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ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

ALBANO MACIE

DIREITO PENAL 2

PARTE GERAL
(II)

MAPUTO
2021

PARTE II

1
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

TEORIA GERAL DO CRIME OU DELITO

Capítulo IV
ELEMENTOS ACIDENTAIS DO CRIME

100. Definição

São elementos acidentais do crime todas as circunstâncias que, não integrando a


essência do crime, concorrem no facto para a fixação da gravidade (atenuação ou
agravação) do crime e da medida concreta da pena, isto é, para a individualização
legal e judicial1 do castigo. Os elementos acidentais do crime só tem relevância
para agravarem ou enfraquecerem a culpabilidade do agente do crime quando
não sejam elementos essenciais do tipo legal de crime.

Portanto, as circunstâncias são elementos que não compõem o crime e que, sendo
suprimidas, o crime continua a conservar a sua estrutura essencial. Então, as
circunstâncias influenciam na agravação ou atenuação da culpabilidade do
delinquente, isto é, alteram unicamente a sanctio júris cominada ao crime.

Em relação às circunstâncias agravantes, dispõe o artigo 46 do Código Penal (CP)


que as circunstâncias indicadas como agravantes deixam de o ser quando integram
o tipo legal como seu elemento constitutivo; forem de tal maneira inerentes ao
crime, que sem elas, não possa praticar-se o facto criminoso ou se a lei de forma
expressa declarar, ou a circunstância e a natureza especial do crime excluírem a
possibilidade de agravarem a responsabilidade penal do agente.

O artigo 46 do CP visa evitar o bis in idem, pois considerar como agravante uma
circunstância que já integra o crime como seu elemento constitutivo ou que o
qualificam seria valorar ou punir duas vezes o agente pelo mesmo facto.

Em relação ao conceito de circunstâncias, podemos concluir que elas alteram


somente a quantidade da pena a aplicar, mas nunca a qualidade do crime, pois
este alcança o seu aperfeiçoamento jurídico independentemente da ocorrência
desses elementos acidentais, daí que os elementos acidentais gravitam em redor
do crime e só existem em função dele.

As circunstâncias, tendo como efeito agravar ou atenuar a responsabilidade do


delinquente, vamos adicionar-lhes o adjectivo «modificativo», passando a designar-

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As circunstâncias judiciais de individualização da pena estão previstas no artigo 112 do Código
Penal.

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se de «circunstâncias modificativas» da moldura penal abstracta previta para um


certo tipo de crime.

Tem sido discutido na doutrina a questão de saber se «as circunstâncias


modificativas» devem ser estudadas na teoria geral do crime ou na teoria geral da
pena2. O primeiro caminho é da doutrina espanhol e o segundo tem sido prático
na doutrina alemã.

Para o nosso caso, optamos por estudar as circunstâncias modificativas na «Teoria


Geral do Crime», por duas razões de fundo (i) as circunstâncias são elementos
acidentais do crime que afectam a sua gravidade e (ii) o Código Penal
moçambicano colocou os elementos acidentais do crime no Título II, com a
epígrafe «criminalidade e agentes do crime», da Parte Geral e não no Título III, com
a epígrafe «Penas, medidas criminais e efeitos».

101. Classificação das circunstâncias modificativas da responsabilidade

Vamos neste trabalho adoptar os critérios classificativos vertidos na lei penal. Deste
modo, as circunstâncias modificativas podem ser, quanto à sua repercussão na
pena, agravantes e atenuantes (art.º 36 do CP). Por sua vez, as circunstâncias
modificativas agravantes e atenuantes podem ser ambas inerentes ao agente do
crime ou pessoais, portanto, subjectivas (art.º 37 do CP). Já as circunstâncias
agravantes podem ser inerentes ao facto incriminado, sendo, por isso, objectivas
(art.º 38 do CP). Mas nada obsta que uma circunstância agravante seja objectiva e
subjectiva ao mesmo tempo, o que faz que surjam as chamadas circunstâncias
mistas.

As circunstancias podem, doutrinalmente, ser comuns, quando, em princípio,


podem ocorrer e serem apreciadas relativamente a qualquer tipo de crime e são
especiais, quando só possam verificar-se em determinado tipo de crime ou grupo
de delitos.

As circunstâncias, atenuantes ou agravantes, são sempre legais, porque previstas


na lei e reguladas pelo princípio da legalidade, sem prejuízo, quanto às atenuantes,
que podem ser utilizados elementos atenuadores não previstas expressamente na
lei, desde que relevantes, sejam anteriores, ou posteriores ao cometimento do
crime.

São ainda genéricas ou gerais, visto que se aplicam a todas as condutas criminosas,
excepto quanto aos crimes culposos, aos quais não se aplicam as circunstâncias
agravantes subjectivas por razão da sua incompatibilidade teórica e prática, pois

2
Cfr PUIG, Santiago Mir, Derecho Penal, ob. cit., p. 629.

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trata-se, nos crimes negligentes, de violação do dever objectivo de cuidado. Este


entendimento pode ser também extensível aos crimes preterintencionais ou
preterdolosos.

Por fim, o artigo 47 do CP fala de «circunstâncias dirimente», que são a falta de


imputabilidade, a justificação do facto e a exclusão da culpa.

101.1. Circunstâncias inerentes ao agente ou de carácter pessoal. As circunstâncias,


quer atenuantes ou agravantes, inerentes ao agente são de carácter pessoal e
referem-se, essencialmente, à perigosidade ou culpa do agente de crime. Portanto,
nos termos do art.º 37 do CP, “As circunstâncias agravantes ou atenuantes inerentes
ao agente só agravam ou atenuam a responsabilidade desse agente”. Por serem de
carácter subjectivo, as circunstâncias inerentes ao agente não são comunicáveis aos
comparticipantes ou partícipes no crime, daí a terminologia legal «só agravam ou
atenuam a responsabilidade desse agente», excepto se as circunstâncias forem
elementos constitutivos de um tipo legal de crime, momento em que abrangem a
todos os agentes em comparticipação, pois deixam de ser circunstâncias de
agravação da responsabilidade (art.º 46 do CP).

São exemplos de circunstâncias agravantes de carácter pessoal e, portanto,


incomunicáveis o facto de o crime ter sido cometido mediante recompensa,
remuneração ou promessa e tendo o agente a obrigação especial de não cometer
o crime ou obstar que o crime seja cometido 8Circunstâncias 3.ª e 24.ª do art.º 40
do CP).

101.2. Circunstâncias agravantes relativas ao facto incriminado. Estas circunstâncias


são de carácter objectivo e, pelo facto, são comunicáveis a todos os agentes
comparticipantes do facto, «desde que tenham tomado conhecimento delas ou
que devessem tê-las previsto, antes do crime ou durante a sua execução». Estas
circunstâncias dizem respeito à ilicitude do facto criminoso. São exemplos destas
circunstâncias o facto de o crime ter sido cometido com auxílio de pessoas, que
poderiam facilitar ou assegurar a impunidade (Circ. 8.ª); ter sido o crime cometido
com arrombamento, escalamento ou chaves falsas (circ. 10.ª).

101.3. Circunstâncias dirimentes. As circunstâncias dirimentes têm como função


anular a ilicitude de uma conduta, excluindo ou acobertada qualquer
responsabilidade do agente (causas de justificação do facto); ou excluem de forma
absoluta a imputabilidade do agente, anulando-se a acção penal, ou sendo menor,
a remessa do caso à jurisdição especial de menores e as circunstâncias de exclusão
da culpa, produzindo uma forte redução no conteúdo do ilícito e de culpabilidade
do facto. Estas circunstâncias já foram estudadas anteriormente (Ver Albano Macie,
Manual de Direito Penal, Parte Geral 1).

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Passemos à análise das circunstâncias agravantes e depois atenuantes, conforme


as prescrições legais dos artigos 40 a 46.

102. Momento de valoração das circunstâncias agravantes e atenuantes pelo


juiz

As circunstâncias, quer agravantes, quer atenuantes, actuam somente no momento


do cálculo da pena, depois da fixação pelo tribunal da pena base. A lei não
estabelece a quantidade de aumento ou de atenuação da pena por influencia das
agravantes ou atenuantes fixadas na lei penal, deixando ao critério ou à
discricionariedade do juiz, não podendo, contudo, ultrapassar os limites mínimos
ou máximos, quer se trate de atenuantes ou, quer se trate de agravantes,
respectivamente.

A superação dos limites mínimos e máximos das molduras penais previstas para
cada tipo de crime só pode ocorrer nos casos de atenuação especial e agravação
extraordinária das penas, respectivamente.

Secção I

Circunstâncias modificativas agravantes

103. Noção de agravantes e sua natureza dogmática

As agravantes são circunstâncias acidentais, que, cercando a prática da infracção


criminal, são reveladoras de particular culpabilidade do agente, aumentando a
reprovabilidade que a ordem jurídica faz pesar sobre ele em razão de seu crime.

Não há dúvidas de que todas as circunstâncias agravantes aumentam a gravidade


criminal do facto, mas nunca podem alterar a imputação pessoal3. As agravantes
podem ter dogmaticamente a natureza objectiva, subjectiva ou mista, visto que o
tipo legal compreende uma parte objectiva e outra subjectiva.

As circunstâncias modificativas agravantes previstas no artigo 40 do Código Penal


foram aí enumeradas segundo a regra de «numerus clausus», isto é, não pode o
intérprete, em particular o juiz, na determinação da medida concreta da pena,
considerar outras agravantes senão as previstas expressamente na lei penal.

Em relação às agravantes, pode ser debatida a questão de saber se o juiz deve


obrigatoriamente considerar ou apreciar as agravantes que se verificam numa
infracção criminal que julga ou pelo contrário tudo depende do seu livre

3
Cfr PUIG, Santiago Mir, Derecho Penal, ob. cit., p. 645.

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convencimento; ou melhor, goza ou não da margem de livre apreciação, o que


entraria na sua margem de liberdade de aplicá-las ou não, embora ocorrendo no
crime.

Olhando para o artigo 413 do Código do Processo Penal, quanto aos requisitos da
sentença, esta deve, depois do relatório, indicar a fundamentação da decisão
tomada, enumerando os factos provados e não provados, bem como uma
exposição tanto quanto possível completa dos motivos de facto e de direito em que
assenta a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal (n.º 2).

A fundamentação da decisão deve assentar no modo como o juiz terá determinado


a medida concreta da pena e, neste caso, virámo-nos às regras previstas no artigo
112 e seguintes do Código Penal. Vamos analisar abreviadamente estas normas se
dentro delas é possível traçar uma regra que nos permita responder à questão
colocada.

O n.º 2 do artigo 112 preconiza que na determinação da medida de pena o tribunal


atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime,
depuserem a favor do agente ou contra ele. Quer as circunstâncias agravantes,
quer as atenuantes, circundam o cometimento do crime, mas não são seus
elementos constitutivos e, por força desta norma, devem ser atendidas pelo juiz na
determinação da medida da pena.

Para dizer que uma sentença estará bem fundamentada se demonstrar que o juiz
tomou em conta todos os elementos, quer essenciais, quer acidentais do tipo de
crime cometido. Depõe ainda a favor desta posição o facto de que o artigo 116 do
CP manda o juiz agravar ou atenuar a duração da pena de prisão, antes de fixar a
sua duração máxima.

Deste modo, é possível traçarmos duas regras de fundo sobre a questão.

A lei impõe que as agravante ou atenuantes sejam tidas em conta na fixação da


medida concreta da pena.

Mas se o juiz, por exemplo, ignorar as agravantes no todo ou em parte não poderão
colocar-se grandes problemas de nulidade da sentença?

A alínea c) do n.º 1 do artigo 418 do Código do Processo Penal (CPP) dispõe que a
sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que
devesse apreciar.

Imagine-se uma situação em que o crime de homicídio voluntário, previsto e


punido pelo artigo 159 do CP, foi cometido contra uma pessoa de 75 anos de
idade, quando esta se encontrava a limpar a campa do seu ente querido no

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cemitério familiar. Como se pode notar, o crime de homicídio é acompanhado por


duas circunstâncias agravantes previstas no artigo 40, circunstâncias 6.ª e 16.ª,
respectivamente contra um idoso e no cemitério.

Em termos concretos, estas duas circunstâncias agravarão a pena dentro dos limites
mínimo e máximo da moldura da pena aplicável, isto é, entre 16 e 20 anos.
Suponha-se que não concorre nenhuma outra agravante, nem atenuante a favor do
agente e o juiz aplicou a pena concreta de 16 anos de prisão ao mesmo.

Haverá aqui alguma nulidade da sentença pelo facto de o juiz não ter tomado em
consideração, nos termos do n.º 2 do artigo 112 do CP e da alínea c) do n.º 1 do
artigo 418 do CPP, as agravantes que, eventualmente, colocariam a pena concreta
em 17 anos?

Nesta situação é possível afirmar-se que não há problema, apesar de o juiz não ter
tomado em conta as agravantes, visto que a questão resolveu-se a favor do agente,
mas contra a sociedade e, como se sabe, a lei penal é a Constituição e garantia do
agente do crime contra os eventuais excessos do poder punitivo do Estado.
Portanto, neste caso, seria defensável um tal princípio de não coactividade de
aplicação das agravantes gerais. Mas para a sociedade parece dever-se atender as
agravantes.

Mas é uma questão em aberto!

Mas o mesmo não se pode dizer quanto às circunstâncias atenuantes. Estas devem
necessariamente ser tomadas em conta, sob pena de nulidade manifesta da
sentença, pois, constituem elementos preponderantes para a atenuação da
responsabilidade do agente e, consequentemente, para a fixação de pena menos
grave. São neste caso garantias do arguido que não podem ser postas em causa,
sob pena de nulidade da sentença. Aqui é defensável o princípio da
obrigatoriedade de apreciação das atenuantes.

104. Análise das circunstâncias previstas no artigo 45 do CP

Vamos detidamente apreciar as circunstâncias agravantes previstas no artigo 40 do


Código Penal.

1.ª - A Premeditação. – O conceito de premeditação está actualmente fixado no


artigo 41 do CP. Assim, diz-se premeditação o “… desígnio, formado ao menos vinte
e quatro horas antes, de praticar um acto com relevância criminal, ainda que este
desígnio seja dependente de alguma circunstância ou de alguma condição”. É um
conceito que em certas ordens jurídicas foi eliminado como qualificativo do crime
de homicídio, computando-o em homicídio qualificado ou agravado, como é do

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nosso artigo 160, alínea a). São os casos de Alemanha e, depois, recentemente,
Portugal (Ver § 212 (2) do Código Penal Alemão e art.º 132.º do Código Penal
Português, respectivamente).

O conceito de premeditação fixado no artigo 41 vale tanto para o artigo 40, alínea
a) como também para o artigo 160, alínea a). Portanto, é um conceito geral válido
para todo o Código Penal. O actual Código, ao tê-lo transferido da parte especial,
deu-lhe este carácter geral de modo expresso, a denotar da função dos
preceitos/princípios constantes da Parte Geral do Código Penal.

A doutrina estrangeira nunca chegou a um consenso sobre o sentido do conceito


de “premeditação”. Sempre se discutiu se a premeditação denotaria um maior grau
de depravação moral do agente, de perversidade, ou, pelo contrário, denotaria
uma maior resistência à prática criminosa. Daí que o “valor e sentido de tal
agravante tem sido objecto de muitos estudos e vivas discussões e vem-se
mostrando de tal sorte duvidoso que certos sistemas legislativos a suprimiram dos
seus quadros (…)”4.

Na nossa lei penal, a premeditação é um dos traços caracterizadores do homicídio


qualificado ou agravado, como é também uma agravante de ordem geral ou
comum aplicável a qualquer tipo de crime.

Ao abrigo do artigo 41 do CP, para que haja premeditação basta que, formalmente,
decorra um lapso de tempo mínimo de 24 horas de duração da decisão de cometer
o crime, sem o qual não se verificaria esta circunstância.

É uma circunstância relativa à culpa e personalidade do agente e, portanto,


incomunicável aos comparticipantes.

2.ª - O motivo fútil. – Diz-se fútil ”o motivo que, pela sua mínima importância, não
é causa eficiente para o crime”5. Motivo fútil é, de facto, uma causa insignificante,
mesquinha e manifestamente desproporcional em relação ao resultado, e que, ao
mesmo tempo, demonstra insensibilidade moral do agente. Por isso, o motivo fútil
é apreciado mediante as regras de experiência (id quod plerumque accidit.), daí
que o motivo fútil é, à luz de critérios de homem médio, irrazoável e, por isso, revela
um grau particular de perversidade do agente do crime. Normalmente, o nível
social e o estado dos agentes do crime devem ser tidos em conta na apreciação
pelo juiz do motivo fútil. Por exemplo, matar alguém por divergência inicialmente
originada por causa da posse de uma enxada e, posteriormente, em razão de
discussão acerca da bebida de aguardente no bairro matar alguém; ou matar
alguém por ciúme. Estas mortes seriam por motivo fútil. Mas o motivo fútil e a

4
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., Vol. II, p. 296.
5
HUNGRIA, Nelson et al, Comentários ao Código Penal, Vol. V, 5.ª edição, GZ editora, 2018, p. 141.

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embriaguez, mesmo incompleta, são incompatíveis: “A perturbação que produz na


mente do réu a embriaguez, mesmo incompleta, não permite juízo de proporção
entre o motivo e a sua acção. Dai a incompatibilidade existente entre a
qualificadora do motivo fútil e aquele estado”6.

É uma circunstância relativa à culpa e incomunicável aos comparticipantes.

3.ª - O crime ter sido cometido mediante recompensa, remuneração ou sua


promessa. Trata-se de uma causa motivadora excepcional para o cometimento de
crime. É uma circunstância de natureza pessoal e incomunicável aos
comparticipantes. Escreve CORREIA que “Quem comete o crime por dádiva ou
promessa, ou seja, por um preço pago por outrem de antemão ou oferecido, para
depois, revela uma particular baixeza de sentimentos e, portanto, uma particular
capacidade criminosa”7.

Esta circunstância implica desde logo a existência de um homem-de-trás que,


mediante acordo de recompensa, remuneração ou sua promessa, se predispõe a
pagar certo preço ao homem-da-frente como contrapartida do trabalho realizado.

Normalmente tem-se ligado esta circunstância ao cometimento de crime por


motivo torpe. O motivo torpe é “aquela qualificadora que não se ajusta com
qualquer sentimento nobre do homem, e sim revela seu possuidor cupidez,
vingança (…) é qualificativa de cometimento do crime mediante pagamento ou
promessa de recompensa que, embora relativa ao mandatário, se comunica ao
mandante, v.g., o homicídio praticado por pagamento ou por qualquer outro
motivo que atente à consciência do homem comum. É o motivo abjecto,
repugnante, indigno, tal como ocorre com o que se pronuncia pelo fim de lucro ou
cupidez”8.

É uma circunstância relativa à culpa e à má formação da personalidade do agente.

4.ª - Para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a


vantagem de outro crime. – É também designado de motivo torpe o facto de se
cometer um crime para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a
vantagem de outro crime. Há, portanto, dois crimes conexos, sendo um
instrumento do outro. “A lei pondera a vontade ilícita que não recua diante de um
facto delituoso para assegurar a prática, as vantagens ou a não punição de outro, e
exaspera a pena que irá ser aplicada ao seu autor”9. Ocorre, no fundo a acumulação
ou concurso de crimes, seja real ou aparente, e nada repugna a possibilidade de
uma continuação criminosa. Se o crime cometido como instrumento de outro for

6
FRANCO, Alberto Silva et al, Código Penal …ob. cit., p. 992.
7
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. Cit., Vol. II, p. 377.
8
FRANCO, Alberto Silva et al, Código Penal …ob. cit., p. 997.
9
FRANCO, Alberto Silva et al, Código Penal …ob. cit., p. 999.

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consumado ou tentado e corresponder a pena superior a dois anos não se verifica


esta circunstância agravante, visto que passa a ser elemento constitutivo do crime
de homicídio agravado [art.º 160, alínea d)], por força do art.º 46, n.º 1 alínea a),
todos do CP.

Como diz MAIA GONÇALVES “Não é necessário que o crime fim tenha sido
consumado ou mesmo que se pratiquem actos de execução do mesmo. Basta que
a vontade do delinquente esteja dirigida ao crime fim, pois fica desde logo
verificado o pressuposto da agravação, ou seja a apontada particular
perversidade”10.

Esta é uma circunstância de natureza pessoal e inerente à culpa do agente e,


portanto, incomunicável aos comparticipantes.

5.ª - Por razões de discriminação racial, nacional, étnica, ideológica, religiosa,


sexual, de doença ou deficiência física ou psíquica. – Esta é uma circunstância
relativa à ilicitude do facto, mas também à culpa, sendo, por isso, uma circunstância
mista. A Constituição da República, no seu artigo 35, estabelece o princípio da
universalidade e igualdade, sendo que “Todos os cidadãos são iguais perante a lei,
gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres,
independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião,
grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou ocupação
política”. Portanto, estes valores constitucionais são especialmente protegidos pela
lei, dai que a sua violação acarreta uma maior ilicitude da conduta e uma maldade
demonstrada pelo agente ao não respeitar a diversidade e pluralidade religiosa,
racial, étnica, liberdade de consciência, de culto, o género e demais situações que
requerem tolerância das diferenças dentro de um Estado de Direito Democrático
que é Moçambique. Esta circunstância quando constituir elemento de um tipo legal
deixa de ser agravante, sendo o caso do crime de «discriminação racial, étnica ou
religiosa», previsto e punido pelo artigo 191 do CP.

6.ª - Contra menor, idoso, mulher grávida ou pessoa enferma. – Esta


circunstância fundamenta-se na impossibilidade real de defesa da vítima pelo seu
estado físico reduzido por ser menor, idoso, mulher grávida ou pessoa enferma.
Trata-se de uma sensível diferença entre o agente do crime e a vítima. Aliás, as
vítimas, neste caso, um menor, idoso, mulher grávida ou pessoa enferma, carecem
de protecção. Ora, o agente ao cometer o crime contra elas demonstra um grau
maior de falta de humanidade, benevolência, clemência e complacência; por isso,
mostra o grau mais alto da maldade e covardia do agente, que não se deteve diante
da condição digna de compaixão e respeito pelo menor, idoso …

10
MAIA GONÇALVES, Manual Lopes, Código Penal …, ob. cit., p. 68.

10
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

A legislação nacional utiliza a nomenclatura menor para referir-se a todo o


indivíduo que ainda não tenha maioridade penal, no caso 16 anos, submetendo-se
aos tribunais tutelares de menores (art.º 48 do CP). Mas menor é, ainda em termos
civis, todo o indivíduo que ainda não tenha atingido 21 anos (art.º 122.º do Código
Civil). A competência do tribunal tutelar de menores, para efeitos penais, cessa
quando o menor tenha atingido 16 anos, podendo ser estendida
excepcionalmente até aos 21 anos, quanto à revisão da medida penal em
execução, quando a personalidade do menor e as circunstâncias do facto sejam
menos graves11.

Considera-se idoso, para efeitos penais, o indivíduo que tenha atingido 60 anos, já
que esta idade atenua o facto criminoso (art.º 45, Circ. 3.ª do CP).

Mulher grávida é toda a pessoa do sexo feminino que se encontra no processo de


gestação, encontrando-se, portanto, na situação de vulnerabilidade.

Enfermo é toda a pessoa que se encontra na situação de doença que lhe reduz a
capacidade física e de resistência, tornando-o presa fácil12.

É uma circunstância objectiva relativa à ilicitude e, portanto, comunicável aos


demais agentes.

7.ª - Mediante convocação, pacto ou execução entre duas ou mais pessoas. – A


vítima tem menor possibilidade de defesa por enfrentar ao mesmo tempo vários
agentes. Trata-se de um crime cometido por várias pessoas, isto é, em
comparticipação. A realização do crime por várias pessoas aumenta a possibilidade
do seu sucesso o que agrava a responsabilidade. Esta circunstância implica uma
maquinação anterior dos agentes para a prática do crime. É uma circunstância
mista, sendo objectiva e ao mesmo tempo subjectiva. Quando objectiva e porque
ligada à ilicitude é comunicável aos restantes membros do grupo; sendo subjectiva,
então é relativa à culpa sendo assim incomunicável aos comparticipantes. Tudo
dependerá do modo de actuação dos agentes do crime.

É uma circunstância relativa às formas de aparecimento do crime: a


comparticipação.

8.ª Com auxílio de pessoas que poderiam facilitar ou assegurar a


impunidade. – É uma circunstância objectiva relativa à ilicitude do facto e
comunicável aos participantes. A vítima tem menor possibilidade de defesa o que
aumento a possibilidade de sucesso do desígnio criminoso.

11
Cfr artigos 24, 25 e 26 da Lei n.º 8/2008, de 15 de Junho, Lei da Organização Tutelar de Menores,
publicada no Boletim da República, I Série, n.º 28, Suplemento.
12
Cfr FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, ob. cit., p. 352.

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É uma circunstância relativa às formas de aparecimento do crime: a


comparticipação.

9.ª Com espera, emboscada, disfarce, surpresa, traição, aleivosia, excesso de


poder, abuso de confiança ou qualquer fraude. – É uma circunstância relativa ao
modo, meio e instrumento, sendo constituída por vários conceitos que podem ser
definidos individualmente e, para que cada circunstância ocorra não é necessário
a verificação de outras. Portanto, o legislador cumulou várias circunstâncias numa
única disposição, sendo que a sua análise será feita individualizando-se cada
circunstância13.

1.º - as primeiras duas expressões «espera e emboscada» exprimem ambos a ideia


de se esperar alguém para o agredir ou ofende, mas a emboscada envolve, a mais,
a ideia de ser a espera às escondidas.

2.º - o «disfarce» expressa a ideia de alguém se vestir ou de mascarar-se de sorte


que não pareça quem é. o disfarce não constitui agravante quando não tenha com
o crime relação directa, ou quando se não tenha empregado para o cometer, ou
calculando-se a eventualidade de quem o cometa. Por exemplo, “se um indivíduo
se mascarou para concorrer a um baile de máscaras e somente com este propósito,
e aí, levantando-se um conflito ou travando-se uma desordem, feriu alguém, o facto
de estar mascarado não constitui circunstância agravante”14.

3.º - a «surpresa» consiste em tomar alguém de improviso, apanhá-lo desprevenido,


descuidado. O que pratica o crime com esta circunstância revela maior grau de
perversidade pois não deixa ao ofendido a possibilidade de defesa, é um cobarde.

4.º - a «traição» expressa a perfídia, deslealdade. Cometer um crime com traição é


praticá-lo sem defesa da vítima, não de rosto a rosto. “A traição é o género de que
são espécies a emboscada e a surpresa”15.

5.º - a «aleivosia» é a maquinação contra a vida ou a pessoa de alguém, seus bens


ou honra, com mostras de amizade. Segundo Pacheco Faria16 «a aleivosia é uma
das maiores vilezas a que pode rebaixar o delinquente, e também um dos perigos
que mais alarma a sociedade inteira. O aleivoso é semelhante ao réptil, que chega
calado, arrastando-se sem anunciar a sua ira, sem dar lugar à defesa. Por isso
mesmo que foge ao perigo, se torna mais abjecto e mais odioso. A lei deve fazer
com ele o que fazemos com os répteis: calcá-lo sem misericórdia. É esta uma

13
Abel do Vale, Anotações, 107 apud MAIA GONÇALVES, Manual Lopes, Código Penal …, ob. cit., pp.
70-71.
14
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., Vol. II, p. 361.
15
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., Vol. II, p. 361.
16
Apud CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., Vol. II, p. 362.

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circunstância agravante que o instinto inspira e que a reflexão aprova e consagra.


Não se dá em todos os delitos, mas enegrece aqueles sobre quem recai».

6.º - o «excesso de poder», como se pode pretender em Direito Administrativo


como sendo a actuação do órgão administrativo fora da esfera ou dos limites da
sua competência, no Direito Penal não se trata necessariamente de transpor este
conceito. Como circunstância agravante, o excesso de poder consiste no facto de
um indivíduo que tenha poder sobre alguém, seja administrativo, político, religioso,
parental, etc., comete um crime para com o seu dependente, com abuso do seu
poder sobre o ofendido. A vítima está sob dependência hierárquica, económica,
moral em relação ao agente de crime, por isso, a possibilidade de defesa reduz-se
o que aumenta a possibilidade de sucesso da acção criminosa. O excesso de poder
e o desvio de poder são espécies do abuso de poder.

7.º - o «abuso de confiança» é uma circunstância que se aplica quando o crime é


cometido por quem a vítima depositava nele confiança, ferindo os sentimentos de
honra, lealdade e honradez. Portanto, o delinquente trai a confiança da vítima. O
agente age de forma desprezível e com ignomínia. Nos termos do artigo 296 do
CP, o abuso de confiança é um tipo de crime. Neste sentido, se o delinquente
comete o crime de abuso de confiança não faz sentido a apreciação e aplicação
desta agravante, visto que integra o tipo legal [art.º 46, n.º 1/a) do CP].

8.º - e «qualquer fraude», seguindo os ensinamentos de Abel do Vale, “… é enganar


com embutes, com mentiras, com artimanhas. Tal procedimento revela carácter
baixo e vil, e o sentimento moral revolta-se contra quem assim procede”17. A fraude
quando constitutivo ou descritivo de um certo tipo de crime deixa de ser agravante,
é o caso do crime de burlas [art.º 46, n.º 1/a) do CP].

10.ª Com arrombamento, escalamento ou chaves falsas. – É uma circunstância


relativa ao modo, instrumento e meio de cometimento do crime e diz respeito á
ilicitude, o que a torna comunicável aos comparticipantes. O arrombamento,
escalamento e chaves falsas constitui quando constitui elementos de um crime
cessa o efeito agravante, como é o caso do crime de roubo, previsto e punido pelos
artigos 279 a 282 do CP [art.º 46, n.º 1/a) do CP]. Diz-se «arrombamento» o
rompimento, fractura ou destruição, em todo ou em parte, de qualquer construção
que servir para fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou
lugar fechado dela dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer
objectos; «escalamento», a introdução em casa ou lugar fechado, dela dependente,
por cima de telhados, portas, paredes, ou de quaisquer construções que sirvam
para fechar a entrada ou passagem, e bem assim por abertura subterrânea não
destinada para entrada e «chaves falsas»: a) as imitadas, contrafeitas ou alteradas;

17
Apud MAIA GONÇALVES, Manual Lopes, Código Penal …, ob. cit., p. 70.

13
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

b) as verdadeiras, existindo fortuita ou sub-repticiamente fora do poder de quem


tiver o direito de as usar; c) as gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir
para abrir fechaduras (art.º 283 do CP).
O arrombamento, escalamento e chaves falsas facilitam a execução do crime e
aumentam o repique social, que já anda com todas as casas, edifícios gradeados e
implicam sempre a redução do grau de defesa da vítima. São comunicáveis pois,
relativas à ilicitude do facto.

11.ª Por meio de veneno, instrumento ou arma cujo porte e uso for proibido. –
o uso de veneno, instrumento ou arma cujo porte e uso for proibido revela,
segundo Pacheco, uma grande barbaridade e feroz malvadez; provoca natural e
espontaneamente brados de indignação contra o agente de crime; revolta a
consciência pública; produz grande alarme na sociedade e pede severíssimo
castigo18. O veneno, em particular, é de difícil descoberta o que torna o seu
processo mais complexo, quando constitui um tipo legal de crime, no caso do
artigo 162 do CP, deixa de ser agravante.

A utilização de meios cuja posse e uso são proibidos por lei causa um mal para além
do próprio crime cometido pelo seu carácter insidioso do seu uso, tornando mais
eficaz a actuação do agente e reduzindo a capacidade de defesa da vítima. Os
meios, embora proibidos, podem ser utilizados por via de remoção da proibição,
através da concessão de licenças. Nestes casos não há acumulação de crimes, pois
o meio utilizado encontra-se na posse do seu legítimo titular por força da licença,
mas não havendo licença, dar-se-á a acumulação de crimes entre o cometido
através dos meios proibidos e o de uso de meios proibidos.

12.ª Por ocasião de incêndio, explosão, naufrágio, terramoto, inundação,


óbito, acidente ou avaria de meios de transporte automóvel, aéreo e
ferroviário, qualquer calamidade pública ou desgraça particular do ofendido.
– Nesta circunstância trata-se de agravar o crime cometido por aproveitamento da
situação de desgraça alheia pelo delinquente. É o caso de crime de furto de bens
de pessoas acidentadas. É uma circunstância relativa à ilicitude do facto e torna
mais fácil a execução do crime e sem possibilidade de as vítimas defenderem-se.

13.ª Com o emprego simultâneo de diversos meios ou com insistência em o


consumar, depois de malogrados os primeiros esforços. – Esta circunstância
revela o carácter criminoso do agente, a sua persistência em delinquir. O emprego
simultâneo de diversos meios para consumar o crime demonstra a preparação e o
empenho do delinquente na concretização do seu desígnio e coisa diversa é a

18
Apud MAIA GONÇALVES, Manual Lopes, Código Penal …, ob. cit., p. 71.

14
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

insistência em consumar o crime, depois de fracassadas as primeiras tentativas o


que demonstra a perseverança e devoção do agente ao crime.

É uma circunstância mista, sendo comunicável aos demais delinquentes na parte


relativa à ilicitude (emprego de meios diversos de forma simultânea) e subjectiva
quando à insistência em consumar o crime, sendo por isso incomunicável.

14.ª Entrando o agente ou tentando entrar em casa do ofendido. – Esta


circunstância quando constituía elemento de um crime deixa de ser agravante; é o
caso do artigo 250 do CP [art.º 46, n.º 1/a) do CP]. Trata-se de uma entrada não
consentida pelo ofendido e, portanto, uma entrada violenta ou fraudulenta; se a
entrada tiver sido consentida e depois no interior da casa o delinquente cometer o
crime, já aqui se discute o problema de abuso de confiança e integra-se na
circunstância 9.ª.

15.ª Na casa de habitação do agente, quando não haja provocação do


ofendido. – Como escreve Eduardo CORREIA, citando Manzine, que “Aquele que
ofende outrem em sua casa viola um dever de hospitalidade e revela, por isso, uma
maior baixeza de sentimentos, mas a um tempo, aumenta a possibilidade do
ataque e a dificuldade de defesa na medida em que envolve um abuso de
confiança e uma protecção à superioridade de meios por parte do defensor” 19. A
provocação exclui a agravante, visto que o abuso fica sem efeito.

É uma circunstância de natureza objectiva relativa á ilicitude e, portanto,


comunicável.

16.ª Em lugares destinados ao culto religioso, em cemitérios ou em repartições


públicas. – Esta circunstância refere-se ao lugar onde a infracção é cometida,
pretendendo o legislador proteger a integridade desses locais e o respeito pela
autoridade religiosa, a memória dos mortos e a autoridade pública. É uma
circunstância mista, dependendo dos casos, quando se referir à ilicitude do facto é
comunicável e quando relativa a culpa é somente pessoal.

17.ª Em estrada ou lugar deserto. – Esta circunstância tema a ver com o lugar de
cometimento da infracção. É uma circunstância relativa à ilicitude do facto e,
portanto, comunicável aos comparticipantes. Em relação ao facto de o crime ser
cometido na estrada, o legislador quis sancionar ainda mais o facto de o crime ter
sido cometido com publicidade (não confundir publicidade com crime público,
pois este facto tem a ver com a titularidade ou procedibilidade da acção penal),
afectando a segurança e tranquilidade públicas; em relação ao lugar deserto é o
mesmo que o crime foi cometido em lugar ermo, o que pode tornar reduzida a

19
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., Vol. II, pp. 365-366.

15
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

capacidade de defesa da vítima, aumenta a intensidade do dolo e torna o processo


da sua investigação mais complexo ou de difícil descoberta.

18.ª De noite, se a gravidade do crime não aumentar em razão de escândalo


proveniente da publicidade. – É uma circunstância ligada à ilicitude do facto e
comunicável aos comparticipantes. Não é preciso que o agente tenha planeado
praticar o crime de noite para que a circunstância seja aplicada, basta o facto de ser
noite, pois facilita a prática do crime e dificulta a investigação do mesmo. A noite
acrescenta a maldade do agente e a dificuldade de defesa da vítima.

19.ª Por qualquer meio de publicidade ou para que a sua execução possa ser
presenciada, nos casos em que a gravidade do crime aumente com o
escândalo da publicidade. – É uma circunstância relativa à ilicitude do facto, sendo
comunicável aos comparticipantes. A publicidade é uma circunstância que
aumenta a gravidade do crime e cria maior dano na esfera social.

20.ª Com desconsideração da qualidade de servidor público, no exercício das


suas funções. – Desprezar um servidor público aumenta a gravidade do crime, pois
é pôr em causa as funções públicas, e em último caso desconsiderar o Estado,
titular do poder punitivo. Qualquer servidor público deve merecer respeito, em
particular, quando esteja a exercer o seu ofício. Cometer crime desprezando o
servidor público demonstra a ânimo e arrojo do agente na actividade criminal.
Portanto, o agente comete ao mesmo tempo, pelo menos, dois crimes em
concurso, um o de desconsideração do servidor público em serviço e o outro que
é cometido em desconsideração do agente público.

É uma circunstância ligada à ilicitude do facto e, portanto, comunicável aos


comparticipantes.

21.ª Com quaisquer actos de crueldade, espoliação ou destruição,


desnecessários à consumação do crime. – A prática dos actos mencionados nesta
circunstância dizem respeito à personalidade do agente e, por isso, à sua culpa,
sendo por isso um motivo pessoal e comunicável aos demais agentes participantes
do crime. Portanto, há um intento deliberado do agente de servir-se de todos estes
actos ou parte deles para a consumação do crime. Crueldade é agir com maldade
e perversidade no cometimento do crime; espoliação é usar artimanhas, fraude ou
violência para tirar alguma coisa que não lhe pertence; destruição é inutilizar coisa
alheia de modo não proveitoso, embora desnecessário, para o cometimento de
crime.

22.ª Com abuso de autoridade ou prevalecendo-se o agente de relações


domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. – Os elementos desta
circunstância sendo constitutivos de tipo legal de crime cessam a sua função
agravadora, sendo, por exemplo, o caso dos crimes cometidos com abuso de

16
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

autoridade previstos nos artigos 415 e seguintes do Código Penal. No fundo, trata-
se de violação de deveres profissionais do cargo, ou de condição de patrão nas
relações de trabalho doméstico ou de quem acolhe outros em sua casa. É uma
circunstância que só pode ser aplicada a quem tenha autoridade ou fazendo
prevalecer a qualidade de empregador doméstico ou acolhedor.

23.ª Com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício ou


profissão. – Esta circunstância não tem de muito diferente com a anterior. Uma
função, um cargo ou ofício pressupõe a descrição no qualificador profissional de
tarefas concretas que, depois, em termos de chefia, podem corporizar as chamadas
competências. Ora, agir com abuso de poder ou violação de deveres inerente a
cargo, função ou profissão implica o dever especial de agir de acordo com as
imposições da função, sem exceder seus limites. É uma circunstância relativa à
pessoa que exerce ofício, cargo ou profissão.

24.ª Tendo o agente a obrigação especial de o não cometer, de obstar a que


seja cometido ou de concorrer para a sua punição. – O delinquente comete
um crime, mas impendendo-lhe o dever especial de não praticar o facto, o que
aumenta a sua responsabilidade, pois é como se tivesse violado os seus deveres de
evitar que o crime seja cometido. Portanto, o delinquente tem relações especiais
em relação à vitima, que pode ser, por exemplo, violação de um menor, que
deveria ser protegido pelo agente do crime, sendo este, por exemplo, casado.

25.ª Havendo o agente recebido benefícios do ofendido, quando este não


houver provocado a ofensa que haja originado a perpetração do crime. – Trata-
se de uma circunstância relativa à culpa do agente e, portanto, incomunicável aos
comparticipantes. É uma situação em que o agente de crime trata com
inconsideração à vítima, visto que esta teria em algum momento concedido certos
benefícios ao agente; a partir deste momento o agente viola o dever de gratidão e
revela uma má formação da personalidade e baixeza de sentimentos.

26.ª Contra ascendentes, descendentes, parentes até ao terceiro grau da linha


colateral, ou afins, cônjuge ou pessoa em situação análoga.- Esta situação
coloca em causa “a insensibilidade moral do agente que se manifesta na violação
dos sentimentos de estima, solidariedade e apoio mútuo entre parentes
próximos”20. É sempre necessário fazer-se a prova de relações de parentesco entre
a vítima e o delinquente.

Em relação ao cônjuges ou unidos de facto a agravante só releva enquanto durar o


vínculo matrimonial ou a união de facto. Quando se fala de situação análoga a dos
cônjuges não se inclui aí a situação de namorados, é somente a de união de facto.

20
FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, ob. cit., p. 1006.

17
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

É uma circunstância de natureza objectiva relativa à ilicitude, sendo, por isso,


comunicável.

27.ª Com manifesta superioridade em razão da compleição física, idade ou


armas. – É uma situação que se refere à ilicitude do facto, comunicável aos
comparticipantes. Trata-se de defender os mais fracos, pelo facto de o agente ter
uma compleição física superior à da vítima, que lhe impossibilita uma defesa eficaz,
ou a vítima ser menor ou idoso; ou o agente portar armas, sejam de fogo ou não.
Em relação à idade, se a vítima for pessoa idosa, então esta circunstância não pode
ser aplicada ao mesmo tempo com a circunstância 6.ª, sob pena de bis in idem.

28.ª Estando o ofendido sob a imediata protecção da autoridade pública. –


Se a vítima está nas mãos da autoridade pública, está nas mãos certas, pois detém
o poder de autoridade estatal. O agente que cometer um crime cuja vítima esteja
nas mãos da autoridade pública significa desrespeito e desrespeito para com a
autoridade pública. Portanto, ofende-se um bem jurídico individual da vitima e o
respeito pela autoridade, o que aumenta o sentimento de reprovação do facto.

É uma circunstância mista.

104.1. A reincidência, em especial

A circunstância agravante 29.ª é a «reincidência de crimes», regulada


especialmente no artigo 42 do Código Penal.

Vamos detidamente analisar o conceito, os requisitos e efeitos da reincidência.

a) Conceito da reincidência

A reincidência, à luz do direito positivo anterior, Código de 2014 e o anterior de


1886, classificava-se em genérica e específica ou própria. Em ambas as
reincidência, a ideia básica era o desrespeito pela lei e pela condenação ou
advertência anterior efectuada por um magistrado judicial, mas a diferença era a
seguinte:

- na sucessão de crimes ou reincidência genérica, imprópria ou polítropa, não se


exigia que os crimes fossem da mesma natureza, independentemente de terem
transcorridos mais de oito anos entre a condenação anterior e o cometimento do
segundo crime; sendo da mesma natureza os crimes, desde que tenham passado
mais de oito anos desde a condenação anterior e a perpetração do segundo crime
(art.º 40 do CP de 2014).

- como se pode depreender, na reincidência específica, própria ou homótropa,


exige-se a condenação transitada em julgado; antes de decorridos oito desde a

18
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

condenação anterior e perpetra novo crime da mesma natureza com o anterior


(art.º 38 do CP de 2014).

A reforma de 2019 suprimiu a reincidência genérica, isto é, a sucessão de crimes.


Com efeito, a nova reforma procurou limitar os efeitos agravantes da reincidência.

Em termos de conteúdo, podemos afirmar que a reincidência ocorre quando, nos


termos do n.º 1 do art.º 42 do CP, “o agente, tendo sido condenado por sentença
transitada em julgado por algum crime, comete outro da mesma natureza antes de
terem passado oito anos desde a condenação, ainda que a pena do primeiro crime
tenha sido prescrita, perdoada ou indultada”.

A reincidência é, por assim dizer, uma circunstância agravante modificativa comum


que altera gravosamente a medida abstracta da pena.

Esta noção é criticável por três motivos:

1.º - o delinquente sofre a agravação da pena de modo pouco justo, visto que nem
sempre o reincidente é o delinquente mais perverso, nem mais culpável, nem o
mais perigoso em confronto com o primário21, por exemplo, um autor primário de
assassinatos em série ou de várias violações pode ser mais perigoso que um autor
de ofensas corporais simples, embora reincidente nessas ofensas corporais.

2.º - o Estado, titular do poder punitivo, não deixa de ser um dos estimuladores da
reincidência na medida em que não tem estabelecimentos prisionais adequados
para a ressocialização dos condenados e, ao invés de os condenados tornarem-se
bons homens, tornam-se nas prisões verdadeiros homens de crimes. Assistimos
hoje crimes cometidos a partir das cadeias nacionais.

3.º - olhando para o princípio da legalidade, que proíbe a dupla punição do agente
pelo mesmo facto, o tal ne bis in idem, a reincidência ao exigir a condenação em
crime anterior e da mesma natureza, embora antes de passados oito anos, está a
punir duas vezes a mesma pessoa pelo mesmo facto, o que põe em causa a
constitucionalidade desta circunstância agravante. A dupla valoração dos factos
atenta, por isso, ao princípio da reserva da lei prescrito pelo artigo 60 da
Constituição e o nosso direito penal é ainda direito penal do facto e não do autor
do crime. Um mesmo facto não pode ser tomado em consideração com plurais
efeitos fundamentadores ou agravatórios da responsabilidade mesmo porque a
sanção repetida de uma mesma conduta possibilita uma inadmissível reiteração no
exercício do ius puniendi do Estado (DIAS PABLO). O princípio da legalidade não
admite, em caso algum, a imposição de pena superior ou distinta da prevista e
assinalada para o crime e que a agravação da punição, pela reincidência, faz no

21
Cfr JESCHEK, Hans Heinrich, Tratado de Derecho Penal, ob. cit., Vol. I, p. 812.

19
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

fundo com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes22 (QUINTERO
OLIVARES).

Nas contravenções dá-se a reincidência quando o agente, condenado por uma


contravenção, comete contravenção idêntica ou não, antes de decorrerem seis
meses, contados desde a dita punição (n.º 7 do art.º 42 do CP).

A reincidência é uma circunstância subjectiva, relativa à personalidade do agente,


sendo, por isso, incomunicável aos comparticipantes.

b) Requisitos da reincidência
Em relação aos requisitos, a reincidência, conforme o artigo 42 do CP, pode ter três
elementos, um passado, um presente e outro relacional23.

1.º - elemento do passado. A reincidência assenta numa condenação anterior


transitada em julgado por algum crime.

A sentença transitada em julgado é toda a decisão judicial que já não é objecto de


recurso ordinário. Ora, para que haja reincidência basta a condenação anterior, não
importando se o agente cumpriu ou não a pena; se a pena prescreveu ou não; foi
ou não perdoada ou indultada.

Basta somente a condenação com trânsito em julgado.

Em relação às condenações proferidas no estrangeiro, estas contam para efeito de


reincidência desde que o facto de condenação no estrangeiro constitua crime
também em Moçambique, segundo a legislação penal nacional (n.º 6 do art.º 42 do
CP).

2.º - elemento do presente. A reincidência implica o cometimento de um novo


crime no presente. Isto é, o agente delínque novamente após a condenação
transitada em julgada: o momento de delinquir há-de ser posterior a condenação
anterior transitada em julgado.

Os crimes amnistiados não contam para efeitos de reincidência, pois os efeitos da


amnistia são a extinção da punibilidade e suas consequências, inspirada por
considerações de ordem política e na necessidade de paz social. A amnistia tem
efeitos ex tunc sobre o crime, isto é, destrói todo o caso julgado, apagando todos
os efeitos da condenação.

3.º - elemento relacional. Para que haja reincidência, é preciso que haja uma
relação entre os crimes anteriormente condenados com trânsito e julgado e os

22
Cfr FRANCO, Alberto Silva et al, Código Penal …ob. cit., p. 1019.
23
Cfr PUIG, Mir, Derecho Penal, ob. cit., pp. 654-656.

20
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

cometidos no momento presente: (i) devem ser da mesma natureza; (ii) e entre eles
não terem decorridos oito anos (n.º 1 do art.º 42 do CP).

Os crimes são da mesma natureza quando são compreendidos no mesmo título ou


capítulo do Código Penal; os crimes que traduzem o mesmo fim imediato do
agente ou fins análogos, os mesmos crimes sob ponto de vista da ilicitude e da
culpa e os crimes culposos que representam a infracção dos mesmos deveres ou
deveres afins (BELEZA DOS SANTOS); os crimes com identidade de interesses e
identidade fundamental dos elementos constitutivos, reconduzíveis à ideia
fundamento das relações de consunção e de especialidade (EDUARDO CORREIA);
os crimes que têm o mesmo género de corrupção, hábito orientado para a mesma
direcção (CAVALEIRO DE FERREIRA).

Esta polémica doutrinal sobre a interpretação do que seja crime da mesma natureza
está longe de acabar. Podemos concluirmos que para nós são crimes da mesma
natureza os que têm essencialmente os mesmos elementos constitutivos.

Por exemplo, os crimes de abuso de confiança e de emissão de cheque sem


cobertura são da mesma natureza; os crimes de burla, furto e abuso de confiança
são da mesma natureza.

Não se pode confundir crimes da mesma natureza com crimes da mesma espécie.
Por exemplo, o crime de roubo e de furto são da mesma natureza, mas não são
crimes da mesma espécie, tendo cada uma definição legal autónoma e estrutura
jurídica diversa.

São ainda da mesma natureza ainda que não tenham sido consumados ambos ou
alguns deles (n.º 5) e o facto de ter sido o agente autor de um dos crimes e cúmplice
do outro não exclui a reincidência (n.º 4)

Se um dos crimes for intencional e outro culposo não se dá a reincidência (n.º 3 do


art.º 42 do CP).

O outro elemento temporal é antes de terem passado oito anos desde a


condenação com trânsito em julgado anterior. depois de transcorridos oito anos
desde a condenação anterior não haverá mais reincidência.

c) Efeitos e punição da reincidência

A reincidência acarreta os seguintes efeitos, nos termos do artigo 130 do CP:

- é uma circunstância mais preponderante quando haja concurso de agravantes.


Com efeito, no concurso de circunstâncias agravantes, quer relativas ao facto, quer
inerentes ao agente, cujo valor de agravação a lei predetermina, a reincidência é

21
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

uma delas, não se somam as penalidades derivadas de cada uma delas, mas sim
agrava-se o crime em função da circunstância qualificativa mais grave, no caso a
reincidência, e apreciam-se as restantes agravantes como circunstâncias de
carácter geral (art.ºs 120 e 121 do CP);

- exaspera ou agrava todas as penas privativas de liberdade e a condenação em


contravenção (art.º 121 do CP).

Em relação à punição da reincidência, o respectivo regime está expresso no art.º


130 do CP. A punição da reincidência pode ser subdividida em três aspectos de
fundo, conforme a natureza ou espécie da pena, sendo:

1.º - Se ao crime cometido for aplicável a pena de prisão superior a 2 anos. Neste
caso, o limite mínimo é de dois anos e o máximo de 30 anos, que, em nenhum caso,
pode ser ultrapassado este último limite (n.º 2 do art.º 61 do CP). A agravação por
reincidência nestes casos será igual a metade da diferença entre os limite máximo
e mínimo.

Por exemplo, A cometeu, em 2021, o crime de rapto, previsto e punido nos termos
do art.º 197, n.º 1 do CP, com a pena abstracta de 16 a 20 anos de prisão. Imagine-
se que A, em 2105, tinha sido condenado por sentença com trânsito em julgado a
uma pena de 2 anos de prisão pelo cometimento do crime de sequestro. Como é
de notar, de 2015 a 2021, não passam oito anos e o crime, olhando ao capítulo de
enquadramento e alguns dos seus elementos constitutivos, podemos concluir que
são da mesma natureza, o que é dizer que estamos em sede de reincidência.

Assim teremos em termos de agravação:

- a pena abstracta é de 16 a 20 anos, sendo 16 limite mínimo (LMin) e 20 limite


máximo (LMax). Ora, a metade de diferença será: LMax – Lmin = 20-16= 4 anos. 4
anos é a diferença, devendo 4 ser dividido por 2, para se obter a metade da
diferença. Então, teremos 4:2=2. A agravação da reincidência será igual a dois.

- a metade da diferença é somente adicionada ao limite mínimo. Assim teremos:


LMin + metade da diferença entre LMax e LMin (2) = 16 + 2= 18.

- Então, passamos a ter uma nova moldura já agravada. Deste modo pelo crime de
rapto cometido por A, de 16 a 20 anos, agravado com o valor da reincidência passa
a ser abstractamente de 18 a 20 anos.

Em relação à segunda parte do n.º 1 do art.º 130 do CP, que diz que “A medida da
agravação pode, no entanto, ser reduzida, se as circunstâncias relativas à
personalidade do agente o aconselharem, a um aumento de pena igual à duração
da pena aplicada na condenação anterior”. Aqui trata-se de uma faculdade que a
lei atribui ao juiz, tendo em conta o caso concreto e nele a personalidade do agente

22
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

de crime, de atenuar a medida da agravação. Tal atenuação pode também ter


como pressupostos os estabelecidos no art.º 118 do CP, o que quer dizer, ao fim
de contas, pode o juiz também atenuar especialmente ou extraordinariamente a
pena, apesar da reincidência (art.º 119 do CP).

2.º - Se a pena aplicável ao crime cometido for de prisão até 2 anos. Isto é, a pena
for entre 3 dias e 2 anos, a agravação consiste em aumentar o máximo e o mínimo
da pena de metade da máxima da pena aplicável (n.º 2 do art.º 130 do CP). O que
isto quer dizer?
Isto quer dizer que:

- primeiro divide-se o limite máximo da moldura penal por dois. Por exemplo, se
alguém comete o crime de sonegação ou ocultação de cadáver, previsto e punido
pelo art.º 186 do CP, a pena abstracta será de 3 meses a 2 anos. Assim, o limite
máximo será dividido por dois e teremos que a agravação é de 2:2= 1 anos.

- segundo, obtida a medida de agravação, que é de 1 anos, parece que o n.º 2 do


art.º 130 prescreve um desvio à regra geral de agravação da reincidência constante
do n.º 1 do mesmo artigo, que não admite, claro por interpretação, que se aumente
o limite máximo. Ora, será que o legislador quis que, no caso da pena até 2 anos,
se aumentasse tanto o limite mínimo, quanto o limite máximo?

Mas qual seria a razão de desvio do critério anterior? a interpretação que tem sido
seguida é a de que o n.º 2 deve interpretar-se no sentido de que mesmo nos casos
de reincidência, a pena de prisão até dois aos não pode exceder o limite de dois
anos24. Neste sentido, a agravação por reincidência, quando a pena não ultrapassa
dois anos seria sempre aumentado o limite mínimo, depois de calculada a metade
do limite máximo da moldura. No caso do nosso exemplo, teríamos 3 meses + 1
ano de agravação e passaríamos a ter nova moldura de 1 ano e três meses a 2 anos.

Ma não nos parece que se deva manter esta interpretação, apesar de fazer carreira,
desde há muito, por dois argumentos de fundo:

- o actual Código Penal eliminou a distinção anterior entre penas correcionais, que
iam até ao máximo de 2 anos e penas maiores que partiam de 2 anos em diante,
em molduras abstractas diversas até 24 anos (art.ºs 61 e 62 do CP de 2014 e art.º
57.º do CP de 1886). Portanto, a compartimentação de penas, em maiores e
menores ou correccionais deixou de fazer sentido, o que retira qualquer pretensão
de evitar que o limite máximo da pena correcional seja ultrapassado.

24
MAIA GONÇALVES, Manual Lopes, Código Penal …, ob. cit., p. 201. No mesmo sentido anui esta
interpretação o Professor Eduardo Correia, Direito Criminal, ob. cit., p. 193.

23
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

- o Legislador ao utilizar critérios diversos entre o n.º 1 e o n.º 2 do mesmo art.º 130,
quis ele que de facto na reincidência fosse observada a regra de adição nos dois
limites.
Portanto, em nossa opinião, a medida de agravação por reincidência será
aumentada, quer no limite mínimo, quer no limite máximo, respeitando o
textualismo legal que diz expressamente que “consiste em aumentar o máximo e o
mínimo da pena”. No nosso caso, como a medida de agravação por reincidência é
de 1 ano, então teremos que a moldura de 3 meses a 2 anos passa para 1 ano e
três meses a 3 anos (3 meses + 1 ano a 2 anos + 1 ano).

3.º - em relação às contravenções, diz o número 3 do art.º 130 do CP que “a


agravação por reincidência consiste em aumentar para o dobro os limites da pena;
no caso de segunda e ulteriores reincidências, a medida da pena é sucessivamente
elevada para o dobro do aumento assim determinado”.
Normalmente à contravenção, como infracção penal, aplica-se a multa ou penas
simples de prisão; ou as duas simultaneamente, aparecendo a multa como
acompanhante da pena simples de prisão.

Quando à contravenção se aplica as penas simples de prisão, então a sua


agravação deve seguir a lógica do n.º 2 do artigo 130, pois não há razão para
desvios desta regra, embora o n.º 3 deixe a impressão de que «aumenta-se para o
dobro os limites das penas».

Sendo a pena por contravenção uma multa, que é a lógica que decorre do artigo
39, segundo o qual «a responsabilidade penal por contravenção é agravada ou
atenuada em função (…) da situação económica do agente …», a sua agravação faz-
se aumentando para o dobro os limites da pena, na primeira reincidência. Por
exemplo, a pena de multa vai de 3 dias a 2 anos a uma taxa de diária de 1 a 5 salários
mínimos (art.º 87, n.º 1 do CP). Então a agravação será 3 dias x 2 a 2 anos x 2= 6
dias a 4 anos de multa, mantendo-se a taxa diária de 1 a 5 salários mínimos por dia.

Na segunda e demais reincidências sucessivas, as penas das contravenções são


sucessivamente elevadas para o dobro do aumento assim determinado. Assim, a
pena passa do aumento anterior para o seu dobro nos seus limites: 6 dias a 4 anos
de multa para 12 dias a 8 anos de multa, sucessivamente.

104.2. O concurso de crimes, em especial, a punição

A circunstância 30.ª do artigo 40 do CP é relativa ao «concurso de crimes» ou


melhor, a acumulação de crimes, figura cujo regime é desenvolvido no artigo 43
do mesmo Código.

Este regime do artigo 43 estudámo-lo no Vol I, parte geral 1 destas lições, ver n.º
98.2, por ser uma forma de aparecimento do crime quanto ao número de infracções

24
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

cometidas. Vamos analisar sequencialmente: (i) as regras de punição do concurso


de crimes; (ii) as regras de punição do concurso de crimes e de contravenções
punidas por multa, (iii) acumulação de penas acessórias e medidas de segurança e
(iv) as situações de conhecimento superveniente do concurso.

1.º - Regras de punição do concurso de crimes

Neste espaço vamos analisar o regime de punição do concurso de infracções,


tendo em conta que para esse efeito o regime do concurso é unificado, não
fazendo carreira a distinção entre concurso real e concurso ideal. Portanto, adopta-
se um visão do conjunto em que se consideram os factos na sua globalidade como
se um facto se tratasse, de modo a detectar a gravidade do ilícito global, enquanto
referida à personalidade unitária do agente, em contrapartida da visão atomística
de determinação de penas singulares. No concurso, como diz Figueiredo Dias,
“Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do
ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de
conexão que entre os factos concorrentes se verifique”25.

Nos termos do n.º 1 do artigo 124 do CP, se o agente cometeu mais de um crime
antes de ser julgado ou antes de a sentença transitar em julgado, é aquele
condenado numa única pena, sendo a pena determinada de acordo com os factos
e a sua personalidade.

Para a aplicação de única pena, o n.º 1 do art.º 124 do CP exige dois requisitos:

- cometimento de uma pluralidade de crimes pelo mesmo agente, formando um


concurso de crimes.

- que os crimes acumulados tenham sido cometidos antes de transitar em julgado


a condenação por qualquer deles. Se um dos crimes tiver sido julgado com trânsito
em julgado, então, então dá-se a barreira intransponível para que haja
anterioridade necessária para que haja acumulação de crimes.

No segundo requisito, é preciso clarificar o conceito de «sentença transitada em


julgado», «caso julgado» ou «res judicata». Diz-se «sentença transitada em
julgado», a decisão judicial que não é mais susceptível de reclamação ou
impugnação (recurso) judicial ordinária. O caso julgado pode dar-se por duas
razões de fundo:

- é definitiva a decisão judicial que o respectivo destinatário não a tenha recorrido


ordinariamente dentro do prazo legalmente estabelecido, no caso do processo
penal, o prazo de recurso ordinário é de 20 dias para o processo comum e de 8

25
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do
crime, 4.ª reimpressão, Coimbra editora, Coimbra, 2013, p. 291.

25
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

dias para o processo especial (art.º 466, n.º 1 do Código do Processo Penal). Neste
caso, a decisão judicial transitou em julgado exactamente porque esgotou-se o
prazo dentro do qual devia ter interposto o recurso;

- é ainda definitiva a decisão judicial que tenha sido tomada pelo tribunal de última
hierarquia na ordem jurisdicional ordinária, desde que tenha sido objecto de
recursos sucessivos;

- é também definitiva a decisão judicial prolatada pelo Plenário do Tribunal


Supremo, quando julga em primeira e única instância jurisdicional.

Ao abrigo do n.º 2 do art.º 124 do CP, a pena aplicável tem como limite máximo a
soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo, no caso
de prisão, ultrapassar 30 anos; e como limite mínimo a mais elevada das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes.

De acordo com as prescrições deste número 2, a moldura penal do concurso de


crimes é formulada a partir das penas individuais concretas aplicadas a cada crime
acumulado, utilizando-se todos os elementos de ponderação para a determinação
da medida concreta da pena, conforme estabelecido no artigo 112 do CP.

Portanto, o limite máximo da moldura penal do concurso é igual ao somatório das


medidas concretas de penas de cada crime acumulado, não podendo ultrapassar
30 anos (art.º 61, n.º 2 do CP). Por exemplo, suponhamos que um réu acumulou 3
crimes, sendo as respectivas penas, depois de calculadas as seguintes:

- crime 1 – pena de 15 anos de prisão;

- crime 2 – pena de 12 anos de prisão;

- crime 3 – pena de 5 anos de prisão.

Segundo a primeira parte do n.º 2 do art.º 124, o limite máximo da moldura penal
pelo concurso de crimes é o somatório das penas concretas dos crimes cometidos.
Assim, será pena do crime 1+pena de crime 2 + pena do crime 3 = 15 + 12 + 5 =
32 anos, como limite máximo.

Contudo, diz esta primeira parte do n.º 2 do art.º 124 que o somatório das penas
não pode ultrapassar 30 anos. Como no nosso exemplo ultrapassou-se 30 anos,
deve ser reduzida para o limite absoluto de 30 anos porque de acordo com o n.º 2
do art.º 61 do CP, na República de Moçambique, em caso algum, a pena de prisão
pode ser superior a 30 anos. Deste modo será 32-2= 30 anos como limite máximo
da pena abstracto do concurso de crimes.

Vamos agora à determinação do limite mínimo. De acordo com a segunda parte do


n.º 2 do art.º 124 do CP, o limite mínimo é a maior ou a mais elevada das penas

26
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

concretamente determinadas a cada crime aplicado, comparativamente. No nosso


exemplo, olhando para as penas dos 3 crimes (15, 12 e 5), a pena mais elevada é a
de 15 anos. Então, será ela que constituirá o limite mínimo.

Com esta solução legal, de escolher a pena mais grave, evita-se desde logo a
atenuação da responsabilidade do agente em relação ao crime singular
gravemente punido.

Em conclusão, a moldura penal por concurso de crimes no caso do nosso exemplo


será de 15 a 30 anos de prisão.

Podemos afirmar que o legislador penal moçambicano, em relação ao concurso,


não adoptou o sistema de cúmulo material de penas, mas sim, resulta, em primeiro
lugar, do n.º 1 do artigo 124 do CP que consagrou uma teoria de pena conjunta,
erigida de acordo com um sistema misto pontificado através da regra de
acumulação, por força do qual se procede à definição da pena conjunta dentro de
uma moldura, cujo limite máximo resulta do somatório das penas efectivamente
aplicadas a cada crime acumulado, emergindo a medida concreta da pena da
imagem global do facto imputado e a personalidade do agente, sob forma de
cúmulo jurídico26.

Mas para se chegar ao sistema de cúmulo jurídico previsto no n.º 1 do artigo 124,
parece o legislador ter optado no n.º 2, primeira parte, deste artigo 124, por uma
viagem preparatória através do sistema de cúmulo material para o cálculo do limite
máximo da moldura penal abstracta do concurso, ao mandar somar as penas
concretas de cada crime, só que este sistema de cúmulo material é limitado aos
trinta anos, como produto absoluto intransponível. Em relação ao cálculo do limite
mínimo da moldura penal abstracta do concurso, o legislador parece ter optado
por um sistema agregado entre o de absorção e o de exasperação, visto que o limite
mínimo é a pena mais grave entre os crimes em concurso concretamente
determinada.

O agente é punido pelos factos individualmente praticados, não como um mero


somatório, em visão atomística, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção
àquele conjunto, numa dimensão penal nova, fornecendo o conjunto dos factos a
gravidade do ilícito global praticado, levando-se em conta exigências gerais de
culpa e de prevenção, tanto geral, como de análise do efeito previsível da pena

26
Cfr nestes termos, no caso português, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de
2011, Processo n.º 2/03.5GBSJM.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf. Consultado em Agosto
de 2021.

27
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

sobre o comportamento futuro do agente, naquilo que se pode apelidar de


prevenção especial de socialização27.

2.º Regras de punição do concurso de crimes e crimes/contravenções cabíveis


à pena de multa

Reza o n.º 3 do art.º 124 do CP que “Se as penas concretamente aplicadas aos
crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única
pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, e
uma única de multa considerando-se a regra do acúmulo material”. Deste modo, se
concorrerem para os factos cometidos em concurso, penas de prisão e de multa,
há que fazer duas operações de fundo:

- a primeira operação é a de determinar a medida concreta do concurso de crimes,


indicando-se a pena final global, com recurso às regras que apresentamos no
ponto anterior, isto é, as previstas nos números 1 e 2 do art.º 124 do CP, pois não
há desvios a fazer.

- a segunda operação é a de calcular a medida concreta das penas de multa, por


acumulação de crimes/contravenções puníveis com multa. Neste caso, a parte final
do n.º 3 do artigo 124 do CP manda funcionar para a determinação da pena final
de multa a regra do «cúmulo material». O sistema de acumulação material consiste
na obtenção da pena final através do somatório das penas dos diversos crimes
praticados pelo agente, no nosso caso, pelo somatório das multas correspondentes
às diversas contravenções ou crimes, através de uma operação aritmética. Se o juiz
para cada infracção punível com pena de multa determinou, por exemplo, que o
crime A cabe ao agente a multa de 10 salários mínimos; crime B a multa 5 salários
mínimos e crime c a pena de 20 salários mínimos; então, a pena final de multa será
o somatório de 10 + 5 +20 salários mínimos, tendo como penal final de multa de
35 salários mínimos.

Outra situação é a prevista no artigo 123 do CP, quando o mesmo facto constitui
simultaneamente crime e contravenção. Nesta situação, há acumulação de crime e
uma contravenção, sendo o agente punido a pena correspondente ao crime
praticado e relativamente à contravenção, sendo lhe aplicado as sanções acessórias
correspondentes à contravenção, por exemplo, a multa, a suspensão de um certo
direito subjectivo público.

27
Nestes termos, ver o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Processo n.º
2/03.5GBSJM.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf. Consultado em Agosto de 2021

28
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

3.º - Acumulação de penas acessórias e medidas de segurança

O n.º 4 do art.º 124 do CP dispõe a propósito que “As penas acessórias e as medidas
de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das
leis aplicáveis”.

Apesar da aplicação da pena conjunta de prisão ou multa acumulada pelo concurso


de crimes, a lei manda ainda aplicar, se assim for determinado pelo tipo de crime
cometido, as penas acessórias e as medidas de segurança cabíveis,
independentemente da sua previsão por uma só das leis aplicáveis.

Sobre este ponto há que referir que as penas acessórias, desde que não sejam
incompatíveis entre si podem ser acumuladas. Por exemplo, pode ser acumulada a
regra de conduta relativa a não frequência a certos lugares e de suspensão de
exercício de certas funções (art.ºs 80 e 81 do CP).

4.º - Situações de conhecimento superveniente do concurso.

A regra do concurso é a de que todos os crimes praticados pelo agente antes de


ter sido condenado por um deles, por sentença transitada em julgado são julgados
e punidos na mesma ocasião, segundo as regras estabelecidas no artigo 124 do
CP. Mas o artigo 125 do mesmo CP vem estabelecer a situação em que o concurso
de crimes é conhecido depois da condenação transitada em julgado, o que
constitui uma excepção à regra geral de punição do concurso (antes do transito em
julgado), o que é, na verdade, o alargamento ou extensão do regime do artigo 124.

Portanto, no conhecimento superveniente do concurso tudo se passa como se, por


pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os
crimes praticados pelo agente, formando um juízo censório único, se projecta
retroactivamente. A formulação final da pena conjunta no concurso de crimes
repõe a situação que existiria se o agente tivesse sido antecipadamente punido
pelos crimes à medida em que os foi praticando28. Mas o regime do artigo 125
requere uma análise cuidada, e passemos a ela.

Diz o n.º 1 que “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar
que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes,
são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida
descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”

O primeiro requisito de conhecimento superveniente do concurso é a existência de


uma condenação transitada em julgada. Aqui não importa se a condenação anterior

28
Ver MOUTINHO, Lobo, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, edição da
Faculdade de Direito da Universidade Católica, 2005, p. 1324.

29
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

transitada em julgada foi ou não por concurso de crimes, basta somente haver
condenação anterior, seja por simples crime ou por vários crimes.

Neste requisito há que distinguir eventualmente a hipótese em que a pena já foi


cumprida, não se verificando o concurso superveniente apesar de o crime
superveniente remontar a dos crimes cuja pena já tenha sido cumprida, mas sim
uma simples infracção criminal que terá de ser punida através das regras gerais e
não as de concurso. Esta solução não resulta claramente do texto da lei. Se
eventualmente entender-se que se engloba a situação de pena cumprida tal
justificar-se-ia em termos de concessão de um benefício ao agente, pois resultará
sempre uma condenação mais branda depois de descontado da pena conjunta o
tempo já cumprido. Se assim for, vale também este pensamento para os casos de
crimes amnistiados e perdoados ou com penas prescritas, pois resulta benefício
para o agente. E nos parece que vinga esta última hipótese por questão de
humanização da pena e da defesa do regime mais benevolente ao agente do crime,
punindo-se a ineficácia do sistema de justiça em descobrir em tempo útil as
infracções cometidas.

O segundo requisito é de natureza temporal, pois deve “se mostrar que o agente
praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes” . isto é, o crime
que dá lugar ao concurso superveniente deve ter sido cometido antes da
condenação transitada em julgado, o que quer dizer que este crime escapou, no
tempo do julgamento dos restantes, à Administração da Justiça.

Embora não conste do n.º 1 do artigo 125 do CP, como requisito de conhecimento
superveniente do concurso, para que o regime seja viabilizado é preciso que o
tribunal anule ou desconheça a condenação anterior, o que permitirá a formação
de uma nova pena conjunta, através da aplicação do regime definido no artigo 124,
corrigindo, deste modo, a condenação anterior. Coisa diversa é o agente cometer
novo crime depois de condenação transitada em julgado, pois aqui a situação já
não é a de concurso de crimes, mas a de reincidência, desde que observado o
limite temporal exigido.

Se o tribunal tiver de conhecer crimes cometidos antes da condenação transitada


em julgado e outros cometidos depois da condenação transitada em julgada,
portanto, ambos conhecidos durante a execução da pena anterior, neste caso,
verificam-se duas situações bem distintas: o concurso superveniente de crimes e a
reincidência. O juiz proferirá duas sentenças, uma relativa à correcção da
condenação anterior por superveniência do concurso, aplicando nova pena
conjunta; e outra sentença relativa ao crime cometido após a condenação
transitada em julgado. Não pode aqui nestes dois casos o juiz proferir uma pena

30
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

conjunta ou global, pois são figuras claramente distintas e com regime diverso, no
caso o concurso de crimes e a reincidência29.

Portanto, o disposto no n.º 2 do artigo 125 deve ser compreendido de forma


restrita, quando diz que “O disposto no número anterior só é aplicável relativamente
aos crimes cuja condenação transitou em julgado”, pois levaria eventualmente a
uma ideia errónea de que se inclui aqui o regime da reincidência, visto que assenta
também na condenação transitada em julgado. No fundo, a disposição do n.º 2 do
artigo 125 era desnecessária, pois a ideia de «condenação transitada em julgado»
já faz parte do regime traçado no número 1 do artigo 125, anão ser que seja para
reafirmar a ideia de concurso superveniente à condenação anterior.

Se o agente estiver a cumprir a pena anterior, nos termos da parte final do n.º 1 do
art.º 125 do CP, o tempo cumprido será descontado na nova pena conjunta. O
conhecimento superveniente do concurso sempre implicará o aumento da pena
anterior.

Quando, nos termos do artigo 74 do CP, a pena de multa não paga tenha sido
convertida em prisão subsidiária, não é base para se afirmar o concurso
superveniente dada a sua natureza diferenciada e pelo facto de esta prisão não ser
equivalente à pena de prisão, atento ao facto de que esta prisão pode cessar a
qualquer momento com o pagamento da respectiva multa ou por outro motivo
relevante para não imputar a culpa ao agente.

No conhecimento superveniente do concurso, as penas acessórias e as medidas de


segurança anteriormente aplicadas mantêm-se, excepto quando se mostrarem
desnecessárias em vista da nova decisão. Se forem somente aplicáveis apenas ao
crime que faltar por apreciar, a sua decretação dependerá da sua essencialidade
tendo em conta a condenação anterior (n.º 3 do art.º 125 do CP).

104.3. Punição do crime continuado

O crime continuado tem o seu regime substancial definido no artigo 43 do Código


Penal, estudado no nosso volume I, como forma especial de aparecimento da
unidade jurídica da acção. A punição do crime continuado é regulada pelo artigo
126 do CP.

Ao abrigo do n.º 1 do art.º 126, o crime continuado é punível com a pena aplicável
à conduta mais grave que integra a continuação criminosa. Trata-se de acolhimento

29
Cfr DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do
crime, ob. cit., p. 293; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da
Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica,
2015, p. 247.

31
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

do sistema de exasperação ou agravação da pena, em que se aplica à continuação


a pena do crime mais grave, isto é, no universo das penas abstractamente aplicáveis
aos crimes concorrentes, aplica-se a pena mais grave, mas agravada tendo em
conta as penas dos restantes crimes cometidos em continuação.

Sendo, posteriormente à condenação transitada em julgada por crime continuado,


conhecida outra infracção que integra a continuação, mas punível com pena mais
grave que a da condenação transitada em julgado, o tribunal deve anular a
condenação anterior e condenar o agente a esta nova pena, substituindo ipso facto
a pena anterior, sem prejuízo de desconto do tempo de prisão já cumprido.

Secção II

Circunstâncias atenuantes

107. Conceito e natureza das circunstâncias atenuantes

As atenuantes são circunstâncias modificativas que consistem na diminuição da


reprovabilidade da conduta do agente e, consequentemente, a sua culpabilidade
em relação ao crime por ele cometido. As atenuantes tanto podem ser objectivas
ou subjectivas, mas nunca integram a estrutura de um tipo legal de crime.

Quanto à sua natureza, pode dizer-se, repetimos, que são estas enumeradas no
artigo 45 do CP de forma exemplificativa. Isto é, o tribunal pode, para além das
circunstâncias previstas na lei penal, estabelecer outras atenuantes, desde que
relevantes para a diminuição da responsabilidade do agente, sejam anteriores ou
posteriores ao crime.

Este é o princípio proclamado na circunstância 23.ª do artigo 45, nomeadamente:


“Em geral, quaisquer outras circunstâncias, que precedam, acompanhem ou sigam
o crime, se enfraquecerem a culpabilidade do agente ou diminuírem por qualquer
modo a gravidade do facto criminoso ou dos seus resultados”.

108. Classificação das circunstâncias atenuantes

São circunstâncias atenuantes, entre outras, ao abrigo do artigo 45 do CP, as


seguintes:

1.ª - Bom comportamento anterior. Esta é uma circunstância inerente ao agente


do crime, resultando do modo como tem actuado no meio social, como membro
de uma sociedade; trata-se na verdade, de averiguar o modo de vida do agente no

32
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

seu meio. O bom comportamento deve ser anterior à prática do crime para que
esta circunstância seja relevante.

O bom comportamento anterior só é considerado quando “principalmente em


indivíduos de pouca idade ou quando excede o bom comportamento comum na
generalidade das pessoas” (BELEZA DOS SANTOS), da classe do agente, em
igualdade de condições de vida e de cultura.

Esta circunstância atenuante é, normalmente, de pouco relevo, quando não haja


elementos que, comparativamente, com os cidadãos da mesma faixa etária, nível
cultural e de instrução, indiquem no sentido excepcional do comportamento do
agente.

É uma circunstância de natureza pessoal e subjectiva, pois diz respeito a cada


delinquente.

2.ª - A prestação de serviços relevantes à sociedade. Esta circunstância está


ligada à carreira do agente, olhando para o seu passado ou momento anterior à
prática do crime, procurando-se saber se durante o seu curso de vida até o dia em
que cometeu o crime teria realizado uma actividade útil e essencial à sua pátria ou
comunidade. Os serviços relevantes à sociedade são de qualquer natureza, desde
que exaltem a pátria, sejam prestados de modo excepcional à generalidade das
pessoas e sejam prestados em circunstâncias difíceis e extraordinárias.

É uma circunstância que enfraquece a culpa do agente, pois a prestação de serviços


relevantes à sociedade é incompatível com o cometimento de crimes, na medida
em que o agente apresenta uma boa e forte formação da sua personalidade,
revelada pelos serviços excepcionais prestados.

É uma circunstância de natureza pessoal e subjectiva, pois inerente à culpa.

3.ª - Ser menor de dezoito ou maior de sessenta anos. Em regra, nos termos do
n.º 2 do art.º 131 do CP, aos menores de 18 anos ao tempo de perpetração do
crime, nuca lhes será aplicada pena mais grave do que a de 8 anos de prisão. Em
relação aos idosos superiores a 60 anos, a pena será atenuada de modo geral, o
que quer dizer que lhe pode ser aplicada qualquer pena, dependendo do crime
cometido, sem embargo de atenuação especial conforme as circunstâncias do caso
concreto.

É uma circunstância que abala a culpa e, por isso, é de natureza subjectiva e


pessoal.

33
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

4.ª - Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte
tentação ou solicitação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa
imerecida.

Esta circunstância é, ao mesmo tempo, de atenuação geral (art.º 45 do CP) e


atenuação especial [alínea b) do art.º 118 do CP]. Ora, a questão a colocar é a de
saber em que medida se aplica uma e outra?

Trata-se de uma dupla consagração desta circunstância mal conseguida, pois


sempre que ela se verificar num caso concreto, por favorecer o agente do crime,
deve a pena ser atenuada especialmente, o que faz com que a previsão desta
circunstância no artigo 45 deixe de ter relevância.

Coisa diversa seria consagrar esta circunstância como integrante de um tipo de


crime, como atenuante especial; outra é consagrá-la duplamente na parte geral do
Código, sendo, por isso, aplicável a todos os tipos de crime, o que retira a sua
relevância de atenuante de carácter geral.

Esta circunstância atenuante tem natureza subjectiva e é inerente à culpa, baseia-


se, no fundo, no estado de excitação ou emoção causada por facto injusto de
outrem no agente do crime, sendo por causa desse estado que cometeu o crime.
É preciso notar que o facto injusto deve ser capaz de provocar no agente o estado
de ira, raiva, dor, excitação ou alterar substancialmente as condições normais de
determinação do agente.

O motivo honroso é sempre uma justificante de natureza pessoal, relativa a valores


morais na perspectiva do agente. Em relação a forte tentação ou solicitação da
própria vítima, o agente responde a sinais ou pedidos emitidos pela vítima,
comovendo-se do facto, o que lhe leva a praticar o crime. Tentação é uma
instigação ou indução da vontade interior que nos conduz a praticar certo acto,
embora ilícito; a indução resulta do facto de outrem através de métodos tão
diversos como o elogio, o pedido, a bajulação, o apelo à cumplicidade, o atiçar da
curiosidade, o uso indevido da autoridade, a geração de medo, angústia ou
expectativa, a ameaça de perda, a sedação ou a manipulação; a solicitação da
própria vítima significa um pedido dirigido ao agente pela própria vítima para
realizar o acto ilícito. Ora, não basta ser um pedido e logo ser aceite, é preciso que
tal pedido seja lícito e legalmente possível.

A provocação injusta ou ofensa imerecida é uma situação prévia ou anterior ao


crime, praticada pelo autor do crime e que, como consequência, conduz a vítima a
praticar o facto gerador da emoção violenta no autor do crime, resultando daí que,
este último pratique um acto ilícito «dominado por compreensível emoção
violenta».

34
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

5.ª - A intenção de evitar um mal ou a de produzir um mal menor. É uma


circunstância atenuante de natureza pessoal atinente à culpa. O agente acaba
cometendo crime procurando evitar que se produza um mal maior ou na
perspectiva de que se produza um mal menor do acto.

6.ª - O imperfeito conhecimento do mal do crime. Trata-se de uma atenuante


relativa à culpa do agente, onde o agente actua com o imperfeito conhecimento da
realidade do mal que o crime provoca. No funco, “… o agente sabe que um facto
é punível, mas não prevê justamente o grau de desvalor objectivo que ele
representa para o direito, é manifesto que esse grau de consciência há-de ter
eficácia para o juízo de censura e, portanto, para o grau do dolo”30.

7.ª - O constrangimento físico, sendo vencível. É uma circunstância relativa à


culpa do agente e diz respeito à coacção física que o agente terá sofrido para que
cometesse o crime, mas que avaliadas as coisas, poderia ter evitado cometer o
crime, vencendo a coacção física. Portanto, atenua a culpa do agente.

8.ª - A imprevidência ou imperfeito conhecimento dos maus resultados do


crime. Esta circunstância é relativa à culpa do agente e diz sobre ela Correia que
“ (…) o valor desta atenuação tem interesse especial nos casos de imputação
objectiva do evento”31, uma vez que os efeitos secundários do crime só aumentam
a punição quando o agente os representar.

9.ª - A espontânea confissão do crime. A confissão dos factos é uma forma de


colaboração do agente com a justiça; um comportamento pós-facto. A confissão
consiste na declaração do agente perante a autoridade judiciária competente a
reconhecer que cometeu um crime32. A confissão tanto pode ser total, quando o
agente confirma os factos constantes da acusação ou da pronuncia; ou parcial
quando abrange parte do factualismo de que é lhe acusado ou pronunciado. A
avaliação da confissão tem que ver com o contributo que esta dá para a descoberta
da verdade material dos factos. A confissão é um meio de prova, embora tenha
perdido, como no passado, a qualidade de rainha das provas33.

A confissão constitui uma manifestação da personalidade do agente, sendo,


portanto, esta circunstância é de natureza subjectiva e pessoal, embora admitindo-

30
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, II, ob. cit., p. 383.
31
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, II, ob. cit., p. 383.
32
Cfr. DURA; Carlos Clement, La Prueba penal, Tomo I, 2.ª ed., p. 377.
33
No período do Império Romano, a confissão era geralmente considerada prova bastante,
admitindo-se o recurso ao tormento para a conseguir. Posteriormente, na Idade Média, com as leis
canónicas, onde passou a ser encarada como manifestação de arrependimento, exigia-se que
fosse obtida a todo o custo. Generalizou-se o recurso ao tormento físico e psicológico,
ganhando a doutrina da confissão uma enorme
Autoridade (MITTERMAIER).

35
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

se que o defensor possa confessar em nome do arguido, mas na sua presença e


com sua anuência. Mas mesmo assim, não deixa de ter este carácter pessoal.

10.ª - Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente,


nomeadamente, a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados.
O arrependimento é também uma forma de colaboração do agente na descoberta
da verdade material pela justiça. É uma circunstância posterior ao facto, que
consiste num pesar pelo delito cometido, um desejo de não o ter praticado34, ou
como a vontade de afastamento do delito e de cooperação com o direito 35,
procurando despojá-lo de qualquer conotação ético-religiosa. Diferentemente da
confissão, o arrependimento deve ser demonstrado, exteriorizando-o para que seja
conhecido e avaliado, pois não basta a sua proclamação pelo agente no tribunal.
Por exemplo, nos crimes de natureza patrimonial, o arrependimento deve ser
demonstrado por actos sinceros que comprovem o arrependimento, como diz, por
exemplo, o art.º 68 do CP, alínea b) “proceder à restituição dos bens que se tenha
apropriado”.

O arrependimento deve ser livre e sincero, mostrando-se útil, não apenas do ponto
de vista da administração da justiça, dos ofendidos e das vítimas, mas como
também do ponto de vista da reintegração social do agente. Não vale um
arrependimento sem que seja acompanhado pelos reais factos dos quais se
arrepende, pois só um sério arrependimento pode comover o tribunal,
independentemente de lamentações, choros ou lamúrias em tribunal.

O arrependimento, desde que sincero, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 118
do CP, é causa de atenuação especial das penas.

A questão é idêntica a que colocamos na circunstância 4.ª, se esta duplicação não


acarretaria irrelevância de uma, sendo esta constatada num caso concreto? Como
o juiz aquilatará se o arrependimento é causa de atenuação geral (art.º 45 do CP)
ou causa de atenuação especial (art.º 118 do CP)?

A nossa posição é a mesma anteriormente apresentada. Verificando-se esta


circunstância num caso concreto, será ela causa de atenuação especial nos termos
do artigo 118, n.º 2, alínea c) do CP, anulando sempre o estabelecido no artigo 45,
circunstância 10.ª.

O arrependimento, enquanto comportamento pós-delito positivo alheio ao tipo,


que não se reconduz nem à ilicitude nem à culpa, pode funcionar como factor de
individualização da pena, nos termos da alínea e) do n.º2 do artigo 112 do Código
Penal.

34
Cfr. DEVESSA, José Maria, Derecho Penal Español. Parte General, Madrid, 1977, p. 683.
35
PUIG, Mir, Leciones de Derecho Penal, 1983, p. 352.

36
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

O arrependimento sincero do agente, nomeadamente, a reparação, até onde lhe


era possível, dos danos causados é também pressuposto de aplicação das penas
não privativas de liberdade nos termos do artigo 68 do CP, visto que a reparação
pode constituir um dos possíveis elementos objectivos do arrependimento a
considerar pelo julgador.

Portanto, à semelhança do que sucede com a confissão, o valor atenuativo do


arrependimento é variável em função do seu maior ou menor relevo, seja em
termos investigatórios e probatórios, seja ao nível da prevenção de novos
crimes, como é, igualmente, variável em função do momento em que ocorre. É, por
isso, ampla a sua margem de valoração por parte do tribunal36.

É esta uma circunstância de natureza pessoal relativa à personalidade do agente.

11.ª - A ordem ou o conselho do seu ascendente, adoptante, tutor ou educador,


sendo o agente menor e não emancipado. Trata-se de uma circunstância relativa
à culpa, que diminui a responsabilidade do agente pelo facto de ter actuado sob
temor reverencial. O agente acaba cometendo o crime por receio de desgostar a
pessoa a quem se tem muito respeito, a quem se deve sujeição de natureza familiar,
pois a obediência legalmente devida é causa de exclusão do facto (art.º 51, n.º 1,
alínea d) do CP). A liberdade de determinação do agente fica afecta pela relação
de superioridade.

12.ª - O cumprimento de ordem do superior hierárquico do agente, quando


não baste para justificação deste. Esta circunstância é também relativa à culpa do
agente. O agente comete crime quando cumpre a ordem do seu superior
hierárquico, mas não sendo os casos de obediência legalmente devida, ou sendo
este o caso, quando tenha havido excessos nos actos ou na forma de execução por
parte do agente. O agente actua com o grau de liberdade diminuído pelo facto de
se tratar de uma ordem do seu superior. Mas não deixa de valer a máxima segundo
a qual «O dever de obediência cessa sempre que o seu cumprimento implique a
prática de crime» (art.º 51 da Constituição). Ora, esta circunstância só existe quando
o agente não tenha conseguido pôr em prática esta garantia constitucional, isto é,
não conseguiu exercer o direito de resistência por receio ou temor (art.º 80 da
Constituição).

13.ª - Ter o agente cometido o crime para se desafrontar a si, ao seu cônjuge,
ascendente, descendente, irmãos, tios, sobrinhos ou afins nos mesmos graus,
adoptante ou adoptado de alguma injúria, desonra ou ofensa, imediatamente

36
CUNHA, José António Rodrigues da, “A colaboração do arguido com a justiça – a confissão e o
arrependimento no sistema penal português”, in Julgar, n.º 32, Almedina, 2017, p. 66-68.

37
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

depois da afronta. Sendo uma circunstancia de natureza pessoal, a acção do


agente é uma desforra ou desagravo de alguma injúria, ofensa, desonra ou ofensa
que tenha sofrido de seus parentes. Mas a desforra deve ter ocorrido
imediatamente à provocação.

14.ª - Súbito arrebatamento despertado por alguma causa que excite a justa
indignação pública. Esta circunstância supõe que o agente foi arrastado ao
cometimento de crime por uma causa externa que acirrou a repulsa do público.
Sem tal acontecimento, o crime não teria sido cometido. É uma circunstância
subjectiva e, portanto, de natureza pessoal.

15.ª - O medo vencível. O medo é um estado emotivo que assenta na perturbação


causada por um perigo. Ora, para ser um medo vencível, quer dizer que o perigo
é superável pelo agente. Como é sabido, no ordenamento jurídico nacional os
estados emotivos não excluem por si a culpabilidade, o que vale dizer, neste caso,
que o medo vencível é uma circunstância que afecta a culpa.

16.ª - A resistência às ordens do seu superior hierárquico, se a obediência não


for devida e se o cumprimento da ordem constituísse crime mais grave. A
circunstância deixa entrever a hipótese de que há, em algumas circunstâncias, em
casos em que as ordens que levam ao cometimento de crime podem ser
cumpridas, o que constituiria uma excepção ao disposto no art.º 251, n.º 2 da
Constituição, pois este manda cessar o dever de obediência nestes casos. Mas
ocorrendo uma tal situação, e se o funcionário resistir e dessa resistência resultar
crime, então funciona esta atenuante de ordem subjectiva e pessoal e “assim se
atenua qualquer excesso que o funcionário cometa para evitar que seja cumprida
uma ordem ilegal que conduz a um crime”37.

17.ª - O excesso da legítima defesa. A legítima é, nos termos do artigo 51, n.º 1,
alínea b), causa de exclusão da ilicitude, desde que verificados os respectivos
requisitos previstos no artigo 53 do CP. Quando o defendente ultrapassa
conscientemente os limites de uma defesa permitida por lei pelo uso de meios de
defesa desproporcionais, sendo, portanto, a legítima defesa ilícita e dolosa. Assim,
a acção de excesso de legítima defesa é punível, funcionando, agora, o excesso
como atenuadora da culpa do agente no excesso.

18.ª - A apresentação voluntária às autoridades. É uma atenuante de natureza


pessoal, relativa à personalidade do agente. A apresentação às autoridades deve
ser de livre e espontânea vontade do agente e, portanto, voluntária, o que evita
que a administração da justiça despende esforços de toda a natureza para a sua
captura. Coma apresentação voluntária, o agente colabora para a busca da justiça.
A apresentação às autoridades, para funcionar como atenuante de relevo, deve

37
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, II, ob. cit., p. 385.

38
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

ocorrer antes da emissão do mandado de captura do agente; tendo pouco valor se


a apresentação ocorrer depois do mandado e da acusação ou pronúncia. Eduardo
Correia nata que esta atenuante “… revela um repúdio íntimo, por parte do agente,
do facto criminoso praticado, a sua relevância fica excluída sempre que outras
razões de indiferença ou desprezo perante a acção da justiça a provoquem”38.

19.ª - A natureza reparável do dano causado ou a pouca gravidade deste. É


uma circunstância de natureza objectiva, e, portanto, relativa à ilicitude. Está
excluída a valorização desta circunstância para crimes contra a vida, a humanidade,
a liberdade sexual, violações, rapto ou tráfico de pessoas, tráfico de
estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, terrorismo, crimes cometidos com o
uso de armas de fogo ou com violência. No fundo, esta circunstância é válida para
os crimes de natureza patrimonial, na medida em que o dano seja reparável ou de
menor gravidade.

20.ª - O descobrimento dos outros agentes, dos instrumentos do crime ou do


corpo de delito, sendo a revelação verdadeira e profícua à acção da justiça. É
uma circunstância de natureza pessoal e relativa à culpa. O agente ajuda a
administração da justiça na descoberta dos restantes agentes de crime, os
instrumentos do crime, ou do corpo delito (conjunto de elementos materiais ou
vestígios que indicam a existência de um crime), desde que tal revelação seja útil
para a acção da justiça, pois se o tribunal/Ministério Público já chegou a estes
elementos por sua acção, não faz mais sentido falar-se de apoio dado à
administração da justiça pelo agente, o que não releva para a valoração desta
circunstância.

21.ª - Ter o agente agido sob temor reverencial. É uma circunstância relativa à
culpa do agente, pois este agiu com impulso de sentimento ou consciência. O
temor reverencial é o receio de desgostar o pai, a mãe, os superiores, sejam
hierárquicos, sejam de ordem religiosa, a quem se deve respeito. Portanto, o temor
reverencial afecta a vontade do agente na sua capacidade de determinação na
prática do facto.

PARTE III

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME

Capítulo I

38
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. II, ob. cit., p. 388.

39
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

Questões gerais

109. Definição. Alinhamento do estudo

As consequências jurídicas do facto são medidas repressivas ou sanções que ao


crime se encontram legalmente vinculadas. Portanto, trata-se de aplicar ao autor do
crime uma censura pela sua prática.

O âmbito do estudo das consequências jurídicas do crime abrange, como se refere


o Título III da Parte Geral do Código Penal, as «penas e medidas criminais», diga-
se, «medidas de segurança», por um lado, e os pressupostos da punição e efeitos
da condenação, por outro.

As penas, à mingua da sistemática do Código Penal, podem ser:

(i) as aplicáveis às pessoas singulares, onde desfilam a pena de prisão, a pena de


multa, a prestação de trabalho socialmente útil e a interdição temporária de
direitos, como principais, e penas acessórias, nomeadamente a regra de conduta,
a perda de mandato ou proibição temporária do exercício de funções públicas, a
suspensão do exercício de funções públicas, a proibição de condução e a inibição
do exercício de poder parental, tutela ou curatela.

(ii) as aplicáveis às pessoas colectivas, nomeadamente, as principais, das quais


constam a dissolução da pessoa colectiva ou entidade equiparada e multa; as
acessórias, designadamente, as regras de conduta, a caução de boa conduta,
interdição temporária de exercício de certa actividade ou de contratar, privação do
direito a subsídios, subvenções ou incentivos públicos e encerramento de
estabelecimento.

As medidas de segurança, as quais podem ser privativas de liberdade ou


detentivas, nomeadamente, o internamento de inimputáveis e o internamento em
centro penitenciário aberto; as não detentivas, que são o tratamento ambulatório
de inimputáveis, a liberdade vigiada e a caução de boa conduta.

110. Limites das penas e medidas de segurança

O Direito Penal, como sector de aplicação subsidiária na sociedade, encontra seu


limite primário definido na Lei Fundamental do Estado. Neste sentido, dispõem os
artigos 40 e 61 da Constituição sobre o direito à vida e limites e efeitos das penas,
respectivamente.

De acordo com o artigo 40 da Constituição, com a epígrafe «Direito à vida», “1.


Todo o cidadão tem direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser

40
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos. 2. Na República de


Moçambique não há pena de morte”. Deste artigo decorre o seguinte:

1.º - O direito à vida é, desde logo, inviolável e indisponível. A sua primeira garantia,
através da Constituição penal, é a proibição da pena de morte, por ser incompatível
com a dignidade da pessoa humana. Eis o enunciado do n.º 2 do artigo 40 da
Constituição, retomado pelo n.º 1 do art.º 60 do CP. Em Moçambique, pois
independência, tendo em conta o regime prevalecente, há indícios de ter havido
legislação que admitisse a pena de morte contra os crimes de sabotagem
económica e banditismo, em particular, desde 1979 até 1990, ano de transição
constitucional39. Desde a Constituição de 1990, ficou definitivamente clara a
negação da pena de morte, pois esta traduz-se na negação do direito humano à
vida, independentemente da natureza mais grave do delito cometido pelo agente.
O grande problema que tem sido arrolado que milita contra a pena de morte é o
facto de que esta, quando executada, tem natureza irrevogável e definitivo,
sabendo-se, de antemão que haverá sempre um risco de se condenar à pena de
morte inocentes ou que sobre eles ainda pairam certas dúvidas de terem
cometidos os crimes pelos quais serão executados; a pena de morte não constitui
também motivo impeditivo de cometimento de crimes mais graves, quando
comparada com a pena de prisão. Portanto, como tem sido proclamado, a pena de
morte não é solução para a violência, mas sintoma de uma cultura de violência. A
pena de morte é proibida internacionalmente pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas de 1948.

2.º - A integridade física e moral das pessoas é também inviolável, do que resulta
que nenhum indivíduo, no ordenamento jurídico nacional, pode ser submetido à
tortura, tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos40. Moçambique, através da
Resolução n.º 8/91, de 20 de Dezembro41, da Assembleia da República, ratificou a
Convenção da Organização das Nações Unidas, de 1984, contra a Tortura e Outras
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A Convenção contra a
Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes não só

39
A Lei n.º 5/83, de 31 de Março, sob nome de “pena de chicotada como medida punitiva e educativa
aos autores, cúmplices e encobridores de vários crimes, consumados, frustrados ou tentados”,
estabelecia nos artigos 1, 3 e 4 o seguinte em relação à pena de morte: “A pena de chicotada será
aplicada aos autores, cúmplices e encobridores dos seguintes crimes …: a) crime contra a segurança
do Povo e do Estado; b) Candonga em todas as suas formas, nomeadamente, especulação e
açambarcamento…; c) Assalto a mão armada…; d) Roubo;…”; “Não se aplicará a pena de chicotada
quando o criminoso tiver sido condenado a pena de morte” e “A pena de chicotada será de três a trinta
chicotadas por série, podendo aplicar-se até ao limite de três séries espaçadas por períodos não
inferiores a oito dias”, respectivamente. Esta lei foi revogada em 1989 através da Lei n.º 4/89, de 18 de
Setembro.
40
Sobre a tortura, ver nosso estudo apresentado no Curso de Doutoramento em Direito e Segurança,
na disciplina de Direito Penal, regida pela Professora Teresa Pizarro Beleza, na Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa, 2016.
41
A Resolução foi publicada no BR n.º 51, I Série, Suplemento, de 20 de Dezembro de 1991.

41
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

obriga os Estados Partes a proibirem a prática da tortura nos termos da sua lei
interna, mas consagra explicitamente que nenhuma ordem de um superior ou
circunstância excepcional poderá ser invocada para justificar a sua prática.

Com a sua ascensão à Independência Nacional, a 25 de Junho de 1975, visando


criar e forjar um Homem novo, o Ordenamento Jurídico Moçambicano, inspirado
na orientação marxista-leninista, aprovou uma Lei que legitimava a tortura pública,
como medida principal e/ou acessória das penas criminais, nomeadamente, a Lei
n.º 5/83, de 31 de Março, sob nome de “pena de chicotada como medida punitiva
e educativa aos autores, cúmplices e encobridores de vários crimes, consumados,
frustrados ou tentados”.

A tortura funcionou em Moçambique como meio de investigação, meio de punição


e como meio preventivo, atente à natureza e tipo do Estado prevalecente,
designadamente, Estado de democracia popular e de orientação marxista-
leninista, com partido único liderante e de vanguarda até 1989, ano da revogação
da Lei n.º 5/83 pela Lei n.º 4/89.

Mas esta questão ficou definitivamente resolvida com a aprovação da Constituição


de 1990, que veio proclamar a dignidade da pessoa humana e, consequentemente,
a proibição da pena de morte e do tratamento cruel, desumano e degradante da
pessoa.

Em relação ao artigo 61 da Constituição, interessam, por enquanto, os limites


previstos nos números 1 e 2, pois o número 3 diz respeito aos efeitos das penas.

De acordo com o n.º 1 do artigo 61 da Lei Fundamental Moçambicana, «São


proibidas penas e medidas de segurança privativas da liberdade com carácter
perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida». Esta proibição é também acolhida
ordinariamente pelo n.º 1 do art.º 60 do CP. Deste postulado constitucional e legal,
resulta:

1.º - A proibição de pena e medidas de segurança privativas de liberdade com


carácter perpétuo. Esta proibição resulta da regra de que a liberdade é a regra 42 e
a sua privação é sempre uma excepção, sendo daí que a liberdade é incompatível
com o carácter perpétuo de qualquer medida restritiva de liberdade. Esta limitação
resulta também do princípio da humanização das penas. As medidas penais
perpétuas significam que o agente condenado à pena perpétua cumpre a prisão
em regime fechado até ao fim da sua vida. Normalmente, as penas perpétuas, em
certos países, vieram preencher a lacuna deixada com a abolição da pena de morte.

42
Cfr n.º 1 do art.º 59 da Constituição, que dispõe sobre o direito geral de liberdade.

42
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

Sendo a pena perpétua uma pena de natureza fixa, que não pode variar de acordo
com a medida da culpa do agente perante o agir criminal, será ela sempre
imperfeitamente retributiva, pelo que haveria que demonstrar a necessidade dessa
limitação do princípio da culpa. É tida como constitucionalmente desnecessária de
ponto de vista de prevenção geral. Finalmente, a pena perpétua tira todo o sentido
racional que a execução de qualquer pena deve ter. A recuperação do delinquente
é uma obrigação do Estado na medida do possível e a Constituição,
independentemente da questão filosófica do livre arbítrio e do determinismo,
obriga as entidades públicas e privadas a tratarem as pessoas como livres e,
portanto, susceptíveis de escolherem o bem e de se recuperarem para a
sociedade43.

2.º - A proibição de pena e medidas de segurança com carácter ilimitado ou


indefinido. Esta proibição constitucional “consiste em vincular o legislador
ordinário a não prescrever sejam quais forem as medidas de coacção privativas ou
restritivas da liberdade física da pessoa, destituídas de limite temporal determinado
ou determinável, isto na senda do princípio da proibição do excesso”44. Uma
reacção penal será ilimitada ou indeterminada, quando destituída de um prazo
concreto para o seu cumprimento, isto é, um prazo certo de duração máxima da
pena, embora em abstracto. Portanto, a vedação pela Constituição e demais leis de
penas e medidas de segurança ilimitadas ou indeterminadas decorre do princípio
da dignidade da pessoa humana e do carácter limitado, determinado e temporário
que aquelas devem revestir.

Por fim, dispõe o número 3 do art.º 60 do Código Penal, que «As penas não são
transmissíveis», para reafirmar o carácter pessoal da responsabilidade penal, no
sentido de que as penas e medidas de segurança devem recair sobre a pessoa do
agente que cometeu a infracção penal. Toda a reprovação penal tem como base
axiológico-normativo referencial a culpa do agente, reportando-se à pessoa
singular, à pessoa física, o homem, enquanto ser dotado de razão e liberdade de
determinação, sem prejuízo das excepções quanto à responsabilidade das pessoas
colectivas privadas.

111. Fins das penas e das medidas de segurança (Ver n.ºs 40-44 do Vol. I)

Embora estudados no Volume 1 deste Manual os fins das penas, nada pode nos
coibir de deixar alguns pontos essenciais sobre a temática. Com a aplicação das
penas e medidas de segurança assegura-se a protecção de bens jurídicos

43
Cfr Acórdão n.º 1/2001, Processo n.º 742/99, do Tribunal Constitucional Português.
44
Cfr Acórdão n.º 04/CC/2013, de 17 de Setembro.

43
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

fundamentais, a reintegração do agente na sociedade e a reparação do mal


causado, bem como a prevenção da reincidência45.

As penas, em caso algum, podem ultrapassar a medida da culpa do agente 46; a


medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcional à gravidade do facto
e à perigosidade do agente47.

Em suma, seguindo as nossas lições, podemos sumarizar no seguinte o fim das


penas48:

- a pena, com a sua natureza repressiva, colima reparar os danos causados à


sociedade com o cometimento do crime, compensando ou reagindo, no fundo,
contra o mal cometido pelo crime, revelando a força vitoriosa do direito sobre o
crime (tendências retributivas da pena);

- a pena tem como função reestabelecer a paz jurídica perturbada pelo crime
cometido, fortalecendo a confiança da comunidade na capacidade de execução e
vigência da ordem jurídica e, portanto, a fé da colectividade no Direito (prevenção
geral positiva); visa a pena também dissuadir os potenciais delinquentes que
integram a comunidade de cometer novos ilícitos penais, intimidando-os
(prevenção geral negativa);

- a pena, actuando sobre próprio delinquente, visa evitar que o agente cometa
novos crimes, ressocializando-o em termos tais que permitam demovê-lo de
reincidir.

112. Princípios que norteiam a aplicação das reacções criminais

A aplicação das consequências jurídicas do crime obedece a um conjunto de


princípios. Este trabalho procurará sintetizar alguns deles, por mais salientes49.

112.1. Princípio da legalidade

O princípio da legalidade, conforme definido pela Carta Magna da República, no


seu artigo 60, ninguém poderá ser condenado a uma pena que não tenha sido
definida por lei anterior. Numa proclamação mais geral, pode dizer-se com o
brocardo latino que nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, ou seja, não
haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

112.2. Princípio da proporcionalidade

45
Cfr n.º 1 do art.º 59 do CP.
46
Cfr n.º 2 do art.º 59 do CP.
47
Cfr n.º 3 do art.º 59 do CP.
48
MACIE, Albano, Manual de Direito Penal, Parte Geral 1, Maputo, 2021, pp. 120-129.
49
Ver nosso Manual Vol. I, pp. 41-52.

44
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

Segundo este princípio, “o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que


contenham sanções que sejam manifesta e claramente excessivas. Assim devendo
ser, “porque se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria
solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há de
gozar de uma razoável liberdade de conformação”50. No âmbito do Direito Penal,
o princípio da proporcionalidade pode ser encarrado sob três perspectivas:

1.ª – proporcionalidade abstracta, que se liga ao legislador, quando define as


sanções penais mais adequadas ou apropriadas, estabelecendo os limites mínimos
e máximos das penas cominadas aos crimes;

2.ª – proporcionalidade concreta ou judicial, está ligado à individualização da pena


pelos tribunais. Portanto, esta é feita pelo juiz no momento da aplicação da pena
ou da dosimetria da pena. Nesta fase, o juiz deve ponderar a relação entre a
gravidade da infracção cometida e a medida penal a impor ao agente, observando
os pressupostos da determinação da pena previstos no artigo 112 do Código
Penal.

3.ª – proporcionalidade executória, que ocorre durante o cumprimento da pena


perante as instâncias penitenciárias.

Portanto, o princípio da proporcionalidade tem três destinatários: o legislador, o


julgador e a instância penitenciária.

112.3. Princípio da humanidade

As penas e medidas de segurança devem ser previstas pelo legislador, e aplicadas


pelo juiz, observando ou respeitando a integridade física e moral do delinquente,
proibindo-se, consequentemente, humilhações e penas degradantes, cruéis e
desumanas. Por isso, são proibidas as penas de morte, perpétua, cruel e trabalho
forçado.

112.4. Princípio da individualização da pena

A pena deve ser aplicada de modo individualizado, tendo em conta a


personalidade e a culpa do agente. Daí que as penas são intransmissíveis, sendo
por isso, a responsabilidade de carácter pessoal. O juiz, para aplicar a pena, deve
ponderar, tendo em conta a personalidade do agente, as circunstâncias favoráveis
ou desfavoráveis, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e a
conduta anterior do agente (art.º 112 do CP).

50
Cfr Acórdãos n.ºs 574/95, 958/96, 329/97 e 108/99 do Tribunal Constitucional Português.

45
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

112.5. Princípio da inderrogabilidade ou inevitabilidade da pena

Segundo este princípio, nenhuma pena determinada por lei para certo tipo de
crime pode ser substituída por outra ou deixar de ser aplicada por vontade do
tribunal ou de outras autoridades competentes, senão por indicação expressa da
própria lei (art.º 66 da CP). Mas este princípio não prejudica os casos legalmente
previstos de perdão judicial ou prescrição.

112.6. Princípio da presunção da inocência

Este é um princípio de cariz processual penal. Enquanto não transitar em julgado a


condenação do agente, este presume-se inocente. Tal é o preceituado no n.º 2 do
art.º 59 da Constituição “Os arguidos gozam da presunção de inocência até decisão
judicial definitiva”.

112.7. Princípio da não retroactividade da lei penal

Nos termos do artigo 59, n.º 3 da Constituição, nenhum cidadão pode “… ser
punido com pena não prevista na lei ou com pena mais grave do que a estabelecida
na lei no momento da prática da infracção criminal”. Este princípio tem duas
nuances:

1.ª – o juiz deve aplicar ao arguido a pena mais branda, quando tenha havido
sucessão de leis antes de ocorrer ou durante o julgamento, o que quer dizer que (i)
se a pena mais branda estiver na lei nova, independentemente de o crime ter sido
cometido na vigência da lei anterior, a pena aplicável será a prevista na lei nova por
ser mais benéfica (princípio da retroactividade da lei penal mais benéfica); (ii) se a
pena mais benéfica for a prevista na lei da prática do crime, independentemente
de estar em vigor uma nova legislação no momento do julgamento, a pena
aplicável é a da lei anterior;

2.ª – se a lei nova for mais benéfica, quanto às reacções criminais, ao regime do seu
cumprimento, esta deve ser aplicada, destruindo-se o caso julgado, em benefícios
dos agentes já condenados em penas mais graves previstas em lei anterior. Mais
ainda, se a nova lei eliminar das incriminações certos factos, então todos os
condenado anteriormente devem ser restituídos a sua liberdade (art.º 7 da Lei n.º
24/2019, que aprova o Código Penal).

112.8. Princípio ne bis in idem

Segundo este princípio, o agente não pode ser julgado mais do que uma vez pela
prática do mesmo crime (n.º 1 do art.º 60 da Constituição). Este princípio evita
desde logo a aplicação de mais de uma pena pelo mesmo facto.

46
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

112.9. Princípio da não automaticidade dos efeitos da pena

De acordo com este princípio, “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a
perda de direitos civis, profissionais ou políticos, nem priva o condenado dos seus
direitos fundamentais, salvo as limitações impostas por lei inerentes ao sentido da
condenação e as exigências específicas da respectiva execução” (art.º 79 do CP, no
mesmo sentido n.º 3 do art.º 61 da Constituição). Portanto, os efeitos da
condenação em certa pena não são automáticos, devendo ser determinados pelo
julgador na sentença, embora se admita que este operem também ope legis (art.º
134 do CP).

Capítulo II

Penas de pessoas singulares

113. Espécies de penas

De acordo com o postulado no Código Penal, artigos 61 e 63, as penas aplicáveis


às pessoas singulares são de duas espécies: i) as penas principais e ii) as penas
acessórias.

As penas principais podem ser privativas de liberdade e não privativas de


liberdade. A pena privativa de liberdade é a prisão. As penas não privativas de
liberdade são a multa, a prestação de trabalho socialmente útil e a interdição
temporária de direitos.

As penas acessórias são a regra de conduta, a perda de mandato ou proibição


temporária do exercício de funções públicas, a suspensão do exercício de funções
públicas, a proibição de condução e a inibição do exercício de poder parental, tutela
ou curatela.

Secção I

Pena privativa de liberdade: a prisão

114. Duração da pena de prisão: limites mínimo e máximo

A pena de prisão é a sanção criminal propriamente dita, com natureza temporária,


limitada e definida. Neste sentido, a pena de prisão tem, ao abrigo do artigo 61 da

47
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

CP, a duração mínima de 3 dias e máxima de 24 anos. Contudo, o limite máximo


pode, excepcionalmente, atingir o máximo de 30 anos, limite que em caso algum
pode ser ultrapassado.

No passado Código Penal de 2014, o limite máximo absoluto era de 40 anos, fruto
de agravação extraordinária da pena para certos casos expressamente previstas
naquela lei, como nos casos de agravação extraordinário quanto aos delinquentes
habituais e por tendência, bem como aqueles que cometiam os chamados crimes
hediondos (art.º 118).

115. Contagem dos prazos da pena de prisão

Segundo o n.º 3 do artigo 61 do CP, a pena de prisão é contada de acordo com os


critérios estabelecidos na lei processual penal e, na sua falta, na lei civil. O Código
Processual Penal não dispõe de um dispositivo de contagem de prazos de prisão,
senão a remissão ao Código das Execuções das Penas, que nos pareceu
igualmente omisso quanto à questão.

Da leitura da parte geral e especial do Código Penal, resulta que as penas de prisão
podem ser fixadas em dias, meses e anos. Deste modo, com recurso ao artigo 279.º
do Código Civil e à doutrina51, podemos fixar as seguintes regras de contagem do
prazo da pena de prisão:

- se a prisão for fixada em anos, ela termina no dia correspondente ao do início da


contagem e, se não existir dia correspondente, no último dia do mês;

- se a prisão for fixada em meses, o prazo conta considerando-se cada mês um


período que termina no dia correspondente do mês seguinte ou, então, não
havendo, no último dia desse mês;

- se a prisão for determinada em dias, conta-se considerando-se cada dia um


período de 24 horas.

A prisão pode ser fixada, ao mesmo tempo, em dias, meses e anos, devendo
observar-se as regras acima expostas.

De notar que o tempo de prisão preventiva, se a ela tiver havido lugar, é


descontado no da condenação definitiva que tiver lugar.

Nada obsta que o prazo seja contado com interrupções, sendo que estas serão
sempre compensadas e, tais casos ocorrem nas situações em que a prisão não é
cumprida de forma contínua.

51
Cfr SANTOS, M. Simas e HENRIQUES, M. Leal, Noções …, ob. cit., p. 172.

48
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

116. Execução da pena de prisão

Dispõe o n.º 2 do artigo 62 do CP que “1. A execução da pena de prisão tem em


vista, sem prejuízo da sua natureza repressiva, a regeneração dos condenados e a
sua readaptação social. 2. A execução da pena de prisão é regulada em legislação
própria, na qual são fixados os deveres e os direitos dos reclusos”.

Este artigo adianta os fins da execução penal, nomeadamente, a regeneração dos


condenados e a sua readaptação social. Deste modo, a execução da pena deve
orientar-se, para além de ser uma punição pelo crime cometido, para a
ressocialização do delinquente, de modo que, cumprida a pena, este se integre
perfeitamente no seio meio social, evitando cometer novos crimes (evitar a
reincidência).

O número 2 do mesmo artigo 62 do CP remete para legislação especial o processo


de efectivação da pena. Com efeito, a Lei n.º 26/201952, de 27 de Dezembro,
aprovou o Código de Execução de Penas, o qual dispõe sobre os princípios de
execução, a notar:

- execução individualizada, segundo a qual a execução da pena é sempre pessoal


e individualizada, tendo em atenção as circunstâncias, as necessidades, a fase de
aproximação progressiva à vida livre (art.º 4);

- dignidade da pessoa humana, segundo o qual o agente deve ser tratado como
ser humano que goza, naturalmente, de direitos consagrados na Constituição, nas
leis e no Direito Internacional; não pode ser submetido a uma execução desumana,
cruel, nem ser submetido a maus tratos. O agente já não é sujeito processual, é sim,
na fase de execução, um sujeito de direitos e deveres de natureza substantiva (art.º
5);

- imparcialidade e objectividade, dirigido aos agentes penitenciários, no sentido de


que a acção destes agentes deve ser guiada pelas regras de isenção, objectividade
e equidistância relativamente aos delinquentes, que se encontram sob sua alçada.
Esta regra inclui o dever de as instâncias prisionais não discriminar qualquer
condenando em razão da cor, raça, etnia, grau de instrução, nacionalidade,
situação económica, convicções políticas ou ideológicas (art.º 6);

- legalidade, no sentido de que a execução da pena ou medida de segurança


pressupõe a existência de uma sentença condenatória prévia transitada em

52
Publicada pelo Boletim da República, n.º 250, I Série, de 26 de Dezembro de 2019.

49
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

julgado. É esta sentença que serve de título executivo legitimador da execução da


pena ou medida de segurança;

- a execução da pena e das medidas de segurança deve tomar em conta a idade do


condenado, merecendo especial atenção em relação aos menores de 21 anos,
visto que ainda são menores de idade e maiores de 60 anos; tomar em conta as
necessidades especiais das mulheres, em matéria de higiene pessoal, protecção
da maternidade e educação parental.

Segundo as Regras Mandela, Regras Mínimas para o Tratamento dos Detidos e


Recomendações, aprovadas pelo 1.º Congresso das Nações Unidas para a
prevenção e tratamento do delinquente. No fundo estas regras impõem um
modelo universal de sistema prisional, embora reconhecendo a ONU que a grande
variedade de condicionalismos legais, sociais, económicos e geográficos em todo
o mundo, deixa evidente que nem todas as regras podem ser aplicadas em todos
os locais e em todos os momentos. Podemos, em síntese, destacar os seguintes
princípios de fundo:

- Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade
do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou
a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais
atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância;

- Não deve haver nenhuma discriminação em razão da raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, património,
nascimento ou outra condição. É necessário respeitar as crenças religiosas e os
preceitos morais do grupo a que pertença o recluso. Para que o princípio da não
discriminação seja posto em prática, as administrações prisionais devem ter em
conta as necessidades individuais dos reclusos, particularmente daqueles em
situação de maior vulnerabilidade. As medidas tomadas para proteger e promover
os direitos dos reclusos portadores de necessidades especiais não serão
consideradas discriminatórias;

- A detenção e quaisquer outras medidas que excluam uma pessoa do contacto com
o mundo exterior são penosas pelo facto de, ao ser privada da sua liberdade, lhe ser
retirado o direito à autodeterminação. Assim, o sistema prisional não deve agravar
o sofrimento inerente a esta situação, excepto em casos pontuais em que a
separação seja justificável ou nos casos em que seja necessário manter a disciplina;

- Os objetivos de uma pena de prisão ou de qualquer outra medida restritiva da


liberdade são, prioritariamente, proteger a sociedade contra a criminalidade e
reduzir a reincidência. Estes objetivos só podem ser alcançados se o período de
detenção for utilizado para assegurar, sempre que possível, a reintegração destas

50
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

pessoas na sociedade após a sua libertação, para que possam levar uma vida auto-
suficiente e de respeito para com as leis;

- O regime prisional deve procurar minimizar as diferenças entre a vida durante a


detenção e aquela em liberdade que tendem a reduzir a responsabilidade dos
reclusos ou o respeito à sua dignidade como seres humanos;

- Nenhuma pessoa deve ser admitida num estabelecimento prisional sem uma
ordem de detenção válida. As seguintes informações devem ser adicionadas ao
sistema de registo do recluso, logo após a sua admissão: (a) informações precisas
que permitam determinar a sua identidade, respeitando a autoatribuição de género;
(b) os motivos da detenção e a autoridade competente que a ordenou, além da data,
horário e local de prisão; (c) a data e o horário da sua entrada e saída, bem como de
qualquer transferência; (d) quaisquer ferimentos visíveis e reclamações acerca de
maus tratos sofridos; Um inventário dos seus bens pessoais; (f) os nomes dos seus
familiares e, quando aplicável, dos seus filhos, incluindo a idade, o local de
residência e sua custódia ou tutela; (g) contato de emergência e informações acerca
do parente mais próximo;

- As diferentes categorias de reclusos devem ser mantidas em estabelecimentos


prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento
prisional, tendo em consideração o respetivo sexo e idade, antecedentes criminais,
razões da detenção e medidas necessárias a aplicar. Assim: (a) Homens e mulheres
devem ficar detidos em estabelecimentos separados; nos estabelecimentos que
recebam homens e mulheres, todos os locais destinados às mulheres devem ser
completamente separados; (b) Presos preventivos devem ser mantidos separados
dos condenados; (c) Pessoas detidas por dívidas ou outros reclusos do foro civil
devem ser mantidos separados dos reclusos do foro criminal; (d) Os jovens reclusos
devem ser mantidos separados dos adultos.

117. Substituição da pena de prisão

De acordo com o sistema penal moçambicano, a pena de prisão constitui a última


ratio, só podendo ser aplicada quando, “através da aplicação de outras medidas ou
penas não privativas de liberdade, não for possível prevenir a prática futura de
crimes pelo infractor ou garantir a protecção dos bens jurídicos”53. Portanto,
independentemente de caber a uma certa conduta criminal um certo número de
anos de prisão, esta pena pode, regra geral e por determinação expressa da lei, ser
substituída por pena não privativa de liberdade.

53
N.º 2 do art.º 67 do Código Penal.

51
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

Contudo, o art.º 66 do Código Penal proclama o princípio da legalidade na


substituição da pena de prisão, segundo o qual “Nenhuma pena poderá ser
substituída por outra, salvo nos casos em que a lei autorizar”. Colocam-se aqui um
conjunto de limites ao tribunal na substituição da pena de prisão pela pena não
privativa de liberdade. Portanto, enunciam-se duas regras de fundo de substituição
da pena de prisão: i) situações de expressa proibição de substituição e ii) os casos
em que é aceite a substituição.

117.1. Casos de proibição de substituição da pena de prisão

De acordo com o estipulado no artigo 69 do Código Penal, a pena de prisão não


será em caso algum substituída, quando o agente tenha praticado os seguintes
tipos de crimes:

- crimes contra a humanidade e identidade cultural;

- homicídio doloso;

- violação de menor;

- rapto ou tráfico de pessoas;

- tráfico de estupefaciente ou de substâncias psicotrópicas;

- terrorismo ou outro tipo de criminalidade organizada ou associação criminosa;

- cometidos com o uso de armas de fogo ou com violência ou cometidos com


ameaça graves contra as pessoas;

- cometido contra criança, incapaz, idoso ou mulher grávida;

- branqueamento de capitais, corrupção e crime conexo;

- violência física grave cometida contra cônjuge, pessoa com quem viva como tal,
ex-cônjuge, parceiro ou ex-parceiro, namorado ou ex-namorado e familiar;

- de acidente de viação de que resulte morte, praticado em estado de embriaguez


igual ou superior a 1,2 mg/l ou sob efeito de substância psicotrópica ou
estupefaciente;

- caça, abate ou pesca de espécies de flora e de fauna protegidos ou proibidos.

Não é ainda admissível a substituição da pena de prisão nos casos de reincidência,


desde que nos últimos três anos o agente tenha sido condenado por prática de um
crime doloso; tenha sido submetido a privação da liberdade, mesmo

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ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

preventivamente, se tenha subtraído ao seu cumprimento; ou tenha beneficiado de


aplicação anterior de uma pena não privativa de liberdade (n.º 2 do art.º 69 do CP).

117.2. Casos expressos de substituição da pena de prisão: pressupostos

A pena de prisão pode ser substituída, em certos casos, pela pena não privativa de
liberdade. É uma medida que coloca em prevalência a dignidade da pessoa
humana, quando cumulativamente (art.º 68 do CP):

1.º - o réu seja primário. Um réu primário é todo aquele que comete o facto
criminoso pela primeira vez, ou melhor, aquele que nunca tenha sido condenado
judicialmente por sentença transitada em julgado. Todo aquele que tenha sido
mencionado na instrução preparatória, sem indicação de qualquer resultado de
condenação judicial transitada em julgado não deixa de ser réu primário. Vale dizer
que é também réu primário todo o acusado que pela primeira vez responde a um
processo penal, ou mesmo respondendo ao segundo ou terceiro processo, mas
que nunca foi anteriormente condenado com transito em julgado.

2.º - proceder à restituição dos bens de que se tenha apropriado, se for o caso;
ou tiver reparado totalmente os danos e prejuízos causados à vítima ou à
comunidade com a prática do crime ou; no caso de reparação parcial, assumir
a continuação da reparação ainda em falta no prazo e condições judicialmente
fixados. Este pressuposto inclui três hipóteses de aplicação alternativa:

2.1.º - o réu restitua os bens de que se tenha apropriado. – Normalmente, só


pode ocorrer este facto se o agente tiver cometido um crime de natureza
patrimonial. A restituição deve ocorrer até à fase de decisão sobre a suspensão do
processo. Restituir os bens significa que o réu devolveu na sua totalidade os bens
de que ilicitamente se apropriou, no estado em que se encontravam; não sendo
possível a restituição no estado anterior, então deverá …

2.2.º - reparado totalmente os danos e prejuízos causados à vitima ou à


comunidade com a prática do crime. A reparação pressupõe a impossibilidade
de restituição dos bens. Deste forma, o agente pode reparar os danos e prejuízos
de diversas formas, desde que as vítimas ou os lesados o consintam. Mas sempre
será em espécie ou em dinheiro. Esta reparação ou pagamento de prejuízos deverá
ocorrer até a decisão final; ou então, não sendo completa até lá, que o agente
assuma na sentença a continuação da reparação, fixando o tribunal o prazo e as
condições a serem observadas. A sentença condenatória é, para todos efeitos, um
título de execução da dívida assumida, para efeitos de execução.

53
ALBANO MACIE, DIREITO PENAL 2, PARTE GERAL (II)

3.º - o réu deve sujeitar-se às medidas, aos deveres e às regras de conduta


previstas sobre as condições da suspensão provisória do processo, e que o
tribunal vier a fixar na decisão.

54

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