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Caso prático 24 – erro-vício

Erro sobre a pessoa do declaratário – recai sobre as características ou identidade da


pessoa a quem se dirige a declaração (diferente do erro obstáculo…)

Ex: Um indivíduo contrata outro pensando que este tem determinadas competências que
afinal não tem (ex: carta de pesados)

Erro sobre o objeto do negócio – recai sobre o bem sobre o qual o negócio incide ou
sobre o conteúdo do negócio. Ex: um indivíduo compra um quadro a pensar que é o
original e afinal é uma cópia
A consequência do erro sobre a pessoa do declaratário e sobre o objeto do negócio (art.
251) é a anulabilidade, desde que estejam reunidos os requisitos do art. 247:

• O elemento sobre o qual recaiu o erro tem que ser essencial para o declarante

Ou seja, sem este elemento, o contrato não teria sido celebrado, ou não teria sido
celebrado nas mesmas condições

A lei pretende não condenar à anulabilidade todo o qualquer erro – o erro tem de ser
relevante. Se recair sobre uma coisa acessória, então o erro é irrelevante e não afeta a
validade da declaração negocial
Ex: uma pessoa adquire um carro, pensando que este tinha um rádio que dava para ouvir
CDs. Depois constata que este não dá para ouvir CDs. Como o carro é antigo e tem valor
para si, não teria deixado de o comprar se soubesse deste aspecto

• O declaratário tinha que saber ou devia saber da essencialidade

A lei não exige que o declaratário conheça o erro do declarante. Não é relevante que o
declaratário saiba ou deva saber que o declarante está em erro. O que a lei exige é que o
declaratário não deva ignorar que aquela é uma matéria essencial.
O declarante tem de provar que a pessoa com quem contratou sabia ou devia saber dessa
essencialidade.
Ex: Uma pessoa vende a outra um carro de colecção. Ambas estavam convencidas de que
o carro é de determinada data, vindo a descobrir que não é. O que a lei exige não é que o
vendedor conhecesse o erro (que o carro não era da data que pensavam ser), é que ele
deva conhecer a essencialidade que essa matéria constituía para o comprador. Se o
vendedor fosse diligente, teria percebido que o ano de que o carro é, era essencial para o
comprador.

Estes requisitos funcionam como forma de manter o equilíbrio entre os interesses do


declarante e do declaratário.
Erro sobre a base do negócio

A base do negócio consiste nas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de


contratar

Para que o erro seja relevante para a base do negócio tem de recair sobre as
circunstâncias em que ambos os sujeitos firmaram a decisão de contratar

Se o erro incidir sobre essas circunstâncias (252/2) o contrato fica sujeito aos requisitos do
disposto sobre a alteração de circunstâncias (437) - existe quando as partes celebram um
contrato num determinado contexto, e este altera-se significativamente, sendo obrigados
a cumprir as suas obrigações nessas novas circunstâncias
Quando há uma alteração radical, não é justo que se exija às pessoas que cumpram as
mesmas obrigações a que se propuseram num contexto totalmente diferente. Seria
contrário à boa-fé exigir que se continuasse a cumprir as obrigações num contexto
totalmente diferente

Principal diferença:
- no erro sobre a base do negócio as partes representaram mal a realidade desde o
início
- na alteração de circunstâncias, as partes representaram bem a realidade, mas ela
depois alterou-se
Como no erro sobre a base do negócio, a declaração padece de um vício originário, a sua
consequência é a anulabilidade, quando cumpridos os requisitos do art. 437:

- A manutenção do contrato afecte gravemente os princípios da boa-fé e

- A exigência das obrigações não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato
Caso prático 25

A e B celebraram, no dia 24 de Janeiro de 2020, contrato-promessa de compra e venda,


pelo qual aquele prometeu vender e este prometeu comprar-lhe “o pavilhão designado
pela fracção X”, um dos cinco pavilhões em construção pelo primeiro na freguesia de
Pousos. O arquitecto responsável pela obtenção do licenciamento camarário para a
construção dos pavilhões, tratou de obter, para a fracção X, licença para estabelecimento
de restauração e bebidas com dança. B sempre condicionou a aquisição do referido
pavilhão ao seu efectivo licenciamento para tal efeito. A conhecia esse facto. A Câmara
Municipal acabou por não aprovar o uso do pavilhão para bar-dancing, por força, entre
outros, de pareceres negativos emitidos pela Polícia de Segurança Pública.
Mas como A disso não deu conhecimento a B, a compra e venda prometida acabou por
ser celebrada em 23 de Fevereiro de 2022.

a) B pretende agora obter a sua invalidação. Terá fundamentos?

O caso é de erro-vício: espécie de divergência entre a declaração e a vontade conjectural


do declarante. Este manifestou o que pretendia mas a sua vontade encontra-se
corrompida na correspondente formação devido a ignorância ou a má representação da
realidade.

Trata-se de erro sobre o objecto do negócio


No erro sobre o objecto tanto cabe:
- o erro sobre o seu objecto imediato, conteúdo ou efeitos jurídicos (v.g.: compra do
direito real de habitação periódica na convicção de que se adquire a propriedade sobre a
unidade de alojamento em causa);
- como o erro sobre as qualidades, jurídicas ou materiais (artigos 905º e 913º,
respectivamente), da coisa à qual o negócio eventualmente diga respeito.

Uma coisa é que o declarante tenha declarado aquilo que provavelmente não teria
manifestado se soubesse o que não sabia quando exteriorizou a sua vontade

Outra é que a sua falta de esclarecimento seja susceptível de eficaz invocação perante o
declaratário através, nomeadamente, da anulação do negócio
Tratando-se de erro sobre o objecto do negócio, isso depende da verificação dos mesmos
exactos requisitos de que depende a relevância anulatória do erro-obstáculo (art. 247)

Seria necessário demonstrar que:


- B não teria comprado se soubesse que não poderia usar o pavilhão para bar-dancing
(essencialidade)
- A não poderia deixar de saber que tal motivo era decisivo para B (conhecimento ou
cognoscibilidade da essencialidade)

A hipótese vai, contudo, mais longe. A não só deveria saber que o referido motivo era
importante para B como, além disso, não o informou de que o município havia recusado
o licenciamento para tal efeito
De acordo com o disposto no art. 227, as partes devem, na formação do contrato, actuar
de boa-fé.

O que, entre outras coisas, implica que elas devam comportar-se honestamente. Não foi o
caso de A.

A sua conduta configura, por isso, uma hipótese de dolo omissivo (art. 253)

Nessa medida a compra seria anulável com fundamento em erro qualificado por dolo (art.
254)
b) Ainda estará a tempo?

Tanto o negócio celebrado com erro espontâneo como aquele em que o erro tiver sido
causado por dolo são anuláveis

O regime (geral) da anulabilidade sujeita a destruição do negócio ao exercício do direito


potestativo de anulação (art. 287):
- dentro do prazo de um ano (sendo certo que este não começa a correr enquanto o
negócio não estiver inteiramente executado – n.º 2);
- a contar da liquidação do vício que determina a anulabilidade (o que supõe a sua
determinação exacta, bem como a do momento em que cessou);
- desde que seja o beneficiário da anulabilidade a proceder ao aludido exercício.
O beneficiário da anulabilidade é a pessoa em cujo proveito ela foi instituída. Somente
caso a caso se pode, pois, discernir quem é tal pessoa

Tratando-se de erro, tal pessoa é o declarante cuja vontade por ele haja sido determinada:
B, portanto

B tem um ano após ter tido conhecimento de que não poderia utilizar o pavilhão em causa
para o efeito pretendido para anular o negócio
Caso prático 26

A, sócio da sociedade Y, concedeu procuração a B para que este cedesse a terceiro a quota
que o primeiro naquela detinha.

B celebrou o contrato de cessão com C mediante ameaça, proferida por este, de que, caso
não realizasse o negócio, seria publicada na imprensa determinada correspondência que
indiciava a sua participação em tráfico de armas.

a) O contrato seria válido?


Para que haja coação moral é necessário que:

– se produza a ameaça de um mal (a publicação da referida correspondência);

– que esta ameaça seja ilícita, entendendo-se que tal não sucede quando a ameaça
resulte do “exercício normal de um direito” ou quando consista em puro “metus
reverentialis” (se havia indícios de tráfico de armas é às autoridades que a participação
deve ser feita e não aos jornais);

– que o fim da ameaça se cifre na própria obtenção de uma declaração negocial (no caso,
para a cedência da quota).
Demonstrada a dupla causalidade (coação que desencadeia medo; medo que ocasiona a
declaração negocial), o negócio torna-se anulável

Se a coação for proveniente do declaratário (como sucedia na hipótese), isso basta para o
efeito

A ideia segundo a qual, para todos os efeitos, o representante é o representado (e que


permite sustentar, em conformidade, a produção directa e imediata de efeitos na esfera
jurídica do representado decorrentes da actuação do representante), não pode ser levada
longe demais
Não se pode esquecer que factualmente quem age (havendo representação instituída) é
o representante e não o representado. Pelo que, em princípio, quem negoceia, quem
contrata, quem faz propostas ou declara aceitações, etc., é aquele e não este

Art. 259: em princípio, a existência de “faltas ou vícios da vontade” ou de outros “estados


subjectivos relevantes” deve ser aferida em relação à vontade do representante e não à
do representado, embora seja este que deles se possa aproveitar se pretender a
invalidação do negócio

Ou seja: apesar de a coação ter sido exercida sobre B, era A quem podia anular com
fundamento nela
b) Supondo que o contrato não era válido, teria alguma relevância o facto de A, apesar
de tudo, haver recebido o preço, assim o tendo declarado por escrito assinado?

Ao aceitar o preço, conhecendo a existência de coação, A confirmou o negócio, razão pela


qual já não poderá pretender a sua anulação

A confirmação é a forma específica de sarar a enfermidade do negócio anulável


convertendo-o em absolutamente válido

Trata-se de uma declaração – expressa ou tácita – de vontade proferida pelo beneficiário


da anulabilidade mediante a qual ele manifesta a intenção de manter o negócio, não
obstante o vício que o afecta
Pressupõe:
– que o beneficiário da anulabilidade conheça a existência quer do vício que subjaz ao
negócio, quer do direito de anulação que lhe é conferido (caso contrário, a confirmação
eventualmente manifestada tornar-se-á anulável por erro sobre os motivos);

– que seja posterior à cessação do vício que funda a anulabilidade (uma vez que é
também a partir de então que começa a contar o prazo para se exercer o direito de
anulação – n.º 1 do art. 287);

– que seja anterior à caducidade do direito de anulação (pois, após ela ter ocorrido, o
negócio já se consolidou precisamente por essa via)
Caso prático 27

Acúrsio, general que promoveu um golpe de Estado, diz a Bruno, ministro do governo
deposto, que lhe compra a sua moradia por 100,000 €, garantindo-lhe uma fuga em
segurança para o estrangeiro e evitando assim a prisão. Bruno, sabendo que a moradia
vale 750,000 €, diz-lhe: “as regras são as suas”.
A escritura de compra e venda é lavrada.
Após o golpe de Estado, Bruno regressa ao país e pretende reaver a casa. Acúrsio dispõe-
-se a pagar o preço justo.

Quid iuris?
O problema neste negócio é a limitação à liberdade que o declarante sofreu na sua
decisão

Bruno não decidiu vender por 100,000 € apenas por sua vontade, mas sim limitado por
circunstâncias externas

Podemos estar perante:


- negócio usurário – Acúrsio explorou a fraqueza de Bruno. No negócio usurário, o
declaratário não cria a situação de inferioridade do outro: a situação pré-existe, o
declaratário só a explora – arts. 282 e 283
- coação moral – existe uma verdadeira ameaça, emitida para extorquir a declaração
arts. 255 e 256
Em qualquer dos casos, a declaração seria anulável

O direito à anulabilidade pode ser exercido no prazo de um ano após a cessação do vício

A cessação do vício entende-se como o momento a partir do qual o interessado fica numa
situação em que pode exercer o seu direito.

Considerando-se negócio usurário, o lesado poderia agir de acordo com o art. 283:
modificação do negócio segundo juízos de equidade.
Caso prático 28

O Município A anunciou a B, industrial de exploração de areias, que, caso ele não


assinasse um protocolo que o obrigava a pagar € 0,50 por metro cúbico de areia extraída
(a título de compensação financeira pelos prejuízos e transtornos acrescidos causados
pelo transporte das areias pelo interior da respectiva cidade), fecharia ao trânsito
determinadas vias por ele utilizadas.
B acabou por assinar o referido protocolo. Entendendo, porém, que do comportamento
do Município se infere uma ameaça latente, pretende agora obter a sua invalidação.
Terá fundamento?
Importa decidir se o Município exerceu coação moral – art. 255:

- se produza a ameaça de um mal


- que esta ameaça seja ilícita por violar (art. 255, n.º 2) um direito do coagido ou por o
colocar em perigo (entendendo-se que tal não sucede quando a ameaça resulte do
“exercício normal de um direito” ou quando consista em puro “metus reverentialis”);
- que o fim da ameaça seja a própria obtenção de uma declaração negocial

Demonstrada a dupla causalidade (coacção que desencadeia medo, medo que ocasiona a
declaração negocial) o negócio torna-se anulável nos termos do art. 256
Entende-se que o exercício de um direito se tem como anómalo quando ele seja exercido
de forma abusiva (art. 334)

Não parece ser o caso

Também não se vislumbra outra causa de ilicitude subjacente à ameaça

Pressionar pode envolver uma ameaça. “Fazer pressão” não é, geralmente, ilícito

Logo, não haveria coação moral susceptível de ocasionar a anulação do “protocolo”.


Poderia colocar-se, em alternativa, a hipótese de existir usura (art. 282)

A qualificação de um negócio como usurário depende do preenchimento de três


condições:
- a existência de uma vontade fragilizada;
- que outrem a explore conscientemente;
- obtendo (actual ou potencialmente) benefícios manifestamente desequilibrados.

Verificado este circunstancialismo, o negócio é anulável


O estabelecimento da fronteira entre o negócio usurário e o negócio celebrado mediante
coacção moral não é fácil

Critério básico para a distinção: modo mediante o qual se manifesta a “intimidação” que
determina a vontade débil

- coacção moral – a vontade débil é intencionalmente criada pelo declaratário ou por


terceiro com o fim de alcançar a emissão da declaração negocial

- Negócio usurário – o declaratário simplesmente tira proveito (desproporcionado) de


uma situação surgida de forma fortuita, ou eventualmente provocada, mas sem o
intuito de obter a declaração
Em qualquer caso, os requisitos de que depende a anulação de um negócio com
fundamento em usura não estavam preenchidos
Caso prático 29

Durante o jantar de natal, Anabela embriagou-se manifestamente, sobretudo devido ao


facto de não estar habituada a ingerir grandes quantidades de álcool. Eufórica, Anabela
acabou por cometer a imprudência de doar a sua bracelete de ouro a Bárbara, que estava
sob o efeito, entre outros estupefacientes, de pastilhas Ecstasy.

Recuperada da embriaguez, Anabela pretende anular a doação. Quid iuris?


Caso prático 30

Em Janeiro de 2020, Frederico, por escritura pública, doou um prédio urbano a Gisela,
porque esta o ameaçou com uma denúncia criminal em razão de um delito fiscal que
Frederico efectivamente cometera.
Em Abril de 2021, porém, o crime em causa acabou por prescrever.
Em Setembro de 2001, Gisela, que havia registado o prédio em seu nome, vende-o a
Horácio que, sabendo tudo o que se passara entre Frederico e Gisela, de imediato
também o regista.
Em Janeiro de 2022, Frederico pretende reaver o prédio. Deve a sua pretensão ser
atendida em tribunal?
A doação de Frederico a favor de Gisela é feita sob coação moral – art. 255:

- Houve uma ameaça ilícita de um mal (denúncia criminal) sobre a pessoa de Frederico
com o fim de obter deste uma declaração negocial (de doação) que acabou por ser
emitida, motivada pelo receio de concretização desse mal (por medo)

Apesar de a denúncia criminal ser um direito de qualquer cidadão nos crimes de natureza
pública (art. 244 CPP), a ameaça de Gisela é ilícita – utilizou a possibilidade de exercer
esse direito com o objectivo de prosseguir um fim indevido (a obtenção da declaração
negocial de Frederico)

O art. 255, n.º 3 fala em exercício normal; a contrario, constitui coação a ameaça do
exercício anormal de um direito – ou seja, o abuso do direito (art. 334)
A declaração negocial extorquida por coação é anulável – art. 256

Frederico terá de arguir a anulabilidade da doação – art. 287

- Tem legitimidade para o efeito – é o coagido

- Tem o prazo de um ano – o medo (vício) de Frederico cessou com a prescrição do crime
em Abril de 2021 (a denúncia criminal deixou de poder ser concretizada). Prazo
terminava em Abril de 2022 mas ele queixou-se em Janeiro de 2022

- Princípio geral: Gisela deve restituir o prédio a Frederico – art. 289


Porém, em Setembro de 2021 Gisela tinha vendido o prédio a Horácio, terceiro face à
doação

O art. 291 é uma excepção à regra do artigo 289 – estabelece a inoponibilidade dos efeitos
da anulação do negócio a terceiros que adquiram direitos sobre os mesmo bens, desde
que se verifiquem os seus requisitos

- Um desses requisitos é a boa fé do terceiro – art. 291, n.º 3

- Horácio conhecia a ameaça de Gisela a Frederico, logo, é um terceiro de má fé, razão


pela qual a excepção do art. 291 não opera – o imóvel tem de ser restituído a Frederico

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