar que a maior dor
Charlus enunciava sobre o amor, o ciúme, a beleza, por causa da expe- (lue experimentara fora a morte de Lucien de Rubempré [herói de Balzac
1 14 A inocência e o vício
A inocência e o vício: du có/é de c';zez Proasf 115

e objeto da paixão homoerótica de Vautrin ], não tardou a aprender, durante E verdade: mesmo aí, sua intenção de inocentar o homoerotismo
seu processo, que existem dores ainda mais verdadeiras".;s assumia, por vezes, um tom positivo e redentor. Ao comparar a atração
Assim, a exemplo de Gide, fez do vício umlaro nal raJ e do sujeito
mútua dos invertidos à beleza de certos fenómenos da vida vegetal e
homoeroticamente inclinado um exemplar de uma raça, com qualidades animal buscava mostrar o lado ensolarado da "inversão" e não seus
especiais. SÓ que, ao contrário de Gide, recuou diante do álibi do instinto. desvãos escuros. Porém, a inocência, no caso, era inconsciência e irres-
Gide divinizou a natureza e converteu sua idealizada "pe#erastia" numa
ponsabilidade. O belo e o monstruoso eram produzidos pelas mesmas leis
bênção natural, pervertida pela "decadente maioria heterossexual".3ó e mecanismos que secretavam poléns de orquídeas ou danças de abelhas.
Proust. inversamente. alinhou o homoerotismo na fileira dos "erros da
natureza", dos "desequilíbrios nervosos", das "taras doentias" etc. Como
A inocência natural em Proust ou é auto-indulgente ou inconseqüente;
assinalaram Rivers3' e Alter,38 a inversão proustiana deixou de ser vício jamais responsável. E marcada por uma culpa ou uma vergonha que
retiram dos amores masculinos qualquer dimensão propriamente ética.
ou crime para ser desvio ou anomalia. Ou seja, o Narrador desapontava o
Diferentemente do criminoso Vautrin, de Balzac, que Proust pretendia ter
voyeurismo do Faubourg, quebrando a magia de seus fetiches; em troca, como modelo, Charlus e Jupien, instrumentos da natureza, levitam acima
entregava o homoerotismo à tecnocracia médico-científica que a burguesia
ou abaixo do Faubourg. Não dizem, como a personagem de Balzac, que
ascendente pusera a seu serviço.
numa sociedade viciosa o vício dos marginais pode ter a virtude da
Temos boas razões para supor que Proust acreditava menos na "natu- denúncia. Ao contrário, calam-se diante da opressão. Vivem seus amores
ralidade da inversão" do que deixou transparecer em seus livros. Em 1 897,
como jogos proibidos, praticados às ocultas e só descobertos pelo voyeu-
ao ler a Psyc/zopafAía sexta/is de Kraft-Ebing, pai espiritual das ideologias
rismo do Narrador. As intermitências do coração, reduzidas a tropismos,
serológicas dos séculos XIX e XX, comentou com seu amigo Paul Mo-
aproximam a inocência sexual e a cumplicidade do vício social.
rand: "Parece que agora até o vício se tornou uma ciência exata"."
Portanto, em Sodoma e Gomorra, como nos escritos anteriores, quando Em Proust, a ética dos amores é posta de lado, em favor das cocrçõcs
dos instintos. Convertido ao reino da necessidade, o homoerotismo mas-
fez sua a linguagem que antes criticara, revelava duas coisas: primeiro, culino surge pzíro em algumas imagens, corrompido em outras, mas de
que não tinha coragem de mostrar a inocência como virá de, verdadeiro qualquer modo sempre eficamenfe Ind ferenfe. Melhor dito, na indiferença
arzfõnímo éflco do vz'clo, por receio de tornar-se um pária, ou um criminoso;
fingida, o Narrador, como Mme. Saint-Euverte, ajoelhava-se diante do
segundo, que não dispunha de outra linguagem capaz de inocentar sua Faubourg, negociando a honra em troca da aceitação.
sexualidade. a não ser o vocabulário médico-científico de sua época. Usou,
Sublimando o desejo num dado natural, Proust fabricou um Éden sem
assim, as armas da ciência burguesa contra a aristocracia, salvando a
crime e castigo, mas onde o prazer e a felicidade eram indizíveis, pois
respeitabilidade e sacrificando a ética. Proust não percebera, sufocado pelo
desconheciam-se enquanto tais. No vício, entretanto, retorna o recalcado
Faubourg e por seu quarto de asmático, que nem todos os burgueses eram
da inocência. Com mais culpa, mais força e mais dor, pois nele Proust se
sa/o/znards. Havia muitos -- e estes foram os vencedores históricos
debate não apenas contra o espírito dos Guermantes, mas também contra
para quem pouco importavam os costumes aristocráticos, que, de resto,
eram vistos como idênticos à indecência, ao pecado ou a causas de taras o "espírito de Combray". Na recordação da infância passada, Combray
trouxe de volta o discurso materno, assombrando-lhe a alma e liberando.
sociais.40 Havia um mundo ao lado do grama monde que acabara de nascer
tlc vez, sua imaginação. E é na reflexão sobre o vício que o artista excede
e criara um novo tipo de "crime", o crime con/ra a naf reza. Descrevendo
scu tempo, criando uma "psicologia" do invertido, formada às custas de
o invertido como um "anormal", um praticante do "amor antifísico" e fantasmas, tanto mais verossímeis quanto feitos dos retalhos de sua vida.
anti-social", Proust subscrevia na íntegra o essencial dos preconceitos
lesse universo de criaturas fantasmáticas veio a ser, para as futuras gera-
burgueses. la além, dava crédito e ajudava a fortalecer a idéia de que havia ções, a expressão da verdade sobre o homoerotismo. Proust impunha ao
uma espécie humana, com variedades e subvariedades, que surgia de um
mundo o que o mundo Ihe obrigara a criar. Individualizou cada dor,
movimento no qual a natureza, conforme sua própria metáfora, parecia
ter-se "momentaneamente indusüializado".4i remorso, vergonha ou ressentimento nascidos de sua experiência ho-
moerótica, dando-lhes o rosto de ma persa/vagem ou os "traços consti-
11 6 A inocência e o vício
A inocência e o vício: du cõ/é de c'Aez Pro sf 117

tutivos" do pecado original da "raça das bichas". O vício, finalmente, era


sofremos muitos desgostos, decepções e tormentos. E para nenhum de nós
exposto e punido em público, como pediam o Faubourg e Combray. A mãe
estava morta e os Guermantes eram uma reminiscência. Marcel Proust, soará o momento em que nossos desgostos se converterão em alegnas,
nossas decepções em realizações inesperadas, nossos tormentos em deli-
contudo, continuava a temê-los e reverenciá-los. Deu ao público de Sodo-
ciosos triunfos. A cada dia eu estarei mais doente, cada vez sentirei mais
ma o vício, escondendo a virtude dos seus amores "à /'ombro de ./Cumes
falta dos seres queridos que perdi, e verei tudo aquilo que almqei na vida
.P//es en.Peur", como notara Gide.
Nesse aspecto, Gide tinha razão. Proust ofenderá a verdade. Mas não ficar cada vez mais inacessível. Porém, para Dreyfus e Picquart a vida tem
sido providencial como um conto de fadas. Á razão disso é que nossas
porque se recusara a crer no mito da autenticidade. A verdade foi ofendida desgraças se baseiam em verdades, sejam psicológicas, humanas ou
quando o Narrador preferiu mostrar os amores masculinos como um fruto
emocío/país, mas as desventuras deles foram causadas por simples erro.
das paixões tristes. Dignificando artisticamente a linguagem do vício,
Benditas sejam as vítimas de erros, judiciais ou outrosl Somente e/as
Proust purificou-se do "pecado" e do "absurdo" de suas idolatrias mun-
danas e de suas tendências sexuais, mas negou aos outros, que não seus poderão obter uma espécie de ressarcimento e reparação" .u
Pouco tempo depois, Proust redigia "A raça das bichas" (Z.a Face des
Outros, a visão dos amores que pede viver em paz
ran/es), que serviu de molde à versão definitiva da inversão em Sodoma e
Gomorra. Esse texto, retomado várias vezes nos Ca/zíers. é um dos mais
A linguagem do vício sombrios e caudalosos já escritos sobre o homoerotismo. Como notamos
no início do trabalho, Proust escreve cerca de mil e quinhentas palavras
Em 1907, um certo Henri van Blarenberghe matara a mãe e, em seguida,
numa única frase, onde a mais soberba imaginação mostra o esgarçamento
se suicidara. Proust, que havia conhecido rapidamente o jovem, foi so-
de uma consciência presa ao desmentido inútil do próprio desejo. A citação
licitado a escrever um artigo sobre o crime. Uma testemunha havia
integral é impossível. Mas é igualmente impossível deixar de assinalar
escutado a Sra. Blarenberghe dizer antes de morrer: "Henri, que foi que
passagens expressivas, sem o que a linguagem do "vício da inversão", cm
você fez? Por que me fez isto, Henri?"4z Proust escreveu o artigo que foi
Proust, seria ininteligível em sua complexidade e genialidade. Proust diz:
publicado com cortes em Z,e Figuro. Num dado trecho era dito: "0 que foi
Raça maldita, já que o que para ela é o ideal de beleza e alimento do desejo
que você me fez? Se nos permitimos pensar nisso, perceberemos que talvez
é também o objeto da vergonha e o medo da punição, e que ela é obrigada
não haja mãe alguma, que ame verdadeiramente seu filho, que no último a viver até nos bancos dos tribunais onde vem como acusada e diante do
dia de sua vida, e provavelmente muito tempo antes, não Ihe dirija essa
censura. A verdade é que envelhecemos e matamos o coração que nos ama Crista, na mentira e no perjúrio, pois seu desejo seria de certa maneira
insaciável pois só amando o homem que nada tem de mulher, o homem
por causa das angústias que Ihe causámos, da ternura inquieta que nele
que não é 'homossexual', é apenas nele que ela pode saciar um desejo que
inspiramos e do estado de alarme constante que provocámos. Se pudésse- ela não deveria por ele experimentar, se a necessidade de amor não fosse
mos ver, em um corpo amado, o lento processo de destruição levado a
uma grande enganadora e não fizesse da mais infame 'bicha' uma aparên-
efeito por esse afeto angustiado, os olhos cansados, o cabelo que antes era
indomavelmente negro e agora é derrotado como o resto e se torna branco cia de homem (...), pois como os grandes criminosos ele é obrigado a
esconder seu segredo daqueles que ele mais ama, temendo a dor de sua
(...) o espírito que sabe que nada resta a não ser o desespero, embora antes
se alentasse incansavelmente com esperanças imbatíveis, a inata imortal família, o desprezo de seus amigos, o castigo de seus pais; raça maldita,
perseguida como lsrael e como ele acabando no opróbrio comum de uma
alegria morta para sempre.. " Terminava dizendo que, "se num momento
de lucidez e equilíbrio mental como o de Van Blarenberghe ao ver a mãe abjeção não merecida, por assumir caracteres comuns, o ar de uma raça
sangrando até morrer, pudéssemos sentir todas essas coisas, também nos (...) os traços físicos que no mais das vezes provocam repugnância, que
algumas vezes são belos, corações de mulher, amantes e delicados. mas
mataríamos com um tiro, como clc".4s
também uma natureza de mulher, desconfiada e perversa (...); excluídos
Já um ano antes, depois da morte da mãe, escrevia à Sra. Strauss a
da família, com quem não podem partilhar a inteira confiança, da pátria,
propósito da reabilitação de Dreyfus: "Nestes últimos dez anos, todos nós
tios olhos da qual são criminosos não descobertos, de seus próprios
11 8 A inocência e o vício
A inocência e o vício: d café de c/zez Prousf 119

semelhantes, a quem inspiram a repulsa de reencontrar neles mesmos a burocratas empedernidos de seu vício, mantendo-se vls-à-t,ix dos jovens
advertência de que aquilo que eles acreditam ser um amor natural é uma com uma reserva de moça de província que acreditasse ser uma impu-
loucura doentia (...) e, no entanto, corações amantes, excluídos da amizade dicícia dizer bom-dia, alguns maravilhosamente belos, espirituais, nobres,
porque os amigos poderiam suspeitar de outra coisa que não a amizade, requisitados no mundo onde transitam com uma tristeza de anjos decaídos,
quando experimentam por eles pura amizade, (...) objeto ora de um olhando, sem poder sacia-las, mulheres se matarem por eles (...) ctc".'õ
desconhecimento cego que só os ama desconhecendo o que são, ora de O fluxo é vertiginoso. Proust, de um só fôlego, confessou tudo o que
uma repulsa que os incrimina no que têm de mais puro, ora de uma ousara fantasiar sobre o sexo e que o je mundano poderia dizer. O
curiosidade que busca explica-los e os compreende de maneira totalmente vocabulário que empregou para descrever o homoeroti smo era uma imensa
errada, elaborando a seu respeito uma psicologia de fantasia, que mesmo colagem do movimento de seus desejos, sob o olhar implacável do Fau-
acreditando-se imparcial ainda é tendenciosa e admite a prIorI, como estes bourg e de Combray. Ou, dito de outra forma, era, de um lado, o homoe.
juízes para quem um judeu era naturalmente um traidor, que um homos- rotismo de Prolzsr, nome colado ao Faubourg Saint-Germain e à glória das
sexual é facilmente um assassino; como lsrael ainda buscando o que não
letras francesas; de outro, o homoerotismo do pequeno ]l/arcel, a quem a
é ele, o que não seria dele, mas experimentando, no entanto, uns pelos mãe, na hora da morte, prometerajamais abandonar. A história, comumen-
outros, sob a aparência das maledicências, das rivalidades, do desprezo do te, habituou-se a falar de um e de outro. Porém recalcou, como sempre, o
menos homossexual pelo mais homossexual (...) raça que põe seu orgulho
que era incomodo relembrar: entre o requeria it/arc e/ e Prousr, significan-
em não ser uma raça, em não diferir do resto da humanidade, para que seu
te do tempo perdido, houve um outroje, oje Marcel Proust. Este, segura-
desejo não Ihe apareça como uma doença, sua realização mesma como mente, interessa pouco à "arte" ou ao preconceito, mas interessa muito a
uma impossibilidade, seus prazeres como uma ilusão, suas características todos que se recusam a fazer da vida uma existência sem arte.
como uma tara(...) pois no fundo de todo homossexual há um anti-homos-
Recuperando o tempo perdido e desperdiçado, Proust montou o pro-
sexual a quem não se pode fazer maior insulto que o de reconhecer-lhe os
cesso íntimo de seu homoerotismo. Não tendo sobre a cabeça a Emenda
talentos, as virtudes, a inteligência, o coração, e, em suma, como a toda
Labouchêre inglesa, como Wilde, ou o parágrafo 1 75 do Código Penal
criatura humana, o direito ao amor sob a forma em que a natureza nos
alemão, como Eulenburg, criou seu próprio tribunal e peças de acusação.
permitiu concebê-lo, se, entretanto, para permanecer na verdade, somos Por que, pode-se perguntar como Gide, Proust escolheu o lado soturno e
obrigados a confessar que esta forma é estranha, que estes homens não são melancólico do homoerotismo para ilustrar seus exemplos de "inversão"?
semelhantes aos outros e repetindo sem cessar com uma satisfação irritante
Por receio da infâmia? Certamente. Isso não é só óbvio; é compreensível
que Platão era homossexual, como os judeus que Jesus Cristo era judeu, e justificável. Proust conhecia bem a virulência do meio intelectual e
sem compreender que não havia homossexuais na época em que o uso e o
mundano em que vivia. Quando publicou Z,es p/alxírs ef Jes ./ouro, foi
bom-tom eram viver com um rapaz, como hoje, manter uma dançarina, em objeto de um ataque violento de Jean Lorrain (um dos modelos do barão
que Sócrates, o homem mais moral que jamais existiu, fazia brincadeiras de Charlus), que insinuou claramente o tipo de relação que existia entre
sobre dois jovens sentados um perto do outro, tão naturais quanto as que
ele e Lucien Daudet." Da mesma forma, estava a par do episódio em que
fazemos sobre um primo com uma prima que parecem enamorados e que
Henri de Régnier dissera, em público, que o conde Robert de Montesquiou
são mais reveladores de um estado social que teorias que apenas lhes
(outro dos modelos de Charlus) "ficaria ainda melhor com um leque"," ou
fossem pessoais, assim como não havia judeus antes da crucificação de
Jesus Cristo (...); parte reprovada da humanidade e no entanto membro da forma como a Sra. Holland tratava Leon Delafosse, protegido de
Montesquiou e modelo de Morei, ou seja, chamando-o "Senhorita Dela-
essencial dela (...) etc"." tosse 49

No Ca/vier 7, novos acréscimos foram feitos a essa descrição: "Alguns


Fraco e apavorado, ele pressentia sua incapacidade de reagir a esse tipo
solitários (...), outros gritando sua fé, ou, pelo menos, só encontrando
dc agressão. Porém, na época da edição de Sodoma e Gomorra, o Faubourg
prazer com seus correligionários, falando na língua, dizendo de bom grado cra mais uma lembrança que uma realidade. Os farrapos aristocráticos de
palavras consagradas, fazendo gestos rituais, outros correios, barbudos, Saint-Germain tinham sido definitivamente jogados no lixo, depois da
1 20 A inocência e o vício A inocência e o vício: du córé de c/zez Prouif 121

Primeira Guerra. Além do mais, Proust vivia enclausurado em seu quarto, lo na esfera do desejo, do gosto ou da preferência, Proust criou o mira da
mal saindo para encontrar-se com amigos e relações mais próximas, que raça de Sodoma, no qual, novamente, a responsabilidade humana estava
preferia receber em casa. Fora isso, pode-se igualmente perguntar, o que ausente. Nesse mito, calcado no discurso de Aristófanes, em O bapzqzzefe,
Ihe impediria de apresentar outras facetas do homoerotismo servindo-se de Platão, e na mitologia cristã das cidades da p/anüfe, o belo e o
de personagens fictícias? A dissimulação, nesse caso, estaria preservada apreciável nos amores homoeróticos eram simplesmente a manifestação
e continuaria a oferecer-lhe imunidade contra os eventuais deü'atores. atávica de uma raça de seres que ansiavam inconscientemente por suas
Tudo era possível. Nada disso, entretanto, aconteceu porque, podemos metades perdidas, das quais tinham sido privadas pela ira invdosa dos
supor, em Proust, a /Ing agem do w'cío é, ao mesmo tempo, desço de deuses. A virtude era de ninguém, porquanto de todos. Virtude burocrática
prolanaçao. e repetitiva, que obedecia sem desejar ou desejava apenas a obediência. O
Todos os invertidos de Sodoma e Gomorra são tipos desprezíveis. mito da raça de Sodoma, como aquele da inocência natural dos /zommes-
Vaugoubert é um covarde, emasculado pela mulher e pela preocupação /emmes, ou homens-flores, punha o desejo humano no céu das idéias,
com sua imagem de diplomata; Morei é um velhaco oportunista e obtuso, deixando impunes as cidades dos Guermantes e Combray.
que vive como gigolâ, às custas de Charlus; Jupien é um desfibrado, um Todavia, Marcel Proust, como dissemos, foi mais do que Proust e do
subserviente, enfremeffeur de Charlus, seu antigo amante; e, finalmente, que o pequeno Marcel. Em sua história de vida, nem a sexualidade foi
Charlus, figura central do romance, um aristocrata arrogante, fútil, obeso, sinónimo de homoerotismo, nem homoerotismo sinónimo do vício de
decaído, rancoroso, capaz das piores vinganças contra os que rejeitam seus Charlus. Na infância, adolescência, juventude e idade adulta, Proust apai-
avanços e dos piores ataques de pieguice histérica, quando vítima dos xonou-se das mais diversas maneiras por homens e mulheres. O discutível
sofrimentos do amor. Proust vai adiante. Não se contenta em mergulhar
fato de nunca ter tido relações heteroeróticas é aqui de somenos importân-
seus anta-heróis no "poço de Sodoma", feito de traições, canalhices e cia. Juliette d'Artois, Made de Benardaky, Jeanne Pouquet, Made Finaly,
mágoas. Generaliza esses destinos pessoais, tornando-os tipos psíquicos Mme. Straus, Louiza de Mornand foram alguns de seus amores heteroe-
representantes do qüe é a essência da inversão. Pensando agir como um róticos.ss No que concerne ao homoerotismo, a discrepância entre o dito e
:herborista humano" ou um "botanista moral", ataca sem piedade o "vício'
o vivido é ainda maior, considerando-se que era a inclinação sexual
dentro de si e dos outros. Charlus é de uma sensibilidade paranóica, sempre
predominante de Proust. Najuventude, ligara-se amorosamente a inúme.
prestes a "ver por toda parte, homens semelhantes a ele".s' Também exibia ros amigos, embora sem relações sexuais físicas. De Edgar Aubert, dizia:
a "dureza e o desprezo que os invertidos sentem por aqueles que os 'Ena m, encontrei o terno amigo de meus sonhos, que me escreve cartas".só
desejam, sem serem desejados".s' Quando diante de um outro invertido, De Robert de Flers, disse: "Alguém que é para mim tudo o que teria sido
sonha, não só por ver "uma imagem indesejável de si próprio", mas porque para X, se não fosse tão insensível. Refiro-me ao jovem, encantador,
seu "instinto de conservação" o fazia ver num igual um possível concor- inteligente, amável e afetuoso Robert de Flers".s7 Pouco depois, encontra
rente.sz Nesse caso. continuava, a raiva do invertido é ainda mais lanci-
o jovem inglês Willie Heath, com quem diz fazer planos para "viver cada
nante que a dos outros homens.': Finalmente, aliada a todas essas vez mais juntos, num grupo seleto de homens e mulheres magnânimos,
características, estava a prática sadomasoquista que arrematava o perfil bem longe da estupidez, do vício e da malícia, para ficar ao abrigo de seus
exemplar do invertido barão de Charlus. dardos vulgares".s'
Poucos são os momentos em que Proust usa expressões como "corajo- Sem dúvida, a "inversão" de Marcel Proust tivera seus momentos de
sos exilados de Sodoma", "o vício, assim chamado por comodidade de subida aos céus, em nada parecidos com o inferno de Sodoma. O teor de
linguagem", "um gosto chamado vício", etc., ou refere-se aos invertidos sua correspondência íntima e amorosa revela seu acesso à felicidade
como possuindo um especial "dom espiritual" para coisas sublimes e concebível no código do amor romântico. Como qualquer apaixonado,
elevadas.5' Mesmo assim, quando a virtude impunha-se à abominação, era homo ou heteroerótico, ele sentia e falava das delícias do amor. com as
para ser trazida de volta à inocência. Procurando dar conta do que havia cores do romantismo da época: tom confessional da emoção, exaltação do
de bom no homoerotismo, ou retira-lo do terreno da maldição para colocá-
sentimentalismo, intimismo açucarado, idealização da parceria amorosa,
122 A inocência e o vício A inocência e o vício: du café de c/zez Pro s/ 123

sensíóZeríe. diatribes contra a insensatez do mundo, etc. Essa linguagem,


dividendos. Por outro lado, ''as pessoas de Combray podiam achar que
cheia dos jargões mais triviais, era a linguagem reconhecida e aprovada tinham bom coração, sensibilidade, e adquirir as mais belas teorias sobre
como sendo a do amor virtuoso. Proust, portanto, sentira o gosto da a igualdade humana; minha mãe, quando um va/ef de chambre se eman-
virtude. No entanto, como qualquer outro indivíduo ocidental, de ontem
cipava, (...) manifestava a respeito dessas usurpações o mesmo des-
ou de hoje, não podia aplica-la publicamente ao homoerotismo, sob pena
contentamento que explode nas A/emórlas de Saint-Simon, toda vez que
de incorrer em erro de uso. A virtude do amor só é moralmente correta e
uü sefgnelfr, sem direito, arranja um pretexto para assumir a qualidade de
tolerada quando referida ao heteroerotismo. Ou sda, ele interiorizara o
preconceito e, seguindo a regra, pronunciava vício onde experimentara Alteza em um ato autêntico, ou de não conferir aos duques o que lhes é
virtude. Ao apaixonar-se, mais tarde, pelo músico Reynaldo Hahn, com devido e do que, pouco a pouco, se isenta. Havia um espírito de Combray
tão refratário, que seriam necessários séculos de bondade (aquela de minha
quem viveu uma terna e prolongada relação amorosa, afirmou certa vez:
mãe era infinita), de teorias igualitárias, para conseguir dissolvê-lo".ó3 Isto
quero que você estqa sempre presente em meu romance, como um deus
é, também, a moralidade burguesa e materna era insensível às "inter-
disfarçado que mortal nenhum pode reconhecer".s' Hahn tornou-se, no mitências do coração:
romance. o heterossexual Henri de Réveillon. Decência ob/íge.
As paixões por Lucien Daudet e, depois, pelo nobre Antoine Bibesco Depois da morte da mãe, a docilidade virou rebelião. Combray e o
não fogem à regra. Ora, desses amores nenhum traço permaneceu na Faubourg associaram-se num só grande outro opressor, bem distante do
pintura homoerótica de Proust em seus romances. Entretanto, todos aque severo, mas protetor, Deus de Gide. Proust disse, certa vez, falando dc
les jovens, com exceção de Daudet, longe de serem cópias de Charlus, Charlus: "0 mais perigoso de todos os segredos é aquele da falta, cla
eram viris, corteses, despretensiosos, e Reynaldo Hahn, até os últimos dias mesma, no espírito do culpado".m Esse era o segredo a quc sc referia
de Proust. dedicou-lhe uma amizade desinteressada e generosa, absolu quando escrevia à Sra. Straus sobre as "verdades psicológicas, humanas
lamente oposta à sórdida mesquinhez do barão. Da mesma forma, as ou emocionais" de suas desgraças. Esse sentimento de falta diante do
relações posteriores de Proust com subalternos, como com seu secretário mundo e da mãe era de uma enormidade proporcional à impiedade quc
particular Ulrich ou com seu chofer Agostinelli, mostram uma imagem do Proust, em seu infantilismo afetivo e em sua sagacidade intelectual, via na
homoerotismo em nada assimilável ao perfil da "raça dos bichas" ou da moralidade aristocrático-burguesa que o asfixiava. O "vício" do seu ho-
"raça maldita" dos "Aommes-#emmes". Ulrich, que mantinha relações com moerotismo era do tamanho de ogro do Faubourg e de Combray. Preso a
Proust, e a quem era muito devotado, não negava o prazer que tinha em dois mundos sem misericórdia, transfigurou a fraqueza em ódio e a
manter relações sexuais com mulheres, o que incomodava pouco o pa- idolatria em profanação. Proust profanou o mundo dos Guermantes com
trão.óo Agostinelli, por quem Proust foi extremamente apaixonado, tam- o vício de Charlus, assim como profanou o mundo familiar e burguês com
bém mantinha regularmente relações heteroeróticas e era casado com o vício de Gomorra; de novo, dissimuladamente, acertava contas. em meio
Anna, de quem Proust sentia muitos ciúmes.'' a culpas e tormentos com seus amados perseguidores.
O homoerotismo de Marcel Proust foi, assim, uma multiplicidade de Em 1917, começa a relacionar-se com Albert Le Cuziat, conhecido
relações afetivas e sexuais polimorfas, que o Narrador congelou e dissecou prostituto do gra/zd molzde parisiense, a quem ajuda a montar um bordel
a partir de um só ângulo e com um só bisturi. O ângulo feliz e pacificado masculino, com dinheiro, "cadeiras, sofás e tapetes" que pertenciam aos
de sua sexualidade foi expurgado do tempo recuperado, dando vez ao w'clo falecidos pais.'s Quando no romance o "Narrador presenteia a dona do
e à prúláa/cação. Escolhendo o barão de Charlus como o exemplo de l)ordel de Bloch com as cadeiras e o sofá da tia Leonie, é assaltado pelo
invertido, Proust quis fazer ver aos outros que grama monde e bas.dona rclnorso" e diz que é como se "tivesse contribuído para a violação do corpo
não se distinguem quando o assunto é amor. CACA /es Guermanres, como dc uma mulher morta (...), porque os móveis pareciam estar vivos e me
dizia Brichot, "as pessoas passam o tempo a considerar seus umbigos I'azar súplicas, como os objetos aparentemente inanimados das A/l/ e umcz
como se fossem o centro do mundo".óz Ali, a grande "virtude" era a
ríoffes, onde almas humanas estão aprisionadas, sofrendo martírios e
reputação; portanto, mesmo o mal era bem-vindo, desde que rendesse implorando a libertação' 66 Em JI/o/z#ouvaíiBç-e-A
TE(
l \'
{
124 A inocência e o vício
A inocência e o vício: d cõlé de c'Aez Prozlsf 125

nela, vê a Srta. Vinteuil incitar sua parceira a cuspir no retrato do pai e a 1 1. PAINTER, G. D. Op. clr.; p. 254.
chama-lo de "velho macaco", para excitar-se sexualmente.ó' 1 2. RORTY, R. CoPzfllzgePzcy,íroPzy, arzd se/fdari . Cambridge, Cambridge University
Ritual de expiação e profanação, o vício do homoerotismo é o vício de Press, 1989
um ./e que do outro fez o senhor e de si mesmo o escravo. Essa servidão, 1 3. ARENDT, H., As origens do fofa/í/arfsmo Ánri-ieml/exmo, ípzsfrumenfodepoder.
nutrida por amor e ódio, era simultaneamente dom e recusa. Proust deu ao Rio, Editora Documentário, 1979
Faubourg e à Combray a parte maldita de sua sexualidade, guardando para 14. PROUST, M. Op. clf.; p. 53 1.
si a beleza das lembranças eróticas, preservadas do desgaste pela dissimu- 15. PROUST, M. Op. clf.; pp. 153-154.
lação. Seus amores felizes vestiram a máscara heteroerótica para se libe- 1 6. ELMAM, R., Oscar }yl/de. São Paulo, Companhia das Letras, 1 989; p. 3 13
\ ?. Ibid.
rarem eternamente da conspurcação. Ao vencedor, as batatas; aos
1 8. /bjd.
vencidos, a recordação intocável dos prazeres e os dias.
Proust. como artista, de sua arte fez simulacro de uma vie dopz/zée; de 19. WEBER, E. Op. cír.; P. 20.
20. /bÍd., P. 97.
uma daquelas vidas "que não guardam nada para si, nem um só minuto, 21 . PROUST, M. Op. cír.; p. 81
nem um só prazer" já que "tudo, inteiramente tudo, é um sacrifício pelos 22. ÜÍd., P. 122
outros".6B Como homem, fez de sua vida uma paródia do que a tolice 23. PROUST, M. Op. c'ír.; p. 100.
mundana recomendava encenar. Ganhou a consagração da arte e qualquer 24. /bfd., P. 476.
coisa da vida, mas não logrou fazer de sua vida uma obra de arte. Talvez, 2S. PRENDI. , H . As origens do totalitarismo -- Anui-semitismo, instrlimento de poder.
porque este seja o sonho impossível do desejo humano. Proust, em todo C)P. cit.
caso, conhecia na carne o desencontro entre vida e amor. As coisas que 26. PR01JST, M. Op. c'íf.; p. 345.
esperamos nunca chegam a tempo. Ou, o que dá no mesmo, quando 27. ARENDT. H. Op. cÍf.
28. Ibid.
chegam, o tempo passou
Perto da morte, dizia à fiel Celeste Albaret, sobre o médico chamado 29. PROUST, M. Op. cíf.; p. 1 14.
30. /bjd., P. 429
para atendê-lo: "Como tudo o mais, chegará muito tarde'
3 1. WEBER, E. Op. cíf.; p. 172.
BIBLIOGRAFIA 32. Ver COMPAGNON, í/z PROUST. OP. cír.; P. Xy.
33. /bíd., PP. 29, 63-64, 91, 94, 95, 192, 300, 343, 344, 356, 450, 454 etç.
34. WEBER, E. Op.c'ir. PERROT, M.; Op.c'ír.; 1991
1. PAINTER, George D., Adarce! Prousf. Rio, Guanabara, 1990; p. 484.
2. Ibid. 35. PAINTER, G.D. Op. cjr.; P. 144.
3. Cit. por COMPAGNON, Antoine, [/z PROUST, M., Sodome ef Gomorrhe. Pauis, 36. COSTA, J.F. "Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo". Conferência
Gallimard, 1989; p. XXXI feita em São Paulo e Curitiba, no Seminário sobre Eríca, organizado pelo Depar-
tamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, 1991, inédito
4. Ibid.
5. GIDE, A. JourrzaZ, /889-/939. Paras, Gallimard, 1948; p. 694. 37. RIVERS, J. E. "The myth and science ofhomosexuality in A !a rec/zercAe d femps
perda", in Homosex a/irias apzd f'repica /ilerarure; Ed. George Stambolian e Elaine
6. /bld., P.705.
Marks. lthaca and London, Comell University Press, 1 979; pp. 262-278.
7. /bld., P. 692.
8. GAY, P., A paixão !ema. A experiência burguesa da rainlm Vitória a F'reüd. São 38. ALTER, R. "Proust and the ideological reader", in SaZmagu/zdí; n' 58-59, outono
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39. PAINTER, G. D. Op. cíf.; p. 614.
9. WEBER, E., Frarzça.#n-de-síêc-/e. São Paulo, Companhia das Letras, 1988; PER-
ROT, M. "Funções da família", in História da vida privada. Op. clr.; pp- 105 121 40. HUNT, L., "Revolução Francesa e vida privada", Irz Hfsfória da vida privada. Op.
1991 ; MARTIN-FUGIER, A., "Os ritos da vida privada burguesa", fn Hlsíória da
clr.; PP- 21 23, 1991; HALL, C., "Sweet Homo", in Hl:fór/a da vida privada. Da
vida privada. Op. cír.; pp. 193-203, 1991; GAY, P., A paixão ferra. Op. cif. revolução.#a/acesa à Primeira Guerra, tomo 4, coleção dirigida por Philippe Ariês
e Georges Duby. São Paulo, Companhia das Letras, 1991 ; pp. 53-93.
10. GAY, P. Op. c'if.; p. 47.
41. PROUST, M. Op. c'ir.; P. 248.
1 26 A inocência e o vício

42. PAINTER, G.D. OP. cír.; P. 405.


43. /bíd., P. 407.
44. PAINTER, G. D. Op. c'íf.; P. 390
45. PROUST, M. Op. clf.; P. 520 522.
46. ibid.
47. PAINTER, G. D. Op. cj/.; P. 217.
48. /bid., P. 219. O homoerotismo diante
49. /bld., P. 220.
50. PROUST, M. Op. clr.; P. 31 1
da AIDS
5 1 . /bfd.

52. /bíd., PP. 31 1-3 12.


53. ibid.
54. /bfd. PP. 15, 246, 343, 437.
55. PAINTER, G. D. Op. clr.; pp. 49, 63, 93 1 26, 352
56. /bfd., P. 137.
SI. Ibid. No início dos anos 80, a AIDS veio a público como "doença de homos-
58. /bfd., P. 132. sexuais". Hoje essa crença caiu em desuso. O avanço do conhecimento
59. PROUST, M. Op. cif.; P. 214. científico e a alteração do perfil epidemiológico da síndrome, se não
60. PAIN'lER, G.D. Op. cír.; p. 416. romperam, pelo menos afrouxaram os laços ideológicos com o chamado
61. /bid., P. 551. 'homossexualismo". Entretanto, essa remodelagem do imaginário social
62. PROUST, M. Op. c'jr.; P. 346. sobre a AIDS trouxe um outro problema. Como observou, cntrc outros,
63. PROUST, M. Op. c'jf.; P. 415. Richard Parker, a AIDS não é uma "doença de homossexuais", como quis
64. /bld., P. 113. o preconceito, mas continua sendo uma questão importante para os homens
65. PAINTER, G.D. Op. cír.; P. 607-608. game-sex orlenfed. Portanto, neste trabalho, voltamos a discutir o tema.
66. PAINTER, G. D. Op. cír.; p. 671.
Pensamos que, entendendo melhor as dificuldades emocionais dos sujeitos
67. /bid. pp. 49 e 329.
envolvidos em tais situações de vida, podemos rever preconceitos quanto
68. /bid., P. 242.
ao homoerotismo masculino e, por essa via, lutar de maneira mais eficiente
contra a transmissão do vírus da AIDS. Em nossa opinião, o risco de
infecção entre indivíduos homoeroticamente inclinados está diretamente
relacionado à maneira como lidam com o preconceito dirigido confia suas
preferências sexuais. E o ponto de vista que procuraremos sustentar ao
longo deste estudo.
Como ponto de partida, tomamos a hipótese de que a crença na
existência de tina sexualidade homossexua! naturalmente dada, fosse ela
ins/influa ou psfco/ógica, era indissociável da crença fra/zs-#fsfóríca oü
ní/flora/mente anil'erga/ que, por sua vez, estava vinculada à maneira
l)rcconceituosa como as práticas homoeróticas eram pensadas, vividas e
.tgidas" pelos sujeitos nelas implicados. Supúnhamos, além do mais, a
partir de certas observações preliminares, que a posição de constran-
gimento psíquico e social dos indivíduos rotulados de "homossexuais:
iiltcrvinha no modo como reagiam ao risco de infecção pelo HIV. No curso
128 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 129

do trabalho, essa hipótese revelou-se mais complexa e matizada do que Habermas, 1981; Lasch, 1979a, 1979b, 1986; Luhmann, 1990; Sennett, 1978
imagináramos. Contudo, suas linhas de força mantiveram-se de pé, con- Sennett e Foucault, 1981).
firmando a visão geral que tínhamos do problema.
B Ao contrário, o grupo de entrevistados era composto por pessoas sobretudo
pertencentes àbaixaclassemédia; alguns eram desempregados ou prostituíam se
Descrição do universo investigado e breves profissionalmente, possuíam nível de instrução elementar ou secundária, quase
considerações metodológicas sempre eram oriundos do meio dual ou de pequenas cidades do interior, tinham
tido uma educação familiar religiosa e voltada para valores tradicionais, tinham
Tomamos como material de nossa investigação dois universos represen- poucos vínculos familiares fortes na atualidade e apresentavam pobreza
tativos do problema. O primeiro foi constituído por indivíduos atendidos vocabular no que conceme à linguagem do intimismo sentimental.
em consultório de psicanálise. Tratava-se de dezessete homens, com idade A segunda característica da diversidade concernia à percepção da inclina-
variável entre 18 e 43 anos e que procuraram atendimento psicanalítica ção homoerótica. Os clientes, na maioria, percebiam o desejo homoerótico
após o período de difusão pública do aparecimento da AIDS, ou seja, a como fonte de conflitos e exprimiam claramente esse incómodo. Os
partir de 1981, com a queixa de conflitos em relação à "homossexua- entrevistados, em contrapartida, apresentavam o problema de maneira
lidade". O segundo universo era composto por 25 entrevistas feitas com ambígua: por um lado, afirmavam não ter problemas com o "homos-
homens que mantinham regularmente práticas homoeróticas e que, na sexualismo"; por outro, em vários trechos das entrevistas, falavam do
maioria. classificavam-se como "homossexuais". Essas entrevistas foram 'homossexualismo" como um problema. Ou seja, diferiam quanto à ma-
feitas pelo antropólogo Richard Parker, com o objetivo principal de neira de aceitar a idéia do conflito embora admitissem sua existência.
mapear o tipo de informação sobre o HIV e de identificar as atitudes Diante dessa diversidade, pode-se levantar objeçõcs quanto à validade dc
adotadas diante da percepção social da doença e do risco de contaminação. um trabalho que considere em bloco os dois grupos, para efeito dc análise
A idade dos entrevistados variava de 1 7 a 30 anos, em média, e apenas um das relações entre consciência da idem/Idade /tomo.vsexlza/ c ati tudcs diante
tinha 67 anos.
da AIDS. Vamos limitar-nos a levar em conta aquelas mais relevantes para
No que dizia respeito à diversidade profissional, os grupos assemelha- a pesquisa.
vam-se internamente. Em ambos havia grande diversidade de ocupações
laborativas. No entanto, os entrevistados da mostra antropológica afir- Primeira objeção
maram ocupar, no mais das vezes, posições subalternas no setor de
serviços onde todos trabalhavam, enquanto os clientes de consultório eram Pode-se argumentar que a multiplicidade dos universos discursivos impõe
profissionais liberais, estudantes de cursos superiores, ou ocupavam, obstáculos intransponíveis à redução analítica de seus temas. Os dois tipos
também na maioria, cargos de chefia nas respectivas empresas- de discurso não seriam comparáveis por diversos motivos. Em primeiro
Do ponto de vista teórico-metodológico, a uniformização dos dois lugar, as diferenças sócio-culturais não permitiriam a homogeneização de
universos é problemática. Pode-se objetar que as diferenças entre os códigos interpretativos sobre a questão do homoerotismo e das idéias de
grupos inviabilizam qualquer conclusão válida para ambos. Os grupos, de prevenção. Em segundo lugar, a questão da identidade homossexual,
fato, apresentavam as seguintes diferenças nas características socio- mesmo supondo-se que os dois grupos possuíssem uma mesma forma de
culturais de seus membros:
representação do fenómeno, poderia não ser igualmente problemática ou
e O grupo de clientes de psicanálise era fomtado, na maioria, por pessoas oriundas relevante para ambos. Dependendo da rede sócio-cultural onde estivessem
das classes médias urbanas, com níveis de instrução superior, com tradição de inseridos os indivíduos, e do próprio momento histórico ou pessoal que
educação familiar agnóstica e liberal, com vínculos familiares anuais estivessem vivendo, a importância dada à questão do homoerotismo po-
razoavelmente fortes; possuíam um vocabulário descritivo dos sentimentos deria variar. Assim, por exemp]o, como notou Weeks(1 99 ] , p. 79), muitos
privados rico e marcado pela cultura individualista da intimidade, no sentido dado homossexuais negros norte-americanos preferem identificar-se primaria-
a esta noção por vários autores (Berger, 1978; Costa, 1 979, 1 984; Figueira, 1 98 1;
mente como b/ackx e não como ga.ys, e alinham-se preferencialmente
1 30 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 131

como b/acks quando se trata de assumir posições políticas. O mesmo, Justificação metodológica
mu/afãs m z/zrandls, poderia ocorrer com o grupo dos entrevistados, em
relação ao dos clientes. Em terceiro lugar, nos depoimentos colhidos junto Neste tópico, não discutiremos exaustivamente questões de método. Resu-
aos entrevistados, a questão do homoerotismo estava subordinada à ques- miremos tais questões ao mínimo necessário à fundamentação e à plausi-
tão central da prevenção. As respostas, portanto, tenderiam a problemati- bilidade de nossas opiniões. A bibliografia citada permitirá ao leitor
zar a questão homoerótica nessa perspectiva, o que não aconteceria com universitário aprofundar os temas, caso seja seu interesse. Passemos,
o grupo de clientes, prioritariamente ocupados com o problema da incli- então, ao essencial. Se definirmos método como conjunto de proce-
nação homoerótica em si. dimentos ordenados, repetíveis e corrigíveis, ou seja, como conjunto de
descrições coerentes e consistentes de fatos ou eventos, coisas ou estados
Segunda objeção de coisa que se pretende conhecer de maneira sólida, podemos justificar
nosso estudo a partir de várias perspectivas.
Neste ponto, pode-se argumentar que a posição dos interlocutores no
diálogo sobre o homoerotismo também não é uniformízável. Os entre- Resposta à primeira objeção
vistados lidavam com entrevistadores que se colocavam em posição simé-
trica diante do problema e, além disso, procuravam informa-los e No que diz respeito à primeira objeção, podemos dizer que, não obstante
ajuda-los, seja com o objetivo de combater o preconceito em relação ao a diversidade de origem ou pertencimento sócio-cu]tura], todos os indi-
"homossexualismo", seja em relação à prevenção da AIDS. No caso dos víduos analisados apresentavam :
clientes, a posição do psicanalista é completamente diversa, o que, com
toda probabilidade, tenderia a induzir uma outra modalidade de discurso e a mesma crença na existência de uma idenrfdade Aomossexua/ ú/lIGa e a teima
capacidade de reconhecer essa identidade como setüo socialmente desapro fiada
por parte do cliente. e marcada pela exclusão;
Ao lado disso, pode-se também argumentar razoavelmente que o
cliente de psicanálise é alguém que, pela história social ou psíquica, e a mesma capacidade de perceber essa identidade como senda ou fe/zdo sido m
apresenta conflitos muito maiores em relação ao homoerotismo e já vai probtewm para o equilíbrio psicossocia! de suas persotiatidades.
procurar atendimento buscando ajuda para um problema que não consegue Ou seja, ao contrário do que sugere Plummer (1981), por exemplo, a
resolver. Ora, esse lugar é completamente diferente daquele ocupado por percepção diferencial do fenómeno homoerótico, imposta aos indivíduos
quem está sendo solicitado a falar da identidade homossexual, não por sua pela diversidade sócio-cultural, não se traduz na prática nem pelo desco-
própria iniciativa ou por considera-la um problema, mas por solicitação
nhecimento da noção de " homossext+alidade", nem pe\o desconhecimento
do interlocutor. No serríng analítico, a demanda é do cliente; na entrevista
ou negação de que a "homossexualidade" é um problema. À. vaúação
antropológica, é do entrevistador.
perceptual existe, mas dentro de limites estreitos. Nenhum dos sujeitos
escutados desconhecia o prego/zcello con/ra o /zomoero/esmo. Todos sa
I'erceira objeção biam, além disso, o que era ser "um homossexual", e como o fato de "ser
homossexual'' os obrigava a enfrentar situações sociais e psicológicas
Finalmente, a terceira objeção poderia ser levantada contra o uso mesmo
conflitivas. Mesmo quando a linguagem descritiva de comportamentos e
da teoria psicanal ítica na abordagem dos dois universos . Pode-se perguntar sentimentos homoeróticos dispensava o uso de termos como homos-
como a teoria psicanalítica pode ser de utilidade na abordagem de entre- sexualismo, homossexualidade e homossexual, conforme mostra Parker
vistas antropológicas, onde está ausente o famoso tripé que justifica
( 1 989a, 1 989b, 1 990), ainda assim os sujeitos eram perfeitamente capazes
teórico-clinicamente a leitura psicanalítica do fato homoerótico, isto é, a de empregar corretamente tais termos e de qualificar o "homos-
livre associação, a transferência e a interpretação. Sem isso, o que poderia sexualismo'' como uma faceta problemática de suas identidades, desde
fazer a psicanálise com entrevistas antropológicas? que, evidentemente, reconhecessem a coincidência entre suas práticas
132 A inocência e o vício O homoerotismo diante da A]DS 133

sexuais e os atributos contidos na extensão e significação da palavra política desta teoria. Se os significados são inteiramente desenvolvidos na
;homossexualismo" interação social, um ato de vontade coleüva pode transfomiá-los. Isto conduz,
Obviamente, a utilização da noção de proa/ema pode parecer trivial e como sugeriu Mary Maclntosh, à política do "voluntarismo coletivo". Na teoria
aplicável a inúmeros outros predicados da personal idade. Mas, no contexto como na prática, o interacionismo ignorou a localização histórica de certos tabus.
em que a usamos, praz)lema tem o sentido de aspec/o da Ide/zfídade Ele pára precisamente no ponto onde a teorização parece essencial; no ponto da
socialmente desaprovado ou de traço da personalidade que, uma vez detemünação histórica e da estruturação ideológica, na criação da subjetividade.
mandesto em desejos ou fitos, não tem como ser acolhido satisfato- (Weeks, op. cíf., p. 28.)
rlamenfe pe/oi Aábífos cu/rurais domlnanres. O "homossexualismo" é As observações de Weeks são fundamentais. De fato, a possibilidade
problemático na medida em que, para ser aprovado ou ro/arado, precisa teórica da pluralização de identidades não pode fazer esquecer nem as
promover uma alteração nos códigos morais existentes ou na hierarquia
'questões de poder e autoridade estruturais", nem por que "os genitais
de valores que o condenam a uma "posição inferior'
continuam a ser o foco da imaginação sexual", nem a localização histórica
Portanto, em nosso entender, a convicção imediata e partilhada sobre
dos tabus sexuais, nem, por último, a determinação histórica e a estru-
a natureza problemática da "homossexualidade", por parte dos dois gru-
turação ideológica que estão na base da criação da subjetividade. Por isso,
pos, requer um acordo tácito e geral sobre a valoração moral do homo-
erotismo. A crença básica de que todos os seres humanos dividem-se em a nosso ver, a própria idéia de "opção" ou "escolha", no que diz respeito
homossexuais" e "heterossexuais'' é um pressuposto descritivo-valo- à questão da "identidade homossexual", deveria ser substituída pelo termo
rativo de onde partem os sujeitos, para, em seguida, reavaliarem ou não o mais genérico de inclinação. Opção e escolha remetem inevitavelmente a
teor do preconceito. Tal crença não é alterada "espontaneamente" pela "livre deliberação" ou "voluntarismo", termos que falsciam a rcalidadc
diversidade sócio-cultural. Ela só passa a ser tematizada em seus princí- das preferências ou inclinações sexuais. Mesmo no caso da escolha da
pios quando o indivíduo, na idade adulta, tem a possibilidade de expor'se 'identidade gay", predominantemente marcada pelo carátcr optativo c
ao pensamento crítico sobre a questão. Em poucas palavras, o que existe consciente da identidade, sobretudo nos círculos militantes. é difícil ima-
de comum na apreensão perceptivo-interpretativa do homoerotismo é ginar um movimento autónomo de deliberação no fundamento da escolha,
moral e psiquicamente mais relevante, mais pregnante e mais decisivo para desconsiderando todo o jogo de forças e toda a dinâmica de resistência,
a vida afetivo-sexual dos sujeitos do que aquilo que existe de diferente. luta e remodelação das categorias de preconceito envolvidos na construção
Acreditamos que as observações de Weeks, sobre os limites da abor- daquela identidade. O próprio Weeks, apesar de usar o termo "escolha'
dagem interacionista em sociologia, ilustram os equívocos da posição de mostra que a palavra, aqui, não é empregada no sentido de opção livre de
princípio que afirma uma possibl/idade p/ausít,e/ -- a da "p/uraZlzação coerções, mas apenas no sentido de apropriação de modelos de identidade
da ídenrídade" (Plummer, op. cfr., pp 57-60) -- mas falha quando se ü'ata disponíveis, que são culturalmente arbitrários e não biologicamente ne-
de explicar a hegemonia de certos modelos de construção identitária. cess anos .

Mas o interacionismo não tem sido capaz de teorizar as variações sexuais que 'Essas identidades não são expressão de essências secretas. São autocriações,
pode tão habilmente descrever, nem de conceituar as relações entre possíveis mas criações sobre fundamentos; não livremente escolhidas, mas arranjadas pela
padrões sexuais e outras variáveis sociais. Embora reconheça as disparidades de história. Desse modo, identidades homossexuais ilustram o jogo de crenças e
poder entre os vários grupos e a importância do poder em estigmatizar, freqüen- oportunidade, necessidade e liberdade, poder e prazer."(Weeks, ibid., p. 83.)
temente tem dificuldades em teorizar questões estruturais de poder e autoridade.
Do mesmo modo, o interacionismo não se preocupou em investigar a questão da Uma coisa, portanto, é dizer que a preferência homoerótica não é uma
detemünação, no campo da sexualidade. Ele é incapaz de teorizar porque, não essência, uma condição, um destino psicológico e biológico, e sim uma
obstante as infinitas possibilidades de sexualização sugeridas, os genitais con- possibilidade psíquica e cultural de expressão do erotismo; outra coisa é
tinuam a ser o foco da imaginação sexual, e porque existem, nas várias épocas, afirmar que o homoerotismo é uma "escolha" ou uma "opção", no estágio
mudanças na localização dos tabus sexuais. E existe também uma consequência atual de nossas teorizações ou leituras do assunto. Como quer que seja, o
1 34 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 135

fundamental, no texto de Weeks, são as questões que ele próprio levanta, século XX. Essa literatura, por sua vez, sobretudo a de Gide e Proust,
e tenta resolver, no conjunto de seu trabalho. Inspirado em Foucault, utilizou abundantemente o material médico e antropológico do século XIX
Weeks (1977, 1985, 1986, 1991) tem chamado atenção para a hetero- na definição do perfil moral e das tendências sexuais dos "homossexuais'
geneidade de fatores histórico-culturais, responsáveis pela invenção do ou "invertidos". SÓ recentemente a imagem social do ''homossexual oito-
homossexual no século XIX. Partindo do método histórico-genealógico e centista" passou a ser contestada por novos modelos de interpretação do
de informações sócio-antropológicas, esse autor vem discutindo todo o homoerotismo.
complexo prático-discursivo que, pondo a famiü ia conjugal e a sexualidade Assim, acreditamos que não se sustenta a objeção levantada contra a
reprodutiva como centro da identidade do indivíduo burguês, realçou o pretensão de analisar conjuntamente os universos sociais distintos sob
valor da sexualidade na definição dessa identidade, criando, ao mesmo alegação da incomparabilidade de seus códigos descritivos e interpre-
tempo, o código da nomia e do desvio sexual. Ou, como sintetiza Plummer: tativos do fato homoerótico. Essa alegação é apriorística, ou, no melhor
'A família enquanto instituição social não condena, ela própria, a hemos dos casos, não se aplica ao contingente de indivíduos analisados na
realidade urbana brasileira atual .
sexualidade, mas, por meio de sua mera existência, implicitamente fornece um
modelo que toma a experiência homossexual inválida." (Plummer, cll. por
Weeks, fbfd., p. 38.) Resposta à segunda objeção
Com base em Weeks, além dos trabalhos de Boswel1 (1980), Foucault
(1983, 1984, 1985, 1989), Greenberg (1988), Halperin (1990) e outros, Essa possível objeção também pente de um pressuposto discutível. Inde-
pendentemente do objetivo que orienta a fala sobre a "homossexualidade"
sugiro que a admissão da existência de modelos hegemõnicos, imperativos
e relativamente uniformizantes de aquisição de identidades sexuais con- de quem tomou a iniciativa ou colocou-se na posição de pedir ou exigir
uma fala desse tipo, independentemente, enfim, da simetria ou dissimetria
traria a previsão teórica de uma pluralização de identidades abertas a
dos interlocutores no diálogo, o que pudemos notar foi a recorrência de
opções individuais. Tais opções são restritas, e a criação de novos modelos
um certo número de características descritivas, concernentes à gê/pese e
identificatórios depende menos de situações sócio-culturais localizadas do
/ulzção da homossexualidade na economia psíquica e social dos sujeitos.
que de mudanças mais gerais nos e//zoi históricos e culturais. Embora
Além de constatarmos, como já afirmamos, a participação comum na
admitamos a virtual infinidade expressiva do potencial erótico dos sujei-
crença de que existe uma "identidade homossexual", e na avaliação das
tos, todos os estudos comparativos de que dispomos mostram que as
inclinações homoeróticas como um "problema", os indivíduos dos dois
diferentes épocas foram dominadas por ideais normativos de realização universos tinham concepções bastante semelhantes sobre a origem de suas
ou perfeição sexuais que se impuseram aos indivíduos, malgrado a diver-
homossexualidades" e da natureza conflitiva dessas inclinações, em
sidade de suas posições sócio-culturais.
relação aos ideais Aererossexuaís. Todos sem exceção atribuíam duas
Por meio da noção de imaginário social e individual, discutida em origens ao "homossexualismo", ou sela, uma origem "natural", fosse ela
alguns de nossos estudos (Costa, 1988, 1989a, 1989b, 1991a), pensamos de natureza "instintiva" ou orgânica, e uma origem psicológica, fosse ela
que é perfeitamente aceitável criticar a idéia essencialista e universalista concebida sob o modo do trauma sofrido por uma sedução precoce ou sob
de uma "identidade homossexual", sem tornar o esquematismo teórico da
o modo do defeito de educação familiar: família desestruturada, pai ou
'pluralização" e seu correlato da "opção" ou "escolha" uma construção mãe hipercontroladores, ou omissos, ou repressivos, ou muito liberais, ou
imaginária obrigatória na realização da identidade sexual dos sujeitos. muito moralistas etc.
No que tange ao homoerotismo, seguindo pistas de Weeks (1991, pp. A ênfase em um dos dois modelos variava conforme o nível de
38-39), pudemos assinalar, por exemplo, que o imaginário social tecido instrução ou conversão à linguagem do intimismo. Os mais instruídos e
sobre as supostas características do "homossexual" foi construído em boa treinados na linguagem da intimidade inclinavam-se para a "teoria do
medida a partir da literatura ficcional dos finais do século XIX e início do
trauma" ou da influência da personalidade dos pais em suas próprias
1 36 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 137

educações. Os argumentos empregados para descrever a gênese da "ho- siderando essa realidade torna-se difícil entender o modo de suas reações
mossexualidade" eram, no mais das vezes, tomados de empréstimo ao frente às práticas sexuais de risco.
vocabulário psicanalítico, divulgado pelos meios de comunicação de mas- No que tange ao conflito com os ideais heterossexuais, todos, sem
sa. Os menos instruídos, que constituíam a massa dos entrevistados, exceção, afirmaram tê-lo vivido em uma outra época da vida. O que não
invocavam quase exclusivamente a causalidade "instintiva" (sob a mo- significa que esse conflito sempre revertesse em ca/pa, vergonha ou medo,
dalidade de tendência natural ou "tesão" espontâneo por homens desde forma majoritária de sua expressão. As vezes, ele assumia apenas a forma
cedo) ou o hábito derivado de seduções precoces, por adultos ou crianças vaga de sentimento ou percepção do "desvio", de uma diferença contrária
mais velhas. Rarissimamente vinha à tona a idéia de que a personalidade à norma, e que singularizava a preferência sexual do sujeito como algo não
dos pais era um fator "causal" na gênese da "homossexualidade". Quando aprovado ou reprovado, na acepção dada ao termo por Boswell.
referiam-se aos pais, era apenas para citar como eles reagiam à manifes- Não pretendemos mostrar com isso que o universo de experiências ou
tação da "homossexualidade" no sujeito. isto é, criticavam ou não os pais fantasias sexuais dos indivíduos fosse o mesmo. Pelo contrário, o que
por serem liberais ou repressivos diante do "homossexualismo" consu- chamou-nos a atenção foi justamente o colzfrasfe e/zfre a riqueza de
mado, e não porque, dados os traços de suas respectivas personalidades, experiências e .fantasias e a drástica redução dessa diversidade, primeiro,
teriam consciente ou inconscientemente "provocado" o "homossexua- a apenas duas ordens de motivos ou "causas" e. segundo, a idênticos
lismo" dos filhos. con!/7ífoi em re/anão ao idecz/ Ãeferossexua/. Dito de outro modo, qualquer
Essa constatação elucida grande parte da motivação para a busca de que fosse o teor da experiência ou fantasia, as "causas" eram sempre as
atendimento psicanalítico, característica do primeiro grupo Ao contrário mesmas e os conflitos psíquicos sempre decorriam, em maior ou menor
do que defendem um certo senso comum sociológico-psicanalítico, ou intensidade, da comparação com o ideal de realização heterossexual.
mesmo alguns militantes gays, os indivíduos que procuram psicanálise não Naturalmente, isso não quer dizer que todos os sujeitos, do grupo de
o fazem porque apresentam maiores conflitos com suas tendências homoe- clientes como do grupo dos entrevistados, apresentassem, na atualidade,
róticas. Nem sempre o nível de conflito mostrado por esses sujeitos é maior conflitos similares com suas "homossexualidades" ou tivessem aspirações
que o conflito vivido por aqueles que nunca buscaram ou buscarão aten- à realização heterossexual. Alguns deles acreditavam ter superado esse
dimento psicanalítico. Acontece que o recurso à psicanálise articulase no tipo de dilema e desejavam apenas viver uma vida afetiva e sexual
mesmo universo de sentido que formula a "gênese psicodinâmica do satisfatória com o parceiro do mesmo sexo. O que quero dizer é que,
homossexualismo". Isto é, porque atribuem as próprias inclinações ho- mesmo nesses casos, em algum momento houve conflito entre a inclinação
moeróticas a fatores como a dinâmica sexual inconsciente ou consciente homoerótica e o ideal de conduta heterossexual, ainda quando tal conflito
dos pais, os sujeitos vêem na prática psicanalítica uma possibilidade de tenha-se dado no passado infantil ou adolescente, sem se prolongar na
entender ou viver melhor com o que sentem. O conflito, por conseguinte, idade adulta.
não é maior ou menor: é diferente! Enquanto os sujeitos menos treinados Estes dados fazem-nos admitir que a hipotética diferença de discursos
no código do intimismo sexual e amoroso têm tendência a imaginar a dos dois grupos, devida à diferença dos locais de sua produção, pode ser
homossexualidade" como um "destino instintivo" ou como um "hábito' válida para ouü'os problemas. No que diz respeito à fala sobre o "homos-
que pode ser corrigido pela força de vontade ou pela criação de novos sexuajismo", o que notamos foi uma surpreendente homogeneidade de
hábitos, os sujeitos convertidos à linguagem da interiorização imaginam crenças quanto à existência de ilha " iderltidade homossexual" , à gênese
que só pelo acesso às motivações inconscientes poderão lidar melhor com dessa identidade e ao potencial con$itivo que ela carrega, no comporta
o que os aflige. Essa constatação é importante, pois suas conseqüências com os /deaís de co/zdu/a /zelerossexual. Também aqui, dizer que o
estendem-se além da mera ordenação taxonâmica dos "homosse- contexto do diálogo pode infletir quadros de percepção básicos, deco-
xuais". Sem leva-la em conta, podem-se adorar posturas preconceituosas, dificadores do "fenómeno homossexual", é apenas apontar para uma
passando-se a estigmatizar esses indivíduos como incapazes de "assumir possibilidade teoricamente plausível e não necessariamente atualizável em
verdadeiramente" suas identidades homossexuais. Além do que, descon- nossa cultura.
38 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS
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1
139

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Resposta à tercei. discursos aparentes que exibem certas formas de expressão do desejo. E
claro, tal teoria também está sujeita a críticas. Mas, adotando-a e jus-
A terceira objeção parte igualmente de l)rincípiõg''Gele:tlU
parte igualmente priiiiípii59"qaE:ttarl5veis. Ela se tificando-a estamos livres dos compromissos teóricos imputáveis à visão
apóia numa leitura da psicanálise fundada em dois argumentos. O pri tradicional da psicanálise.
moiro, mais pontual, diz respeito à natureza da interpretação psicanalítica. Nossa visão da psicanálise, por conseguinte, baseia-se no pressuposto
Poderíamos sintetiza-lo da seguinte maneira: dado que a interpretação para de que, pela análise das falas ou discursos manifestos, podemos dar conta
ser válida necessita do assentimento do indivíduo analisado, como validá-
da maneira pela qual o sujeito estrutura a imagem do eu ou sua auto-
la fora do diálogo que Ihe é peculiar? Se, para que se possa considerar uma
imagem, da maneira como sentimentos, pensamentos, emoções, aspira-
interpretação como correra é preciso: ou que o cliente concorde explicita- ções etc. entram em conflito ou conciliam-se com essa imagem, da maneira
mente com ela; ou que o analista constate a alteração do quadro sintomá- como essa imagem relaciona-se com as outras imagens do sujeito, que
tico; ou que note um remanejamento da posição subjetiva do sujeito no ocupam no psiquismo o lugar e a função dos ideais e, por fim, da maneira
complexo fantasmático; ou que observe uma abertura para novas associa como a teoria pode ser operacionalizada, sem apelar para esquemas
ções, indício da circulação da cadeia inconsciente e da mobilidade do metafísicos sobre a "essência ou verdadeira natureza do desejo sexual"
equilíbrio narcísico; pois bem, se essas são precondições para a validação Este último aspecto é importante. Ele responde em parte à restrição
de uma interpretação, como legitimar o bem-fundado de um intervenção feita por Weeks à teoria psicana]ítica da sexualidade, em especia] à
psicanalítica fora do serríng? interpretação do "homossexualismo", com base em categorias universais
Essa versão da psicanálise não é totalmente desprovida de sentido. A como o complexo de Edipo, ou em idéias datadas, como a de que a
bem da verdade, ela é aceita por boa parte dos psicanalistas -- inclusive 'homossexualidade" reprimida pode transformar-se em paranóia, etc.
justificada a partir de inúmeros escritos de Freud e por numerosos (Weeks, 1991, pp. 29-32). Weeks dá a entender, com razão, que tais
pensadores não psicanalistas. É, no entanto, uma versão opcional e não concepções, além de admitirem a existência de uma "homossexualidade'
compulsória. Seu pressuposto básico é o de que a psicanálise é uma forma ou de "um desejo homossexual" único em extensão e significação, pro-
de hermenêutica, como nota Pontalis (1968), ou uma forma de auto-refle-
põem uma teoria genética do fenómeno que introduz, explícita ou
xão, como quer Habermas (1981), ou uma modalidade de introspecção, subrepticiamente, uma causalidade também única e universalizável. Ora,
como sugere Priest (1991), ou, por fim, uma modalidade combinada de partindo do princípio da estruturação lingüística do inconsciente, acredi-
todos esses elementos, que simplesmente atualiza a maneira como fun- tamos poder contornar esse obstáculo. Desde que não confiramos à noção
cionam os mitos, sem desfazer os equívocos mentalistas das teorias das de linguagem o caráter formal de um quadro transcendente prévio às
linguagens privadas, como bem criticou Wittgenstein(Bouveresse, 199 1). práticas lingüísticas empíricas, como no estruturalismo, e contentemo-nos
Entendida nesse sentido, de fato, a psicanálise não teria só dificuldade em em descrevê-la como o conjunto dos jogos da linguagem ordinária. Apoia-
justificar sua pretensão de analisar discursos proferidos fora do õe/flng; dos na crítica ao estruturaJismo linguístico feita por autores como Steuer-
teria dificuldade igualmente em justificar sua pretensão dentro do próprio
man(1985), Habermas(1987), Frank(1984) etc., e retomada por nós no
serrírzgl Ocorre que essa concepção da psicanálise funda-se na idéia de um campo da psicanálise (Costa, 1989c), admitimos que a linguagem do
inconsciente pensado sob o modo mentalista de uma "psicologia pro inconsciente nada mais pode ser que o conjunto de desejos expressos nos
funda", cujo substrato são redes de representações e regimes de fundo enunciados cotidianos sobre o sujeito e sobre os objetos aos quais está
namento que são o "negativo" das representações conscientes que temos sexualmente ligado. Tais enunciados dizem respeito às descrições, crenças
da nossa personalidade e de nossos conflitos psíquicos. Essa idéia vem ou razões que o sujeito sustenta com relação às sensações, emoções,
sendo criticada na psicanálise, mormente depois da obra de Jacques Lacan. sentimentos, atou e condutas definidos como sexuais. Em poucas palavras,
Com Lacan e sua teoria do ímagüzárlo e do ínconscÍerzfe esfr r rczdo coma postular a idéia do inconsciente como um fato lingüístico é procurar
rima /Inguagem, a psicanálise deixou de ser vista como uma pura arte da descrever as diversas modalidades de enunciação dos desejos sexuais,
interpretação de "conteúdos profundos" para sê-lo como análise dos considerando que tais enunciações só podem ser feitas a partir das cons-
r« 's n
140 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 14]

truções linguísticas preexistentes ou de inovações linguísticas que repre- que pertencem a certas disciplinas e outras, não. Quanto a isso, Popper
sentem novas formas de articulação do desejo no sujeito, ou seja, nos seus dizia,já em 1952:
laços discursivos com ouros sujeitos.
De posse desta idéia, estamos livres de qualquer filiação a teses 'Na verdade não é possível distinguir disciplinas em função da matéria de que
tratam; elas se distinguem umas das outras em parte por razões históricas e de
essencialistas, naturalistas ou transcendentalistas sobre a natureza do
conveniência administrativa(como a organização do ensino e do corpo docente),
desejo sexual e da linguagem. Como diz Rorty, citando Davidson, a em parte porque as teorias que fomlulamos para solucionar nossos problemas
propósito da Razão, somos apenas uma "rede de crenças c desejos" (Rorty, têm a tendência de se desenvolver sob a fomla de sistemas unificados. Mas essa
1988, p. 83). Partindo de tal convicção, limitamo-nos a descrever e classificação e essas distinções são superficiais e têm relativamente pouca
articular o deslizamento dessas redes, ou seja, a apontar para as expressões importância. Estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultra-
visíveis da contingência do sujeito, do desejo e da linguagem. Na prática passar as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina. Estou pronto a admitir que
isso implica em explicitar quais os códigos ou regras de construção de muitos problemas 'pertencem' de alguma fom)a a uma das disciplinas tradicio
enunciados sobre o desejo sexual e qual a dinâmica dos conflitos psíquicos naif, embora sua solução envolva as disciplinas mais diversas... Mas isso não
afeta meu argumento no sentido de que a classificação das disciplinas tem pouca
que se refletem na economia ego-narcísica do sujeito. O que é feito não
importância; que estudamos pub/amas, não disclp/frias."(Popper, 1972, pp.
somente a partir de Freud e Lacan, como também da literatura sobre a 95-96.)
natureza da linguagem privada, derivada de Wittgenstein (Bouveresse,
1971, 1973, 1987a, 1987b, 1991; Wittgenstein, 1982; Baker e Hacker, Popper, é sabido, discutia problemas da área das chamadas ciências exatas
1983, 1984; Hacker, 1986; Malcolm, 1986; McGinn, 1984; Budd, 1991) ou físico-químicas. Sua observação, no entanto, parece-nos ainda mais
e de um de nossos trabalhos sobre a questão do imaginário (Costa, 1 989). pertinente, quando tratamos das disciplinas das ciências sociais ou hu-
O segundo argumento da terceira objeção é mais geral e concerne ao manas, como se preferir. Nesse terreno, não precisamos de muito esforço
pressuposto da especificidade do conhecimento das diferentes discipl mas . para demonstrar a pouca consistência de reticências metodológicas do
Grosso modo, o argumento poderia ser resumido como se segue: se as gênero. Sem discutirmos amplamente o problema, o que fugiria ao nosso
disciplinas do conhecimento científico ou com pretensão a argumentações objetivo, restringiríamos nossas observações sobre o assunto aos pontos
racionais se estabelecem através da correlação entre método e objeto do fundamentais da argumentação de Richard Rorty (Rorty, em numerosos
conhecimento, como a psicanálise poderia alcançar objetos fora de seu trabalhos, encarregou-se de criticar as ilusões do conhecimento objetivo:
campo de artefatos metodológicos sem perder substância explicativa ou Rorty, 1970, 1980, 1982, 1983, 1984, 1988a, 1988b, 1989a, 1990). Com
elucidativa dos fenómenos estudados? Ou, apresentando o argumento de base na tradição pragmática norte-americana, esse autor criticou lon-
outra maneira, psicanalisar entrevistas feitas por antropólogos não signi- gamente a idéia que o conhecimento é um processo de representação
fica diluir o específico psicanalítica e reduzir indevidamente objetos e mental ou lingüística da "verdadeira" realidade objetiva. Em sua tese
métodos da antropologia ao campo da psicanálise? radicalmente anta-representacionalista, ele não só põe em xeque a idéia de
Essa questão foi, de certo modo, respondida quando discutimos. o que podemos conhecer as coisas tais quais são, fora dos vocabulários que
as definem, circunscrevem e lhes dão sentido, como vai mais adiante e.
argumento anterior. Estudar, do ângulo da psicanálise, materiais antro
pológicos, não quer dizer buscar os mesmos efeitos de uma análise com Dewey, diz que crenças não representam realidades, mas são apenas
'instrumentos para lidar com a realidade" (Rorty, 1 990, p. 2). E, lidar com
pessoal; quer dizer tomar os discursos dos sujeitos sobre suas sexualidades
e mostrar como eles podem ser vistos pela teoria psicanalítica. Na medida
a realidade, quando falamos de teorias sobre o sujeito ou seu mundo, é
simplesmente descrever, de um lado, como as crenças sobre os problemas
em que admitimos a presença do inconsciente na fala sexual do sujeito,
humanos surgem, firmam-se e articulam-se com outras crenças, e optar,
nada impede que se proponha uma leitura psicanalítica desses discursos. de outro lado, por um sistema de justificação de crenças baseado não no
Mas a resposta apenas tangencia a questão central da objeção. Em 'desejo de objetividade" mas no "desejo de solidariedade" (Rorty, 1 983).
última instância, essa objeção exprime a crença de que existem matérias O "desejo de objetividade" visa conhecer a realidade humana tal qual ela
142 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 143

é, independentemente do contexto histórico em que é apreendido; o O projeto moral dessa espécie de "epistemologia da solidariedade" pro-
desejo de solidariedade", ao contrário, é o que aceita a contingência de posta por Rorty culmina na redefinição do trabalho intelectual como
sua emergência histórica e busca tão somente o maior acordo inter- exercício do ironismo. Ironismo é o esforço imaginativo que busca dis-
subjetivo possível sobre a natureza ética de certas crenças sobre os ho- tanciar-se dos vocabulários finais em que tecemos nossas crenças sobre a
mens. Ou, como Rorty costuma exemplificar, é o desejo movido pela realidade. Ou, posto de outra maneira, é a recusa em considerar nossas
preocupação em identificar-se com a dor e a /zumiZAaçâo do o rro, pou convicções presentes como a última e a verdadeira palavra sobre o que
pando-]he sofrimento e estendendo tanto quanto possível "a referência do quer que estejamos tratando (Rorty, 1990). Porém, o que mais nos inte-
pronome nós" (Rorty, Ibid., p. 926). Em suas próprias palavras: ressa ressaltar na "antimetodologia" de Rorty é seu empenho em reafirmar
:0 modo metafísico]de alcançar a so]idariedade humanas é procurar algo que não existe conhecimento sem interesse e que o interesse essencial na
profundo em nosso seio que nos liga uns aos outros, mas que não nos liga abordagem do fato humano é fazer progredir moralmente os homens, no
meramente aos animais. Algo especinlcamente humano, o ter sido feito à imagem sentido da tolerância e aceitação das diferenças. Situando esse objetivo
de Deus, o ser racional ou algo deste género. O outro modo de alcançar a como ideal, Rorty, curiosamente, retoma as categorias centrais do pensa-
solidariedade humana é tomar-se consciente de que pessoas muito diferentes de mento de Freud sobre os fundamentos da cultura e do desejo de saber.
nós próprios, que usam vocabulários bastante diferentes dos nossos, podem sofrer Assim como Freud via, nos ideais culturais formas derivadas de laços
o mesmo tipo de dor que nós sofremos. Bom, tentemos desenvolver um pouco
narcísicos historicamente contingentes, Rorty também sugere que nossas
mais a diferença. A dor é algo que partilhamos com os animais. Não há nada de
muito misterioso nesse fato. Não precisamos de nenhuma soro sticação intelectual avaliações sobre as teorias que aceitamos como válidas ou "verdadeiras'
ou aculturação para o perceber. Mas uma das características da sociedade é que assentam-se em critérios derivados de padrões éticos, estéticos ou lógicos,
ela nos toma cegos à dor dos que não fazem parte dela, dos que não são um de historicamente arbitrários e tornados "necessários" pela sedimentação de
nós. Segundo a teoria que estou a apresentar a propósito, aqui devo muito à hábitos culturais. Essa constatação, a nosso ver, não só legitima a uti-
teoria moral de Wilfred Sellars -- o progresso moral, no sentido da progressiva lização da psicanálise na abordagem de temas como o que estudamos
realização da esperança liberal, consiste em alargar o sentido da palavra 'nós', agora, como a torna um instrumento válido para a análise do preconceito,
de modo que 'nós' significa originalmente algo como 'nós' aqui na cavema, da discriminação e das resistências opostas à vigência de um e/Aos cultural
depois significa todas as pessoas na caverna à nossa volta, depois significa 'nós' mais tolerante.
em contraposição às pessoas do outro lado do rio, depois significa algo como
Sendo assim, consideramos que querelas de métodos ou disputas por
nós' gregos em contraposição aos bárbaros, depois algo como 'nós' europeus
em contraposição a esses t/PzlermenscAerz do resto do mundo. Depois significa prioridades disciplinares sobre certos assuntos são questões secundárias.
algo como 'nós' ricos em contraposição aos pobres, às mulheres e aos negros. Na análise que propomos, importa-nos sobretudo ver como a psicanálise
Neste sentido, o progresso moral é uma questão de incorporar cada vez mais tipos pode ajudar a compreender em que medida a discriminação contra as
de pessoas num sentido de 'nós'; 'um de nós'. Assim, se pensarmos em algo práticas homoeróticas interfere ou não na atitude dos sujeitos ditos "ho-
como o Movimento para a Libertação da Mulher, o Movimento para os Direitos mossexuais" diante da AIDS ou do risco de infecção pelo vírus HIV.
do Homossexual, o Movimento dos Direitos Civis dos Estados Unidos, eu os
interpreto como sendo instâncias de progresso moral e instâncias de um crescente Aprendendo a tornar-se "homossexual"
sentido de solidariedade humana, não porque tenhamos descoberto algo profun-
do, como a racionalidade dos negros ou dos homossexuais ou.- os seus direitos
humanos, e sim, simplesmente, a sua suscetibilidade à dor. E uma questão de O primeiro aspecto a ser desenvolvido neste tópico é o da definição do
identificação imaginativa com sua posição, isto é, como é ser um bárbaro, uma sujeito "homossexual". Interessa-nos sobretudo saber como os próprios
mulher, um escravo, um homossexual, um negro etc. ser capaz de dizer algo indivíduos se rotulam e não como o observador, partindo de qualquer
como: 'Sim, poderia ter acontecido realmente', ou 'Estou a ver qual é a sensação' ponto de vista prévio, o define. Dentre as sugestões de Weeks, pensamos
ou algo desse gênero. Esse tipo de solidariedade humana, de aumentar a gama que existem dois enfoques interessantes do problema. O primeiro é o
de identificação emocional possível, parece-me ser totalmente compatível com enfoque genético. Nele trata-se de entender como, ao longo do desenvol-
o que designo por ironismo." (Rorty, ibid., pp. 105-106.) vimento sexual, o sujeito apropria-se da "identidade 'homossexual'" que
144 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 145

Ihe é oferecida pela cultura. Segundo Weeks, Plummer distingue quatro gozar eroticamente sem limites. Dito de outra forma, Freud construiu a
estágios no processo de aquisição desta identidade: "o da sensibilização teoria segundo a qual o desejo erótico, para existir, depende da eleição de
que equivale ao sentir-se diferente; o da "significação", quando ele ou ela uma parte do corpo de quem se deseja (o objeto parcial) e da pulsão parcial
atribui um sentido crescente a tais diferenças; o da "subculturalização a ele ligada, que, na busca de gozo, pode ir da posse à destruição do objeto.
que é o estágio do reconhecimento de si próprio através do envolvimento Com a teoria do acesso ao desejo pelo objeto parcial e da possibilidade
com outros; o de "estabilização", que é o estágio da plena aceitação dos sadomasoquista de gozar eroticamente, ele chegou à pulmão de morte. A
próprios sentimentos e modos de vida (Weeks, 1991 , pp. 79-80). pulsão de morte jaz no subsolo das práticas sociais e das montagens
Esse percurso, na verdade, é esquemático, e nem todos os sujeitos culturais que visam estancar o fluxo do desejo em direção ao gozo
obrigatoriamente precisam chegar ao estágio da "estabilização" para ad- absoluto, cujo término é a destruição do sujeito. Assim, as práticas lingüís-
quirirem consciência da "identidade homossexual". O mais importante, ticas, os hábitos culturais, os sistemas de regulação de trocas eróticas, em
entretanto, é que as etapas da sensibilização e da significação não são suma, todo o domínio do simbólico, como o denominou Lacan, seriam
cronologicamente diversas, como se pode pensar. Os indivíduos, ao or- barreiras erguidas por Eros contra Tanatos. Sentimentos como amor,
ganizarem a percepção da diferença de gêneros, isto é, da diferença carinho, ternura, preocupação com o parceiro, em resumo, toda a economia
sócio-sexual entre masculino e feminino ou entre meninos e meninas, psíquica e cultural da idealização amorosa do objeto faria parte da estra-
organizam de imediato a percepção da hierarquia de valores que leva à tégia inconsciente contra a pulsão de morte.
interpretação do contado homoerótico como algo "diferente", algo da Do mesmo modo, toda condenação moral aos alas e desejos de fazer o
ordem da exceção. De início, a relação homoerótica parece apontar sim- outro sofrer dores físicas e morais (humilhações) seriam construções de
plesmente para a descoberta da excitação sexual. Nessa etapa, o sentimen- linguagem opostas a essa mesma pulmão. Tais construções, modelando
to de que fazem algo proibido é igualmente válido parajogos sexuais com nossas subjetividades, ensinam-nos a como obter prazer sexual, sem
meninas. Porém, enquanto as relações heteroeróticas recebem um veto atentar contra a integridade física e moral do objeto de nosso desejo.
parcial dos adultos, ou seja, são proibidas só nessa fase da vida, as relações A essas diversas formas de interdição, permissão e prescrição de
homoeróticas recebem um veto total e absoluto. Logo que são descobertas condutas e desejos, chamamos ética. São as éticas, portanto, que regem as
pelos adultos (pais, responsáveis ou outras crianças mais velhas) são práticas sexuais e os desejos nelas implicados. As sexualidades são, assim,
descritas como indesdáveis e desqualificantes do ponto de vista moral. a expressão de arranjos lingüísticos, de formas de vida e de luta contra
Excitar-se sexualmente com uma pessoa do mesmo sexo é reprovável não Tanatos. E, por essas mesmas razões, são tantas quantas são as possibi-
só na infância, como também na idade adulta. Assim, a "sensibilização" e
lidades lingüísticas que temos de formula-las. Não existe, na perspectiva
a "significação" das relações homoeróticas vão praticamente juntas, pois psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou
ocorrem no mesmo período da descoberta consciente da sexualidade. Elas adequada a todos os sujeitos. As sexualidades são respostas da linguagem
se constroem ao mesmo tempo e são dependentes dos mesmos jogos de ou da cultura ao desejo de gozar sem interdições. Todas as sexualidades
linguagem. Em outras palavras, apõe/zder o q e é sexo é aprender ao instituídas, com seus valores e hierarquizações, são, para Freud, igualmen-
mesmo tempo o qüe é proibido e permitido em matéria de sexo. te "sintomáticos", na acepção psicanalítica do termo. Isto é, são defesas
Pode-se argumentar que tal afirmação nada mais faz do que repetir a organizadas contra a violência sadomasoquista e contra o gozo absoluto
conhecida gênese da sexualidade humana proposta pela psicanálise. Não do objeto parcial. As éticas sexuais representam os limites que nos são
temos objeções contra esse argumento. E, se não o sublinhámos sufi- oferecidos para que possamos ter prazer sexual, sem comprometer a vida
cientemente, foi por considera-lo irrelevante para o presente estudo. De do próximo e sem impedi-lo de, por seu turno, poder continuar sendo
qualquer modo, para evitar qualquer simplificação teórica, resumiremos sujeito do próprio desço, e não mero instrumento ou objeto do desejo do
brevemente o que entendemos como o núcleo do tema. outro
Para a psicanálise, pelo menos em sua vertente freudo-lacaniana, o Entretanto, não se deve entender o que foi dito como mais uma versão
fundamento da sexualidade encontra-se na disposição do sujeito para do naturalismo positivista que afirmava que o "homem é uma besta" ou
146 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 147

um "animal essencialmente destrutivo". A psicanálise diz que a própria jogos de linguagem que dizem respeito à interiorização dos critérios de
idéia de "homem"já é um primeiro obstáculo que a prática l ingüística opõe reconhecimento da "sensação de prazer", que, na infância, não passam pela
à pulsão de morte. Quando se admite que um sujeito é um "homem", tal aprovação dos adultos. O vocabulário sexual, conforme mostram os de-
sujeito, por definição,já foi retirado da imediatez biológica e inscrito n uma poimentos dos entrevistados pela autora, é estabilizado em suas regras de
cultura que, para existir, tem que proteger-se da destruição. uso pela caução de outras crianças. Essa característica é do maior interesse.
O importante para a psicanálise não é dizer que o homem é "por se levarmos em conta o peso afetivo que a criança investe na palavra do
natureza" bom ou mau. O homem, disse Hannah Arendt, só existe no
adulto, sobretudo na dos pais. Em segundo lugar, os termos da linguagem
plural. Não existe uma "natureza humana"; existem condições humanas. do erotismo, ao contrário dos demais termos do vocabulário das "sensa-
No vocabulário psicanalítico, o que é central é a constatação da presença, ções privadas", não são, pelos motivos alegados, semanticamente fixados
em todas as culturas conhecidas, da possibilidade constante que tem o por meio de exemplos de condutas públicas repetíveis e reconhecíveis em
sujeito de gozar com o sofrimento ou a destruição, e da presença concomi-
sua identidade de significado. Os adultos, em nossa cultura, por força do
tante de regras culturais que protegem um ou mais sujeitos da crueldade e sistema de interdições que Ihe é própria, não mostram jamais ates como a
do desejo de morte de outros. masturbação, o coito ou quaisquer outras práticas sexuais, como exemplos
Assim sendo, por reconhecer a arbitrariedade dos valores morais atri- do uso corneto das expressões "sensação sexual", "prazer sexual", "orgas-
buídos às práticas sexuais, a psicanálise, partilhando a tradição dos ideais mo sexual", "afeto sexual" etc. Todos esses atou ou comportamentos, que
morais da cultura que Ihe deu origem, afirma que moralmente inaceitável mostrariam "o que é a sensação sexual", além de suas descrições concei-
é tudo aquilo que torne o sujeito objeto ou insüumento do desejo de morte tuais, estão ausentes de nosso vocabulário da sexualidade.
do outro. Todavia, diante de nosso objetivo, interessa retomar a teoria Por isso, e não necessariamente porque a criança "é incapaz dc dar
psicanalítica da sexualidade, não em seus enunciados genéricos, mas na sentido à sexualidade do adulto", as emoções ligadas ao sexo permanecem
diversidade imaginária, tal como se apresenta, por exemplo, no caso do vagas e indeterminadas, até que, na puberdade e na idade adulta, novas
preconceito contra o homoerotismo masculino, que analisamos. Nesse regras de uso, agora apoiadas em exemplos de conduta, venham esclarecer
aspecto, as sugestões de Marilena Corrêa, em seu estudo de 1991 sobre sua significação. A criança, por exemplo, não necessita ter sofHdo "dor de
medicalização e individualização, são, a nosso ver, fundamentais. A dentes" ou ter sentido "a felicidade de um encontro romântico" para
autora, por meio da análise das falas de homens e mulheres sobre as aprender, antes mesmo da experiência, "o que é uma dor de dentes", ou "o
primeiras excitações sexuais, mostra um aspecto relativamente pouco que é a felicidade romântica". Porque foram capazes de interiorizar cor-
estudado da construção da linguagem do erotismo. Embora não sendo seu retamente o uso dessas expressões, com o auxílio de exemplos públicos
principal intuito, torna-se visível que o sistema de regras que orientam o ilustrativos de seus respectivos sentidos, ao se exporem à experiência,
critério público do reconhecimento do "que é a sexualidade" possui sabem dizer exatamente o que sentem ou sofrem. A idéia de que a
particularidades distintivas de outros sistemas de construção de linguagens 'experiência sexual" é, pela própria natureza, imprecisa e indizível, já faz
de sensczções e senflmen/os privados. A "sexualidade", mostra ela, são parte da definição que damos, em nossos hábitos lingüísticos, do que são
aquelas que, dentre as excitações corpóreas da infância e puberdade ou os sentimentos e sensações sexuais. Sempre que falamos em sexo, falamos
não são denominadas pelos adultos, ou são denominadas, mas sem o do interior dessa prática cultural. E, nela, admite-se previamente, como
acréscimo de sua carga afetiva ou de prazer (como no caso das descrições disse Mead, que "uma das características do comportamento sexual hu-
médico-fisiológicas da sexualidade ou das analogias feitas entre os alas mano é a insistência na privacidade'' (Ver Herdt e Stoller, 1 990). Porém,
reprodutivos de plantas e animais com o coito humano), ou, por fim, não como mostraram Herdt e Stoller, entre os lambia, aquilo que identifica-
são descritas como possuindo nenhuma atribuição específica, exceto a de ríamos como "sexualidade" é aprendido e transmitido culturalmente, sem
serem "atou proibidos". A esta característica, juntam-se duas outras que as mesmas exigências de "privacidade", "intimidade" ou "imprecisão:
consideramos ainda mais relevantes. Em primeiro lugar, a construção da típicas de nossos costumes. Do mesmo modo, quando pensamos no exem-
linguagem do erotismo torna-se, por essa peculiaridade, um dos poucos plo dos Akaramas, descrito por Tobias Schneebaum, é difícilimaginar que
148 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 149

as manifestações públicas de masturbação dos adultos homens, bem como as sexualidades marginais, em prol da sexualidade reprodutiva. O atual
as de relações homo e heteroeróticas, coletivamente partilhadas, pudessem monopólio imaginário da genitajidade na produção e normalização de
transmitir às crianças a idéia de que a sensação erótica é "algo, por 'sexualidades e felicidades" é um filho emancipado do fetiche teórico da
natureza. íntimo. indizível e intransmissível em sua interlsidade e quali- '/el flzsfl/zflva e na/ura/ da reprodzição ", criado pela burguesia oitocen
dade" (Schneebaum, 1971). Vista desse ângulo, a linguagem da sexuali- testa da Europa. Desse berço nasceu o "sexo rei", para tomar a expressão
dade não é nem mais nem menos precisa ou capaz de ser aprendida do que de Foucault, que, desde então, vem se tornando cada vez mais "absoluto:
qualquer outra linguagem que nos ensine a reconhecer quando e como em seu reinado.
sentimos esta ou aquela "sensação privada". Retomando Wittgenstein,
Por essa razão, o controle e a regulação da sexualidade genital passaram
diríamos que vago é todo uso da linguagem, coisa com a qual a maioria a ter a enorme importância que têm na vida de cada um de nós. A
dos psicanalistas concordaria, mormente após a revolução da teoria freu-
diana, feita por Lacan. No entanto, dizer que a linguagem é vaga não é o sexualidade genital tornou-se sinónimo de nossa autêntica e profunda
identidade ou do núcleo de nosso eu. As preferências, permissões ou
mesmo que dizer que ela é "indeterminada". A "indeterminação" de um proibições que gravitam em torno dela transformaram-se em indicadores
termo só é percebida como "indeterminação", no momento em que ele
das diversas maneiras que têm os indivíduos de reconhecer o "qzzê" e
passa a ser utilizado em outro jogo de linguagem que não o de origem,
'quem são e/es". Os que cumprem suas normas ideais realizam a "essência
onde tinha seu sentido perfeitamente determinado, pelos critérios públicos
de reconhecimento de seu uso correto. humana"; os que se desviam do bom caminho traem, por incompetência,
Ora, ao lado das características apontadas, a linguagem do erotismo, invalidez ou perversidade, as ''leis" da natureza, da cultura, da linguagem,
em nossa sociedade, possui uma outra tipicidade, em parte responsável do parentesco, da decência, da moralidade ou qualquer outra ''lei", inven-
tada conforme a ideologia do momento. Em síntese, as regras iden-
pela valoração moral dada ao homoerotismo. Entre nós, as regras de
construção da sexualidade coincidem em grande medida com as regras de tificatórias para a construção das sexualidades humanas confundem-se,
construção do "núc/eo imaginário da ídenrídade do szdeifo". A divisão do em nosso hábito cultural, com as regras de construção da "identidade
espaço social entre o público e o privado, promovida pela revolução humana". Por isso, resumindo de forma brusca mas não falsa, ao apren-
burguesa, leva-nos a identiHlcar a vida afetivo-sexual como sinónimo da dermos a usar apropriadamente a palavra "homem" ou ''humano", quando
"verdadeira essência do indivíduo". Essa crença tornou-se "fnrzzífíva" e, se trata de moral sexual, aprendemos a distinguir entre os que são mora/-
por conseguinte, quase inamovível em sua verossimilitude, pois oferece o mente d fere/zre.ç mas ígzzais -- os homens e as mulheres -- e os que são
suporte narcísico indispensável ao nosso reconhecimento pelos outros mora/mepzfe d ferenfes e desig afs: os "heterossexuais" são superiores e
como seres humanos integrais. A intuição aprendida de que a realização os "homossexuais", inferiores.
de nosso potencial sexual genital corresponde ao desenvolvimento do que Assim, as regras identi6lcatórias das distinções sócio-sexuais repro-
o humano tem de mais humano converteu-se em algo que consideramos duzem permanentemente as diferenças e a hierarquia dominantes e são
um "dado ímedia/o da consciência". A idéia de que sem plena satisfação transmitidas de modo a parecerem estáveis, naturais e universalmente
da sexualidade genital estamos privados da mola mestra da ''realização' válidas para todos os sujeitos. Essa crença descarta qualquer outra alter-
individual integra nosso credo moral básico, a título de premissa fora de nativa de descrição da sexualidade humana como "contra-intuitiva", e só
discussão. Hoje somos ''constrangidos" a ser "sexualmente felizes" como pode ser criticada em sua norma moral ao preço de um grande esforço
em outras épocas muitos foram a coagidos a renunciar e a negar o prazer intelectua] e psicossocial dos sujeitos. Para que o indivíduo homoeroti
que a sexualidade pode dar. camente inclinado possa, em nossa cultura, ressignificar o valor de sua
No entanto, o culto modemo à sexualidade genital como fonte de preferência sexual será preciso, como veremos, todo o aparato de uma
realização da felicidade pessoal" também nasceu inrer Finas er/acres, subcultura organizada para tais fins.
como costumava dizer Freud. Em suas "baixas origens" ele esteve ligado Alguns exemplos corroboram o que acabamos de afirmar, a propósito
ao enorme esforço ideológico operado no século XIX para desqualificar da construção da linguagem sexual homoerótica.
150 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 15]

8 F., 1 8 anos, narra suas primeiras experiências homoeróticas aos 7 anos: mulher tem uma perereca, então o homem se sente atraído pera mulher, a mulher
"A primeira vezjoram dois garotos bem mais velhos (9 e ]0 anos). Eles me se sente atraída pelo homem. Então o peru do homem$ca duro e cresce e eles
comeram". O entrevistador então pergunta qual foi sua reação. Resposta: fazem amor. Quando desfazem atrai o homem pega e en$a o peru na perereca
Uma certa estranheza por ser o primeiro contado e também llm certo ia mulher, e etesficam, e ele vai gozar, e aí-." E eu pensei: " Bom, isso tudo que
cuidado para náo se tornar coriàecido, um cer/o receio". O contato sexual Minha mãe táfalando, tá acontecendo comigo de uma forma diferente. Isso fez
logo foi descoberto pelo pai e o entrevistado diz que o que mais Ihe com que eu ficasse pensando mil e ultm coisas-. Os problemas começaram a
surgir mais tarde quando comecei a ter uma noção distorcida, né, o que que é
impressionou foram as palavras dele: "Você quer ser mü/ãer de./ü/alto, quer ser bictm, o que é o fiado
ser mzz//zerzinAa de./ü/ano? " E, sobre o sentimento por ele experimentado,
diante da reação do pai: "Vergar/za, basicamepz/e, vergar/za' e H., 31 anos. Primeiras experiências entre 6 e 7 anos, com garotos da
mesma idade: " Criança, jazia escondido porque o pai e a mãe hão podiam
e T., 30 anos, primeira relação aos 7 anos com outro garoto da mesma idade.
Neste caso, a experiência de esüanheza não teve o sentido de "ocultação". T.
ver". Depois, diz: "0 lendo eu passelpara o ginásio mezlpal/ez uma reza/zíão
contou à mãe o que havia feito; seu pai era morto. A mãe quando soube, 'Hcou comigo e meu irmão efalou e contou uma porção de coisas. . . A preocupação
assllstclda e sentou então tirar essa ideia da minha cabeça' dele era quem é homem é homem, quem é mulher é mulher, pra homem não
virar vindo essas coisas... a preocupação básica era essa..
e R., 22 anos. Primeira experiência aos 1 1 anos, que é narrada assim:
e R., 21 anos. Primeiras experiências entre 7 e 8 anos. Deram-se com um
R: Homens. Eles me !evaram para o mau caminho. garoto mais velho de 1 2 anos e com o porteiro de seu edifício: escondido na
E: O que você chama de mau caminho?
R: Ma!{ caminho assim, que chegou perto de mim e matldava$azer limas coisas escola, com o garoto, e na garagem do prédio com o porteiro. O porteiro
qwe eu não queriajazer. Tive medo, sim, eu tinha medo porque pensei que o cara obrigou-o a chupa-lo. Teve sensação de nojo, e ânsia de vómito. Foi exposto
ia me agarrar àforça, me en8ar com toda força. a penetração-superficial,mas a "dor era horrível" e não suportou. la sempre
E: EnRlar. Você teve penetração? Ele te enfiou? ao encontro do porteiro quando este o chamava, mas não soube dizer se sentia
Rt SÓ que ele não conseguiu. Enleltde? hfachtlcott e não consegtiiü. ou não prazer. Sobre o sentimento e a avaliação das relações diz: "Z)esse
Entre os 12 e 15 anos voltou a ter várias relações homoeróticas com pequeno a gente começa a descobrir que o certo é homem e mulher, né, o
cena entre aspas
colegas de surfe, e as descreve da seguinte forma:
R: Ah! el{, a rapaziada começou a me !evarpara um bom caminho e outro para e J., 25 anos. Primeiras experiências homoeróticas entre 8 e 9 anos. Dizia
o mau caminho. Parque tinha amigo meu que gostava de trancar com homem, que nessa época tinha consciência da interdição dos atos sexuais: "aqueZai
entendeu, e tinha uns que gostavam de mulher, aí eu $quei dividido entre os coisas de criar ça né, mas ali a gente ta va vendo uma coisa que os pais diziam
dois. - Na hora que a gente trattsa va era uma delícia, era uma boa, depois quando 'a/z isso aínãopode ser mostrado, r(í errado ' ". Aos 1 5 anos teve uma relação
acabava, aí et{ me sentia ma!, me arrependia de terjeito isso. completa com um rapaz de 1 7 anos de quem gostou.
e G., 1 9 anos. Entre 7 e 2 anos teve relações homoeróticas às escondidas.
1 J: -. eü gostei muito desse cara, e ele não .- hoje em dia eu nem sei, mas eu
com meninos da mesma faixa etária. Quando os pais descobriram, gostei muito dele e na minha cabeça entrou uma paranóia, entendeu, será que
mostraram-se liberais. tava aconfeceltdo uma coisa qüe tava certa, ou será que tava sendo errado, acho
que a crítica das pessoas, o que as pessoas iüam pensar, ou eu achava que era
G: Porque segundo meti pai acolttecet{ com ete também, entendeu. Eu nunca diferente dos outros!
soa, deitlro de casa, repressão por causa de nenhuma prática sexta!. E: Você nessa época.- foi ativo ou passivo?
A mãe reagiu da seguinte maneira a seu pedido de explicações sobre a J: -..ÜÍ passivo.
sexualidade e o gozo: E: -. E será que foi isso que gerou mais confusão dentro de você, por ter sido
passivo, ter sido denominado como mulher?
G: Oito, uma .fl'ase exatamente eu não !ombro. Foi mais ou menos aquela It Pode ter sido, masjoi mais por ele ter sido um homem, que eu tenha transido
história assim, " o homem é diferente da mulher porque o homem tem peru e a cona um hornern.
152 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 153

8 M., 67 anos. Primeiras experiências aos 12 anos; quando foi beijado por desse ideal normativo, obviamente qualquer tipo de relação homoerótica
um rapaz de 17 anos, pensou: "Será que e/e ró melaze/tdo de viajo? " está automaticamente desvalorizado.

e L., 32 anos. Primeiras experiências na escola e com primos Tinha O segundo enfoque concerne à distinção dos atributos necessários e/ou
suficientes para a aquisição e manutenção dessa identidade. Ainda confor-
consciência de que fazia algo errado. Sempre "fazia escondido". Na
adolescência sempre teve paixões por amigos, mas nunca teve contatos me Weeks, depois de Kinsey ficou razoavelmente demonstrado que não
existe vínculo necessário entre coPnpor/amenro sexzza/ e Iderzridade sexta/.
físicos, e sempre com o sentimento agudo de vergonha por se saber di gerente
ou desviante. De acordo com as estatísticas de Kinsey, "37qu das /zomern enfrevls/aços
tinham tido experiências homossexuais, mas menos de 4% eram exclu-
sivamente homossexuais e mesmo estes não exprimiam necessariamente
A partir desses casos, é possível extrair algumas consequências do en foque
genético da "homossexualidade". Em primeiro lugar, notamos que, inde- uma identidade 'homossexua!'" ('Weeks, op. cit., p. 19).
pendente de terem tido uma educação mais ou menos liberal ou mais ou
Na descrição do modo de aquisição da identidade "homossexual", o
menos conservadora, os sujeitos são sempre confrontados com a desapro- mais importante é notar que, se a categorização proposta por Plummer
pareceu-nos bastante adequada ao modo como os sujeitos descreviam a
vação do homoerotismo. No caso da educação liberal, como no exemplo
aquisição progressiva de suas identidades "homossexuais", o mesmo não
de G., a reprovação da conduta indesejada é feita em nome da "ordem
natural" da sexualidade biológica. l)erlva-se da deãerença bío/óglca dos ocorre com a questão dos atributos. A simples distinção entre compor-
sexos a naturalidade ou a obrigatoriedade da " atração erótica pelo sexo ta/nenfo e ídelzrídade, embora interessante, opõe termos que pertencem a
classes lógicas diversas. O comportamento pode fazer parte da identidade,
oposto Não é necessário, neste exemplo, que a desaprovação se faça sob
mas a identidade não pode ser contida no comportamento. Identidade é um
atneaças.físicas Ol{ morais; basta recorrer à " natureza" para inctltcar rta
termo genérico que designa tudo aquilo que o sujeito experimenta e
:Fiança a idéia do desvio que o homoerotismo representa. No caso da
descreve como sendo ou fazendo parte do eu. Portanto, o comportamento
educação conservadora, o "argumento natural" não é explicitamente é parte do eu mas o eu é mais que o comportamento. No caso da identidade
evocado e, se existe, aparece de pronto sob a forma da desquali$cação
'homossexual", além do comporramenro, entendido ou não como condzlfa
moral do homoerotismo como algo vergonhoso ow infamante.
fnrencío/za/ voltada para oZÜerfvos, existe um outro elemento, o desejo ou
Em segundo lugar, notamos que o menino, ao manter relações homo- armação bomoeróficos. Assim, apoiados nas histórias de vida dos sujeitos
cróticas é identificado ou à "mulherzinha" ou ao "viado". ]Vão existe a
estudados, propomos definir o sistema identitário da "homossexualidade'
alternativa de permanecer "homem atraído por homens". Essa regra como constituído pela série de imagens e descrições que o sujeito tem dos
identificatória parece mesmo sobrepor-se à própria distinção entre passivo arribtltos do comportamento e dos atriblttos do desejo ou alfa ção erótica.
e ativo, como ficou claro no exemplo de J. O que aparece sobremaneira Os atributos comportamentais mais frequentemente associados ao "ho-
estranho ao sujeito não é a posição assumida na parceria, nem a satisfação mossexualismo" foram:
obtida com tal ou qual tipo de prática sexual, mas o fato da relação ocorrer
entre homens. Esse dado é significativo pois, embora aparentemente banal , © continuidade e constância de relações homoeróticas;
traz à tona todo o processo de fundo, responsável pelo surgimento histórico e passividade no coito;
da "homossexualidade' e passividade de atitudes e ausência de agressividade;
8 efeminamento de maneiras e modos de falar;
Embora não explicitado, pensamos que a interdição do parceiro do © gosto por atividades lúdicas e profissionais tidas como femininas
mesmo sexo está diretamente relacionada com a definição do ideal sexual
conjugal como o único adaptado à finalidade sócio-cultural da "repro- Os atributos da atração ou desejo eróticos foram
dução biológica" e da estabilização da família nuclear. O parceiro homem,
por princípio, é incapaz de reproduzir e, como consequência, está inapto e maior atração tísica ou sensual por homens do que por mulheres
para constituir o casal conjugal, requerido pela família nuclear. Diante e maior atração tema por homens do que por mulheres;
154 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 155

8 maior atração estética por homens do que por mulheres; mas também pode significar uma maior disposição psíquica e cultural dos
8 maior excitação sexual com fantasias homoeróticas do que com fantasias hetero indivíduos para assumirem essa identidade, quando lhes foi proposta. No
eróticas;
grupo de cl ientes, quando a prática das relações homoeróticas e a presença
8 igual atração erótica por homens e por mulheres;
e mesmo grau de excitação com fantasias homoeróticas e heteroeróticas. do desejo homoerótico não eram exclusivas, as categorias mais emprega-
das para descrever fatos semelhantes eram "meu problema homossexual"
Esses predicados eram combinados das maneiras as mais diversas, e 'meu lado homossexual" ou "minha homossexualidade" etc... revelando
conforme o sistema dejustificativas de cada um, a ênfase era posta em um a idéia de um pretenso "núcleo homossexual" presente na heterossexua-
outro elemento. Em geral, os afrlbüfos que mais pesavam na au/o-rofü- lidade idealmente desejada ou realmente exercida.
lação eram os da ordem do desejo e não do comportam'nto. Mu\tos Essas observações preliminares permitem-nos postular as seguintes
sujeitos que não apresentavam quaisquer sinais dos atributos compor' generalizações :
tamentai s referidos ao "homossexualismo" diziam-se "homossexuais" por
sentirem uma atração erótica por homens maior ou igual à que sentiam por e A diversidade das práticas, condutas e desejos homoeróticos é enorme e
mulheres. Quanto às relações homoeróticas propriamente ditas, isto é, os extremamente difíci l de ser tipificada, seja pelo observador, seja pelo sujeito.
contatos físicos. só eram valorizados como sinais de "homossexualidade"
8 O e]emento centra] na definição da identidade "homossexual" é a
quando se tornavam exclusivos, predominantes, ou se faziam acompanhar presença do descia /zomoerófíco. Mesmo assim, a simples admissão da
por qualquer um dos tipos de atração erótica: sensual, estética ou terna, armação sensua/ por /fome?zs, que é uma modalidade do desejo homoeró-
em especial os dois últimos. Em alguns casos, como o da prostituição tico, não é suficiente para caracterizar a "homossexualidade" daqueles que
masculina, por exemplo, a posição atava no coito, a existência de atração a experimentam. Mais decisiva é a presença da armação ferra, ou seja, do
por mulheres, a ausência de atração terna ou estética pelos parceiros e a apaüonamenfo, que significa algo além do puro "tesão". Do mesmo modo,
justificativa do profissionalismo da atividade faziam com que o prostituto a atração estética só define a presença da "homossexualidade" se vier
não se identificasse como "homossexual", mesmo quando confessava associada a um dos dois itens anteriores.
sentir-se sensualmente atraído pelos homens com quem mantinha rela-
ções. No pólo oposto, homens casados, que só haviam mantido relações e A "identidade homossexual" é predominantemente estabelecida a partir
sexuais com mulheres e não apresentavam nenhuma das características do sentimento vago e difuso de desvio ou diferença em relação ao que se
comportamentais atribuídas aos "homossexuais", ainda assim definiam-sê
julga ser a "identidade heterossexual", identidade esta igualmente difícil de
ser descrita positivamente em seus atributos.
como "homossexuais", pelo fato de sentirem atração terna, sensual ou
estética por homens. Quanto aos homens, constantemente referidos pelos e A "identidade homossexual" é, de modo geral, sentida como um pro-
sujeitos como parceiros esporádicos de "relações homossexuais" (poli- b/ema e percebida pela maior parte dos sujeitos como uma qualidade da
ciais, guardas de segurança, vigias, porteiros, pintores de parede etc...), personalidade hierarquicamente'inferior, no quadro das distinções sociais.
não faziam parte de nenhum dos grupos e, c.onseqüentemente, não pu' e Finalmente, a "identidade homossexual" depende, para sua estabilização,
deram ser analisados quanto às interpretações que davam de suas próprias de fatores quase impossíveis de serem generalizados. De um lado, a estabi-
sexualidades. Finalmente, no que diz respeito aos chamados bissexuais, a lização depende da história psicossocial de cada um; dc outro, do sistema de
caracterização é ainda mais imprecisa e oscilante. No grupo das entrevistas justificativas que tornam a prática homoerótica mais ou menos aceitável ou
antropológicas, essa classificação foi muito mais usada do que no grupo mais ou menos reprovável. Assim, vemos sujeitos com histórias de vida
de clientes de psicanálise. Percebemos, no entanto, que ela era freqüen- diferentes elegerem diferentes atributos do comportamento ou do desejo
temente empregada após ter sido sugerida pelo entrevistador e quase nunca como os principais indícios de suas "homossexualidades". Da mesma ma-
por iniciativa dos próprios entrevistados, o que não ocorria com o termo neira, dependendo do sistema de justiHlcativas, vemos que práticas seme-
homossexual". Evidentemente, isso pode significar que ela foi induzida, lhantes são avaliadas de formas diversas. Há indivíduos que, convertidos ao
156 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 157

vocabulário da emancipação sexual e da liberalização de costumes, insistem


ternas. O "homossexual" era apenas uma figura de exclusão. Era aquele
em recusar a etiqueta de "homossexual", alegando que não lhes interessa que não flPZ/za; nâo podia; não queria, não sabia etc. Em suma. era tudo
catalogar o que sentem, e o que importa é a satisfação sexual e afetiva obtida aquilo que "um homem" não era.
na relação com o parceiro. Outros insistem em dizer que, desde que haja Naturalmente, conforme o vocabulário de Wittgenstein, a vagufdade
atração erótica por homens, existe "homossexualismo", e os que negam esta
do termo "homossexual", nesse contexto, era índeferml/leda qzlando se
'evidência" o fazem com receio de assumir a própria "homossexualidade".
:ralava de caracterizar psicologicamente cada indivíduo e precisa, quan-
Outros, enfim, como o caso dos prostitutos, mesmo mantendo relações to se tratava de estigmatizar condutas e desejos que se cdastavam do
homoeróticas fteqüentes, e admitindo sentirem atração sensual pelos par- código mora/ doma/zcz/zre. Como resultado, tanto os "homossexuais" quan-
ceiros, não se identificam como "homossexuais", a pretexto de exercerem a to os "heterossexuais" tornaram-se capazes de seguir regras para empregar
profissão por dinheiro, de serem ativos no coito, de preferirem relações com corretamen te palavras como "homossexualismo", "homossexualidade" ou
mulheres etc..., como já pudemos notar. homossexual", mas não podem fazer a rotulação coincidir ponto por
Diante dessas observações, discutir quais as reações dos "homossexuais' ponto com a diversidade das realidades afetivas e sexuais de cada um.
Donde o aparente paradoxo: embora habilitados para acreditar que existe
frente à AIDS é uma questão parcialmente despida de sentido. Se é verdade
uma "identidade homossexual" e para se auto-etiquetar de "homosse-
que certos grupos de sujeitos que se identificam como "homossexuais' xuais", os indivíduos, quando solicitados a reagir diante de estímulos
apresentam respostas mais ou menos padronizadas diante da ameaça da
dirigidos às suas "homossexualidades", mostram toda a polimorfia de
AIDS, essas respostas, em absoluto, são comuns à maioria dos sujeitos condutas e desejos, incluída na generalidade da rubrica. SÓ aqueles aptos
homoeroticamente inclinados. Acontece que "os /zomossex aíx'' não são a desenvolver a consciência de pertencer a um grupo humano com' ca-
um grupo homogêneo com as mesmas características psíquicas, sexuais racterísticas psicossociais estáveis podem dar respostas mais ou menos
ou sociais. A homogeneidade supostamente atribuída ao "homossexua- padronizadas a estímulos idênticos, como os riscos da AIDS. Estes últimos
lismo" só existe quando lidamos com a.$gura Imagízzárfa da Idenfídade mostram tal competência justamente porque foram convertidos à crença
" homossexua!" , tal como existe na abstração criada pelo preconceito . No comum de que as experiências homoeróticas têm um conteúdo positivo
entanto, entre a aberração e as experiências /zomoerófícas slngü/ares próprio e não são apenas a fronteira psicológica da "norma]idade" sexual.
existe um fosso afetivo e cognitivo que pode ser irrelevante para a Essas novas regras descritivas e prescritivas da "identidade homossexual«
hierarquia sexual dominante, mas que é extremamente importante para os promovem uma inclusão dos sujeitos em novos conjuntos discretos e
indivíduos em particular. Explicando melhor, tanto os homossexuais quan- segundo novas categorias perceptuais. Os novos "homossexuais", isto é.
to os heterossexuais sabem usar corretamente expressões como "ser ho- aqueles habilitados para se rotularem de forma positiva, deixaram de ser
mossexual", "tornar-se homossexual", "sentir-se homossexual" etc. /'az apenas a face negativa da heterossexualidade. Quando analisarmos a
parte da aquisição da identidade sextla!, em nossa cultura, " intuir", por figura sócio-sexual da "identidade gay" veremos que, nela, o homo-
meio de relações de semelhança aprendidas, que os homens dividemse erotismo será portador de predicados que o distinguem tanto da figura do
sexta/menir della maneira. Porém esse aprendizado organiza-se com base heterossexual quanto da figura do antigo "homossexual"
em categorias perceptuais inventadas e estabelecidas no século XIX. Tais No momento, contudo, o que importa observar é que essa progressiva
categorias, como viemos insistindo, foram criadas sobretudo com o obje- redefinição do homoerotismo, produzida pela mudança na moderna men-
talidade sexual, foi acelerada pelos movimentos da contracultura ameri-
tivo de descrever, por contraste, o qtle devia ser ttm homem heterosselual.
Ou, dito de outra maneira, como eZe não deveria /zem poderia ser. O cana dos anos 60-70 e sofreu um enorme impulso pelo impacto da AIDS.
homossexual", por conseguinte, era o homem que lido podia serial; não A AIDS realçou definitivamente o arcaísmo cultural da noção de "ho-
mossexualidade". Na cultura atual, a sexualidade em geral é vista como
podia ser marido, não podia ser o bom cidadão e não poderia representar
mais um item na pauta de compromissos do indivíduo consigo próprio e
adequadamente a norma moral de conduta do burguês civilizado, metro-
politano, e radialmente superior aos povos inferiores ou às classes subal- com seu prazer. Em lugar do dever para com a família e a procriação, a
moral sexual moderna é rebatida sobre a auto-satisfação.' Conseqüen-
158 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 159

temente. o vocabulário oitocentista da distinção entre "homossexuais" e sócio-sexual com características comuns, pela própria postura crítica e
:heterossexuais" tornou-se uma camisa-de-força e um favor de deso- criativa assumida, consigam responder ao desafio da AIDS com a mesma
rientação sócio-sexual. O relevo dado ao desq/o erótico em vez de ao eficiência mostrada por grupos com identidades homoeróticas fundadas
componamenro erórlco mostra a individualização e interiorização das em regras públicas e coletivas de orientação de condutas e sentimentos. E,
regras de construção da identidade sexual. Enquanto os compor/amerzros assim como eles, podemos supor que outros modos de estruturação da
apontam para a vertente pública e visível da orientação social da sexua- identidade homoerótica existam, sem que tivéssemos tomado consciência
lidade, o desejo volta-se para a privatização da realização ou frustração de suas existências. Portanto, insistimos na repetição, a classificação
sexuais. O ''homossexual moderno" converteu-se, assim, em um indivíduo sugerida só é representativa do universo estudado. Não duvidamos de que
preso a um duplo sistema de referências, para a elaboração de sua subjeti- outros estilos de vida homoerótica possam existir, nem que as respectivas
vidade. De um lado. acha-se às voltas com as regras da safís$ação do identidades deles derivadas produzam respostas à AIDS, desconhecidas
desq/o que o orientam no sentido de buscar formas singularizadas de por nos.
realização sexual; de outro, encontra-se atrelado ao velho sistema de Feita a ressalva, passemos ao fundamental.
crenças que estigmatiza o homoerotismo como uma preferência sexual
doente. imoral. deficiente ou desviante em relação à verdadeira finalidade A proteção pelo preconceito
do "instinto". Essa duplicidade de injunções é responsável pela desorien-
tação sexual de muitos indivíduos, e traduz-se nas contradições lingüísti- Este era o caso dos indivíduos maioritariamente identificados com as
cas com que descrevem e avaliam suas experiências sexuais. Não por regras da moral sexual oitocentista. No quadro da pesquisa, pertenciam
acaso. as únicas identidades homoeróticas que tentaram afirmar-se contra todos ao grupo de clientes e formavam uma minoria, nesse mesmo grupo.
o preconceito como, por exemplo, a identidade gay ou outras que dela se A maior parte deles mantinha relações heteroeróticas regulares; era ou fora
aproximam, obtiveram tal afirmação por meio de regras de conduta.públi- casada; nunca havia mantido relações homoeróticas ou, quando mantivera,
cas ou, no mínimo, partilháveis, que liberam os sujeitos da tarefa de decidir vivera a experiência de ''transgressão", mais com culpa do que com prazer.
se são ou não "homossexuais", exclusivamente a partir do esqua- Utilizavam indiscriminadamente critérios da ordem do comporramenro e
drinhamento do próprio desejo. da afiação homoerótica para identificar a existência do "homosse.
Portanto, a possibilidade de estipular tipos ideais de respostas dos dualismo". Normalmente, aplicavam aos outros critérios combinados de
;homossexuais" diante da AIDS ou do ri sco de infecção é mínima. E, como candura e armação para identificar a "homossexualidade" e, a si mesmos,
seria previsível, as chances de encontrar séries de respostas recorrentes costumavam aplicar preferencialmente os critérios da armação eróríca,
aumentam na proporção em que os indivíduos se identificam com modelos fosse ela terna, sensual ou estética. Esses sujeitos procuraram psicanálise
claros de construção de identidade. na expectativa de se "verem livres'' do desço homoerótico ou do "pro-
Partindo dessa asserção, proporemos uma classificação das reações dos blema homossexual". Independente da diferença de histórias pessoais,
sujeitos some-sex orien/ed face ao risco da AIDS, que não pretende ser apresentavam um certo número de ü'aços comuns, na avaliação das prá-
exaustiva, pois baseia-se apenas na amostra pesquisada. Com toda certeza, ticas sexuais, que praticamente os imunizava contra os riscos de contágio.
existem outras formas de estabilização da identidade homoerótica que Esses traços eram os seguintes:
ultrapassam os limites do universo que pesquisamos. Pensamos, espe- e autodefiniam-se como "homossexuais" ou tendo um "problema hemos
cialmente, no caso de indivíduos pertencentes às elites sócio-intelectuais
sexual", e não como bissexuais;
urbanas que, ao mesmo tempo em que são capazes de distanciar-se e mostravam um conflito intenso com o desde homoerótico;
criticamente do preconceito, não adotam o estilo de vida gay, e buscam e apresentavam uma identificação absoluta com o padrão de condutas hete-
outras regras de afirmação da identidade sexual onde a sexualidade não rossexuais e com os ideais da ética familiar e conjugal;
cmerja como a matriz de interpretações e enunciados sobre.a auto- ©
manifestavam repulsa pelos comportamentos tidos como "homossexuais'
rcalização individual e a posição do sujeito face ao mundo. E bastante com exceção de cantatas físicos com parceiros viris, e, de preferência
provável que esses indivíduos, mesmo sem constituírem um conjunto autodefinidos como heterossexuais;
160 A inocência e o vício
O homoerotismo diante da AIDS 161

e manifestavam repulsa pelas manifestações anuais da subcultura "homos-


sexual" ou pelas regras de conduta criadas pela "identidade gay". Assim, todo AIDS. Mesmo sem poderem dar conteúdo positivo ao homoerotismo, pois
convívio com o circuito do "gueto" e toda aproximação com círculos de c ependiam da linguagem sexual oitocentista para se descrever, podiam
militânciagay, fosse de que tipo fosse, eram evitados e tidos como moralmente reagir em uníssono ao estímulo do risco da infecção, porque se avaliavam
constrangedoras.
com o olhar do "outro heterossexual". Valendo-se desse recurso, dispen-
Para esses indivíduos o risco de contrição da AIDS representava a "reve- savam a custosa operação psíquica exigida dos indivíduos modernos, que
lação de uma identidade homossexual" que durante toda vida tentaram é a de reinventar permanentemente modos singularizados de sat sfação
ocultar dos outros. Muitos afirmavam que prefeririam suicidar-se caso sexual, exclusivamente baseados nos desejos pessoais, como notou Sen.
neta (1 981)
tivessem que enfrentar a vergonha de terem contraído o vírus do HIV por
meio de relações homoeróticas. Não suportavam imaginar que os filhos, Essa faceta conflitiva de suas vidas não quer dizer, entretanto, que eles
amigos, parentes ou esposas pudessem vir a sofrer as consequências da não tivessem a habilidade de manter uma vida heteroerótica satisfatória.
desaprovação social de seus ates ou desejos "homossexuais". Por isso, Não se tratava de homens que usassem meramente as parceiras como
desde o surgimento público da AIDS, ou cessaram completamente as defesa contra os desejos "homossexuais". O que os caracterizava era.
atividades homossexuais ou, no caso dos que nunca tiveram esse tipo de sobretudo, a verdadeira fobia que tinham aos indícios do desejo ho-
relação, deixaram de lado qualquer veleidade de satisfação sexual daquela moerótico, quando este surgia. O que eles não podiam suportar é que,
espécie. Todos tinham uma vida homoerótica restrita a fantasias homo sendo homens, pudessem sentir atração sexual pelo mesmo sexo, pois o
eróticas que se resolviam por meio da masturbação solitária ou pela pura modelo de subjetividade que lhes foi possível assumir excluía moralmente
e simples tentativa de supressão do desejo, através de atividades dera a possibilidade de expressão do erotismo. Mostravam uma economia do
vativas: trabalho, lazer, esporte etc. desejo que, por sua singularidade, não encontra habitualmente tradução
O homoerotismo, nesses sujeitos, era articulado numa economia psí- nas ideologias correntes sobre "o que deve ser um heterossexual" e:'o que
quica, por assim dizer, o/Aer-dírecred. Havia neles uma identificação deve ser um homossexual". Como a maioria dos homens hetero-
maciça com os ideais dominantes. O próprio fato de não se etiquetarem de eroticamente orientados, não desejavam, por exemplo, ser socialmente
'bissexuais", o que poderia representar uma atenuação do preconceito com reconhecidos e marcados por suas tendências homoeróticas que, diga-se
que se julgavam, mostra o quanto aderiam ao ideal sexualmente maioritá- de passagem, eram pf?uco intensas e bastante circunscritas quando com-
rio. A introjeção do preconceito, além disso, levava-os por vezes, em paradas a outras similares. Dadas suas histórias pessoais, não lhes inte-
certos períodos da vida, a uma verdadeira formação reativa contra o desejo ressava, em absoluto, ver a apresentação pública de suas pessoas
homoerótico, que terminava por estender-se a toda sexualidade, fazendo- exclusivamente rebatida sobre suas tendências sexuais. Para eles. era bem
os parecer pessoas sexualmente frias ou extremamente inibidas . Num certo mais importante serem respeitados e reconhecidos por outras qualidades
sentido, esses indivíduos comportavam-se de acordo com um ideal sexual, pessoais, do que passar a fazer parte do grupo de homens cuja marca socia].
onde os valores de contenção, constância e equilíbrio do prazer predomi- por força do.preconceito, é reduzida à sua particular inclinação erótica
navam, à semelhança do tipo ideal puritano, conforme a interpretação de Enfim, não sabemos se tais homens são maioria ou minoria na popu-
Leites (1987). Os modernos ideais de ]iberação sexual, baseados na lação. homoeroticamente inclinada em geral. De qualquer modo eles
aquiescência aos desejos individuais, não eram capazes de fornecer-lhes dificilmente poderiam aderir ao modo de rea]ização sexual proposto pela
modelos satisfatórios de realização sexual. Em suma, eram sujeitos que, "identidade gay", pois o equilíbrio psíquico de que usufruem apóia-se na
no vocabulário do preconceito, identificavam-se no pólo da culpabilidade. fantasia da sintonia com a tradição ou da aceitação plena do outro social.
Sentiam-se culpados por experimentarem desejos "homossexuais", e o Por essa razão, é igualmente fácil entender que as informações sobre as
tempo inteiro, eram consumidos psiquicamente por esse problema. Por- praticas sexuais de risco são apenas um elemento aduzido à disposição
tanto, mostravam-se competentes para adquirir uma "identidade estável", psíquica dos sujeitos para evitar os contatos homoeróticos. O contendo
responsável por condutas mais ou menos idênticas diante do risco da informativo do conhecimento, isto é, os dados sobre as formas de trans-
missão do vírus e a letalidade da síndrome, é eficiente porque apresenta
162 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 163

uma certa afinidade eletiva com o sistema de defesas psíquicas montado na idéia de uma "homossexualidade única" ou de um "único sujeito
pelos sujeitos contra a tendência homoerótica. O receio de morrer é homossexual", é mais fácil entender como a introjeção de ideais sexuais
duplicado pelo receio de expor compulsoriamente o desejo 'homossexual oitocentistas pode criar condições de equilíbrio narcísico e realização
ao outro social. A morte ou a sintomatologia da AIDS significam a quebra erótica, para certos sujeitos.
nessa barreira erguida entre o homoerotismo e o olhar preconceituoso.
Sem ela. a lesão narcísica seria fatal. Para esses indivíduos, como para A proteção contra o preconceito
muitos outros, independente da orientação sexual, perder a respeita-
bilidade de seus iguais é tão ou mais importante quanto morrer biolo- Neste grupo, incluem-se os indivíduos que se aproximam do modelo gay
gicamente. de identidade homoerótica. Ele é composto por todos aqueles que, mili-
Paradoxalmente, nesses casos, o preconceito é o maior aliado do tantes ou não, têm como características:
sujeito, quando se trata de enfrentar a coerção sofrida pela vida sexual
diante da ameaça da AIDS. Por ser capaz de identificar-se, quase que e a aceitação plena da "identidade homossexual"
e a revalorização dessa identidade contra o preconceito e o estigma des
integralmente, com a moral dominante, ele pode minimizar o desgaste valorizante que a envolve.
psíquico provocado pela repressão de suas inclinações homoeróticas.
Obviamente, a identificação com essa moral pressupõe uma organização
A aceitação plena da " identidade homossexual"
psíquica específica, onde o fantasma que dá acesso à satisfação.homoeró-
tica permite igualmente ao sujeito dispensar a montagem da "identidade
homossexual" manifesta como meio de alcançar o equilíbrio sexual. Este Por esta expressão entendemos a maneira pela qual os indivíduos lidam
ponto, entretanto, é irrelevante para nosso estudo, embora sda funda- com o desejo ou o comportamento homoeróticos, sem aparentes conflitos
mental para a teoria da clínica psicanalítica. No nosso caso, importa conscientes. Sem dúvida, o nível da aceitação é variável, conforme o
sobretudo assinalar que só podemos constatar a existência desse tipo de padrão de "estabilização" da identidade na classificação de Plummer, já
citada. Quanto mais os indivíduos se aproximam do modelo do militante
realização erótica da "identidade homossexual" porque dispomos do mo-
delo do "homossexual oitocentista" inventado pelo imaginário social. E gay menos tendem a ter conflitos e mais tendem a assumir publicamente
porque esse modelo ainda é presente e atuante no efAos cultural moderno a "identidade homossexual". A consciência de pertencer a uma minoria
que alguns indivíduos podem apoiar-se nele para reforçar ou desenvolver discriminada e o conhecimento das razões históricas, filosóficas, políticas
o gênero de equilíbrio sexual que mencionamos. ou psicológicas da discriminação fazem com que eles estreitam as relações
Esse modo particular de realização erótica é, na maior parte do tempo, com outros ''homossexuais" e venham a dispor de um constante suporte
sócio emocional.
subestimado pelos estudiosos da AIDS. Por certo, é difícil admitir que o
sujeito com inclinações homoeróticas possa estabelecer um laço social Essa afirmação, como seria de esperar, produz efeitos sociais proble-
com o outro, onde o bem-estar psíquico seja obtido às custas da sistemática máticos. Como mostrou Weeks (199 1), reforçar a percepção da diferença
supressão ou atenuação da dimensão homoerótica do desço. Mas a even- nesses termos significa, por um lado, alinhar-se à idéia tradicional de que
tual estranheza é, ela própria, derivada do preconceito. SÓ quando ima- realmente existe alma íde/zfídade "#omossexKal" à parte e, por outro,
ginamos que o "homossexualismo" é uma essência comum a todos os reafirma a idéia também oitocentista de que o mais importante predicado
homens homoeroticamente inclinados podemos esperar que exista um da "essência htlmana" pertence à ordem da sextlalidade genital, Ol{
único tipo de resolução satisfatória das demandas pulsionais. No mais das melhor, à divisão dos indivíduos, conforme suas preferências homo ou
vezes, jamais pensamos que, também na esfera do heteroerotismo, existam heferoeróflcas. No entanto, como assinala o mesmo Weeks, seguindo
várias modalidades de se lidar com as reivindicações da sexualidade, Foucault, a tónica posta na identidade "homossexual" teve a função de
inclusive algumas que passam pela total privação do gozo genital, como reverter a direção do preconceito, criando uma contradição no esquema
no caso do celibato religioso. No entanto, quando abandonamos a crença cognitivo do senso comum. Debatendo publicamente temas como os
1 64 A inocência e o vício
O homoerotismo diante da AIDS 165

direitos dos homossexuais", a ideologia gczy acentuou positivamente o


que o estigma havia desvalorizado. O modelo de identidade gay é, assim, mais revolucionário dessa subcultura. Por meio dele, os indivíduos tentam
o modelo de identidade estratégica de resistência, como o define MacRae difundir e solidificar uma linguagem capaz de singularizar suas expe-
(1990), que parece ter sido o único historicamente possível e viável na riências, diante da experiência heteroerótica maioritária. Por linguagem,
cultura pluralista e individualista das sociedades ocidentais. entenda-se aqui não apenas o uso de palavras típico do universo gay ou da
Entretanto, dadas as raízes históricas e a feição social que assumiu, a cultura da "clandestinidade homossexual". Esse sentido estrito de lingua-
identidade gay é uma identidade homoerótica que também aparecia como gem, sinónimo de código cifrado dos grupos discriminados, é apenas um
minoritária no universo pesquisado. Apenas dois sujeitos diziam aceitar, item em meio às práticas linguísticas mais vastas, características daquela
sem restrições, seus códigos e regras de estabilização da identidade ''ho- Subcultura. Linguagem, na acepção que damos ao termo, equivale ao
conjunto de comportamentos lingüísticos que articulam a totalidade das
mossexual". Os outros, embora sem tematizar explicitamente a questão,
mostraram-se distantes e pouco familiarizados com o vocabulário da práticas sexuais num universo significativo que rompe com as atuais
subcultura gay, ou, então, repudiavam nitidamente os valores e recomen- convenções, e que fornece aos sujeitos os elementos básicos para perceber
dações morais por ela produzidos. Acreditamos que uma das razões da e mterpretar o que sentem, pensam, desejam, aspiram etc. em matéria de
resistência ao modelo gay de identidade "homossexual" nasce de sua homo e heteroerotismo de modo original. O jogo de linguagem "gay",
novidade ideológica. Dando um enorme peso à sexualidade na definição correlato do estilo de vida do mesmo nome, é formado por três grandes
da identidade do sujeito, e pretendendo renovar radicalmente o voca- estratégias linguísticas de apresentação pública da "identidade homos-
sexual"
bulário do erotismo, a subcultura gay não atende, como seria previsível, a
pluralidade de aspirações dos sujeitos homoeroticamente inclinados. Na primeira delas, trata-se de retomar criticamente a linguagem da
cultura ca/np" (ver MacRae, 1990), dando um caráter lúdico ao que é
Revalorização da identidade " homossexual" percebido como constrangedor ou grotesco. Na "cultura ramo", termo
contra o preconceito criado por Susan Sontag, os elementos da cultura heterossexual são paro-
diados em tom de caricatura. As figuras do masculino e do feminino são
Revalorizar a identidade "homossexual" significa basicamente criar exageradas, bem como a figura do casal conjugal. Mas, como já pudemos
um estilo de vida onde os pretensos predicados da identidade sejam observar (Costa, ibid.), essa estratégia do ridículo é ambígua e portadora
cultivados e aprovados. No estilo de vida gay, a identidade ''homossexual" do selo da defesa inconsciente contra o preconceito. Levada a sério ou
constróise e mantém-se através de vários procedimentos. No primeiro, o seja, assumida "espontaneamente" e sem crítica, ela torna-se um sinal do
indivíduo busca deliberadamente o convívio com pessoas que participam ressentimento produzido pela exclusão. Identificar-se em maneiras e mo-
das mesmas convicções. Isto significa aceitar a freqüentação de locais dos de falar com a caricatura do homem e da mulher é também indício do
exclusivos de encontros com outros indivíduos ''gays "; informar-se cons- desço inconsciente de apropriar-se de identidades sexuais socialmente
tantemente das manifestações sociais, políticas ou intelectuais que inte- respeitadas e aprovadas. Na subcultura gay o uso proposital da terminolo-
ressem ao grupo; ter uma atividade social onde a afirmação da própria gia vamp visa recuperar esse elemento da cultura de exclusão no que ele
identidade contra o preconceito esteja presente etc. Resumindo, participar pode ter de cómico, engraçado, sarcástico e anticonvencional. dando-lhe
do estilo de vida gay, do ponto de vista do primeiro procedimento, é o carãter propositalmente escandaloso, pls-à-vls com os "bons costumes
maximizar os sinais visíveis ou critérios públicos de reconhecimento da O uso desinibido e consciente da "linguagem vamp", na Subcultura gczy,
identidade homossexual: tem, no entanto, uma característica diversa de seu emprego "espontâneo
No segundo, trata-se, a nosso ver, sobretudo de reconstruir ou remo- Palavras como, por exemplo, "bicha" ou "veado", neste contexto. são
delar o uso da linguagem de sentimentos ou sensações que dizem respeito empregadas sem objetivos discriminadores. Ora, esse não é o caso do uso
aos desejos ou comportamentos homoeróticos. Esse aspecto é, talvez, o acrítico destes termos que, para muitos "homossexuais", são carregados
de estigma e indicativos do mal-estar ou do conflito que os sujeitos v vem
1 66 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 1 67

com respeito às suas inclinações homoeróticas.* Em análises subseqüen- de pleitear o direito de cidade ou um lugar à parte para aquilo que na
tes, poderemos mostrar como os sujeitos referem-se a outros "homosse- Antigüidade greco-romana era chamado de "amores masculinos". Recu-
xuais" de maneira preconceituosa, usando palavras que, em certas sando as definições prévias do "homossexualismo", o movimento gay
situações, podem vir a ter a conotação de resgate cultural do que foi procurou criar uma alternativa identificatória aos modelos ainda hoje
historicamente menosprezado. oferecidos aos sujeitos homoeroticamente inclinados, qual sqa, os mo-
A segunda estratégia lingüística consiste em redefinir a linguagem da delos da ''mulherzinha" e do "veado". Na ideologia gay, advoga-se a idéia
sensualidade, de modo a opâ-la ao modelo convencional hegemónico da de que homens que se sentem atraídos por homens nem por isso perdem
satisfação sexual conjugal. Assim, tenta-se fazer ver que tudo aquilo que suas características masculinas, pois tais características não têm que
era apresentado como sujo, promíscuo ou "animal", nada mais é que um obrigatoriamente coincidir com a figura do "heterossexual oitocentista
modo alternativo de busca de realização erótica. Essa estratégia, como E possível, a partir desta ideologia, imaginar modelos de "identidade
veremos em seguida, é a que encontra maior resistência por parte dos masculina" onde o atributo da atração pelo mesmo sexo não exija, como
homossexuais", fora da "comunidade gay". Admitir como satisfatórias consequência, a renúncia a esta mesma identidade.+
relações sistematicamente esporádicas com parceiros anónimos, ou rela- Por conseguinte, a aceitação e a revalorização da "identidade homes:
ções com mais de um parceiro, ainda é visto pela maioria dos indivíduos sexual" na subcultura gay representam uma novidade cultural que o
como algo indesejável; como algo que acontece porque não se pode obter surgimento da AIDS veio ajudar a consolidar. Depois da AIDS, tudo o que
satisfação com parceiros regulares numa situação afetiva estável." se desenhava em círculos minoritários do campo cultural ganhou uma
A terceira estratégia, enfim, consiste em apropriar-se do vocabulário publicidade inusitada. Através de depoimentos pessoais, livros e filmes,
do amor romântico que foi culturalmente definido no século XIX como sujeitos portadores do vírus ou de sintomas da doença passaram a falar
corolário "natural" das relações heteroeróticas (Ver Luhmann, 1990). livremente de suas experiências sexuais e amorosas para o público "hete-
Passar a usar, publicamente, a linguagem da ternura, do carinho, da rossexual", sem constrangimento ou censura. Mais do que isso, a urgência
preocupação sentimental com o outro em relações homoeróticas significa em se comentar publicamente práticas sexuais não reprodutivas pâs defi-
confrontar o preconceito com um fato paradoxal e desafiar a interdição mtivamente em questão o modelo da vida sexual conjugal e heteroerótica,
que visava desqualificar o homoerotismo considerando-o algo "anima- desvinculando prazer de procriação. O que já era voz e prática corrente no
lesco" ou "pouco humano' terreno do heteroerotismo estendeu-se ao homoerotismo. Uma guinada
Em conjunto, essas estratégias linguísticas formulam uma "noção foi, então, dada na discussão pública dos hábitos homoeróticos. De um
positiva" do homoerotismo, cuja principal conseqüência, a nosso ver, é a lado, a distinção feita pelo preconceito entre "homossexuais promíscuos:
e "não-promíscuos" passou a ser redescrita de outra maneira. Ou sqa, os
+
Este tópico foi aprofundado no artigo acima mencionado ''não-promíscuos'' passaram a ser melhor afeitos, quando não bem-vindos
A renovação da linguagem do eroti smo na ideologia .gay, que passa pela revalorização do código ou aplaudidos, o que significa maior tolerância e mesmo, às vezes, apro-
sexual do gueto ou da "homossexualidade" clandestina, é uma tentativa de ressignificar o que, vação das parcerias homoeróticas que se enquadram no tipo ideal do amor
na origem, de fato, é um sintoma da exclusão da "homossexualidade''. Assim, a linguagem
sexual do gueto, para muitos sujeitos, é sinónimo de impossibilidade de viver à luz do dia os romântico e da sexualidade conjugal. De outro lado, a "promiscuidade
amores homoeróticos. Desse ângulo, os indivíduos têm seguramente razão em considera-la o que antes era apenas conde/fada, agora passou a ser vista como algo que
substituto pobre e estereotipado de um erotismo que não pode apresentar-se publicamente, e deve ser reg /ado, já que não se pode abolir. Porém, higienizar a "pro-
portanto, têm bons motivos para rqeitá-la e considera-la insatisfatória. O jogo homoerótico da
clandestinidade homossexual" é uma conseqüência da privação cultural imposta aos "homos- miscuidade" quer dizer, num certo nível, tolera-la, desde que não sqa
sexuais", em especial, da privação da linguagem do amor romântico. O surgimento da AIDS e portadora de riscos sanitários.
a ideologia gay, apesar de terem redimensionado todo o sentido das práticas homossexuais de
gueto, não devem fazer esquecer o caráter defensivo dessas práticas e o quanto elas são
Novamente aqui, é necessário matizar a afirmação. A "ideologia gay" não é uma ideologia
inaceitáveis para inúmeros indivíduos que não aceitam a precariedade, a futilidade e o monolítica. Quando empregamos esta expressão, estamos nos referindo à corrente maioritária
anonimato desse tipo de contato sexual. A esse propósito, consultar o artigo "Conjugalidade, dessa ideologia no Brasil, ou seja, a corrente intelectual ou política mais influente na difusão e
ética sexual e parceria homoerótica", neste volume. na construção da "identidade gay'
168 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 169

E esse movimento de aculturação ou convencionalização das formas deixarem discriminar pelo s/a/us que, esses sujeitos tomam a dianteira e
modernas do homoerotismo que despertavam o repúdio de espíritos anár mostram-se como seus grandes críticos. Invertem a mão do discurso
quilos, como o da personagem de Pasolini, no romance biográfico de hegemónico, pontuando sua incapacidade para atender a diversidade das
Fernandez (1 985). Pasolini, herdeiro inconsciente do romantismo rebelde moções eróticas que emergem da contingência do desejo e do sujeito.
de Vautrin, personagem de Balzac, via na socialização do "homossexua-
Assim, penso, conseguem restaurar o equilíbrio narcísico necessário para
lismo" uma vitória do amor burguês (Costa, 1990). Da perspectiva da
enfrentar as restrições impostas à sexualidade pelo risco de infecção pelo
prevenção da AIDS, entretanto, este mesmo movimento é o que torna vírus HIV. Essa pauta de condutas, na medida em que se orienta por ideais
eficaz a posse de informações a respeito da infecção pelo HIV. Vista do morais comuns, consegue ser relativamente uniforme, salvo, obviamente.
ângulo dos sujeitos identificados com o estilo de vida gay, a luta contra a em momentos particulares. Ao se identificarem com um ideal de eu.
AIDS e a luta pelo direito à livre expressão social do homoerotismo são conforme o proa eto de uma cultura mais tolerante, mais plural e mais aberta
uma só e mesma coisa. A exemplo do que acontecia com o primeiro grupo a recriações constantes da auto-realização erótica, os indivíduos estabele
estudado, neste outro a informação sobre a prevenção funciona porque
cem normas de comportamento frente à ameaça da AIDS passíveis de
apóia-se em interesses precognitivos mais fortes do que o puro medo de serem compartilhadas por outros, com as mesmas aspirações psíquicas e
morrer. Combatendo a AIDS, combate-se o preconceito contra o homo- sociais .
erotismo; luta-se contra a morte biológica e, por fim, contra o banimento E fundamental, todavia, observar que esse modelo de "identidade
ou hibernação sociais. homossexual" não pode aspirar à hegemonia cultural, sob pena de con-
Partindo daí, é possível compreender um pouco mais por que, nesse verter-se em mais uma forma de intolerância. Os indivíduos que com ele
grupo, condutas altamente racionalizadas, como o uso de camisinhas, se identificam possuem características psíquicas que os tornam sensíveis
podem ser introduzidas nojogo afetivo-sexual sem abolir definitivamente a idéias de intervenção e transformação dos hábitos culturais, caracte-
o prazer. O uso de camisinhas, além de exigir a disponibilidade material rísticas estas impossíveis de ser generalizadas a todos os sujeitos com
para compra-las, exige uma disciplina e um esforço contínuos para inven- tendências homoeróticas. Para que se possa pâr em dúvida a demanda de
tar novas modalidades de satisfação erótica. Esse esforço é possível amor do outro social, convertendo-a em desejo de opressão, é preciso
somente para aqueles engatados num prometo de auto-realização sexual em
encontrar um outro ideal amoroso que venha opor-se ao imaginário social
que a conduta racionalizada do uso de preservativos sela eroticamente dominante, protegendo o sujeito de fantasias persecutórias e culpabi-
redimensionada. Para os sujeitos afastados do projeto de realização do eu lizantes extremamente custosas para a economia psíquica. E típico das
ideal, e que continuam atrelados aos modos convencionais de satisfação vanguardas políticas, intelectuais e morais, serem capazes de suportar a
sexual, o preservativo é um estorvo. Conseqüentemente, seu uso torna-se tensão da ruptura com as convenções, sem desenvolver sistemas de defesa
aleatório e dependente de critérios idiossincráticos de decisão. No grupo persecutórios e culpabilizantes. Nos sujeitos que compõem tais van
comprometido com a ideologia gay, ao contrário, a prevenção é, pelo guardas, a capacidade de suspeitar da "inocência da demanda do outro'
menos idealmente, uma conduta conscientemente voltada para fins que como diz Aulagnier ( 1 980), é uma aquisição inconsciente e intransferível
transcendem a mera sobrevivência física do eu. Daí a possibilidade de
para sujeitos com outras histórias psíquicas. Nem todos estão psiqui-
transformar o uso de preservativos em um item sintõnico com a realização camente habilitados para se redefinir moralmente como opositores da
erótica. norma e, mesmo assim, continuar usufruindo da auto-estima necessária ao
Não é à toa que, nesse grupo, a discussão sobre AIDS mescla-se equilíbrio psíquico.
inevitavelmente à terminologia da "luta pela solidariedade", "pelos direi- Portanto, a questão do modelo gay de identidade sexual é um modelo
tos do cidadão", "contra a irresponsabilidade dos poderes públicos" etc.
baseado em fundamentos ainda sujeitos a discussão. Em primeiro lugar,
Sobreviver à AIDS, aqui, significa um ponto ganho na luta contra a como vimos no exemplo da "identidade homossexual oitocentista", ele
intolerância e a discriminação. Significa ter a pretensão de alterar os ideais está longe de atender as peculiaridades psíquicas e sociais de todos os
sexuais dominantes, mostrando a falha no outro social. Ao invés de se homens com inclinações homoeróticas. Em segundo lugar, ele parte do
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pressuposto de que aceitar a linguagem da discriminação, revalorizando-a interpretar suas características sexuais de um modo que se reflete dire
positivamente, é a única maneira de se lutar eficazmente contra o precon' lamente na conduta que assumem diante da prevenção contra a AIDS.
coito. Ora, como pude notar na introdução deste trabalho, essa alternativa
de combate à intolerância sexual tem problemas práticos e teóricos a
enfrentar que estão longe de estarem resolvidos.
A privatização moral na avaliação do risco da infecção
Assim, vincular os valores da ideologia gay à luta contra a AIDS é
interessante porque oferece, a numerosos sujeitos aptos a se identificar A esse grupo, como dissemos, pertencia a maioria dos sujeitos estudados.
àquele modo de vida, uma saída cultural de que não dispunham. Porém, Quer se aproximassem do modelo gay de identidade "homossexual", quer
essa abertura de novos horizontes para o homoerotismo só alcançará os se aparentassem ao modelo oitocentista, todos os indivíduos tinham em
objetivos de ampliação do espaço de tolerância se deixar de lado a comum a mesma impossibilidade de dispor de modelos de identidade
pretensão de tornar-se historicamente hegemónica. Talvez a fórmula mai s sexual publicamente discutíveis ou partilháveis por outros. Por esse mo-
feliz para definir a meta da ideologia gay fosse a de propor "exemplos" e tivo, eram os mais expostos aos riscos de infecção. Neles, as condutas
não "modelos". Propondo exemplos é possível que se possa abril' cami- preventivas eram sempre tomadas ad /zoc e, como nos casos anteriores.
nhos para a criação de um e!/zos moral, onde o credo central seja o do sempre assumidas em função de deliberações que pouco tinham a ver com
respeito ao pluralismo e à diversidade. Nessa eventualidade, é provável a qualidade ou a quantidade de informações que tinham sobre a AIDS.
que se venha a imaginar um universo de regras morais, ao mesmo tempo Nesses casos, pareceu-nos impossível tipificar ou generalizar minima-
tolerante para com as diversas formas de subjetivação do desço homo- mente os padrões de respostas aos riscos de infecção. Pudemos apenas
erótico e submetido aos critérios públicos de aprovação, já que poderia ser notar que, em todos eles, quaisquer que fossem a origem ou pertencimento
livremente discutido e partilhado por mais de um indivíduo ou por mais sócio-culturais, havia a mesma disposição para resolver "individualmente
de um grupo. a questão da prevenção.
A proposição, que pode parecer à primeira vista ingênua e ideal, perde Por " resolução individual", entendemos a privatização moral das
esse caráter quando observamos que, no terreno do heteroerotismo, elajá regras que determinam o comportamento, diante de contitos ou decisões
vem. em certa medida, se concretizando. Na cultura atual, vemos que a abertas cz esmo//zas. Chamados a agir diante de um problema que põe em
multiplicação de modos de realização heteroerótica vem ocorrendo pari jogo a relação do homoerotismo com o risco de morte, os sujeitos recorrem
passa com a discussão pública e a busca de acordos intersubjetivos os mais à experiência individual, sem compromisso com condutas coletivas. Como
vastos possíveis sobre as regras morais por ela inauguradas. No campo do seria desnecessário reproduzir todos os casos em que tal padrão de res-
homoerotismo, no entanto, as invenções quanto às formas de auto-
postas ocorreu, vamos limitar-nos a citar alguns casos exemplares.
realização ainda são resüitas, e parecem aspirar ao velho modelo da
hegemonia nascido no século XIX. Por isso, talvez, a norma de resolução Caso 1 -- A, 31 anos. Teve várias relações com mulheres, mas prefere
idiossincrática da "questão homossexual" tenha surgido, em nosso estudo, relações com homens. Hesita em dizer se é "homossexual". Nunca foi
como a forma preponderante de aquisição e estabilização da "identidade penetrado em relações sexuais. Referindo-se às relações com mulheres,
homossexual". E como tentaremos mostrar a seguir, essa forma está diz quejamais macula na boca delas ou teve relações anais. O entrevistador
intimamente relacionada à ocorrência maior do risco de infecção. Não pergu nta por que e ele responde: "... Eu ac/zo que devido à pessoa, /er cerra
tendo como apoiar-se em ideais comuns de realização sexual, os "ho- carinho pela pessoa, você tem que ter mais consideração com essa
mossexuais" que foram levados a privatizar suas tendências e conflitos pessoa". Em seguida, interrogado a respeito de relações anais com mulhe-
homoeróticos mostraram-se muito mais vulneráveis ao risco de contágio res, res Donde'. " O cu não faz parte, porque o cu não foifeito, a única coisa
que os "homossexuais" dos dois grupos anteriores. Dada a escassez que foi feita para receber a porra lfoi a vagina
cultural de modelos públicos, múltiplos e partilháveis de estabilização de Em outra parte da entrevista, quando Ihe foi perguntado sobre a prática
suas identidades sexuais, esses sujeitos são compelidos a descrever e
de relações ocasionais com parceiros anónimos, disse: "Ea assim, pra
172 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 173

mim, eu acho errado, na minha opinião, porque aíjá é mais assim tipo respondeu. "Não sei. Pode ver que agora eu estou parando com isso e se
anima!. usou, acabou, sumill eu trancar com urna pessoa só com camisintm... Eu vou dimintlir. se Deus
Depois, falando sobre a relação homoerótica que mais o satisfaz, diz: q lser". Na continuidade da conversa, entretanto, diz, logo depois: "0
Porque ele me tocou com palavras, então ele escrevia para mim, certo, mz{/zda es/á perdido sem brl/zcadeira [termo usado para acudir às relações
e as palavras qüe ele escrevia acho que não seria assim. de homem para homoeróticas]. C/m amigo que /rapa/Aa [diz então o lugar, que é um bar]
homem, eu acho que seria mais de um homem para mtllher... Ele era um :te gosta de mim, entendeu ? Ete sabe que eu não tenho nada, ele transe
homem, sem vestígio nenhum de "homossexual", sem nada, üm homem... comigo e aí' fzldo bem. " No caso, as relações eram sem preservativos e
masculino, mesmo' nenhum dos dois havia feito o teste de AIDS.
Final mente, no que concernia à prevenção da infecção, respondeu, que
controlava o risco, "co/zero/árido pe/a mln/za flmídez". O entrevistador,
Caso 3 -- C, 21 anos. Solteiro. Michê. Sente-se fortemente atraído por
então, perguntou: "Você acha que conhecendo a pessoa você está fora de
homens, já teve relações passivas e ativas. Disse que transava com um
risco?" A resposta foi: "Acho. Qzzando você conhece prí;!Hundamenre ez{ homem que o chamava de "C. . . bicha" [termo formado pela primeira sí]aba
ac/zo que sím/ " E, quando não conhece bem, usa camisinha. de seu nome mais a palavra "bicha"]. Relata uma discussão que teve com
essa pessoa. "...se você me chamar de michê, então eu vou te chamar de
Caso 2 -- B, 23 anos. Casado. Não sabe dizer espontaneamente se é homo VIaJo, de bíc/zona, marícona". Ainda sobre os clientes, diz que eles se
ou bissexual. Refere-se às relações homoeróticas como "brincadeiras' classificavam como "marfcona, marlqzlln/za e maríco/a". Sobre o ideal de
Diz que gosta de brincar, mas não está disposto a revelar seu "ho- relacionamento homoerótico, C diz: "Eu mesmo digo, eu preciso me
mossexualismo" porque "tem medo", porque acha que "sua fama" não vai apaixonar desesperadamente por alguém. Eu preciso arrumar uma pes-
ficar boa. Seus parceiros são sempre escolhidos entre homens que "não ;oa que goste de mim; que goste mesmo, sem sexo só. As pessoas estão
tem pinta". O entrevistador pergunta como ele fez para lidar com sua muito interesseiras (. .. ) eu estou precisando de me apaixonar, de gostar
inclinação homoerótica. B, então responde: "...eu rala/o realce/zle que eu Em seguida,.fala de suas precauções em relação a doenças venéreas: "... eu
vou sair dessa, entendet{ ? SÓ que eu não estou conseguindo porqtle tenho,
acho qtle até por medo meu mesmo de transar por causa de doenças, essa
assim, uma atração muito forte por homens. coisa toda, eu transo correndo, apavorado, 'tira, não bota, goza fora
Entrevistador: O que você fez para evitar sentir atração por homens? fique/a coisa sabe, aqzle/a neurose ". Diz que fez o teste anta-AIDS, e que
Bt Eu volt evitar olhar para a pessoa-. Eü casei com minha mulher porq!+e el+ não é portador. Depois disso, há mais ou menos l ano, continuou tendo
gosto dela, entendeu? Mas eu também casei mais para sair dessa vida.- Eü relações sem preservativos: "Con/ípzlzei fra/zsarzda como fra/zso afé /zoÜe;
qiieria que ela coEasse em mim. AÍ eu estaria junto com eta e não teria outros tirando o pau, põe devagar, aquela coisa, nesse tipo" . Refere-se a\nda, à
pensamentos. SÓ.Rcava com ela. Foi muito bom cara, eu estar casado. .. Eu estou prática de felação:."C/zupef, mas./iz assim, cora'ando, bo/at,a a boca, Jazia,
fazendo assim, saindo mais com minha esposa, entendeu ? Transando muito com 1, 2, 3 e cuspia... E como et{ disse, um mês e meio, dois meses sem trancar.
ela, e antes de sair de casa eu dou uma transe para não sentir muito !esmo rla
U
aí o corpo não aguentava mais, et{ ia trancar de novo". O entrevistador.
então, pergunta: "Como é a sua prática anual?" C diz: "É como er{ /e disse.
Finalmente, no que diz respeito à prevenção do contágio, respondendo à põe devagar, não põe, tira, não goza dentro' . 'Ah, deixa eu meter' , ' não,
pergunta do entrevistador.sobre felação, B diz: "/sso aí é deperzdendo da ;ó encosta', 'eu só vou botar a cabecinha'. Pau não tem ombro, depois
pessoa, cara, entendeu? Às vezes uma pessoa conforme ele é, se ele tem g e a cabeclnAa erzfrar o resto vaí /ambém, né". Nem sempre usa cami-
muíla saúde, uma pessoa... " O entrevistador pediu que B esclarecesse o sinha. Finalmente, aderiu a uma religião, com o que pensa abandonar a
que era "ter muita saúde", e ele disse: "Tem q e saber o./eira da pessoa... vida sexual que levava: "r'ol como eu fe disse, acAeí ma relfglão graças
Se o carafor assim, sabe, chegueil, aquele cara todo agitadão... se o cara a Deus e consegui abandonar tudo isso, assim. Mas eu não deixei de ser
for todo agitadão, todo descaradão en não gosto!". O enuevistador blssexua/ oa /zomosse.rala/, não sel". Diz que o dinheiro que ganhava na
insiste, mostrando o risco de orientar-se por tais critérios. B, então, profissão era maldito.
O homoerotismo diante da AIDS 175
174 A inocência e o vício

C: É um dinheiro maldito, por isso que não só pelo dinheiro ser maldüo et{ me é obrigado a viajar frequentemente para o exterior, onde então costuma ter
cuspo, eu me culpa porque é uma coisa você vender o seu corpo. ainda mais agora contados homoeróticos. Nessas ocasiões, usa ou não preservativos, depen
lue eu consegü me situar numa religião. A religião conseguiu me tirar de tudo dando da avaliação que faz do parceiro. Já fez o teste anta-AIDS três vezes,
isso que eu achava que hoje em dia-. não é que eu acho sujo-. eu não gosto de apavorado com o risco de infecção. Pelo fato de ser casado, ter filhos, gozar
discriminação porque ninguém sabe, cada um lem um motivo-. cu passei por de grande prestígio profissional e só conviver em ambientes heterosse
isso... eu sei que cada um tem um motivo mKitoforte para se enÜar nisso, sem duais, tem um enorme medo de vir a contrair o vírus da AIDS. Depois de
culpar pai e mãe, mas que pai e mãe !êm culpa, têm, e muita. um certo tempo, tem conseguido evitar não só contatos homoeróticos
Entrevistador: E a sociedade? . .,
Ct Não só a sociedade, não! A sociedade, pai, mãe, que lem mãe que não dá regulares, como relações sexuais de risco. Acredita que tomou realmente
consciência do perigo que a AIDS representa para sua vida e a de sua
«polo ««h«m a. .Flí'', q«r dar ap'i' "" 'úãa sabe :.m',d"' '&'' 'Gaba
mulher ou a de outros eventuais parceiros sexuais.
cot$undindo a tua cabeça ; você acaba achando que lua mãe ao in vés de te ajudar
está querendo te socorrer.. .
Caso 6 -- F, 32 anos. Diz assumir abertamente a preferência "homos
Caso 4 -- D, 30 anos. Diz-se "homossexual". Teve relações sexuais com sexual". SÓ tem relações com homens. Na entrevista fala de uma história
uma namorada, a quem vê como sua "tábua de salvação". Sente uma forte sentimental tumultuada, com episódios de apaixonamento, ciúmes, brigas
e a existência de "muitos casos". Fala dos desafetos em tom pqorativo, e
atração' homoerótica e só consegue excitar-se sendo penetrado. Profun-
dos concorrentes, em certas disputas amorosas, como "bichinhas". Sonha
damente identificado com os valores do universo heterossexual, não
com o amor romântico, e diz não se incomodar em absoluto com as
suporta o convívio com pessoas efeminadas e freqüentadoras do circuito
manifestações agressivas do ambiente em relação a seus trejeitos. A
do gueto "homossexual". Sonha em encontrar um parceiro viril, com quem
respeito da prevenção, dá o seguinte testemunho:
possa manter relações amorosas sem levantar suspeitas Para esquecer o
"homossexualismo", exaure-se em exercícios físicos e dedicação ao tra- Entrevistador: Você já fez o teste contra a AIDS?
Yt Teste de AIOS? Fiz!
balho. Tudo isso é compensado por idas compulsivas a boatos gay, nos
fins de semana, de onde sai cada vez mais deprimido. Não consegue E: Fez quando?
F: Em 87. um só.
conviver com a inclinação homoerótica e, no aHa de encontrar o parceiro E: Depois disso você já teve algum relacionamento de risco ou não teve?
ideal, diz-se disposto a sacrificar as medidas de precaução contra a AIDS. F\ Não, quer dizer, vou ser sincero com você, tive um relacionamento com M.
Interrogado sobre o que representa para ele o risco de morte, diz que pior E: E nesse período, foi um sexo sem camisinha?
que morrer é viver deprimido, angustiado e insatisfeito como vive. SÓ vê F: Foí.
uma alternativa para sua vida: ou trocar de profissão e passar a conviver E: E depois disso, você fez outro teste?
F\ Não.
num meio mais liberal, ou reforçar os laços afetivo-sexuais com a namo-
rada e vir a esquecer o "homossexualismo". Nunca fez teste anta-AIDS, E: Por quê?
F: SÓ duroi{ dais meses.
por ter receio de saber-se contaminado, e por acreditar que sabe como
evitar relações promíscuas. F critica a futilidade dos contatos homoeróticos no "circuito gay" e
procura, tanto quanto possível, usar preservativos em relações com quem
Caso 5 -- E, 28 anos. Possui nível superior de instrução e pertence à alta não conhece bem.
classe média. Sente indistintamente atração por homens e mulheres, em-
bora a atração física por homens sqa maior. Considera-se "homossexual Caso 7 -- G, 25 anos. Diz que é "homossexual assumido". Desconhecia
embora todas as relações estáveis que teve e onde veio a apaixonar-se o risco existente na emissão de líquido semanal na fase de pré-ejaculação,
tenham ocorrido com mulheres e não com homens. Lida razoavelmente embora praticasse freqüentemente a felação. Quanto às camisinhas, utili-
bem com suas inclinações homoeróticas, e diz que não está disposto a za-as mas é descrente, pois ocorreu-lhe de usar numa só noite cinco
renunciar totalmente a esse modo de satisfação sexual. Por sua profissão, camisinhas, porque três estouraram. Acha que ainda sente culpa por ser
176 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 177

;homossexual" e pensa que é devido à "repressão de casa". Quanto à \l: Não. Não porque eu sei que ete tem muito medo. Ete conversa muito comigo
prevenção, diz: cobre essa doença e ete lata para mim não sair com qualquer um.
E: Certo. Ele te alerta
E: Fez teste anti-AIDS?
G: Flz. l\: Ele me alerta. Quando eu comecei a trabalhar, ele pensou muito antes de eu
começar a trabalhar, porque eu ia trabaltmr na rua e era muito perigoso, né!
E: Qual f'oi o resultado? As pessoas têm facilidade. ..
G: Negativo.
E: De pegar.
E: O que você sentiu, qual foi a experiência disso? 11: É. .4í me at,fiou basta/zre
G: A /fulo.
E: Como? Você pode me descrever?
E: Depois desse teste você continuou fazendo sexo de risco ou... Elt Posso. Elefalava assim: " H, toma muito cuidado na rua com as pessoas...
G: Não. Tranquei completamente sexo de risco. E o que é que eu .Rz? Comecei
E: Ele é um pouco pai para você?
a apresentar carteirinha de saúde, tipo carteirinha de imunidade... H: É.
E: De que eu não sou portador do HIV-. E: Por isso você gosta dele?
G: De que eu não sou portador do vírus, quer dizer, mas isso não adiantava H: É.
nada, prá ninguém. Eu não sou portadorse eu não consigo usar sexo também. E: Ele tem 22 anos.
E: Claro. Você também não sabe se a pessoa é portadora ou não, mesmo ela
\l.: Tem. Ele é moreno, não muito mais alto que eu. Vai entrarpara a academia
dizendo que não sda, nél Tem esse, essa-. de novo
G:Não adianta eu querer casar o meü relacionamento sexta! com o E: E você, por que não faz exercícios?
relacionamento sucua{ de outra pessoa apresentando carteirinha, isso é
\l: Porqtle pião gosto!
Ilusório, ttão acontece.
E: Você não gosta? Mas gosta que ele faça?
a\ E. Gosto de homens fortes, musculosos
Caso 8 -- 11, 17 anos. Acha-se "homossexual" e não se interessa por
relações sexuais com mulheres. Diz que viveu as primeiras manifestações
da atração homoerótica com muitos conflitos: "Então, eu/louva pensando, Caso 9 -- J, 27 anos. Diz-se "homossexual", sem problemas Trabalha
será que eu t'ou ser isso ['homossexua]']... pó, eu não quero ser Isso; no setor de serviços em um dos pontos turísticos do Rio.
Tem uma relação amorosa extremamente romântica com o atual parceiro, E Você prefere relação com parceiros regulares ou casual?
é fiel, e acha toda prática sexual, fora do padrão romântico da sexualidade J Eu pre$ro regulares.
a dois, "nojenta" e que Ihe causa "vergonha". Sobre a prevenção, diz: E Regulares?
J Eu sinto mais segurança, porque esses casuais, a gente não sabe, né!
E: Uma coisa. Como é sua prática anual? Você trança sem camisinha, como você E Não sabe. E você já teve outros parceiros casuais na rua?
disse, né? J: Não, não!
H: E. E De pegação, banheiros, cinemas?
E: Você não tem medo de trancar sem camisinha? Você também nunca transou, J: De jeito nenhum.
né, não sabe né? E: Não?
11: É. Nunca fralzsei. J: Eu sou muito medroso em relação a isso. Eu sempre tive medo. Medo mesmo.
E: Você saberia usar uma camisinha?
Sei tá-. de me roubarem, de me matar, sei lá!
H: /Vão. E
E: Não sabe? Nunca te ensinaram? Você freqüenta esses lugares, como cinema...
J: De jeito nenhum.
11: Não. E Por quê?
E: Nem o seu namorado, também não sabe usar camisinha? J: Porque eu acho que não vale a pena, entendeu? Sempre jui assim. Tenho
tl: Não sei. Acho que não. Eie também nunca usou. amigos que sempt'e se metem nisso aí, mas não curto, cara! Eu não abomino.
E: E vocês-. sempre tiveram contado com o esperma sem a camisinha, e isso não mas não gosto muito de lugar, de ambiente que tem muito " homossexual" .
te assusta nem um pouco? etl, não curto muito não!
178 A inocência e o vício
O homoerotismo diante da AIDS 179

E Por quê? O que é que é isso! De repente é tua cabeça!


J: EK acho que tanto$az, eu.- üm lagar careta com "homossexual" se tiver qüe 3: Tive atgumcts que eu não transes com camisinha-. Mas sempre que posso eu
lranso com camisintm.
pintar, piplta, tá entendendo? E às vezes num lugar qüe não é careta pode
pintar uma coisa muito mais séria do que nwn lugar de boato. Boaie é o que-. E: Me fala uma coisa, com quantos outros parceiros você teve relações de risco?
você pega uma$gura na boato e todo muptdo sai rolando, caçando. Eü não Alguma vez você levou porra no cu nesse período que você não estava usando
camisinha?
curo, e!{ não curto esse tipo de coisa não. Eu posso até ir, mas não curto.
]: Olha. eu creio que sim.
Diz que fez o teste anti-AIDS e que deu negativo. Mas, depois, diz que E: Quantas vezes mais ou menos?
teve uma relação sem preservativos.
J: SÓ uma.
E: Você pode me descrever?
J A úilima$oi-. não gosto nem de !embrar que eólico meio paranóico... joi um
cara... que e fraga/Ao /zo récita o local turístico do Rios-. e deveria nunca
1: Foi assina, eu tava naquele orgasmo e aí aconteceu, pâ, etl $quei logo com
nojo e me !aves bastante.
[erjeito, mas eu acho que tipo assim.- a gente não pode se privar tanto de E: Foi com esse rapaz de X ja cidade da Europal?
sexo, a gente vai morrer neurótico, eu acho que você tem qlte se prevenir-.
E Claro l E: Então, foi depois do teste?
J AÍ e conAecí um cara de Xlcita o nome de uma cidade da Europa, o parceiro J: F'oí
era um europeu, turistas.- aí esse cara me /lgava, não-sel-o-quê... eu peguei E: E depois disso, você não fez outro teste?
e saí com ele. Eü acho qKe ele não tiltha Aios.- não é possível, qüe é muito }\ Não!
azar mesmo, mas pode acontecer.
E Pode. O azarão, chamado o azarão, né? O entrevistador, então, informa J sobre os riscos das relações anais sem
J: Ê, justamente. Eu sei que isso acon,tece. À'ías ete aparetttemente era urna preservativos e também da relação. Em seguida, pergunta:
pessoa sã, e Deus me livre qüe !enfm alguma coisa-. AÍ, eüfui e {raltsei com
ele. Mas o cara, aí, inclusive, ele me convidou, está aÜm de me comer-. Eü
E: Me fale de outra pessoa que tenha gozado na sua boca ou coisa assim.
]t Foi um garoto, tá no meu trabalho-. Tinha uln depósito, e ele trabalhava
sabia o que era, e aí, !udo bem. Alas esse carafoi tina das melhores coisas
como vigia- . Eu marquei com ete e aí eufalei " titnpe o perto todo direitinho
que eu já tive rla minha vida. Cara.fttdido, ótimo!(-.) Foi bom, mas depois
eu Fquei numa paranóia. \í. ete chegou. pronto, e a gente tava no maior tesão, não-sei-quê, aí, pâ,
desculpa, pâ, eu não queria esporrar no seu cu.
O entrevistador volta, então, à questão da prevenção: E: Espirrou na boca?
]\ E. Eu nãofalei nada. Fiquei calado, né! Aíeufui logo lá em cima, lavei minha
E: Como é sua prática atual? Como você pratica sexo atualmente? )oca, não-sei-o-quê, mas eu não $quei com medo, com essa paranóia não
1: Atüaimente de camisinha, pode ser quemjor. porque eu sabia que ete tinhafeito o teste
E: Você usa camisinha?
J: Uso.
E: Quando? Caso 10 -- L, 30 anos. Casado, diz-se "bissexual". Afirma que sempre
]: Sempre quando tenho ato sexta!. teve conflitos com a inclinação homoerótica: "JI/ai só qzle ew fl/z/za uma
E: Sempre que você vai ser ativo ou passivo? defesa muito grande, porque a minhaformação era de que um homem, ele
X: Sempre, sempre. Jamais fa /repor com ou/ro /comem". Diz que ama sua mulher, mas sente
E: A camisinha te incomoda? que suas necessidades sexuais são maiores do que a mulher pode suprir.
It A mim não. Elt sinceramente eu acho alé bom, pode acreditar, eu acho até Diz ainda que pelo seu jeito feminino sempre teve dificuldades de relacio -

melhor. Porqlte ela é, vamos dizer, ela !ubri$ica mais e-. nar-se com homens, pois todos pensam que ele gostaria de ser penetrado,
E: Quando foi que você começou a usar camisinha? quando isso não Ihe dá nenhum prazer. O entrevistador introduz a questão
X: Ollm, uns 4 anos pra cá! da prevenção:
E: E em todas as suas relações você usa camisinha?
J: Oilm, nem todas. Não voü mentir. E: Quais são suas práticas anuais? As práticas esporádicas? Você só U-ansa com
E: Claro... Qual o número de relações que você teve sem camisinha? sua mulher ou você ainda dá umas escapulidinhas por fora?
L: Agora eu tâ indo a lím cinema
1 80 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 181

E: Quais os cinemas que você vai? M: Já penetrei sem camisinha. Se eu dissesse que eu usei sempre camisinha
L: Fica no centro da cidade. estaria mentindo. Algumas vezes eu já comi sem camisinha.
E: No centro? E: E você não ficou com medo?
L: AÍ eu me sento lá... vêm as pessoas e me tocam, me pegam, me chupam. M: Eltlico com medo, mas eu acho, do que eu tenho lido, que o parceiro atino
sabe...O que eü me interesso eu também faço. é bem menos sliscetívet.
E: Você não Lem medo de chupada? Como um meio de contaminação? E: Suscetível, mas também tem o seu campo-.
Lt Não, porque pelo que et{ sei do vírlts, a não ser que a pessoa esteja M: Sfm.
colnplefamenre com um grau muito elevado, aí vai estar estampado nos olhos, E: Risco. Você não acha a camisinha erótica, não é?
visualmente.
M.\ Não, nem um pingo. Eu acho a camisinha um anta-tesão... Muitas pessoas
E: Certo. concordam comigo= " botar camisinha amolece o pau" ; diminui a rigidez do
L: O catar da boca, ele mata o vírus, né, ete consome o vírus. teu pénis.
E: Sim, mas foi encontrado já vírus na saliva também, e se seu pau tiver alguma
fissura... Sobre a felação, diz
L: Á/z/ sim. E: Você não tem medo de sexo oral?
E: Então, é muito importante botar uma camisinha para ser chupado. M: Te/zAo.
Lt Ah! não. Claro que não!
E: Você não... E: Tem? Por que você faz então? Você fez com frequência? Como você fez?
M: Eu faço com frequência sexo oral. Todas as pessoas com quem eu trunfo eu
L: Não, não faria. Então eu prefiro me abster. Não preciso de práticas faço sexo oral. Eu acho que hde em dia ett coloco muito em cima do sexo
nenhuma-. porque aí tá o problema, se eu jor entrar nesse contexto, eu não
oral devido à impossibilidade de se jazer sexo anal; que é uma coisa que eu
preciso, porque religiosamente, etnicamente.
E: Eticamente. curto muito. Tanto de dar como de comer-. e devido a essa impossibilidade
prefere-se à AIDS] eu cur/o a sexo ora/. Eiz veio me/zoi perigo lzo sexo ora/,
L: "Não-sei-o- qKe-. mente eu não preciso disso, porque eu tenho minha quando você não tem cantata com o esperma.
mulher.
E: Certo. E: Mas você não acredita-. e a pré-ejaculação, a portinha que sai...
M: Nunca com as pessoas. Nunca com as pessoas que metam. Primeiro eu não
L: Então, pra tá jazendo qualqt+er coisa.- eu não preciso de uma lransação gosto, me dá repetência, pessoas que$cam metendo. Eu acho anta-higiénico,
extra.
já lne dá uma sensação péssima se eu pegar no pau do cara e tiver melado,
eu tenho nojo tta hora.
Caso ll -- M, 22 anos. Diz-se "homossexual". Relata que sempre teve E: Então, antes de você chegar, você verinlca.
enormes conflitos com a inclinação homoerótica. Até os 14 anos, sempre M: C/aro/
viveu à sombra do pecado". Aos 1 8 anos, os conflitos chegaram ao auge
e tentou o suicídio. Depois, veio para o Rio e passou a frequentar o circuito Conta nuando, o entrevistador pergunta
gay. Hoje, diz-se sem conflitos com a "homossexualidade". Seu ideal de E: Uma coisa puxa a outra. Você sabe se seus casos pulavam a cerca?
parceria é o casal romântico. Não consegue excitar-se em lugares onde as M Ah! não!
pessoas vão apenas para ter relações sexuais. Mas também gostaria de ter E: Essas coisas nós sempre devemos bolar em voga, porque é chamada classe de
uma experiência de suruba: "Epz/ão, e gos/aria delazer sexo gr paZ, eu risco, aí realmente é que entra o risco.
gostaria assim de comer e ser comido ao mesmo tempo, que deve ser uma M Mas eu concordo. Eu me vejo completamente dentro do grupo de risco.
E: Você se vê?
e.rperíêncla Janrásflca, que e ainda não fenAo ". Intenogado sobre as
M Agora, eu não faria um teste de Ali)S.
práticas preventivas, responde:
E: Você não se vê como uma pessoa de risco, não é, M?
E: Você usa camisinha, né? M Não pela minha conduta sexual.
M: t/se. E: Algum dia dentro dessas transações que você teve sexo anal, alguémjá gozou
E: Usa? Todas as vezes que você penetra em alguém, ou já penetrou nesse dentro de você sem camisinha?
período sem camisinha, em alguém? M
!
1 82 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 1 83

E: Não? Você sempre trança com camisinha? i E E você Rica com vontade de chupar alguém?
M: Sempre que passiva!. N Fico!
E: Sempre que possível? Por quê? E: Mas não chupa?
M: Quando não é possível eu procuro não$azer sexo com penetração N Não. no Aterro. não!
E: Alguém goza na sua boca ou já gozou na sua boca nesse período? E: E fora do Aterro?
M: Não. N Não!
E: Por quê?
Caso 12 -- N, 22 anos. Trabalha no setor de serviços. À noite é travesti. N: Porque nunca dá pra mim
E: Por quê?
Diz que sua prática preferida é a felação; gosta de chupar e ser chupado N Porque não tenho oportunidade!
Também teve várias relações com mulheres, inclusive a cunhada. Sobre a E Qual foi a última vez que você deu?
prática preventiva, diz: N Foi-. foi há três anos.
E: O que mudou, depois da A]DS? E Quem foi, a última vez?
N! É sobre ab'eqüência? N: .'l úlrfma vez/of m cara de r [cita um estado do su]].
E: Sobre tudo. Você continua fazendo o que fazia antes? E Ele gozou dentro de você?
N: Eü diminttí, só isso. N Gozou dentro de mim e na minha boca, ele era muito viajado. já teve na
E: Não parou de fazer alguma coisa? Nova Zelândia.
N: Mas... olha, eu :bmo ainda, não diminui a maconha. EK cheiro ainda, não
diminui a cocaína... Mas o resto eu não mudei nada. A minha vida sexual Os exemplos poderiam multiplicar-se sem acrescentar grande coisa à
continua a mesma. Continuo dormindo a mesma quantidcüe qlte dormia compreensão desse gênero idiossincrático de respostas ao risco de infec-
antes= comera(!o a mesma comida-. de resto nada. ção. Como é visível, os indivíduos decidem se devem ou não correr o risco
E: Você já pensa em fazer um Leste de AIDS?
N: Não! Já!... mas tirei isso da cabeça. Não penso emjazer !este nenhum! de infectar-se em função das mais variadas razões. Algumas observações,
E: Você conhece a]guém que estala com A]DS? no entanto, poderiam ser feitas sobre a relação entre os modelos de
N: Não! Deixa eu ver... Cottheci, masjá mon'eram. 'identidade homossexual" assumidos pelos sujeitos e as práticas preven-
E: Como é que você vê essa coisa de sexo e AIDS? tivas. Em primeiro lugar, todos os indivíduos desse grupo manifestavam,
N: Eu pego, como? de uma ou de outra forma, a força da interiorização do código sexual
E: O que é a AIDS para você? dominante, traduzida em fenómenos como:
N: Uma coisa muito potencial... capaz de destruir sua vida-. e que é transmitida e vergonha e menosprezo pela expressão pública da "identidade homossexual:
facilmente... Camisinha é perigosa, pode arrebentar-. O uso de drogas pode em si, como nos casos 2, 3, 4, 5;
tirar süa energia... e vergonha ou menosprezo pelas práticas sexuais supostamente típicas do estilo
E: Ultimamente, onde você tem ido buscar seus pmceiros sexuais?
de vida "homossexual", como relações anais (caso 1 ); relações "promíscuas
Nt Em lugar nenhum.
E: E a história do Aterro? Você tem ido ]á?prefere-se ao Aterro do F]amengo] ou animais" com parceiros anónimos (casos 4, 8, 1 1, 12);
idealização da parceria conjugal heterossexual, baseada no amor romântico,
N! Esse tipo de parceiro eu tenho sempre que poli ao Aterro-. esse tipo de como nos casos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11;
parceiro promíscuo. Eu sempre vou no Aterro gozar na boca deres. que eü
uso preconceituoso do vocabulário chulo para designar "os homossexuais
não vou tirar... não vou gozarfora-. né! já que eles estão ati, correndo o
em ocasiões de desentendimentos amorosos com parceiros ou adversários
risco, chupando um e outro-. Não há porque se preocupar de gozar ou não
na boca dele. sentimentais, como nos casos 3, 6;
E: Você não vê risco nisso, para você? preferência por parceiros viris, músculos e não efeminados, como nos casos
l 2, 4, 8
N: Não, não vdo riscos.
E: Vê riscos prá eles? Em segundo lugar, a submissão à hierarquia moral dominada peia nomla
heterossexual é compensada por uma espécie de rebeldia anárquica contra
1 84 A inocência e o vício !. O homoerotismo diante da AIDS 185

o código ou, ao contrário, pela introjeção paroxística do modelo iden- No caso 2, B assume posições semelhantes. Ao lado da flagrante
tificatório estereotipado, do que deve ser o. "casal "homossexual". São os desinformação a respeito do que são sinais de saúde ou doença, em caso
aspectos que nos parecem, de longe, os mais interessantes no que diz de AIDS, B também acha, de modo algo similar, que evitando o "desca-
respeito às atitudes face à prevenção. Expliquemos melhor, com a ajuda radão", o tipo ''cheguei", todo "agitadão", e apostando no fato de que o
dos casos exemplares, o que foi dito. parceiro gosta dele e sabe que "ele não tem nada" [não é portador do HIV,
Ao contrário dos dois primeiros tipos de identidade homoerótica, a nem da síndrome da AIDS], está livre do risco de contágio. A e B, dessa
identidade gay" e a ''identidade oitocentista", esse último tipo parece não forma, constroem uma "teoria" sobre a transmissão do HIV e dos riscos
dispor de modelos identitários coercitivos o bastante para integra-lo numa de infecção, exclusivamente baseada no ideal de realização amorosa, que
ordem de condutas previsível, face ao risco da AIDS. Presos às injunções conciliaria a satisfação homoerótica e o preconceito contra o homoero-
plurais da linguagem do erotismo moderno, oscilam entre a admissão do tismo. Ambos acreditam que basta gostar e confiar, no sentido do código
direito à expressão do homoerotismo e a condenação médica, psicológica, do amor romântico e da parceria conjugal heterossexual, para que a prática
religiosa ou moral desse mesmo homoerotismo. A saída dá-se, então, por sexual esteja isenta de riscos. O que ambos esquecem ou "desconhecem
formações de compromisso dependentes da história psíquica de cada um. é que essa imagem do amor romântico, matriz de suas crenças, é uma pura
No caso 1, o indivíduo aposta em sua timidez e no coFzAecímenfo do idealização das relações amorosas posta a serviço das ideologias familia-
parceiro como critério para a boa atitude preventiva. Este parece'nos um listas do século XIX. O que ambos parecem ignorar é que os casos-modelo
caso típico em que o investimento imaginário em qualidades morais de relação heterossexual conjugal nunca foram uma realidade para a
socialmente aprovadas fornece a medida da boa conduta sexual. A timidez maioria dos homens e mulheres. Desde que foi culturalmente inventado,
ou o pudor são tidos por A como atributos que Ihe permitem avaliar o casal heterossexual é formado por indivíduos que, humanamente, pelos
corretamente quem é o parceiro com o qual vai relacionar-se. Observe-se mais diversos motivos, ocultam dos respectivos parceiros sentimentos,
que, nesse caso, a linha de conduta deriva das regras do imaginário erótico condutas e pensamentos que traem a imagem idealizada do que deveriam
construídas pelo amor romântico, onde as supostas características fe- ser a franqueza e a confiança mútua, que pretensamente marcariam a ética
mininas da timidez e da reserva fariam com que a mulher acabasse conjugal. Aliás, tal afirmação é referendada pela própria atitude de B que,
acertando na escolha de seu parceiro homem. A timidez, para A, é uma sem se dar conta, nega que o simples gostar ou respeitar seja motivo
espécie de faro espiritual que Ihe permitiria descartar os "promíscuos" e suficiente para não ''enganar" o parceiro, quando se trata de revelar a
dirigir-se para os parceiros sem riscos. Por outro lado, a mesma linguagem verdade", em matéria de sexo. Escondendo da esposa, de quem diz gostar,
do amor romântico faz com que A assuma, previamente, a convicção de as relações homoeróticas que mantém regularmente, B mostra toda a
que seu tipo de escolha tenha a necessária contrapartida, na consideração extensão do risco que corre atribuindo ao "gostar" de seu parceiro a função
do outro por ele. Ou sqa, ele, A, que é tímido, vai ser respeitado em seus de poupa-lo do risco de infecção.
escrúpulos pelo parceiro, que julga conhecer exclusivamente pela con- No caso 8, pelo contrário, vemos como a mesma submissão ao código
fiança com a qual, gratuitamente, o investe. heterossexual hegemónico previne, com bastante probabilidade, o perigo
Obviamente, não pretendo dizer que não possa haver relação de mútuo do contágio. H vive com seu parceiro uma relação em tudo semelhante à
respeito e confiança entre parceiros homoeróticos. Chamo a atenção para relação de casal heterossexual, conforme o imaginário sexual conjugal.
o fato de que A, em nenhum momento, disse ou soube dizer o que Identifica-se quase ponto por ponto com a figura da mulher frágil, que é
significava "conhecer profundamente" seu parceiro. Tudo o que é possível amada e protegida pelo homem mais forte. Curiosamente, como os modo
extrair de seu discurso é que ele, provavelmente, confia no parceiro, los identificatórios são claros, embora inconscientes, o parceiro protetor
quando acredita estar diante de um outro "tímido" como ele. SÓ que, no parece, de fato, assumir a responsabilidade pela proteção de H. Esse caso
caso, o "tímido", por timidez, pode perfeitamente ocultar de A que man- ilustra uma das figuras típicas criadas pelo imaginário social para des-
teve relações de risco, hipótese plausível e de acordo com achados da crever o que seria a "personalidade do homossexual". H é uma caricatura
pesquisa. do "feminino"; uma encarnação do que os sexologistas alemães chamaram
1 86 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 187

no século XIX "sensibilidade sexual contrária" ou "alma de mulher, num


Nos casos 3, 4. 9 e 1 2, por motivos um pouco diversos, vemos esse tipo
corpo de homem". No entanto, como podemos notar pela análise dos casos, de conduta exprimir-se. No caso 3, C diz: "É como eü fe díxse, um mês e
H representa apenas uma possibilidade, entre outras, que têm certos meio, dois meses sem trancar, aío corpo não agiienta va mais, eu ia trancar
homens homoeroticamente inclinados de estabilizar suas "identidades de novo. " No caso 4, D diz que está disposto a sacrificar as medidas de
homossexuais". Sua traUetória sexual levou-o a identificar-se com a ima- prevenção, caso isso implique na possibilidade de encontrar um parceiro
gem egonarcísica, onde a satisfação erótica passa pela sujeição ao parceiro que satisfaça suas expectativas de relação amorosa, sexual e afetiva. D diz:
forte e protetor e pela aspiração à fidelidade na parceria. Por assumir esse :u deveria nunca terfeito, mas eu acho que tipo assim. .. a gente não pode
modelo identitário, H está relativamente protegido do risco de contágio, se privar tanto de sexo, a gente vai morrer nellrófico... " No caso 12. N
pelo menos enquanto o modelo não for abalado em suas bases identi- diz: "Á mín/za rija iexzla/ [depois da AIDS] con/ilz a a mesma... /Vão
ficatórias. Mas essa eficácia é aleatória e instável. H não dispõe de critérios penso emfazer teste nenhum. Esse tipo de parceiro... eu tenho sempre que
próprios para avaliar os riscos da AIDS. Ou melhor, seus critérios são os lou ao Aterro. .. esse tipo de parceiro promíscuo. Eu sempre vou ao Aterro
critérios do parceiro que, por seu turno, parece decidir o que é ou não gozar na boca deles, que el{ não vou tirar-. dão vou gozarfora... nél jú
sexualmente arriscado em funções de regras privadas, sem aval ao reforço lue eles estão ali, correndo o risco, chupando um e outro... Não há porque
da discussão pública dessas regras. Para H, seu escudo é seu parceiro. Nele se preocupar de gozar ou não na boca dele!"
está depositado o saber sobre os riscos de infecção e o que fazer para Cada um dos sujeitos, a seu modo, justifica o risco corrido em função
evita-la. de diversos motivos. C eJ alegam ceder às demandas do corpo ou à tensão
Novamente, aqui, vemos o quanto é hábil a privatização moral das psíquica resultantes da privação sexual; D afirma não poder suportar o
respostas dadas à AIDS. H não possui outro motivo para evitar o contágio, estado de privação afetiva e o iso]amento emociona] decorrentes da vida
salvo os conselhos do parceiro, ou seja a idealização da palavra do outro. clandestina que leva; N, finalmente, apóia sua atitude no mais explícito
Sua "homossexual idade" ou sua "condição homossexual" imaginária, pelo
preconceito, considerando que os promúcuos não merecem ser poupados
fato de ser exclusivamente ditada pela norma heterossexual, retira-lhe do ri sco de infecção. Naturalmente, pode-se dizer que todas essas condutas
qualquer possibilidade de pensar autonomamente sobre a questão do nada mais são que formas de passagem a ato, de irrupções da fantasia
homoerotismo diante da AIDS. É uma "homossexualidade não proble- sexual de cada um, que, rompendo com o recalque, mostram a dinâmica
mática". liberada de conflitos conscientes mas, por isso mesmo, sujeita à da transgressão.
ilusória proteção onipotente oferecida pelo parceiro. H vive uma "ino- A explicação, corrente em boa parte da literatura psicanalítica, parece
cência homossexual" da qual pode ser vítima e que pode vitimar muitos
me insuficiente ou desinteressante, por duas principais razões. Em primei-
outros. Seu caso é um caso extremo de "alienação do pensamento" em
ro lugar, porque recorre à forma estereotipada e equivocada de pensar que
troca da idealização do outro ou, o que dá no mesmo, de anulação da todo ''homossexualismo'' é uma expressão particular da perversão. No
individualidade pela formação de uma subjetividade dependente do pre- trabalho sobre ética conjugal, neste volume, discutimos, com detalhes. a
conceito. H só deseja aquilo que o preconceito prescreve, e não duvida de inconsistência do argumento. No momento, basta recordar que o ponto de
que seu padrão de experiência homoerótica possa alterar-se e vir a obrigálo partida dessa concepção é o de que existe "uma homossexualidade", idéia
a buscar outros modelos de "identidade homossexual", onde possa dispen
que nos parece inaceitável pelas razõesjá dadas. Em segundo lugar, porque
sar o concurso da palavra onipotente do outro. sugere que a força da moção pulsional ou da fantasia sexual inconsciente.
Ao lado desses tipos mais adaptados ou mais conformistas Qm relação por si só, justifica a passagem ao ato. Ora, a afirmação é plausível mas
à mora] sexual dominante, temos os tipos que chamaríamos de mais
trivial. A ''força da sexualidade" também está presente nos indivíduos que
rebeldes ou transgressores. Rebeldes e transgressores porque, ao mesmo estabilizaram suas identidades homoeróticas segundo os modelos gay ou
tempo em que aceitam a norma sexual hegemónica, sentem-se compelidos oitocentista sem que isso os conduzisse a passagens ao ato do mesmo
a infringe-la, voltando contra ela uma outra injunção da ideologia sexual gênero. Mais importante em nossa opinião é observar o que pode fazer
moderna, qual sqa, a de que todos têm direito à auto-realização erótica. com que impulsos sexuais semelhantes tenham destinos diversos. Pensa-
188 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 1 89

mos que a diferença reside não apenas na história libidinal de cada impossibilitados de construir tais ideais para si, eles permanecem entre-
indivíduo, o que é ev idente, mas na presença ou ausência de modelos ideais gues ou às injunções das ideologias sexuais modernas ou às aspirações
de esüuturação subjetiva que permitam ou não redimensionar a frustração sexuais próprias às suas histórias pessoais, que, no mais das vezes, são
imposta à sexualidade homoerótica pela ameaça da AIDS. incapazes de fornecer-lhes ideais de conduta compatíveis com a prevenção
O que se nota, nesses casos, é que os sujeitos foram incapazes de eficiente da infecção.
interiorizar ideais de eu comuns a outros sujeitos. Isso, à primeira vista, No caso 4, os móveis da imprevidência de D, são diferentes. D diz
pode parecer banal, mas é decisivo quando se trata da prevenção. C e J, preferir correr o risco de infectar-se a permanecer privado de relações
por exemplo, funcionam segundo uma economia de realização narcísica afetivas estáveis e satisfatórias. Como a maioria de todos os indivíduos no
onde a suposta "necessidade do corpo" tem que ser atendida, sob pena de Ocidente, ele está convertido à crença de que, fora da parceria romântica,
gerar grandes conflitos psíquicos. Mas a fantasia de que o corpo possu! não existe possibilidade de felicidade individual. Mais ainda, é incapaz de,
autonomia em suas demandas de satisfação sexual não é um dado natural face ao conflito com o homoerotismo, adotar o modelo gay de identidade
que, compulsoriamente, obrigue o sujeito a ceder diante daquelas reivindi- ou o modelo oitocentista. Sente-se um heterossexual em tudo. excito na
cações. Fantasiar que o corpo tem "direitos" de exprimir suas "neces- preferência amorosa e sexual por homens. Donde o dilema, cqa saída
sidades". à revelia das outras demandas emocionais, como a aprovação parece ser a de desafiar um dos pilares do credo moral de sua cultura.
moral do social ou a injunção de que viver é melhor que morrer, aponta aquele que afirma ser a vida um bem em si. D reage inconscientemente à
para um modo particular da dinâmica psíquica e não para uma condição privação afetiva, recusando as bases da "moral sexual civilizada", como
genérica de todo ser humano, ainda menos de "todo homossexual". Nessa disse Freud. Já que o preconceito o impede de buscar a felicidade indi-
fantasia, o que emerge, por um lado, são as regras do imaginário sexual vidual, condicionada, no seu caso, à realização homoerótica, ele também
moderno e, por outro, uma forma particular de estabilização da "identidade recusa obedecer ou propõe-se a desprezar a crença fundamental no direito
homossexual". As regras da moderna sexualidade são aquelas que dizem à vida
que a auto-realização erótica é condição sine q a non da busca da feli- O caso é exemplar, não somente porque alude a desfazer o clichê
cidade individual, o que mostra o enorme peso dado à vida privada e à representado pela idéia de "perversão homossexual'' como uma espécie de
sexualidade na cultura do intimismo ou do narcisismo, como propôs Lasch
disposição perversa do sujeito e seu desejo para transgredir uma suposta
(1 979). A forma de estabilização da "identidade homossexual", por sua norma universal da "verdadeira lei do desejo"; é um caso onde também
vez, é aquela onde a faceta identitária do sujeito adscrita à esfera da fica evidente que o simples risco da morte não é motivo suficiente para
sexualidade torna-se a principal moeda no comércio narcísico com os induzir os indivíduos a se prevenirem contra o risco da AIDS. Ele mostra
outros . que o ideário moral, que fundamenta o vocabulário do erotismo moderno.
Como vimos, no caso do "homossexual oitocentista", esses elementos, pode entrar em colapso, quando um dos termos entra em contradição com
em absoluto. têm a mesma relevância. Aqueles sujeitos, não obstante a algum outro. Afirmar que o direito à vida e à liberdade são valores significa
inclinação homoerótica, são perfeitamente aptos a conter as "demandas do atrelá-los ao direito à busca da felicidade individual . Portanto. no momento
corpo", sem criar conflitos graves para suas economias psíquicas. De em que o último termo do credo passa a girar no vazio, os anteriores
forma idêntica, no modelo de identidade gay, vemos que a mesma adesão perdem o sentido. O que D pergunta, consciente e inconscientemente, se
aos princípios de auto-realização sexual e valorização do ângulo homo- nos permitem o uso heterodoxo da expressão, é que sentido tem a vida ou
erótico da identidade pessoal não conduz necessariamente os sujeitos a a liberdade, se o corolário da felicidade sentimental do amor romântico
tomarem atitudes diante da AIDS que representem risco de infecção para Ihe é vedados
eles e para os outros. A diferença está, repetimos, na posse ou não de ideais De novo, advirto, todas essas afirmações podem ter uma sonoridade
de eu coletivos, que dão suporte ao remanejamento das práticas sexuais e "acaciana". Mas, curiosamente, tal sonoridade parece ser esquecida, não
orientam os sujeitos no sentido de exercitarem outras formas de satisfação só pelo preconceito, mas por seus eventuais analistas. O caso de N é mais
erótica, reunidas na rubrica do "sexo seguro" ou "sexo sem risco". Quando um caso onde a regra parece funcionar. N é um travesti que aparentemente,
190 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 191

a partir do que afirma sobre o homoerotismo, parece ter conseguido arriscado no que concerne à exposição ao vírus. Dito de outra maneira mas
libertar-se do preconceito sexual de nossa cultura. Contudo, ao dizer que com a mesma importância, a privatização moral das respostas à AIDS
os sujeitos "promíscuos" que encontra no Aterro não merecem nenhum depende de como cada um julga o valor da vida, da morte e da felicidade
respeito por suas vidas, simplesmente repete, em outro tom, os mais individual, julgamento determinado pela posição fantasmática de cada um
virulentos ataques que o preconceito social já pede dirigir contra o homo- no código moral do preconceito.
erotismo. N diz, para quem quiser ouvir, que a vida dos "promíscuos" ê
uma forma de vida que pode ser exterminada. Tal hostilidade só pode ser Conclusão
entendida quando supomos que ela é absolutamente inconsciente. E pro-
vável que, dado o estatuto reservado à figura do travesti em nossa cultura; Diante do que foi exposto, concluímos:
dado ao fato de N saber e dizer que habitualmente é procurado por sujeitos e A questão do "homossexualismo" diante do imaginário social construído
que se acham "heterossexuais" e que raramente Ihe dão chances de ser em tomo da AIDS é uma questão equivocada, pela simples razão de que não
ativo na felação, já que insistem em chupa-lo, pois bem, é provável que, existe tal coisa como um "homossexualismo'' comum a todos os que se
diante de todas essas imagens contraditórias com a "aparência lógica" do identiülcam ou se auto-rotulam de "homossexuais:
preconceito, N sinta-se psiquicamente desorientado e alimente um ressen-
timento e um ódio ao ideário moral de nossas leis ideais, traduzidos na 8 Dentre os chamados grupos dos "homossexuais", apenas dois tipos no
agressão e desrespeito à vida dos mais frágeis. N, inconscientemente, universo pesquisado possuem regras de formação de "identidade homos-
estabelece uma hierarquia moral na qual se ressarce da possível humi- sexual" que, por suas características, ajudam os sujeitos a lutar eficazmente
lhação sentida e onde elege como adversário o inferior "promíscuo", a contra o risco da infecção. Esses tipos são ilustrados pelos modelos de
quem pode atacar impunemente. "identidade gay" e pelo modelo oitocentista, que assim denominamos por
Essa dinâmica psíquica, nascida das antinomias da linguagem do apresentarem atributos que consistem em valorizar os ideais de constância,
erotismo moderno, mostra como a "privatização moral" das condutas e equilíbrio e controle das moções sexuais, com vistas à identificação com os
valores homoeróticos contrapõe-se ao ideal da prevenção contra a AIDS, modelos de masculinidade socialmente aprovados.
através da pura distribuição de informações intelectuais sobre a natureza e Os dois grupos na amostra estudada eram minoritários. A maioria dos
da síndrome. Um outro exemplo avaliza, a nosso ver, essa optmao. sujeitos pertencia ao tipo idiossincrático, cuja conduta diante da AIDS era
Consideremos os casos de C, J, e M. Todos eles dizem que são incapazes movida pelo que chamamos "privatização moral" das respostas aos riscos
de controlar os impulsos homoeróticos. Entretanto, como conhecem oi da infecção. Esse grupo, dadas as características que Ihe são peculiares,
riscos da prática sexual sem precaução, apóiam-se na capacidade imagi- mostra-se particularmente vulnerável à infecção.
nária de controlar racionalmente as etapas da excitação sexual e do
orgasmo. Por um lado, confessam que são obrigados a ceder diante das
e Em todos os grupos estudados percebemos que a eficácia da informação
intelectual recebida sobre a natureza da AIDS e os riscos de contágio
pressões do corpo; por outro, dão-se a ilusão de que são mestres dessas
dependiam de fatores outros que não o teor cognitivo da informação. A
mesmas reivindicações da sexualidade. Narcisicamente humilhados diante
motivação para prevenir-se contra a infecção, ou seja, o apreço pela vida,
de um corpo, cqa satisfação sexual apresenta-se como precondição da
felicidade individual, esses sujeitos imaginam que, no momento mesmo sua e dos outros, dependia, em grande medida, do valor que os sujeitos
atribuíam aos ideais morais sociais, à imagem de si mesmo ou à imagem da
da satisfação, podem retomar a posse e o controle do funcionamento felicidade individual que cada um tinha.
corpóreo e fazer da "prova de risco" um ritual permanente de reafirmação
de autonomia de suas identidades egóicas. e Finalmente, achamos que a questão das informações sobre a prevenção,
Como estes, outros casos poderiam ser descritos como exemplos da dirigida ao grupo dos chamados homossexuais, não só deve continuar sendo
privatização moral" das respostas à AIDS. Em todos eles o comum é a feita e melhorada, como deve articular-se, na medida do possível, com o
absoluta imprevisibilidade da avaliação feita sobre o que é mais ou menos combate ao preconceito. Do nosso ponto de vista, quanto mais os indivíduos
192 A inocência e o vício O homoerotismo diante da AIDS 193

têm condições de discutir publicamente o problema do homoerotismo, mais


têm condições de optar por regras claras de definição da "identidade
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eda "heterossexualidade" como expressões
''N '= naturais ou essenciais da experiência sexual
humana.
Ao chamar arenç(üo pura a ho-
rttossexuaiidade não carita ur t(i c'ortstt'üç(ao
iTlédico/ciente.Fca, mais para o (lue ele
descreve como homoerotistno ,Juratu irctbre
X ccm//z/zo, em A Inocência e o Vício, /variz
]. uma ltova noção de desejo sexual c de
experiência erótica. Assitt\ , (ljucla- nos t!
entender ais.formas pelas (lutos o precot\ct tto
ea dtscnmtna ção sexual têrtt cottdtcton(ulo
a resposta social à AIOS tt(üo $ó et\tre
homens (!ue traltsalt\ con\ hott\e is , tt\cls ew\
lodos os setoresda socio(}tt(]e. Ao {lesvell(!ar
.\ 4 e desconstruir os entrelaçctdos processos
sociais . culturais epsicot6gicos dtt opresstüo
sexual, ele cottstrói a base de um(t t ova
posição mora! e ética -- urtta posiç(ao
baseada, acém« de tudo, na tloç(üo (}e
diversidade sexual e }lo respeito às
diferenç(u suuais. Por último , cessa busca
de compreensão e respeito (!jante da
opressão e da discrintina ção (lue tios oferece
ços ta, ' 'Jur nossa única esperança -- n(ão a:)cl\as dc
responder às ameaças da AIDS, mas de
A inoc enc i. consll uir ull\a sociedade rttais justa.
soba"e o hor Richard Parker

613. 8B5/C8
Jurandir Freira Costa épxfca/ia/fs/a
e professor Livre Docente do Instituto de
Medicitta Social da U!!iversidmle do Estado
do Rio (!e Jalleiro. Pubiicot{ }:ltst6ria da
psiquiatria no Brasil , Ordem médica e nor-
ma familiar, Violência e psicanálise e
Psicanálise e contexto cultural. Em .r989
recebezz o pré#i/o Homem de Idéias, do
Jorna! do Brasil, pelo seu artigo Nar-
cisismo em Tempos Sombrios, pzib/fenda
no//wo Percursos na história da psicanál ino.

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