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Capa

Folha de Rosto
Todos os direitos reservados
Ilustrações
Nota da Autora
Sinopse
Hierarquia
Mapa
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos
Outros Livros da Autora
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SILVIE BASSET - Copyright
© 2023 – 1ª Edição

Capa e Edição: Silvie Basset


Revisão: Raquel Moreno
Ilustrações: Moon Draws
​Tacyla Priscila
​Thia Perez
Para quem está no escuro.
Nada é para sempre
Ao menos que você queira.
Nas circunstâncias mais obscuras
o amor e a resiliência podem iluminar o caminho.
Persista!
Olá, minhas queridas! Sejam bem-vindas à máfia do
Silvieverso.
Para quem não me conhece, espero que este seja apenas o
primeiro dos meus livros que irá conhecer. Sinta-se à vontade para
entrar e ficar.
Se já me conhece, não se assuste. A trilogia Irmãos Moretto
irá fugir um pouquinho do que estão acostumadas por ser um
romance de máfia.
Alguns temas podem gerar gatilhos emocionais e levar o
leitor para uma bad trip. Então, por favor, preserve sua saúde mental
e pare a leitura caso isso aconteça.
Teremos um relacionamento tóxico, com mocinho
possessivo enquanto nossa protagonista foi criada tão somente para
cuidar do seu marido, independentemente de sua vontade. Não
entendo isso como certo, pois toda mulher tem o direito de escolha.
Sem contar que o livro retrata o anti-herói. Máfia, né? Faz
parte.
Giulio possui valores distorcidos com um “q” machista e
extremamente possessivo.
Leia com a mente aberta.
Lembre-se que gosto de manter características masculinas
reais que encontramos ao dobrar a esquina. Então, você não irá
encontrar um príncipe neste livro.
Ele é completamente imperfeito, salvo no sentimento que
terá com Francesca. Ali é um caso à parte.
Agora, quero numerar as ressalvas:
Número 1: Sou contra qualquer ato ilícito, violência, bem
como a total submissão da mulher (que salvo algumas vezes, são
bem interessantes, risos).
Enfim, meus amores, saibam o que está por vir e nem
sequer continuem se não for o tipo de livro que apreciem.
Não espere cenas espetaculares, com mil e uma torturas. O
foco da história é o romance do casal. Haverá cena de tortura?
Sim… algumas. Mas, nada absurdo.
Coloquei o gatilho para dark romance, pois algumas
pessoas são mais sensíveis do que as outras, sendo sempre
interessante apontar a existência dos temas.
Número 2: Vamos estar na Sicília, Itália, onde o idioma é
italiano, e por isso coloquei algumas palavras nesta língua com o
intuito de provocar a sensação de estarmos de fato lá, capito[1]?
Número 3: Os cargos da Máfia serão tratados de modo
diferente. Teremos o Don, Consigliere, Sottocapo, Caporegime,
Tenentes e soldatos. A nomenclatura será necessariamente essa.
Logo mais será apresentado um mapa e uma árvore de hierarquia.
Número 4: Quando o núcleo familiar consistir em algo
restrito ao Caporegime será usado a palavra clã, já quando abordar
a organização criminosa como um todo famiglia.

Sou muito acessível e gosto do feedback das minhas


leitoras. Se quiser deixar um recadinho no pv das redes sociais, vou
adorar.
Caso tenha algum erro, peço que faça a menção no campo
destinado no próprio kindle que a Amazon irá me notificar.
Espero que desfrutem da leitura.
Giulio Moretto é o filho mais velho do Don da Cosa Nostra. Herdeiro por direito do
trono do submundo, conseguiu por mérito próprio se tornar o Sottocapo. Alguns não
aceitam seu comando e querem seu posto. Por isso, o Conselho exige que seja cumprida a
lei da famiglia quando um membro de alta patente atinge seu 25º aniversário:
Ele precisa de uma noiva.
E vai escolher alguém que espera há anos para concretizar sua vingança.
Francesca Zanchetta foi criada como uma princesinha da máfia. A perfeita esposa
que qualquer Caporegime gostaria de ter. Mas ela tem um segredo. A proteção excessiva
de seu clã não é para proteger sua honra, e sim, para que ninguém saiba o que aconteceu
quando ela tinha catorze anos.

Ele é tempestuoso.
Ela é recatada.
Ele não acredita no amor.
Ela quer viver um romance.

Enquanto, como Sottocapo, Giulio enfrenta as artimanhas de um traidor dentro da


Cosa Nostra, como filho do Don, ele quer vingança e dará o seu pior para conseguir.
FAMIGLIA MORETTO
GIULIO MORETTO

— Vo-você não pode fazer isso, Giulio — diz sôfrega,


segurando a respiração. — Você não pode me tocar.
— Eu posso e vou — replico, deslizando os dedos por sua
coxa torneada exposta pela fenda lateral do vestido. Começo a subir
aos poucos em direção à sua virilha. — Você é minha. Não existe
escolha, Francesca. E vou me fartar do seu corpo o quanto eu
quiser.
— Não sou uma puta. Sou sua noiva — pragueja,
empurrando meu peito, em vão. Será que não compreende a
diferença entre meu tamanho e o seu? — Você só pode me tocar
depois do casamento.
— Eu só tenho que mostrar seu sangue depois do
casamento, e isso, mia Bambola[2], posso fazer de várias maneiras
— afirmo e percebo a mudança nítida de raiva para decepção. Sinto
uma pequena fagulha de remorso, que passa rápido. Ela não
merece minha consideração. — Antes, quero conferir o que me
pertence, noivinha. Você pelo visto queria se exibir para outro, não é
mesmo?
Francesca arfa quando roço o nariz em seu pescoço,
sentindo-a tremer e escorregar na parede no instante em que
alcanço sua calcinha.
O calor que emana do seu cerne em minha palma é uma
flechada certeira na libido que incha meu pau, pressionando o tecido
da calça de alfaiataria. Aperto de leve, aprofundando o dedo do
meio em sua intimidade molhada.
A sensação de umidade faz com que esqueça por alguns
segundos da ira que culminou nossa vinda até aqui.
Francesca solta o ar que estava preso em sua garganta,
deixando escapar um delicado gemido. Tão doce que quase, digo
quase, me esqueço quem essa maldita realmente é.
— Alguém irá sentir a nossa falta — murmura rouca, se
contorcendo conforme enfio mais o tecido de renda em suas dobras,
finalmente entregando-se ao desejo. — Se me desonrar, também
será prejudicado.
Ergo uma sobrancelha em desafio para que Francesca
continue com o discurso fajuto. Mas ela só me encara como uma
lebre encurralada pela raposa. É exatamente assim que me sinto
agora, um predador faminto prestes a devorar sua presa indefesa.
— Por quê? — questiono, arrastando as palavras conforme
sinto a pele macia de sua boceta, tão lisinha e escorregadia pela
excitação. Sim, bambolina[3], você me deseja.
— Porque terá uma mercadoria estragada. Nã-não é isso
que so-sou pra você? — gagueja, pois ao final de sua fala puxei a
calcinha para o lado. Francesca morde o canto da boca rosada e
carnuda, convidativa para o pecado. Ela contém o gemido quando
passo a dedilhar preguiçosamente os grandes lábios da fenda
melada.
— Se não esperava ser tocada, por que está depilada,
Bambola? — sussurro em seu ouvido, mordiscando a pele sensível
abaixo da orelha. O apelido que lhe dei há anos atrás. — Você anda
fazendo o que não deve? — Afasto-me para admirar o rubor em sua
face, e o exato momento que a saliva percorre sua traqueia.
— Eu… eu — ela ofega quando escorrego um dedo entre
suas dobras, levando o outro que passeia fácil pela lubrificação. —
Eu sempre sou vigiada, Giulio. Nem que quisesse poderia…
Interrompo abruptamente o movimento, pressionando com
firmeza a cintura fina com a mão livre. Hoje ela terá minhas
primeiras marcas em sua pele.
— E você quer? — provoco, reiniciando a tortura. — Quer
que outra pessoa te toque? Toque o que é meu?
Francesca encontra-se perdida numa confusão de emoções
e desejo. Eu sei. Sinto o mesmo, porém não deixo transparecer
qualquer emoção, deixando-a ver tão somente minha luxúria.
Abro a vulva com o indicador e anelar, e massageio o clitóris
intumescido. A mistura do seu rosto angelical com a expressão de
lascívia é o mais belo quadro que já vi. Minha noiva é uma pintura
de tão bela. Una bambola, mia Bambola.
A visão perfeita da garota intocável e pura se desfazendo na
medida em que o corpo cede à mobilidade dos meus dedos em seu
sexo. A face corada alimenta a intenção crescente de corrompê-la,
conforme meu pau pulsa dolorido, implorando por espaço e
querendo se enterrar no calor desta mulher.
— Porra! — rosno baixo, sentindo a umidade facilitar o
movimento circular que aplico no ponto saliente e inchado. — Como
eu quero provar seu gosto.
Ela começa a se contorcer mais e rebolar em minha mão,
caindo do pedestal de castidade que seu clã a colocou. Tentação do
caralho.
Estou a um passo de abrir meu zíper e fazê-la sangrar aqui
e agora. Aventuro-me até a entrada apertada, e toco o pequeno vão,
tão protegido por ela.
Virgem. Intocável. Pura. Para mim.
Para que eu suje. Para que eu foda. Para que eu corrompa.
Enfio a ponta do dedo, querendo um gosto da sensação
quente e apertada. Francesca arqueia abruptamente para frente, e
na tentativa de fugir acaba sendo ainda mais penetrada. Ela
arregala os olhos de água marinha em um suplício silencioso. Seu
rosto agora assustado e franzido não mais de prazer, mas de dor…
medo.
Não quero que me olhe assim. Me incomoda. Sinto o vinco
formar entre minhas sobrancelhas, fruto de uma preocupação
indesejada. Seu olhar aflito causa uma sensação estranha em meu
peito.
Quero que volte a gemer com meu toque. Quero ouvir os
pequenos sons que rasgaram sua garganta, enquanto tentava
manter o controle. E por isso, faço o impensado, não querendo mais
um pedido, e a beijo.
Francesca não me empurra. Ela enlaça meu pescoço como
se fosse um bote salva-vidas. Seu gosto é doce, suave como
chantilly e me recordo da sobremesa que comia, antes de arrastá-la
para a biblioteca.
Nossos lábios se movimentam furiosamente, com chupadas
fortes e intensas. O beijo torna-se avassalador a cada segundo.
Perco o controle, querendo mais da bela mulher que minha noiva se
tornou no decorrer dos anos.
Ela não fica inerte como antes, movendo seus lábios e
invadindo minha boca com a língua macia, ao mesmo tempo em
que retoma o movimento de quadril em minha mão. Contenho o
dedo médio para não aprofundar novamente, deixando-a conduzir o
balanço.
Porém, os gemidos ainda tímidos de Francesca estão me
enlouquecendo aos poucos. Se continuar, não irei suportar ficar
apenas na provocação que concatenei para confundi-la.
Não… Vou querer tudo. Cazzo!
Afasto-me de imediato, retornando ao meu juízo perfeito a
tempo de não cometer uma besteira. Noto que seu penteado não
está mais impecável e sua respiração está acelerada. Quando abre
os olhos, avança afoita para outro beijo. Esboço um sorriso
enviesado, recuando o rosto.
Minha sposa[4] emite um leve grasnado de insatisfação,
então sinto-a pressionar com os músculos da boceta o dedo ainda
nela.
O gesto de entrega absoluta é o convite para manipulá-la
um pouco mais. E apenas por este motivo, seguro sua nuca com a
mão livre para um último beijo, invadindo-a com a língua no mesmo
ritmo que meu dedo entra e sai de sua entrada. Encontro o clitóris
com o polegar e passo a lhe dar atenção.
Francesca geme entre os beijos desesperadamente. Ela
ergue um joelho enroscando a perna em meu quadril. Totalmente
entregue ao prazer. Totalmente pronta para mim. Eu poderia tomá-la
aqui e agora.
Corrompida.
Seus gemidos aumentam e sinto a boceta apertada pulsar
cada vez mais até esmagar o dedo médio. Abafo seus gritos com
meus lábios quando alcança o ápice.
O corpo de Francesca treme e convulsiona algumas vezes,
enquanto mantenho um vaivém mais calmo, esfregando sua vulva,
saciando minha noiva ao prolongar o orgasmo.
Meu pau reclama necessitado na braguilha do terno feito
sob medida. Eu quero possui-la. Mas preciso me conter.
Minha boca não contém o sorriso vitorioso por ver a
princesa perfeita dos Zanchetta decomposta. Acredito que ela
recebeu o recado. Francesca deve aprender logo que ninguém me
desafia, que sou eu quem tem o poder sobre tudo, inclusive sobre
ela.
— Eu não quero… — diz baixinho, num sussurro.
— O quê? — Inclino a cabeça para o lado, encarando-a
confuso.
— Não quero ser de outro. Quero ser sua — revela,
desviando o olhar, como uma confissão vergonhosa.
Retiro meus dedos de sua calcinha, deixando-a bagunçada.
Coloco propositalmente o dedo úmido de sua excitação em seu
queixo e ergo o seu rosto para me encarar.
— Você não tem escolha, Bambola — mantenho o mesmo
cochicho, com um sorriso maldoso. — Eu é que tenho. E posso
muito bem dispensá-la a qualquer momento. Você, por outro lado,
só pode conformar-se com o seu destino em ser meu brinquedo.
Ela acorda do encanto pós-orgasmo com minhas palavras
duras. Dessa vez, me empurra e eu dou a falsa impressão de
poderio, afastando-me com um passo para trás.
Em seguida, levo o dedo médio à boca, ainda a encarando,
e chupo-o, satisfeito com seu olhar escandalizado. Solto um riso
sarcástico.
— Seu gosto é bom, Francesca. Asseguro que não lavarei a
mão e foderei uma das suas primas sentindo seu cheiro. — Pisco e
ela avança para me dar um tapa. Seguro sua mão no ar. — Não
abuse. Não pense que por gostar da sua boceta, você deixará de
ser quem é. Saiba seu lugar. E nunca, — empurro seu corpo de
volta à parede — nunca levante a mão para mim novamente.
— Ou o quê? Irá me bater? — empertiga, atrevida. Observo-
a com certa admiração. Ela não sabe do que sou capaz. Não
ainda…
— Ou vou descontar minha ira em alguém com quem se
importe. Não me teste.
Afasto-me e aprumo o terno.
— Agora, recomponha-se. Temos que cumprimentar alguns
convidados.
— Você é um monstro — devolve enfurecida.
— Um monstro, com quem se casará em breve. Acostume-
se — ofereço, num tom calmo, sem emoção, recolocando a
máscara que todos conhecem e temem.
— Eu te odeio — exalta-se.
— Bem-vinda ao clube. — Dou-lhe as costas e antes que
abra a porta, olho-a por cima do ombro. — Como se chama mesmo
aquela sua prima ruiva? Érica, não é?
— Seu… — ela rosna.
— Está com ciúmes, Francesca? — Sorrio irônico.
— Nunca. Você apenas… apenas me deve respeito.
— Fique tranquila… — Levo os dedos em meu nariz e inalo,
sentindo a fragrância do seu sexo. — Pensarei em você a cada
momento — debocho e saio, fechando a porta rapidamente.
Ouço um baque na madeira conforme caminho de volta para
a festa. Provavelmente, minha noiva jogou algo contra a porta.
Antes que retorne ao salão de festa, paro rapidamente em frente a
um dos espelhos de decoração ajeitando meu cabelo que não
passou ileso da brincadeira.
Olho para minha virilha, concentrando-me na última vez que
fui à cutelaria para a excitação deixar de ser tão aparente. Os gritos
do traidor misturados ao fedor de urina parecem não ser tão
eficazes desta vez, mas é melhor retornar à minha festa de noivado
meia bomba do que uma bomba inteira.
Assim que entro no salão, avisto meus irmãos ao canto e
caminho até eles.
— Devo me preocupar? — Maximus, o caçula, indaga,
esboçando o sorriso zombeteiro. — Os noivos desaparecem por
alguns minutos e só você retorna? Ela está viva, pelo menos?
— Cale a boca, Max — devolvo, num chiado raivoso,
pegando o copo de uísque oferecido por Fausto, dando um gole
antes de continuar: — O bem-estar de minha noiva não te diz
respeito.
— Concordo. Porém, ainda precisamos saber se Francesca
continua com os dedos dos pés e das mãos intactos — Meu irmão
do meio emenda a gracinha do primeiro.
Ignoro-os, mantendo o rosto sereno para alguns dos
convidados que nos observam. Minutos depois, vasculho o salão,
passando os olhos despretensiosamente pela entrada. Não que
estivesse ansioso para o retorno de minha noiva. Não…
Infelizmente, quem avisto é a ruiva assanhada que se atirou
em mim mais cedo. Ergo o copo discretamente em sua direção
como um cumprimento. Talvez dance com ela para provocar
Francesca.
Meus irmãos se entretêm sozinhos, fazendo suposições do
que eu fiz com a Bambola comparando atos de sedução com
minhas preferências de tortura. Aprendi há muito tempo a ignorá-los.
Nesses momentos, deixo minha mente vagar para o que realmente
me interessa.
Fico atento à entrada e espero ansioso pelo retorno dos
cabelos castanhos e olhos de água marinha de volta ao salão.
Por fim, Francesca retorna ainda mais deslumbrante como
uma verdadeira rainha, cumprimentando alguns convidados por
onde passa, aparentando a noiva feliz que todos querem ver. Mas
eu sei que tudo é falso.
Novamente plastificada. A mulher perfeita.
A princesa do castelo Zanchetta. Ela é a donzela protegida
por todos. Aquela que sempre foi mais cuidada, mais querida. A
proteção que se desfez quando coloquei meus olhos sobre ela.
Perfeita filha. Perfeita noiva. Pura e casta, como deve ser. E
será a perfeita moglie[5].
Eu irei quebrar a casca e sujar seu interior. Minha escuridão
começou a manchar sua inocência.
Eu a corromperia.
Francesca Zanchetta sofrerá as consequências das atitudes
de outros. Mas não fui eu que quis assim. Foram eles.
Seu pai deu sua princesa para o vilão. E como um bom
algoz, irei aniquilar cada um dos seus sonhos. A famiglia Zanchetta
nunca mais será a mesma. Eles destruíram a minha, eu irei destruir
a deles arrastando para as sombras sua pedra preciosa.
Bebo do uísque e pisco para ela sobre o copo, que me
observa à certa distância.
Hoje roubei um pedaço de sua pureza. Logo, será tudo.
Uma boneca manipulada.
Uma boneca corrompida.
Minha Bambola.
GIULIO MORETTO
8 ANOS DE IDADE

Ouço o momento em que a maçaneta é virada e o leve


ranger da porta de meu quarto indica a entrada de alguém,
acompanhado da pouca iluminação do corredor.
Respiro fundo. Agora é a minha vez.
Finalmente meus irmãos adormeceram e mamãe conseguiu
vir desejar bons sonhos.
Todas as noites, espero ansioso por esse momento, quando
ela se senta ao meu lado e desliza as pontas dos dedos em meu
rosto. O movimento tenro acalenta meu coração de menino. Mamãe
se inclina, depositando um beijo em minha testa.
— Dio vi benedica[6] — pronuncia com a voz melodiosa.
Sorrio, sentindo o cheiro de rosas. Ela me flagra, assim que se
afasta. — Está acordado, ragazzo.
— Sí, Mammina[7]. Te espertava — confesso baixinho,
aguardando esperançoso que hoje ela esteja bem. Acredito que sim.
Seus olhos estão cálidos e gentis. Não vejo a aura escura que
muitas vezes nubla quem minha mamãe realmente é. Ela não é má.
Não intencionalmente, pelo menos.
Na última vez, não fiquei tanto tempo preso. Senhoria
Isabel, nossa governanta, foi quem me encontrou.
Mammina gosta de me esconder de todos. Ela diz que não
queria me dividir com ninguém, mas eu quis nascer e sair de sua
barriga, bem como meus irmãos.
Não lembro do nascimento de Fausto, ainda era muito
pequeno. Mas recordo-me do dia em que Maximus nasceu. Foi a
primeira vez que vi papà[8] perder o controle.
Todos nós nascemos nesta casa. Geralmente, as crianças
nascem no hospital. Não os herdeiros do clã Moretto.
Eu tinha apenas 5 anos, porém a lembrança das palavras de
papà ameaçando Mammina a cooperar com o médico gritam vez ou
outra em minha cabeça.
Ele não entende o seu amor.
Quando Mammina se recuperou do parto, pediu desculpas e
afirmou que cuidaria de todos nós com afeição. Nos dias seguintes,
era papà quem levava Maximus para mamar. Ele não deixava nosso
irmão sozinho com ela.
No entanto, ajudei Mammina a conquistar novamente sua
confiança. Passei a cuidar dos meus irmãos nos momentos das
crises de amor, como ela diz.
Tentava encontrar os dois meninos antes que papà
chegasse do trabalho. Fiquei muito bravo no dia que me disseram
sobre a nova escola. Sempre estudei em casa, o que facilitava vigiar
Mammina.
Comecei a frequentar as aulas no ano passado. Isso porque
muitos dos meus colegas são filhos dos sócios e amigos de papà.
Uma das esposas pediu uma vida mais normal para as crianças.
Não entendo. Nós temos uma vida normal, não?
Nossa famiglia é poderosa, disso, tenho certeza. O trabalho
de papà é importante. O Grupo Empresarial Moretto é um império
por toda Sicília.
Descobri sem querer sobre os hobbies que os subchefes
possuem em comum, mantendo cutelarias próximas, nas quais
confeccionam espadas e facas sofisticadas para apresentarem
numa competição interna entre eles.
Mulheres e crianças não são bem-vindas nesses eventos.
Não importa.
Eu gosto mesmo do trabalho no cais. Adoro quando papà
me leva ao porto, não pelo cheiro de peixe, isso não. Mas pela
marina. A potência que as embarcações chegam e atracam de
modo soberano é magnífico. Sinto que faço parte de algo grandioso.
Papà me chamou ontem em seu escritório e disse que logo
eu participaria das reuniões de negócios. Talvez eu comece a ir
mais vezes ao porto, penso. Vou pedir para Signora Isabel olhar
meus irmãos enquanto eu ficar ausente.
Mammina não gosta quando papà me leva em seu trabalho.
Fiquei preocupado quando ela colocou Fausto no freezer do porão
na semana passada em retaliação, logo após nosso retorno. Eu
ainda estava cansado quando me chamou para brincar de esconde-
esconde.
Permiti que me colocasse o quanto antes no armário para
que pudesse ir atrás dos outros assim que Mammina se afastasse.
Consegui sair do local sem que ela percebesse. Apressei-
me ao ouvir Fausto gritar. Corri temeroso. Tirei meu irmão de lá com
os lábios azulados. Ele ainda não havia congelado.
Procurei na internet informações sobre hipotermia e
descobri que um ser humano não vive mais do que duas horas em
baixa temperatura.
Pedi para Mammina não o colocar mais no freezer. Ela disse
que não fez por mal. Não pensou que seu filho pudesse morrer
congelado e ficou assustada quando mostrei meu tablet com o site
de pesquisa aberto.
— Mio belo bambino. Mammina te ama muito — afirma,
agora, com veemência, apertando-me num abraço de lado e
pressionando meu corpo no colchão.
— Eu sei, Mammina — replico, carinhoso. Gosto quando ela
está assim. Papà não nos abraça. Só Mammina.
— Durma, mio figlio precioso. Amanhã seu dia será cheio —
afirma, afofando meu cabelo e fazendo o sinal da cruz em seguida.
— Você também é preciosa, Mammina. Te amo. — Seguro
sua mão e beijo de leve o dorso. Ela expira o ar pesadamente antes
de se levantar e sair em meio à penumbra do quarto.
Fecho os olhos e espero, até ter certeza de que Mammina
seguiu para o outro corredor que a leva ao seu quarto. Quando noto
que seus passos estão distantes o suficiente, levanto-me e pego no
fundo falso da gaveta da mesinha de cabeceira as chaves dos
quartos de Fausto e Maximus.
Vou até os cômodos do outro lado do corredor, trancando as
portas. Uma rotina que comecei quando Mammina tornou-se
sonâmbula e passou a aparecer de madrugada em nossos quartos.
Algumas vezes era apenas para nos abraçar, outras ela
queria dormir conosco, mas colocou o travesseiro de forma errada
em minha cabeça, sufocando-me um pouco. Pensei em Maximus
que ainda é pequeno demais e não conseguiria sair debaixo de
Mammina caso acontecesse com ele.
Assim que viro a chave do quarto de Maximus, ouço as
vozes de papà e Mammina no andar de baixo. Parece vir do
escritório.
Provavelmente, Mammina está tentando persuadi-lo a não
me levar ao cais de novo. Droga, Mammina. Preciso ir até lá e pedir
para que fique de fora.
À medida que alcanço o escritório, noto que os burburinhos
não parecem uma conversa civilizada, mas sim outra discussão.
O som característico dos passos de papà nos calçados de
solado duro, batendo firmemente no chão de modo acelerado,
indicam seu caminhar ao redor do cômodo. Há tempos, conheço a
sequência dessa dança.
Mammina foi ali para brigar e não para intervir por mim.
Eles nunca souberam que eu assistia escondido suas
brigas. Na maioria, Mammina avançava para bater em papà. Ele a
segurava e se afastava.
Em seguida, eu aparecia para consolá-la seja lá qual fosse o
problema da vez. Ela costuma sempre chamá-lo de Don Moretto
quando estão sozinhos. Na minha frente e dos meus fratelli[9],
referem-se um ao outro como marido e esposa. Mas aqui, neste
escritório, foi que vi Mammina se referir à papà como os outros
funcionários do cais e o restante de nossa famiglia. O ranger de
uma cadeira chama minha atenção para o presente.
Caminho sorrateiramente até o vão da segunda porta do
cômodo, uma que fica escondida atrás da estante de livros.
Descobri por acidente certa vez que tio Marcelino, irmão de papà,
precisou entrar no meio de uma das muitas reuniões que ocorrem lá
dentro. Não sei como terminou os negócios naquele dia, pois
Mammina me encontrou e levou-me para o quarto.
Permaneço calado, aguardando a deixa. As vozes começam
a se exaltar. A princípio, ouço as lamúrias de Mammina que parece
emotiva pelo fato de papà ter se esquecido de algo.
Ele se justifica sem alterar o tom da voz, sendo gentil e
desculpando-se. Papà tenta ser bom para todos nós. Queria que
Mammina compreendesse isso. O trabalho esta semana exigiu
muito a presença do Don, foi o que ouvi nos corredores entre os
seguranças.
Entendi que algo aconteceu com um dos nossos navios.
Papà precisa de ajuda, por isso me quer ao seu lado. E eu estou
pronto. Tio Marcelino diz que tanto ele quanto papà foram iniciados
com 10 anos. Se já estivesse ajudando papà, talvez ele lembraria
da data especial que Mammina insiste ter esquecido.
— Você estava com ela, Tony — Mammina incrimina
rispidamente.
— Está maluca? — papà retruca, indignado. — Eu não
estava com ninguém, Chiara. Nem mesmo as putas da boate tenho
visitado nos últimos tempos.
— Então, você confessa que se encontra com outra
pessoa? — Mammina soa irônica.
— Não coloque palavras em minha boca, Chiara. Nós
sempre tivemos um acordo. — Mammina bufa.
— As pessoas comentam, sabe? — Não reconheço a voz
perversa, dita com desdém. — Todos comentam que o Don,
ultimamente, se recusa a sair com as putas por ter uma amante.
Minhas amigas sentem pena de mim.
— Suas amigas queriam ser as minhas putas, isso sim —
papà devolve com um riso que desconheço. Esfrego meu rosto
quando uma lágrima cai. Não queria estar ouvindo Mammina falar
assim. Nem papà. — E se você me recebesse em sua cama
também iria gostar. Mas é frígida como um iceberg.
— Sou uma mulher de respeito — responde afrontosa.
— Ser a mulher do seu marido não te faria menos do que
isso. Nem suas amigas idiotas, que são péssimas amantes já que
os maridos preferem se afundar nos bordéis da famiglia a ficar em
casa.
— E você nunca está com eles! — Agora Mammina berra,
acusando papà de algo que não entendo. — Se não está com eles,
onde você está?
— Eu não quero uma puta, Chiara. Tenho outros afazeres
que exigem minha atenção — papà replica, sentando-se atrás da
mesa de carvalho.
Ela rosna em resposta, andando para os lados conforme
ouço os saltos no assoalho.
— É claro… — Mammina solta uma risada sem humor. — O
que quer não encontrará em um bordel, o que quer está muito bem
protegido em uma das nossas casas, sob a proteção da famiglia,
não é mesmo?
— Chiara… — papà soa como um aviso.
— Anunziatta — Mammina estrala a língua na última sílaba.
— Anunziatta Zanchetta, não é? Ela sim é sua amante! Você pediu
para desmanchar nosso noivado para se casar com ela… eu me
lembro. Mas foi obrigado a se casar comigo para a paz entre a
Camorra e a Cosa Nostra, hum? Confessa, Tony! Confessa que
preferia a putinha da Sicília?
— Não fale de Anunziatta desse jeito! Ela é uma mulher de
respeito! — Papà se exalta.
— Claro que é… Está casada com Enrico Zanchetta agora,
não? Acredito que grávida do primeiro filho…
Papà a encara com fúria, soltando o ar com força, o que faz
as narinas aumentarem. Não consigo deixar de comparar a cena
com a de um touro na arena prestes a enfrentar o manto vermelho
do toureiro.
— Devo me preocupar por talvez ser um bastardo, Tony?
— Já basta, Chiara! — Um baque na mesa me faz saltar de
susto. — Lave sua boca para falar de uma mulher honrada. Enrico é
meu Capo em Messina e eu o respeito.
— Foda-se, Tony! Você olha pra mim querendo ter ela em
seus braços. Essa mulher foi sua perdição e a destruição do nosso
casamento há anos. Eu sei disso.
— Anunziatta não é culpada de nada. Pare com isso,
Chiara. — Papà parece querer apaziguar, baixando o tom de voz. —
Eu me casei com você. Tenho feito de tudo pela nossa famiglia.
— Mas você nunca olhou para mim como olha para ela.
Talvez se me venerasse tanto quanto a ela, eu me deitaria com você
mais vezes. Só que não… Você sempre quer aquilo que não pode
ter, Antonio.
— Anunziatta é feliz em seu casamento. Ela tem um ótimo
marido, um filho a caminho… é uma mulher grata por aquilo que
conseguiu em sua vida. Você deveria ser grata e feliz tanto quanto.
— Eu não tenho tudo. Não tenho tudo o que quero. — Espio
pela frestinha entre a parede e o início da prateleira. Consigo ver
quando minha Mammina se aproxima da mesa onde papà está
sentado. Ele se levanta, dando um passo para o lado, mantendo
certa distância.
Não seria a primeira vez que Mammina tentasse bater em
papà. Ele nunca revidou. Aperto os punhos, querendo entrar e fazê-
la parar. Papà a avisou que ela não sairia impune se o agredisse
novamente.
— Você deveria ter me deixado dentro da Camorra e se
casado com Anunziatta. Assim, teria o seu final feliz.
— Eu não quero um final feliz, Chiara. Quero um casamento
honrado como temos, com os filhos que temos. A Cosa Nostra está
mais forte, tanto quanto a Camorra. Nossa união foi necessária.
— Você quer bancar o altruísta e destruir a minha vida. —
Mammina continua avançando. Não…
— Destruir a sua vida? Você tem tudo, Chiara. Nossos filhos
são maravilhosos. Eles te amam, enquanto você… — Papà passa a
mão livre pelos cabelos.
— Aonde você pensa que vai? — Mammina vocifera com
raiva.
— Preciso pensar… Longe de você. Chiara… moglie[10]…
Você ultrapassa os limites da minha sanidade.
No instante que papà coloca a mão na maçaneta, tudo
acontece muito rápido. Mammina avança para cima dele, puxando-o
para o lado. Papà quase cai, mas se apoia segurando no batente.
— Eu não vou deixar você procurar uma puta quando você
tem uma esposa em sua casa.
— Não vou procurar ninguém!
— Mentira! Você está indo atrás da esposa do Zanchetta —
Mammina esmurra o peito de papà que tenta segurá-la com um
braço só.
— Você está louca, Chiara! Amanhã você irá para a clínica.
Você precisa se tratar. — Papà a empurra como pode, puxando a
porta ao mesmo tempo em que afasta Mammina.
Mammina murmura algumas palavras, vendo a porta ser
fechada enquanto papà vai embora. Ela caminha de costas sem
notar a dobra do tapete causada no rompante da briga. Ela se
desequilibra e tropeça. Empurro o armário, que parece travado do
lado de dentro.
— Mammina! — chamo-a. Seus olhos me encaram em
câmera lenta no momento da queda. Vejo sua cabeça quicar na
quina da mesa e o pescoço torcer em um ângulo estranho. —
Mamminaaaa! — Desisto de empurrar a prateleira, dando a volta e
entrando pela frente.
Ela está caída sem se mover. Corro até minha Mammina
chorando desesperadamente. Não… não.
— Mamminaaaa… — choramingo, sem forças para gritar
por ajuda. Seus olhos estão perdidos ainda virados para a fresta
onde me viu pela última vez. Não, Mammina… não.
— Isabel, Bel, Isabel… — começo a chamar pela ajuda da
governanta, ainda com a voz embargada, mal sendo um som
coerente. — Isabel, socorro! — Finalmente consigo gritar.
Não demora muito, e o cômodo está repleto de seguranças.
Isabel se aproxima e pede que todos se afastem. Não solto o corpo
inerte de Mammina. Ela está mole, como uma boneca de pano.
Papà apareceu horas mais tarde. Estava em algum lugar
incomunicável, pois não atendia ao telefone por mais que meu zio[11]
Marcelino ligou. Será que Mammina estava certa?
Será que papà estava com outra pessoa?
Mammina só queria ser amada como qualquer esposa…
E ela… ela se foi… pedindo por amor.
E agora? Agora que Mammina não está mais aqui. Agora
que papà é viúvo, o que irá acontecer?
Minha cabeça rodopia com mil questionamentos no
momento que retiram o corpo sem vida dos meus braços. Não…
Mammina…
Enxugo com o dorso da mão o rosto, assistindo minha
Mammina ser levada de mim. Ela se foi… para sempre.
Tudo porque papà ama outra mulher.
Zanchetta… Já vi o homem que carrega este sobrenome
aqui em casa, porém nunca reparei em sua esposa. Não imaginava
que ela um dia poderia ser a ameaça para minha famiglia.
Foi por causa dela que Mammina se foi. Se papà amasse
Mammina como ela queria, não haveria briga. Mammina sairia do
escritório ao lado de papà e jamais teria ficado sozinha.
Mammina estava triste… Por amar demais, ela discutiu com
papà. Por amar demais, ela ficou sozinha no escritório. Por amar
demais, ela morreu.
O amor é uma ameaça. Não traz nada de bom. Destrói… e
mata.
Eu nunca vou amar. Nunca serei manipulado por um
sentimento que corrói o ser humano dessa forma. Amor é uma
doença. Foi isso que papà falou que Mammina tinha… uma doença.
Estou em pé, escorado na parede quando papà finalmente
retorna para casa. Vejo a boca de tio Marcelino se mover, contando
o ocorrido para ele. Não ouço nada, apenas absorvo a
movimentação ao meu redor. Pessoas indo e vindo. Fecho os olhos,
aliviado de Fausto e Maximus estarem lá em cima com Isabel.
Eles acordaram, mas nossa governanta se prontificou em
mantê-los longe.
Sinto uma mão em meu ombro e então abro os olhos,
encarando papà com olhar penoso para mim.
— Sinto muito, figlio — diz, abraçando-me de lado. Não
choro mais. Meneio a cabeça, aceitando conforto. — Ela te amava
muito. — A palavra me causa asco. Ouço como um replay toda a
discussão que resultou no agora.
As palavras de Mammina rodopiam em minha cabeça.
Zanchetta… Você está indo atrás da esposa Zanchetta.
Inspiro o ar com força, enchendo os pulmões o máximo que
posso e expirando aos poucos, com um leve soluço, resquício do
choro.
Essa famiglia irá pagar um dia… ainda não sei como. Mas
eles irão pagar por destruir a minha.
FRANCESCA ZANCHETTA
14 ANOS DE IDADE

Meu corpo ainda está mole pelo medicamento que


Mammina me deu.
Mas a dor abaixo do peito não passa. Sento-me na beirada
da cama, aguardando o mundo parar de rodar para ir até o
banheiro. Nunca atravessar poucos metros pareceu-me tão difícil.
Para completar, a tontura embaça minha vista.
Forço o foco da visão, e vejo com dificuldade a porta branca
e a maçaneta de alumínio… tão próximas e tão distantes ao mesmo
tempo, indo e vindo.
O quarto de mia fratella, Michela, é na porta ao lado. Será
que se eu gritar, ela vai ouvir?
Luigi era quem costumava vir em meu socorro. Se quase
nunca levei um tombo na vida, foi porque meu irmão mais velho
sempre me segurava no primeiro tropeço. Mas quando completou
15 anos, pediu para mudar seu quarto para a casa da piscina.
Após a iniciação na Cosa Nostra, papà tem dado mais
liberdade para o filho mais velho. O que seria um quarto apartado da
casa?
É estranho enxergar meu irmão como um Uomo d’onore[12]
[13]
. Tio Lorenzo afirmou outro dia que ele tem sido um Soldato
honrado.
Soldato… Este é o nome que dão aos funcionários de baixo
escalão em nossos negócios.
Luigi, Alessio e Dario, estes últimos nossos cugini[14],
possuem o mesmo cargo. Eles sempre andaram juntos, o que não
mudou nada. Embora, Alessio tenha demorado alguns anos para
fazer parte do trio, por regular de idade comigo. Nele foi muito mais
visível a alteração no humor após a passagem que todos os
membros do sexo masculino são obrigados a vivenciar na
adolescência.
Meu cugino[15] mais novo costumava ser um dos amigos
mais próximos de Michela e Valentina. Quando retornou, seu
comportamento com elas nunca mais foi o mesmo.
Ele tinha apenas 13 anos, Dio mio! Todos tinham…
Os filhos da famiglia são iniciados no mês seguinte ao seu
décimo terceiro aniversário. Papà disse uma vez que costumava ser
aos 10 anos, mas Don Moretto alterou essa tradição.
De qualquer forma, Mammina quase morreu de nervoso por
ficar mais de três mês longe de Luigi.
Sempre fui uma criança quieta. Nunca gostei de barulho e
buscar lugares para ficar sozinha fez com que ouvisse várias
conversas que não deveria. Não me atentava antes do meu irmão
passar meses fora de casa e voltar diferente, aliás.
Papà e tio Lorenzo são chamados de Caporegime em seu
meio, equivalente a capitães. Talvez eles sejam isso mesmo, ou
não.
Mammina nos proibiu de mencionar qualquer coisa a
respeito quando começamos a frequentar a escola como as outras
crianças.
Não existe escolha no meio em que vivemos. Somos todos
unidos por um vínculo de gerações. Impossível sair.
Então, fazemos o que podemos e rezamos para que nossos
padres e fratelli retornem vivos para casa todos os dias.
Outra pontada alucinante na lateral do abdômen me
atordoa, fazendo-me lembrar do motivo que me levou a caminhar
até o banheiro. A ânsia de vômito iminente me motiva a apressar o
passo.
Uma onda turbulenta pressiona meu estômago de dentro
para fora, provocando a expulsão do jato de líquido amarelo que
queima a garganta. Assim que sinto o odor azedo, agradeço em
silêncio por chegar a tempo, mesmo estando abraçada ao vaso
sanitário.
Droga… Quando comentei com Mammina sobre a dor, ela
me deu novamente o remédio para cólica que ministrou mês
passado. Tentei relatar que não se tratava disso, mas ela não me
deu ouvidos.
Cambaleio para frente conforme a sensação ondula meu
corpo. Nunca foi cólica. Não é no baixo ventre, mas um pouco mais
acima.
O que mês passado começou com leves fisgadas tornaram-
se fincões ardentes que beliscam a carne por dentro. Tentei me
autoconvencer que não era nada. No entanto, à medida que os dias
passaram, a dor aumentou.
Respiro fundo, pressionando o local.
A onda de dor me invade, causando o movimento de
vibração do estômago. Despejo outro jato de líquido amarelo e
azedo.
— Figlia mia! Che succede, piccola? [16]— Mammina surge
na porta do banheiro, vindo até mim, preocupada. Ela ajoelha-se no
chão, dando descarga em seguida.
— Estou com muita dor, Mammina… — resmungo.
— Onde, mia cara?
Coloco a mão no local, na lateral do corpo.
— Venha… — Ela me ajuda a se levantar. — Vou te levar ao
hospital. — Finalmente.
A dor que sinto é tão forte que só quero que passe.
Mammina me ajuda a colocar um vestido, prendendo meus cabelos
escuros e lisos, num rabo de cabelo. Em seguida, corre para se
arrumar para me acompanhar.
Antes que saia, dá instruções para nossa governanta cuidar
de Michela quando acordar. Luigi está com mios cugini[17]. Mammina
me conduz até o carro com motorista e vamos para o hospital. No
caminho, ela liga para papà, que não está em casa, informando o
ocorrido.
Ouço-o preocupado, porém, ele pede para Mammina manter
a discrição e solicitar sigilo. Isso sempre foi algo de praxe no clã
Zanchetta.
As figlie[18] de Enrico Zanchetta nunca ficavam doentes.
Somos pérolas raras que qualquer homem honrado gostaria de ter
como esposa.
Papà diz isso com tanto orgulho que quando adoecia, sentia
uma pontada de culpa.
Por conta da tal discrição, no instante em que chegamos ao
hospital, sou levada para uma ala mais afastada, e examinada por
nosso médico pessoal. Doutor Ângelo costuma nos atender e papà
já conversou com ele sobre não manter nossos históricos
hospitalares no sistema.
Ele pede para sentar na maca, dando sequência ao exame
clínico. Primeiro ouvindo meus batimentos cardíacos e auferindo a
pressão arterial.
Estou sentindo o tecido pressionar meu braço, conforme o
doutor bombeia a bolinha, quando não contenho o gemido por conta
da dor pontiaguda na região do abdômen. Curvo para frente,
tentando conter o rasgo que sinto em meu interior.
— Francesca… — O médico me chama, mas sua voz não
passa de um murmúrio distante. A visão fica novamente embaçada.
— Figlia… — Mammina é outro borrão ao lado do doutor.
Respiro, buscando diminuir a sensação de estar sendo cortada ao
meio. Não consigo manter os olhos abertos, então, desisto,
entregando-me à escuridão.
FRANCESCA ZANCHETTA

Algumas semanas depois, ainda estou em uma cama


hospitalar com Mammina ao meu lado.
Ninguém da famiglia, nem sequer meus irmãos, sabem o
que tenho. Todos pensam que é apenas uma gripe forte.
Como gostaria que fosse…
Signora Zanchetta achou por bem aproveitar para retirar
Michela da escola e retomar o ensino domiciliar. Por mais que
precise se afastar de algumas obrigações da presidência do
Consiglio delle damigelle[19].
Mammina é a presidente do grupo de mulheres da famiglia
composto por cada esposa dos oito Caporegimes das Províncias da
Sicília. Deveriam ser nove donne [20], mas com o falecimento da
esposa do Don e a assunção de seu filho como Caporegime de
Palermo, restaram oito.
A pequena instituição de mulheres surgiu para que as
esposas pudessem ter alguma atividade, e também atuar como
balança dentre os pecados dos seus maridos com Deus. A mulher
que nasce sob o regime patriarcal da Cosa Nostra sabe que sua
função é servir como moeda de troca em casamentos arranjados e
procriar.
Mas para amenizar a opressão, foi instituído o tal Consiglio.
As Damigelle[21] organizam festas, eventos e arrecadações para os
orfanatos que estão sob nossa proteção.
Mammina é extremamente comprometida com os afazeres
do Consiglio. Ela estava mais livre quando eu e Michela começamos
os estudos na escola comum.
Suspiro chateada. Não gosto de ser um fardo para aqueles
que amo.
Minha querida irmã não ficou nada contente. Mas não
conseguiu reverter a decisão de Mammina, que incrimina a escola
por me deixar doente.
Não é culpa de ninguém…
Ontem, doutor Ângelo entrou em meu quarto com a notícia.
Ele foi minucioso, solicitando uma bateria de exames, enfatizando a
necessidade da tomografia na região torácica. Mios padres estavam
um de cada lado, segurando minhas mãos.
— Osteo… o quê, doutor? — papà indagou.
— Osteossarcoma. Trata-se de um tumor ósseo maligno
agressivo de crescimento rápido. Por mais que tenhamos
descoberto precocemente, seu avanço é iminente.
— Mas ela está com dor na barriga — Mammina pontuou,
ainda em negação.
— O tumor está alojado na nona costela vertebrocondral,
atingindo parte da cartilagem. As dores abdominais são causadas
por isso. — Mammina balançou a cabeça, atônita. O médico
continuou: — A extração da parte óssea afetada é o mais indicado,
será necessária quimioterapia antes e pós-cirurgia.
— Eu não entendo nada dessa conversa, doutor. Minha filha
reclama da dor perto do coração. Ela tem algo ali também? — Papà
gesticulou para meu peito, num movimento exagerado.
— Não, Signore Zanchetta. É apenas em uma das costelas.
Mas devemos retirar o quanto antes, para evitar a metástase. No
entanto, maiores detalhes serão revelados quando conversarem
com o oncologista.
— O quê? Minha filha perderá uma costela. Non posso
crederci![22] — Mammina não entendia.
— É para o câncer não espalhar, Signora Zanchetta —
respondeu à Mammina. Em seguida vira-se para papà — e não
adianta ameaçar o oncologista. A doença de sua filha não irá mudar.
— Dr. Ângelo recrimina a conduta que papà costuma ter com
qualquer especialista que identifique qualquer outra enfermidade
que não seja um resfriado.
Pobre do homem que informou quando estávamos com
catapora, lembro-me.
— Ela perderá o cabelo, doutor? — Mammina segurou uma
de minhas mechas escuras entre os dedos. Olhei para ela, vendo o
pesar em seu rosto cansado.
— Não será de imediato, mas infelizmente… — o médico
me fitou com um olhar piedoso e meneou a cabeça em afirmação.
Os passos de papà ficaram mais duros num ziguezague em
frente à minha cama. De súbito, segurou o braço do médico.
— Quanto tempo para essa cirurgia? — indagou impaciente.
— Francesca ainda passará por um tratamento prévio com
os medicamentos. Possivelmente será submetida a algumas
sessões de quimio. Então, veremos o quanto o tumor regrediu para
assim operá-la.
— E quando minha filha poderá retornar para casa? — Seu
questionamento causou certa estranheza a todos no cômodo. Claro
que a intenção de um pai é que sua filha saia do hospital o quanto
antes, porém, a aflição em sua voz carregava algo a mais.
— Hoje mesmo. Mas semana que vem começa o
tratamento.
— Dez dias — papà pontuou enfático, de modo a dar um
prazo para Dr. Ângelo. — Minha filha começa o tratamento dentro
de dez dias, doutor.
— Enrico… — Mammina interveio.
— Não se meta, Anunziatta. Don Moretto vai jantar conosco
esta semana e ficará alguns dias em Messina. Depois disso,
Francesca volta para o hospital. Ele não pode saber… — Papà
esfrega o rosto, hesitante em suas palavras. — Ninguém pode. Isso
pode ser a ruína não apenas de um casamento para ela, mas para
Michela também. Não vou conseguir casar nossas filhas com
alguém de alta patente. E…
— Tudo bem… — forcei-me a falar, com a voz rouca de
cansaço. — Eu estarei bem para a visita do Don. Semana que vem
voltarei, doutor.
Todos me encaravam surpresos. Lembro-me de papà me
observando, primeiro apreensivo, depois com um olhar de
arrependimento.
Não é sua culpa ter a mente deturpada. Ele foi criado nesse
meio. Tendo duas filhas, pensa apenas que um bom casamento
garantirá o futuro delas.
O clã Zanchetta é um dos fundadores da Famiglia Cosa
Nostra. Papà sempre admirou meu avô e conduziu a região de
Messina com a mesma mão de ferro. Ele permitiu que eu e Michela
pudéssemos frequentar a escola. Ele foi um dos primeiros a permitir
tal liberdade. Tudo bem que estamos sempre acompanhadas de
seguranças.
Luigi foi quem interveio dizendo que cuidaria das irmãs.
Ficamos tão felizes por ter um pouquinho da normalidade que outras
meninas podiam usufruir. Mas agora… agora não sei mais se um dia
teremos isso de volta.
Respiro fundo, aguardando mammina para ajudar a me
trocar. Hoje volto para casa como combinado. Não demora para ela
surgir com algumas roupas para mim.
— Seu papà está apreensivo, pois Don Moretto está
comparecendo com o filho mais velho, carino[23]. — Ela ajeita a
manga longa da blusa, dobrando a pequena barra para cima. — O
Consiglio delle vecchios está pressionando para que escolha uma
noiva.
Hum?
Se Giulio Moretto está em busca de uma noiva, o que o
levaria até minha casa?
Luigi é o único lá em casa que teria a idade mínima para um
compromisso como noivado no mundo em que vivemos. Meu irmão
mais velho está com 17 anos, o que para um Soldato da Cosa
Nostra significa quatro anos de serviço.
Então, se nossos costumes são arcaicos, mantendo as
mulheres como meros objetos de procriação, imagine o escândalo
caso o futuro Don escolhesse um homem como noivo?
— Mas nem eu ou Michela temos idade, mammina —
replico de pronto.
— Piccola… A idade de uma ragazza não impede certas
coisas — Signora Zanchetta diz com cautela. Observo-a pelo canto
do olho, não querendo que continue. Nem eu, nem Michela, temos
idade suficiente.
— Mammina… — hesito um pouco, ajeitando a saia
pregada floral que acabei de vestir. — Precisa ter 15 anos para
assumir um noivado. Eu tenho 14, e Michela 13. — Ergo as
sobrancelhas, esclarecendo com todo conhecimento que possuo.
Mia madre suspira, pegando a escova de cabelo e
deslizando em uma mecha dos meus fios emaranhados.
— Lembra a cugina[24] Julieta? — indaga, eu apenas assinto
com a cabeça. — Ela foi prometida aos dez anos e ficou noiva aos
15.
Caspita. Não…
— Mas… eu não posso… — Fecho os olhos. O medo
perpassa meu corpo como um fio gelado, causando-me arrepios
que alcançam os ossos.
— Nosso mundo é assim, cara mia. As mulheres podem ser
prometidas antes da idade. Não seria a primeira vez. Ser prometida
ao herdeiro do Don não é uma coisa ruim. — Mammina se ocupa de
outra mecha. — Ele é bonito e jovem.
Não… não é possível.
— Mas eu estou… — Levo a mão à região dolorida. Mia
madre expira o ar, baixando os olhos com pesar. Alguns segundos
se tornam horas até ela retomar a tarefa de desembaraçar meu
cabelo. — Michela…
A única opção que papà teria seria Michela.
E ela… ela é tão sonhadora. Por mais que nossa diferença
de idade seja de apenas um ano, minha irmã caçula ainda brinca de
bonecas. Ela é ingênua demais para suportar um casamento com
alguém como ele.
— Não diga isso, piccola… Você também pode ser
escolhida.
— Não quero ser escolhida, Mammina. Nem Michela —
contesto arisca. Ela bufa, balançando a cabeça em negação. Sei
que se fosse em outra ocasião, ficaríamos horas discutindo.
— Não se preocupe com nada, va benne? — Ela termina
com a escovação e divide meu cabelo em três partes iguais para
fazer uma trança. — Tuo papà vai cuidar de tudo. Sem contar que
existem outras ragazze em idade para o casamento iminente que
todos querem. — Mammina, por fim, diz as palavras chaves para
acalmar meu coração.
— Mas ele vai vir em nossa casa…
— É de praxe as visitas quando o homem da famiglia
completa 25 anos. Ele tem que ir em todas as casas dos
Caporegimes. — Mia madre prende a ponta do penteado com uma
presilha enfeitada de pérolas. Ela sabe o quanto gosto de pérolas.
— Uma das figlie da sua zia Isadora completou 17 anos e é muito
bela. Giulio Moretto não vai se interessar por duas bambinas.
As últimas palavras de mammina me incomodam um pouco.
Uma ragazza de 14 anos não quer ser chamada de bambina, afinal.
No entanto, não respondo. Desta vez, prefiro ser una
bambina a assumir um noivado tão cedo.
FRANCESCA ZANCHETTA

A leve pressão da presilha no couro cabeludo indica que


Michela terminou o penteado que pediu para fazer em meus
cabelos. Não queria me arrumar tanto, mas quando mia fratella
pediu para modelar os fios do meu cabelo, deixei de imediato
pensando que logo não os teria mais.
Ela segura um pequeno espelho para mostrar a parte detrás
adornada com a joia de pérolas em diversos tamanhos. Levo uma
mão para tocar como a mosca que busca pela luz e sinto uma
fisgada na ponta dos dedos.
— Aiiii… Chela! Você colocou um alfinete em minha
cabeça? — reclamo, mantendo o sorriso e colocando de imediato o
indicador na boca.
— Claro que não. Deixe-me ver. — Mia frattela pega minha
mão, vendo o pequeno corte que fiz com o simples toque no
adereço de cabelo. — Você deve ter passado o dedo na parte fina
da presilha. Toma cuidado.
— Eu vou ficar com uma arma em minha cabeça a noite
toda? — indago, brincalhona.
— Não seja boba. É só um enfeite de cabelo. Eu tiro para
você depois, va benne? — Dou de ombros, pois não queria mudar o
penteado de verdade.
— Va benne… — replico, e mia frattela sorri satisfeita.
Fico animada ao vê-la assim, alegre.
Ela ainda não sabe.
Quando retornei do hospital, Michela estava na casa de
Valentina, nossa cugina[25] e melhor amiga. Fiquei feliz por não
presenciar papà me carregando no colo até meu quarto, enquanto
Luigi o seguia com a mala de mão. Eu ainda estava grogue por
conta dos remédios para dor e minhas pernas estavam moles.
Fiquei com receio ao ver os olhos de Luigi.
Assim que papà saiu do cômodo, Luigi acariciou meus
cabelos e disse o quanto me amava e ansiava por minha
recuperação. Fiquei surpresa por alguns minutos, porque suas
exposições de carinho cessaram quando retornou da iniciação como
Soldato da Cosa Nostra.
Enquanto mio fratello sabe. Michela desconfia.
Ela estava aborrecida pelo fato de ter saído da escola. Mas
minha fragilidade ao me locomover amoleceu seu coração.
Por mais que mios padres não tenham contado, Michela
sabe que não é apenas uma gripe. Não tive coragem de falar nada.
Seus olhos hoje estão brilhando como costumam ficar quando nos
arrumávamos para alguma festa.
Não quero estragar o momento.
De algum modo, a inquietação do Signore Zanchetta
contagiou a todos nós.
A preocupação em estar na lista de supostas pretendentes
para esposa do futuro Don passou a ser assunto secundário. Meu
receio maior é demonstrar que estou saudável. Foi por este motivo
que permiti a minha irmã mais nova brincar de boneca comigo.
Michela entrou no quarto mais cedo com um kit de
maquiagens. Não são itens sofisticados, apenas um pequeno estojo
com blush dividido em uma palheta de três cores, rímel e alguns
batons claros.
Michela se prontificou em deixar meu rosto mais corado
para disfarçar a palidez de minha pele.
— Prontinho! Você está linda, Tchesca. — Ela coloca a
tampa de volta no batom rosé que passou em meus lábios. — Uma
perfeita principessa[26].
— E você? Não vai se arrumar? — indago, vendo que minha
irmã usa um vestido simples de organza verde na altura dos joelhos
e nenhum adereço.
— Isso eu faço rapidinho. Olha só. — Então, minha caçula
pega o rímel, passando nos cílios tão compridos quanto os meus e
gloss na boca. Depois prende o cabelo num rabo de cavalo alto,
soltando alguns fios na lateral do rosto. Em seguida, coloca um colar
de pérolas que dá o toque final. — Viu? — Vira para mim,
parecendo que saiu de um conto de fadas.
Michela possui uma beleza única, nunca precisou de muitos
ornamentos para se destacar. Seus cabelos são escuros como os
meus, porém os olhos num tom castanho claro brilham através do
volume dos cílios.
Eu jamais seria como Michela. Ela gosta de estar na moda,
e eu sempre deixei essa parte com Mammina.
Olho para o vestido rosé de poá de mangas longas, num
tecido leve com babados de duas barras, tanto nas mangas e na
barra próxima aos joelhos. Suspiro ao segurar o pingente de cristal
em formato de gota que desce no vão do decote em "V".
Minha irmã me empurra ao seu lado para que possamos ver
nossos reflexos no espelho dentro do closet. Somos duas moças,
recém-saídas da puberdade, que já possuem corpos de mulheres.
Um milagre que ocorreu no correr de um ano depois da primeira
menstruação.
Para ragazze[27] do nosso meio este milagre é mais uma
maldição, pois acabam tornando-se alvos de velhos urubus
interessados nas ligações por conta dos casamentos arranjados.
Elas, e nós, nunca teremos a chance de nos apaixonar. Nunca
teremos nem sequer tempo para isso.
Sinto uma pontada de tristeza ao pensar que não terei
tempo para nem sequer ser cobiçada como as outras garotas. No
entanto, se pudesse ter saúde para um casamento…
Estremeço com a ideia deprimente de sentir inveja por um
casamento sem amor pelo simples fato de significar mais anos de
vida.
— O que foi? Está sentindo alguma coisa? — Michela me
vira, segurando meus braços. Forço um sorriso tímido, empurrando
a sensação de autopiedade.
— Não é nada… — Pressiono os lábios e balanço a cabeça.
Em seguida, caminho em direção à sapateira, pegando os sapatos
que ainda não possuem saltos tão altos quantos os de Mammina. —
Aqui, pelo menos os sapatos, eu irei escolher. — Entrego a ela um
dos scarpins com saltos quadrados, de verniz preto, ficando com o
segundo na cor bronze de tiras.
Michela me ajuda a calçar, pois ainda não consigo me
curvar o suficiente para alcançar o fecho.
— Estão prontas, meninas? — Mammina surge na porta. —
Madonna mia, santa![28] — Ela coloca ambas as mãos em cada lado
do rosto. — Como vocês estão maravilhosas. — Signora Zanchetta
passa o dedo embaixo do olho e depois se abana para evitar o
choro emocionado. — Não tenho mais duas bambinas e sim duas
moças em casa. Às vezes me esqueço como o tempo passou.
Ela se aproxima, dando-nos um leve abraço em conjunto.
Nós todas emitimos um som de conforto ao expirar.
— Agora vamos. Don Moretto e seu filho chegaram e estão
no escritório com tuo padre e fratello[29]. Logo irão juntar-se a nós
para o jantar. — Mammina empurra Michela à frente, no intuito de
fazer-nos sair do quarto. Assim que minha irmã ultrapassa o
batente, Signora Zanchetta hesita e me encara. — Você está bem,
cara mia? Precisa de algo?
— Estou bem, Mammina. Já tomei o remédio para dor —
minto. Ela não precisa saber. A dor não está aguda ao ponto de ser
insuportável. — Não irei passar mal durante o jantar. Fique tranquila
— digo, sorrindo.
Sei que a preocupação de Mammina com minha saúde é
genuína, da mesma forma que a insegurança em cumprir com o
desejo de papà em manter minha doença em segredo.
Não consigo ir contra tal cautela, pois o futuro de Michela
está em jogo. O meu é incerto.
Ela acena com a cabeça e seguimos para descer as
escadas. Mammina e Michela se prontificam em ficar um passo à
minha frente. Tento acompanhá-las, porém esticar uma perna
seguida da outra tornou-se um desafio mais difícil do que esperava.
Ainda estou encarando o último degrau quando ouço o
arranhar de garganta típico de papà para chamar minha atenção.
Ergo o olhar avidamente, notando que estou sendo observada.
Don Moretto e seu filho estão ao lado de papà, dois metros
à frente, aguardando no hall de entrada.
Noto Michela e Mammina sentadas no sofá de quatro
lugares da sala de estar, me observando receosas.
O corredor de entrada possui aberturas em arco nas
paredes laterais, de modo que posso ver as mulheres de nossa
casa, e mio fratello em pé ao canto.
Não pensei que havia demorado tanto para descer.
Infelizmente, o que para minha famiglia é compreensível devido ao
meu estado, pode parecer descaso para com o chefe da Cosa
Nostra.
Respiro fundo, mirando meus pés ao me aproximar.
— Boa noite, Don Moretto — murmuro, assim que fico a um
passo do homem mais perigoso que conheço. — Signore Moretto —
dirijo-me ao filho, Giulio, mantendo a cabeça baixa. Depois, sigo
para o assento ao lado de Mammina, e arrisco espiar pelo canto do
olho se minha demora foi perdoada pela submissão.
Don Antonio Moretto não perdeu seu tempo comigo,
voltando-se para papà que puxou assunto sobre uma das últimas
cargas recebida no cais e caminhando até as poltronas próximas à
lareira. Já o homem de terno preto ao seu lado sorri de canto para
mim, flagrando-me.
Viro o rosto enrubescido de vergonha, fitando novamente
meus pés. Acredito ter ouvido um riso baixo.
Após alguns minutos, o jantar é servido. Aguardamos para
que o Don se sente na ponta da mesa como de costume, e desta
vez, ele cede, sentando-se na cadeira disposta na lateral direita ao
lado de seu filho.
Isso é inesperado. Essa conduta tem a ver com o intuito da
visita?
O dono da casa precisa manter-se na cabeceira por conta
das figlie que estão à mostra?
Não sei. É o único motivo que faz sentido para mim.
No entanto, a mudança das cadeiras faz com que eu ficasse
ao lado do caçador de sposas[30], Giulio Moretto.
Engulo em seco quando o homem de cabelos negros e
olhos de obsidiana puxa a cadeira num gesto gentil para mim. Fico
fascinada ao encarar o olhar intenso sob as sobrancelhas grossas
de um desenho perfeito.
A barba bem feita moldura o rosto, dando um ar mais jovial.
Bom… não deixa de ser verdade, contando que possui 25 anos.
Maddona mia! Como é belo o ragazzo!
Suspiro alto, vendo-o sorrir. Caspita!
Sento-me apressada. Mesmo não sendo um velho, é um
Uomo d’onore[31]. E, para uma ragazza adolescente de 14 anos, a
diferença é gritante, o que não intimida meu coração de tamborilar
no peito com a migalha de atenção.
Acredito que qualquer uma ficaria desse modo sob o efeito
de seu olhar.
Sinto o leve ardor em minhas bochechas causado pelo
enrubescimento. Nem precisava do blush de Michela, afinal.
Assim que nos acomodamos, procuro analisar
minuciosamente a prataria usada para o jantar querendo manter-me
ocupada encarando qualquer coisa que não seja Giulio Moretto.
Deveria ser pecado homens tão perigosos serem tão
bonitos. Essa combinação não é certa. Coloco uma mão sobre a
face, constatando a quentura, prova do meu constrangimento.
O som do seu riso em uma leve lufada de ar não me passa
despercebido.
Alguns minutos depois, Mammina requer que seja servida a
entrada. A conversa cotidiana segue sobre alguns eventos da
famiglia, e os negócios lícitos tratados pelo grupo empresarial
Moretto.
Giulio mantém-se cortês, elogiando o bom gosto da
decoração da casa, colocando um sorriso imenso nos lábios de
Mammina.
— Então, caro Giulio, soube por tuo padre que já visitou
algumas casas antes da nossa — papà inicia a discussão que os
trouxe até aqui. — Pelo menos as ragazze com idades suficientes
para ocuparem o lugar de moglie[32], não é mesmo?
Don Moretto passa o guardanapo demoradamente sobre os
lábios, subindo o olhar para encarar o filho que mantém uma
calmaria incômoda.
— Sim, caro Zanchetta. Porém, meu figlio também insistiu
em visitar as casas com ragazze acima de dez anos. Crê ele que
possa arriscar em comprometer-se com alguma mais nova e adiar o
casamento por conta da idade precoce de quem escolher. —
Poderia jurar que Giulio iria fuzilar seu papà com a menção direta de
sua intenção em postergar um compromisso. Mas ele apenas sorri
educadamente, quando os dois uomos[33] mais velhos riem.
Pego o copo d'água e beberico na tentativa falha de afastar
o amargor que surgiu em minha boca. Realmente não tenho saúde
para me submeter a este jantar, afinal.
— Todos nós tentamos… não é mesmo? — Don Antonio
emenda, diminuindo o riso.
— Eu não sou vocês — replica sério, sem desviar o olhar
para aqueles que pararam de rir.
Miro os olhos surpresos de pappà, que não absorveu a
mensagem.
Bom… a parada súbita do garfo de Luigi no meio do
caminho à sua boca, indica que a situação também o pegou
desprevenido.
— Meu pai acredita que preciso de uma noiva, pois alcancei
a idade de nossos costumes. Mas acho que podemos aguardar um
pouco mais — Giulio continua sua fala, cortando de modo demorado
o filé de carneiro.
Chega a ser contraditório a forma com a qual segura os
talheres delicadamente e o tamanho de suas mãos. Meu cérebro
inconsciente analisa cada detalhe do herdeiro ao meu lado,
observando alguns calos nas juntas e os pelos escuros no dorso
das mãos, que acumulam numa penugem, escondendo-se no punho
da camisa.
— Não há o que esperar. Nossos costumes são respeitados
há anos. Você como futuro Don, e Sottocapo, mais do que ninguém,
deve mantê-los — Don Moretto replica firme.
Giulio apoia os talheres nas laterais do prato de louça clara,
passando lentamente o guardanapo de pano sobre a boca e
subindo o olhar para meu papà e o seu.
A tensão criada por uma reles pergunta é palpável no
ambiente antes descontraído.
— Os costumes dizem respeito apenas à minha escolha,
correto? Eu devo fazer a escolha aos 25 anos para ter uma
promessa[34] — conclui, sem ser contrariado pelos mais velhos.
Luigi não participa da conversa, mantendo-se concentrado
no alimento servido em seu prato.
Percebi que um dos instintos de mio fratello mais velho para
sobreviver é ser invisível, captando informações valiosas e usando-
as quando lhe convém. Posso ter aprendido um ou dois truques com
ele.
Já Michela está atenta à discussão tão animada quanto se
estivesse assistindo a um de seus doramas favoritos.
Aqui, imagino qual seria o título: O príncipe obscuro à
procura de um sacrifício. Ou talvez algo que remeta a dragão, não
sei.
— Visitamos cinco casas com ragazze acima de 15 anos
como manda o figurino, Giulio. Algumas inclusive completaram 18
anos há pouco tempo. — O Don empertiga, coçando a garganta na
sequência por ter notado a pequena gafe que cometeu, uma vez
que nem eu, nem Michela somos aptas aos seus olhos.
Tampouco as cuginas[35] da casa Esposito são maiores de
15 anos, e Mammina disse que elas receberam o chefe da famiglia
e seu filho para o jantar. Em momento algum, houve a notícia sobre
qualquer aversão do Don sobre suas idades.
— Até onde sei, a sposa[36] precisa ter mais de 15 anos, não
a prometida — Giulio conclui. — Acredito que assim, meu leque é
vasto, papà. Não seria justo para as outras ragazze ficarem de fora
de tão acirrada competição, non pensare?
Agora entendo a língua mordaz do Sottocapo que ouvi falar
dentre alguns dos amigos de papà.
Ele é tão perigoso com palavras como deve ser com seus
punhos.
Quem seria louca em competir para se tornar a moglie[37] de
alguém que pode lhe partir ao meio emocionalmente e fisicamente?
Bom… fisicamente, não deve ser pior que a dor que tenho
sentido. Não contenho o riso de escárnio que me escapa por conta
do meu frágil estado de saúde.
Arrependendo-me no momento seguinte, pois tenho a
atenção de todos da mesa, em especial, a dele.
— É engraçada a ideia de ragazze[38] querendo minha
atenção, Signorina Zanchetta? — Não tive intenção alguma de
zombar sobre as escolhas do futuro Don, apenas do que tenho
passado.
Respiro fundo, tomando coragem para encarar seu
escrutínio. Giulio me fita com um olhar enigmático.
— É engraçado o fato de algumas ragazze sonharem com
um casamento por amor, Signore Moretto? — retruco sem
pestanejar, imbuída da coragem de saber que poderei não estar
mais aqui em um ano. Talvez menos…
— Francesca… — papà alerta. Dou de ombros, pois refazer
minha fala sairia pior. Então, não aguardo a resposta e volto a
atenção para o filé em meu prato.
— De fato, amor não é algo que tenho em meus planos para
uma futura esposa, bambina Zanchetta. Mas garanto que a
escolhida terá sorte com meus outros atributos.
Neste instante, talheres são batidos na mesa, um cálice de
vinho cai e vejo meu irmão em pé em uma postura de embate. Papà
começa a ficar tão vermelho que me sinto culpada por dar corda ao
demônio.
— Giulio Moretto! Respeite esta casa! — Don Moretto
arrasta a cadeira para trás, causando um barulho ensurdecedor com
o movimento. — Peço desculpas pela falta de modos do meu filho,
Zanchetta — dirige-se a papà. — Desculpe, Anunziatta. — Tenho a
impressão de ouvir um rosnado baixo. — Vamos, Giulio. Está na
hora de partirmos.
— Não… espere a sobremesa — Mammina solicita
desesperada, tentando contornar a situação com um doce.
Ela não quer ter o Don da Cosa Nostra saindo de sua casa
no meio do jantar. Seria praticamente causar sua expulsão no
Consiglio delle Damigelle. O acontecimento podia acontecer dentro
de casa, mas segundo mammina, os comentários entre funcionários
e soldatos são as piores fofocas.
Ela quer conter qualquer notícia que possa vazar e
desmerecer nosso clã frente ao domínio dos Moretto.
Admiro Mammina por estar sempre um passo à frente
nesses casos. Papà respira fundo, indicando novamente o assento
para seu Don e pedindo que aguarde a sobremesa como solicitado
por sua moglie.
Don Moretto fica na dúvida por alguns instantes, mas cede
após a insistência de Mammina. Giulio Moretto não saiu de sua
postura casual, deixando que todos perdessem a compostura.
Menos ele…
Interessante.
Por fim, terminamos o jantar sem maiores transtornos. E
todos se dirigem para a sala principal. Como retirei os sapatos
embaixo da mesa, sou a última no percurso. Não foi de propósito
para tentar ficar menos tempo na presença do ser humano que
causou calores em lugares que até então desconhecia. Não… nada
disso.
Caminho lentamente até que sou surpreendida com a figura
poderosa de Giulio Moretto no corredor à minha espera.
Aprumo a postura no instante em que o alcanço e passamos
a caminhar lado a lado. Penso nos atributos com os quais o
Sottocapo da Cosa Nostra poderia usar para conquistar qualquer
mulher. A forma elegante com que caminha só exalta o quão belo o
stronzo[39] é. Dio Santo!
— A beleza como atributo não é suficiente para conquistar
os encantos de uma sposa[40] — provoco-o.
Não consigo me controlar.
Ele sorri, mantendo o olhar fixo à frente. Mordo a língua logo
após as palavras saírem de minha boca. Caspita!
— Quem disse que minha beleza é o único atributo que
possuo — contesta divertido, com um sorriso felino. — Mas fico
envaidecido por saber que me acha belo, Bambola mia[41].
Boneca…
Giulio adianta-se não dando outra chance para rebater sua
fala. Muito menos motivos para seu pai discutir com ele novamente
em nossa casa.
Passo o restante do tempo, até a saída dos Morettos,
desviando o olhar para não o encarar novamente.
Ele me chamou de mia Bambola. Suspiro.
Uma hora depois estou em meu quarto, vestindo-me para
dormir. Faço um inventário mental da noite, buscando o motivo que
me deixou tão agitada.
O rosto de Giulio toma conta dos meus pensamentos, ora
sério, ora sorrindo, tornando-se um mistério que gostaria de ter
tempo para resolver.
Bambola… A voz aveludada ressurge em minha mente.
Sinto certo calor mesclado com uma euforia desconhecida aquecer
minha face.
Bambola… mia Bambola…
Balanço a cabeça para os lados e coloco uma mão sobre o
abdômen.
Mal sabe que a boneca, como me chamou, está
completamente quebrada.
FRANCESCA ZANCHETTA
6 MESES DEPOIS

Corro para o banheiro novamente por conta da onda de


enjoo que atinge meu estômago. Disseram que os efeitos da
quimioterapia diminuiriam com o passar do tempo, ledo engano.
A cada ciclo iniciado, sinto os mesmos sintomas. Acredito
que meu sistema digestivo está praticamente acostumado a entrar
em colapso.
Cuspo o restante da bile, com a mão no botão da descarga.
Um movimento rotineiro que não gostaria de ter adquirido.
Na sequência, coloco um pouco de enxaguante bucal, sabor
morango, que mammina me entregou como um presente da sua
última ida ao mercado.
Ela tem feito de tudo para amenizar meu sofrimento. Porém,
não pude deixar de ouvi-la chorando algumas vezes, relatando para
papà como meus dias têm sido difíceis. Ela também sofre.
Todos sofrem. Papà tenta manter-se firme, só que sua
feição abatida mostra o que as palavras não revelam.
Nunca duvidei do amor que une nosso clã, conquanto minha
condição tenha sido escondida da famiglia. Por ora, todos pensam
que sou a garota que papà guarda do mundo, a mais cuidada e
reservada para poucos olhos, pois Michela acompanhou mammina
em alguns jantares, enquanto que eu precisei ficar em casa, sob o
pretexto de estar estudando.
Minha irmã mais nova comentou sobre os boatos que
surgiram com meu sumiço das festas e eventos sociais. Pelo visto,
sou a filha premiada por sua bela aparência. Solto o ar com um som
de deboche. Mal sabem como minha aparência está degradante.
Encaro o espelho sobre a pia, vendo a imagem refletindo
uma garota que não reconheço mais. A ausência de cabelo e
sobrancelhas ainda me causa certo desconforto, que tento não
demonstrar na frente de mammina. Ela chorou mais do que eu
quando pedi para Michela raspar minha cabeça. Não aguentava
mais ver os fios que caíam com frequência em meu travesseiro.
Jogo um pouco de água no rosto e sigo de volta para a
cama, onde passo a maior parte do tempo quando retorno de uma
sessão de quimio. Os dias seguintes melhoram um pouco.
Assim que me acomodo, meu celular vibra com uma
notificação. Pego o aparelho e vejo que Valentina, minha prima da
casa Esposito, enviou fotos da festa de aniversário de 15 anos de
Érica Spadotto, outra cugina[42].
A aniversariante está linda em seu vestido de gala verde
claro, com o corpete repleto de pedrarias e a saia esvoaçante. Essa
cor sempre favoreceu a cor dos cabelos ruivos da menina Spadotto.
Lembro-me como sua mãe costumava se vangloriar das madeixas
de fogo da filha, tentando menosprezar os cabelos castanhos que
eu e minha irmã herdamos de mammina.
No entanto, a Signora Zanchetta nunca saiu por baixo e se
gabava do contraste dos nossos olhos claros. Bufo uma risada sem
graça ao pensar que agora só tenho mesmo a cor dos olhos.
Michela não tem olhos tão claros, mas suas írises na cor de mel são
únicas.
Outra mensagem me tira do torpor e vejo minha prima
Valentina valsando com meu irmão. Sorrio. Ela sempre foi muito
querida e gostaria de contar para minha prima o motivo real do meu
afastamento. Porém, papà proibiu.
Enfim. Agora minha única amiga é Michela, que
choramingou muito por não ter ido à festa que todos têm falado.
O clã Zanchetta deveria estar presente, pois seu pai é
tenente[43] da região de Catania, dentro do território de Messina.
No entanto, Luigi muito astuto, mais que depressa, sugeriu
para papà utilizar como desculpa uma das muitas ameaças que já
recebeu no passado.
Ninguém acharia estranho o resguardo do clã Zanchetta,
ainda mais após o atentado sofrido no porto de Tremestieri. Papà
não quis me contar nada, mas Michela disse que houve uma
emboscada em nosso cais.
Dizem que a prática leva à perfeição e como sempre fui uma
ouvinte assídua nas festas da famiglia por ser invisível, tornei-me
ainda mais em casa. Certo dia, notei a movimentação diferente nos
olhares entre papà e Luigi. Logo, eu soube que algo estava errado.
Quando se trancaram no escritório após o jantar, dei um
jeito de escapar da sessão dorama de Michela e me esgueirei pelo
corredor. Coloquei um copo sobre a porta e encostei o ouvido para
apurar o som. Papà falava rápido por estar nervoso, foi por isso que
pude escutar o suficiente.
Estávamos sendo ameaçados. E, como o porto atacado está
em nossa região, sob o comando maior do clã Zanchetta,
subentende-se que estamos com um alvo em nossas cabeças até
que os culpados sejam devidamente encontrados.
Temo por meu irmão e papà que precisam fiscalizar os
portos com mais frequência do que antes. Mammina pensa que não
vejo, mas ela tem andado com o terço enrolado no punho desde
então.
A leve pontada no abdômen me faz gemer baixinho quando
reclino o corpo um pouco mais. O pequeno corte abaixo do seio as
vezes dói. Sinto como se tivesse um tecido abaixo da pele que se
esgarçou e foi remendado, o que não deixa de ser uma verdade.
— Está tudo bem, mana? — Michela entra no quarto
preocupada. Torço a boca para o lado desgostosa, pois não queria
que ela me ouvisse reclamar.
Minhas mãos levemente trêmulas não escondem meu
estado. Hoje, pelo menos, tive o cuidado de vestir uma camiseta de
mangas longas para esconder as marcas das agulhas da
quimioterapia. Percebi que minha irmã fica desconfortável quando
vê meus braços.
— Estou bem sim. Não precisa se preocupar — respondo,
tentando parecer forte.
Michela segura minha mão com ternura, lutando contra as
lágrimas que ameaçam cair.
— Você é forte, Francesca. Eu sei que é. Nós vamos
superar isso. — Encaro os olhos gentis de minha irmã, que
envelheceu comigo nesses últimos meses. Podemos ser muito
jovens, porém, o sofrimento nos fez amadurecer 10 anos cada.
Outra mensagem de texto é recebida e desta vez Michela
retira o celular de minha mão para verificar quem é a responsável
pelas notificações.
— Não acredito que Valentina está enviando as fotos para
você — recrimina nossa prima. — Eu pedi para que não enviasse.
— Por que você fez isso? — indago de modo conspiratório.
— Ela não sabe que estou doente de qualquer forma. — O rosto de
Michela encarando a tela do celular e ruborizando indicam o
contrário. — Michela…
— Ela é nossa prima — defende-se.
— Todas são — pontuo de volta.
— Nem todas são nossas amigas de verdade. — Abro a
boca para responder, mas não encontro argumentos. Fecho e abro
novamente, como um peixe sem conseguir contradizer Michela.
— Mas você não deveria desobedecer papà.
— Mas não deveria desobedecer… blá-blá-blá… — imita
minha voz, gesticulando com uma das mãos. Nossa interação tem
sido um lamúrio, pois poucas vezes consigo falar mais do que duas
frases. Então, acabo me divertindo.
Sorrio e recebo um riso frouxo de Michela.
— Se Valentina sabe, por que enviou essas fotos? —
questiono, querendo entender minha prima.
— Talvez porque quer ouvir de você — conclui, erguendo as
sobrancelhas sugestivamente. — Ela está magoada, pois se sentia
mais próxima de você do que de mim. O fato de não ter dito nada
sobre sua saúde a deixou… — Michela toca os lábios com o dedo
indicador, pensativa. — Chateada?
— Ela não estaria se uma certa pessoa não desse com a
língua nos dentes. — Puxo sua orelha de modo brincalhão.
— Aiii… — Minha irmã esfrega o local. — Você precisa
parar de ser tão obediente. A menina dos olhos dos Zanchetta. Blé!
— Mostra a língua.
— Você também é, Mi — replico receosa, não quero que
minha irmã se sinta menos por conta dos boatos em nosso meio. —
Mammina só deixou que os outros falassem…
— Eu sei, eu sei… — ela me interrompe. — Não me
importo, Tchesca. Eu sei que papà e mammina me amam. Até o
cabeçudo do Luigi… — Michela faz um movimento exagerado ao
mencionar nosso irmão. — Nada disso é importante. Você é. Quero
que fique bem.
Fecho os olhos, emocionada com sua declaração.
— Eu vou ficar — profiro, querendo ao máximo que seja
verdade.
— Acho bom… porque não vou perder a sua festa de 15
anos. As outras não estou nem aí. — Michela afirma sem se dar
conta do duplo sentido de suas palavras. Ali consta o desejo
enrustido de que eu consiga completar 15 anos.
Sorrio, desviando o olhar.
— E-eu não quis dizer isso… — desculpa-se. Dou de
ombros, emitindo um som de irrelevância.
— Está tudo bem… Também quero estar presente em minha
festa. Só não sei se terei cabelo para um penteado elaborado como
o de Érica. — Mostro a foto enviada por Valentina. — Você deu uma
olhada naquela tiara? — Tento mudar o foco da conversa para algo
mais fútil. Mesmo que parte dele seja a ausência dos meus cabelos.
— Com certeza ela fez levantamento de peso no pescoço.
Acho que ela exagerou um pouquinho, não? — Michela pega o
celular e amplia a foto no adereço cujo qual comentamos.
Suspiramos sem perceber. Pode parecer banal admirar a
beleza de diamantes na atual conjuntura. Mas… são diamantes!
Pelo menos foi o que a legenda de Valentina indicou.
Passamos algumas fotos, admirando o restante da festa
pelas imagens captadas por Valentina. Até que paramos numa em
particular.
— Este é Giulio Moretto? — Michela me indaga como se eu
tivesse um conhecimento muito além do seu sobre o perfil do futuro
Don. Infelizmente, tenho, pois vira e mexe sonho com ele.
A imagem está um pouco embaçada, pois Valentina deveria
estar dançando juntamente com os outros convidados quando
captou a foto da aniversariante dançando com um homem alto, de
smoking preto, cabelos negros e um olhar intenso.
De certa forma, ele sabia que estava sendo fotografado
justamente por nossa prima mais próxima.
Perco o ar por alguns instantes ao me recordar de suas
palavras do outro dia: Quem disse que minha beleza é meu único
atributo. Toco os lábios instintivamente pensando em como seria ser
beijada por alguém como ele.
Balanço a cabeça recriminando minha imaginação fértil.
Giulio Moretto é um Uomo d’onore[44] há mais tempo que sua real
condição como filho primogênito. As pessoas comentam sobre sua
crueldade não apenas nos negócios, mas também fora deles.
No entanto, naquela noite na qual jantamos todos juntos,
não tive medo, tive… curiosidade.
— Tchesca?
— Hum?
— O que você acha? É ele? — insiste, trazendo-me de volta
à razão.
— Não… não é não. Pode ser um dos irmãos. Todos são
parecidos — respondo com a mentira deslavada.
— Não são não. O único sério dos três é o Giulio. Fausto é
bem mais leve, e Maximus vive sorrindo.
— Talvez você não tenha percebido, mas este homem está
sorrindo, Michela. — Aponto o canto erguido da boca na foto.
— Sorrindo com os olhos, Tchesca — contrapõe de modo
enfático. — Giulio é um ser que deveria estar num laboratório para
pesquisa.
— Credo. — Torço o nariz, rindo em seguida. — Quando
você se tornou uma expert em sorrisos, hum?
— Eu tenho talento — gaba-se, jogando uma mecha de
cabelo para trás do ombro.
Rimos por alguns segundos, em seguida ficamos sérias.
— Vou ligar para Valentina mais tarde — informo minha irmã
que meneia a cabeça. — Não quero que ela receba a notícia de
modo errado.
Eu diria após minha morte, mas soou mórbido demais em
minha mente, imagine se pronunciasse? Não… Entretanto, Michela
entendeu o sentido.
Busco seu olhar que me fita numa mistura de afeto e
tristeza.
— Eu te amo, Michela — sussurro, inclinando a cabeça para
recostar em seu ombro.
— Eu também te amo, Tcesca. E farei tudo o que estiver ao
meu alcance para te ajudar — diz com a voz embargada.
Em seguida, sou envolvida num abraço. Ficamos em minha
cama, deitadas o restante da tarde, compartilhando um momento de
intimidade e apoio mútuo.
Quero tanto viver e presenciar a mulher que Michela irá se
tornar. Dio mio… Quero viver mais para conseguir eu mesma me
tornar uma mulher.
FRANCESCA ZANCHETTA

Abro os olhos, piscando algumas vezes para me acostumar


com a claridade que permeia o quarto, através da fresta da cortina.
Resmungo baixinho, culpando-me por ter esquecido de fechar com
mais força o tecido blackout para aplacar os raios solares da manhã.
Aperto as pálpebras uma, duas, três vezes… difícil. Então,
relaxo a musculatura ocular, deixando o rosto mais suave. Em
seguida, inspiro o ar vagarosamente para verificar se o inflar dos
pulmões causaria qualquer incômodo. Nada.
Minha mão segue o caminho até o local da cirurgia, logo
abaixo da pequena elevação do seio, como tenho feito há alguns
dias.
Miraculosamente, as dores abdominais diminuíram até
desaparecer por completo.
Os últimos exames de sangue indicaram a melhora do meu
estado de saúde. Mammina gritou com a notícia, tão afetada quanto
Michela. Eu ainda continuo em estado de alerta. Sinto-me o Soldato
que voltou da guerra e aguarda todos os dias por um novo ataque.
Este não vem.
Papà só ficou satisfeito quando Dr. Ângelo corroborou as
informações da oncologista, uma vez que, para ele, outro
profissional não é de sua confiança. Suspiro, esboçando um leve
sorriso. O Capo Zanchetta apenas se esqueceu que a
especialização do médico da família é a cardiologia.
Bom… O que realmente importa é que o tratamento intenso
de quimioterapia por praticamente seis meses, após a retirada do
tumor, deu resultado.
A última sessão de medicamentos intravenosos foi há dois
meses.
Mal acreditei no momento em que Dra. Cláudia afirmou que
havia acabado. A quimioterapia tornou-se meu martírio sequencial a
cada 15 dias fazia dois ciclos, que correspondiam a seis dias. Um
total de 12 idas por mês ao hospital durante seis meses, e
incontáveis idas ao vaso sanitário do meu quarto. Isso quando não
desabava no caminho.
Acabou.
Ainda não acredito… Mas sim. Estou curada.
Sorrio apenas com os lábios, contendo o choro emocionado
no instante que passo a mão sobre a cabeça e sinto a aspereza do
couro cabeludo, um indício do crescimento dos meus cabelos.
Um soluço involuntário me escapa conforme a primeira
lágrima rola por meu rosto.
Acabou.
Minha médica disse que tive sorte. Mammina afirma que foi
um milagre. Não importa. O tratamento funcionou.
Foi praticamente um ano em cárcere privado, enclausurada
em meu quarto. Algumas vezes, ouvia as conversas nas quais eu
era o assunto principal e meus familiares encontravam desculpas
diversas para justificar minha ausência.
Acredito que nunca fiquei tanto tempo de castigo em toda a
minha vida. Devo estar com crédito, aliás.
Mammina ficou furiosa com a última fofoca que inventaram a
meu respeito. Eu já estaria morta, porém a causa tinha sido muito
mais violenta e sangrenta de acordo com a narrativa detalhada de
Michela. Minha irmã fez questão de me contar quando chegou de
um dos jantares da ONG regida pelas mulheres da famiglia como
papà e Luigi teriam escondido meu corpo.
Sinceramente, nada disso importa.
Levanto-me ainda apreensiva, andando até o banheiro para
dar início à minha higiene matinal. Sem vômitos ou diarreias.
Apenas uma manhã normal, na qual pretendo tomar o desjejum e
depois dar início às aulas que perdi.
Por incrível que pareça, tenho a intenção de me formar e
quem sabe sonhar com uma possível faculdade. Talvez após meu
infindável momento de reclusão devido ao mal comportamento
tenha me tirado da lista de bons casamentos, afinal.
Quem sabe fazer relações exteriores e trabalhar em uma
das empresas lícitas da famiglia? Não sei. O futuro agora é incerto,
porém existe. Hoje, eu tenho um futuro.
Após vestir uma calça jeans, tênis e uma camiseta babylook
branca, amarro um dos muitos lenços coloridos que Michela
escolheu para mim em formato de turbante na cabeça. Este possui
um fundo escuro com rosas num vermelho vibrante.
Caminho despretensiosamente pelo corredor até alcançar a
sala de jantar, onde todos já estão comendo e conversando com
ânimo renovado. Eu também estou.
— Bom dia, Mammina! Papà, fratello, Chela — cumprimento
a todos, recebendo murmúrios dos homens que se atentam em
comer ao mesmo tempo em que respondem e sorrisos acalorados
de minha irmã e mamãe.
— Está radiante, figlia. Adorei o lenço de hoje — Mammina
elogia. Sorrio de volta, puxando parte do tecido para frente do
ombro.
Assim que me acomodo ao lado de Michela, Signora
Zanchetta se prontifica em colocar tudo o que é possível em meu
prato. Depois que consegui voltar a ter uma dieta menos regrada e
passei a ingerir os alimentos sem que saíssem do meu estômago
pela boca, Mammina deixou claro que me faria comer por um
batalhão.
Não que eu consiga comer tudo o que a minha genitora
italiana costuma colocar no meu prato, porém, permito-a para
satisfazer parte do seu dever maternal de engordar sua filha. Se
isso pode dizer ser um dever.
— O bambino Moretto já escolheu sua sposa[45]? —
Mammina pergunta, dirigindo-se para papà.
— Ancora niente[46]— responde, dando uma grande mordida
em sua bruschetta.
— Acho que está enrolando o Don para colocar uma di
fuori [47]
da famiglia, isso sim — Luigi emenda. — Ele aparece
sempre com alguma loira nos eventos externos.
Não entendo o motivo, mas tenho uma sensação estranha
ao ouvir o comentário do meu irmão. Sei sobre a liberdade que os
homens possuem em sair com outras mulheres. Deixei de ser
inocente a este respeito assim que passei a ouvir as conversas
alheias. No entanto, saber não apenas sobre as acompanhantes de
Giulio, mas também sua preferência por loiras causa certo
desconforto em meu peito.
Expiro levemente um riso sarcástico. Quem sou eu para me
preocupar com as escolhas do futuro Don? Por mais que esteja com
a perspectiva de ter meus cabelos, ainda sou desprovida de
madeixas.
Suspiro, perdendo-me dos comentários seguintes e
tomando alguns goles do meu cappuccino.
— Figlia, aqui — Mammina oferece uma taça de iogurte. —
Tereza fez com pedaços de morango como gosta. — Sorrio em
agradecimento. Acredito que será a única coisa que conseguirei
ingerir de fato.
Os minutos passam e quando dou por mim, papà e Luigi
pedem licença e se despedem para ir ao trabalho. O porto é um
pouco distante de casa e eles disseram que passariam antes na
cutelaria para resolver algumas pendências.
Na realidade, nunca entendi como a famiglia consegue
manter a existência de negócios distintos e tão diferentes lado a
lado. Talvez seja por isso que sempre conseguimos despistar
qualquer investigação mais vigorosa da polícia.
Passei a estudar mais sobre lavagem de dinheiro, após
assistir a alguns documentários do Discovery Channel. É incrível a
capacidade de pessoas que inventam tantas formas de aumentar
suas fortunas através do tráfico de drogas.
Mammina tentou me convencer de que existe algo maior
envolvido, no qual nossa sobrevivência estaria em risco caso papà e
Luigi deixassem a famiglia. Outros fariam. A desculpa universal de
quem pratica delitos como forma de vida.
No instante em que papà e meu irmão passam a porta,
Mammina sai da mesa pegando o pequeno terço guardado no bolso
lateral do vestido verde musgo.
Toda manhã, na qual os homens da casa mencionam que
irão passar na cutelaria, ela faz esse ritual. Acredito que não seja
apenas fabricação de lâminas para satisfazer o hobby que todos da
Famiglia possuem. Há inclusive um campeonato anual para auferir
qual a melhor lâmina. Um evento que, nós mulheres, não
participamos.
Não importa.
Meu consolo é saber que existe parte do grupo empresarial
na qual a licitude persiste. Pode ser apenas para limpar a sujeira do
submundo no âmbito financeiro. Porém… existe. É o que consegui
ouvir no correr desse ano, nas reuniões que papà fez em seu
escritório nos dias em que precisou estar por perto.
Ninguém sabia o quanto eu viveria e, na metade do
tratamento, pensei em desistir.
Respiro fundo ao recordar de como foi difícil acordar em
algumas manhãs, tão diferentes das de hoje. No entanto, as
lágrimas de Michela e a fé inabalável de Mammina me mantiveram
de pé.
— E então? Como vamos passar o dia de hoje? — Michela
se prostra ao meu lado, antes que possa me dirigir à saleta
destinada aos nossos estudos, um cômodo que fica no final do
corredor após o escritório de papà.
— Que tal estudar um pouco de história da Idade Média? —
sugiro, vendo-a movimentar a boca num bico de lado, indicando
pouco entusiasmo. — O que você quer, Chela? Não quero ficar
vendo site de fofocas de novo. — Ela ergue um dedo para protestar.
— Nem comprar roupas pela internet. — Seguro sua mão ainda no
ar.
— Mas… precisamos começar a preparar sua festa de 15
anos — diz baixinho, demonstrando apreensão.
Meus olhos são tomados de imediato por um tique nervoso,
piscando involuntariamente por diversas e diversas vezes.
Minha… festa?
— E-eu… — gaguejo, segurando a ponta do lenço que
enfeita minha cabeça. — Esqueci…
Não teria como pensar em completar 15 anos quando nem
sequer imaginei que sairia dos 14 anos. Solto uma expiração rasa,
controlando-me para não parecer alterada demais.
Para nós, garotas que vivemos nos castelos de cristais
construídos pelo poder da Máfia, os eventos sociais e em especial
as festas de 15 anos são um marco. A real apresentação da menina
que se transformou em mulher num baile para a sociedade siciliana.
Como disse antes, a Famiglia da Cosa Nostra é regida por
conceitos arcaicos. Poucos dos prazeres que temos acontecem
nesses eventos, nos quais podemos dançar e conversar livremente
com nossas amigas-primas, ou algo no meio termo.
Por mais que havia acompanhado as festas no correr dos
meses, a luta em sobreviver no último ano fez com que me
esquecesse da idade que iria completar.
— Tchesca… escute — Michela pega uma de minhas mãos,
apertando entre as suas. — Papà não terá mais desculpas para
esconder você, fratella. Uma coisa é não comparecer aos eventos,
outra é não estar presente no dia de sua apresentação.
Sei que minha irmã está certa. Papà não conseguirá ocultar
mais o real motivo que me fez desaparecer por quase um ano. Don
Moretto se fez de cego por estar comprometido com outros
problemas e a confiança que possui no clã Zanchetta manteve as
aparências. No entanto, tenho para mim que ele sabe…
O Don da Cosa Nostra sabe de tudo.
— Mas como que eu… — levo a mão, empurrando o lenço
para trás e revelando a cabeça sem cabelos. Michela compreende
minha angústia.
— Não fique brava comigo, está bem? — alerta em
antecipação. — Eu guardei uma das mechas do seu cabelo para
poder comparar e pedir uma coisa pela internet. — Ela faz uma
careta ao dizer a última palavra, posto que havia solicitado para
evitar comprar qualquer coisa a mais por lá.
Fecho os olhos e respiro fundo. Michela, aparentemente,
não fez algo ruim, penso.
— Você comprou uma peruca? — indago, ainda sem olhar
para ela.
— Veio do Brasil, não é daqui… — prontifica-se, na tentativa
de me acalmar. — Ninguém irá notar, fratella. É perfeita. — Ela
aperta os nós da minha mão, fazendo-me encará-la. Pressiono os
lábios, imaginando todas as hipóteses que possam ocorrer. — Antes
de qualquer coisa, deixa eu te mostrar.
— Mas e se cair?
— Não vai… Ficará tão bem fixada, que vamos precisar de
um pé de cabra para arrancá-la de sua cabeça.
Meu queixo cai e a mão livre vai direto para o pescoço, não
querendo perder a cabeça. Já basta os cabelos.
Michela ri. Neste momento, Mammina resolve aparecer e
participar da conversa.
— Tirando a parte de perder a cabeça e tudo o mais, figlia.
Michela está certa. Temos que preparar sua festa e já estamos
atrasadas.
— Meu aniversário é daqui a dois meses, Mammina. Como
vamos conseguir preparar tudo?
— Eu já me adiantei em muitas coisas, mia cara. Não se
preocupe. Sua fratella já resolveu o problema dos cabelos. O
restante deixe com sua Mammina. — Coloca a mão sobre o peito,
para me tranquilizar. De certa forma, o gesto me remete a outros
momentos nos quais ela realmente deu conta de tudo. Então, sinto
certo conforto em meu peito.
Michela pendura-se em meu braço e praticamente me
arrasta escada acima, tagarelando o tempo todo sobre vestidos e
sapatos. Por um momento, deixo-me conduzir pela ideia de rendas,
pedrarias, tiaras e até penteados.
Talvez… apenas talvez possa esquecer que fui a garota
mantida em segredo por conta do câncer.
GIULIO MORETTO

Nem são quatro da manhã quando meus irmãos e meus


primos, Piero e Donato, me acompanham em passadas largas sobre
a plataforma do cais em La Cala, localizada em uma região menos
comercial de Palermo. Outro indício de que o vazamento de
informações ocorreu no setor de receptação.
Não era possível pressupor a chegada de um navio
mercante em um local voltado para iates de luxo em plena
madrugada.
Algo assim era arriscado, mas minha intenção foi
exatamente esta, ser imprevisível. Por isso, a suspeita seguinte era
irrefutável: O inimigo possui informações privilegiadas.
O som firme do impacto causado pelos coturnos estralando
nas tábuas espessas indica a fúria que nos move apressadamente
até o navio Alexsandro Magno, um dos sete que completa a frota
sob meu comando.
Esse era o segundo extravio de carga em menos de 90 dias.
O primeiro aconteceu mês passado quando perdemos alguns
milhões em armamentos pesados. Fomos surpreendidos com a
presença da Europol que tem aparecido mais vezes nos portos do
que o habitual.
Por excesso de confiança em nossa folha de pagamentos
para a polícia local, acabei não me preocupando com a interferência
da polícia externa. Um erro que não quero cometer novamente.
Bufo raivoso, vendo a pequena neblina se formar diante do
meu nariz por conta do ar gelado da madrugada. Passo uma das
mãos pelos cabelos assim que alcançamos as proximidades onde
aconteceu a interceptação da carga.
Alguns corpos estavam sendo arrastados para um dos
caminhões da limpeza, enquanto que soldatos jogavam e
esfregavam o chão para retirar os vestígios de sangue.
No momento que notaram nossa chegada, estacaram no
lugar. Fiz um sinal para que continuassem e meneei a cabeça para
que Piero e Donato acompanhassem o veículo com os corpos até o
terreno de descarte.
Em seguida, caminho com meus irmãos até nosso iate na
marina, onde Venon e os demais devem supostamente estar se
tivessem cumprido minhas ordens.
Eu não podia perder os três cargos superiores do navio em
plena situação de crise. Seria uma desgraça perante o Conselho.
Merda.
Fiquei recapitulando cada mísero detalhe pelo percurso.
Algo me passou despercebido. Não era possível a intervenção de
alguém de fora sem o conhecimento da operação de dentro.
A carga não era de armas, mas sim substâncias ilícitas, algo
que não me agradava em nada. Ainda estava superando a fase na
qual meu irmão caçula passou ao consumir essa merda.
Ele dizia estar limpo. Mas, a sensação horripilante na noite
que quase o perdi ainda ronda minha mente.
O carregamento comprometido compunha-se basicamente
da nova droga do momento.
Maximus apresentou para nós como a novidade que
dominava as universidades. Ele mantém-se matriculado cursando
medicina e descobriu o comprimido lilás nas turmas que costumam
festejar e ir bem em todas as provas no dia seguinte.
Não quero diminuir o mérito de qualquer estudante prodígio,
claro, até porque Maximus, tirando a burrice de tornar-se viciado na
adolescência, é extremamente inteligente. Mais um ano e teremos
um exímio doutor que fez sua residência antecipadamente
costurando a mim, Fausto e nossos primos como hobby.
Ele precisava aprender de qualquer forma.
No mais, a droga possui princípios ativos que aumentam a
capacidade dos neurotransmissores, facilitando a vida de quem
precisa guardar excesso de informações em um curto espaço de
tempo.
Eles chamam de Oásis. Eu chamo de oportunidade. Ou
seria, caso a carga fosse entregue aos soldatos que conduziam dois
caminhões de propriedade da Famiglia.
Alexsandro Magno é o navio com minha melhor equipe.
Caspita. Recebi a ligação de Venon, o corsário, em pleno tiroteio. Ao
que tudo indica fomos atacados por uma facção rival. Qual delas
nos atacou é uma questão que será averiguada mais tarde, tal qual
a informação que foi vazada sobre o local exato do atracamento do
navio.
Entramos no iate negro, ancorado adiante. A intenção do
transporte mais sofisticado, porém com menos visibilidade, era para
devolver os marinheiros emprestados para seus devidos navios
após a operação. No entanto, serviu como local de atendimento
emergencial para Lino Sanches, capitão do meu precioso
Alexsandro.
Nossos navios possuíam três cargos obrigatórios: o
corsário, responsável pelas armas; o navegador, responsável pela
navegação, mapas e rotas secretas, bem como o caminho mais
curto e seguro para qualquer destino; e por fim, o capitão, quem
está acima de todos e conduz a embarcação.
No navio Alexsandro Magno, Lino era o capitão, Venon o
corsário e Magda, a navegadora. Quando recebi a ligação,
comunicando sobre o ataque surpresa, Venon afirmou que Lino
havia sido baleado. Ele caminhava na proa e foi o primeiro a ser
atingido. O velho barbudo com mais tatuagens nos braços que já vi
não conseguia cumprir seu papel e permanecer na cabine.
Fui adentrando e encontrei alguns feridos, soldatos de terra,
sendo tratados na ala comum. Segui pelo corredor até a sala
privada, onde Lino era atendido pelo médico acionado. Notei os
estilhaços da bala na bandeja apoiada no suporte ao lado da maca.
Haviam pinças ensanguentadas e material cirúrgico, que parecia em
uso, conforme gemidos do velhote preenchiam o ambiente.
— Velho calhorda — vociferei, sendo mirado com surpresa
por Magda que estava aos pés do pai. Ela era uma moça bonita,
mas ninguém arriscava dar-lhe uma segunda olhadela. Seu pai,
Lino, não é conhecido como Kraken à toa.
Acredito que não me matou quando soube que tirei a
virgindade de sua filha, por pedido da própria. E eu apenas fiz, pois
a garota queria se livrar logo daquilo. Magda não era a primeira a
me pedir este disparate. Só foi a primeira que atendi. Como negar
trepar com uma morena daquelas?
Além do mais, sabia que não teria como ela nutrir quaisquer
sentimentos por mim por ser completamente psicopata. Foi criada
dentro da pirataria, vendo a crueldade do pai como algo normal. O
velho, no entanto, era um bom pai para ela. Passou a fazer parte
dos negócios da Cosa Nostra para ter proteção à sua menina. Mas
Magda tornou-se navegadora por mérito próprio.
Ela cursou engenharia naval e sumiu por alguns anos,
trabalhando por todos os mares conhecidos e desconhecidos
também. Sabíamos por onde passava, pois nunca deixou de enviar
cartões para seu pai.
— Este velho já foi costurado mais vezes que você, menino
Moretto — afirmou, grunhindo em seguida. Eu não duvidava. Por
mais que tenha cicatrizes adquiridas no decorrer dos anos, não tive
parte da perna escalpelada. Então, sim, Lino ganhava na
competição. — Acaba logo com a merda, doutor.
— Pai, fica quieto que ele termina — a morena dá um tapa
na perna do pai de modo afetuoso. Ou o melhor que conseguia ser.
O velhote reclamou mais alto. Maximus, ao meu lado,
elevou a mão à boca para conter o riso. Fausto tinha seguido para o
quarto onde conseguiria ter acesso aos seus computadores.
Provavelmente, verificaria as câmeras instaladas nas vias principais.
Algo que nos auxiliou no passado quando éramos meros soldatos.
Sua habilidade em invadir qualquer sistema de segurança foi útil em
incontáveis vezes.
O som de outro tapa estralado na coxa do velho e
repreensão de sua filha me tira do desatino. Eu poderia sorrir da
interação se não estivesse com tanta raiva.
— Como diabos aconteceu essa merda, caspita? — brado,
num rompante que fez meu irmão mover os ombros pelo susto.
— Fomos surpreendidos — Venon é quem responde. —
Eles possuíam um esquema certo, como se soubessem onde e em
quem atirar.
— Porra… mas que merda — Maximus reclama, enquanto
que eu apenas gesticulo para que meu corsário continue.
— O primeiro container estava sobre o caminhão e este foi
levado com eles. Já o segundo estava suspenso no guindaste. Eles
se prontificaram de ter um veículo à espreita para receber a carga e
fugir.
— Ninguém os seguiu? — mantenho a voz no mesmo tom.
Magda emite um som de desdém antes de emendar:
— Claro que seguiram. Mas os caras eram pilotos. Só pode.
Sem contar as motos que surgiram do nada retaliando a
perseguição.
Venon disse que Magda estava no encalço dos figli di
putana . Só não me recordava da conversa nos detalhes, pois meu
[48]

foco estava na perda que havíamos sofrido.


— Minha filha seguiu os canalhas com uma das motos deles
depois de eliminar o piloto. Deve dar para rastrear a origem. —
Meneio a cabeça, concordando com Lino. Por mais que a placa
fosse fria, no submundo, era ainda mais fácil descobrir de onde veio.
Parece que nos últimos tempos estamos em uma crise para
essa provação ser cada vez maior. Apesar de não ser o Don das
nove regiões da Sicília, onde a Cosa Nostra comanda, todos
deveriam me temer.
Será que não tenho sido duro o bastante?
Além de ser o Caporegime de Palermo, assumi o cargo de
Sottocapo, afinal. Sou eu quem faz a intermediação direta desses
stronzi[49], afinal.
Merda.
Tudo caminhava bem, até um dos vecchi[50] trazer à tona
uma de nossas antigas tradições: todo Caporegime deve escolher
sua futura moglie[51] ao completar 25 anos.
Concomitantemente, pequenos ataques ocorreram. Nada
tão grave, até agora.
Figli di puttana[52]!
A idade nunca foi empecilho para que pudesse ter tudo o
que sempre quis. Tanto que costumo comemorar a data muito bem
acompanhado. Porém, como uma maldição, após a cobrança feita
no Consiglio[53], meus dias como Caporegime de Palermo tornaram-
se um pesadelo.
A cobrança aumentou após mio padre anunciar meu cargo
também como Sottocapo. A vaga que até então era apenas uma
nomenclatura não utilizada pela famiglia.
Mas para Don Antonio Moretto foi a melhor forma para que
eu iniciasse o estágio como o herdeiro de sua cadeira.
O que fiz?
Aproveitei do poderio para apertar as rédeas que estavam
soltas demais. Solicitei para Fausto, implantar sistemas em todas as
regiões que permitem acesso remoto e maior fiscalização central.
Então, dei motivos para que alguns vecchi buscassem qualquer
crítica no meu modo de agir, sendo que encontraram apenas a
ausência de una moglie[54].
Assopro o ar com desdém, recordando-me dos resmungos
que ocorreram na última reunião.
Quem não deve, não teme. O que é contraditório afirmar no
meio de tubarões que administram todo o comércio ilegal da Sicília,
não é mesmo?
Pude utilizar o conhecimento em ciências da computação de
Fausto sem parcimônia ao analisar de forma minuciosa as condutas
de todos os Caporegimes, e dos seus tenentes. Ninguém havia
contraposto sua insatisfação de modo direto.
Eu sabia que as alterações que implantei, quando
finalmente meu pai deixou a região de Palermo totalmente sob meu
comando, teriam retaliações internas.
Mas isso… é traição.
Pensei que o exemplo dado com o tenente de Pozzallo de
Ragusa fosse suficiente.
Não era a primeira vez que alguém em comando era levado
à minha Cutelaria. Por mais que isso tivesse ocorrido há muito
tempo.
Perdi algumas camisas boas naquela semana. Após dias
decapitando alguns membros e escalpelando partes da epiderme,
consegui uma confissão que já era explícita nos gráficos
apresentados por Fausto.
Mio frattelo[55] tinha acabado de se tornar um Uomo
d’onore[56]. Não permiti que assistisse ao show de horrores que
precisei fazer após constatar a falha nos números apresentada por
ele.
Ainda bem que a confissão do tenente traidor aconteceu
antes que cortasse sua língua. Um dos olhos ainda pendia em seu
rosto. Estranhamente, o infelicce encarou Germano Vacchio, seu
superior como Caporegime de Ragusa, que não demonstrou
emoção alguma pelas sobras do homem de sua província.
Atestou apenas que sua esposa e figlia pequena não
responderiam por sua traição e permaneceriam sob a proteção dos
Vacchios. Algo que fez o tenente dar o último suspiro e se entregar
à morte.
Até aquele dia pensei que o serviço estava feito, pois o
recado aos demais membros da Cosa Nostra sobre o que eu podia
fazer tendo apenas 16 anos seria suficiente.
Não foi…
Agora estou sendo obrigado a escolher uma noiva.
A máfia italiana sobrevive através de leis arcaicas, nas quais
os membros são respeitados quando possuem casamentos
solidificados com as ragazze[57] criadas em nosso domínio. Todas
educadas e adestradas para se tornarem esposas perfeitas,
aumentando a prole e educando futuros membros da Cosa Nostra.
Respeitamos nosso código com afinco, bem como
mantemos a tradição. Por isso ainda estamos arraigados na
sociedade como um câncer necessário para as engrenagens da
máquina que rege o mundo.
Eu fui criado para me tornar o futuro Don, e me casaria
obedecendo aos costumes. Todavia, escolheria mia sposa[58] dentre
as ragazze[59] oferecidas pela Cosa Nostra. Uma dádiva que meu pai
não teve.
O casamento de meus pais foi um marco que nos ligou de
forma inevitável à Camorra, dando-nos acesso às outras localidades
conquistadas ao norte da Itália.
Quanto à máfia ’Ndrangheta, respeitávamos o território um
do outro. À vista disso, ninguém cogitou outro casamento a título de
remediar qualquer guerra entre nós. Um alívio, pois meu casamento
é certo apenas com uma ragazza.
Não agora… posto que é muito nova. Mas em breve…
Trazendo-me à realidade, Fausto atravessa a porta.
— Encontrei algo — informa, chamando a atenção de todos.
— Acho que você não vai gostar.
Ele acha?
Ah… mio frattelo.
O empurrão que dei em seu ombro para o incentivar a
mostrar-me o que descobriu sacramentou sua conclusão.
GIULIO MORETTO

Meus olhos vagueiam pelo ambiente com pouca iluminação,


feito exclusivamente para seduzir e entreter a ala masculina da
sociedade siciliana.
As sombras dançam em harmonia com as batidas pulsantes
da música conforme corpos femininos e seminus deslizam ora
próximos, ora distantes dos homens que se fartam com olhares
maliciosos e zombarias pervertidas.
Elas não se importam. Pelo contrário, provocam a luxúria
dos clientes com intuito de mais gorjetas em suas lingeries, ou nas
peças que sobram sobre o corpo. Por vezes, apenas a cinta-liga.
As luzes suaves e sensuais criam uma atmosfera misteriosa
e envolvente dando ênfase ao palco, projetado para oferecer uma
visão clara de todos os ângulos, das nossas garotas, permitindo que
os espectadores apreciem cada movimento e detalhe com
intimidade.
Aqui, para esses homens, o mundo exterior desvanece. É
como mergulhar em um oásis de prazer, onde as preocupações são
substituídas por uma sedução magnética.
A boate Illusione di Rose foi construída no subterrâneo de
um prédio comercial. Por isso, costuma ser o lugar favorito dos
poderosos da cidade pela discrição e facilidade de acobertar as
mentiras que muitos diziam em casa.
Talvez nem fosse mentira se dissessem que ainda estavam
no centro.
Alguns andares acima do térreo haviam quartos destinados
exclusivamente para nós e nossos clientes especiais, acessados por
um elevador privativo.
Acomodo-me melhor no sofá de couro macio, enquanto o
som da música preenche os espaços entre os suspiros, uma trilha
sonora.
O perfume é uma mistura afrodisíaca de tabaco, álcool e
perfumes caros. Tudo refletindo o desejo profano e carnal que
consome o ser humano na áurea da luxúria.
Minha intenção da noite era esquecer a frustração que ainda
me incomodava como um pequeno corte de papel entre os dedos.
Essa era a sensação. Pequena demais, porém incômoda.
Meus irmãos pareciam dividir o mesmo sentimento, ou
apenas me acompanhavam esta noite por diversão.
Pego outro copo de uísque e deixo o líquido âmbar descer
por minha garganta suavemente, buscando anestesiar parte dos
sentidos.
Costumamos ficar em um dos camarotes afastado dos
demais, o que nos dava certa privacidade. O lugar não era
frequentado por muitos Caporegimes. A maioria dos homens com
cadeiras cativas próximas ao palco eram dos associados da elite de
Palermo.
A história sobre o desvio de carregamento ainda circulava
dentre eles e eu estava farto dos olhares acusadores como se a
culpa fosse minha. Talvez o boato tenha sido fomentado por um ou
dois soldati[60] que mandei para uma missão suicida na região da
‘Ndrangueta semana passada.
Fausto achou desnecessário. Maximus não tomou
conhecimento. E meu pai… se fez de cego.
Ele sabia que alguns vecchi[61] queriam me desacreditar
quando assumi a posição de Sottocapo.
Para eles, quando o Don determinou que passaria o
comando de Palermo para mim, foi uma afronta. Mas fui eu quem
lutou e ganhou dos tenentes sem ajuda de mio padre. Ele nem
queria que participasse do desafio da cutelaria.
Depois, por questões de estratégia, Don Moretto me
nomeou Sottocapo para que os Caporegimes se acostumassem ao
meu comando como algum tipo de estágio prévio. Acredito que se
fosse tio Marcelino, atual Consiglieri, os vecchi[62] teriam aceitado
melhor.
Enquanto eu era apenas o Caporegime de Palermo, meu
casamento não demonstrava ser um obstáculo para as
negociações. A partir do momento que fui nomeado Sottocapo, tudo
mudou.
Minha cadeira cativa por ser o primogênito do Don não era
questão entre eles. Mas cumular dois cargos de valor dentro da
Cosa Nostra, sim.
A situação passava dos limites. Eu sabia que alguns dos
Caporegimes não estavam contentes, tal como os tenentes[63] da
própria província não suportavam estar sob o meu comando. Mas a
exigência de um casamento já tendo passado alguns meses do meu
25° aniversário demonstrou o quão desesperados eles estavam.
Meu casamento aconteceria com quem eu quisesse, mesmo
que minha escolhida ainda não tivesse a idade em ser uma
sposa[64]. Não importava… A escolha foi feita antes mesmo do seu
nascimento.
A garota que nos servia bebidas deixou as cortinas do
camarote abertas como mandado para que pudéssemos assistir ao
espetáculo exibido no palco.
Uma ruiva de cabelos encaracolados efetuava uma manobra
de malabarismo no pole dance, direcionando um sorriso sexy pra
caralho em minha direção.
Rosana era seu nome. Ela é uma das mulheres deste clube
que costumo levar para o quarto, alguns andares acima.
Meus olhos seguiam os movimentos ritmados da menina-
mulher que demonstrava sua habilidade no agarre da barra de
metal. As luzes sussurravam segredos de sedução e os raios
dourados dançavam pelo ambiente. A dança da ruiva transcendia a
gravidade, numa coreografia hipnotizante que ecoava a liberdade e
a paixão.
Cada passo, cada curva do corpo, era uma expressão
artística que evocava um tesão do caralho. A danada era gostosa e
sabia disso. Seguindo a batida da música, a ruiva se pendura de
ponta-cabeça e gira as pernas no ar, mirando a bunda redonda para
mim.
Ajeito meu pau que inchou dolorosamente, buscando
espaço e encontrando a barreira do cinto da calça. Cazzo[65].
Todas as nossas meninas eram atraentes, poderia eleger
qualquer uma, mas a safada foi a eleita da noite. Ela parecia uma
ninfeta endiabrada, feita para mexer com a sanidade dos homens.
Bufo um riso ao vê-la lamber os lábios, me encarando, num
gesto repleto de duplo sentido. A ruiva tinha o rosto de anjo no
corpo desenhado para o pecado. O short de lycra preto, que exibia
as alças da calcinha de strass fio-dental acentuava as curvas da
bunda perfeita que receberia alguns tapas mais tarde pela ousadia.
A coragem da diaba era o que indicava de fato sua idade.
Rosana não era a única que nos confundia neste antro. Outras
garotas de rostos meigos denotavam o gosto peculiar do meu primo
Donato por novinhas. No entanto, nenhuma era menor de idade.
Donato podia ser um figlio di puttana[66], mas sabia das
regras. Ele costumava fazer a parte burocrática para contratá-las e
obedecia às minhas ordens à risca. Fosse qual fosse a razão que
levava uma mulher a fazer parte do cardápio, era exigido a
maioridade, e a prevalência de sua vontade.
Talvez por isso tivéssemos um vasto rol de putas. Elas
sentiam-se minimamente cuidadas. Muitas vieram de máfias rivais
que não sabiam conduzir o negócio com o mínimo de segurança
para as profissionais do sexo.
Sim. Profissionais. Esse é o trabalho delas. Muitas gostam
do que fazem e por isso… fazem bem feito.
Não sou hipócrita ao ponto de pensar que uma mulher não
opte por essa vida apenas pelas causalidades. Algumas estão aqui
pelo simples fato de literalmente coincidir prazer com trabalho.
E os homens que as buscam, ainda mais nesta boate em
específico, costumam ter boa aparência, ou no mínimo se vestem e
cheiram bem, o que não se encontra na clientela das ruas.
O show termina e sou agraciado com um beijo soprado pela
dançarina. Dou uma piscadela, que significa o código para me
aguardar no quarto, de preferência… nua.
— O que pretende fazer quanto a La Cala? — Fausto
indaga, levando a long neck aos lábios.
Ainda não tínhamos discutido muito sobre o assunto por ‘n’
motivos. Mal nos encontramos nos últimos dias, o que era difícil de
acontecer por morarmos no mesmo prédio.
Quando completei dezoito anos me mudei para a cobertura
em um edifício luxuoso beira mar. Pensei que ficaria isolado por
alguns anos, e sim, o isolamento terminou de forma sequencial
conforme meus irmãos completavam a maioridade e se mudavam
cada um para andares abaixo do meu, respectivamente.
A cobertura e os dois andares abaixo são minimansões de
três andares. Os demais pisos são designados para alguns dos
tenentes, que preferem ter suas famílias em nossas dependências
do que em suas comunas.
A moradia próxima não nos permite passar tanto tempo sem
nos esbarrar diariamente, seja por vontade própria ou mesmo pela
intercorrência em usarmos o mesmo elevador privativo.
Porém, quando eu precisei viajar para um lado, meus irmãos
foram para outro, até juntarmos todas as informações. Maximus foi o
último a chegar de viagem, deixando dois celulares na bancada da
minha cozinha hoje à tarde, antes de descer para o seu andar.
Sinto o sofá afundar quando Max senta-se ao meu lado,
retornando sabe-se lá de onde. Ele estava aqui quando chegamos,
depois saiu e passou mais de meia hora em algum canto. A contar
pelo cheiro de mulher e lábios borrados de vermelho, acredito que
não muito longe.
— Ainda estou digerindo a informação.
— Sobre o quê? O marinheiro Salazar? — Maximus indaga,
levando um safanão na nuca de Fausto. — Ai, caralho! Que foi?
Fausto apenas gesticula para o restante do ambiente.
— O que você acha, stronzo[67]?
— Ninguém vai ouvir daqui. — Ele rouba de modo furtivo a
bebida de Fausto, tomando o líquido numa golada.
Meu irmão do meio solta um rosnado baixo que é retaliado
pelo sorriso maroto do caçula. Bebo mais um pouco do meu uísque,
depositando o copo sobre a mesinha de centro, desligando-me
completamente da conversa entre eles. Ouço-os praguejarem mais
um pouco, enquanto acendo um cigarro.
— Ele deve se achar muito esperto por ainda estar vivo —
Fausto resmunga.
— E os mandantes filhos da puta mais ainda por estarem
com nossa mercadoria — Max emenda.
— Nós nos enquadramos em quê? — instigo-os com a voz
grave, num tom ameaçador. Meus irmãos se entreolham em
silêncio, finalmente. Permaneço calado aguardando que cheguem à
conclusão, sozinhos.
Depois de alguns minutos, Fausto balança a cabeça em
negativa e expira uma risada contida. Já Max bufa e joga as costas
no sofá entediado.
— Pensei que fosse ter um pouco de ação nesse fim de
semana — o caçula reclama.
— Piero vai para Monza na segunda. — Dou uma tragada,
liberando a fumaça para o alto. — Matteo irá correr. Vá com ele.
Não gostava de ter meu irmão viajando em um momento
como este. Mas é uma oportunidade para demonstrar que
esquecemos o ocorrido.
Nosso traidor ainda estava entre nós, mas tudo indicava ser
alguém de perto. Por isso, viajar até o território da Camorra e
assistir a uma das corridas de fórmula 1 do meu primo Matteo não
me pareceu algo arriscado.
Só espero que a viagem não se prolongue como da última
vez que ele resolveu estar apaixonado por uma outsider de lá.
Maximus tinha a tendência em escolher modelos que
sabiam onde estavam se metendo e queriam algo além da beleza e
sorriso do meu irmão.
Podemos ser a escória da sociedade, porém, não gosto que
meus irmãos misturem a única coisa que podemos ter de puro com
pessoas piores que nós.
Ainda mais Maximus. Eu ainda o via como bebê caçula que
precisava de cuidado.
Matteo não podia ser sua babá, tendo uma responsabilidade
tal qual a minha, como futuro Don, e ainda ganhar o campeonato
pela Ferrari. A injeção de dinheiro dada por Viccenzo Pascale, Don
da Camorra e seu pai, foi um grande incentivo para deixar o filho
correr dentre os pilotos.
Sorrio, pensando em como a Camorra encontrou o modus
operandi perfeito para lavagem de dinheiro. Meu tio, pelo visto,
aproveitou bem as habilidades de piloto de corridas clandestinas do
filho.
— Tô dentro. — Max pega o celular e deduzo estar
enviando alguma mensagem para Piero.
Nosso primo quis seguir para casa mais cedo e não
insistimos para vir conosco. Ele pediu em segredo que eu
interviesse por ele junto ao meu pai sobre a filha do Caporegime de
Agrigento, Ermano Colombo.
Piero sempre foi o mais quieto de nós e pelo visto o primeiro
que sabe com quem quer passar o resto da vida.
Donato, de outro lado, não parece ter a intenção de casar
tão cedo. Ainda mais podendo experimentar uma boceta diferente a
cada dia. Palavras dele, não minhas.
— Realmente não faremos nada? — Fausto pergunta,
reclinando a cabeça para meu lado.
— Temos apenas suposições, irmão. Nada concreto. A
desova das motos no território dele não o incrimina. Este bagre é
escorregadio. Irá arrumar uma desculpa qualquer e teremos o
conselho com perguntas que não poderemos responder.
— Eles não têm que questionar nada.
— Ainda não sou o Don para isso — acentuo. — Eles
questionam tudo o que faço.
— Se você escolhesse logo sua noiva isso podia mudar —
Max entra novamente na conversa.
— Que merda é essa, Maximus? — brado, revoltado pelo
argumento do meu irmão.
— É vero, fratello[68]. Se já tivesse escolhido como o
conselho vem cobrando papà… — Fausto concorda.
— Querem perder os dentes? Ou a língua basta? —
esbravejo, enfurecido, apertando a bituca do cigarro no cinzeiro de
prata no braço do sofá.
Eles não entendem. Eu já escolhi. Só que… caralho. Queria
esperar um pouco mais, ela é tão… nova.
Sei que posso tê-la como prometida. Porém, a imagem do
rosto de espanto da menina recebendo a notícia que estaria
comprometida em casamento tornou-se um dos meus pesadelos
nos últimos meses. Sem contar que nunca mais a vi.
Talvez seu pai tenha descoberto sobre minhas intenções e
por isso está escondendo sua filha.
Não… Impossível.
Ainda não a reivindiquei nem para meu pai. Não tem
como…
— Nem a língua, nem os dentes, fratello. Só que… por que
está demorando tanto? Escolha logo uma das figlie da famiglia e
pronto. Não está esperando se apaixonar afinal, está? — Fausto
persiste. — Não temos esta opção, Giulio. E…
Mas que porra…
— Não é escolhendo uma noiva que a merda irá mudar. —
Levanto-me, pegando o paletó do terno que estava pendurado em
uma das poltronas vintage do camarote. — E eu já escolhi minha
noiva — digo sem encarar meus fratelli[69] para não lidar com as
indagações em seus rostos, vestindo o blazer e ajeitando as
mangas.
— Quem é? — Max parece ter menos amor à vida do que
Fausto.
— Alguém da famiglia — respondo seco, saindo do
camarote, a tempo de ouvir Fausto resmungar “ainda bem”.
Expiro o ar, balançando a cabeça revoltado com a pressão
vinda até mesmo dos meus irmãos. Eu sei que não estão errados,
mas quem gosta de ser colocado na parede? Ainda mais quando sei
o quanto terei que ouvir ao revelar minha escolha.
Meu pai irá tentar de todas as formas me persuadir para
mudar o que quero.
Entretanto, minha decisão foi tomada há muito tempo.
Empurro a porta de saída que me conduz em direção ao
elevador privativo. Preciso esquecer por algumas horas o que me
aguardará nos próximos dias.
Meus fratelli têm razão. Preciso assumir o compromisso logo
para que os vecchi[70] me respeitem como seu futuro Don. Mesmo
que para tanto precise colocar uma aliança em uma menina.
Abro a porta do quarto no final do corredor, vendo uma ruiva
completamente nua, com o corpo de mulher e as pernas
arreganhadas para mim. Ela sorri safada. Os traços delicados
poderiam enganar se não fosse o sorriso malicioso.
Uma ninfeta de pele alva, cabelos vermelhos e olhos verdes.
Verdes como os dela. Da menina ainda com traços infantis que me
desafiou de modo tão petulante na última visita.
Senti-me um pouco doente quando sai da casa do Capo
Zanchetta aquele dia, pois pensei em como seria beijar os lábios
rosados de uma garota que mal havia completado 14 anos. Porra.
E agora estou aqui. Entrando em um quarto e mirando os
olhos de uma puta recordando-me daqueles olhos.
Doente. Eu sou um completo doente. Esfrego as mãos em
meu rosto e empurro a imagem do rosto que me atormenta para
longe dali.
Amanhã.
Amanhã serei o seu monstro. Hoje, serei o homem que se
afundará na ruiva gostosa e mostrará o que se ganha ao me
provocar daquela forma.
Ela me chama com os dedos da mão e eu sigo até a beirada
da cama, liberando o cinto e deixando a calça cair. A puta fica de
joelhos e abocanha meu pau com vontade. Quando ela abre os
olhos, eu os fecho com as pontas dos dedos. Não quero nada que
me faça pensar no futuro.
Este eu resolvo amanhã.
FRANCESCA ZANCHETTA

Espio da sacada, mais afastada da entrada, os convidados


chegando em carros de luxo. Alguns, inclusive, de limusines tão
compridas que me remetiam aos desenhos animados, onde não é
possível ver o começo e o fim do veículo.
Mulheres jovens e mais velhas desciam com seus vestidos
sofisticados, exibindo tanto glamour e brilho que senti-me admirando
o tapete vermelho numa premiação do Oscar.
É… havia um tapete vermelho na escadaria do Castelo
Tirrena de qualquer forma, e eu era a princesa presa na torre alta.
Não estou reclamando do lugar em si. Até porque quem não
gostaria de visitar um lugar como esse?
Mammina disse que se tratava apenas de um dos muitos
imóveis da famiglia, usado para eventos importantes. Não era um
castelo em si. Por mais que toda a arquitetura do lugar gritasse
realeza.
Havia um imenso rol de entrada que conduzia a mais de um
ambiente. Para adentrar ao salão do baile era necessário seguir
pelo corredor extenso e descer um lance de escadas que surgiam
após portas duplas de madeira maciça com entalhes barrocos.
Fiquei encantada pelo lustre central que reluzia com diversos
candelabros de diamantes.
O ambiente era imenso, comportando seiscentos
convidados facilmente. Foi a informação que a moça contratada
para a recepção me falou.
Chegamos ontem à noite e fomos instalados em um dos
andares do edifício, onde haviam tantos quartos que me perdi na
conta. Michela estava no cômodo em frente ao meu, pelo menos.
Suspiro, elevando uma das mãos até a cabeça e sentindo o
penteado feito sobre minha cabeça.
Minha irmã não mentiu ao dizer que a peruca ficaria bem
presa em minha cabeça. Sentia o puxar dos fios da trança embutida
como se tivesse sido feita com meus próprios fios de cabelo. Quem
diria que havia tanto avanço nas colas para este tipo de aplique.
No entanto, eu que não consegui deixar mammina tocar. Por
mais preso que o penteado demonstre estar com a finalização em
cachos perfeitos descendo por meu ombro dá a impressão que pode
tudo despencar de uma hora para a outra.
Meus dedos tocam o cimento frio do parapeito, e mantenho
o corpo atrás do vaso alto que adorna a sacada, observando um
pouco mais a movimentação abaixo.
Noto os seguranças na entrada, assim como os manobristas
que seguem estacionando os carros, e outras pessoas da equipe
contratada para o evento acompanhando os convidados.
Signora Zanchetta não mentiu quando disse estar com os
preparativos para minha festa de 15 anos em dia. Tudo estava tão
milimetricamente cronometrado que tive a impressão que Mammina
vem organizando tal evento desde que nasci.
A chegada de uma Ferrari vermelha que passou pelos
portões fazendo mais barulho que o necessário chama minha
atenção. O motorista devia se achar muito importante para não
obedecer a fila de carros que se seguia até a entrada, desviando do
caminho e seguindo para detrás da construção.
Deve ser um dos idiotas amigos de Luigi. Como que dado o
exemplo, outros dois carros de motores tão opulentos quanto,
seguem seu líder.
Meu coração aperta no peito com a possibilidade de ter que
dançar com esses cretinos. Não devem ser um dos vecchi[71] ou o
jovem capo de Messina, posto que os vi chegarem mais cedo como
todos os outros seres humanos com um mínimo de educação.
Talvez seja Luigi em um daqueles carros também. Não sei.
Um de seus amigos possui o mesmo Porshe prata que seguiu a dita
Ferrari. Giovanni o nome do moço, acho. Meu irmão não o deixou
passar da soleira de casa outro dia. O fato de estar morando na
casa da piscina, fez com que as noites do meu irmão não
mudassem muito a rotina por minha conta.
Ele podia receber alguns dos amigos mais próximos, porém,
nenhum deles tinha a permissão de entrar em nossa casa quando
papà não estava. Esta regra foi aperfeiçoada no último ano.
Os amigos de Luigi pensavam que seria por conta das suas
irmãs estarem deixando de ser crianças e que seu pai nos
resguardava mais para futuros pretendentes. Não deixava de ser
verdade quanto ao resguardo. Contudo, o motivo de tanto cuidado
era outro.
Retorno para o quarto, fechando as portas duplas de vidro
para diminuir o ruído de fora. Passo as mãos pela saia do vestido,
tentando desamassar uma dobra inexistente no tecido. Prosto-me
em frente ao espelho oval de corpo inteiro, com uma moldura que
lembra o da madrasta da Branca de Neve, e analiso meu reflexo.
O cabelo está tão perfeito, que até mesmo eu me confundo,
esquecendo tratar-se de uma peruca, tão real que parece. Michela
foi quem fez a trança e Mammina colocou a tiara de brilhantes. O
vestido é rosé, estilo princesa, com a saia rodada e um corpete
repleto de aplique de renda que descem e diminuem aos poucos,
descendo pelo quadril.
A temperatura de fevereiro permite usarmos ainda manga
longa, o que agradeço, já que meu corpo não se recuperou por
completo e quanto mais tecido, melhor é para esconder as marcas.
O tule transparente com o relevo da renda dá a impressão que
meus braços não estão tão finos.
Coloco uma mão sobre a bochecha, onde a maquiadora fez
mágica, deixando-me parecendo uma boneca. Os olhos marcados,
com os cílios postiços, fazem com que aparente ter mais do que
apenas 15 anos.
Por incrível que pareça, a data é realmente hoje. De acordo
com Mammina, eu já completei a idade nesta manhã, às oito horas
e quarenta e dois minutos.
Sorrio ao lembrar a forma orgulhosa que mencionou os
minutos, como se cada segundo de minha vida importasse. Importa.
Eu sei.
— E como está a principessa da noite? — Dou um salto de
susto, por conta da invasão de Valentina no quarto.
— Dio Santo Antoni[72]! Que susto — digo, colocando a mão
sobre o peito. A endiabrada sorri.
— Scusa, bela[73]. Não queria te assustar — ela diz, com um
sorriso que indica não estar nada arrependida. Antes que consiga
fechar a porta, Michela adentra pelo vão e desta vez é ela quem
solta um gritinho.
— Mas o que há com vocês que estão tão assustadas
assim? — Minha irmã termina de fechar a porta, enquanto que
Valentina se recupera.
— Deve ser por estarmos no castelo do conde Drácula? O
que acha? — Minha prima justifica e Michela ri.
— Este lugar é lindo, sua boba. Não tem nada de Conde
Drácula — contesta, brincalhona.
— Aqui tudo me faz lembrar do filme. Não tem como. Olha
aquele espelho. — Aponta para o local onde eu estava conferindo
meu reflexo. — Tenho medo de encarar demais e ver algo sair dali
de dentro.
Instintivamente, recuo para o lado, afastando-me do objeto
maligno aos olhos de mia cugina[74].
— Você está exagerando. Nunca mais te chamo para
assistir a um filme comigo, Valentina — Chela emenda. — Você vai
assustar Francesca.
As duas me encaram, aguardando minha reação.
— Não estou com medo. Estamos em um castelo de conto
de fadas e não de um vampiro — esclareço. — Sem contar que o
último filme de vampiros que assisti foi da Saga de Crepúsculo.
Então, se algum Robert Pattison aparecesse naquele corredor, não
gritaria de susto.
— A prima Erica disse que iria gritar com o seu irmão Luigi
trancada em um quarto. Mas não entendi direito o que ela quis dizer
com isso — Valentina reflete, tocando o queixo com o indicador.
— Credo! — Michela intervém. — Meu irmão odeia aquela
menina. Pena que ela estará aqui hoje.
— Acho que todos os nossos primos estarão aqui esta noite
— concluo. Pela quantidade de carros que vi lá fora, acredito que
até quem não seja parente esteja presente.
— Você vai dançar a valsa com Alessio, Chela? — Valentina
indaga minha irmã, tentando conter sua inquietação.
— Não… Dario é meu par, cugina[75]. — Michela responde.
Sei que Alessio queria dançar com mia frattela e ela também sabe,
por isso se adiantou e chamou Dario. — Ele disse que dançaria com
você, Val. Não precisa ficar apreensiva. — E essa sugestão também
foi dela.
— Eu não estou — responde rápido demais. — Estou?
Michela me encara pelo canto dos olhos e eu desvio o olhar
não querendo deixar claro o quanto nossa prima é explícita sobre
seus sentimentos.
— É tão na cara assim?
— Essa pergunta é retórica? — Michela coloca a mão na
cintura, e aponta o dedo para ela. Nitidamente em dúvida acerca se
deve ou não responder.
— Tá, tá… Porca miseria. E eu pensando que ninguém
sabia. — Ela para alguns instantes. — Ele sabe?
Outra pergunta difícil de responder, não por saber a
resposta, mas por ter medo da reação de Valentina.
— Acho que ele se diverte com isso — respondo e me
arrependo de pronto, conforme a feição da minha prima murcha. —
Quero dizer… ele deve se sentir lisonjeado. Você é uma moça
bonita, Val. Só que Alessio… — Não quero magoar os sentimentos
dela mencionando a preferência de nosso primo por mia frattela.
— Nada disso importa hoje, Val. Hoje é a noite da
Francesca — Michela intervém, salvando novamente o coração da
prima. — Venha, vamos ficar prontas.
Elas se levantam e então posso vê-las, ambas estão
exuberantes em seus vestidos na cor magenta, similar ao meu
modelo, porém, sem os apliques de renda.
Os modelos da minha amiga e irmã, possuíam a saia de tule
rodada, o corpete justo ao corpo com o tule circulando a região do
peito e formando mangas curtas, expondo os ombros. Eram
delicados, porém a cintura bem ajustada, dava a entender que já
havíamos ultrapassado a fase de menina para mulher, como essa
festa queria dizer.
Não éramos mais crianças, mas sim, candidatas para
esposas dos futuros homens feitos. Mulheres puras, castas,
inteligentes, porém com seu futuro restrito à vontade daqueles que
nos levariam ao altar.
Quando era criança, costumava fantasiar em ser a esposa
perfeita como mammina. Ela sempre foi uma mulher forte e papà a
trata como uma regina[76]. Signore Zanchetta pode ser considerado
um homem cruel nas ruas, porém nunca foi com nenhuma de nós.
Ele ama mammina. É possível ver isso na forma com que a trata,
diferente de muitos Caporegimes.
Acredito que se mammina quisesse a lua, papà lhe daria.
Espero que possa me apaixonar por meu marido da mesma forma.
Em uma noite, pude ouvir papà declarar seu amor
explicitamente para mammina. Eles pensavam que estava
dormindo. As palavras eram tão doces que tive meu coração
preenchido por todo aquele amor.
Meus pais não se apaixonaram da noite para o dia. Foi um
casamento arranjado como todos os que acontecem na famiglia,
porém, eles escolheram o que poucos costumavam fazer e
decidiram se conhecer aos poucos. Acabaram encontrando muito
mais do que respeito, mas sim, amor.
E por isso, ainda tenho esperanças. Se meus pais se
apaixonaram perdidamente após o casamento. Eu também tinha
essa chance.
Lutei por um ano para sobreviver contra uma doença que
havia levado minhas esperanças em ter o dia seguinte de vida. Hoje
eu tenho o dia, a noite, a semana, o ano…
Então… por que não voltar a sonhar que terei um amor?
Tudo é tão incerto.
Acredito que papà não definiu nada sobre meu futuro. Posso
inclusive pensar sobre a continuação dos meus estudos, quem
sabe?
Ainda sou muito nova e se ficasse noiva por volta dos 20
anos, poderia curtir minhas amigas como algumas primas fizeram.
Não foram muitas, mas algumas conseguiram cursar alguns anos da
faculdade.
Neste momento, Mammina e papà entram no quarto,
fazendo com que Valentina e Michela diminuam as vozes de sua
conversa acalorada sobre as danças que ocorreriam no decorrer do
baile. Não entendi o motivo da discussão, posto que tudo estava
definido pela cerimonialista.
— Como está bela, piccola — Mammina se aproxima,
beijando minha testa.
— Belíssima, figlia! — papà emenda, pegando minha mão e
depositando um beijo no dorso. — Como se sente?
A pergunta me pega de surpresa e não sei ao certo se ele
está se referindo ao meu estado emocional ou físico. O semblante
de papà parece mais preocupado agora do que hoje no café da
manhã, última vez que o vi antes de ser arrastada para começar a
me arrumar.
— Estou bem, papà… — respondo, com um sorriso para
desanuviar a preocupação que ronda seu rosto.
— Que bom, figlia… que bom… — Ele dá alguns tapinhas
em minha mão e encara Mammina, que pressiona os lábios dando
um aceno. — Antes de irmos, precisamos conversar.
— Venham, meninas, vamos deixar papà falar com
Francesca. — Mammina circula a cintura de Michela e Valentina
arrastando as garotas em meio aos protestos. Sorrio. Acredito que
papà queira me dar aquele sermão dos 15 anos que a Signora
Zanchetta adiantou ontem, antes de virmos para cá.
— Sente-se, mia cara. — Papà me conduz até a beirada da
cama, fazendo-me sentar ao seu lado. Ele segura minhas mãos
entre as suas. Vejo o senhor à minha frente puxar o ar com
sofreguidão e expirar demoradamente, tomando coragem para falar.
É quando percebo que algo está errado. Meu papà mudou
durante meu tratamento. Todos em nossa casa mudaram. A postura
que toma agora é algo que fez algumas vezes para me contar
notícias cujas quais ele mesmo não gostaria de ser o portador.
No entanto, o estrago maior era feito por algo que fugia ao
nosso controle. O que papà não gostava de dizer se resumiam ao
aumento de sessões de quimioterapia, ou até mesmo as vezes que
precisei me esconder e permanecer no quarto escondida. Só que
agora… não havia mais doença. Então…
— O que é papà? O signore está bem? — O silêncio me dá
agonia. — Mammina está bem?
— Sim… sim… Todos estamos bem, bambina. É… Don
Moretto chegou mais cedo, acho que sua mãe contou, não?
Lembro de Mammina entrar no quarto e dizer sobre a
presença do Dom, bem como para evitarmos ir no quarto andar,
destinado a ele e sua família. Nós estávamos logo abaixo, no
terceiro. E como o lugar tinha tantos quartos, não pensei que iria
alterar muito nossa estadia. Além do mais, iremos embora amanhã,
logo após o café da manhã.
Talvez tivéssemos que dividir a refeição matinal com o Don
da Cosa Nostra, porém, nada além de algo que já não tivéssemos
feito no passado.
— Sim… Mammina falou. Mas…
— Ele veio mais cedo por um motivo, figlia. Juro que… —
Papà passa as mãos pelo rosto, deixando-me aflita. — Eu não
sabia… Ah, Tchesca… juro que não sabia. — Signore Zanchetta
levanta-se e começa a caminhar de um lado para o outro no quarto.
Meu coração palpita em antecipação. — E… e não contaria antes,
se o ragazzo não quisesse oficializar durante a festa.
Franzo o cenho, sem entender o que papà está falando.
Estou aflita imaginando que alguém descobriu sobre minha doença
e ele possa estar em perigo. Mas… oficializar? Ragazzo? Não é
isso o que espero…
— Papà… eu… Eu não entendo.
— O Sottocapo Moretto está aqui esta noite, mia figlia.
— Sim. Eu sei. Ele é o filho do Don. Todos os Caporegimes
ligados à nossa família estão aqui, papà. É normal…
— Não — interrompe-me. — Ele está aqui porque
finalmente escolheu a sua noiva — fala com certo amargor. Meu
estômago rodopia de um modo ruim, como há tempos não fazia.
— Ele quer oficializar o noivado em meu aniversário de 15
anos? — Papà concorda com um aceno de cabeça. — Por quê?
— Porque a noiva que escolheu… — Signore Zanchetta
para em minha frente, passando as mãos sobre o rosto antes de
pronunciar as palavras que tiram o meu chão. — É você.
FRANCESCA ZANCHETTA

Pela primeira vez na vida, sinto o som estridente causado


pelo contato do scarpin de salto quadrado e o assoalho de mogno
vibrar cada célula do meu corpo, conforme caminho ao lado de papà
pelo corredor do castelo.
Tudo está passando ao meu redor como um borrão
desfocado. As arandelas penduradas na parede salpicam claridade
ora sim, ora não na imagem retorcida.
Pisco algumas vezes, retomando a nitidez da visão e dos
meus pensamentos.
As últimas palavras que identifiquei de nossa conversa
foram “é você”. Depois disso, meu cérebro entrou em colapso e agi
automaticamente segurando o braço de papà e seguindo-o através
da porta até aqui.
Algo está errado. Eu devo ter ouvido errado…
Não posso ser a noiva de alguém. Ainda mais do futuro Don.
Papà deve ter se confundido e não entendeu direito. Talvez…
— Papà, acho que entendi algo errado. Você disse que
Giulio Moretto escolheu sua noiva, é isso?
— Sim, mia cara. Sim… — Suspira, sem me olhar nos
olhos, tocando minha mão em seu braço.
— Tem certeza de que ele escolheu a mim? Digo… —
Inclino a cabeça, querendo ver seu rosto. — Eu não posso ser a
noiva dele… Ele… ele é o futuro Don e…
— Ele escolheu você, piccola — papà esclarece novamente.
— Disse com todas as letras que escolheu a minha filha mais velha
para o seu pai.
— Mas papà… e se eu…
Signore Zancheta estagna o caminhar e me encara,
segurando meus ombros.
— Você está saudável, figlia. Não há nada de errado com
você e agora será a noiva do futuro Don. — Ele tenta dizer as
palavras de forma dura, no entanto, é palpável sua insegurança.
— Eles podem descobrir que o senhor mentiu, papà… que
me escondeu todo este ano por conta do câncer e… — Engulo em
seco, não querendo imaginar as atrocidades que a famiglia poderia
fazer com o meu papà por esta traição. — E se eu não puder ter
filhos? — Minha voz sai embargada. A ideia de não poder gerar uma
criança não era algo com que eu me preocupasse até receber a
notícia que poderia não acontecer.
— Ninguém sabe ao certo, Tchesca. — Sua voz é mais
branda. — E não se preocupe comigo. Não há traição quando não
há mentiras. Eu não menti.
— Eu passei todo este tempo de castigo, então?
Signore Zanchetta me encara, pressionando os lábios,
enfastiado. Em seguida, balança a cabeça em negativa querendo
nitidamente me dar umas boas palmadas por questionar sua
autoridade.
— Não menti para quem devia realmente saber sobre o seu
estado. — A resposta é tão inesperada quanto a notícia que
provocou a discussão. Abro a boca para argumentar, mas fecho em
seguida, precisando de alguns segundos para absorver o que acabo
de ouvir.
— Don Moretto sabe sobre o câncer? — sibilo, entonando a
voz num tom que confundiria com o vibrato de uma criança.
Novamente, recebo a resposta num menear de cabeça.
Ameaço falar algo, mas meus neurônios brigaram com minhas
cordas vocais e não sou apta a pronunciar nada. Após dado
momento, consigo questionar:
— Se ele sabe que estive doente, por que mesmo assim
permitiu que seu filho me escolhesse?
Papà parece mais cansado em responder meu
questionamento do que revelar a vontade do primogênito dos
Moretto em me desposar.
— Primeiro porque o filho não sabe de nada. Apenas Don
Moretto sabe.
— Mas… — Papà ergue um dedo para que me cale.
— Quando sua saúde exigiu que mantivéssemos você em
resguardo, eu e sua mãe fomos até Palermo. — Vendo que nossa
conversa demoraria mais do que o esperado, papà nos conduz até
um banco vintage deixado no corredor, antes do salão, numa
distância segura para que ninguém nos ouvisse. — Don Moretto
estava desconfiado e eu não podia esconder algo assim. Então,
levei sua Mammina comigo. Eles já foram próximos no passado e
precisava que esta amizade valesse para manter seu segredo a
salvo.
— Eles eram amigos… — concluo mais para mim mesma.
Papà segura uma de minhas mãos.
— Algo do tipo — informa de pronto. — Então, Anunziatta
pediu por você, bambina.
Subo a mão livre sobre a boca, contendo o sobressalto.
Mammina correu risco de sofrer a retaliação do Don por minha
causa? Madonna mia.
— E ele não contou nada a seu filho? — Papà nega com a
cabeça.
— Sua Mammina cobrou alguma dívida que possuía com o
Don e ele fez uma promessa de sangue.
— Dívida?
— Nada que fosse do meu conhecimento e por isso não
deve ser do seu. Saiba apenas que conseguimos manter seu
segredo, pois Don Moretto calou quem deveria.
— E como ele permite que seu filho assuma compromisso
comigo? — Sei que deveria parar de pressionar papà, também sei
que não deveria questionar meu dever. Só que… Se os vecchi
descobrem que o futuro Don irá se casar com alguém que mantém
um segredo como este, a cadeira dos Moretto no conselho estará
em perigo. Meus pais estarão em perigo.
Dio Santo!
— Don Moretto parece não ter culhões para conter seu filho.
E nós… — Papà se levanta, espalmando uma mão para que eu
agarre e o acompanhe. — Temos apenas que seguir conforme a
música, mia cara. Então, você se casará com Giulio Moretto.
Suspiro, segurando-me em papà que se coloca ao meu lado
e me aguarda. Fico em pé, arrumando a saia do vestido para
retomar a direção ao salão de baile.
— Se eu não puder gerar herdeiros, papà… — insisto no
medo que revelaria a farsa que meu clã inventou para todos no
decorrer deste ano.
— Não será a primeira e nem a última mulher nesta famiglia
que não pôde gerar, Tchesca. Isso não é um problema.
Assinto com a cabeça, num movimento pequeno. Não seria
discutindo com papà que mudaria a decisão tomada além da minha
vontade. Dio! Nem ao menos a vontade de papà foi ouvida.
Respiro fundo, pensando numa alternativa.
Até onde sei, Giulio Moretto é um mulherengo que não tem
o mínimo interesse em ser fiel à sua moglie[77], quanto mais a uma
noiva de 15 anos.
Bambola.
O apelido com o qual me chamou naquela noite invade
minha mente de modo atrevido.
Cazzo. Vou pisar em seu pé um milhão de vezes para
mostrar como sou uma bambola.

As luzes do salão focadas diretamente em nós ofuscam


meus olhos, impedindo-me de enxergar as pessoas que nos
aguardam ao pé da escada.
Se não fosse papà a me guiar, teria caído no segundo
degrau.
Prendo a respiração assim que encontro o olhar penetrante
do meu futuro noivo me analisando. Porca miseria. Não podia ser
um pouco feio, pelo menos? Assim, seria muito mais fácil parar de
admirá-lo.
Sigo, colocando a ponta dos pés degrau a degrau. Nunca
uma escada foi tão longa em minha vida. Estou prestes a alcançar o
patamar térreo quando por engano deslizo mais à frente, tombando
o corpo que é suspenso por um braço ao redor de minha cintura.
— Calma, Bambola. Cuidado para não quebrar. — Caspita.
Tinha que ser cheiroso também?
Meu rosto arde com o acúmulo de sangue que sobe,
revelando a vergonha pelo quase tombo. Retomo a postura
rapidamente.
— Obrigada, por me segurar — agradeço, séria. Papà faz
uma mesura, mantendo-me em seu campo de proteção. Aperto seu
braço, querendo que ele caminhe para longe.
— Giulio. Don Moretto. — cumprimenta-os, uma vez que
são os mais próximos dos convidados.
Felizmente, papà me conduz até o centro do salão.
— Está tudo bem, figlia? — papà certifica-se. Em seguida,
eleva nossas mãos unidas, colocando a outra em minha cintura.
Aprumo a posição, seguindo o gesto que vi em tantas ocasiões,
apoiando a mão em seu ombro.
Crianças não dançam nos eventos. Muito menos valsam.
Nós apenas observamos. Porém, hoje eu deixo de ser criança.
Passo a ser vista como mulher… e futura noiva do Capo Moretto.
Cerro as pálpebras, inspirando o ar vagarosamente até
meus pulmões arderem. Seguro por alguns segundos, liberando a
pressão do peito e aguardando a música que mammina escolheu.
Quem diria que mammina faria papà ensaiar comigo o
último mês inteiro para acertar alguns passos. A cantora inicia a
música Skyscraper de Demi Lovato, acompanhada de alguns
instrumentos. Pensei que mammina não ouvia a música que
cantava todos os dias como se estivesse gritando para o câncer que
quase me quebrou de verdade.
Giulio Moretto não sabe, mas não tenho medo da queda,
pois aprendi a me erguer como um arranha-céu.
O som aumenta a batida, dando vazão para a sequência de
versos cantadas em uma voz feminina que escutei e vivenciei no
correr desses meses.
A música alcança seu ápice quando papà me gira,
deixando-me neste instante para Luigi assumir a coreografia. Meu
irmão se posiciona ao meu lado, dando passos curtos, imitando os
meus. Depois, nos enlaçamos com os braços erguidos, virando-os
em uma meia-lua. Sorrio, alegre, feliz… e sou correspondida com o
mesmo sorriso por ele.
Meu aniversário, de fato, é a celebração da minha vida…
vida que não se foi.
O tumor em minha costela roubou-me dias, meses. Fez com
que eu sentisse que não restasse nada de mim. Não me reconhecia
mais. Conforme a música segue, meus pensamentos viajam para os
dias de luta contra o câncer como um filme.
“…Você pode quebrar tudo o que eu sou
Como se eu fosse feita de vidro
Como se eu fosse feita de papel…”
Vejo os primeiros fios de cabelo em meu travesseiro após
algumas sessões da quimio. Depois, as mechas caindo no chão, até
que Michela, usando o barbeador elétrico de papà, raspou minha
cabeça.
“Enquanto a fumaça se dissipa
Eu acordo e desembaraço você de mim
Você se sentiria melhor
Assistindo enquanto eu sangro?
Todas as minhas janelas ainda estão quebradas
Mas eu ainda estou de pé”
As noites que não consegui dormir pelos enjoos que me
faziam vomitar até a exaustão. Tudo passa por minha mente,
seguindo a letra da música.
Luigi eleva-me em seus braços, rodopiando comigo. Eu abro
o peito, recebendo a benção da nova chance. Tambores rugem ao
final, parecendo uma trovoada até cessar de súbito. Então, a
cantora diminui o tom de voz, pronunciando a última estrofe.
“…Vá em frente e tente me derrubar
Eu vou me levantar do chão
Como um arranha-céu
Como um arranha-céu.”
Meu irmão desacelera, colocando-me ao solo e apenas
quando sinto seus polegares roçarem minha bochecha, noto as
lágrimas que rolaram. Todos estão nos aplaudindo. O barulho é
suficiente para estourar a bolha na qual papà e Luigi me colocaram
durante a valsa.
Passo as mãos avidamente para secar meu rosto, com
medo de ter borrado a maquiagem.
— Você está bela, fratella. Não está borrado — Luigi me
tranquiliza. Agradeço pela maquiagem à prova d’água. Mammina
pensou em tudo realmente.
— Tchescaaaa! Foi lindo! — Valentina surge ao meu lado,
abraçando-me. — Como que não me contou sobre a coreografia
ensaiada. E seu papà… — Ela coloca as mãos, apertando as
bochechas. — Nunca imaginei que tio Enrico pudesse ser fofo
assim.
Ela me arrasta para fora do salão, afastando-me do meu
irmão que segue para junto dos amigos e nossos primos. Vejo
Alessio e Dario em ternos completos, sendo que o primeiro está de
azul-marinho e o segundo, preto com risca de giz. Eles acenam e
tento caminhar quando minha irmã se aproxima.
— Papà está longe de ser fofo — Michela contesta. — Ele
arrasou. Mammina disse que ele costumava ser disputado nos
bailes da Famiglia. Só que após o casamento, parou.
— Acho que Luigi irá tomar o posto, então — Valentina
comenta, encarando o local onde os jovens Zanchetta estão.
— Sim, sim… todos foram um arraso, mas a aniversariante
precisa circular e cumprimentar seus convidados — Mammina
interrompe a conversa. — Venha, figlia. Precisamos passar em
algumas mesas.
Faço uma pequena careta, sabendo o que me aguarda.
De imediato ocorre-me que já cumprimentei Don Moretto e
seu filho assim que adentrei ao salão. Então… será que posso pular
sua mesa?
A resposta não demora muito a ser respondida, quando
estou na metade do salão, ainda…
Dio santo! Nem sequer sinto minhas bochechas que se
plastificaram num sorriso de boneca. Irônico, não?
Caso Giulio Moretto quisesse me importunar com o apelido,
a hora é agora. No entanto, seu olhar é avaliativo, indo do pequeno
decote do vestido até meu rosto, mais de uma vez. Ele nem ao
menos dispensa o copo dos lábios enquanto papà e mammina
cumprimentam o Don como mandam os costumes.
Não… O farabutto[78] fita-me descaradamente.
Instintivamente, circulo um braço ao redor da cintura. E,
então, ele sorri sarcástico, notando meu desconforto. Fez de
propósito, o cazzo.
— Sua bambina está muito bela, Enrico — diz Don Moretto.
— Parabéns pela festa. Está esplendorosa — direciona-se à
mammina.
— Grazzie — ela devolve, orgulhosa. Desta vez, meu
sorriso é genuíno por ver Mammina contente pelo elogio. Ela
merece crédito por cada detalhe.
Dou um passo à frente e me faço presente, como fiz nas
mesas passadas.
— Obrigada pela presença, Don Moretto — agradeço
estendendo a mão. Ele a pega e deposita um beijo casto no dorso.
Em seguida, faz um pequeno gesto para seus filhos, que acenam
com a cabeça, como todos os outros ragazzi[79].
É como se minha versão mulher precisasse ser vista à
distância, embora, exibida para possíveis maridos. Aqueles que já
estavam casados me cumprimentavam como o Don da Famiglia.
Giulio retoma sua checagem que agora vai desde os pés até
a cabeça. Tenho a impressão de que ele poderia contar quantos
brilhantes minha tiara possui pela inspeção.
Na sequência, ele fica em pé, fazendo um gesto para seu
pai que balança a cabeça negativamente.
— Melhor fazer o pedido agora do que mais tarde, quando
eu não estarei apto a me comportar — Giulio justifica seu
comportamento para o Don, que após alguns segundos, concorda
pesarosamente.
Papà, no entanto, olha de mim para Don Moretto e para
Giulio, inquieto. Pressiono seu braço apreensiva, pensando o que os
homens à minha frente querem fazer no meio da festa.
— Andiomo. Piero se prontificou em deixar a saleta aqui ao
lado pronta para nós. — Giulio coloca-se ao meu lado, oferecendo o
braço para acompanhá-lo. Fito o olhar de papà, não sabendo como
me portar. Ele meneia a cabeça para que aceite.
Coloco a mão sobre o braço erguido, sentindo o calor do
homem bonito de terno, mesmo que através do tecido. Posso estar
assustada por saber o teor da conversa que se seguirá, mas
confesso que dentre todos os rapazes que fui apresentada até
agora, ninguém me atraiu fisicamente como Giulio Moretto.
Ando, pedindo licença para alguns convidados que nos
abordam enquanto que outros permanecem distantes, receosos
pelo poderio do clã Moretto.
Giulio nos guia para fora do salão em um corredor lateral
onde seu primo Piero nos aguarda com a porta aberta. Ele faz um
gesto para que entre primeiro. Seguro a saia do vestido no intuito de
me locomover melhor pelo batente da porta mais estreita que as
demais.
Papà e Don Moretto surgem logo atrás de mim e a porta é
fechada.
Não estamos tão distantes da festa, sendo possível ouvir a
música e os burburinhos das conversas. Vou até um sofá preto de
couro, sentando-me graciosamente. Coloco as duas mãos em meu
colo e aguardo receber a boa-nova já anunciada por papà antes de
entrar no salão.
— Acredito que seu pai já lhe deixou a par da intenção de
meu filho, signorina — Don Moretto é quem começa o diálogo.
Permaneço encarando meus dedos entrelaçados quando as
palavras pulam sem aviso de minha boca:
— Sim… mas… Deve ser feito justo hoje? — Subo o olhar,
dando de cara com o homem que me quer como noiva bem no dia
do aniversário de 15 anos. Seu rosto até então impassível de
emoções, exibe uma carranca.
— Eu preciso de uma noiva e escolhi você. — Agora é meu
rosto que retorce, ouvindo as palavras.
— O conselho dos Vecchi ainda não sabe de sua decisão —
papà argumenta, tentando dissuadir o Capo de Palermo.
— O conselho exigiu uma noiva — replica de pronto.
— E você escolheu muito bem, figlio — Posso estar
equivocada, porém Don Moretto pareceu-me irônico. — Eles
esperam um casamento o quanto antes e você escolhe uma noiva
com 15 anos. — Realmente, foi irônico.
— Ainda é possível manter o sigilo sobre este assunto e
Giulio escolher outra pessoa — papà tenta novamente.
— Acredito que meus soldatos já ouviram a conversa e não
é mais segredo. Talvez deixar de fazer o pedido implique mais à
honra de sua figlia do que a opinião do conselho. — Estou entre a
admiração pela artimanha do futuro Don e a agonia em ser o objeto
da conversa como se nem ao menos estivesse presente.
Papà puxa a gola da camisa num gesto incomodado. Ele
limpa a garganta e senta-se ao meu lado, segurando minhas mãos
geladas. Ele suspira cansado, nitidamente contrariado por tudo.
— Existem termos a serem discutidos sobre o noivado.
— Como assim? — Giulio ergue as sobrancelhas, confuso.
— Sabemos como funciona o acordo. Nossa palavra é nossa honra.
Papà se direciona para Don Moretto que se senta atrás da
mesa de carvalho. Aqui parece ser um pequeno escritório que serve
para discutir assuntos breves que a famiglia pode vir a ter no
decorrer de uma festa. Quem diria que seria os termos de um
noivado, hum?
O senhor que aparenta uma versão mais velha do meu
futuro noivo empurra alguns papéis na direção de seu filho.
— Francesca irá para a faculdade. Esta é a condição. Então,
não poderá se casar assim que completar 18 anos — Don Moretto
informa e Giulio pega os papéis num rompante de fúria.
Ele analisa, folheando irritado.
— Você assinou isso? — Don Moretto respira fundo, antes
de menear a cabeça entediado. — Eu é quem faço o pedido. Eu é
que devo assinar.
— E eu sou o Don. Essa é minha famiglia. Sem a minha
palavra nada acontece — O senhor espalma a mesa, fazendo-me
pular de susto. Papà aperta meus dedos, sentando-se mais à frente
como se pudesse me proteger.
Giulio rosna e circula de um lado para o outro. Depois,
verifica novamente algo no documento que aparentemente é meu
contrato de venda. Ele pega a caneta e assina, jogando-a sobre a
mesa em seguida.
— Ela poderá ir para a faculdade. Mas eu vou determinar se
terminará ou não — diz vitorioso, encarando meu papà. Em seguida,
sai da saleta batendo a porta às suas costas.
Papà pressiona os lábios, soltando uma expiração pesada.
Ele se levanta pegando os papéis que estão na frente do Don.
— Não pensei nesta possibilidade. Porca miséria. — papà
comenta e devolve o documento para o homem sentado. — Ele é
esperto, Don. Deve se orgulhar disso.
— Eu me orgulho de muitas coisas de Giulio, Zanchetta.
Mas enfurecer o conselho e noivar com uma menina não são uma
delas. — Don Moretto levanta-se, chamando Piero que o aguardava
na porta. Ele entrega os papéis para o sobrinho que guarda em uma
pasta e depois orienta para deixar em seu quarto.
Ainda estou catatônica quando papà se prostra em minha
frente oferecendo a mão. Minhas pálpebras parecem um pisca-
alerta até que eu retorno ao corpo e me levanto desajeitada.
— Não se preocupe, figlia. Temos tempo. Até lá, Giulio pode
mudar de ideia e sua honra não será maculada se soubermos
conduzir a situação — papà tenta me consolar.
Ele agiu rápido para quem descobriu hoje à tarde sobre o
casamento. Talvez não tenha sido ele…
Talvez… Don Moretto tenha apresentado o contrato para
papà e só agora para Giulio.
Não sei. Mas assim que retornamos ao salão me recordo do
momento que estou vivendo e sob as luzes coloridas que dançam
pelo salão construo esperanças para meu futuro.
Consegui sobreviver a um câncer, quando as possibilidades
eram mínimas. Quem sabe tenho sorte de novo e escapo de um
casamento de conveniências?
Não sei… Só sei que agora preciso fugir da mulher que me
deu à luz e que segue ao meu encontro, querendo que eu continue
de mesa em mesa com o sorriso plastificado. Dios mio!
E como um anjo invocado, Valentina aparece novamente do
nada, carregando-me para a pista de dança. Desculpo-me
meneando a mão e ouvindo o resmungar de mammina, dizendo que
haviam mais convidados.
No entanto, papà apazigua os ânimos, dizendo algo em seu
ouvido. Ela concorda com a cabeça e sinto-me menos culpada ao
abandonar a tarefa.
— Vamos aproveitar um pouco sua festa, Tchesca — Val me
chacoalha no ritmo da música, ou naquilo que ela pensa ser. Solto
um riso frouxo com o entusiasmo de minha prima. Michela está logo
ao seu lado. — Você precisa comer o canapé de camarão. Juro.
Está maravilhoso.
Minha irmã concorda mastigando algo. Talvez o dito canapé.
— Você sabe que não precisa cumprimentar a festa inteira,
não é? É só dizer para mammina que está cansada — Michela
aconselha.
— E ela me fazer subir para o quarto? — replico, vendo a
compreensão nos olhos dela. Minha irmã não pensou a respeito
antes de sugerir a ideia. — Vamos dançar e comer. Depois descubro
um meio de despistar a Signora Zanchetta.
— Por sorte te safei da mesa dos Spadotto. Duvido que
você ia querer dizer oi para a ruiva aguada. — Valentina enfia o
dedo na boca, num gesto de nojo.
— Não tenho nada contra ela — digo, pois realmente não
tenho.
— Ela é uma chata que se acha melhor do que os outros.
Inclusive faz bullying com as filhas dos soldatos de seu pai que
estão estudando em Palermo. É como se apenas ela como filha de
um subchefe tivesse direito — minha prima justifica sua aversão à
ragazza. — Você saberia se não tivesse saído da escola.
— Você fala como se eu tivesse escolha.
— Dio santo! Perdonami, cugina[80] — Minha prima parece
arrependida. — Não quis dizer isso, é que essa brutta[81] me deixa
louca. Perdonami.
Dou de ombros. Hoje nada mudaria meu humor. Nada. E
Valentina não tem filtro mesmo.
— Mas parece que Alessio não liga se ela é legal não —
Michela aponta com o queixo.
— Ele não se atreveria — Valentina volta-se para encarar a
cena. — Mas que puto.
— Não esquenta. Ele só quer o que todos os outros
conseguiram. — Michela aguça a fúria de nossa prima.
— Ela… ela tem experiência com homens? — Valentina
engasga com a pergunta.
— Não sei o que ela tem… só ouvi algo na última festa —
Minha irmã revela, mencionando uma das festas que pôde ir durante
meu exílio. Ela nunca me contou nada a respeito, com receio de que
me deixasse triste por estar afastada do mundo. — Seja o que for,
nosso primo irá conseguir.
Vemos Alessio receber a mão de Erica Spadotto,
conduzindo-a para a pista, embora mais afastados de nós. Acredito
ter a impressão de ouvir o ranger dos dentes de Valentina.
— Não olhe, Val — Michela vira o ombro da prima, para que
perca o contato visual. — Eles estão só dançando.
Alguns segundos se passam e ela suspira.
— Queria que ele dançasse comigo — diz cabisbaixa.
— Calma. A festa ainda não acabou — tento animá-la.
— Isso mesmo. Não acabou — Michela pega a minha mão e
de minha prima e começa a balançar no ritmo da música que
começou em algum momento. Sorrimos.
Valentina parece esquecer de sua obsessão e eu… Bom,
queria me divertir o máximo que pudesse esta noite, já que meu
futuro foi traçado e não sei a que horas seria requisitada para ouvir
as palavras que consagrarão meu destino.
FRANCESCA ZANCHETTA

A festa terminou sem maiores acontecimentos. Ora ou outra,


disfarçadamente, chequei meu futuro noivo que em momento algum
dispendeu nova atenção sobre mim. Estranho.
Mais estranho ainda foi que papà não requisitou minha
presença para oficializar a promessa de matrimônio.
Eu me diverti horrores ao ver alguns capos e tenentes
beberem além da conta tornando-os espetáculo para boas risadas,
o que ocorria todas as vezes que tentavam se locomover.
Alessio não dançou com Valentina, mas sim com Michela
que mirou nossa prima com pesar. Tenho para mim que ela falou
algo para nosso primo, tentando persuadi-lo. Porém, sem efeito.
Quanto à ragazza Spadotto, ela sumia vez ou outra do salão
ao mesmo tempo que alguns rapazes. Infelizmente, Luigi foi um
deles. Fiquei apreensiva, porém Valentina me distraiu tagarelando
sobre os doces e como gostaria de experimentar mais do
champagne que nos foi servido na hora do brinde.
Tenho para mim que minha prima um dia me dará trabalho
quanto à bebedeira.
Em dado momento, pedi para me retirar, pois não aguentava
mais meus pés. Michela e Valentina vieram comigo para o piso dos
aposentos. Teríamos mais uma noite no Castelo Tirrena, antes de
retornar para casa.
Dormi por algumas horas e acordei antes do alvorecer.
Estou olhando a noite através da fresta das cortinas. Sento-me na
cama e pego a pequena moringa d’água, dando conta de que está
vazia. Droga.
Acredito ter visto um aparador com bebedouro no caminho
até o quarto. Mas está bem próximo da escada. Pego o aparelho
celular que indica ser cinco da manhã. Será que ainda tem alguém
por aqui?
Minha festa começou às sete da noite e agora já são cinco
da manhã. Não deve ter ninguém acordado, não é?
Não sei. Nunca pude ver quando Luigi voltava para casa dos
eventos que costumavam ultrapassar o horário de dormir. E não
pude frequentar outras festas de 15 anos até agora por estar
afastada.
Suspiro, virando o corpo de barriga para cima. Não consigo
dormir, e com sede, não vou dormir mesmo.
Desço da cama e visto o penhoar de cetim branco deixado
na cadeira em frente à penteadeira do quarto. Em seguida, caminho
na ponta dos pés. A porta antiga range mais alto do que esperava. A
ausência de barulho parece ser um moderador de volume durante a
madrugada silenciosa.
Aperto as pálpebras no intuito do ato diminuir o som que
segue. É… não tenho superpoderes para isso.
Consigo abrir um espaço suficiente para passar e seguir em
direção à escadaria. Caminho, observando com mais afinco as
laterais do corredor em busca do aparador com a jarra d’água.
Então… finalmente o encontro.
Sirvo-me num dos cálices dispostos ao lado, bebendo até
sentir meu estômago estufar com o líquido. Quando estou saciada,
verifico uma bandeja com diversas frutas.
Não estou com fome, mas as uvas parecem suculentas.
Então, apanho um dos cachos com a ideia de comer no caminho de
volta ao quarto. Viro-me distraída para o corredor, esbarrando em
algo que tira meu equilíbrio. Sou impulsionada para frente de modo
que vejo o solo a centímetros de distância.
É agora que quebro a cara de vez, penso. Entretanto, sou
içada por braços que parecem criar o hábito de me agarrar evitando
meu encontro ao solo.
— Calma, Bambola. Ou vai se machucar. — A voz rouca e
aveludada assopra a lateral do meu rosto, causando calafrios
estranhos que mais aquecem do que esfriam meu interior.
Pisco algumas vezes, tentando entender a confusão
momentânea dos meus sentidos. Primeiro, senti pânico pela queda,
depois, o calor em minhas costas serviu de conforto. Na sequência,
o sopro das palavras em meu cangote eriçou cada pelo do meu
corpo.
Nunca fui rápida para identificar o que preciso fazer quando
sou surpreendida. Portanto, demoro mais que o habitual para me
afastar de Giulio.
— De-desculpa… e-eu só queria beber água e… —
gaguejo, nervosa. Não consigo subir o olhar para o encarar, mas
sinto sua presença em meu espaço pessoal.
Afasto-me, abraçando-me na sequência, vendo o cacho de
uvas caído. Ele agacha-se e pega as frutas, entrando em meu
campo de visão. Sou bombardeada pela vergonha que aquece meu
rosto.
Madonna mia! Como ele é bonito.
Olho para os lados, sabendo que não posso ficar na
presença de um homem sem uma dama de companhia. Maledette
tradizioni. [82]
A agonia em ter que explicar algo para papà toma conta de
mim e meu olhar se torna frenético, buscando alguma saída.
Caspita! Eu estava com sede e… minha atenção se fecha no rosto
másculo que me observa. Como se entendesse meus pensamentos,
o cazzo sorri enviesado.
— Está com medo de que sua honra seja maculada,
Bambola? — diz, zombeteiro, dando um passo à frente. — Ainda
mais agora que é mulher perante a Famiglia?
As indagações denotam o seu poder em ler mentes,
inclusive a minha. Madonna mia!
— Nã-não é isso — gaguejo, dando um passo para trás. —
Sinto muito pelo esbarrão é que… — Giulio inclina o corpo alto
sobre mim e sinto-me encurralada por sua sombra. Encolho-me
automaticamente.
— Está com medo, Bambola? — Ele coloca uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha, roçando as pontas dos dedos na
curvatura. Por um momento, esqueço-me que os fios sobre minha
cabeça são de uma peruca. Queria que ele sentisse os meus. — O
medo pode ser usado de várias formas, sabia? Serve tanto para
tortura como para o prazer.
Seu hálito em meu rosto indica quão próximo está. Não vejo
nada, porque fechei os olhos.
— Não posso ter medo do desconhecido — respondo, tão
baixo que não sei se me ouviu.
— Você quer conhecer? — Não respondo. — Ah… sim.
Você quer sim, mia Bambola. — Os dedos deslizam num toque sútil
em meu antebraço. Meu peito se eleva inconscientemente de
encontro ao dele. Neste instante, puxo o ar com força, descobrindo
que até então não respirava. Dio mio…
Arrisco-me e abro os olhos, encarando o demone[83]
sorridente. Seu olhar divertido indica que está brincando comigo.
— Pare de se divertir às minhas custas — acuso-o num
fiapo de voz, minha reação sendo um reflexo de defesa. Consigo ver
o instante em que sua percepção se torna algo além… Curiosidade,
talvez?
Ele não esperava que pudesse contra-atacar. Não sei
quanto tempo passa até que o homem de cabelos escuros volta a
sorrir de modo ameaçador para alguém como eu.
— Acho que você não entendeu, Bambola. Mas vou
refrescar sua memória: não é você quem dá ordens por aqui… —
sussurra, provocando arrepios e fazendo com que o chão balance
como gelatina, ou simplesmente minhas pernas perderam a
capacidade de ficarem firmes.
Não demora para meu cérebro voltar a trabalhar,
concentrando-se no conteúdo das palavras e não na forma com que
foram pronunciadas.
— Eu posso ser sua noiva, Giulio Moretto. Mas não sou um
ser inanimado. Eu penso, respiro e tenho sonhos.
— Você tem sonhos… — repete para si, refletindo sobre o
assunto. — E quais são seus sonhos, Bambola?
— Sou nova, tenho uma vida inteira para sonhar com muitas
coisas.
Ele expira o riso mordaz, desdenhando de minhas palavras.
— Se não percebeu ainda, ragazza, você é uma filha da
máfia. Sua vida está traçada desde o nascimento. Seus sonhos
estão ligados ao homem com quem irá se casar,
independentemente de qualquer contrato — Ergue uma sobrancelha
em desafio. — E este homem pode não ser tão piedoso com os
seus sonhos.
— Posso sonhar até entrar na faculdade — aponto os
termos exigidos por papà.
Minha teimosia não parece diverti-lo mais, já que coloca
ambas as mãos na parede sobre minha cabeça. Empurro minhas
costas numa pressão intensa, sentindo a dureza nas escápulas.
Gostaria muito de encontrar alguma passagem secreta para meu
corpo sair da jaula de seus braços.
— O que acontece se uma moça é encontrada sozinha com
um homem, Bambola, hum? Será que sua honra maculada a fará
esperar até a faculdade? — Sinto a respiração quente em meus
lábios, fazendo-me agir no automático, lambendo o lábio inferior.
Porca miséria! O que estou fazendo?
Os olhos penetrantes de obsidiana seguem o movimento
lentamente, retomando aos poucos sua atenção até meu olhar.
— Não é isso que desvirtua uma moça.
— Não? — indaga de modo irônico, com os lábios curvados
naquele sorriso que hipnotiza qualquer pessoa com um mínimo de
atração para o sexo masculino. — E o que seria então, Bambola?
A suave brisa causada por seu hálito em meus lábios causa
um frisson que desce até a base da espinha. Sei muito bem o que
acontece entre um homem e uma mulher, e reconheço o desejo que
aflora em meu cerne. Sou uma adolescente que assiste romances e
no último ano devo ter zerado os doramas da Netflix.
Nada que senti ao assistir as interações na tela da TV se
compara com a sensação do momento. Cada pelinho do meu corpo
está eriçado como se fosse metal sendo atraído por um ímã, contido
por uma força tênue que é a minha razão.
Não posso ceder aos caprichos do homem leviano que não
possui uma gota de discernimento acerca da minha minoridade.
Caspita! Este homem quebra todas as leis da sociedade
todos os dias, o que é seduzir uma garota que perante os olhos da
máfia é uma mulher?
É assim que ele me vê?
Não possuo traços infantis há mais de três anos, afinal.
Decerto, seja por isso que não cogitou a ideia.
Giulio Moretto segue as regras que são impostas por uma
sociedade em particular. E esta chama-se Cosa Nostra.
Prendo a respiração no exato instante que sinto o roçar de
seus lábios em minha boca. Dio santo! Ele realmente irá me beijar?
— Respira, Bambola — sussurra, arrepiando até o último fio
de cabelo. Solto o ar, sentindo meu corpo baixar aos poucos. — Boa
menina.
Abro os olhos e vejo-o com a cabeça inclinada, na mesma
posição sobre mim. Seus lábios tocam os meus novamente, tão
suaves que mais parece uma pluma deslizando de um lado para o
outro.
Minha boca se entreabre e Giulio suga o lábio inferior.
Nossos olhos não se fecham. Ele mantém a leve carícia, passando
para o lábio superior numa sucção demorada. Não contenho a
vontade de seguir o movimento, aceitando, por fim, o beijo.
Sinto apenas o toque dos lábios sobre os meus que causam
uma euforia ignota para mim. São apenas três toques, mas o
suficiente para bagunçar de vez minha cabeça. Não identifico sua
mão percorrer meu ombro até minha nuca e antes que seus dedos
engalfinhem os fios da peruca, empurro-o abruptamente.
Oddio! Por pouco ele não descobre que esse cabelo não é
meu.
Como Giulio não esperava a reação, consegui movê-lo para
trás e escapar do seu agarre, tropeçando em meus pés para a
lateral.
O riso que ele solta percorre cada célula do meu ser. Fico
envergonhada por estar tão exposta e não ter conseguido impedi-lo.
Santa madona! Se alguém nos visse.
— Você me beijou… — digo baixinho, assustada com a
ousadia. Giulio me fita, com um sorriso pretencioso. — Por que fez
isso?
— Isso não é um beijo, Bambola — afirma, tocando os
próprios lábios. — Só queria sentir seu gosto. — Ele escora um
ombro na parede, cruzando os braços sobre o peito. — Vou esperar
você pedir.
— Eu não vou pedir… — sussurro. Giulio inclina a cabeça,
com um sorriso travesso. Em seguida, afasta-se da parede e
começa a caminhar rumo à escada.
— Vamos ver, Bambola. Vamos ver. — E some, conforme
seus passos sobem para o piso superior.
Permaneço alguns segundos ponderando o que aconteceu.
Ele parecia irado no momento da festa quando exigiu minha mão
em casamento. Agora ele me seduz, tocando meus lábios com a
boca.
Giulio Moretto é perigoso. Perigoso demais para minha
sanidade, e pior… para meu coração.
GIULIO MORETTO

Deslizo as pontas dos dedos pela curvatura da cintura até o


quadril da mulher deitada em minha cama. Os cabelos num tom de
castanho amendoado parecem errados. O movimento dos fios
desenhados no travesseiro também não são os mesmos que até há
pouco estava em meu sonho.
Flashes da noite passada surgem em minha mente ora
olhos num tom de verde único me encaravam, ora olhos verdes
comuns. As imagens se intercalavam no momento de euforia
causado pela bebida e o oásis.
Não deveria ter experimentado a droga que vendemos,
muito menos misturá-la com uísque. No entanto, assim que a
morena dormindo ao meu lado colocou os pés no Pub em que
estava com Fausto e Donatto engoli o comprimido que jazia em um
dos meus bolsos.
Por que carregava comigo algo do tipo é outra incógnita que
ainda não tenho resposta. Minhas atitudes nos últimos dias têm sido
estranhas até para mim.
Preciso foder alguém que não tenha pele alva, cabelos
castanhos e olhos verdes. Talvez assim diminua a obsessão que
criei após aquela maleddetta festa de 15 anos.
Esperava firmar o noivado, mesmo que ainda entre mim e o
pai da noiva. Porém, não imaginava que meu pai surgisse com
aquele contrato. Don Moretto agiu de modo a evitar
questionamentos, dando a entender que a conduta havia partido de
Enrico Zanchetta. Mas eu sei mais do que isso.
O homem não teria tempo suficiente para defender a filha
com termos que postergassem o noivado para além dos 18 anos.
Não… Ele soube apenas naquela tarde. Pedir a mão da Bambola
durante a festa foi proposital para evitar o contra-ataque.
Don Moretto teve um dia para pensar, no entanto. Um dia
para redigir às pressas a merda de um contrato de noivado. Bufo,
dando algumas batidinhas no traseiro redondo exposto para mim.
— Acorda, bella. Andare — digo, depositando um pequeno
beijo no ombro da ragazza. Sempre fui carinhoso com minhas
parceiras, independentemente se teria ou não outra noite de sexo.
Gosto da forma que me encaram, dominadas de corpo e
alma. Sou um cafajeste ao ponto de me envaidecer com as
conquistas. Mas para amenizar minha culpa, nenhuma caiu no
desconhecido.
Elas se entregam de bom grado. Eu as idolatro e venero na
cama, fazendo com que se sintam benquistas. No entanto, sabem
que não podem esperar um compromisso, muito menos
exclusividade.
A morena se espreguiça, virando o tronco para mim e
revelando os seios fartos. Esses, pelo menos, não estão tão errados
assim. Dou um chupão no bico eriçado, ouvindo um gemido em
resposta. Minha ideia era dispensá-la, chamando um táxi o quanto
antes, mas meu pau dolorido de tesão reclama por atenção.
Mordo a carne acima da aréola, sugando em seguida com
força. Deixo uma marca e mordisco ao redor. A ragazza se contorce,
levando uma mão entre as pernas.
— Não — determino. Ela sorri safada e obedece. Retomo a
tortura intercalando os bicos dos seios até senti-los durinhos em
minha língua. Em seguida, encapo meu pau com a camisinha
disposta na mesinha de cabeceira. — De quatro, donna. Arrebita
bem a bunda até eu ver você toda.
A ragazza segue meu comando, expondo seu sexo melado
de excitação. Não contenho o sorriso que sobe no canto da boca ao
constatar meu feito. Pincelo o quadro em minha frente com a
cabeça do pau, que vai do clitóris até o buraco enrugado. Chupo o
polegar e preencho o aro proibido ao mesmo tempo em que me
afundo na boceta quente. Ela me engole até o talo, emitindo um
grito abafado no colchão.
Seguro seu quadril com a mão livre e arremeto sem dó e
com força, sentindo a safada apertar meu pau e o polegar ao
mesmo tempo.
— Ah, Giulio… eu vou… ah… gozar. — Quando ouço meu
nome sair de sua boca é que me dou conta que nem sequer sei o
seu.
— Goza, cara mia. Goza agora. — Dou outras estocadas
mais fortes, sentindo o prazer da ragazza atingir seu ápice, quando
deixo-me ir pelo mesmo caminho.
Ela deita, levando-me consigo. Jogo o corpo para o lado,
não querendo esmagá-la com meu peso. Minutos depois, retomo a
fala de antes.
— Devi andare, cara mia. Eu tenho muito trabalho e não
posso cuidar de você.
— Você já cuidou — devolve, levantando-se e seguindo
para o banheiro. Dez minutos depois, a morena aparece vestida em
minha frente.
Visto-me com um roupão e conduzo-a até a entrada da
cobertura, onde oriento um dos meus soldatos a acompanharem a
garota até em casa. Depois, vou para o quarto tomar banho e me
arrumar.
A reunião do conselho para noticiar meu noivado
aconteceria nesta manhã e por mais que fosse o noivo, não podia
me atrasar.

Uma hora depois, eu estava diante da sala de reuniões da


Cosa Nostra na mansão Moretto, com meus irmãos e primos do
meu lado. Empurro as portas duplas, seguindo o impulso do
caminhar, chamando a atenção de alguns vecchios desavisados que
não ouviram os passos no assoalho de mogno.
O motivo do espanto é que não estou sozinho. Porém, pedi
para Don Moretto convocar além dos subchefes, alguns capos das
comunas próximas, com intuito de propagar a informação do meu
noivado mais rápido.
Sigo para a mesa central, ocupando a cadeira dentre as dez
de prestígio, compostas pelos subchefes e o Don.
Tio Marcelino, seu Consiglieri, ocupa uma cadeira na lateral
de meu pai, mas não próximo à mesa. O lugar indica a intenção real
de sua função, dar conselhos apenas para Don Moretto ouvir.
Meus irmãos e primos se dirigem para os assentos que
ficam na lateral, um degrau abaixo.
Todos agora atentos aos meus movimentos. Assimilo a
presença dos membros, inclusive de meu futuro sogro, sentado à
minha frente, ocupando o lado esquerdo de meu pai.
Reparo ainda que seu filho, Luigi, meu futuro cunhado, me
observa de uma das cadeiras no piso inferior. O infeliz deveria sorrir,
pois junto com meu noivado foi negociado seu cargo para tenente.
O primogênito dos Zanchetta finalmente deixava de ser apenas um
Soldato.
— Minha vontade impera… — Don Moretto proclama o
início da reunião.
— Enquanto a famiglia prospera. — A assembleia responde
em uníssono.
— Muito bem… Todos estão presentes. Andiamo começar
— mio padre continua, escorando as costas no espaldar da cadeira.
— Vocês sabem que meu filho atingiu a idade para escolher sua
sposa e votaram para que sua manutenção no cargo de Sottocapo
fosse condicionada à indicação de um nome.
É muito difícil manter o semblante neutro quando tenho
vontade de matar metade dos ocupantes das cadeiras nessa mesa.
Ainda mais sabendo que tal exigência era no intuito de se colocarem
em meu lugar.
— Ele não escolheu ninguém e já passou mais de um ano
— Renzo Silvestri, Caporegime da província de Siracusa recrimina.
— Fico feliz que saiba a data do meu aniversário, Renzo —
replico com sarcasmo. — Mas seria interessante esperar que meu
pai terminasse e que tenha a palavra.
O homem de meia-idade com olhos acinzentados e cabelos
grisalhos resmunga algum palavrão, que desconsidero. Após a
morte de sua esposa e filha numa emboscada à sua própria casa,
tenho deixado passar alguns dos seus insultos. Não sei até quando
conseguirei ser benevolente.
— Ele escolheu. E esta reunião, além da pauta a seguir, tem
como objetivo a revelação de sua prometida.
— Mas como um noivado foi firmado sem observância dos
costumes? Quando ocorreu a festa e troca de alianças que ninguém
foi convidado? — Agora é Germano Vacchio, capo de Ragusa que
intervém. Será que fizeram amizade por serem vizinhos? Porra.
— O noivado não será anunciado enquanto a sposa não
completar 18 anos — Enrico Zanchetta resolve responder.
— A noiva prometida do meu filho é Francesca Zanchetta e
você estava em sua festa de 15 anos, Germano. Acredito que
inclusive comeu bolo suficiente por todos nós — meu pai alfineta. —
Como todos sabemos, nossa tradição também impera para que
mantenhamos a discrição até que a moça possa aparecer
compromissada sem alarde fora da famiglia.
Um sonoro som de concordância reverbera a sala, dando a
entender que os vecchi compreenderam a ausência de festa de
noivado.
Ele podia ter escolhido uma moça com idade certa.
Fez de propósito.
A menina Zanchetta é uma das mais belas. Talvez sua
intenção não seja para tardar o casamento.
A seguir, surgem comentários dos mais diversos numa
nuvem de burburinhos. Vejo tio Marcelino comentar algo no ouvido
de mio padre que meneia a cabeça em concordância antes de agir.
— Zitto[84]. — O som da palma de Don Moretto no tampão da
mesa de carvalho silencia a todos. — A escolha foi feita. Existe a
promessa de noivado cumprindo a exigência do cargo. Assim que a
moça alcançar a data será anunciado na mídia e meu filho irá
determinar quando irá se casar. No mais, temos outros assuntos
para discutir.
Deveras, os assuntos para esta pauta estavam acumulados
devido a alguns eventos de caridade das Signore[85] da Famiglia,
bem como o aniversário de minha noiva. Então, retardá-los era
burrice.
Primeiro precisávamos determinar a equipe de busca de um
dos navios graneleiros[86] de Nino Basile, Capo da Província de
Trapani. A embarcação era de meio porte e a carga transportava
insumos para a indústria alimentícia. Não havia qualquer fator que
nos colocasse em risco, sendo esta totalmente vinculada às
empresas Moretto.
Um navio perdido prejudicava e muito o grupo empresarial
que mantém a fachada na qual nos escondemos, e estimula novos
saques de piratas vinculados às máfias concorrentes.
A questão maior refletia-se na disputa de poder e proteção
regional. Assim, colocar homens capazes de localizar um navio
desaparecido era sim um dos assuntos mais importantes a serem
resolvidos.
Não devia apreciar a dificuldade enfrentada por um membro
da Famiglia. No entanto, outras regiões apresentando problemas
retirava o foco da minha, que até então, não havíamos encontrado o
culpado.
Mesmo que minhas perdas fossem bem menores no tocante
à quantidade de container, a carga contida era mais valiosa do que
a constante no Navio do Capo de Trapani. A perda do navio como
um todo sim, refletia o valor.
Até porque eu mantinha o navio Alexandro vinculado a mim,
e caso nossa mercadoria caísse na fiscalização da Europol que nos
últimos tempos parecia um gavião sobre a carniça, teria muitos
problemas.
Todos nós possuíamos alguns navios de meio e pequeno
porte em nome de outras pessoas para despistar o comércio ilegal
de armas e o tráfico de drogas. As cargas maiores eram mais fáceis
de entrar no território no meio de outros containers.
A travessia terrestre pelo cabo de Messina costuma ser uma
das nossas principais rotas, mas não a única. Por este motivo, o clã
Zanchetta possui tanto poder dentro da Cosa Nostra. O território que
não passa de mãos há décadas, como a cadeira de Don não sai do
clã Moretto, confere ao pai de minha sposa certo prestígio.
A influência dos nove Caporegimes se aufere da mesma
forma que muitas empresas. A quantidade de comunas em suas
regiões reflete exatamente isso. Maior o número de habitantes,
maior o número de comércios que dependem da nossa proteção,
maior o número de fregueses em nossas boates, maior o número de
consumidores dos nossos produtos, consequentemente, maior
poder.
O Don da Cosa Nostra permanece na capital como todo
governante em seu império e assim segue a sede empresarial que
abarca mais de 50 navios cargueiros.
— Agora vamos verificar os dividendos do trimestre e depois
votar sobre a entrada do novo acionista do Grupo Moretto, Viccenzo
Pascale. Va benne?
Os ânimos estão alterados quando meu celular vibra
indicando a notificação de uma mensagem de texto. Costumo
verificar após o término de cada reunião, mas não estava com
disposição para ouvir papà enfatizar sobre as vantagens em aceitar
o investimento do meu zio por parte de mãe. Por isso, saco o
telefone do bolso, franzindo o cenho ao notar tratar-se de uma
mensagem com os dizeres URGENTE de Venon.
Dou dois tapas sobre a mesa, que indicam o gesto de saída
por motivos maiores da reunião e sigo para a saída, fazendo um
gesto para mios fratelli e cuginos, Piero e Donatto.
Porca miseria.
Para Venon enviar uma mensagem significa uma grande
merda. Ainda mais com a palavra URGENTE, a merda deve ser
imensa.
Durante o dia, a visão de cinco homens caminhando
apressados na plataforma do cais é muito mais pitoresca em meio
aos marinheiros, do que de madrugada, quando realmente costumo
vir a trabalho. Ainda mais quando três deles vestem ternos
completos.
Minha aparência e de meus irmãos se confundem, salvo
Maximus que odeia vestir terno, mantendo a jaqueta de couro e
jeans rasgados. As roupas de bad boy da década de oitenta ainda
causam impacto em boa parte da população feminina.
Donatto não segue o padrão de ternos completos, mantendo
a calça jeans e um blazer, o que se contrapõe totalmente com os
ternos completos de três peças vestidos por mim e Piero.
Felizmente, nesta plataforma em particular, os marinheiros
locais estão acostumados com nossa presença. Minha atenção está
voltada para o caminho a seguir quando contornamos um iate e dois
navios de pesca até alcançar o pequeno navio cargueiro, que está
ancorado enquanto um guindaste manuseia os containers para fora.
Avisto Venon conversando com Magda que gesticula
fervorosamente. Meu corsário não parece contente e por incrível
que pareça, meneia a cabeça constantemente para as afirmações
da mulher exaltada à sua frente.
Eles notam nossa chegada e logo começam a caminhar em
nossa direção.
— Santa Madonna! Pensei que não chegariam nunca —
Magda exalta.
— Não sabia que estava com tanta saudade — Maximus
brinca, recebendo uma carranca da minha navegadora. Ele apenas
sorri maroto.
— Temos que agir logo. Aquela ragazza da Europol
apareceu mais cedo. Ela não encontrou nada. Mas, nós
encontramos algo — Venon informa, deixando-me apreensivo.
— Do que está falando, stronzo? — pergunto, odiando
receber a notícia à prestação.
— É melhor você ver com seus próprios olhos. — Os dois
vão à nossa frente, indicando o caminho a seguir. Passamos por
pilhas e pilhas de containers.
A cerca de 200 metros, entramos em um corredor formado
pelas caixas metálicas, Magda pega um molho de chaves e vai até
uma delas que possui não apenas a trava baixada, mas um
cadeado. Ela destrava e Venon ergue a tranca, abrindo a porta só
depois de verificar se apenas nós estamos ali.
— Olha — ele abre apenas uma fresta. Minhas
sobrancelhas se unem em dúvida. Passo pelo vão, ajustando os
olhos à pouca claridade que ilumina o interior do container.
Consigo enxergar algumas sacas de estopa, provavelmente
café ou outro produto alimentício. Pressiono as pálpebras um pouco
mais ao notar certo movimento na lateral esquerda, mais ao fundo.
Pisco e é então que o formato de sapatos gastos se movimenta.
Que porra é essa?
Cinco mulheres estão abraçadas, uma delas com um
vestido e as outras de calças, que não dá para saber o material de
tão sujas que estão.
— Porcatroia! — xingo baixo, pressionando o maxilar para
conter a fúria ao ver o medo nos olhos daquelas criaturas. Fausto e
Maximus entram na sequência, resmungando palavrões. Saio do
container em busca de respostas. — Em que navio chegaram? —
indago Venon, que mantém a calma diante do absurdo.
Somos criminosos. Traficamos drogas e armas, mas papà
impôs alguns limites quando assumiu. E tráfico humano era um
deles. Independentemente se o destino das pessoas fosse para
encontrar condições melhores, fosse para o que a realidade impera,
como a prostituição. O medo gritando no olhar das ragazze, que
ainda permaneciam na escuridão, indica a última opção.
— O que devemos fazer, Capo? — Piero se aproxima,
demonstrando estar a par. Magda deve ter se adiantado.
Passo uma mão sobre o rosto. Depois encaro a todos.
— De onde são?
— Paquistão — Magda responde. — Receberam a velha
promessa de chegar a outras terras para trabalho. Foram enfiadas
no container na Líbia, onde tiraram as malas e os passaportes
delas.
— Você fala a língua delas? — Maximus indaga com
admiração.
— Falo mais de 10 idiomas. Urdu é um deles — responde
seca. Magda não é minha Navegadora à toa.
— Informe as moças que elas serão encaminhadas de volta
para casa — direciono o comando à Magda. — Piero, leve-as para a
casa em Valledolmo. Vou avisar o tenente sobre a visita enquanto
aguardamos novos documentos. — Fausto…
— Vou acessar todas as informações dos navios que
chegaram da Líbia e descobrir quem enfiou este container dentre os
nossos — devolve antes que eu precise falar. Aceno.
— E quanto à policial? — Venon lembra.
— Ela está ocupada agora — Maximus responde mexendo
no celular. — Parece que teve uma apreensão de armamento
pesado na região da Calabria. Vamos ficar fora do seu radar por
enquanto.
Não faço a mínima ideia de como meu irmão caçula
conseguiu essa informação. Não importa. Resigno-me, neste
momento, em ser prático e saber que a ‘Ndrangheta está no radar
da Europol, dando-nos tempo para resolver a bagunça que
causaram em meu porto.
Tenho a leve impressão que estamos no começo de uma
guerra. Basta descobrir se o inimigo está dentro ou fora do nosso
território.
FRANCESCA ZANCHETTA
17 ANOS DE IDADE

O barulho da porta batendo no andar de baixo indica que


papà e Luigi chegaram da rua. Retorço meus dedos frios, que suam
com o nervosismo de antecipação. Ele não vai deixar. Repeti
diversas vezes para Valentina essa frase, não querendo passar pelo
momento de frustração que me aguarda.
Se você não pedir, eu mesma peço. Imaginar minha prima
enfrentando papà e recebendo outros castigos do tio Esposito foram
os motivos que me fizeram prometer a ela que tentaria.
Tentaria. Não significa que irei conseguir.
A garota é teimosa demais e não tinha medo de enfrentar
quaisquer surras de seu pai se fosse para me arrastar para algum
lugar no qual julgasse normal para nossa idade.
Normal… Como se nossas vidas fossem normais.
Suspiro, recordando-me das feridas que descobri por acaso
nas costas de minha prima na noite seguinte que ela conseguiu que
fôssemos ao cinema.
Valentina enfrentou papà de igual para igual, e me lembro
quando mencionou ao tio Esposito num falso tom de apreensão o
quanto sua filha era impertinente. No entanto, conseguimos ir em
minha primeira sessão de cinema no período noturno. Infelizmente,
às custas de algumas marcas nas costas da ragazza.
Papà nunca soube e Valentina me implorou para guardar
segredo. Comentou que só pioraria as coisas e ela era forte. Chorei
por minha cugina e passei a ver meu tio com outros olhos. Sempre
soube que algo estava errado, ainda mais quando a Signora
Esposito aparecia mais vezes de vestidos de mangas compridas
mesmo sob o calor intenso.
Dio Santo! Algo precisava ser feito. O que eu podia fazer
então era enfrentar minhas batalhas para sair com nossas amigas,
sem que Valentina fosse repreendida por seu pai por enfrentar o
Capo de Messina.
Pedir tais regalias para papà não era algo tão difícil, afinal.
Algumas mudanças se seguiram no decorrer dos anos após minha
festa de 15 anos. Retomar os estudos junto a uma escola
convencional foi uma delas. Não que me importasse em voltar a
frequentar as aulas fora de casa. Mas o brilho nos olhos de Michela
me fez repensar o meu comodismo.
Ademais, a promessa de noivado fez com que nossa
segurança aumentasse, posto que além dos soldatos do clã
Zanchetta, alguns sob o comando direto de Giulio Moretto passaram
a nos seguir.
Em razão disso, papà sentia-se mais seguro. Sem contar
que minha saúde deixou de ser um problema que evitasse a
frequência com os demais alunos. Mammina finalmente entendeu
que meu tumor estaria presente independentemente do convívio
com outras pessoas em sala de aula.
Ao menos, ela aparentou entender quando Michela passou
a discorrer sobre todos os estudos que fez sobre meu tipo de
câncer. Toda vez que mammina levantava o assunto, minha irmã
aparecia com dados impressos e outros estudos para colocar
Signora Zanchetta a par de como poderia surgir e evoluir a doença.
Acredito que Michela poderia defender uma tese em PhD
sobre o tema.
Desço as escadas, de modo a me fazer ser ouvida conforme
alcanço o piso térreo. Se papà manteve a rotina, provavelmente,
está sentado na sala de estar acendendo um charuto e lendo o
diário local.
— Papà? — chamo-o, ainda com a visão prejudicada por
conta da parede que antecede o ambiente. Dois passos à frente e
vejo-o soprando a fumaça branca, sentado em sua poltrona ao lado
da lareira.
— Sì, cara mia. Cos'era[87]?
Aproximo-me, ouvindo o tilintar de talheres sendo postos à
mesa da sala de jantar. Michela deve estar ajudando mammina.
Esta noite, Signora Zanchetta preparou um assado e pediu para mia
frattela ajudá-la. Seus dotes culinários sempre foram muito melhores
que os meus.
— Papà, hoje à noite haverá uma festa e…
— Não. — Ele ergue o olhar sobre o jornal e responde
secamente.
— Mas papà é meu último ano e…
— Não — nega e retoma sua leitura, virando a página e
aprumando os papéis como se fossem tecidos a serem ajustados.
— É a última festa do liceo, papà. Dopo, io vou para a
faculdade, não verei mais nenhuma das ragazze.
Papà descruza as pernas momentaneamente para alterar a
posição. Noto a dúvida em seu semblante no instante em que pega
o charuto e assopra a fumaça de modo mais lento que o normal.
— Per favore… — insisto, cruzando os dedos da mão e
fitando Michela que surge no vão de entrada. Ela sorri, mordendo o
lábio inferior, nervosa, também querendo a permissão de papà.
Minha saída para qualquer lugar a incluiria. Assim, ela também
anseia pela resposta positiva.
— Luigi irá com você — diz de pronto.
— Hum? — meu irmão contesta avidamente, mostrando que
esteve presente este tempo todo, escorado na parede e digitando
algo no celular. — Não posso. Tenho compromisso.
— Se Luigi não for, você — Papà aponta pra mim, — e
você, — balança a mão na direção de Michela — não vão.
— Luigi… — choramingo, modificando minha atenção para
o homem de cabelos negros e olhos tão verdes quanto os meus.
Homem… Meu irmão mais velho, aos vinte anos, não
apresenta qualquer traço de moleque que já era diminuto na
adolescência. A dureza de nosso estilo de vida impõe desde cedo
obrigações árduas demais para meninos e meninas.
Enquanto as mulheres enfrentam casamentos em tenra
idade, os homens aprendem a matar. De uma forma ou de outra, a
inocência é roubada. Por isso, quero vivenciar o mínimo de
normalidade possível, como estar presente na festa que Valentina
vem me atormentando a semana toda. Acredito, que até o
momento, nem eu sabia que queria ir tanto quanto ela.
Faço beicinho e modifico o olhar tentando imitar as feições
de Michela que sempre conseguiu o que quis. Lembro-me do modo
que marejava os olhos, sem deixar que as lágrimas caíssem. Santa
Madona, como é difícil. Passei a admirar todas as atrizes neste
segundo. Mantenho a expressão contando mentalmente até que…
— Ah… cazzo! Não me olha assim, Tchesca — Coloca uma
mão na frente do meu rosto, evitando me encarar. Afasto a palma
estendida para o lado, fitando-o e aumentando o lábio inferior. —
Sta bene, sta bene… Só para com isso que está me assustando.
Michela implorar faz parte de sua natureza. Já você, parece que
estamos no fim dos tempos.
— Eba! — Eu e minha irmã gritamos em uníssono, dando
alguns pulinhos até estarmos de mãos unidas para comemorar.
— Vamos ligar para Tina. Ela deve estar aflita esperando —
Michela frisa, andando em direção à escada.
— Mas vamos voltar cedo — Luigi exige enquanto se
acomoda no sofá. — Quando eu disser para irmos embora, não
quero ouvir reclamação.
— Não vou. Prometo. — Corro até meu irmão, depositando
um beijo casto em sua bochecha, e antes que volte para o quarto,
vou até papà e faço o mesmo. Ele sabia que Luigi iria. — Grazie,
papà. Ti amo.
— Anch'io ti amo, cara mia — replica, com um sorriso
discreto.
Em seguida, apresso-me atrás da minha irmã até o quarto.
Precisava escolher uma roupa adequada, antes que Michela
aparecesse com algo muito extravagante. Hoje queria aparentar
uma garota como qualquer outra que apenas se arrumou para
encontrar as amigas. Nada mais.
O ginásio de esportes estava todo decorado com arcos de
bexigas laranja, pink, verde, azul e cores chamativas para destacar
o tema da década de 80. Luzes e lustres feitos de balões infláveis
em neon decoravam o teto dando um ar de danceteria.
Os rapazes exibiam topetes extravagantes com jaquetas
jeans e garotas mais ousadas vestiam maiôs cavados com meias-
calças coloridas e polainas combinando.
Minha irmã optou por uma calça justa preta e um camisão
azul royal, com um cinto grosso ajustado na cintura. Valentina está
com uma bermuda de alfaiataria, uma blusinha pink e uma jaqueta
branca com ombreiras. Já eu quis ser mais modesta e fiquei apenas
com a calça jeans de cintura alta mesmo. A camiseta preta com a
estampa de gato siamês é o destaque do meu visual.
Pensei que Luigi fosse entrar no clima, porém, manteve-se
neutro com jeans de lavagem escura, camisa preta e um blazer na
mesma cor. Ele nos deixou na entrada da festa, indicando os
seguranças que estariam em cada uma das saídas, e os dois que
estavam circulando ao redor do prédio.
Para três princesas da máfia, seis soldatos escoltando e o
herdeiro de Messina eram suficientes, penso.
— Isso aqui está demais — Tina se emociona. — É nossa
última festa antes da formatura, acredita?
— Nem pensei que me formaria — informo, encantada com
as luzes ao meu redor. Quando descobrimos o câncer eu havia
acabado de ingressar na escola secundária. Ultrapassar aquele ano
era uma dádiva, imagine me formar?
— Mas você se formou. E ano que vem sou eu! — Michela
me abraça pelo ombro. — Não quero nada de tristeza esta noite. —
Ela meneia a cabeça na direção de alguns garotos que estudaram
comigo. — Vamos aproveitar e ficar com alguns gatinhos.
— Você está louca, Chela? — indago, assustada. — Estou
prometida, esqueceu?
Ela toca o queixo algumas vezes, pensativa.
— Hum… — Pega minha mão direita. — Tem alguma
aliança aqui? — dedilha meu anelar.
— Não, mas…
— Então, não temos noivado. E ninguém sabe também.
Vamos aproveitar, Tchesca. Para de se preocupar tanto.
— Sem contar que seu futuro noivo — Tina faz um gesto de
aspas — Não faz questão alguma de assumir o compromisso.
Minha prima se refere às notícias que vimos semana
passada, na qual exibia uma foto de Giulio beijando não uma, mas
duas modelos. O evento aconteceu em Roma e o herdeiro foi
flagrado no final do que seria uma festa somente para convidados.
Enfim. Valentina Esposito pensou que pudesse me
convencer com a menção do feito do homem que foi o único a se
aproximar suficiente de mim para me beijar. No entanto, vê-lo
agarrar as duas mulheres dava a falsa impressão de que nenhuma
era especial.
E a foto tirada de modo furtivo indicou que ele não queria
ser pego. Talvez para não estragar sua imagem frente aos vecchi,
mas gosto de pensar que ele se importa o mínimo que seja com os
meus sentimentos.
Giulio Moretto é um Uomo d’onore[88] desde os treze anos.
Vejo como meu irmão se comporta quando está interessado em
uma mulher, o que não deve ser diferente com o Capo de Palermo.
Ele não tem cobrado de mim o comportamento de uma
noiva prometida, afinal. Sou eu que tenho feito em virtude da
vigilância que sou submetida. Todavia, mia frattela, mantida com a
mesma rigorosidade, beijou mais de uma boca.
Relaxo os ombros.
— Você tem razão. Ele não assumiu o compromisso,
então…
— Então, podemos aproveitar a última festa com direito a
gatinhas e gatinhos? — Tina me agarra pela cintura, balançando de
um lado para o outro, brincalhona e completamente fora do ritmo da
música Mamamia que começou a tocar.
— Nem tanto… mas quem sabe… — Viro o rosto em
direção aos rapazes, fitando um que não me lembrava.
Provavelmente parente ou amigo de um dos alunos.
Da mesma forma que Luigi nos acompanhou, era comum
outras pessoas, além dos estudantes, estarem presentes. Tudo bem
que Luigi permaneceu na porta — olho para lá instintivamente
buscando por meu irmão, que não encontro — ou não.
— Se Luigi foi para o tal compromisso e nos deixou aqui,
papà ficará puto — Michela comenta, analisando o mesmo ponto
que eu.
— Melhor não saber, então — determino. Se minha irmã
quiser ter um pouco de vida social em seu último ano e eu no
começo da faculdade, é melhor deixar a imagem de Luigi impecável.
— É até bom que tenha desaparecido. — Valentina aponta.
— Assim não irá nos perturbar durante a festa.
A música continua e nós estamos dançando no ritmo da
balada, sorrindo e nos divertindo como nunca. Alguns dos rapazes
se aproximaram, mas não o suficiente para uma conversa. Outras
colegas de sala nos acompanharam na pista de dança quadriculada,
aumentando o círculo de pessoas se movendo sem qualquer
coreografia.
— Estou com sede — informo as garotas.
— Vem! Tem um bar fornecendo bebidas lá — O garoto
diferente que vi mais cedo foi quem me ouviu e segurou meu braço.
Olho para minha irmã e prima que dão de ombros, como se fosse
normal alguém que nem sequer conhecemos nos conduzir pela
multidão.
Em razão de ver mais pessoas conhecidas, incluindo alguns
professores e inspetores, não vejo porque não o seguir. O tal bar
improvisado fica dentro do ginásio de qualquer forma.
Caminho esbarrando nos dançarinos afoitos. Muitos estão
mais animados com copos que indicam o combustível da alegria de
cada um.
Assim que paramos ao lado do balcão, o sujeito me encara
com um sorriso amistoso. Seus cabelos lisos e loiros na altura do
queixo diferenciam-se dos outros que possuem cortes e topetes
elevados. Não identifico a cor dos olhos por conta da penumbra e
luzes vibrantes.
— Aqui, bella donna. — Ele oferece a bebida em um copo
sofisticado com um canudo neon.
— Eu só quero uma água. Grazzie — agradeço, devolvendo
o copo.
— Você vai gostar. Experimenta.
— Não, obrigada — empurro novamente, gesticulando para
o garçom me atender. — Uma água, per favore.
— Patricinha.
— O quê? — empertigo.
— Nada… — comenta, bebendo do canudo.
— Você me chamou de patricinha.
— E você não é? — provoca, mantendo o sorriso sarcástico.
— Qual o sentido de patricinha para você? — indago,
pegando a garrafinha d’água e bebendo um gole em seguida.
— Metida, fresca, esnobe… pode escolher.
— Não sou nada disso.
— Se não fosse, não teria recusado quando alguém oferece
uma bebida.
— Sou ensinada a não beber nada vindo de estranhos.
— Touchè. — Sorri, com o canudo no canto da boca. — Ari
Venâncio, ao seu dispor.
— Francesca Zanchetta.
— A frattela de Luigi.
— Conhece meu irmão?
— Estudamos juntos.
— Ah é. Por que nunca ouvi falar de você?
— Você conhece todo mundo que estudou com ele?
— Touchè.
Ele gargalha, jogando a cabeça para trás. É quando vejo
uma tatuagem de cruz em seu pescoço. Inclino para frente, sem
perceber. O rapaz aproveita bem essa hora para enlaçar minha
cintura.
— Quer dançar, bella donna? — sussurra em meu ouvido.
Suspiro, parte de susto, pois não esperava. Meus olhos vasculham
seu rosto, tentando reconhecer algum perigo iminente. Zero.
Não respondo. No entanto, deixo-me conduzir, ainda
próxima do balcão, em uma música lenta. Ele posiciona as mãos em
minha cintura, e eu em sua nuca.
Dançamos e flertamos durante um tempo e noto estar mais
solta, distraída pelo moço bonito que nunca vi antes. A informação
vaga de conhecer Luigi, mostrou-se suficiente para suprir a
desconfiança de antes.
Verdade seja dita, sua beleza ajudou bastante também.
— Quero beijar você.
— Hum? — murmuro, querendo ouvi-lo novamente. Ele bufa
o riso, baixando o olhar. Depois, aproxima a boca do meu ouvido.
— Quero te beijar, bella donna[89] — diz vagarosamente. —
Posso beijar você e sair vivo desta festa?
A pergunta indica que ele realmente conhece meu irmão e
sabe com quem está se metendo. Encaro seus olhos, querendo
descobrir se a indagação é apenas por Luigi e não por Giulio. Ele
continua sorridente.
Não deve imaginar que sou a prometida do futuro Don,
penso. Caso contrário, não cogitaria a ideia. Enfrentar um irmão
raivoso da máfia é bem melhor do que um noivo, não é?
Observo ao longe Michela e Valentina que dançam
acompanhadas de algumas meninas e outros rapazes.
Tem alguma aliança aqui? — A indagação de minha irmã faz
com que fite meu anelar ausente da joia que representaria um
noivado. A imagem de Giulio beijando não apenas as duas moças,
mas também tantas outras rodopia meus pensamentos. Quantas
moças ele já beijou?
Várias…
E quando ele realmente me beijar? Não como da última vez
que apenas atiçou a curiosidade de menina. Quando me beijar de
verdade… Será que vou saber corresponder?
Eu gostaria de saber o que fazer?
Expiro o ar cansada.
A resposta latente grita tão alto que poderia competir com a
música que sai dos alto-falantes. Sim! Quero ter noção do que
esperar de Giulio. Ele tira completamente meu chão e todas as
vezes que o vi nos eventos seguintes do meu aniversário, esperei
que se aproximasse.
No entanto, meu futuro noivo manteve-se distante. Nem ao
menos pediu para dançar comigo uma música sequer. Tivemos
jantares, batizados, bailes… e nada. Fui ignorada. Até mesmo nos
meus aniversários, cujos quais celebramos num jantar íntimo,
pensei que receberia ao menos um cartão ou mensagem. Nada.
Infelizmente, sempre que pensava em Giulio, meu interior se
retorcia, querendo senti-lo, querendo… ser benquista. Se ao menos
eu soubesse como envolver um homem como Erica Spadotto.
Quem sabe?
Se for um pouco mais experiente, posso me tornar mais
interessante?
Dio Santo!
— Garanto que sairá com todos os membros do corpo —
replico para o desconhecido.
— Já é um começo. — Ari sorri. — Vem comigo. — Ele olha
para os lados, puxando-me pela mão. Sei que está nos guiando
para a saída de incêndio da lateral. Luigi mencionou que haveriam
dois soldatos ali. Diminuo o passo, não querendo ser flagrada. —
Aqui, Francesca Zanchetta. Aqui. — Ari me puxa para o banheiro
feminino, trombando com algumas garotas no processo. Em seguida
me empurra para uma das cabines vazias e me prensa atrás da
porta.
— O que está fazendo?
— Ganhando um pouco de privacidade. — Rio e ele choca a
boca na minha de súbito. Assusto com o assédio repentino, mas
logo permito-me ser beijada. Ari move os lábios rápido demais, não
dando tempo para acompanhá-lo. E então, enfia a língua, invadindo-
me sem aviso.
A surpresa em ter a boca aberta de súbito, não é maior do
que a fisgada que sinto no pescoço logo após. Suspiro, piscando e
vendo a imagem do ragazzo escurecer em minha frente.
GIULIO MORETTO

No instante em que recebi a ligação de Luigi Zanchetta,


sabia que algo estava errado. Meu futuro cunhado desligou o
telefone em minha cara horas mais cedo quando o ameacei por
deixar suas irmãs e prima inconsequente numa festa escoltadas por
soldatos inexperientes.
Se não fosse Zaccheo me avisar, jamais saberia.
No correr dos anos enviei soldatos de confiança para fazer a
segurança de Francesca desde que saí do Castelo Tirrena, após
seu aniversário de 15 anos. Homero e Zaccheo eram dois dos meus
melhores homens.
Os soldatos não precisavam saber o motivo pelo qual a
segurança da ragazza era importante. Eu comandava e eles
acatavam. Simples assim.
Ademais, não fiz qualquer mistério sobre o que Francesca
Zanchetta era. Quem perguntava, eu respondia. Ela era a escolhida.
Em razão disso, os soldatos enviados não reclamavam.
Sabiam o posto que ocupavam. Não gostavam, claro. Mas sabiam
que apenas quem estivesse em alta conta era mandado para servir
de babá de uma garota.
Zaccheo enviou uma foto de Francesca assim que saiu da
mansão dos Zanchetta. Ali não havia nada de garota. Porca miseria.
Nem aos 15 anos ela parecia.
Agora, com quase 18 anos, a ragazza mexia comigo. Tentei
ficar distante em todas as festas nas quais nos cruzamos após seu
aniversário.
O que aconteceu naquele corredor escuro não estava em
meus planos e perceber o quanto me descontrolava ao ponto de
querer mais de uma bambina me assustava.
Ela não podia ter esse poder.
Eu não podia dar-lhe esse poder. Foi sorte encontrá-la de
madrugada naquele corredor escuro. Não perdi tempo para avançar
sobre ela e iniciar o plano. Meu intuito foi confundi-la.
Francesca Zanchetta era um meio para um fim. Nada a
mais. Mesmo que tenha passado algumas noites refletindo sobre a
textura dos seus lábios macios.
Beijei praticamente todas as garotas de Donatto em todos
os bordéis de Palermo. O que era estranho, pois geralmente evitava
beijar quem trabalhava para a Famiglia.
Merda…
Para acalmar meu pai, passei a arrastar uma modelo para
todos os eventos públicos nos quais precisei comparecer.
Rafaella tem sido uma ótima distração. Ela é o completo
oposto de Francesca, seja nas características, uma vez que é loira
de olhos azuis; seja na timidez, pois a ragazza é mais assanhada
que uma gata no cio. O fato de ser modelo e gostar de aparecer em
público ao lado de um bilionário ajuda.
Ela também não cobra um relacionamento sério,
contentando-se com o que ofereço. Talvez porque quitei suas
dívidas junto à faculdade em um dia que estava muito benevolente,
minutos após o boquete espetacular que fez. Talvez…
Papà, por fim, parou de brigar comigo por conta da foto que
um paparazzi tirou no final de uma festa, na qual eu beijava, para
variar, duas mulheres. Ainda estava de ressaca dos lábios de
Francesca.
Expiro o ar frio da madrugada, numa respiração rasa.
Stronzo, penso no irmão de minha noiva enquanto desço do jatinho
num hangar de sua propriedade.
Luigi Zanchetta é um stronzo de merda. Por que o
mentecapto deixou um Soldato da ‘Ndrangheta drogar sua irmã?
Olho ao redor, analisando a casa bem-cuidada próxima a
um estábulo, de onde é possível ouvir gemidos e sons de impacto
abafado. Pelo menos, o infeliz tinha noção em investir numa
propriedade com estrutura suficiente para manter a discrição, penso.
Não queria ser visto na região de Messina quando todos
pensavam que estava em uma reunião de negócios em Palermo.
Muito menos que minha noiva havia sofrido um incidente desses.
Algo que eu e meu futuro cunhado gostaríamos de manter em sigilo,
pois seu pai não iria gostar de saber que o figlio estava no carro
fodendo com uma ragazza enquanto sua bambina precisava de
ajuda.
Luigi só foi esperto por ter colocado mais homens ao redor
da escola e por isso o Soldato não teve chances. Pensou que
poderia arrastar o corpo de Francesca pela saída de incêndio, e foi
surpreendido por Zaccheo.
Chego até o local, encontrando nosso convidado indesejado
suspenso, com as mãos algemadas e presas a uma corrente, que
perpassa uma viga horizontal acima de sua cabeça.
O torso nu revela marcas vermelhas, futuros hematomas da
surra que está levando. Luigi está ao lado, vestindo jeans e uma
camiseta branca banhada de suor, com dois socos ingleses, um em
cada mão.
— Fala, cazzo! Quem te mandou? — Um soco é desferido
no abdômen. — Por que escolheu Francesca? — Outro no lado
esquerdo do rosto, jorrando o sangue do infelice ao solo.
— Se der tempo para que fale, talvez o stronzo responda —
Homero pontua, encostado em uma das colunas que sustenta a
viga. — Capo — cumprimenta-me, fazendo meu cunhado estagnar
o movimento do próximo golpe no ar. Ele me observa sobre o
ombro.
Zaccheo aparece diante de mim e entrego a ele meu
sobretudo. Caminho vagarosamente de encontro à cena enquanto
dobro as mangas da camisa preta até os cotovelos.
— Certas respostas, conseguimos de outra forma, futuro
cunhado. Talvez queira aprender — digo, acenando para que
Homero empreste o canivete borboleta que carrega no interior da
jaqueta.
O Soldato sabe ao que me refiro, indo ao meu lado com um
sorriso maligno. Infligir dor ao ser humano é uma arte na qual somos
treinados de formas diferentes, dependendo da equipe destinada
para cada turma de iniciação.
Todo ano a equipe é formada pela indicação do conselho,
sendo que a cada ano é escolhido um trimestre no qual, aqueles,
com 13 anos completos, são enviados para uma propriedade, que
também é diversificada.
Tudo para manter-nos seguros e completamente afastados
no intuito de não ser possível o resgate de nenhum iniciado, tal qual
a fuga.
O meu treinamento coincidiu de ser juntamente com o de
Homero. Aprendemos juntos como escalpelar um homem,
mantendo-o consciente mesmo quando a dor em determinadas
regiões fosse insuportável. Demoramos um pouco até alcançar este
objetivo, Homero mais vezes do que eu.
Não sabia se a intenção do meu colega de turma era
realmente aprender, ou o prazer em ter a vida de outra pessoa à sua
mercê o motivava.
Ele exibe a lâmina após fazê-la dançar entre os dedos num
chacoalhar que remetia às asas de uma borboleta. Pego-a e vou até
o corpo meio elevado do solo que murmura algo quando me vê. Mas
não são suas palavras que me fazem hesitar, não… E sim a cruz
tatuada no pescoço.
Caralho.
Aquela cruz… Foi o único sinal que conseguimos identificar
de um dos assassinos da esposa e da filha do capo de Siracusa. As
únicas imagens captadas pelas câmeras de segurança que não
foram derretidas no incêndio. Fausto precisou trabalhar por dias até
que pudéssemos ter alguma pista e tudo se resumia ao pedaço de
pele do pescoço de um dos figli di puttana, posto que estavam
encapuzados.
Pego o celular do bolso e tiro uma foto, enviando para
Fausto. Ele saberá do que se trata assim que ver.
Não sou o tipo de cara que deixa as emoções tomarem
conta. Porém, sentia-me impotente e tive certa empatia com Renzo
Silvestri pela sua perda. Ainda mais quando sua menina não tinha
nem sequer 10 anos.
Sua moglie e figlia foram encontradas mortas no porão da
residência, ainda com partes do corpo sem serem consumidas pelo
fogo. O que não serviu nada de consolo, já que a necropsia
confirmou indícios de estupro e tortura nas duas.
Tenho muitos pecados, no entanto, jamais cometeria a
monstruosidade que este animal fez. Mulheres e crianças são os
únicos seres em nosso meio que nos permitem manter o mínimo de
humanidade. São sagradas e assim devem ser tratadas.
A tatuagem poderia ser coincidência, no entanto. Por este
motivo, precisava incluir outras perguntas no interrogatório prévio de
Luigi.
— Por que a cruz? — indago, raspando a lâmina levemente
na região abaixo, logo acima da clavícula, gerando uma linha fina
vermelha.
O sujeito abre uma pálpebra com esforço, elevando o canto
da boca e cuspindo sangue em meu rosto, na sequência. Ouço
xingamentos e passos, ergo a palma para que meus homens
mantenham distância. Continuo com os olhos fixos na criatura.
— Não tenho só uma — relata. Inclino a cabeça, mantendo
a lâmina em sua pele e levando-a comigo enquanto circulo seu
corpo, com mais pressão do que antes. A linha fina engrossa um
pouco.
Como dito, conto 21 cruzes desenhadas em lugares
diversos, ora na costela, meia dúzia na lombar, outras sobem a
escápula. Interessante que na parte da frente, vi poucas, sendo uma
delas a do pescoço.
— 21 ao todo — concluo.
— Seriam 22 hoje. — Solta um riso sarcástico. — Se
ninguém tivesse me impedido.
— 22 o quê, stronzo? — Acredito que Francesca está sendo
colocada na conta, porém quero saber se o valor é mais específico.
Minha intenção é dá-lo de presente para Homero brincar, mas isso
ele ainda não sabe.
O silêncio repentino me faz retirar a primeira lasca de pele
localizada acima do mamilo direito, juntamente com uma das
cruzes. O grito esganiçado denota a dor aguda que sentiu. O figlio di
puttana xinga e se remexe, movimentando o corpo pendurado. Fico
com a lâmina firme bem próxima o que causa outros cortes finos.
— Vamos tentar novamente. 22 o quê? — Desta vez, enfio a
ponta da lâmina na região do baço, em um ponto que sei não haver
órgão vital, mas que dói tanto quanto. Mais esperto, permanece
imóvel conforme retorço a lâmina. Ele apenas geme.
— Bambinas… — sussurra sôfrego.
— Francesca não é bambina — Luigi interfere. — Ela não
parece uma bambina, não mais desde… — Ele para de falar no
instante que percebe que estou analisando sua fala.
— Não fez 18 ainda. Pelo que soube, a figlia prometida ao
Caporegime de Palermo ainda é bambina.
— Alguma dessas cruzes foi feita para uma menina de
Siracusa? — Minha pergunta é seguida de outro som de lamúria
quando retiro a lâmina, deslizando até outro desenho. Traço um
círculo perfeito ao redor e aguardo.
A ausência de resposta me faz deitar o canivete,
pressionando até sentir a maciez da carne conforme afundo o corte.
Estou tão concentrado, prolongando o movimento que mal ouço o
infeliz.
Subo o olhar da minha obra-prima, vendo o desespero por
ter seu corpo rasgado aos poucos.
— Você vai me matar de qualquer forma…
— Vou, mas você pode escolher se o sofrimento será maior
ou menor — devolvo.
— Não tenho medo da dor. Na verdade, gosto — E sou
pego de surpresa quando noto o pau duro do infeliz elevado nas
calças. Cretino imundo. Enfio o canivete em um dos seus olhos,
sem perfurar o cérebro, apenas causando o vazamento para cegá-
lo.
— A mando de quem? — questiono entre dentes. Ele grita,
porém não responde. Afasto-me vendo a arte grotesca do homem
ensanguentado. O monstro, após um tempo, começa a rir.
Pressiono o maxilar com força, analisando as alternativas. Em
seguida, ofereço a borboleta de volta para Homero. — Corte o pau
do infeliz e faça-o cantar.
Não preciso de outras provas. Quando pego o aparelho
celular para checar a mensagem do mio frattelo, tenho a certeza.
Hoje duas mulheres da Cosa Nostra estão sendo vingadas.
No entanto, esse é apenas um peão do inimigo.
Nada mais.
FRANCESCA ZANCHETTA

Pincelo a unha do dedão do pé com o esmalte escarlate que


Valentina trouxe, com o tronco retorcido para frente. Ajeito a pintura
com o palito de madeira pontudo, retirando o excesso das laterais e
assopro para secar. Em seguida, admiro meu trabalho, afastando
um pouco os pés de unhas pintadas para a ponta da
espreguiçadeira.
Gotículas d’água respingam em minha perna, fazendo-me
sair do transe.
— Michela! Cazzo! — reclamo para minha irmã que havia
mergulhado próxima a mim. Expiro o ar, cansada. Ainda era começo
de tarde e o tempo parecia ter parado. Podia inventar mil e uma
coisas para fazer, porém, o relógio indicava que ainda era cedo para
dormir.
Meus dias pareciam mais longos após a ameaça que sofri
na última festa do liceo. Aproveitar um dia ensolarado de verão na
piscina pareceu-me uma boa distração. Ainda mais quando minha
prima apareceu com seu kit de manicure.
Queria fazer qualquer coisa para esquecer o que aconteceu.
Era difícil lidar com as palavras duras de Luigi.
Ele contou que fui drogada e arrastada para o
estacionamento, sendo que não aconteceu nada além comigo, pois
o segurança designado por Giulio estava a postos para me resgatar
dos braços de Ari.
Ari…
Se este era realmente seu nome. O sujeito não conhecia
meu irmão. Fui uma idiota. Quando acordei e tive noção do que
havia acontecido, implorei para que Luigi não contasse para papà.
Temi por ele, temi por Michela… Droga… temi por mim.
Não queria mais viver enclausurada e aquele erro podia
estragar toda liberdade que até então finalmente conquistei. Um
erro.
Como poderia imaginar que em uma festa de escola, na
qual havia tantas pessoas conhecidas, poderia existir perigo?
Evitei beber dos copos dos outros, inclusive a bebida que o
ragazzo bonito insistiu para beber. Ele poderia ter tentado me drogar
ali primeiro. Como não conseguiu, manteve o flerte até ganhar
minha confiança e me levar no banheiro.
Estava tão absorta com sua beleza e a possibilidade de
vivenciar experiências normais que esqueci momentaneamente que
nada é normal em minha vida.
Madonna mia.
Fui inocente. Diante de tantos avisos e alertas mentais
enrustidos em minha criação não soube identificar a ameaça na
minha cara.
— Ficou lindo, Tchesca — Tina senta-se na espreguiçadeira
ao meu lado, secando os cabelos. — Pode começar os meus. — Ela
estende os dois pés molhados sobre meu colo, causando o choque
térmico da água fria e o calor da tarde em minha pele.
— Pedindo desse jeitinho, fica difícil de negar. — Sorrio com
a petulância e forma carinhosa dela.
— Depois sou eu — Michela grita do outro lado da piscina.
— Fico lisonjeada por ser a manicure particular de vocês.
Juro — ironizo. Mas não é mentira. Nada paga esse momento que
passo com elas, minhas melhores amigas.
Algumas pessoas passam a vida toda procurando por
amizades sinceras. Eu recebi duas de graça um ano após meu
nascimento.
— Ah que bom. Pode começar, então. — Minha prima
gesticula com uma mão, balançando as pontas dos dedos. —
Depois, quero aquele branquinho ali ó, nas mãos.
— Você quer vermelho nos pés e branco nas mãos? —
Faço uma careta sem entender.
— Ué… Meu pai não encana se a mão for suficiente para
enganar meus pretendentes de que sou pura — Ela coloca uma
mão embaixo do queixo e bate os cílios exageradamente.
Rio, meneando a cabeça em negativa.
— Tio Esposito confirmou o noivado com Valdomiro? —
Michela indaga, assim que se aproxima, sentando-se ao meu lado,
enquanto posiciono um dos pés de Valentina para começar os
trabalhos.
Aprumo a postura aguardando a resposta de Tina. Em que
pese dizer de modo despretensioso sobre a busca de noivos por
parte do seu pai, sabemos que está preocupada. Nossa prima
sempre nutriu uma paixão platônica por Alessio, por mais que ele
tenha deixado claro um milhão de vezes sua intenção em desposar
Michela.
Entreolhamo-nos cabisbaixas, não querendo que Valentina
perceba nossa troca de olhares.
Minha irmã não tem a mínima intenção de se casar com
Alessio. Mas eu tento colocar algum discernimento em sua
cabecinha. O matrimônio com alguém conhecido é muito mais
seguro do que algum mentecapto que goste de tratar a esposa
como saco de pancadas. Não quero apontar o dedo para o tio
Esposito, claro.
Enfim. Nosso primo seria uma escolha segura.
— Não. Valdomiro pareceu ter mais interesse no nosso
segurança do que em mim no último encontro. Então, papà
descartou a possibilidade.
— Mentira! — Solto uma risada com a lufada de ar. — E seu
pai ficou tranquilo quanto a isso?
— Ele não sabe… só eu quem vi. — Ela dá de ombros. —
Como ele pediu com jeitinho e me deu aquela bolsa da Prada que
queria tanto, decidi ficar quieta. Ele já tem muito com o que lidar.
Aiiii…
— Se não parar quieta, não vou conseguir pintar seus dedos
— digo, após dar um beliscão no seu tornozelo, já que Valentina
resolveu falar e se mover em conjunto.
— E você desaprendeu a falar em que momento para me
beliscar, scema[90]? — resmunga, esfregando a área. Apenas rio,
escondendo a boca com uma das mãos. Ela não consegue manter a
carranca por muito mais tempo, soprando um riso solto, por fim.
Nossa conversa flui leve por mais alguns minutos até
Michela lembrar-me do elefante branco que tenho deixado
escondido no armário.
— Giulio não te ligou, ligou? Ui! — exclama com a
cotovelada que levou de Valentina. — Que foi? Uma hora ela terá
que desabafar.
— Desabafar o quê? Não tem nada para desabafar —
comento, sem erguer os olhos dos pés de minha prima. Dou dois
tapinhas suaves para que troque e começo a pintura das unhas do
outro pé.
— Você sabe que não precisa esconder da gente, Tchesca.
Eu vi quantas vezes você olhou para porta até se dar conta que ele
não viria para o jantar do seu aniversário de novo.
— Meu aniversário não foi uma festa — constato,
introduzindo o pincel no esmalte e passando nas beiradas do
pequeno gargalo para retirar o excesso. — Apenas uma
comemoração íntima com a família. — Seguro o dedo mindinho de
Tina para terminar o trabalho.
— E você perguntava todas as manhãs se papà havia o
convidado por que mesmo? — Minha irmã caçula persiste.
Suspiro, dando-me por vencida.
— Ele poderia ao menos ter mandado uma mensagem —
digo, exibindo uma careta.
— Ele devia ter vindo — Michela acentua.
— E comprado um presente — Valentina acrescenta.
Expiro o ar novamente, emitindo um som de tédio ao trocar
de cliente, no caso, para esmaltar as unhas dos pés de minha irmã.
Apanho o frasco na tal cor magenta que ela oferece e dou início ao
processo.
— Outra coisa: eu fiz 18 anos, porca miseria. Sou maior de
idade agora — concluo. — Ele não tem que marcar a data?
— Tecnicamente… não — Valentina responde, mexendo na
maleta com outras cores de esmalte.
— Não?
— Tina tem razão — Michela concorda com a garota que
analisa dois tons de branco. Se isso é possível. — O uomo d’onore
só precisa escolher sua noiva. Os vecchi pressionam quando eles
completam 25 anos.
— Você fez 15 anos no dia que ele te escolheu, por isso era
apenas prometida. Agora, ser maior de idade muda o status só para
você. Pode dizer que o noivado se concretizou no automático —
Valentina explica.
— Muda meu status?
— A cada ano que passa depois dos 18 é um ano a menos
para você encontrar outro pretendente, se ele desistir. O que a meu
ver é um fator positivo. — Michela opina. — Um ano a mais para
estar com certeza na faculdade.
Eu deveria pensar na última parte que minha irmã ressaltou.
No entanto, a frase “se ele desistir” repetiu mais vezes em minha
mente do que eu queria.
Mas e daí? Mal conheço o Sottocapo. Tudo bem que me
transformei numa stalker após meu aniversário. Foi mais forte do
que eu. Em minha defesa, a coluna de fofocas que costuma
aparecer na página inicial do meu e-mail tem uma forte tendência a
escândalos de bilionários.
Ainda mais de um chamado Giulio Moretto. Não tem nada a
ver por ele ser o solteirão mais cobiçado de toda Sicília. Não…claro
que não.
— Será que ele desistiu? — A pergunta sai sem filtro algum.
Como as duas cabeças, uma em cada corpo, me encaram como se
tivessem nascido outras duas em mim, fico na dúvida se deveria ter
verbalizado.
— Você enlouqueceu? — Tina é quem consegue falar
primeiro. — Francesca, você é a garota mais linda da famiglia toda.
Ele não é idiota.
— Beleza não é tudo. E eu… eu sou… sem graça. —
Chacoalho um ombro.
— Você pode ser chata, irritante e ter mau gosto para
sapatos, Tchesca. Mas jamais sem graça — Michela elogia. Dou um
sorriso fraco.
— Ter minhas qualidades enumeradas por vocês não vale.
— Ah é… Alessio! — Michela balança a mão chamando
nosso primo. Noto a mudança drástica de postura por parte de
Valentina que encolhe a barriga, jogando os cabelos para o lado e
fitando o outro lado forçando o desinteresse. — Alessio venha aqui!
Poderia pedir para minha irmã parar. No entanto, minha
autoestima grita em meus ouvidos mais alto que o alto-falante
chamado Michela.
— Quem é a mulher mais bonita da famiglia? E responda
sem pensar — ela determina. Meu primo pisca, indicando que está
absorvendo a pergunta.
— Você não ficará chateada, Chela? — ele confere, antes
de continuar. Após um longo suspiro, me encara. — Francesca. —
Em seguida, abre os olhos, apreensivo. — Com todo respeito,
prima. Sei que está noiva e não tenho a mínima intenção de cortejá-
la.
— Fique tranquilo, Alessio. Eu sei disso — replico. Sei bem
quem Alessio pretende cortejar, penso.
— Viu só? Eu te disse — Valentina argumenta. — Aquele
imbecil deve ter um pino frouxo ou algo assim por esquecer seu
aniversário.
— Não fale assim do Sottocapo, ragazza. Você pode perder
a língua. — Tina mostra a língua para Alessio, demonstrando toda
sua maturidade. Ele apenas balança a cabeça em desaprovação.
Em seguida, continua o caminho que estava fazendo até a casa de
Luigi.
— Queria que ele visse além da beleza — explicito outro
pensamento. — Se ele me conhecesse, quem sabe… se eu o
conhecesse…
— Não se iluda para não se machucar, prima. O cretino
poderia ter ligado. Não cairia o dedo, nem a orelha.
— Credo, Tina! — Michela exclama, com uma careta.
— É verdade — concordo, deslizando a tela do celular e
desbloqueando para ver a última notícia. — Mesmo assim, pensei
que significasse algo a mais.
Desta vez, economizo saliva e guardo a menção ao meu
primeiro beijo na festa de 15 anos. Algo que guardo só para mim.
Queria acreditar que era mais do que mais uma garota
patética apaixonada por Giulio Moretto. A forma com que meus
dedos buscam por ele na internet demonstra o contrário.
Entretanto, a notícia que vejo imprensa meu peito. A
imagem dele ao lado da mesma garota constantemente me
incomoda. Nem ao menos a sua imagem beijando duas mulheres
me incomodou tanto.
Rafaella.
Realmente sou patética… Estou stalkeando um homem que
nem ao menos se lembrou do meu aniversário nos últimos anos.
Gostaria de não desejar ser a mulher da foto. Gostaria de
esquecê-lo. Mas como?
Como me esquecer o toque suave dos seus lábios?
Como me esquecer de todas as noites que o vi em meu
quarto, deitado em minha cama e trocando juras de amor? Tudo
bem que as últimas coisas foram frutos de minha imaginação.
Porém, a frequência com a qual pensei foi tanta que em
dado momento tornou-se real.
— Devo estar louca. — Suspiro.
— Sim, prima. Você está louca. — A resposta de Valentina
me tira do desatino. — Ainda mais salvando todas essas fotos. —
Ela estava acompanhando tudo o que eu estava vendo. E sim. Eu
salvo algumas imagens de Giulio, quando ele aparece sozinho. —
Mas pode continuar sendo louca esmaltando minhas mãos agora?
— E as minhas?
As duas brincalhonas mostram as unhas de uma mão,
segurando o esmalte escolhido com a outra.
— Ainda vou cobrar o serviço de manicure e pedicure —
brinco, pegando primeiro o esmalte de Michela, dando a ela a vez.
— Que irei pagar em sessões de terapia futuramente. —
Tina devolve.
— Se você não se casar antes — Michela provoca e Tina
responde com outra exibição de língua. Sorrio, esquecendo-me por
ora do meu noivo negligente.
Quem sabe se insistir nisso, não consigo esquecê-lo de
vez?
Pelo menos, até que ele se lembre de que tem uma noiva.
GIULIO MORETTO

O encontro com o representante da empresa Subattu[91]


Automobilística seria um evento discreto se não fosse pela ausência
de discrição vinda de Maximus que entendeu ser uma boa ideia
fechar o restaurante Ogni Sapore[92] e convocar a imprensa para
atestar com chave de ouro nosso vínculo.
A intenção em manter sigilo até acertar os pormenores com
tio Viccenzo desceu pelo ralo diante da primeira foto estampada na
rede social de Rafaella.
Eu poderia dispensá-la, contudo a garota tinha seu mérito
por não exigir um relacionamento. Ela sabia que estava se
envolvendo com um homem da Cosa Nostra, sendo informada
sobre nossos costumes. Meu casamento seria com alguém de
dentro da famiglia.
Acredito que nenhuma mulher com quem tenha saído
aceitaria muito bem uma relação fadada ao fracasso, salvo Rafaella.
Mas algo mudou nos últimos meses.
Percebi sua insistência em ser fotografada ao meu lado em
cada evento, deixando subentender que tínhamos algo a mais.
Então, a loira exuberante deixou de ser a acompanhante perfeita e
passou a ser um inoportuno. Principalmente após uma notícia na
qual a manchete a apontava como minha namorada.
Por mais que minha fala para o repórter tenha deixado claro
tratar-se de uma amizade, o holofote estava nas letras de caixa alta
proclamando o relacionamento sério.
Queria terminar tudo essa semana, até que recebi a notícia
da vinda dos japoneses. Sua tradição em confiar apenas naqueles
que estão acompanhados de uma mulher jamais mudou.
Daiki Takeshi tem minha idade, 29 anos, e está casado com
dois filhos pequenos. Não sou averso ao matrimônio em si, pois
nada irá mudar em minha vida além do estado civil.
Francesca acabou de completar 18 anos e soube por seu
pai que ingressou na faculdade. Pelo menos, não me casaria com
uma mulher vazia.
Esse foi o primeiro ano em que Enrico Zanchetta me
convidou para a comemoração do aniversário da filha. Nos
passados, apenas meu pai recebeu o convite. Se a intenção era me
colocar como uma extensão de meu pai, Enrico falhou
miseravelmente.
Simplesmente não compareci em nenhum dos jantares,
muito menos fiz questão de demonstrar que sabia a data. Não enviei
mensagens ou presentes. No entanto, fiquei curioso para conhecer
a nova versão de minha Bambola.
Se aos 15 anos ela já era uma coisinha intrigante, imagine
aos 18?
Meu orgulho ferido acabou alterando o plano inicial de
seduzi-la. Deveria ter me comportado como um verdadeiro
cavalheiro para daí desposá-la antes e esfregar na cara do
Zanchetta o quanto sua preciosa figlia é tão puta quanto sua
esposa.
Ele sabe…
Sei que ele sabe, mas preferiu viver na sombra de Don
Moretto. Não foi o primeiro. Mas foi o único com quem me importei.
Agora, eu teria que rever meus passos. A ideia é reduzir sua
filha ao verme que seu sobrenome carrega. Ela será o meio para um
fim. O fato de ser a mais bela é apenas um bônus que ganhei no
caminho. Posso me divertir no processo.
— Quem é a acompanhante do seu irmão, Giulio? —
Rafaella indaga, fazendo-me retornar ao presente. Analiso Maximus
que exibe um enorme sorriso no momento em que coloca a mão na
lombar da bela moça e ela dá um passo à frente, querendo evitar o
contato.
Franzo o cenho, fitando meu irmão. Não era hora para seus
joguinhos. O encontro com os japoneses é crucial para os negócios
lícitos da famiglia. Trazer uma garota-problema poderia implicar em
problemas.
A beleza da garota é estonteante e sua roupa peculiar. Ao
invés de usar um vestido como Rafaella, ela está com uma calça
pantalona preta e uma blusa frente única da mesma cor.
Completamente diferente da modelo ao meu lado que escolheu um
vestido sem mangas de corpete justo e saia rodada na cor pérola.
Vejo meu irmão caminhar ao lado da moça e meneio a
cabeça. Ele acena com intuito de me tranquilizar e após cochichar
algo no ouvido da morena, ela permite ser conduzida.
Não queria a presença do meu irmão caçula. Sua insistência
por se tratar de uma negociação envolvendo carros me fez
repensar.
Eu sabia o quanto ele é bom atrás de um volante e sua ida a
Monza confirmou isso. Matteo participou de dois campeonatos onde
um deles correspondia à troca de pilotos. Maximus foi o reserva
diante da ausência do membro da equipe.
Agora, investir na aquisição de ações da Subattu para que
esta faça o mesmo e patrocine os carros que serão usados por meu
primo e irmão auxilia nos negócios. De certa forma até os obscuros,
posto que o dinheiro final sairá completamente limpo.
Alcançamos a mesa onde Daiki nos aguarda na parte
externa do restaurante. O lugar foi construído sobre uma rocha que
dá a visão privilegiada do mar. A temperatura agradável permite que
os anteparos de vidro fiquem abertos, fomentando a música
ambiente com o barulho das ondas.
— Giulio Moretto — o homem de traços orientais, vestindo
roupas menos formais, com o um blazer escuro, camiseta branca e
calça de alfaiataria clara me cumprimenta. — Como vai? Acredito
que se lembra de Reiko, minha esposa.
— Estou bem, Daiki. E sempre é um prazer rever uma
mulher bonita — digo, segurando a mão estendida da Signora
Takeshi, depositando um pequeno beijo nas juntas. Ela solta um
risinho envergonhado.
— Sempre um galanteador — Takeshi constata, com um
sorriso amistoso.
— E sempre com muito respeito — emendo, deixando claro
meu intento em apenas ser gentil. — Esta é Rafaella, uma amiga —
apresento minha acompanhante que estende a mão e num gesto,
imitando o meu, Daiki beija-a.
— Sabemos que sou mais do que isso, Giulio — ela
proclama a frase que tenho evitado.
— Não. Não somos — Puxo sua cintura em direção à
cadeira que está a postos com um dos garçons segurando para
ajudar a acomodá-la. Rafaella dá um sorriso amarelo, suspirando
em seguida. — Bom, este é meu irmão caçula Maximus. Ele será
um dos pilotos conforme já lhe adiantei.
— É um prazer conhecê-lo, Signore Takeshi. Signora
Takeshi.
— Apenas Daiki. — Maximus assente.
— E esta é Simona, minha namorada. — Tenho a impressão
de ouvir a acompanhante de Max balbuciar algo do tipo nem em
seus sonhos. Mas prefiro não prestar atenção. — Agora é a hora em
que você é educada, amor — meu irmão provoca a leoa, que ao
contrário do que espero, cumprimenta nossos convidados.
— Boa noite, senhor e Signora — diz, com os lábios
esticados demais. Ela não precisa de incentivo para ir até seu lugar.
— Pode deixar. — Max se adianta, colocando-se logo atrás
da cadeira em que Simona se sentaria. — Estamos no começo do
namoro e preciso mostrar como sou cavalheiro.
Observo a situação nada cômica para os olhos do futuro
Don da Cosa Nostra. É exigência da famiglia a indicação de uma
noiva para aqueles que completam 25 anos. Meu irmão caçula
ainda tinha 23 anos e só por este motivo não quero fazer dessa
história de namorada uma discussão.
— Foi você que correu ao lado de Matteo, então? — Daiki
inicia a conversa. Maximus sorri tão radiante quanto uma lamparina.
— Eu nem estava aquecido — brinca, sua namorada
interessada no assunto. — Na próxima estarei com meu amuleto da
sorte. Ganharemos com certeza.
— Amuleto? — ela indaga e Maximus sorri para ela.
— Você, amor. — Ele pisca com todo seu charme, o que
faria muitas garotas suspirarem, porém, Simona revira os olhos com
uma expressão de tédio.
Penso que ele irá parar com os galanteios, mas meu irmão
insiste, pegando a mão da moça e entrelaçando os dedos acima da
mesa. A cena patética entretém senhor e Signora Takeshi, bem
como Rafaella que murmura um “a” apaixonada.
Limpo a garganta com mais aspereza do que necessário,
tomando as rédeas do que realmente importa.
— Esperamos que um dos adesivos a adornarem os carros
da equipe Pascale sejam da Subattu. — Ergo a taça que o garçom
acaba de servir com o vinho frisante.
— Será de imensa honra para nós, Giulio Moretto. — Daiki
acompanha meu gesto elevando a taça e meu irmão ao meu lado
aproveita o brinde.
— À equipe vencedora — anuncia e nós repetimos em
complemento.
Algumas taças de vinho depois, e galanteios desnecessários
por parte de mio frattelo para com sua namorada, tenho a certeza
de que o jantar foi um sucesso.
Entretanto, deixei passar a indagação sobre a tal Simona.
Faço uma anotação mental para interrogar meu irmãozinho acerca
dessa novidade. Caso ele pretenda arrastar a moça para todos os
eventos, apresentando-a como namorada, uma hora a merda cairia
em meu colo.
E sinceramente, tenho lidado com merda suficiente para
uma temporada inteira.
Estou saindo do restaurante com Rafaella, querendo
arrastá-la para casa e fodê-la em todas as posições possíveis. A
garota soube me provocar a noite toda, colocando a mão em minha
virilha por baixo da mesa.
Meu ânimo em dispensá-la pode voltar ao normal pela
manhã. Agora, só preciso de um pouco de diversão.
Os seguranças aproximam-se para nos acompanhar até
meu carro e logo alguns flashes disparam, indicando a presença de
paparazzis. Droga. Apresso o passo, mas um aparelho celular
usado como gravador é apontado para mim e Rafaella.
— É verdade, então? Rafaella foi a escolhida para ser a
próxima Signora Moretto? — uma voz desconhecida pergunta. Que
porra é essa?
— Ainda é cedo pra gente revelar qualquer coisa, mas vi
Giulio escolhendo um anel. Quem sabe? — Rafaella responde
graciosa. O quê?
Como assim ela me viu comprando um anel?
Eu realmente visitei algumas joalherias este mês, e sim,
procurei por um anel, mas para Francesca, minha noiva.
Expiro raivoso, empurrando a pessoa não identificada e
conduzo Rafaella com mais força do que pretendia. Sou contra a
violência à mulher e estou no meu limite.
Abro a porta do passageiro da minha Ferrari e praticamente
jogo a infeliz no banco. Caminho a passos apressados, pegando o
celular ao mesmo tempo em que me sento atrás do volante.
— Homero? Quero você e mais dois homens agora na boate
Lumion, subterrâneo — determino. Ligo o motor, ouvindo o ranger
que costuma me acalmar. Não acontece. Estou em erupção com
ódio da loira que teve a ideia absurda de passar por cima de mim.
Figlia de uma putana.
— Que tipo de serviço, capo? — Meu Soldato indaga na
ligação.
— Uma ragazza — revelo, desligando o telefone. Ele sabe
do que se trata, ou pelo menos, sabe do que preciso.
GIULIO MORETTO

Rafaella tenta argumentar, porém ergo o dedo em riste para


que se cale. Agora ela é esperta e mantém-se em silêncio.
Costumo ser mais condescendente com as mulheres,
apenas dando um tiro na cabeça quando necessário. Nunca torturei
uma mulher e passo para Donato fazer a cobrança das suas
dívidas. Algumas aceitam o que ele determina, outras… visitam o
necrotério.
Rafaella conseguiu abrir a jaula de um animal dentro de
mim. A imagem de Francesca vendo a notícia e mostrando-a para
seu pai passa como um filme em minha mente. Em seguida, teria
que lidar com o meu pai e não de modo parental, mas sim como o
meu Don.
O que precisaria fazer para explicar aos vecchi sobre os
boatos? E se essa história der mais munição para ficarem contra
meu posto?
Merda.
Terei que visitar Messina antes do esperado. Sigo pelo
caminho mais rápido, chegando à periferia da comuna onde as ruas
possuem menos iluminação.
Estaciono na lateral da boate, sendo recebido por três
soldatos que ficam ao lado do veículo. Abro a porta, retirando minha
convidada bruscamente do carona. Ela grunhe manhosa, pensando
que como fiz uma vez, estaria levando-a comigo para um lugar de
luxúria.
Naquela noite, a fiz gozar tantas vezes que apagou por
conta do êxtase. Não era aqui, era uma das nossas boates de strip-
tease. Ela me viu foder outras garotas e foi uma delas. O intuito foi
mostrar que não sou dela, o que não surtiu efeito pelo visto.
Agora surtiria.
— Anda — ordeno, empurrando-a a minha frente. Ela
tropeça no salto alto, mas continua. Quando abro a porta, Rafaella
me olha sobre o ombro, emitindo um muxoxo antes de encarar os
três homens que nos aguardam no porão imundo.
— O que é isso, Giulio? Por que estamos aqui? — ela olha
os três soldatos que aguardam meu comando para mexer com a
ragazza. Até então ela estava sob minha proteção. Não mais. —
Você disse que não divide, lembra? — Seus olhos estão
assustados.
Sorrio com malícia, querendo que a rata entre no jogo.
— E não divido. — Lambo os lábios de modo sensual para
envolvê-la. — Não é isso o que vai acontecer. Você tem duas
escolhas, Rafaella. Uma delas é sair agora pela porta por onde
viemos e não olhar para trás, seguindo seu rumo esquecendo tudo o
que vivemos. — Ela não precisa saber que para mim era uma foda
fácil. — A segunda, é ficar e tentar conquistar meu perdão. —
Afasto-me, dando espaço para que a sequência de atos seja
consensual… ou não.
Se a infelicce decidir fugir, não vou obrigá-la a ficar.
Sua expressão suaviza e a ragazza caminha até mim com
passos da modelo que é, jogando o quadril para os lados. Meneio a
cabeça, aumentando o sorriso e estralando os dedos em sinal para
Homero. Ele e os outros dois se prostram em lugares específicos,
deixando Rafaella no centro.
— Quero que venha aqui — gesticulo com um dedo,
chamando-a, ela obedece. Pressiono seu ombro para baixo. — E
fique de joelhos. — Ela ainda segue o comando. — Tire meu cinto e
coloque meu pau para fora.
Nunca fui exibicionista, não gosto e não pensei que um dia
iria fazer esta cena. Porém, a fúria que sinto me deixou cego. Tudo
em minha vida parece ser meios para um fim.
Rafaella me encara de baixo para cima, com olhos repletos
de malícia. Ela faz exatamente o que ordenei. Consegui ficar
apenas meia bomba, no entanto, a garota era boa em alguma coisa.
— Você vai me chupar e engolir minha porra toda,
entendeu? — Ela assente com a cabeça e começa o trabalho. Jogo
a cabeça para trás, fechando os olhos. Imagino os olhos verdes me
encarando, engolindo meu pau até a base. Seguro a base dos
cabelos que deviam ser ondulados e castanhos, não lisos e
dourados.
Pressiono ainda mais, aumentando a velocidade do vaivém
e ouvindo-a engasgar. Os lábios naturalmente rosados e carnudos
se moldam em meu membro vigoroso. O olhar pedante com
curiosidade e desejo me fitam, querendo descobrir o quanto posso
corrompê-la. Sinto o fundo de sua garganta e o som de um gemido
estrangulado é o suficiente para me fazer gozar.
Movo mais algumas vezes, liberando aos poucos o couro
cabeludo e abrindo os olhos. Saio do devaneio no qual minha
verdadeira noiva estava de joelhos em minha frente. Analiso os
outros três homens na sala, pensando que se fosse Francesca aqui,
teria que os matar. Ninguém a veria assim além de mim. Ninguém.
— Agora, mia cara — digo, subindo o zíper e fechando a
fivela do cinto. — Vá para o próximo.
— Hum? — murmura a indagação. — Não entendi.
— Duas opções, Rafaella, lembra? — Encosto-me na
parede atrás de mim. — Ou fica para reaver minha tolerância a
você; ou caia fora. A decisão é sua. A porta está destrancada. —
Meneio a cabeça, indicando a direção para eventual fuga.
A loira, porém, levanta-se com altivez, considerando a
situação um desafio.
— Venha cá, docinho. Quero sua boquinha gostosa também
— o primeiro Soldato se prontifica, baixando a calça até os joelhos.
Rafaella me olha incrédula.
— Você quer um homem da máfia. Está na frente de três —
Semicerro os olhos, aguardando sua desobediência.
A garota ergue o nariz para mim e ajoelha-se na frente do
próximo. Sento-me na pequena mesa ao canto, retirando o maço de
cigarro do bolso e meu isqueiro de prata do outro, acendendo-o
enquanto Homero se aproxima lentamente.
— Tem certeza, capo? — Apenas meneio a cabeça em
afirmativo. Ele expira o ar com força e segue para detrás da mesa
de onde saca uma garrafa de vodca. — Preciso de uma bebida.
Você quer? — oferece.
— Eles usaram alguma coisa antes? — indago sobre o uso
de drogas dos soldatos, se um deles tomou algo ou cheirou pode
retardar o orgasmo e com isso prolongar minha presença aqui. O
que, sinceramente, não quero. Minha intenção é outra.
— Não. Estão limpos. — Respiro aliviado.
— Então, não precisa. Vai acabar logo. — Como previ, o
sujeito termina esporrando no rosto de Rafaella. Ela limpa o rosto
com a barra do vestido, nem ao menos se importando em mostrar a
calcinha. A garota assumiu o papel de puta.
O segundo não espera mais, colocando-se na frente da
loira. Ele aparenta ser novo, duvido que tenha 20 anos. Foda-se. O
garoto irá se divertir um pouco. Meu cigarro termina e jogo a bituca
no chão, acendendo outro em seguida.
Alguns minutos depois, mais rápido que o anterior, ouço
gemidos roucos. Rafaella mal termina de engolir e o Soldato a
coloca de pé, beijando sua boca com o líquido. A cena deveria ter
algum efeito em mim, afinal, eu a beijei esta noite antes do jantar.
Non sento nulla[93].
A insignificância da mulher que está degenerando sua
imagem em minha frente grita aos quatro cantos da sala.
— Vo-você agora? — Ela olha por cima do ombro para
Homero.
— Não docinho — ele usa o apelido dado pelo primeiro. —
Comigo será diferente. — Afasto-me da mesa quando o homem de
1,95 metros, tatuado até o pescoço e olhos cinzas amedrontadores
agarra a mulher pelo braço. Ele rasga seu vestido ao meio com um
simples puxão. Ela grita assustada, colocando as mãos sobre os
peitos nus.
Ergo uma sobrancelha, constatando que usa apenas uma
tanga vermelha fio-dental. Os rapazes assobiam e ela cora.
Como é possível depois do que fez ainda corar?
— Gi-Giulio? — ela soa insegura.
— A porta está aberta, docinho — repito com certa ironia o
apelido que ganhou. — Se não quiser…
Rafaella olha para os outros soldatos, remexendo uma
perna na outra. A troietta está excitada?
Caralho! Não consigo evitar que um canto do meu lábio
suba num sorriso enviesado. A safada está gostando.
— Última chance — Homero sussurra ao pé do seu ouvido
como um demônio oferecendo escolhas. A respiração do infelicce
tão perto a faz arrepiar e balançar o assentimento com a cabeça. —
Seja uma brava ragazza[94] e obedeça, hai capito[95]?
Ela volta a balançar a cabeça de modo mais decisivo.
— Barriga na mesa e a bunda virada pra mim.
— O-o quê? — Homero coloca a loira sobre a mesa, sem
paciência alguma de repetir seu comando. Como fez com o vestido,
rasga a lingerie de uma vez. Rafaella solta um gritinho.
A loira olha para mim, e poderia jurar que outra mulher
pediria por salvação, mas a ragazza pede por autorização. Ela age
como se toda essa merda estivesse sob seu controle, e os soldatos
são pequenos peões tornando seus desejos mais profundos em
realidade.
Mostro-lhe com o olhar novamente a saída. Ela balança
negativamente. Então, dou de ombros, acendendo o próximo cigarro
e soprando a fumaça com desdém. É a resposta.
— Pelo visto está gostando do que está fazendo, não é,
docinho? — A mão grande desliza entre as bandas da bunda
redonda, num movimento para cima e para baixo. Estou afastado,
mas posso ver com precisão a excitação brilhando na mão de
Homero. A vadia realmente está excitada.
— Nã-não… eu só fiz porque Giulio pediu e…
— Shhhh… calada, docinho. Não gosto de ouvir um
brinquedo quebrado.
— Não… sou quebrada — Rafaella reclama e é prensada
pelo corpo de Homero.
— Quietinha ou não vou ser bonzinho com você, docinho. E
aceite o que vou te dar, pois costumo quebrar meus brinquedos. —
Ele empurra as costas dela de volta para a mesa, elevando o tronco,
momento que usa para colocar a camisinha.
Vejo o rosto de Rafaella vermelho, repleta de desejo pelo
desconhecido. Observo com os braços cruzados.
A troietta[96] deveria pensar melhor antes de fazer o que fez.
Agora, irá aguentar as consequências. A intenção era mostrar que
não se enquadra no papel de mia sposa. Não imaginei que fosse
gostar tanto.
Como sou benevolente… uma vez que pensei mais cedo
cortar a sua língua.
Homero chia um pouco mais para ela e pincelando o pau em
suas dobras. Ele empurra a lombar da loira encaixando-se não na
boceta, mas no cu apertado. Ela ofega, fechando os olhos enquanto
recebe todo o membro.
— Isso, vadia. Agora você vai rebolar essa bunda gostosa
com meu pau atolado no seu cu. — As palavras cruas a fazem
estagnar no lugar. O homem raivoso estala um tapa, deixando a
marca da palma na nádega branca. — Rebola, caralho. — Ele
segura seu pescoço, apertando até deixá-la sem ar. Percebo o
movimento do rabo que já fodi tantas vezes e Homero relaxa o
aperto. — Está aprendendo. Agora com vontade.
Sei que meu Soldato está se segurando, pois já o vi foder
antes. Uma cena grotesca, aliás. Ele não possui preferência de
corpos, afundando-se em homens e mulheres. Curiosidades à parte,
passei da minha cota de ver os fetiches alheios em nossos clubes.
Rafaella continua o movimento e para meu espanto, vejo a
mão do Soldato entre suas pernas, estimulando o clitóris. A mulher
grita, mas não de dor e sim de prazer. Expiro o riso, surpreendendo-
me. Os gritos se prolongam indicando o orgasmo prolongado.
Homero acelera as arremetidas brutas que balançam a mesa.
Por fim, ele urra, indicando que terminou com o choramingo
da loira, completamente exausta sobre a mesa. Caminho em
direção à porta e no instante que minha mão chega na maçaneta
ouço-a me chamar.
— Gi-Giulio… e agora?
— Agora você irá sumir da minha vista. Você tinha razão ao
dizer que não divido. — Sorrio sarcástico. — Eu não divido o que é
meu. E você, cara mia, não é mais o meu brinquedo.
A mulher se coloca sentada sobre a mesa, sem qualquer
pudor por estar nua.
— Ma-mas você estava procurando aliança. E nó-nós
estávamos saindo há tempos, eu… Você ia me pedir em casamento
— afirma com tanta confiança que convenceria a qualquer um.
— Seu discurso é verdadeiro por estar no passado, mas só
até a parte do estávamos. Eu jamais pediria uma mulher como você
em casamento. Ainda mais já estando noivo. — Aproveito para
acender o próximo cigarro. — Foi conveniente para ambas as
partes… até não ser mais. Você passou por cima da minha palavra,
Rafaella. Assumiu assim um débito pela indolência para com o Capo
de Palermo. Pagou a dívida com direito até a um orgasmo.
Parabéns.
— Eu fiz isso pra você. Pra satisfazer você.
— Não. Você fez porque quis — Solto um riso sarcástico. —
E como quis… se colocou na posição que merece, fazendo sexo por
obrigação como todas as putas que estão agora lá dentro.
A comparação é infeliz, pois mesmo nossas meninas são
melhores do que ela. Ninguém quer mostrar o que não é. Rafaella é
falsa como um leme em um veleiro.
— Si-sim, mas… — Homero alcança sua lateral, segurando
seu braço com firmeza.
— O que fazemos agora, capo?
— O que quiserem. Só a mantenham viva e a deixem em
sua casa. — Rafaella percebe só agora que sua vida corria risco de
morte. Consigo ver o medo em seus olhos.
— Você comprou um anel… — choraminga, sendo puxada
por um dos soldatos.
— Comprei para minha noiva — revelo. Rafaella arregala os
olhos e quase sai dos braços dos homens, quase. — Minha noiva é
pura, Rafaella. Ingênua e casta, como uma verdadeira noiva da
Cosa Nostra. Não uma garota sem qualquer virtude como você. —
Minha versão mais repugnante vindo à tona com cada palavra.
Hipócrita. Castidade nunca foi sinônimo de virtude. — Tudo o que
você não é.
— Vo-você não pode me deixar. — Ainda argumenta.
— Adeus, Rafaella. Não me procure nunca mais. — digo
ríspido, sob o batente da porta.
— Quer ir embora, ragazza? — o Soldato mais jovem
indaga.
— E-eu posso? — a loira responde com outra pergunta,
querendo ficar. Troietta.
— O serviço terminou. E você não está em dívida com a
famiglia — Homero devolve.
— O que acontece se eu quiser ficar?
Os risos baixos mostram que a pequena lição dada à
Rafaella durará a noite toda.
Bufo com força a fumaça, e saio da sala, ouvindo os
sussurros dos homens que passam a seduzir meu ex-brinquedo.
Na sequência, pego meu celular procurando o contato de
Fausto. Meu irmão teria que dar um jeito antes que o
pronunciamento de Rafaella causasse maiores estragos.
Caralho.
Não tem escapatória.
Terei que adiantar o anúncio do noivado de qualquer forma.
FRANCESCA ZANCHETTA
ALGUMAS SEMANAS DEPOIS

A noite estava tão clara que as estrelas pareciam ainda mais


brilhantes formando um véu azul-escuro com lindos cristais
descendo por toda a extensão.
Respirei profundamente, deixando a brisa noturna invadir
meu quarto por conta das portas duplas da sacada que estavam
abertas.
Não me sentia tão relaxada assim há algum tempo.
Eu precisava mudar o foco para algo além do noivado com
Giulio ou ficaria louca.
Em que pese existir a possibilidade de qualquer castelo que
construa sob a areia desmoronar, ninguém destrói a bela lembrança
do castelo construído, mesmo que por um breve momento é
possível desfrutar da imagem, não é?
Não sei…
Eu gostaria de manter a imagem pelo menos. Então, guardei
a sensação do meu primeiro beijo como uma doce recordação.
Queria esquecer… O que era muito difícil. Por isso, julguei
ser melhor ter outras preocupações para canalizar as energias em
algo além da possível vida conjugal.
Passei a ficar horas na internet pesquisando sobre a
universidade que logo frequentaria. Eu podia ainda sonhar com
outras coisas enquanto não era a esposa de um Caporegime. Na
atual conjuntura, eu era apenas a filha de um.
Giulio continuava aparecendo constantemente com a
mesma loira peituda. E tudo dava a crer que o relacionamento era
sério.
As pequenas pontadas de ciúmes do príncipe fictício que
criei em minha mente e usava o corpo do meu noivo apenas para
caracterizá-lo passaram a doer menos com o tempo.
De verdade? Era apenas orgulho ferido.
Sabia que para os homens feitos ter uma noiva da máfia não
passava de obrigação. Dio Santo. O casamento em si era uma
obrigação.
Papà xingava toda vez que via algo a respeito nas colunas
sociais de seu jornal. Ainda mais quando passaram a mencionar a
tal noiva como a escolhida. Para o senhor Zanchetta aquilo era um
total desrespeito não com o nosso clã, mas com a Cosa Nostra.
Por mais que papà não fosse adepto à modernidade, Luigi
se prontificava em deixá-lo a par dos acontecimentos quando as
notícias corriam apenas no mundo digital.
Mammina tentava amenizar, enfatizando a fala diminuta de
Giulio nas reportagens em que apresentava a loira apenas como
amiga.
Mas papà não retirava a carranca do rosto até se distrair
com outros assuntos.
No início incomodava-me ao ponto de sair da sala. Lidar
com meu ego ferido era uma coisa, agora com a mágoa estampada
no rosto dos meus pais era outra.
Sem contar que todas as vezes, mammina vinha até meu
quarto de madrugada me checar quando pensava que estava
dormindo. Ela colocava a mão com suavidade em minha testa para
auferir possível febre.
Eles ainda tinham medo de que qualquer fator estressante
pudesse prejudicar minha saúde. E as notícias de Giulio ser um
completo mulherengo após o compromisso firmado podia ser um
gatilho.
Não importava quantos exames eu fizesse atestando que
estava tudo bem. Para papà e mammina quase me perder foi um
trauma que irão carregar para sempre.
Uma batida na porta faz com que me sobressalte, tirando-
me do devaneio. Então, percebo que ainda estava encarando as
estrelas sob o luar.
— Piccola? — Meu irmão aparece no vão da porta. —
Posso entrar?
— Uh-hum… — assinto, fechando as cortinas e caminhando
para me sentar na cama. — O que foi?
Luigi tem aparecido mais vezes em meu quarto para
conversar depois do incidente do “Boa noite, Cinderela”. Tudo bem
que boa parte das vindas era para me dar sermões gigantescos
sobre estranhos em festas, etc e etc.
— Não faça essa cara. — Acredito que minha feição de
tédio saiu sem que percebesse. — Não estou aqui para falar sobre
bebidas e saídas às escondidas com estranhos. — Suspiro,
relaxando os ombros. Ele sorri.
— Ainda bem… estou cansada de ouvir o quanto fui idiota.
— Entrelaço os dedos sob minhas coxas nuas. Ainda vestia o short
e top que usei durante a tarde. Estava me preparando mentalmente
para tomar banho e me vestir de acordo com o que mammina
entende ser conveniente para suas filhas usarem na hora do jantar.
Geralmente, vestidos e pérolas. Sempre pérolas…
Mammina dizia que era para destacar as joias raras que
somos dentre todas as outras garotas da sociedade. Blé!
Todavia… Eu gosto de pérolas.
Brincos pequenos contendo apenas a bolota acetinada
combinam com tudo. Por este motivo, costumo sempre usar um par
nas orelhas.
— Você não é idiota, Francesca — aponta, desmanchando o
nó que dei nos dedos ao aproximar-se, arrastando a cadeira da
penteadeira na qual se senta à minha frente. — Você é a garota
mais inteligente que já conheci.
— Você deve só conhecer garotas sem cérebro.
— Para com isso. Se bem que algumas poderiam não ter
mesmo, mas… — ele brinca, fazendo-me rir. — Você é a mais
esperta, picolla. — Luigi acaricia o dorso de minha mão com o
polegar.
— Então, por que você veio um milhão de vezes no meu
quarto atestar sobre isso, apontando que eu não devia ter saído
daquela maledetta festa?
— Eu… — ele hesita. — Eu fiquei preocupado, você é
minha irmãzinha e quando te peguei nos braços desacordada tive
uma lembrança horrível, Thesca, quando… quando…
— Quando você me encontrou logo após a primeira quimio.
Eu sei, Luigi. — Agora sou eu quem segura sua mão. — Eu sei…
me desculpa.
Meu irmão exala o ar devagar, pesaroso, depois eleva os
lábios num meio-sorriso.
— Você se formou com honras, picolla. Nunca duvide de
você, está bem? Sei que nosso mundo não é justo com as
mulheres, mas saiba que passo por cima de todos por você e
Michela — destaca a importância que temos em sua vida. Contudo,
eu sei, e ele sabe, que sua lealdade é para com a Famiglia.
Luigi se afasta, apoiando as costas no encosto da cadeira e
cruzando os braços musculosos em seguida. A camisa social cinza
não disfarça seu tamanho. Meu irmão depois dos dezesseis anos
nunca mais foi franzino. Seus ombros, hoje em dia, tão largos, são
reflexos disso.
— Não sei como começar essa conversa, Tchesca. Papà
precisou sair, mas ficou com medo de você receber antes que ele
chegasse.
A menção do assunto ter que ser tratado por papà e não por
ele faz meu estômago dar um salto carpado invertido. Levo a mão
sem querer na altura do local que retorceu, deixando meu irmão
preocupado. O local também é aquele no qual costumava sentir a
dor do tumor.
— Eu estou bem… só… estou ansiosa. Fala logo, ou vou
morrer, e não será de câncer.
— Não brinque com isso — aponta o dedo para mim. —
Nunca brinque com isso, piccola.
— Sta bene, sta bene… parla, cazzo[97] — implico. Ele dá
um peteleco com a ponta do dedo em meu nariz, fazendo-me sorrir.
Em seguida, relembra da sua tarefa e seu rosto fica nublado
com certa tensão.
— Giulio Moretto pediu para marcar a festa de noivado —
cospe de uma vez, deixando-me atordoada momentaneamente.
Minha postura muda, esticando a coluna muito mais do que deveria.
Perco momentaneamente a fala. — Para o próximo mês.
— O quê? — A fala retorna mais rápido do que pensava e
tornei-me uma soprano digna de ópera. — Como assim?
— Exatamente isso que você ouviu — confirma.
— Mas ele… ele não estava namorando uma modelo?
— Ele nunca assumiu o compromisso com qualquer mulher,
Francesca. A mídia só aproveitava para ter notícia e fofocar a
respeito. — Meu irmão levanta-se, dando por cumprida sua missão.
Infelizmente, usando a fala de muitos homens da famiglia para
acobertar seus deslizes.
Pisco algumas vezes, querendo acordar do sonho esquisito,
mas continuo vendo meu irmão em meu quarto. Balanço a cabeça
freneticamente, tomando consciência do momento. Fito Luigi e me
pergunto se um dia ele será assim. Espero que não.
— E é isso? Papà aceitou?
— Papà não tem escolha quando o próprio Don Moretto
determina algo, Tchesca. — Ele já está a meio caminho da porta. —
Mammina está ao telefone, organizando o mínimo que uma festa de
noivado exige. Ainda mais do Sottocapo da Cosa Nostra. — Luigi
tentou arduamente manter a compostura até ter que mencionar o
cargo de Giulio, fazendo-o com certo deboche.
— Mammina já está organizando a festa? — Minha voz de
soprano reaparece.
— Mammina não gosta de ser pega de surpresa. Está tendo
um ataque de nervos lá embaixo. Seu aniversário de 15 anos ela
programou desde que você nasceu. Imagine como a Signora
Zanchetta está agora? — Ele tenta amenizar a situação,
gesticulando de modo desajeitado para imitar nossa mãe ao
telefone.
Sei bem o que está fazendo.
Bufo um riso tímido para a brincadeira boba demonstrar que
surtiu efeito. Não surtiu. Ele tentou, pelo menos.
— Tome logo seu banho, picolla. Não vai demorar para
mammina anunciar que o jantar está pronto.
Meneio a cabeça, vendo-o fechar a porta atrás de si, mas
permaneço alguns minutos na mesma posição, sentada em minha
cama.
O que será que aconteceu para Giulio querer correr com
tudo agora?
Não é normal isso.
Bom… eu recebi a notícia que fui escolhida na mesma noite
em que fez o pedido para papà. O noivado existe desde aquela data
de qualquer forma. A festa só irá anunciar para todo mundo, além
da famiglia.
Jogo meu corpo sobre o colchão, suspirando cansada.
É… pelo visto, meu foco voltará a ser um noivado.
Viro o rosto, enxergando uma frestinha do céu estrelado e
suspiro, fazendo um pedido silencioso à estrela mais brilhante que
aparece no vão das cortinas.
Espero que durante esse noivado, eu possa colocar alguns
tijolos na construção do meu castelo de areia.
Talvez o primeiro patamar pelo menos?
Quem sabe?
FRANCESCA ZANCHETTA
ALGUNS MESES DEPOIS

Falta exatamente um mês e três dias para a festa de


noivado e mammina não consegue parar, mesmo depois de ter
resolvido tudo. Ou quase tudo.
Signora Zanchetta fez o impossível, mas conseguiu fechar
com um dos melhores buffets da Sicília, determinou todo o cardápio,
fazendo-me provar 157 opções de canapés.
Sim, eu contei.
Contratou um DJ que está em alta e também uma pequena
orquestra para as danças oficiais. Sem contar que conseguiu roubar
a cerimonialista mais requisitada de Messina, mesmo que esta não
tivesse a data disponível. Signora Zanchetta fez com que surgisse
um calendário a mais em Sicília só para a mulher preencher em sua
agenda o meu noivado.
A determinação dessa mulher não é brincadeira.
Talvez por este motivo costuma ser eleita como presidenta
do Consiglio delle Damigelle d’onore[98]. É ela quem acaba
organizando boa parte dos bailes beneficentes de qualquer forma,
ocupando ou não a presidência.
Neste momento, estamos em uma das lojas mais caras de
Messina, escolhendo nossos vestidos.
— Mammina, o que acha deste aqui? — Michela surge,
segurando um vestido verde musgo acetinado de alças finas.
— Com este rasgo na lateral? Mas nunca — Mammina
ergue o vestido indicando a abertura. Ela bufa o ar e resmunga algo,
mas retorna ao provador. Uma pena, pois Michela ficaria linda nele.
— Podemos colocar um tecido bordado por baixo, Signora,
na mesma cor. Seria um detalhe delicado — a lojista indica uma
solução ao ver a chateação no rosto de minha irmã. Mammina dá
uma segunda olhada para o vestido.
— E conseguiria entregar em uma semana? — a Signora
Zanchetta desafia.
— Mammina! — Michela a repreende. — O noivado é só
daqui a um mês.
— Não importa. Se o acabamento não ficar bom, teremos
apenas três semanas para encontrar outro.
— Sim, Signora. É possível fazê-lo em uma semana.
— Você realmente gostou do vestido? — Mammina certifica-
se, vendo a alegria retornar às feições da filha. Michela assente com
a cabeça. — Sta bene. Faça as alterações. — Ela contém o sorriso,
mas consigo ver antes que vire o rosto.
Este é um dos momentos divertidos que consigo ter com a
Signora Zanchetta. Especialmente quando ela deixa transparecer o
enorme coração, pois escolheu a lojista mais nova, por conta das
famílias que estão sob o auxílio da famigilia, ela sabe que se trata
da mulher de um dos soldatos mortos e que a comissão que irá
receber com a venda dos três vestidos irá suprir a necessidade de
pelo menos dois meses.
Mammina pensa que é discreta quando toma essas atitudes.
Eu vi o instante no qual entregou um cartão de crédito para a
mulher. Seu falecido marido sofreu um acidente no porto,
justamente quando papà e Luigi estavam lá. Se existe alguma
ligação com a benevolência específica da Signora Zanchetta, não
sei. Porém, não é a primeira vez que vejo e acredito que não será a
última.
Bom… enquanto Michela já escolheu o seu, eu por outro
lado estou em dúvida dentre dois. O vestido azul turquesa é mais
recatado, sem decote algum na frente, alças finas e costas
completamente expostas. O tecido possui um brilho próprio que
percorre toda a extensão até as barras longas.
Agora o vestido que mais me chamou a atenção era o
bordô. O contraste da cor forte com o tecido leve dava um ar de
jovialidade inocente e sedução. Eram faixas de tecido
transpassadas no corpete justo que abriam na cintura formando
uma saia mais rodada, composta por mais tecidos.
Tive a impressão de ver uma nuvem vermelha quando a
lojista trouxe para mim. No entanto, a justeza do material no torso e
as mangas que caíam na lateral deixando os ombros à mostra,
indicavam que não se tratava de algo vindo do céu.
O vestido era exatamente como eu me sentia. Uma
contradição. Ora a maciez e volume do tecido eram inocentes, ora o
movimento do quadril mostrava uma fenda escondida, a qual
apareceria apenas se eu quisesse.
Eu queria este vestido. Sim. Era este o vestido escolhido
para um noivado de aparências.
— Mammina, escolhi o meu — digo, saindo do vestiário. A
Signora Zanchetta vira vagarosamente para mim, pois ainda
conversa distraída com Michela. No instante em que me olha, fica
apreensiva. Os olhos analíticos parecem criteriosos. Ela inclina a
cabeça como se assim melhorasse o ângulo para me examinar.
Tento buscar por Michela, querendo que minha irmã me
auxilie em eventual argumentação para manter o que quero. Mas
ela parece me estudar tanto quanto mammina.
Caspita.
Será que escolhi o pior vestido da loja?
Volto-me para o espelho do provador, subindo no pequeno
patamar à minha frente que seria para a modista marcar a barra, e
agora serve para me dar a noção do uso do salto alto. Giro o corpo,
vendo o movimento da nuvem vermelha que a saia forma. Suspiro
derrotada, pois nenhuma delas diz nada.
— É perfeito, picolla — Mammina finalmente sussurra ao
meu lado, extasiada. — Você está… bella. — Ela eleva as mãos
sobre a boca e noto que esconde um pequeno soluço.
— Mammina… ah… não chora. — Desço do degrau,
segurando a saia do vestido e abraçando-a.
— Minha picolla é uma mulher — Ela enlaça minha cintura,
apertando-me junto de si. — Ah… minha picolla… sonhei tanto com
este momento. Pensei que… Oh Dio Santo… obrigada por permitir
isso. Grazzie eterna.
Signora Zanchetta se emociona tanto que acabamos
recebendo plateia, posto que as demais lojistas comparecem no
provador para participar do momento.
Aceno para Michela se aproximar e ficamos as três
abraçadas. Ouço os murmurinhos das lojistas emocionadas, o
choro de mammina contagiou a todos, e quando dou por mim, eu e
Michela estamos com os olhos úmidos.
— Ah… mammina… nós vencemos — apaziguo,
relembrando de nossa luta.
— Você venceu, Francesca, cara mia. Você — enfatiza. — E
agora está noiva. — Ela enxuga um lado do rosto. — Do futuro Don.
Figlia… isso significa tanto para sua mammina. Tanto…
Signora Zanchetta segura meus ombros, afastando um
pouco Michela para me olhar novamente no vestido.
— Seu noivado entrará para a história, figlia mia. Como
devia ser…
Encaro-a com estranheza por conta da frase, mas logo
balanço a cabeça, imaginando que toda mãe de uma mulher da
máfia gostaria que sua filha casasse com o maior cargo da
organização.
Enquanto mães normais, criadas no sistema patriarcado,
desejam que suas filhas casem com empresários, médicos,
advogados ou qualquer cargo que sustente a família, as nossas
almejam que sejamos esposas de Dons, Caporegimes ou Tenentes.
Pobre coitadas aquelas que se submeteram a casamentos
com soldatos. Dio Santo. Reviro os olhos por conta dos conceitos
arcaicos que sei estarem completamente ultrapassados nos dias
atuais.
Porém, que nos submetemos para o bem de nossas vidas e
daqueles que amamos. A máfia trabalha como uma verdadeira
pirâmide quando o assunto é vingança. Então, se um membro se
debanda, todos saem prejudicados.
Essa é a razão que me fez escolher o vestido que achei
mais bonito da loja. Quero encantar ao meu noivo. Ele me
negligenciou todos esses anos, exibindo uma ragazza ao seu lado.
Ela parecia muito bela nas fotos. E sei que Giulio não se detinha
apenas com uma.
Os homens feitos frequentam bordéis da famiglia desde
muito jovens. Infelizmente, descobrir sobre esta parte nas últimas
conversas que ouvi em alguns eventos não era do meu interesse.
Ainda mais quando um dos soldatos deixou claro que quando Giulio
e seus irmãos entravam em qualquer um desses ambientes voltados
para a luxúria, as ragazze não agiam como de costume com eles.
Todas queriam a atenção dos filhos do Don. Um deles
apontou, justamente isso, como motivo. Porém, outros afirmaram
sobre as habilidades extracurriculares que os herdeiros possuíam.
Franzo o cenho, com a recordação, incomodada com a leve
pressão em meu baixo ventre. Pressiono uma perna na outra,
identificando a mesma umidade que molhou minha calcinha. Eu me
imaginei em cima de um palco, deslizando as alças finas de uma
camisola e sentindo o ar gelado tocar meus mamilos, enquanto que
Giulio me observava, com um sorriso travesso, esparramado no
sofá de couro preto à frente.
Senti minha boca salivar, querendo seus lábios nos meus,
suas mãos grandes e calejadas tocando minha pele sem qualquer
barreira de tecido sobre minha cintura. Ele me puxava entre suas
pernas e…
— Francesca? Tchesca? Sta tutto bene? — Michela me
olha, curiosa, segurando a cortina do provador. — Você está
demorando e a modista precisa levar o vestido para fazer os
ajustes.
— Si-sim… — gaguejo, passando as mãos sobre o vestido
que ainda estava em meu corpo. Ufa… — Já vou tirar. Me espera
junto com a mammina, sim? — peço. Minha irmã me analisa,
hesitante. — Vá, Chela. Pode ir…
— Está tudo bem mesmo? Sabe que não há nada de errado
em estar com medo.
Balanço a cabeça, pressionando as pálpebras numa careta.
— Medo do quê? Do noivado? — indago, tentando passar
confiança em minha voz. — Não seja boba. Será apenas uma festa
com os mesmos convidados que já conhecemos.
— Será maior, Tchesca. Você sabe disso. E depois… — Seu
olhar desvia do meu. — Depois, ele marcará logo a data, como
todos os outros. E nós — ela engole em seco — vamos nos separar.
Dou um passo até Michela segurando suas mãos nas
minhas.
— Michela, ouça bem: nada, nem ninguém, pode nos
separar. Somos irmãs e eles respeitam isso. Giulio não me afastará
de você. Eu estou no seu coração e você está no meu — falo,
colocando uma mão sobre seu peito, e a sua sobre o meu. —
Teremos chamadas de vídeo todos os dias. É uma promessa.
Vejo o esboço de um sorriso e me contento com isso. Não
poderia continuar emocionando-me a cada minuto. Ainda tinha um
noivado para sobreviver e um noivo para conquistar. O seu respeito,
pelo menos.
Não tenho a experiência das ragazze com quem Giulio
Moretto já se envolveu dentro da famiglia, muito menos com as
garotas de fora dela. Mas… sou a princesa que esperam que eu
seja. Assim, o máximo de experiência que tive foi aquele quase
beijo, ou o começo de um…
O beijo que incrustou em minha pele e em minha alma o
desejo ardente em sentir Giulio Moretto de novo.
Antes eu havia criado em minha mente o homem perfeito,
por ser completamente iludida. Então, tive acesso às notícias, que
revelavam o quanto meu noivo era mulherengo.
Santa madonna.
Mal consigo respirar ao lembrar da última foto estampada no
site de fofocas, onde Giulio estava em uma lancha, vestindo apenas
uma bermuda cargo cáqui. O abdômen de gominhos, o peitoral e
ombros largos não me passaram desapercebido. Não pude ver seus
olhos, pois estavam sob os óculos de sol.
O príncipe sombrio que à luz do dia esbanja riqueza e poder,
enquanto que à noite é uma das foices que dilacera a humanidade.
No entanto, um príncipe. Um belo e másculo príncipe.
Não é possível resistir àquilo.
E ele será meu futuro marido. Talvez consiga despertar nele
o mesmo sentimento que vejo refletido nos olhos de papà quando
ele olha para mammina. Talvez… ele possa gostar de mim? Se me
conhecer?
Ele não quis te conhecer até agora. — Minha consciência
me relembra.
Porém, agora, ele quer. Então… posso aproveitar a chance,
não posso?
Respiro fundo, saindo da nuvem de tecido que se formou
abaixo de mim. Uma linda nuvem na cor sangue.
A cor que revelará minha pureza em nossa noite de núpcias.
De repente me recordo da conduta da prima Erica Esposito.
A menção sobre a prova da virgindade com a mancha de sangue
me fez recordar de como ela conseguiria fazer isso. Todas nós
sabemos que ela saiu não apenas com um, mas com vários homens
feitos. E isso, antes mesmo de completar 15 anos. Lembro-me do
meu aniversário no qual ela saiu inclusive com meu irmão.
Pego o vestido, ajeitando-o no cabide. Em seguida, visto-me
com a saia evasê floral e a blusa branca justa ao corpo.
É… realmente não sei como minha prima irá conseguir. No
entanto, gostaria de ter metade de sua coragem. Se fosse um pouco
mais audaciosa, poderia ter aprendido pelo menos a beijar na boca.
Quem sabe assim seria mais interessante e menos patética.
Meus ombros caem conforme deixo a derrota me atingir.
— Francesca! — Um grito do saguão me desperta e tenho
para mim que agora é mammina. Saio do provador apressada,
deixando o vestido aos cuidados da modista que aguardava.
Sorrio com um pedido de desculpas implícito e sigo ao
encontro da Signora e senhorita Zanchetta, sendo a terceira com o
mesmo sobrenome a completar o trio.
Será que meu sobrenome irá mudar logo?
Francesca Moretto, recito em minha mente.
Estufo o peito, como se o pensamento diminuísse a fisgada
no orgulho por ser menosprezada por aquele que me dará o tão
aclamado sobrenome.
Gostaria que Giulio não me desse apenas o status de
esposa, mas algo que poucos da famiglia realmente sabem o que
é…
Um sentimento tão raro e puro, que casamentos reais são
construídos na ilusão de sua existência.
Amor…
Queria muito ser algo além de amante para meu futuro
marido. Queria ser amada.
GIULIO MORETTO

Meus ouvidos ardem com as reclamações de Nino sobre os


últimos carregamentos de M249 recebido no porto de Marsala. O
Caporegime de Trapani queria ter ficado com pelo menos 50 das
peças para si. Só por cima do meu cadáver. Stronzo.
O armamento criado na década de 80 para o Pentágono
custa aproximadamente cinco mil dólares a unidade, e conseguimos
importar quantidade suficiente para suprir o pequeno exército da
República Tcheca, país que encomendou o pedido.
Ter uma infantaria provida com metralhadoras leves capazes
de cuspir 850 balas por minuto poderia garantir a vitória em algumas
das batalhas enfrentadas por um país que ainda sofre guerrilhas de
rebeldes.
Quando a ligação para aquisição de armamento pesado
vinha do próprio Ministro de Segurança significava desespero total.
Sentimento que alimenta o negócio mais lucrativo para a Cosa
Nostra.
O tráfico de drogas se tornara ultrapassado. Até porque, a
união de países voltados a combater mentes entorpecidas
provocava uma onda de policiamento maior do que eu gostava de
lidar.
Tínhamos o controle por manter boa parte da polícia em
nossa folha de pagamentos mensal. No entanto, a Europol crescia,
colocando pessoas menos corrompíveis e idealizadas numa utopia.
Algumas pessoas acreditam que a corrupção jamais irá
bater à sua porta e que os princípios de moral e boa conduta serão
mantidos de qualquer forma.
Poverino[99]. Eles não veem que se corrompem em atitudes
tão pequenas quanto assumir o lugar do outro na fila do pão.
As mentes são implicitamente persuadidas a se
corromperem no simples fato de querer usufruir de vantagem sobre
o outro.
Era exatamente o que estava acontecendo aqui. Nino
resmungar por vinte minutos sobre a necessidade de ficar com
metralhadoras em uma província pequena como a dele, justificando
os poucos ataques que sofreu este ano.
O capo de Trapani está puto, pois fiquei em cima deste
carregamento e ele não pôde usufruir da venda paralela. Eu sei, ele
sabe. Mas temos que fazer de conta que não.
Nino Basile é um aliado de qualquer forma. Ele e seu irmão
Tito aceitam as mudanças que tenho implantado aos poucos.
Ambos lutam para conquistar a credibilidade por serem jovens
demais. Até o momento, seus portos e negociações têm dado tanto
lucro quanto os demais.
Quando o vecchio Basile anunciou sua aposentadoria e
passou o cargo para o segundo filho foi um escândalo na Cosa
Nostra. Ainda mais tendo o apoio do Don, mio padre.
O caçula, Nino, possui 23 anos, dois anos a menos que Tito.
Mas sua inteligência sempre foi algo notório na Famiglia. Por causa
disso, ficou com a incumbência do território de Trapani.
Poucos sabem, mas o velho Basile está enfrentando uma
doença rara que o deixa extremamente debilitado. Preferiu passar o
cargo ainda em vida e quando pode opinar nas decisões dos filhos.
É surpreendente, mas ambos os Caporegimes escutam o pai.
O território deveria ser apenas Trapani. Mas Tito conquistou
a província de Enna quando o antigo Caporegime, Abel Vacchio,
apostou o território na cutelaria. O imbecil, irmão de Germano
Vacchio, pensou que poderia vencer Tito Basile.
A competição surgiu como uma brincadeira inventada por
nossos avós que gostavam de confeccionar suas próprias lâminas.
Para testá-las nada mais eficaz do que fatiar alguns dos nossos
inimigos. Assim, surgiram as cutelarias em cada região.
A lâmina do Vacchio mais velho podia ter sido forjada de
forma a garantir força e envergadura, porém o desafio entre nós
nunca era apenas na confecção da arma em si. A habilidade no
manuseio também conta, e nisso Tito venceu de modo glorioso.
Idiota. Tito foi misericordioso e durante a luta deu
oportunidade para terminar sem morte. Vacchio não aceitou e
enfrentou até receber o golpe fatal e o território que antes era do clã
há mais de 10 anos passou para os Basile.
Admito que para mim foi uma mudança vantajosa. Nunca
gostei dos Vacchios.
Ademais, o vecchio Basile era aliado do meu pai e ficou do
seu lado contra o tráfico humano, e agora, são seus filhos que estão
do meu lado para aprimorar o negócio da Cosa Nostra apenas em
armamentos.
As drogas demandam trabalho em excesso quanto à
fiscalização, menos que o tráfico humano, mas ainda assim, mais
trabalho do que traficar armas.
O fato é que a importação e exportação de revolveres,
metralhadoras, balas e as mais diversas tecnologias para fomentar
a matança humana parece ser mais lucrativo e menos arriscado
para nossos membros, posto o desinteresse dos governos em
colocar traficantes de armas de fogo atrás das grades.
Tudo bem que essa preocupação nunca atingiu as cabeças
da organização. A perseguição aos mafiosos geralmente estaca-se
na base da pirâmide, preenchida pelos soldatos. Jamais subindo ao
topo. E com isso, acabávamos perdendo homens por algum tempo.
— Duvido que não ficou com algumas daquelas belezuras,
Nino — Fausto provoca, bebericando o vinho tinto e mantendo o
olhar no salão. Ele faz isso para evitar meu olhar.
Não adianta, coloco-me à sua frente e encaro meu irmão de
modo a repreendê-lo. O safado sorri.
— Mesmo que tivesse — Nino expira o ar com um riso
malicioso, — seu irmão saberia.
Realmente eu sei.
Não foram 50, pelo menos. Desisto por ora da indolência de
Fausto e passo a analisar os outros convidados. Parece que todos
os clãs da Cosa Nostra vieram prestigiar o meu noivado.
Sorrio como bom anfitrião. Eles não têm escolha. Esses
eventos são necessários para a união da famiglia. Nossas relações
ficam mais sólidas com as festas, onde apenas os membros da
organização participam.
Deixe que as pessoas se sintam especiais e faça com que
isso seja algo inerente ao propósito dos negócios. A presença
impositiva de comando sempre está vinculada à exaltação
subliminar que ocorre durante as comemorações.
E, meu noivado, sendo o futuro Don, condiz com toda a
tradição que solidifica a lealdade a Cosa Nostra.
Percebo que algumas moças encaram nosso círculo de
homens discretamente. Somos ainda parte da elite que se mantém
solteira. Algumas noivas escolhidas sim, uma vez que Tito
proclamou mês passado seu noivado. Então, os demais, exceto por
mim, estão descompromissados.
Estudo os rostos femininos, ouvindo o leve suspirar de
costume. Elas são puras, tão inocentes ao ponto de desviar o olhar
e enrubescer. Algo que sempre notei ser diferente de Francesca.
Minha noiva não aguardava para ser admirada como as outras.
Geralmente, circulava pelas festas despretensiosamente.
Se não fosse mulher poderia jurar que era espiã, pois flagrei
várias vezes seu cenho franzido como se estivesse prestando
atenção em conversa alheia.
Estou reprisando em minha mente as festas nas quais me
tornei obcecado por uma ragazza que nem sequer tinha completado
doze anos de idade, quando noto uma garota ruiva fitando-me de
modo desafiador.
Ela bebe o líquido borbulhante da taça comprida, no intuito
de ser provocativa. Sorrio para lhe dar a falsa impressão que
deseja. Sei muito bem quem ela é. Erica Spadotto, filha do tenente
de Tremestieri, em Messina. A garota conhecida por dar os
melhores boquetes em todas as festas.
Talvez queira me dar um presente de noivado, penso.
Garota inocente. Se ela soubesse do que sou capaz, teria medo de
me olhar dessa forma.
De repente o ar em todo o salão muda. Os murmurinhos das
Signore [100]
se silenciam e até mesmo as vozes graves masculinas
ficam escassas momentaneamente.
As cabeças se viram na mesma direção, enquanto que
olhares já estão voltados para a entrada da festa. Acompanho-os,
sentindo a eletricidade no ar conforme o som de passos adentram
ao salão.
O clã Zanchetta preferiu fazer a entrada triunfal com todos
presentes. À frente vejo Luigi, Alessio e Dario, os três mosqueteiros
com ternos completos de cores escuras. Nunca pensei que fosse
possível dizer isso, mas existe uma variação incrível de cinza.
Luigi é o primeiro a fazer contato visual. Ele tenta emitir
algum tipo de alerta com o olhar. Não sei se tenho pena ou raiva
dele.
Sinceramente? Sabendo quem sou…
Pena não é um sentimento que eu conheça.
As mulheres Zanchetta são as próximas. Meus olhos notam
apenas duas, a matriarca e a segunda filha. Os vestidos de festa
são tão suntuosos e elegantes quanto das outras damas presentes.
E então, por fim, o silêncio de antes transforma-se em um
som de comoção dentre suspiros e “ós” por todos os lados.
Os homens se ajeitam aprumando os peitos como pavões
abrindo os rabos emplumados para a fêmea despender-lhes um
segundo de atenção.
Enrico Zanchetta ultrapassa o imenso arco da entrada do
salão ao lado de uma mulher exuberante num vestido vermelho
carmim, parte dos cabelos presos num penteado elaborado que
deixa fios castanhos deslizarem graciosamente pelos ombros nus.
A maquiagem não é exagerada, mas enaltece a cor verde
água dos olhos que me perseguem todas as noites.
Vejo o inflar do seu peito assim que nossos olhares se
cruzam e o momento em que mia Bambola prende a respiração,
antes de seguir ao meu encontro.
De modo involuntário jogo os ombros para trás orgulhoso,
sabendo que eu sou o pavão escolhido. Talvez não por vontade
própria da fêmea em questão, um pequeno detalhe.
No instante que minha noiva começa a andar em minha
direção, outra onda de murmúrios, dentre eles agora masculinos
começa. Conforme Francesca caminha é possível ter o vislumbre de
uma das pernas delineadas, que ultrapassa algumas camadas do
tecido leve que compõe sua saia.
A imagem de Francesca Zanchetta em um vestido que foge
completamente aos padrões de noiva recatada me faz querer tê-la
em minhas garras.
Observo-a caminhar lentamente e sigo fitando-a da cabeça
aos pés, faminto.
Quem Francesca se tornou, afinal?
Fiz questão de manter certa distância até que mia Bambola
tivesse idade suficiente para brincar. Mas… A visão estonteante
rodopia mil e uma imagens em minha mente. Confesso que algumas
transbordam luxúria.
Fazê-la minha e tomá-la é para ser o declínio do clã
Zanchetta, não o meu.
Quando meus olhos estão em seu rosto, semicerro as
pálpebras ao notar o sorriso vitorioso.
Ela sabe que me surpreendeu.
Ah… mia Bambola…
Deixo meu lábio subir de canto, bufando um riso contido.
Atrevida…
— Se quiser dar o passe, não me importo nem um pouco de
ter as sobras do futuro Don — Nino Basile diz zombeteiro, tirando-
me do devaneio no qual minhas mãos deixavam marcas na coxa
exposta de Francesca.
Pressiono os lábios, irado, e vejo o filho da puta passar a
língua sobre os lábios, cobiçando o que não lhe pertence.
— Se não quiser perder o que tem entre as pernas, fique
bem longe da minha mulher, Basile.
— Ela ainda não é a sua mulher, Moretto. Apenas possui a
pretensão de ser — retruca com descaramento, tomando um gole
de sua bebida sem retirar os olhos de mia Bambola.
Seguro a pequena lâmina do punhal que carrego no bolso
interno e que cortou a língua de muitos. Nino percebe o gesto e
eleva as mãos em rendição, exibindo o sorriso convencido.
O desgraçado só queria me provocar. Assopro o ar com
força pelas narinas como um touro respondendo ao outro sobre
quem irá cobrir a fêmea escolhida.
Decido lidar com o Caporegime de Trapani em outro
momento. Agora, meus interesses estão voltados exclusivamente
para a filha de Enrico Zanchetta num vestido absurdamente sedutor.
— Buona notte[101], signores — Enrico cumprimenta,
trazendo Francesca pela primeira vez para uma roda da ala
masculina. Ele está com o braço dobrado, onde mia sposa[102] apoia
a mão pequena, que é segurada gentilmente pelos dedos grossos
de seu pai.
Ele coloca a presa dentre os leões, mas com barras de ferro
ao redor.
O irmão Luigi e os primos aproveitam para surgirem com
outras moças a tiracolo. Uma delas é a sua irmã e a outra é a prima
que não desgruda das meninas Zanchettas.
— Buona notte, Signore Zanchetta — adianto-me. —
Sposa… — Pego com cuidado a mão livre que Francesca mantinha
descuidada na lateral do corpo e deposito um beijo no dorso. Ela
suspira com o toque dos meus lábios levemente molhados.
Subo o olhar preguiçosamente, vendo-a ruborizar.
Inocente. Intocada. Mia[103]…
Enrico tem um assombro de tosse repentina, o que me faz
sorrir por notar que seu pai ainda quer protegê-la. Tarde demais
para isso.
Como um aviso secreto, os soldatos do clã de minha noiva
guarnecem o forte, circundando-a juntamente com as demais
ragazze, tomando o cuidado de mantê-las entre eles e os abutres ao
meu lado. Eles nos cumprimentam brevemente.
— Está molto bella, cara mia[104]. Seu vestido é… peculiar. —
Nino Basile está com uma forte tendência suicida. Ainda mais
quando coloca a mão na cintura de Francesca e lhe dá um beijo no
rosto. — Congratulazioni pelo noivado — adula minha Bambola.
Então ele se lembra do motivo do evento?
Em seguida afasta-se, abrindo alas para meus irmãos e Tito
Basile que, seguindo seu exemplo, beijam as duas bochechas de
minha noiva, e abraçam meu provável futuro sogro.
Sinto-me incomodado com tantas mãos sobre algo que me
pertence. Ela é o meu brinquedo e de ninguém mais. Pressiono com
tanta força o maxilar que consigo ouvir o chiar dos dentes rangendo.
— Se matar Nino agora, teremos uma guerrilha interna que
vai atrapalhar os negócios — Maximus fala baixo de modo
zombeteiro, prostrando-se ao meu lado, sem me olhar diretamente.
Ele gesticula para o garçom que passava com uma bandeja
abastada de copos e servindo uísque com a mão livre.
— Não preciso matar. Talvez um dedo, ou dois… ou metade
do pau dele. Ainda não me decidi… — grasno baixo, posicionando
meu copo para o rapaz uniformizado enchê-lo com outra dose do
líquido âmbar. — São tantas opções.
— Nenhuma delas corresponde a não tirar partes do corpo
de alguém? — devolve, num cochicho brincalhão, querendo
disfarçar a conversa que acontece a um metro de distância da
vítima.
Respondo com o som de tsc e uma careta.
Enquanto sigo fatiando o corpo de um dos Basiles
mentalmente, minha Bambola recebe cumprimentos de outras
convidadas e casais que se aproximam. Vou até ela para satisfação
de papà que me encara do outro lado do salão, mantendo uma
conversa discreta com Renzo Silvestri.
Após o que aconteceu em Messina, o capo de Siracusa,
ficou alguns meses menos arredio no tocante às decisões do
conselho que partiam de mim.
Mas algo mudou.
Não sei quando. Porém, em dado momento, Renzo Silvestri
foi picado por uma serpente e suas opiniões voltaram a ser
contrárias às minhas.
Esse assunto está na pauta que discutirei amanhã com Don
Moretto. Agora, minha função é seguir cumprimentando os
convidados ao lado de Francesca Zanchetta.
— Interessante escolha de vestido, Bambola — provoco-a
entre as idas e vindas de pessoas.
— Sabe… gosto do apelido que me deu. Devo chamá-lo de
algo correspondente? — devolve irônica. Viro o rosto rápido para
ela, constatando o sorriso maroto. Ela sorri para o próximo casal da
fila que se formou para felicitar os noivos.
— Mio signore[105] é uma boa opção — respondo, com um
sorriso sarcástico. Ela me observa pelo canto do olho, cerrando as
pálpebras quase indicando certo descontrole. Mia sposa[106] ganhou
garras. Gosto disso. Porém, passa rápido, e tão logo estamos os
dois aceitando os parabéns e desejos de felicidades por todos.
Meu rosto não costuma contemplar sorrisos. Então, não
preciso fazê-lo com tanta frequência quanto minha noiva
plastificada. Ela foi criada para ser a esposa perfeita.
A princesa mais cobiçada da Cosa Nostra com pele alva, tão
suave quanto à textura de um pêssego, olhos de um verde claro
único que pouquíssimas pessoas em nosso meio possuem, e
cabelos castanhos volumosos, feitos para deslizar entre os dedos.
No caso, entre os meus dedos.
Francesca possui o destino traçado desde antes do seu
nascimento, no dia em que jurei fazer sua família sangrar como
minha mammina sangrou.
— Piccola, pode ir com sua mammina agora — Enrico
Zanchetta aparece para salvar sua figlia e, sem intenção, a mim
também.
Minha noiva dá um sorriso amarelo para o próximo
convidado e se afasta, indo de encontro às mulheres que a
aguardavam ao lado. Algumas, pelo visto, faziam parte do seu
círculo mais íntimo já que sorriem e comentam sobre a festa, e
claro, sobre o vestido.
— Sabe, ragazzo, tenho um grande apreço por seu pai além
da lealdade pela famiglia. Também me agrada boa parte de suas
ideias a respeito dos negócios. Espero que a união de nossos clãs
fortifique ainda mais a nova era na Cosa Nostra — meu futuro
suocero[107] almeja, agarrando uma taça de vinho e brindando com o
copo de uísque que mal pego da mesa na qual meus irmãos
estavam acomodados.
— É o que quero, signore Zanchetta.
A festa segue até que o volume da música diminui e vejo
tanto meu pai quanto o pai de Francesca caminharem para o centro
do salão. A minha noiva vestida de carmim me encara e vou até ela,
conduzindo-a para próximo dos vecchios mais ricos dentre os
presentes.
— Boa noite a todos! Gostaria de aproveitar este momento
especial para fazer um brinde aos dois jovens que hoje fazem a
promessa de união. — Meu sogro ergue uma taça de champanhe.
— À minha figlia querida e ao seu futuro esposo, que o sacramento
do casamento fortaleça nossa famiglia.
Neste momento, pego a caixa vermelha aveludada que
praticamente combina com a vestimenta de Francesca e abro-a
exibindo o anel de diamante azul como pedra central, acompanhado
de diamantes laterais, todos cravados em um belo aro de ouro
branco 18K e um pingente delicado da letra M também encrustado
de diamantes, acoplado na argola desenhando minha posse no
delicado anelar de mia sposa.
Retiro a joia da caixinha, pegando a mão de Francesca que
está absorta no momento e deslizo por sua pele a joia, aproveitando
para sentir seu calor.
Mia Bambola é um misto de espanto e admiração.
Não consigo decifrar quando suas sobrancelhas se unem
duvidosas, segurando o objeto brilhante que agora adorna sua mão
direita. Ela observa o pequeno M com o indicador esquerdo. Alguns
segundos que parecem eternos, ela suspira e me encara.
— Você não deveria me pedir em casamento? — A questão
pronunciada no ar, alcançando mais ouvidos do que minha Bambola
gostaria, e eu também.
— Não quando a resposta está fadada àquilo que eu quero.
Não a você — respondo próximo ao seu ouvido, disfarçadamente
conforme coloco uma mecha de cabelo atrás do seu ouvido.
Então, uma música lenta é tocada e eu conduzo minha
noiva pelo salão para manter o script do noivado. Francesca sorri
para os convidados de acordo com aquilo que foi criada.
Sua respiração descompassada cativa minha atenção para
a epiderme exposta acima do decote. Sinto vontade de lamber as
ondulações de seus seios.
Mia Bambola…
O belo brinquedo que irei quebrar.
A música termina e somos guiados para sentar e aguardar o
início do jantar. Minutos depois, diversos tipos de canapés são
servidos, seguidos de fingerfoods, até finalmente o prato principal
que consistia numa bela lasanha ao sugo e um filé.
Não consegui interagir posteriormente, mesmo estando ao
lado de Francesca. Nossos assentos poderiam ser próximo, mas
estávamos cercados por seu clã e o meu.
Mia sposa passou a maior parte do tempo comentando
sobre os sabores da comida com sua fratella e cugina Valentina.
Em dado momento, Romero, Caporegime de Caltanisseta
me chamou não apenas para cumprimentar, mas sim expor que
estava descontente com o bilancio[108] cobrado pela famiglia sobre
sua empresa de ferro. Cazzo!
Esta noite não era para isso. Mas o infelicce não passaria o
fim de semana e comecei a discussão justificando os lucros
acobertados por ele. Ainda é icônico quando um dos Caporegimes
tentam manipular os relatórios apresentados em assembleia.
A empresa faz parte dos negócios lícitos. Porém, somos
uma união e Romero Colombo não teria nem sequer o local para a
construção do prédio e galpões que compõem sua atividade
empresarial se não fosse a famiglia. Sustentar agora um discurso
sobre o bilancio ser menor do que costumamos cobrar é desaforo.
Estou em pé alguns metros à frente quando ouço uma
gargalhada doce.
Francesca…
O riso de Francesca entre uma colherada e outra da
sobremesa servida com chantily no topo não me incomoda. O que
mexe com minha razão é o fato de seu sorriso ser direcionado a
Nino.
Testa di minchia![109]
O tempo é algo difícil de mensurar, ainda mais se estamos
na posição de querer arduamente estrangular e despedaçar corpos
que não posso encostar sem motivo justo.
O stronzo quer morrer na noite do meu noivado?
Ele está sentado ao lado de Francesca, comendo o doce
servido. Analiso o ambiente, constatando que seu lugar está a três
outras mesas de distância. O que o segaiolo[110] está fazendo ali?
O olhar de Francesca se eleva e nos encaramos. Ela
percebe que estou nitidamente irritado com a aproximação do
Caporegime de Trapani.
Como essa mulher com quem mal troquei algumas frases
possui o poder de me desestabilizar assim?
Não… impossível. Estou puto com a conversa que se tornou
um pouco mais acalorada com Romero. É isso.
Jamais deixaria uma ninfeta causar qualquer situação que
me cause desconforto.
— Scusa, Signore Romero. Terminaremos a discussão no
correr da semana.
— Você vai ao porto de Gela?
— Esta semana ainda. Agora, scusa. — Saio de perto do
vecchio rechonchudo que tem me dado mais trabalho que o normal
e sigo em linha reta até a fonte de minha ira.
Ira? Balanço a cabeça confuso. Ma che succede[111]?
Não estou irado.
Estou com raiva de Nino Basile que age me provocando
desde o início da noite. É isso.
Afirmo para mim mesmo e no instante que vejo a mão de
Basile ir até os lábios de mia Bambola para limpar o resquício de
chantily sou tomado por uma fúria que desconheço. Ela me fita,
erguendo uma sobrancelha em desafio, e para me provocar mais
ainda lambe o canto da boca, roçando a língua no dedo do infelicce
que parece em êxtase pelo ocorrido.
Ah, mia Bambola…
Deveria saber que não se desafia o diabo.
Apresso o passo, prostrando-me ao seu lado e erguendo-a
pelo braço. A ragazza aceita o movimento, esperando pela
repreensão.
Caspita! Por que as coisas têm saído do meu controle?
Francesca fica em pé ao meu lado, arrumando o vestido
desajeitadamente. Tão logo, se dá por satisfeita e agora não sorri
para meu semblante que é muito provável estar demoníaco.
Desvio o olhar para Nino Basile com a intenção de avisá-lo
mais uma vez. Outra novidade de conduta, pois não costumo dar
segundas chances.
— Com você, resolvo depois — encaro meu próximo
adversário na cutelaria. Perder algumas lascas de pele para lembrar
com quem está lidando poderia ser um alerta mais eficaz. — Agora
você — digo entre dentes perto do pescoço delgado — irá sorrir e
acenar enquanto me acompanha, ou será carregada em meu
ombro. Você escolhe.
Ela assente apressadamente com a cabeça e obedece sem
pestanejar. Meus olhos devem estar reluzindo labaredas flamejantes
de ódio, tendo em vista o assombro que vi no rosto de Francesca.
Caminho pelo corredor do castelo que conheço com a palma
de minha mão até a biblioteca antiga que ainda é mantida para
certas reuniões.
Puxo-a comigo para dentro do cômodo, fechando a porta
atrás de nós. Ela me olha atônita, mas não diz uma só palavra. Uma
presa indefesa.
Conduzo mia Bambola a alguns metros da porta e
encurralo-a entre meus braços. Minha pretensão é fazê-la minha
mais cedo, só não pensei que seria justamente no dia do meu
noivado.
— Peça, Bambola — exijo, fazendo-a me encarar conforme
seguro seu queixo, pinçado entre meu polegar e indicador.
— O-o quê? — gagueja com a voz trêmula. O pulsar de sua
garganta e a forma como engole a saliva demonstram medo, mas o
remexer de suas pernas algo além. Contenho o elevar dos lábios,
não querendo sorrir ainda. Quero sentir um pouco mais seu temor.
Cazzo.
Ela poderia gritar e com certeza seu irmão e primos
entrariam correndo por aquela porta. No entanto, mia Bambola
permanece inerte, aguardando que eu a manuseie a meu bel-prazer.
Fico excitado na mesma medida de sua vulnerabilidade.
— Pede que a beije, Bambola. Peça por um beijo.
— Nã-não é apropriado.
— Você quer… eu sei que quer. Eu vou te tocar, sposa. E
você vai implorar por mais.
*Cena do Prólogo*
GIULIO MORETTO

O som abafado de um gemido de dor era música para minha


mente conturbada.
A visão das paredes acinzentadas, seguindo as cores
escuras das fornalhas, bem como os demais utensílios usados para
moldar nossas obras de arte, compunha a poluição visual que
preciso para diminuir o conflito interno entre meu dever e o que
desejo.
Parecia que tudo a minha volta remetia meus pensamentos
a ela. A maledetta queria se fixar em meus pensamentos e foi
esperta o bastante para vestir a cor vermelha para isso. Agora eu
tinha um vício incontrolável: Stalkear Francesca Zanchetta.
A primeira vez em que visualizei a foto da ragazza em meu
celular antes de dormir, afirmei em pensamento tratar-se de um
rompante aleatório. Nos dias seguintes, a desculpa pareceu
desnecessária. Ninguém estaria fiscalizando meus atos e o desejo
carnal é a faísca para concretizar meus planos.
Querer foder mia sposa é natural. Ela é bela…
escandalosamente bela. A contradição de sua inocência com os
detalhes do vestido vermelho pecaminoso me excitava ao extremo.
Ademais, ter sua confiança é um desafio. Eu gosto de desafios. Mas
precisava me concentrar no objetivo final. Meu medo é deixar a
pouca moral que me resta afundar o barco antes mesmo de zarpar.
Respiro fundo, deixando o odor característico nublar minha mente.
Não fazia ideia de quanto tempo estava na cutelaria e não
me importava. Precisava descontar minha frustração em algo, ou
alguém. Precisava sentir o ódio que move meus passos todos os
dias. O vermelho em minhas mãos não está ajudando. Rosno e viro
para a mesa em busca de outro adereço para continuar minha
tarefa.
Mia Bambola sendo esquecida por um instante. Tudo
caminha como deve ser. A conquista plena virá com a cereja do bolo
lambuzada de algo muito mais saboroso do que chantily. Tenho
certeza.
Ajeito o soco inglês de modo a reforçar com ferro as juntas
de meus dedos e desfiro outro golpe, desfigurando um pouco mais o
stronzo. A mandíbula saiu do lugar de modo que a boca não
consegue manter-se fechada. Caspita. Teremos que fazer uma
interpretação no restante das informações que o infelicce está
fornecendo.
O sujeito geme e choraminga amarrado à cadeira de
madeira com as mãos amarradas por uma corrente grossa ao redor
dos apoios de braço.
Quando Donato ligou dizendo que o peixe estava enroscado
na rede, contatei alguns soldatos e fizemos a captura enquanto o
infelicce gozava em uma de nossas garotas. Só não castrei o traidor
ali mesmo, pois precisava usar o ato durante o interrogatório.
A festa de noivado serviu para meus irmãos e eu
averiguarmos o que estava ocorrendo nos outros portos. Os
incidentes aumentavam com certa frequência. Isso quando
conseguíamos fiscalizar mais de perto para não criar atritos com o
poderio dos Caporegimes.
Mas se um carregamento acarreta problemas, três
demonstram fraqueza. E, em águas profundas, tubarões nascem
pequenos para depois comerem os próprios pais.
Ainda está sob controle.
Não que fosse fácil contornar a merda por conta da Europol
em nosso encalço.
Tivemos que lidar com mercadorias que não eram da Cosa
Nostra. Meninas e mulheres apareciam misteriosamente dentre os
containers. Todas sem documentação e sabendo muito pouco
italiano.
A maioria dos corsários ficou acanhada com a situação de
ter que lidar com mulheres e não o armamento como estão
acostumados. Fiquei apreensivo, pois alguns dos marinheiros
passavam boa parte do tempo em alto-mar sem qualquer contato
com o sexo oposto.
No instante em que fui informado sobre o excesso de carga,
precisei dar ordens para que não atracassem no horário combinado.
Uma, porque a recepção nem sempre era confiável; duas, porque o
risco de seres vivos e não objetos inanimados descendo dos navios
exige atos complementares.
As pobres ragazze não sabiam onde estavam se metendo.
O motivo que as levava a embarcar no transporte marítimo em
precárias condições de viagem era o mesmo, a falsa oferta de
emprego em uma terra distante. Outras apenas fugiam da fome ou
da guerra.
A última carga, no entanto, me deixou enojado. Duvido que
alguma das ragazze tivesse mais de 15 anos. Algumas eram
realmente crianças.
Como pais confiam suas filhas a pessoas estranhas?
Já vi muita merda nesta vida e estou longe de ser bom,
porém, meus pecados jamais estariam relacionados a crianças.
Em dado momento, Homero retirou da fornalha o primeiro
ferro em formato de um cilindro com um brilho incandescente por
conta do aquecimento extremo. Ele apoia o objeto em uma das
mesas e passa a marretar tornando-o chato, mas ainda na cor
alaranjada reluzente.
Observo os olhos do traidor modificarem do ar cansado para
o terror. Ele sabe o que irá acontecer. Sua boca se move produzindo
um som incoerente.
Donato aproxima-se e de forma brusca empurra o maxilar
da sobra do homem, deixando-o menos torto.
— O que você disse? — indago de costas, colocando a luva
de proteção e pegando outra pinça, um pouco menor, para facilitar o
manuseio do aço em brasa.
— E-e… ele me obrigou.
Faço um breve malabarismo, encenando a queda do ferro
sobre a perna do infelicce. Poderia ganhar o Cannes[112] fácil.
Apanho a barra em seguida, manuseando a pinça com habilidade,
algo que se adquire se não quer ganhar uma queimadura.
Geralmente implico sobre a qualidade do material se não
sinto a mobilidade conforme balanço no ar. Desta vez não perguntei
sobre a quantidade de carbono no aço para confeccionar a suposta
espada ou faca.
No caso, seria uma espada. A barra de ferro possui o
comprimento para uma, afinal.
O grito ardido de dor e as primeiras camadas de epiderme
derretendo vagarosamente indicavam que a temperatura estava
abaixo dos 700°C. O calor ideal para tornar o aço maleável antes de
ser colocado na prensa.
Fito os diversos tamanhos de martelos que gosto de utilizar
para o processo de compactação. Outros instrumentos que seriam
usados brevemente.
Respiro fundo, sentindo o odor característico de carne
assada. Nunca fiquei sem jantar após horas em uma sessão de
tortura. Mesmo quando o prato principal possuía cheiro similar ao de
agora. No entanto, não me agrada quando a pessoa vomita, ou
além de se urinar, acaba defecando. Aí sim, meu apetite diminui.
— Ele quem? — contraponho, mergulhando um pouco mais
o ferro até alcançar a dureza do osso. — Ele é muito vago, Ulisses
— cuspo o nome do infeliz como um fruto podre.
Ulisses Catto foi o nome que Fausto conseguiu desvendar
seguindo o caminho de uma teia gigantesca de ligações usando a
placa falsa do primeiro veículo que perseguimos.
Mantivemos o cerco de vigilância para encontrar outros
envolvidos. Mas, o atrevimento do stronzo fez com que os planos
mudassem.
A demora ocorreu por se tratar de uma rede sequencial de
nomes, apelidos, contas bancárias. Por vezes, pensei que a pista
estava perdida, mas dali surgia alguém ou algo que nos levou até
um dos nossos Associados.
Ele é apenas um dos chefes de gangues de rua que
espalham nossos produtos, e o terror em alguns becos para manter
parte da ordem que o poder através do medo confere à Cosa
Nostra.
Agora não seria mais que um pedaço de carne a ser
incinerado para depois as cinzas serem varridas com a poeira das
ruas.
Existe uma equipe voltada para captar quaisquer
mensagens eletrônicas via internet dentro da organização. Algumas
alterações nas barreiras de segurança do firewall da Europol foram
o motivo que ocasionou tanta demora até identificarmos quem era o
rato saindo do esgoto.
Como a polizia conseguiu aparecer no dia e horário
marcado para o desembarque de certas mercadorias dava indícios
da traição.
Um apelido incomum usado na comunicação entre e-mails e
conversas aleatórias nos levaram direto para a fonte. Infelizmente,
tínhamos apenas o nome desse maledetto. A cobrança do
Conseglio de Vechios na última reunião sobre respostas me fez agir
assim que Donato informou de sua visita tardia.
Minha paciência não andava das melhores. Meu humor
exigia ser alimentado pela agonia de alguém. Havia um tempo que
ninguém me desafiava para batalhar no Anello di Coltello[113]. E olha
que os últimos ficaram vivo por pedirem compassione[114].
A pressa em ver sangue não tinha nada a ver ao fato de
querer ver a cor de sangue vivo em outra coisa que não me
lembrasse mia Bambola. Não… havia um rato que me daria
informações.
Talvez a queimadura na perna não fosse incentivo o
bastante para Ulisses começar a falar. É… talvez precisasse de algo
a mais.
Jogo a merda toda que seguro ao solo e rapidamente pego
a marreta com a foice de lâmina larga. Em um rodopio golpeio a
rótula do joelho esquerdo com o lado do corte, afundando o aço por
conta do impulso dado pela marreta.
O homem urra conforme parte da perna é extraída de seu
corpo com brutalidade. Os berros aumentam da mesma forma que a
poça de sangue abaixo dele.
— Você ainda tem a perna direita, Ulisses. Pense bem em
suas próximas palavras, cazzo — aviso-o, dando um passo para
trás.
Ouço o choro alto se transformar em lamúria até que
algumas palavras saem da boca mole por não estar com o maxilar
no lugar.
— Bo-Bonanno… Carlo Bonanno. — A voz sai num chiado
miado entre um soluço e outro.
Encaro o farabutto com o cenho franzido.
— Ele disse Carlo Bonanno, capo — Homero repete. Viro o
rosto raivoso para meu Soldato. Eu havia entendido o que o traidor
havia dito, só não entendia o porquê. De imediato, meu homem dá
um passo para trás, sabendo da gafe.
Bonanno é hoje o Don da ‘Ndrangheta e por mais que não
estejamos em guerra, não existe qualquer acordo que nos impeça
de conquistar um o território do outro. Cansei de seus pedidos para
obter uma rota segura através do canal de Messina. Até porque seu
acesso ao mar não era tão diferente do nosso.
Passar informações para a Europol sobre carregamentos,
incluindo cargas que não nos pertenciam de modo a ligar a Cosa
Nostra justamente com aquilo que tanto quero desvincular a
organização era um golpe baixo.
Mas os calabreses não eram conhecidos pelo cumprimento
ao seu código de honra, não é mesmo?
Mesmo assim, a troca de informações não condizia com a
característica de ser estrategista da Famiglia Bonanno. Não… O
pedido para a passagem livre em nosso território veio numa época
de conflito com os sérvios. Estes sim pertenciam à escória do
submundo. Se fosse possível criar divisões entre as classes de
criminosos, com certeza os sérvios estariam na base da pirâmide.
O tráfico de pessoas não apenas está no cardápio de
infrações por eles cometidas, mas a qualificação em ter crianças
para fins grotescos também.
Sinto o líquido gosmento enquanto caminho pelos lados
recordando-me do infelicce.
— Finalizem e limpem a bagunça. — Pego a toalha úmida
que Donato me oferece e retiro um pouco do vermelho das mãos e
braços. Em seguida, apanho o paletó buscando o relógio no bolso
interno. Ainda tenho tempo para dormir um pouco antes de ir até
meu pai para contar o que descobri.
Ele é o Don, e por isso devo-lhe dar satisfações sobre o que
está ocorrendo em nossa casa. Sigo até meu carro juntando partes
do quebra-cabeças que toda essa merda se tornou. Por mais que
tenha um nome para acusar, minha intuição dizia que algo faltava.
Mas o quê?
GIULIO MORETTO

— Então… acredito que tenha algo a me dizer, Giulio — Don


Moretto me alerta assim que atravesso as portas de seu escritório,
encontrando-o com os cotovelos apoiados na mesa de mogno.
Bufo um riso sem humor, sabendo que tio Marcelino
adiantou-se como bom Consiglieri que é sobre meu interrogatório de
ontem. Tinha o conhecimento de que fui acompanhado por mais de
um Soldato na captura do traidor. E mantive-me condizente, pois se
tratavam de membros da famiglia.
Todavia, um ou dois deles não respondiam diretamente a
mim, pelo visto. Sigo confiante, levando um cigarro à boca e
pressionando-o no canto dos lábios.
— Não fiz nada além do meu trabalho, papà. — Sento-me
na cadeira disposta à frente da mesa escorando as costas e
apoiando um tornozelo sobre o joelho numa postura desleixada.
Acendo o cigarro com meu isqueiro de prata, guardando-o em
seguida após inspirar a primeira dose de nicotina.
Quando subo o olhar, percebo meu pai analisando minha
postura sem julgamento prévio. Estamos só nós dois neste cômodo,
o que para mim é a melhor forma de conduzir a conversa, pois não
preciso escolher cada palavra a ser dita num discurso para o Don e
seus subordinados.
Aqui, somos apenas pai e filho discutindo sobre os negócios
da família.
— Não tive tempo de ligar para o senhor e capturar o traidor,
Don — digo com ironia. — Devo me desculpar?
— Você acha que deve?
Seguro seu olhar por alguns segundos, reconhecendo a
manipulação genuína do clã Moretto.
— Não. Não devo. Agi como Sottocapo e conduzi o
interrogatório de modo a manter na sala pessoas da minha
confiança. — Mesmo que alguns soldatos respondessem ao
Consiglieri. Tio Marcelino jamais trairia meu pai. Muito menos a
Famiglia. Ele era um dos poucos vecchios que tinha minha
admiração, por muitos motivos.
Meu tio desconfiava daquilo que eu sabia e sei que se
prontificou em alertar meu pai. Talvez esta atitude de lealdade, por
mais que contra meus interesses, tenha deixado claro que no
tocante aos negócios da Cosa Nostra, ele é confiável.
— Você ainda não é o Don, Giulio. Conhece nosso código e
sabe seu dever de informar sobre o uso da cutelaria para traidores.
— Estou informando na manhã seguinte, Meu Don —
devolvo com sarcasmo. — Não queria incomodá-lo de madrugada.
Talvez me repreender pela falta de informação durante o
interrogatório seja desnecessário. O importante é aquilo que de fato
consegui.
A resposta para qualquer outro vecchio poderia ser tida
como desrespeito. Porém, noto o semblante de orgulho nos olhos
de mio padre. Sua falsa repreensão é para ver minha conduta.
— Aguardo ansioso para isso. — Don Antonio encosta no
espaldar de sua poltrona de couro marrom, cruzando as mãos
conforme coloca os cotovelos nos apoios de braço. Existe o
vislumbre de sorriso no olhar que não alcança os lábios.
Sinto um misto de afago e raiva, pois quero a aprovação de
mio padre como futuro Don, a revelação em sua expressão mexe
com meu ego. Mas parte do que perdi nesta vida também é culpa
sua, o que corrompe o sentimentalismo paternal de orgulho.
Tudo em minha vista tem sido um misto de emoções sem
sentido depois que tiraram de mim a única pessoa que enchia de luz
meu mundo.
Eu tinha alguém que me amava com todas as minhas
imperfeições. Seu amor era completo, incondicional e infinito. Mia
mammina era a única que poderia me dar alento durante o processo
de iniciação. Enquanto via meus pares sendo acalentados pela
mísera luz vinda de suas mães para apaziguar a escuridão na qual
éramos envolvidos, eu não tinha nada.
Fui isolado a ficar no escuro. Não era função de mio padre
diminuir o tormento de minha mente de bambino entre o certo e o
errado. Este era o dever das signores da Cosa Nostra.
Meus irmãos não sentiram tanto a ausência de uma
matriarca, pois eram muito novos quando perdemos a nossa. Eles
se afeiçoaram por demais à nossa governanta, Signore Isabel. Ela
foi quem supriu o lugar de mammina.
Por um tempo, tive raiva de Isabel por isso. Ela não era mia
madre. Mas ao ver os olhos sem brilho dos meus irmãos após terem
o sangue de alguém nas mãos, fez com que eu a agradecesse.
A última tarefa que nos era imposta, além de aprender como
cortar um homem em locais sensíveis o suficiente para um
interrogatório decente, era tirar sua vida. Ali, banhados em sangue,
a Cosa Nostra tatuava em nossas almas o que realmente éramos,
monstros.
Havia um motivo para tratarmos nossas mulheres com o
devido respeito de damigelle. Elas eram as únicas que possuíam o
poder de diminuir um pouco da monstruosidade na qual os homens
feitos se tornavam.
Um dos ensinamentos dentro da famiglia era exatamente
esse. Respeitar nossas mulheres e crianças, pois elas são a única
fonte de luz para nosso caminho até o inferno ser mais ameno.
Meu caminho jamais seria ameno e por isso vou fazer
questão de deixá-lo ainda mais tortuoso. Se fui moldado para ser
ruim, eu seria o meu pior.
— Então, escute, padre, não acredito que Don Carlo seja o
fim do carretel.
— Talvez haja mais carretéis aí, Giulio.
— É o que parece. Mas ainda é cedo para dizer.
— Acredito que seja o momento de retomar Villa San
Giovanni[115]. Além de servir como aviso, aumentará nosso fluxo até
o continente. — Agora é mio padre querendo minha opinião como
estrategista. Outra atitude que vem acontecendo com mais
frequência desde que me tornei Sottocapo. Novamente, sinto a
mescla de emoções que batalham em meu peito por querer
satisfazer seu orgulho de pai como também querer feri-lo por dentro.
Aperto a bituca do cigarro, misturando com as outras cinzas no
cinzeiro de prata sobre a mesa.
Neste momento, o celular de mio padre vibra sobre a mesa.
Ele franze o cenho ao identificar o chamador, segurando o aparelho
aparentemente tenso. Posiciono-me para levantar e deixar que o
Don tenha seu momento de privacidade, porém, ele gesticula para
que fique, colocando o celular no ouvido.
— Chiao Viccenzo. — Meu padre atende, deixando-me
atento ao mencionar o nome do irmão de mia madre, o Don da
Camorra. — Cosa c’è?[116] — Em seguida, ele afasta o objeto
eletrônico colocando-o sobre o móvel e apertando o botão da tela
para deixar a chamada na função viva-voz.
— Chiao, Antonio. È accaduto qualcosa, cognato[117] — Meu
tio replica sem rodeios.
— Che succede?[118] — Don Antonio indaga, analisando ora
o celular, ora meu rosto. Permaneço com a postura rígida na cadeira
estofada, atento.
— Você mandou para mim seis ragazze para retornarem às
suas famiglias. Mas due[119] delas sumiram. Estou ligando para
contar que já estavam fora da Itália, cognato. Passaram por aqui,
mas não chegaram.
— Come?[120]
Eu sabia que meu pai enviou algumas garotas para fazerem
a travessia pelo território da Camorra. Tio Viccenzo se prontificou a
ajudá-lo, ainda mais quando soube do que se tratava. Ele e meu pai
possuíam a mesma aversão ao crime envolvendo mulheres
inocentes.
E a trégua entre as máfias após o casamento de meus pais
foi mantida mesmo após o falecimento de mia madre. Nós, como
frutos da união entre as famiglias, formávamos a ligação de sangue
exigida para manutenção da paz e auxílio mútuo.
— Temos alguns rastros, mas…
— A corrida de Matteo é neste fim de semana, zio? —
indago, entrando na conversa. Mio zio Viccenzo demora a
responder, após notar que Don Antonio estava acompanhado na
conversa.
— Giulio?
— Si zio. Sono io[121] — informo meu tio de pronto, ouvindo
sua respiração tranquilizar.
— Antonio, tuo farabutto[122]! Por que não falou que mio
nipote estava na linha? — Ele libera uma risada alta. — Chiao,
Giulio! Come stai[123]?
— Chiao, zio! — devolvo com menos empolgação. — O que
aconteceu com as ragazze?
— Sono scomparsi. As due estavam a caminho de
Udine[124]quando sumiram. Não foi descaso, cognato. As outras
quatro chegaram ao destino combinado. Apenas queste ragazze[125].
— Tranquillo, Viccenzo. Não são de nossa responsabilidade
essas ragazze. Se elas quiseram tomar outro caminho, que seja —
mio padre[126] replica, torcendo o nariz com descaso.
— Entonce, va bene. Se pensa assim… — ouço mio zio
resmungar um palavrão antes de continuar: — Vou me ocupar della
corsa[127]. Não quer assistir, Giulio? Poderia trazer tua sposa[128].
Seria um bom momento para conhecer minha futura nipona[129] —
Tio Viccenzo sugere. — Venha também, Antonio. Há quanto tempo
não sai da Sicília? Seria ótimo tê-lo con noi[130].
Meu padre me encara, com as sobrancelhas arqueadas,
balançando a cabeça algumas vezes para cima, querendo que eu
responda com uma afirmação.
Abstenho-me por um momento. Então, a ideia de viajar com
Francesca parece ser a oportunidade perfeita não apenas para
revê-la, mas também dar vazão ao que pretendo. Quem sabe desta
vez ela escolha um modelito que não fique por tantos dias em minha
mente.
— Si zio. Io vado[131]. Pedirei ao meu futuro suocero
[132]
permissão.
— A ragazza tem um fratello soldato, não? Traga o ragazzo
junto — oferece, apresentando o complemento que poderia ser a
moeda certa para o Sottocapo de Messina permitir uma viagem com
sua preciosa figlia.
— Va benne, zio. Vou convidá-la. Mande meus
cumprimentos aos meus cugini[133]— despeço-me, ouvindo zio
Viccenzo falar algo sobre Matteo e Amélia e como ficarão contentes
ao saber que iremos.
— Chiao, Viccenzo. Vou rever minha agenda e talvez
consiga sim ver meu nipone correr. — Meu pai aguarda meu tio falar
mais algumas palavras antes de encerrar a chamada e me encarar.
— Você irá levar Francesca, Giulio?
— Vou — respondo certeiro. — É um bom momento para
mostrar minha noiva e calar a boca de alguns boatos. — Papà me
estuda por um breve momento, antes de respirar fundo.
— Sabe que Luigi irá com ela.
— Não espero menos do que isso.
— Va benne. Se precisar da minha intervenção venha até
mim — conclui.
No instante em que me levanto a porta do escritório é aberta
por meu outro zio, Marcelino.
— Chiao zio — digo, caminhando para a saída. Ainda estou
na sala quando meu pai remete ao assunto.
— Vamos para San Marino, fratello? — tio Marcelino une as
sobrancelhas em dúvida.
— Ver a corrida do Matteo, cazzo. Ele vai correr no GP em
Monza. O que acha? — Don Antonio indaga o irmão. — Giulio está
querendo levar Francesca. Acredito que quanto mais famiglia,
melhor. Hum?
Pressiono meus lábios numa linha fina, não entendo o
motivo no qual levou meu pai a acrescentar mais pessoas nesta
viagem. Melhor… eu sei. Mas não quero.
— Chiao. É uma boa ideia, Giulio. A imprensa está criando
boatos sobre a ragazza. — Viro o rosto de súbito com a informação.
Boatos?
— Como assim?
— Em um mês você foi visto com aquela garota que te
acompanhava sempre, nipone. E logo após aparece com uma noiva.
Francesca pode não ser uma das modelos famosas. Mas sua
famiglia possui reconhecimento por sua riqueza, inclusive a ligação
com as nossas empresas — tio Marcelino explica, deixando claro
sua competência como Consiglieri. — Mas se você vai, Antonio. Eu
preciso ficar.
— Va bene. — Meu pai arruma alguns documentos em sua
mesa enquanto ainda estou ruminando a informação dada por mio
zio Marcelino.
— Não pensei que… — resmungo.
— Não. Não pensou. — Meu pai emenda. — Marcelino está
certo. Será importante fazer algumas aparições com a ragazza.
— Vou ligar para Signore Zanchetta — falo ríspido, não
querendo ouvir outra advertência por meu comportamento. Até
porque, eles irão fazer muito mais daqui algum tempo.
Caso o Caporegime de Messina crie problemas tenho
certeza de que posso fazer seus filhos convencerem-no do
contrário. A informação sobre uma festa na qual fui chamado de
madrugada no passado será uma excelente moeda de troca para
Luigi convencer tuo padre[134].
Vou embora da mansão Moretto com o humor duvidoso.
Não gosto de receber ordens ou represálias sobre minha vida
amorosa. Mas… sorrio mesmo assim, pois estou movido pelo ânimo
em ter mia Bambola tão perto novamente.
Os olhos de água marinha me encarando em uma mistura
de desejo e inocência fomentada pela petulância da personalidade
forte me intrigam e me excitam na mesma medida.
É…O gosto da vingança pode ser amargo, mas a minha
parecia extremamente doce e suave… como chantilly.
FRANCESCA ZANCHETTA

Enlaço meus dedos uma, duas, perdi a conta de quantas


vezes, repeti o movimento. Talvez tenha dado um nó nas mãos e
nem sequer percebi. Estou tão nervosa, que para não ficar me
remexendo no banco do carona do carro de Luigi, passei a tricotar
com as próprias mãos uma linha invisível.
Meu irmão me observa de esguelha ora ou outra nas
paradas diante dos semáforos, liberando uma expiração profunda
como se também buscasse por equilíbrio. Vejo as juntas de suas
mãos esbranquiçarem com o aperto que mantém ao volante, e os
braços tensionados abaixo do blazer cinza claro que escolheu usar
hoje.
A camisa escura com o colarinho aberto, sem gravata e a
calça jeans de lavagem escura, formam o look descontraído que o
filho do Caporegime de Messina gostaria de passar. Porém, os
olhos inquietos deflagram a verdade, do mesmo modo que os
pequenos impulsos em meu pescoço cada vez que Luigi acelera
seu Masserati branco.
Ele pode ser enervado às vezes, mas sempre se controlou
quando está perto de mim e de Michela. Acredito que o convite, que
mais soou como uma convocação para me acompanhar nessa
viagem, deixou meu irmão mais velho desconfortável.
Va bene…
Desconfortável não seria a palavra correta para isso. Irado,
irritado, incazzato[135]… frustrado, talvez?
Realmente, está difícil de definir.
Viro o rosto para a janela, analisando a paisagem que deixa
de ser urbana para um campo aberto, onde iríamos encontrar os
demais convidados para assistir ao GP de Monza. Nosso destino
era o hangar onde o jatinho particular do clã Moretto nos aguardava.
Onde ele me aguarda… penso. Espero…
Depois do baile de noivado não obtive notícias de Giulio.
Nem sequer nas mídias sociais ele apareceu. Vê-lo constantemente
nos sites de fofocas ao lado de modelos havia se tornado um ato de
tortura, mas que alimentava certo tipo de sentimento sobre meu
futuro marido.
Mesmo que fosse raiva… ciúmes…
Não o ver e não ouvir nada sobre Giulio após o que
aconteceu naquela biblioteca estava me dando nos nervos.
Giulio era uma incógnita. Uma grande e misteriosa pergunta
que gerava ansiedade agonizante em meu peito.
Minha prima Valentina sugeriu que eu tentasse conquistá-lo.
Não consegui contar exatamente o que aconteceu naquela
biblioteca. Mas o suficiente para que a ragazza sonhasse com um
possível romance.
Quem eu queria enganar? Eu mesma queria isso…
Contudo, estar a caminho de uma viagem na qual teria a
figura onipotente do meu noivo mais tempo que um breve evento da
famiglia me assustava tanto quanto me deixava animada.
Preciso me acalmar ou vou parecer extremamente patética
e uma adolescente desejosa por atenção. Você não é assim,
Francesca! Você é uma Zanchetta. Comporte-se como tal.
Ajeito a jaqueta de couro preta que coloquei sobre a
babylook branca, passando as palmas das mãos sobre as coxas,
sentindo os pequenos rasgos da calça jeans.
Será que ele me achará bela?
Será que pensou em mim além do nosso compromisso
forçado?
Balanço a cabeça empurrando os questionamentos de
insegurança para fora do carro.
Valentina aumentou minha autoestima desde que recebi o
convite para a corrida. Além de me infernizar com o possível plano
de conquista fajuta dela. Suspiro cansada. Depois sorrio ao lembrar-
me dos olhos sonhadores que falavam para mim, mas encaravam
meu primo Alessio.
Bufo um riso discreto, não querendo revelar meus
pensamentos para Luigi. Ele, Dario e Alessio são praticamente uma
trindade, não poderia expor minha prima assim. Ainda mais quando
sua intenção era para melhorar meu humor. Ela afirmou que, como
tantos, Giulio poderia me encontrar apenas no dia do casamento.
Mas, ele quer que eu apareça ao seu lado para todos saberem
sobre mim.
Inspiro forte, enchendo meus pulmões para tentar uma
postura mais confiante. Ademais, Alessio e Dario disseram que eu
estava belissima. Fui escolhida, não fui?
Em seguida, abaixo a aba do quebra-sol e visualizo meu
rosto no pequeno espelho. Abro o fecho da pequena bolsa Gucci
vermelha, retirando o protetor labial sabor melancia, aplicando nos
lábios que tendiam a secar da mesma forma que minha boca por
conta da ansiedade.
Assim que o carro estaciona, fecho os olhos, inspirando e
expirando lentamente.
— Está pronta? — Luigi pergunta, num tom afetuoso.
— O máximo que poderia estar nesta situação.
— Então vamos, fratella[136]. Seu noivo parece tão ansioso
quanto você. — Saio do carro, surpreendendo-me com um Giulio
com as mãos nos bolsos da calça de alfaiataria, aguardando ao lado
da pequena escada que dava acesso à aeronave.
Luigi segue em minha frente, cumprimentando mio sposo
com um breve aceno de cabeça, após dar nossas malas para um
dos funcionários que nos acompanharia na viagem.
Giulio não retira os óculos aviador, mas consigo sentir seus
olhos me consumirem a cada passo que dou para perto dele.
— Preto, Bambola? — Ele inclina a cabeça me analisando.
— Esperava algo em vermelho.
— Meu sangue ainda é — respondo, desaforada.
Madonna mia! De onde veio essa coragem?
O homem de terno escuro impecável eleva o canto superior
da boca num meio-sorriso. Num rompante, sou laçada pela cintura e
colada em seu corpo.
— Está sugerindo algo, sposa? — sussurra em meu
ouvindo, causando calafrios por toda minha espinha.
Minhas forças estão concentradas em manter-me de pé.
Sinto o sopro de seu riso na pele sensível abaixo do lóbulo da
orelha.
— Só pensei que vampiros soubessem a cor do líquido que
corre em nossas veias — devolvo num fiapo de voz. Meu
sanguinário particular deposita um beijo molhado naquela região,
fazendo-me estremecer com seu toque.
Segundos depois sou liberada e guiada para subir a
escadinha pela mão de Giulio em minha lombar.
— Melhor aprender a jogar para depois dar as cartas,
Bambola — assopra em meu ouvido, assim que praticamente me
posiciona sentada na poltrona ao lado de Luigi.
Viro o rosto para a frente, com vergonha de olhar para meu
irmão e ele enxergar no meu rosto aquilo que não gostaria de
revelar para ninguém no momento. Seria extremamente
constrangedor que ele soubesse sobre minha necessidade em
trocar de lingerie por conta da atração latente que sinto por meu
noivo.
Si… seria… Mas pior ainda é encarar meu futuro sogro que
sorri para mim e estende a mão para o cumprimentar.
Dio Santo!
— Come stai, ragazza?[137]— Don Antonio levanta-se e meu
irmão me ajuda a encontrar a mobilidade das pernas com um
empurrão para elevar meu corpo e aceitar o cumprimento. Signore
Moretto segura meu rosto, beijando cada uma das minhas
bochechas. — Così bella[138] — diz antes de retornar ao assento.
— Gra-grazie[139]— agradeço, vendo Giulio sentar-se ao lado
do pai na poltrona confortável de tonalidade clara, com um sorriso
enviesado. Quero fazer uma carranca em resposta, mas se o fizer,
seu padre não entenderá o motivo. Então, ignoro-o completamente.
— E grazie pelo convite, Don Antonio. Sempre quis ver uma gara[140]
de perto.
— Prego, bambina. sei una famiglia[141] — o senhor que
parece uma versão mais velha, de cabelos brancos, do meu noivo
replica com um sorriso que mal cabe no rosto.
Devolvo-lhe outro sorriso mais casto e decido arrumar-me
no assento para afivelar o cinto de segurança, ficando levemente
incomodada. Toda essa tensão e a única coisa que penso é o
quanto queria sentir os lábios macios do homem que me
enlouquece com apenas um sorriso. Caspita!
Não vou voltar a olhar para ele. Melhor evitar para
sobreviver ao voo sem morrer de vergonha. Madonna mia, será que
ele irá me beijar durante a viagem? O mero pensar remete uma
fisgada gostosa em meu baixo ventre.
Caspita! Estou ficando excitada com meu futuro sogro e
irmão ao lado só pela expectativa de algo que talvez não aconteça?
Devo estar maluca…
Remexo-me na poltrona acalmando a respiração. Inspiro
vagarosamente, sorrindo como qualquer damigelle, todas bambolas
plastificadas. Merda. Usei até o apelido que ele colocou em mim.
Mal sabe ele que comprou uma bambola quebrada.
— Aceita algo, signore? — A aeromoça aparece dando-me
tempo para retomar o ar escasso em volta de mim.
— Grazie — Meu irmão responde e vira para mim. — Quer
algo, piccola?
No mesmo instante que Luigi pronuncia o apelido, subo o
olhar para Giulio apenas com a elevação das pálpebras, mantendo
a cabeça inclinada para frente. Ele dá uma tossida e limpa a
garganta, com um sorriso travesso, ajeitando-se na poltrona de
modo a fazer o couro torcer. Dio Santo! Ele é lindo.
Por que não consigo odiá-lo pelas palavras duras que disse
em nosso noivado?
Eu deveria…
Mas… sei que ele não saiu com nenhuma de minhas
primas. Muito menos Erica Spadotto. Infelizmente, ou felizmente… a
ruiva foi pega por meu irmão. Infelizmente, pois não gostaria que
meu irmão se envolvesse com alguém tão manipuladora.
Felizmente, pois ela saiu do cardápio de meu noivo.
Valentina, por fim, informou que Giulio agiu dessa forma por
conta da minha postura altiva e por ter outro homem desafiando-o
explicitamente.
Gostaria muito que a versão de minha prima fosse a
verdadeira.
Observo a postura mais casual que está sentado com um
tornozelo apoiado no joelho, o cotovelo apoiado ao lado enquanto
os dedos nefastos de uma das mãos dançam nos lábios.
Ain… Madonna mia.
A visão do homem másculo que será meu noivo parece se
divertir com o novo apelido que poderia usar para bagunçar minha
cabeça.
Como se ele bagunçasse só a cabeça, cara mia…
Por um milagre, mio fratello decide tomar as rédeas do
assunto mencionando sobre os diversos campeonatos que o primo
Matteo Pascalle, sobrinho do Don, cujo qual iremos torcer para
vencer o prêmio, e seremos recebidos pela família em questão.
Viccenzo Pascale é o pai de Matteo e atual Don da
Camorra, bem como o irmão da falecida mãe de Giulio, Chiara
Moretto. Acredito que o nervosismo do meu irmão também esteja
relacionado não apenas a minha interação com meu noivo, mas
também por ser um Soldato da Cosa Nostra em outro território. Não
importando que este seja aliado.
Enfim.
Por ora, neste avião, para mim e para minha calcinha, havia
apenas um inimigo. E este fazia questão de me fitar com aquele
sorriso que inundou meus sonhos desde a minha festa de quinze
anos.
Uma hora depois estamos descendo em Monza, sendo
aguardados por uma equipe de segurança de fazer inveja a
qualquer líder governamental.
Sinto-me uma princesa sendo conduzida não apenas por
um, mas quatro seguranças, meu irmão e um noivo que
aparentemente quer se fazer presente.
— Iremos para a casa na Villa Besana in Brianza. — Don
Moretto informa, assim que estamos todos acomodados na limusine.
— É uma propriedade muito bella figlia. Existe um vinhedo particular
no qual poderá caminhar à vontade para conhecer.
— Grazie, Don — digo baixinho. Talvez nem saia do quarto
até que me seja solicitado, porém, saber que há a possibilidade de
caminhar pela propriedade é um alento.
— A corrida está marcada para amanhã às 9 horas.
Sairemos às oito. Precisa de ajuda para se arrumar? — Giulio
indaga, mantendo os olhos no visor do celular, sentado à minha
frente.
Olho para Luigi com a confusão estampada na cara, sem
entender o motivo de precisar de alguém para me arrumar.
É apenas uma corrida de carros, não é?
Por que eu precisaria de alguém para colocar uma calça
jeans e tênis?
Mio fratello dá de ombros e volta seu olhar para a rua,
deixando-me sem saber o que responder. Então, decido pelo
caminho mais fácil e pergunto:
— Eu preciso?
Giulio expira asperamente e me fita de modo entediado.
Após alguns segundos me examinando, seu semblante muda.
Não sei se minha ignorância ou algo que viu em meu rosto o
faz amenizar e repensar como agir, mas ele sorri docilmente.
— Para mim, não precisa de nada, cara mia. Nada. — E
recebo aquele sorriso de molhar calcinhas. É… o sorriso não era tão
doce, afinal. — Mas algumas ragazze gostam de se arrumar para
um gara.
— Não sou algumas ragazze. Sou apenas uma. — Viro o
rosto rapidamente para a paisagem da janela, crispando os lábios
conforme o gostinho amargo do ciúme que não deveria sentir inunda
minha boca. Madonna, é sério isso? — Não preciso de nada.
Ouço Giulio bufar um riso contido antes de o sentir
buscando uma das minhas mãos que estava apoiada em meu
joelho. O toque faz minhas terminações nervosas ficarem acesas,
incluindo certos lugares que deveriam estar adormecidos diante da
plateia.
— Você não é apenas uma, Bambola. Você é a ragazza que
escolhi para ser mia sposa[142]. — E então reconheço a maciez e
umidade dos lábios de Giulio que deposita um beijo aparentemente
cálido, se não fosse o roçar de língua escondido que somente eu
sinto.
Será que existe algum hidrante no caminho que estamos
fazendo? Acabo de entrar em combustão instantânea e minha
calcinha poderia estar em chamas se não fosse o líquido de
excitação que teima sair de mim.
Dio Santo!
— Francesca não precisa de ninguém para se arrumar. Ela
e minha irmã sempre gostaram de se aprontarem sozinhas — Luigi
empertiga secamente. — E, acho que chegamos, não?
— Sì. È qui.[143] — Don Moretto confirma no instante que
passamos muros altos de hera através de portões de ferro
ornamentados com arabescos que parecem continuação do
desenho da planta trepadeira.
Giulio emana outro riso baixo ao voltar-se no assento,
soltando minha mão. Ele não olha para Luigi, mas é nítido estar
debochando da atitude protetora do meu irmão.
No momento em que o veículo estaciona, passo a analisar
melhor a mansão de luxo que nos hospedaria para o final de
semana.
O lugar era tão glamuroso quanto qualquer outra das
mansões que estávamos acostumados. Um edifício de quatro
andares em frente às portas de entrada da mansão de luxo.
Sua fachada colonial imponente e cativante testemunha a
história da elegância da época do século XVIII.
Revestida em tons terrosos e enriquecida com elementos
ornamentais nos detalhes das janelas brancas, emolduradas por
delicadas guarnições esculpidas à mão.
Fomos recepcionados pelo imenso jardim em seu esplendor
natural que se estende por toda a mansão. Vejo canteiros
cuidadosamente projetados abrigando uma variedade de flores
exuberantes dos mais diversos tons de rosa, algumas vermelhas e
outras que se destacam pelo amarelo ouro.
Tive a impressão de visualizar um pequeno coreto ao lado
da edificação. Minha atenção em manter os olhos abaixados como
mammina ensinou não me deixou auferir exatamente sua
localização.
— Buona notte![144] — O homem um pouco mais velho que
Don Moretto, porém com cabelos nitidamente pintados, surge no
hall de entrada. — Pensavo che non[145] fossem chegar nunca!
— Quindi aspetto con ansia[146] por minha chegada, fratello
— a versão mais velha de Giulio devolve sorridente com os braços
abertos para o outro. Eles se abraçam e cumprimentam-se beijando
ambos os lados dos rostos.
— È pazzo[147]? Estava ansioso por rever a beldade da
Sicília. Madonna mia! Está ainda mais bella, cara mia. — Don
Viccenzo me abraça apertado e fico com os braços estirados ao
lado do corpo sem reação. Havíamos nos visto na festa de noivado,
que passara apenas um ano.
Retomo o movimento dos braços quando o aperto de urso
termina, sendo afastada como uma boneca para ser examinada.
— Ela não mudou tanto assim em um ano, Zio — Giulio
ressoa debochado. Sinto uma pequena pontada no ego por conta
disso. — Continua bella come[148]. — E isso ameniza um pouquinho.
Talvez, quando na sequência, recebo um sorriso com a piscadinha
de canto tenha ajudado.
Pisco algumas vezes recobrando o juízo quando meu irmão
toma a dianteira oferecendo a mão para cumprimentar Don
Viccenzo.
— Como vai Signore Pascale? — indaga polidamente. O
Don da Camorra observa-o por alguns segundos mais longos do
que a mim, dando a impressão que estaria averiguando outra coisa.
Don Moretto limpa a garganta e então Don Viccenzo aperta
de volta a mão de meu irmão com um chacoalhão no qual
disputaram quem deslocava o ombro de quem.
Giulio é o seguinte a ser esmagado pelo tio, que aperta suas
bochechas como se estivesse cumprimentando um menino. Meu
noivo empurra as mãos do tio com uma falsa expressão emburrada,
mas sim divertida.
— Seus primos já tinham compromisso para esta noite, mas
vocês vão conversar muito amanhã. — Nosso anfitrião relata a
ausência dos filhos. — Bom, vamos aguardar o jantar no salão,
pode ser? Podemos saborear o vinho da última safra aqui na
vinícola. Está — ele faz um gesto unindo as pontas dos dedos,
dando um beijo a seguir — uma delícia.
— Hum… — murmuro, baixando o olhar.
— O que foi, piccola? — Luigi segura meu braço
carinhosamente. Ergo o olhar para meu irmão e depois miro os
demais.
— Eu gostaria de ir para o quarto antes, tudo bem? Quero
descansar um pouco — informo, pois realmente estou cansada
diante de toda a tensão que vivi há pouco.
— Claro, cara mia. Me perdoe. Manoela vai te levar até o
quarto — ele abana a mão para uma das funcionárias que estava
aguardando suas ordens silenciosamente acostada à parede. —
Manoela, leve a ragazza até o quarto que preparamos para ela. Va
bene?[149] — Logo após me fita. — O jantar será servido em uma
hora, bambina. Está bem?
Assinto com um gesto de cabeça e sigo a signora Manoela
que caminha em direção a outro cômodo, deixando as vozes
masculinas atrás de nós.
Solto uma expiração profunda, relaxando os ombros
conforme ando pela mansão e me afasto antes de sentir a
tempestuosidade da aura de Giulio. Por mais que a curiosidade
fosse mais um defeito do que uma qualidade em nosso mundo,
gostaria de saber o que aquele homem pensa.
Em especial, sobre mim… Suspiro audivelmente e recebo
um sorriso gentil da mulher que me guia pela residência. É… quem
sabe um dia descubro o que realmente Giulio Moretto pensa a meu
respeito. Por ora, me contentava em usufruir da beleza do lugar.
É notório o luxo e a sofisticação do século XVIII em cada
parede. Passamos por dois salões espaçosos que ostentam
afrescos no teto e móveis elegantes.
Alcançamos uma escada ondular na lateral esquerda,
adornada com um corrimão que possui arabescos entalhados em
dourado. Será que é ouro?
Bocejo sem perceber, surpreendendo-me por realmente
estar cansada. Entramos em um corredor espaçoso com tapeçarias
não apenas no chão, mas também sendo intercaladas com quadros
de molduras antigas entre as portas.
Finalmente, Manoela abre uma porta, dando uma leve
reverência para que entre. Este gesto sempre me faz lembrar que
para nossa famiglia somos mesmo da realeza. Bom, da realeza da
máfia, pelo menos.
Coloco as mãos na cintura e torço o tronco para trás antes
de verificar se trouxeram minha bagagem aos aposentos.
O quarto possui mobiliário antigo restaurado, criando um
ambiente requintado. O dossel e tecido leve presos nas laterais
como cortinas dão um toque especial ao dormitório de uma
princesa.
— O banheiro da suíte é na porta no canto direito, Signorina
— a funcionária menciona, ainda parada à frente da porta. Meneio a
cabeça. — Se precisar de algo é só chamar, Signorina. — diz, antes
de pegar a maçaneta, encostando a porta.
Desabo com as costas no colchão e braços estirados. Mama
mia! Acabo de viajar com meu noivo e futuro sogro pela primeira
vez. Esfrego o rosto querendo diminuir o cansaço. Depois puxo um
travesseiro debaixo das cobertas e o abraço, colocando a cabeça
sobre outro. Sinto o cheiro de floral vindo do tecido do lençol e me
aconchego ainda mais.
Dio Santo! Como eu queria dormir mais do que meia hora.
Mas, se o fizer irei me atrasar e não será uma boa impressão para o
Don da Camorra.
Qual seria a penalidade se me atrasasse para uma refeição
aqui em Monza, hum?
Inspiro profundamente e solto o ar pela boca numa
expiração longa, apertando ainda mais o travesseiro.
De acordo com o que aprendi ouvindo as conversas durante
as festas não é nada indolor. Pego o celular preguiçosamente
acertando o cronômetro para tocar dali trinta minutos, pois,
sinceramente, não quero descobrir.
FRANCESCA ZANCHETTA

Desci a escadaria quase que rolando quando notei ter


passado míseros minutos além do esperado para um atraso de
respeito. Isso se existe tal coisa…
No instante em que atravessei o arco entre os cômodos,
alcançando a imensa sala de jantar, enxerguei todos a postos em
seus devidos lugares à mesa. Madonna mia!
Vendo que todos ainda estavam com as mesmas vestes da
viagem, pensei ter exagerado um pouquinho no vestido que escolhi
para a ocasião. Não estávamos em um ambiente de gala, mas
sinceramente, eu me sentia como se fosse.
Não escolhi um vestido glamuroso, mas é sofisticado o
suficiente para não parecer casual. O tecido na cor nude era
alinhado ao corpo e com pequenos detalhes em renda em meu colo.
O comprimento comportado até os joelhos conferia a elegância que
uma princesinha da máfia deveria manter.
Prendi o cabelo num rabo de cavalo no alto da cabeça e
usei um pouco de maquiagem para tirar o ar de cansaço.
Meu irmão foi o primeiro a me avistar, saindo do seu lugar e
arrastando a cadeira para me acomodar ao seu lado.
— Qui[150], Tchesca — indicou o assento. — Sente-se.
Don Viccenzo e Don Antonio foram os próximos que se
viraram para mim, ambos sorridentes demais. Giulio, no entanto,
manteve o olhar direcionado para a frente e só quando me
aproximei, notei que admirava a taça de vinho em sua mão,
circulando o líquido cuidadosamente.
— Ma che bella ragazza[151]. Parabéns, Antonio. La tua futura
nuora è bellissima[152] — Viccenzo graceja.
— Terei belos netos, cognato.
— Certo, lo farà[153]. — Nosso anfitrião ressalta a habilidade
que não sei ao certo como poderia aprimorar.
— Grazzie — agradeço, timidamente e desço o olhar para
meus pés, obrigando-me a colocar um na frente do outro e movê-los
até meu irmão.
Assim que me acomodo, tento manter a cordialidade
erguendo o olhar de modo cauteloso para meu noivo. Ele apoia a
taça sobre a mesa, deslizando os dedos longos e másculos pela
haste de cristal, acariciando até a base de modo tão sensual que me
perco por alguns segundos pensando como seria ter os mesmos
dedos em minha pele.
Madonna delle mutandine, aiutami![154]
Como que sentindo meu olhar, sou flagrada por ele com um
sorriso presunçoso. Puxo a cadeira para frente na tentativa de
desviar a atenção e o barulho tornar a situação menos
constrangedora.
Sinto cada movimento de Giulio conforme inclina-se sobre a
mesa para me ver melhor. Todo lobo mau costuma fazer isso antes,
não? Primeiro é para ver melhor, depois para devorar com mais
presteza.
A imagem do homem atraente sem camisa varre qualquer
pensamento coerente em minha mente quando me recordo das
últimas fotos que o vi nas redes sociais. Ele estava em um iate,
usando apenas um short branco e uma corrente de ouro grossa no
pescoço. Seus olhos escuros para a câmera que o captou pareciam
furiosos por conta do momento roubado pelo paparazzi.
— Darei o meu melhor para que os seus netos venham o
quanto antes, mio padre[155]. — Giulio levanta a taça até seus lábios,
me encarando sobre o líquido vermelho escuro. Ambos os Dons
riem com o comentário, menos Luigi. Olho para ele com um sorriso
sem dentes e um pequeno movimento de ombro, indicando que
estava tudo bem.
Não estava…
Eu deveria estar acostumada a ser objetificada, posto que
fui criada em meio ao mundo machista da máfia. Mas ouvir
conversas sobre vidas alheias que são manipuladas é bem diferente
de quando estão falando sobre você.
Minha mammina deixava claro que estava nos
domesticando cada vez que o acordo de casamento de uma
damigella d'onore era firmado. Todas nós deveríamos parabenizá-la
mesmo que a pobre fosse forçada a um enlace sem amor, pior, com
alguém tão velho quanto seu próprio padre.
Dio Santo! Avisto novamente o rosto que contempla um
sorriso misterioso, e diante das opções, agradeço pela jovialidade
que impera na carteira de identidade de meu sposo[156].
— Finalmente! Mangiamo? — Don Viccenzo abre os braços
dando espaço para que serviçais tirem as bandejas de antepastos
com queijos e salames, enquanto que outros colocam à nossa frente
os pratos com a pasta fettuccine Alfredo[157]. O molho cremoso
transborda o odor característico da manteiga e parmesão.
Sinto minha boca salivar quando inspiro profundamente,
percebendo o quanto estava faminta. Traço a ponta da língua sobre
os lábios, saboreando a refeição pela fumaça que exala. Ao mesmo
tempo, percebo a cobiça maliciosa vinda de Giulio Moretto que me
observa descaradamente.
Meu irmão mais velho do nada tem um ataque de tosse,
tirando-me da zona de lascívia que envolve o Sottocapo da famiglia.
Coloco a mão em seu ombro e não mais que depressa, Luigi
está composto, sorrindo de modo amistoso para mim enquanto que
para Giulio fecha a cara instantaneamente.
— Estou sabendo que amanhã Matteo correrá com outro
carro. È vero, zio?[158] — Meu noivo altera toda a dinâmica de
atuação, indicando o quanto sabe dançar esta valsa melhor do que
Luigi.
— Sim, Giulio! — Don Viccenzo pega a taça com tanta
empolgação, estendendo os braços para as laterais, que quase
espirra vinho sobre Don Antonio. — Ele vai te contar tudo amanhã,
se der tempo. É uma tecnologia nova que desenvolvemos. Além do
modelo novo de DRS[159], implantamos a tecnologia de SREC[160].
Domani la vittoria è garantita[161].
— Scusate l'ignoranza[162], mas isso é? — interfiro, curiosa a
respeito do evento cujo qual seria expectadora no dia seguinte.
— É um sistema que recupera uma parte da energia cinética
gerada pela desaceleração do motor. Não se perde na forma de
calor. — Giulio responde como se a pergunta fosse direcionada para
ele.
Não foi.
— Hum… — murmuro em compreensão, colocando uma
bela garfada de fettuccini na boca. Oh mio Dio, como ele fica sexy
falando sobre carros… A forma desenvolta e tranquila com que
gesticula conforme fala, me deixa completamente hipnotizada.
Quem sabe após o casamento ele se torne mais próximo,
não?
Viveremos na mesma casa e dormiremos na mesma
cama… Inconscientemente, remexo o quadril sentindo o calor
emanar entre minhas coxas até encontrar minha virilha. A imagem
de Giulio tão perto, seus lábios tão próximos, seu hálito soprando
em minha boca… Minha intimidade se contrai no piloto automático.
— Hum… — solto sem perceber.
— O nosso cozinheiro é molto bravo, não é bambina?[163] Ela
prepara o melhor Fettuccini Alfredo de toda Itália. — Don Viccenzo
conclui, fazendo-me perceber que murmurei para o mundo toda
tensão sexual que venho sofrendo. Caspita!
Minhas bochechas ficam coradas de imediato pelo flagrante.
Felizmente, minha boca está repleta de pasta, o que facilita a
performance de esconder meus pensamentos impuros.
Sorrio, limpando os cantos da boca.
— È davvero buono. Grazie[164] — digo cortês.
— Então… sobre a corrida. Toda essa tecnologia não é
usada pelos outros pilotos também? Qual a diferença que Matteo
Pascale vai ter? — Mio fratello questiona, novamente me salvando
do centro das atenções.
— Não é assim que funciona, ragazzo — Agora é Don
Antonio que contesta. — Todos têm acesso à tecnologia, mas cada
equipe trabalha para aprimorar os motores conforme evoluem. Caso
contrário existiria apenas um modelo de carro no mundo, capito[165]?
— Mas esse DRS é visível. Outras equipes irão ver e
modificar igualmente. — Luigi insiste.
Don Antonio parece solícito em responder e dar
continuidade ao assunto, indicando o quanto os conceitos de
mecânica são compartilhados entre os homens presentes tanto
quanto a forja de metal.
Noto vez ou outra uma nuvem enigmática percorrer a face
de Giulio, intercalando os olhares entre Luigi e seu pai conforme o
diálogo se propaga.
Não fico inerte, perguntando e falando sobre o pouco
conhecimento que tenho. Por alguns momentos, esqueço-me do
modo grotesco que os homens geralmente tratam as mulheres
quando estão a sós, discutindo sobre os negócios da famiglia.
Talvez as mulheres pudessem fazer muito mais do que só
administrar ONG’s dentro da Cosa Nostra, penso.
Apanho uma das uvas, dando-me conta que já estamos na
sobremesa no segundo que sinto a pequena explosão da casca em
minha boca. O líquido escorre um pouco e levo uma das mãos o
quanto antes para secar o queixo. Solto um risinho baixo,
imaginando Dona Anunziatta Zanchetta repreendendo-me por não
pegar o guardanapo de pano.
Exalo o ar relaxada e peço para me retirar quando o jantar
chega ao fim. Sorrio educadamente, despedindo-me de todos e
levanto-me após um dos funcionários puxar a cadeira para mim.
Neste instante, ouço outra cadeira sendo arrastada com
mais brusquidão e fico absorta vendo Giulio vir até mim tão rápido
quanto um vendaval, oferecendo-me o braço.
— Te acompanho até as escadas, Bambola — afirma,
revelando a todos o apelido que me conferiu.
Sei que deveria olhar para Luigi e verificar sua permissão
para seguir. Porém, o vinho e a conversa casual como se fosse um
deles me fez esquecer desse detalhe.
Ou talvez eu realmente não queira continuar com a etiqueta.
Antes que mude de ideia, sou conduzida por meu noivo e pelo
impulso de coragem recém-adquirida.
A mesa mantém-se silenciosa por míseros segundos e
então, Don Antonio limpa a garganta, dando início a outra
argumentação sobre a corrida. Não consegui identificar ao certo
sobre o que falavam, além de notar a precaução de meu sogro em
incluir Luigi na conversa, indagando sua opinião sobre outra equipe
de Fórmula 1.
Giulio mantém o caminhar vagaroso através de alguns
portais até que, finalmente, chegamos à escada. Vejo pelo canto do
olho o mesmo sorriso presunçoso que me atrai muito mais do que
me assusta. Eu deveria temer ao sorriso que possui uma língua tão
felina quanto a de Giulio Moretto. Mas cá estou… querendo ter mais
momentos com ele do que fugir e manter-me segura.
— Você está me encarando, Bambola.
— Estou? — Desvio o olhar, envergonhada por ter sido
pega. Como ele notou, eu estava… — Eu não…
— Não precisa mentir — determina, guiando-me para ficar à
sua frente. — Você pode me olhar sempre que quiser. Seremos
marido e mulher. — Giulio coloca parte dos meus cabelos para trás
dos ombros, deslizando as pontas dos dedos no local. Arfo sem
querer. — Faremos muito mais do que apenas olhar um para o
outro. Aliás… — ele hesita, aproximando o rosto até meu ouvido. —
Já fizemos algo além de olhar. — O sussurro malicioso envia
tremores de calor diretamente para meu sexo.
Caspita!
— Mas, vo-você disse que… — Quero lembrá-lo de como foi
rude comigo. Quero ver em seus olhos algum tipo de
arrependimento, mesmo que as palavras sejam ausentes. Quero…
— Quer mais do que apenas olhar, Bambola? — É
exatamente isso que eu quero. Dio Santo, perdonami![166]
Estou andando nas nuvens quando alcanço o primeiro
degrau e diminuo um pouco a diferença de altura com o homem que
tem me enlouquecido nos últimos meses. E muito mais nos últimos
minutos. Mentirosa… Ele te enlouquece desde antes de ser seu
noivo.
Fecho os olhos por um breve momento, abrindo-os em
seguida na tentativa de descobrir o que Giulio pretende. Ele parecia
me desejar ao mesmo tempo em que queria mostrar o quanto não
significava nada para ele.
Não consigo identificar qualquer emoção advinda desse
homem, apenas o quanto meu corpo o deseja. Será que ele… me
deseja também?
No minuto em que busco seu olhar não vejo raiva e sim…
algo… diferente.
Eu quis provocá-lo em nosso noivado e recebi em troca o
rompante que modificou a imagem de relacionamento entre um
homem e uma mulher. E meus sonhos eróticos passaram a um
patamar completamente diferenciado.
Na realidade, eu nem sabia que era possível sentir tanto
desejo ao ponto do calor arder meu baixo ventre. Mesmo que a
atitude de Giulio em nosso noivado fosse consequência da minha
petulância, o resultado gerou queimaduras de brasa numa inocência
forjada pela proteção da famiglia.
Eu não queria mais essa inocência. Por mais que tivesse
apenas ela como moeda de troca em nosso mundo, ela já estava
perdida para Giulio Moretto.
Meu noivo iria reivindicá-la de qualquer forma e… em
qualquer momento. E com minha fascinação por ele e o desejo
ardente formado naquele breve rompante juntamente com minha
imaginação criativa, Giulio não precisava de muito para me
convencer.
O fato de não ser tocada e mantida como uma princesa na
torre me fez totalmente refém de suas garras.
Agora, aqui, esta noite, fui seduzida por seus olhares
furtivos, sorrisos arrogantes e postura de quem governava um
império.
Ergo o queixo, roçando nossas faces. Minha ousadia não é
para provocar sua ira, mas sim o desejo carnal que vi em todos os
seus movimentos.
Eu o quero tanto…
Inspiro com sofreguidão o ar ao meu redor, sendo
presenteada com o perfume que me remete ao meio de uma
floresta, cercada de árvores, ouvindo a cachoeira… e lá distante é
possível ver uma cabana. O cheiro amadeirado e levemente
adocicado me faz querer lambê-lo para sentir se o gosto é tão bom
quanto.
Afasto-me um pouco e sorrio quando vejo o rosto
descontraído de Giulio sorrir de volta. Tomo a coragem de tocar o
vislumbre de pele entre a gola da camisa e seu maxilar com a ponta
dos dedos. Inspiro fundo, soprando o ar em seus lábios.
— Bambola… não me provoque. — A voz grave e
aveludada causa calafrios por todos os pelinhos do meu corpo. Dio
Santo!
Aproximo meu rosto um pouco mais, só um pouquinho.
— Eu quero… — Molho o lábio inferior, sentindo o resquício
doce das uvas. — Eu quero que me beije — digo baixinho.
— Você é fraca para bebida… — constata, inclinando a
cabeça e divertindo-se comigo.
Eu não estou aérea, pois tomei apenas duas taças de vinho.
Fiz questão de beber água entre cada gole, mas prefiro que ele
pense que estou entorpecida ao confessar meu desejo. Posso, mais
tarde, culpar o álcool e não a vontade louca de querer mais deste
homem.
Madonna mia, sou realmente louca.
— Não sou não… só quero… só quero beijar meu noivo —
informo, agora um pouco mais centrada. Seguro sua nuca com a
mão atrevida que se aventurou pelo seu colarinho. — Você já me
beijou.
— Eu já fiz mais do que apenas te beijar, Bambola. Te fiz
gozar, cara mia. — Ele segura e aperta minha cintura. — Você quer
me sentir de novo, é isso?
Suas palavras rudes e sem qualquer carinho deveriam ser a
fórmula certa para me repelir. No entanto, meu interior se contrai
algumas vezes com a recordação e a necessidade de mais. Dio!
— Deixa sua porta aberta, Bambola. Ora cammina![167] — Ele
me vira e dá um tapa em minha bunda. Dou um saltinho pelo
assalto. — Preciso voltar para a mesa. — Ele sorri lascivo. E eu…
caspita! Eu sorrio de volta e subo as escadas ansiosa.
Madonna! Será que devo tomar outro banho?
FRANCESCA ZANCHETTA

Eu deveria estar deitada em minha cama.


Eu deveria parar de andar de um lado para o outro.
Caspita!
Eu deveria estar dormindo o trigésimo sono, e apenas
sonhando com a possibilidade de beijar meu noivo no altar no dia do
casamento.
Só que não é isso que está acontecendo.
Assim que entrei no meu quarto, retirei o vestido
rapidamente, sorrindo feito boba. Em seguida, abri a repartição com
as minhas camisolas e escolhi aquela que, a meu ver, seria a mais
sexy.
Senti o rosto aquecer de vergonha ao ver meu reflexo. Giulio
podia me chamar de bambola, mas durante a festa de noivado não
me tocou como tal. Muito menos agora…
Eu devo estar louca.
Sigo até a mesinha disposta no quarto e acendo as três
velas do castiçal de bronze, que estaria ali apenas para
ornamentação, mas se fosse, não encontraria fósforos na cômoda.
A iluminação amarelada confere um ar mais aconchegante
ao quarto e me dá mais de coragem para aguardar mio sposo com o
fino tecido que estou usando.
Não posso fraquejar agora. Não…
Preciso continuar com o plano.
Sem contar que Giulio respondeu minhas indagações sobre
veículos automotores de igual para igual. Ele fez com que eu me
sentisse no mesmo patamar que os homens do nosso meio. Não fui
excluída na conversa e sim integrada como membro da mesa.
Tudo bem que não havia plateia para o espetáculo cujo qual
vivenciamos em todos os eventos da famiglia… Dio Santo!
Não sei bem o que pensar… Aperto minhas mãos que suam
com a apreensão de sentir as mãos de Giulio novamente. Pensar no
leve roçar de sua barba em minha pele, e o toque másculo dos seus
dedos remetem ondas elétricas por cada terminação nervosa.
Suspiro alto, exalando o ar com mais força para clarear a
mente. Será que é seguro entrar nesse jogo de sedução e seguir
com a bobagem de tentar conquistar Giulio Moretto?
Seguro a alça fina do tecido de seda que cobre meu corpo.
A camisola fina delineia minha cintura e quadril, deixando evidente
minhas curvas. Não há renda que ofereça alguma transparência
além da inevitável exposição de pele.
Sento-me na cama na tentativa de que parando os
movimentos do meu corpo conseguisse diminuir as batidas do meu
coração. Iludida.
É isso que estou sendo ao pensar que vou conseguir
controlar a agitação no peito.
De repente não ouço mais nada.
Silêncio.
Todos estão em seus devidos quartos.
Escutei os passos de meu irmão, identificando sua forma
apressada de andar. Eu sempre soube distinguir quem era pelas
batidas do sapato no assoalho. Cada um possui um ritmo único
quando caminha. Aprimorei este dom durante a recuperação da
cirurgia e nas noites que todos em minha casa revezavam para
auferir meu estado de saúde.
Era uma brincadeira interna que eu praticava sozinha.
Precisava de algo para me distrair além dos programas de televisão.
Havia lido boa parte dos livros de romance permitidos para
minha idade. Sem contar que poucos traziam algo que eu realmente
gostasse. Sempre queria ler onde o casal se odiava para depois se
amar intensamente.
Os temas mais conturbados e interessantes eram para
maiores de 18 anos. Na época não era meu caso.
Ouço um barulho ínfimo de ranger de madeira e fico atenta.
Meu peito sobe e desce em respirações rasas, vou até a porta e
verifico se destravei o trinco como Giulio solicitara.
Bom… foi um comando na verdade.
Que você se prontificou mais que depressa em cumprir.
Madonna, o que estou fazendo?
Prendo a respiração e levo a mão até a maçaneta,
repensando no que pretendia deixar acontecer naquela noite.
Eu não podia… não queria que papà ou mammina tivessem
vergonha de mim.
Não posso permitir que Giulio desonre meu clã dessa forma
mesmo que…
E a maçaneta vira antes que consiga formular outro
pensamento. Dou um passo para trás, analisando a figura que
invade meu quarto. Minha boca seca e fica difícil engolir ao
constatar que Giulio está usando uma calça de moletom cinza e
uma regata branca extremamente justa ao corpo.
Ele fecha a porta com delicadeza para que o trinco não faça
barulho, sem perceber minha presença tão próxima. Fico absorta
analisando os músculos dos ombros expostos, e os pelos escuros
de seu braço.
O formato do Uomo d’onore[168] que deve ser considerado
como uma arma de batalha, segurando a maçaneta como um
menino travesso me excita ainda mais.
Quais seriam as outras facetas que Giulio Moretto me
permitiria ver esta noite?
Assim que ele se volta para o quarto, percebo os olhos
incertos vagarem pelo cômodo. As sobrancelhas se unirem em
dúvida até que o rosto se ilumina ao encontrar o meu. Caspita!
Como não se apaixonar por esse olhar?
Apaixonar?
Não…
Será que sou tão boba ao ponto de me apaixonar apenas
por um olhar?
Sì. Tu sei.[169]
Para piorar tudo e a situação desastrosa de minha calcinha,
meu noivo percorre todo o meu corpo desnudando-me sem receio,
sem pudor, sem qualquer barreira da falsa moralidade de seu
império.
— Estava à minha espera, Bambola? — diz com tom
descontraído, escorando o ombro na porta e cruzando os braços.
Respiro fundo, vendo-o tão à vontade em sua pele,
enquanto eu estou completamente nervosa.
O que devo fazer?
Dou um passo para me afastar e Giulio desmancha a
postura vindo até mim. Seu corpo está perto demais.
Ele toca as laterais do meu corpo com suavidade, subindo e
descendo, roçando apenas alguns dos dedos em minha pele. Chupo
o ar, num pequeno soluço assim que sinto a primeira pulsação em
meu sexo, tão forte quanto a prensa da cutelaria.
Não é uma sensação estranha, mas a intensidade por conta
do momento e a expectativa do que está por vir tornou tudo mais
intenso. Ele mal me toca.
Giulio sabe como atrair uma mulher, imagine o estrago que
fará comigo?
O arrepio que sobe por minha espinha me assusta. Então,
meus pés me movem para trás, recuando ao seu toque. Subo um
braço sobre meus seios, posto que meus mamilos intumescidos
estão sensíveis com o mero toque da seda sobre eles.
Meu noivo bufa um riso fraco, virando o rosto para o lado.
Ele parece frustrado.
Caspita! Não era para ter feito isso.
Eu o quero.
Preciso ser corajosa para ultrapassar suas barreiras e
arriscar se quero entrar em sua cabeça tanto quanto está na minha.
Quero que pense em mim e não nas outras mulheres que já
estiveram em sua cama.
Madonna mia, como posso entrar no coração desse
homem? Mostra para mim…
Não demora para Giulio voltar a me encarar, agora nos
olhos.
O sorriso debochado é alisado por seus dedos, repuxando o
lábio carnudo para o lado. Ele morde em seguida e me mantém
cativa em sua órbita pecaminosa novamente.
— Desculpe… é que… — digo baixinho.
— Não peça desculpas — Giulio avança e desta vez existe
uma parede atrás de mim que não me permite recuar. — Não quero
ouvi-la se desculpar. — Ele fala devagar, soprando em meu rosto,
sem me tocar.
Eu quero que me toque…
Eu quero que ele volte a me tocar.
— Nunca fiz isso antes… estou…
Giulio inclina a cabeça para o lado, aguardando a explicação
que nem sei como começar.
— Está assustada… — ele conclui para mim. — Está sem
entender o que seu corpo pede… — Ele diz, observando-me através
dos cílios grossos. — Você quer que te toque, mas tem medo das
consequências, Bambola. — Giulio estala a língua. — Não esperava
menos de você.
— Não? — A questão sai num cochicho, porém em um tom
acima da minha voz. Ele ri.
— Você é um desafio, cara mia. Que estou disposto a
enfrentar. Não gosto de violar o que não é me dado de bom grado.
Se quiser… vou embora agora e não te tocarei sem que — ele
segura uma mecha do meu cabelo, brincando por alguns segundos
com os fios, pensativo, até continuar: — Você implore por mim.
Meu peito murcha no instante que a mecha que ele brincava
retorna ao meu ombro. Não…
Num ímpeto que desconheço seguro sua nuca, puxando-o
para mim e colando nossos lábios com brusquidão. Dio Santo!
Giulio congela, arregalando os olhos com minha atitude.
Mantenho o movimento, afundando os dedos em seu pescoço e
chupando com força o lábio inferior na mesma intensidade que meu
centro aperta dentro de mim. É insano o desejo que tenho por este
homem. Pode ser uma fantasia absurda, criada por uma
adolescente repleta de hormônios confusos e a mente conturbada
pela criação restrita.
Pode ser um milhão de alternativas possíveis. Mas todas
elas me levam diretamente para os braços do diabo em minha
frente. Não importa o caminho que irei seguir, seja antes ou depois,
sempre será para Giulio Moretto.
Como ele mesmo disse… Eu não tenho escolha. E se meu
corpo responde ao meu destino desse jeito, estou disposta a
sangrar para ele independentemente do momento que queira.
Não demora para Giulio tomar o controle do meu beijo
desastroso, engalfinhando os dedos em meus cabelos e fechando
os fios da nuca no punho. Ele movimenta minha cabeça, conforme
sua necessidade e a minha…
Arfo com o leve puxão e meu noivo aproveita para invadir
minha boca com a língua. Sinto a maciez dos lábios pressionados
aos meus enquanto sua língua acaricia a minha numa dança
sensual, circulando e me consumindo aos poucos. Meu corpo é
levado como ímã de encontro ao de Giulio, querendo senti-lo,
querendo saciar a necessidade que cresce desesperadamente.
Estou envolta e dominada pela combustão de emoções e
sensações que mio sposo construiu ao meu redor. A ânsia em ser
tocada e sentir novamente o que ele me proporcionou no dia do
noivado me enebriou. Quero mais, muito mais…
Giulio segura meus cabelos e a outra mão aperta minha
cintura com força. Eu fico nas pontas dos pés e aperto meus seios
contra seu peitoral, espremendo meus mamilos, movendo-os na
busca de contato. Mais…
Gemo baixinho, contida, receosa…
Meu noivo segura minha cabeça, abandonando minha boca
para traçar beijos pecaminosos por meu pescoço, mordicando,
lambendo, causando um reboliço gigantesco nas ondulações que
seguem o caminho direto para minha virilha. Eu poderia explodir só
com os beijos de Giulio.
Sinto quando libera meus cabelos e sua mão desce
acomodando-se as duas na curva de minha cintura. É como se ele
quisesse estudar meu corpo. Fico mais ansiosa. A seda fina não
disfarça a aspereza dos seus dedos quando Giulio desce ambas as
mãos por minha lombar, suavemente, num disfarce para alcançar
minhas nádegas. Ele rodopia as pontas dos dedos de cada lado e a
umidade entre minhas pernas aumenta, molhando ainda mais o
tecido de renda da calcinha.
A contração seguinte do meu sexo me faz gemer mais alto.
É neste momento que Giulio me ergue de súbito e instintivamente
circulo as pernas ao seu redor. Ele sabia o que estava fazendo e
aguardou até dar o bote para meu aceite piedoso.
Sinto nossos corpos moverem até a cama. Giulio afunda um
joelho sobre o colchão comigo pendurada nele. Seu tronco se
inclina e só quando os lençóis estão em minhas costas, libero a
cintura do meu noivo, sentindo agora sua grossura sobre minha
intimidade. Suspiro rouca de desejo.
— Você é uma bambola que sabe seduzir, cara mia. Não
consigo pensar em mais ninguém depois de sentir seu gosto. Você
fez alguma bruxaria? — Giulio indaga próximo ao meu ouvido,
causando um arrepio que percorre todos os pelinhos da minha nuca
e braços.
— Sou católica, Giulio. Não é permitido usar de bruxaria na
Cosa Nostra — brinco, mas querendo ouvir mais. Ele tem pensado
em mim? Seu riso soprado em minha pele é a resposta. A boca de
meu noivo não fica apenas no assopro, mas segue tocando a
epiderme que alcança.
A ponta dos dedos acompanha o tracejar dos seus lábios
num contínuo ato de loucura por meu corpo, baixando a alça fina da
camisola e revelando meu seio. Ele se afasta para admirar,
baixando o tecido do outro lado. Deixo que faça apenas até revelar
os bicos rígidos, segurando a seda logo abaixo. Não quero que veja
a cicatriz da cirurgia. Não ainda…
Ele não pode saber que sou uma bambola quebrada.
Giulio não parece perceber já que seu intento era apenas ter
acesso aos meus seios. Agradeço mentalmente pela pouca
iluminação fornecida apenas pelo castiçal.
— Você tem sido uma brava ragazza, Bambola?[170] — Giulio
indaga antes de circular meu mamilo direito com a ponta da língua,
deixando um amontoado de saliva para assoprar em seguida. Sugo
o ar com a sensação de arrepio que percorre o caminho inverso
para meu centro.
Estou embaixo do corpo de um homem, meu futuro marido
pelo menos, com os seios expostos e a calcinha ensopada. Isso é
ser uma boa menina?
Giulio sobe o olhar com um sorriso malicioso, descendo a
boca para fazer a mesma tortura com o outro mamilo. Eu quero que
ele me beije… bem ali.
— E-eu sou uma… donna[171] — consigo responder entre
suspiros. Meu noivo se apoia em um cotovelo, mantendo o hálito
muito perto de minha pele.
— Posso ver que possui o corpo de una donna[172], Bambola.
— Ele me estuda, passando mais tempo fitando meus seios do que
meu rosto, até que sua mão desliza sobre a seda fina e percebo que
ele está subindo a barra da camisola quando está muito próxima do
meu quadril. — Mas ainda é una ragazza[173].
Dio santo! Como ele consegue manipular meu corpo
confundindo minhas sensações assim? E o que ele quer dizer com
ser uma menina? Ele está praticamente me despindo…
Giulio não tira os olhos do meu rosto enquanto sobe minha
camisola até revelar minha calcinha, o tecido sendo mantido no
lugar com dificuldade por estar embaixo de mim.
— Nã-não… so-
— Sshiiii… — Ele coloca o dedo indicador sobre meus
lábios. — Agora quero saber, Bambola… Quanta donna tu[174] quer
se tornar oggi[175], hum?
— Co-como?
— O quanto você quer me dar do seu corpo, cara mia?
— Vo-você não pode me fazer sangrar antes do casamento.
— Deveria dizer me tomar como esposa, mas a referência que fez
sobre sangue no dia do noivado berrou mais alto em minha mente.
— Sabe… algumas mulheres não sangram na primeira vez.
— Ele brinca, fazendo círculos imaginários em meu abdômen sobre
a seda da camisola. — Algumas nem sentem dor… e… — Giulio
inspira fundo. — Pelo cheiro da sua excitação, aposto que consigo
essa proeza.
— Não me fazer sangrar?
Ele bufa o riso.
— Isso não sei… mas a dor ser menor? Talvez.
— E-eu não… — gaguejo, agora insegura se consigo
terminar. Giulio está me perguntando, afinal. Serei tão responsável
quanto ele por qualquer coisa que fizermos.
Madonna mia! O que estou fazendo?
O que você pensou em receber seu noivo em seu quarto?
Se Luigi o pegar aqui…
Dio santo!
Posso causar uma desgraça em minha família.
Estou prestes a empurrar Giulio quando sinto seus dedos
escorregarem pela lateral da calcinha e alcançar minha vulva.
— Hum… — ele murmura enquanto prendo a respiração
para conter o gemido. — Tão molhada, Bambola. Você gosta de ser
violada… Gosta de estar em minhas mãos. — Giulio espalma toda
minha intimidade, pressionando a palma contra o clitóris, dançando
com o dedo méDio em minha entrada.
— Giulio… — sussurro num suplício.
— O quê, Bambola? Peça o que você quer.
Não tenho tempo para pedir, pois meu noivo coloca o tecido
da calcinha para o lado e abocanha meu sexo, dando uma mordida
em meu monte de vênus[176]. Solto um gritinho com o susto. Giulio
aproveita para escorregar a língua em minha fenda melada,
explorando cada pedacinho da pele delicada.
Minha respiração fica irregular com as sensações que me
confundem e bagunçam meus pensamentos, fazendo-me emitir
sons incoerentes.
Giulio desliza pelo colchão, dobrando meu joelho e
acomodando-se entre minhas coxas. Vejo-o erguer o rosto,
abarrotando o tecido de renda, expondo meu sexo. Seus dedos
brincam com minha intimidade, espalhando a excitação sob o
escrutínio lascivo do meu noivo. Ele parece gostar do quadro que
está pintando com as pontas dos dedos.
Seu olhar sobe, encontrando o meu escandalizado e
desejoso por mais, todo o receio evaporado como água quando se
encontra com a lava do vulcão chamado Giulio Moretto.
O sorriso repleto de promessas sujas é a minha ruína. Jogo
a cabeça para trás no instante em que Giulio desliza um dedo
dentro de mim e em seguida chupa meu clitóris, puxando entre os
lábios vagarosamente até a pele fina esticar e se soltar. Ele retoma
o local com uma lambida lânguida de baixo para cima, uma, duas,
três vezes e aumenta o ritmo aos poucos.
Estou prestes a entrar em erupção quando ele para,
mantendo o rosto tão próximo da carne nua e sensível que me sinto
completamente exposta e vulnerável. Seu dedo gira dentro de mim,
entrando e saindo.
Giulio está absorto com sua missão em me enlouquecer. De
repente, sinto outro dedo ser introduzido e a necessidade volta a
crescer, fazendo minha musculatura se contrair em pequenos
espasmos.
Tão perto…
Inspiro o ar, prendendo a respiração e então… O vaivém
estagna antes do ápice. Expiro o ar frustrada, fitando Giulio entre
minhas coxas.
— Ansiosa, Bambola? — Seu sorriso de canto indica a
satisfação em me deixar à sua mercê. Sinto-o lambuzar meus lábios
inferiores com as pontas dos dedos e lamber meu suco na
sequência com os olhos fixos nos meus.
Desaprendi como respirar no instante em que recebo um
tapa ardido que atinge em cheio minha potta[177].
Madonna mia!
Nunca pensei em nomear de forma tão nefasta minha região
íntima, mas a sequência de tapas e lambidas intercaladas causa
uma queimação em mia boceta que exige tal eloquência.
Talvez confesse apenas a menção do palavrão em minha
próxima confissão ao vigário, tirando todo o resto que me levou a
este ponto.
— Giulio, per favore… — imploro, gemendo e me
contorcendo sobre a cama.
— O quê, Bambola mia? O que você quer?
— Voglo venire[178]…
— É tão bela implorando, cara mia. Tão bela… em minhas
mãos.
Sigo murmurando e implorando, então Giulio retorna a boca
quente em meu clitóris, enfiando os dedos com cuidado em minha
entrada, dando início à outra sequência de ondas elétricas em meu
baixo ventre.
Che cazzo! Estou uma bagunça de sentimentos e emoções.
O movimento da língua torna-se curto conforme a
velocidade acelera. Os dedos acomodados em minha abertura
passam a se mover ritmados, mas nunca indo além do início do
canal. Ele quer que eu goze, sem esbarrar na prova de minha
virgindade.
O prazer está em uma evolução sem precedentes
cumulando eletricidade a cada dança da língua de Giulio. Dio!
Ondas eletrizantes percorrem o interior de minhas coxas até
meu centro, primeiro em pequenas rajadas e depois seguem
aprimorando e alcançando um ponto insuportável para liberação.
Elevo meu quadril de encontro aos lábios famintos de Giulio
que chupa com mais força o montinho de nervos. Ele leva uma mão
em meu seio apertando e torcendo o mamilo. O misto de dor e
prazer é o meu fim.
As sensações comandam meu corpo que se torna insano,
remexendo-se fora de controle. Il mio fidanzato[179] segura meu
quadril contendo a explosão que acontece forte, certeira e
completamente insana.
Não sabia que gritava até sentir a mão de Giulio sobre
minha boca, tapando os sons que não pude conter. Ele continua
com a boca em mim, beijando e lambendo os vestígios do orgasmo.
Ainda estou voltando do ápice, mas é impossível deixar de
notar como sou recebida de volta ao colchão por mio fidanzato.
Giulio suaviza o aperto em meu corpo, roçando com carinho os
lugares em que deixou pequenas marcas de seus dedos.
Em seguida, ele não apenas lambe, mas deposita beijinhos
delicados como se agradecesse o líquido com que é lambuzado.
Meu coração se derrete em resposta.
Franzo o cenho não entendendo a atitude carinhosa. A mão
que pressiona meus lábios fica suave e desliza até meu seio dando
um leve aperto no mamilo. Giulio ergue o rosto com um sorriso
satisfeito. Arruma minha calcinha no lugar e se apoia nos cotovelos
me observando.
Meu corpo está mole, levemente saciado pela combustão
recente. Mas sabendo que não é tudo.
— Você é bela, Bambola. E fica mais bela assim.
— Vo-você não vai…
— Te fazer sangrar? — Ele ergue uma sobrancelha
sugestivamente. Meneio a cabeça afirmativamente. — Sabe…
vermelho é a minha cor favorita, Bambola. E pretendo te fazer
sangrar.
— Ho-oje? — Giulio se levanta e senta-se na beirada da
cama, olhando-me por cima do ombro. Tento ficar numa posição
menos vulnerável, subindo as alças da camisola.
— Você quer sujar de sangue os lençóis da Camorra,
Bambola? — Ele passa a mão sobre o colchão. Então é isso. —
Você é minha, Francesca. Sei que já tenho seu corpo. — Ele faz o
mesmo gesto do nosso noivado, cheirando a ponta dos dedos. Na
sequência, me encara. — Mas quero mais…
— Mais?
Giulio libera o ar com um riso fraco. Depois levanta-se,
mantendo as costas para mim.
— Você irá sangrar de várias formas por mim, Bambola.
Formas que nem sequer imagina. — E depois disso, sai do meu
quarto, deixando-me completamente confusa e desejosa para saber
mais.
Mais da sua presença impiedosa.
Mais do sorriso maroto de menino.
Mais do homem carinhoso que me deu beijinhos.
Mais do homem que não sabe, mas que já fez meu coração
sangrar.
GIULIO MORETTO

A luz do sol do meio-dia banha o autódromo de Monza com


um brilho dourado, fazendo os motores roncarem em uníssono
enquanto os carros alinham-se na pista.
O camarote especialmente reservado para a famiglia
Moretto está localizado próximo ao pit stop da Ferrari, e podemos
ver toda a movimentação e emoção da equipe.
Eu precisava de uma distração. A visão de Francesca
usando uma calça jeans justa, não deixando nada para a
imaginação quanto ao formato de sua bunda e a regata branca
estavam prejudicando demais a atenção que deveria ter em um
território que não era o nosso.
Nem ao menos o boné rosa e tênis tiraram o ar sexy pra
caralho de mia sposa. Ainda mais quando a lembrança do seu rosto
gozando não era mais uma lembrança tão distante quanto o dia do
nosso noivado.
Caspita!
Deveria ter calculado melhor quando avancei sobre ela após
o jantar. Minha intenção não era conseguir sua entrega tão fácil. Ela
é uma ragazza que espera romance e tentei ser o máximo que
pude.
A ideia é consumi-la aos poucos e macular seu cerne de
modo que não haverá volta.
O ranger dos motores me traz de volta. Vejo meu padre e
zio conversando novamente enquanto que Luigi está mais próximo
de um dos veículos na parte onde a equipe de mecânicos está
reunida.
Quem diria… mio cognato[180] gosta muito de carros.
Uma paixão que divide com o primo Matteo, então. O
canalha brincou durante os treinos e tenho consciência que
conseguiu a posição na segunda fila de propósito. Tudo para a
competição do GP ser mais emocionante.
Claro que ele não poderia demonstrar de antemão a
tecnologia empregada em sua máquina nas primeiras disputas que
começaram na sexta-feira.
Por isso, tanto ele quanto minha prima Amelia estavam
ocupados ontem à noite. O compromisso dos dois era com a sessão
de treinamento que aconteceu assim que chegamos.
Tio Viccenzo esclareceu que nas duas sessões de sexta,
Matteo tinha um grande percurso até a pole position.
Amelia, sua irmã, era a chefe de equipe e estava tão
engajada na Fórmula 1 quanto seu irmão. Acredito que o Don da
Camorra fica mais empolgado com os filhos se engajando nessa
parte dos negócios enquanto assume toda parte obscura.
Papà contou-me que mio zio[181] não se comprometeu com
nenhum dos Caporegimes, ofertando a mão de Amelia em
casamento. Muito menos com a nossa famiglia.
É… Amélia não é a típica principessa da máfia para ser
controlada. Na verdade, sua altivez deve ter afugentado muitos
pretendentes e seu padre simplesmente se deu por vencido.
Non importa.
Na verdade, fiquei feliz em não ter que aumentar meu
cardápio para as mulheres da Camorra quando fiz minha escolha de
sposa.
Eu sabia onde iria encontrar a minha.
E ela sim, é uma principessa criada nos moldes da famiglia.
A perfeita dama de honra. Mia Bambola.
Ontem à noite foi extremamente difícil me controlar. Mas não
era o momento. Ela ainda não é minha por inteiro. Se quero
corromper minha Bambola preciso fazer direito. Eu a quero por
inteiro. Quero vê-la sentir-se entregue… para depois macular todo o
seu clã.
Todos irão sofrer as consequências. Todos.
Quando entrei em seu quarto e a vi, quase recuei. Minha
sposa é algo que sempre quis ter e não podia tocar.
Não contive minhas mãos em nosso noivado e muito menos
nesta viagem. O fato de saber que novamente estávamos sob o
mesmo teto alimentou o demônio.
É inevitável ficar longe da tentação que paira a metros de
distância. Para um maledetto como eu… insuportável.
Ainda mais quando notei seus olhares para mim durante
toda a viagem e o jantar. No minuto que dei o comando para deixar
a porta destrancada, enxerguei tudo no rosto de Francesca: a
curiosidade, a lascívia, a inocência e o desejo.
Ela me deseja. E baseado na sua inocência, logo irá se
apaixonar por mim. Se ainda não o fez com uma imagem totalmente
equivocada de quem realmente sou. A falsa fachada que a mídia faz
questão de enaltecer como o herdeiro educado e mais cobiçado da
Sicília.
Um dos, pelo menos. Meus irmãos completam a lista.
Aliás, esses putos me cercaram de mensagens idiotas
desde que saí de Palermo.
Maximus: Não coma o prato principal.
Eu: Vá se fuder!
Fausto: Chegou em segurança?
Eu: Sim, madre.
Maximus: Ela continua gostosa?
Eu: Quer morrer?
Fausto: A receptação de Alexandro foi tranquila.
Mercadorias já repassadas.
Eu: Ótimo.
Maximus: Aline perguntou de mim?
Eu: Quem?
Maximus: A aeromoça do nosso jatinho.
Fausto: Não acredito que você comeu a aeromoça.
Maximus: Está mais para ela que comeu, já que engoliu
minha porra.
Eu: Não preciso imaginar a garota te chupando, cretino.
Maximus: Sou um cara comprometido agora, fratello. Caso
contrário, daria um showzinho particular para você.
Fausto: Como assim comprometido? A policial?
Eu: Você está mexendo onde não deve, Maximus Moretto.
Emoji de xingamento.
Maximus: Iiiih, chamou pelo nome completo… estou saindo
da conversa. Venon está com o carregamento no porto. Vou lá
despachar, fratello. Boa corrida!
Envio uma mensagem apenas para Fausto fora do grupo
que possuímos no aplicativo de conversas.
Eu: Fique de olho.
Fausto: Já estou. E garanto que você ficará surpreso com o
que descobri. Maximus não é tão idiota.
Eu: Assim espero. O carregamento é do IA2?
Fausto: Parte sim.
Eu: Por que Max vai lá?
Fausto: Simona Ferrucci.

Eu: Minchia[182]! Essa polizia precisa sumir.


Fausto: Confie em Max e curta a corrida. Mande lembranças
para nosso zio e cugini[183].
Eu: Me deixe informado.
Fausto: emoji de polegar para cima.
Coloco o celular no bolso interno do blazer claro que escolhi
para a ocasião. Nunca tive problema em me vestir. Gosto de roupas
sofisticadas, ternos da Armani ou Gucci feitos sob medida, ou me
reduzo a calça jeans de lavagem escura e camiseta preta com um
casaco. Algo semelhante ao que estou vestindo agora.
E, analisando minha noiva, nossas roupas identificam
exatamente a nossa diferença de idade. Expiro um riso debochado.
Ela está belíssima, mas a veste descontraída grita a
jovialidade que impera em sua certidão de nascimento.
Francesca não é mais uma menina. É uma moça. No
entanto, ainda não é uma mulher.
Ontem quis fazê-la mulher. Mas desperdiçar seu sangue
virginal em lençóis da Camorra não pareceu certo.
Será que ela me pararia? Non lo so…
Ainda é cedo.
— Está gostando? — pergunto bem próximo ao seu ouvido,
caso contrário não vai escutar.
— Giulio, isso é simplesmente incrível — responde, com os
olhos fixos na pista.
Na briga pela pole position, todas as voltas são
cronometradas. Matteo pode parecer um idiota. Mas é um idiota
fascinado por números e velocidade. Ele sabia o que deveria fazer
para estar alocado na segunda fila e vai vencer, se quiser.
Já o vi perder pura e simplesmente para provocar seu
padre. Não sei qual é o humor de hoje para apostar em meu
cugino[184] então.
Francesca movimenta-se lentamente até o canto do
camarote, escolhendo uma cadeira isolada. Franzo o cenho com a
sensação estranha que se aloja em meu peito pelo simples fato do
seu afastamento.
Che cazzo![185]
Aquele não é o lugar dela. Não agora. Talvez nunca…
Balanço a cabeça com o último pensamento inoportuno,
pois irá acontecer um dia e ela vai odiar cada segundo.
Mas não agora.
Só por este motivo caminho até ela sentando-me ao seu
lado. Mia Bambola está hipnotizada pela corrida, consigo ver pelo
brilho de êxtase em seu olhar.
— É a primeira vez que assiste uma corrida?
Francesca demora alguns segundos para notar minha
presença. Ela realmente estava envolvida com a vista ou fez
questão de demonstrar ignorância ao seu redor. Um ponto que
observei sobre ela.
Mia Bambola tem suas armas e colocar-se em seu mundo
particular, observando o que quer e ouvindo o que precisa é uma
delas.
A ragazza é fruto da máfia e aprendeu a sobreviver aos
perigos que a cercam, não importando o que ou quem são eles. No
caso, creio que ela ainda me vê como algo a temer.
Esperta. Ela me encara e após piscar algumas vezes move
os lábios lambuzados de gloss. Quero lambuzá-los com minha
porra. Logo…
— Sim… — responde baixinho. — Não sabia que era tão
emocionante. — Francesca vira o rosto rapidamente assim que
outro carro passa por nós captando sua atenção. Tenho um
pensamento homicida pelo piloto que a fez tirar os olhos de mim.
Sinto a vontade de arrastá-la dali para que sua atenção seja
voltada apenas para mim. Caspita! O que foi isso?
Pressiono os lábios, colocando meus óculos escuros e
escorando no espaldar da cadeira com os braços cruzados,
assistindo ao seu lado a disputa na ultrapassagem que acontece à
nossa frente. Essa sensação estranha me incomoda. Muito.
Nunca fui possessivo quanto às mulheres que levo para
minha cama. Ela será mais uma. Nada além. O incômodo deve ser
pela expectativa da espera. Dannato sexo tântrico da porra. Preciso
resolver o pequeno problema de bolas azuis antes que coloque tudo
a perder.
O flash vindo da lateral esquerda chama minha atenção.
Então, tenho o motivo perfeito para aproximar-me de mia sposa.
Tão somente por isso procuro sua mão que está apoiada sobre o
joelho, para em seguida entrelaçar nossos dedos.
É perceptível o assombro de Francesca com minha atitude,
posto que sua postura fica ereta no assento e seu peito sobe e
desce com a respiração descompassada.
Beijo os nós de seus dedos, sentindo a pele macia no dorso
da mão tão pequena que quase some em minha palma. Francesca
não é uma mulher baixa, mas ao meu lado, todas ficam.
Ela emana um suspiro contido, e sorri timidamente, sem
entender que está sendo manipulada para a mídia atestar nosso
romance como legítimo e parar de uma vez com os
questionamentos idiotas sobre o noivado.
Somos apanhados por outros flashes de paparazzis vindos
da direção oposta. Aproveito para inclinar o corpo sobre mia
Bambola, beijando sua bochecha e sentindo o canto da boca
gostosa. Ela arfa, emitindo um som inocente que reflete diretamente
na minha virilha. Cazzo.
— Voglio leccarti la potta, mia Bambola. leccarti
dappertutto[186] — sussurro em seu ouvido. Francesca não percebe,
mas esfrega uma coxa na outra indicando que minhas palavras
rudes lhe agradam. Sorrio.
Bom, Bambola. Você já sabe o que posso fazer com minha
língua. Não é mais tão pura… aos poucos… corrompida.
Em seguida, passo o braço sobre os ombros de mia sposa
acomodando-a mais perto e com a outra mão fico desenhando
círculos em sua palma. Francesca está à vontade em meus braços,
satisfazendo-se com o gesto íntimo de todo casal apaixonado. Ela
não notou a simulação para a imprensa em momento algum. Na
verdade, seu comportamento é tão natural como se realmente
tivesse sentimentos para comigo.
Os sonhos de uma ragazza que encontra seu príncipe
perfeito. Não sou um príncipe. Não sou bom. Sou um Uomo
d’onore[187], um soldato da máfia desde os 13 anos. Jamais um
príncipe.
O sorriso em seus lábios preenche meu peito com uma
sensação que não sinto há anos. Fico tenso por alguns segundos ao
constatar esta percepção. Não é real, Giulio. Nada mais é. Volto a
atenção para a corrida, mantendo Francesca em meus braços pela
necessidade em manter as aparências. Foi este o motivo dessa
viagem e só por isso permaneço de mãos dadas com ela até ver
meu primo Matteo fazer a ultrapassagem na última volta e vencer a
corrida.
Francesca pulou da cadeira e num impulso levou-me com
ela a ficar de pé e aplaudir a vitória da famiglia Pascale, ou da máfia
Camorra. Não há diferença entre as duas, afinal.
Quando estamos a caminho do podium sinto o celular vibrar
com uma notificação. Abro o aplicativo de mensagens.
Fausto: Max foi preso.
GIULIO MORETTO

Atravesso a soleira da delegacia, emitindo rajadas de fúria


para cada membro da polizia que conhecia como número em nossa
folha de pagamento mensal.
Que porra eles pensavam que estavam fazendo?
O valor que esses merdas recebiam dos nossos cofres era
praticamente o dobro do que do governo, e ainda assim deixaram a
Europol cercar a Marina de Seraphina onde o navio Gabbiano Forte
foi atracado.
A carga que foi comprometida não era bem o que eu temia.
Até agora eu tinha informações fragmentadas que Fausto me
passou durante a viagem de volta.
Assim que li a mensagem, agi no piloto automático. Fiz o
que havia planejado, dando um beijo de língua escandaloso em
minha Bambola, ouvindo o rugir do seu irmão ao lado. Ela retesou
num primeiro momento e depois cedeu ao meu avanço.
Mio padre não iria mais me encher o saco depois da
exposição de casal apaixonado na frente de um milhão de flashes
que fomos submetidos. A mídia italiana não me decepcionava
nunca.
Não demorou cinco minutos para ver fotos minhas e de
Francesca em cada canal que importava no percurso até o
aeroporto. Deixei claro que a procuraria e que não retornaria com
ela por motivos de força maior. Mia sposa não retrucou e acenou
com a cabeça em compreensão.
A perfeita noiva.
Estava feito. Sem dúvidas sobre o quanto a princesa dos
Zanchettas conseguiu conquistar o herdeiro Moretto, e calava a
boca dos vecchios que sondavam minha cadeira de Sottocapo.
Minha preocupação agora era com os mais de 30 containers
apreendidos pela Europol.
Como isso foi acontecer?
Apenas um deles possuía a carga preciosa para ser
transferida de um barco para outro e enviada diretamente para
Molise, circulando o salto da bota.
Tínhamos um acordo de rotas seguras com a Camorra para
o envio de armamentos aos nossos clientes do continente.
A segurança pelo visto estava viciada.
O vício chamava-se Simona Ferrucci. Este era o novo vício
do meu irmão caçula.
Che cazzo!
A atmosfera da delegacia estava repleta de perplexidade e
tensão conforme caminhava até a saleta privada na qual informaram
que meu irmão foi destinado. Ao menos isso.
No instante em que alcanço o corredor, vejo a raggazza que
pretendo estrangular e escalpelar com meu canivete ao mesmo
tempo em que recebo uma chamada de Fausto.
— Chiao, fratello — atendo ríspido, virando o corpo para a
parede e evitando o escrutínio da meretrice[188] que Max adotou.
— Se eu te falar, você não vai acreditar.
— Tente.
— A ragazza apreendeu o Galbiano por ausência de nota no
Container 27. — Fausto está rindo, e a cada gargalhada quero
pendurá-lo ao lado da polizia que me encara enfurecida. — Nota
fiscal da importação de 200 maletas de couro com kit churrasco. —
Ele diminui o riso enquanto eu respiro aliviado do outro lado da
linha. — Foi a única transgressão que encontrou. E o mandado dela
era para entorpecentes, fratello.
Minhas costas ficam eretas e reconhecimento inunda minha
mente com a ingenuidade da polizia e esperteza de Maximus. Não
acredito que ele realmente fez isso.
Esse figlio di puttana.
Nem deve saber a gravidade que sua brincadeira causou.
Poderia estar com mia Bambola e retornar com ela talvez sentada
desta vez ao meu lado do avião.
Maximus será o responsável pelo meu infarto antes de
completar 30 anos. Com certeza.
Ele gosta de criar confusão desde pequeno. Uma forma
idiota de chamar atenção para si. Se não fosse meu irmão já teria
perdido alguns dedos pelo tanto que me irritava.
Ainda estou a alguns metros de distância quando vejo um
dos nossos associados sair da saleta e ir conversar com a tal
Simona. Ele é advogado criminalista e possui um escritório de
respeito em Palermo. Alguém que foi agenciado e financiado desde
cedo para prestar serviços à Cosa Nostra.
No momento em que a mulher aparentemente raivosa
dispara rajadas de ódio com o olhar em minha direção, sei que mio
fratello será solto logo.
Então, viro nos calcanhares sem me preocupar com o
decorrer da situação. Um problema a menos no currículo de
Maximus.
Enquanto que Fausto era mais centrado e seus interesses
voltados para computadores, Max gostava de ter o título de rei do
caos. Nunca me importei com o caos, desde que fosse fora de
nossa casa.
Algo que demorou para meu fratello caçula aprender.
Perdi as contas de quantas vezes precisei tirá-lo da cadeia.
As últimas vezes acabei mantendo-o enjaulado até baixar a poeira e
organizar sua bagunça. Meu irmão gosta de velocidade, por este
motivo se dá bem com Matteo.
Mas participar de rachas e ser pego para que outros
corredores se safassem não era o pior dos seus pecados. Isso veio
com o uso desenfreado das drogas. Heroína para ser exato. Passar
a mercadoria para frente deixou de ser apenas trabalho e sim
consumo próprio.
Tentei por diversas vezes afastá-lo, colocando-o em clínicas.
O cazzo fugia e sumia. Muitas vezes encontrava refúgio em Monza.
No entanto, passadas algumas semanas retornava dizendo que iria
mudar. Eu sabia que não, mas Don Antonio dizia que seus filhos
deviam ocupar seus lugares na organização.
E lá ia Maximus para o mesmo caminho.
Até ter uma overdose e quase matar todos nós de
desespero. Foi quando finalmente nosso padre passou de verdade
as rédeas de Max para mim.
Precisei me afastar dos negócios por um mês, porém estava
decidido a tornar meu irmão de uma vez por todas um Uomo
d’onore [189]. Eu havia errado no passado ao pensar que amenizar o
treinamento de Maximus estaria protegendo meu irmão. Ledo
engano.
No submundo do crime é necessário aprender suas
limitações, e a lealdade para com os mandamentos da famiglia
desde cedo.
Max não teve isso. Pelo menos não do modo correto. Infiltrei
dois dos meus soldatos durante seu treinamento. Eles sabotaram
boa parte das situações nas quais meu irmão pudesse sujar sua
alma de menino.
Fui descoberto na última semana e não soube o que
aconteceu com Maximus depois. Quando ele retornou estava com o
olhar perdido tanto quanto todos nós geralmente ficamos. Por ter
passado menor tempo e feito menos tarefas imundas, voltou a ser
nosso Max.
Era o que pensava até as confusões começarem.
Uma semana no inferno corresponde a dez anos a menos
na linha do tempo. No final das contas, não o protegi.
Culpo-me todos os dias por ter falhado com meu irmão. Eu
tinha 19 anos e como não pude fazer nada para amenizar o
treinamento de Fausto, por ser um mero Soldato, com Max seria
diferente. Eu havia assumido a cadeira de Caporegime de Palermo
por mérito próprio. Tanto que enfrentei cada adversário que os
vecchios do conselho colocaram para me desafiar na cutelaria.
Depois de alguns corpos mutilados e outros literalmente queimados,
eu assumi meu lugar.
Ser o futuro Don não me conferia uma cadeira de
Caporegime. Muito menos de Sottocapo que tenho hoje.
Se tivesse o poder que tenho hoje na época que Max mais
precisava, poderia ter impedido sua designação em tantas missões
onde a mercadoria em si fosse uma tentação. Hoje, percebi o
quanto cresceu. Fiquei orgulhoso de sua façanha.
Max sempre foi o irmão mais frágil. Quando nossa madre
morreu, ele tinha apenas três anos. Ele era muito apegado a ela e
foi difícil nos primeiros anos. Até que um dia ele parou de perguntar.
Às vezes tenho a impressão que Chiara Moretto vive apenas
em minhas memórias. A mãe que amava demais seus filhos e
esposa dedicada. Mammina nunca deixou de nos dar um beijo de
boa noite. Não nos deixava sozinhos. Eu não me sentia sozinho. Até
que empurraram a mim e meus irmãos para a escuridão, sem o bote
salva-vidas que seria nossa madre… sem ninguém.

GIULIO PASSADO

Abro os olhos e não enxergo nada. Não quero enxergar. Os


dias têm sido longos demais e estou cansado de ouvir o choro de
Max que não para.
Ontem ele perguntou novamente quando nossa mammina
voltaria. Já passaram meses, acho.
Signore Isabel inventou uma merda de viagem para as
nuvens que faz meu irmão passar horas olhando para o céu em
busca de alguém que não vai voltar.
Fausto tem sido mais contido. Meu irmão chora algumas
vezes, mas sem o escândalo do fratello caçula. Estou cansado de
consolar o bambino. Sei que ele não faz por mal.
Eu também sinto sua falta, mammina. E como sinto.
Sento-me em minha cama no breu que se encontra meu
quarto. Tão escuro quanto meu coração. Abro a boca algumas
vezes sentindo a secura por conta do calor da noite. Ainda ouço a
movimentação do jantar que papà deu para os vecchios, finalizando
seu luto.
Por que deveria se comemorar o término de resguardo pela
morte de um ente querido é algo que não entendo. Zio Marcelino foi
quem aconselhou para que os demais membros da famiglia
tivessem liberdade de voltar a interagir através desses eventos
idiotas.
Eu e meus irmãos participávamos de alguns quando
mammina insistia muito com nosso padre. Quando não conseguia,
pedia para a Signore Isabel fazer todos os doces que gostávamos e
nos deixar assistir TV até cairmos no sono.
Hoje não teria nossa madre para insistir em nada.
Levo uma mão para pegar o copo d’água e quando viro na
boca percebo estar vazio. Cazzo. Não posso passar perto da sala
de jantar, mas não vou conseguir dormir com sede. Esfrego meu
rosto com raiva e solto alguns dos palavrões que aprendi com os
soldatos que fazem nossa segurança.
Terei que ir até a cozinha de algum jeito. Respiro fundo, e
decido usar o caminho que não faço há um ano. Conforme me
aproximo do meu esconderijo no qual observava as brigas de meus
pais, sinto meu peito apertar com a saudade dos abraços
quentinhos e os beijos estalados de mammina. De como ela fazia
três cruzes em nossas testas para que o mal ficasse distante dos
seus filhos, como se a quantidade de cruzes fosse barreira
suficiente para afastar coisas ruins.
Os murmúrios do jantar que mais me lembra uma festa com
o excesso de convidados estão distantes. Ótimo. Não vou trombar
com ninguém. Então… ouço uma voz feminina mais perto.
— Você está louco, Antonio?
Papà? Corro até o vão para enxergar quem está com ele.
Consigo apenas ver a saia do vestido longo.
— Não existe mais ninguém que impeça nosso amor,
Anunziatta. Eu cumpri com o acordo e não tenho culpa se ela
morreu.
— Não me diga que você matou sua esposa? — A mulher
emite um som de horror na sequência, prevendo a frase que meu
pai demora a formular.
— Claro que não. Foi um acidente infeliz. — Don Antonio
retruca. — Mas agora, Zitta… Agora podemos ficar juntos. Você não
vê?
— Ma-mas, Luigi é apenas um bebê — devolve, nervosa.
— Iremos criá-lo juntos, meu amor! Agora podemos ficar
juntos!
Meus olhos ardem com as lágrimas que teimam não cair.
Nãaaooo… não pode ser.
Por mais que tenha ouvido toda a conversa naquele dia,
pensei que mammina estaria apenas com ciúmes como já vi muitas
das damigelle.
Papà nunca traiu minha mammina, ele… ele é um homem
de honra, não é?
Para mim, o rompante de mia madre havia sido como tantos
outros por conta do seu amor. A primeira vez que papà precisou
levá-la ao médico e retornou sem ela, explicou que mammina
precisava se tratar, pois seu amor estava machucando a ela e a
todos nós.
Eu não entendia.
Por essa razão passei a ver as brigas entre meus pais como
reflexos desse amor. Papà a levava ao médico e algumas semanas
depois ela retornava para nós e voltava a nos amar.
Mas… Na última briga mammina acusou papà de não a
amar e sim a mulher do Signore Zanchetta. Como os vi juntos no
funeral de mammina pensei que papà estava certo, pois aquela
mulher parecia amar o marido. Eu a vi olhando para ele do mesmo
jeito que via mammina olhar para papà.
Eu podia ser criança, porém conseguia ver que eles ficaram
de mãos dadas o tempo todo. Só que…
— Antonio… eu…
Não consigo ouvir a continuação da conversa, pois sou
içado por um dos braços para fora do esconderijo.
— O que faz aqui, ragazzo? — Demoro alguns segundos
para identificar quem é. Ergo o queixo, mantendo a altivez do clã
Moretto e encaro Enrico Zanchetta.
— Nada — respondo de pronto e cerro os olhos como
sempre vejo papà fazendo para manter o respeito perante a
famiglia. Ele não se dá por satisfeito e me empurra para o lado,
estudando a imagem através do vão.
— Volte para seu quarto, bambino. Isso é assunto de adulto.
— Então, ele me guia de volta para a escada e retorna pelo corredor
em direção ao escritório de papà.
Isso, cornuto[190]. Vá buscar sua mulher e a tire de minha
casa. Espero que desafie papà na cutelaria. Por mais que já tenha
ouvido falar que ninguém venceu Don Antonio em anos, seria bom
que perdesse alguns dedos pela traição.
Enrico Zanchetta poderia sobreviver se pedisse
misericórdia, e o clã Zanchetta ficaria manchado para sempre pela
desonra de sua esposa.
É isso que eles merecem. A desonra, por ora, bastaria.
FRANCESCA ZANCHETTA

Retiro a faixa branca sobre minha testa, tomando cuidado


para manter o rabo de cabelo firme no topo da cabeça. Em seguida,
enxugo um pouco do suor antes de alcançar meus olhos.
— Não acredito que você me arrastou para a quadra hoje,
Tchesca… — Valentina reclama esbaforida ao meu lado. — Você
podia descontar essa sua energia toda com seu franzinatto, não?
Enquanto seguro a raquete com firmeza e arremesso o
tecido encharcado de suor no chão, observo Valentina do outro lado
da quadra, com seu sorriso atrevido me provocando.
— Não posso mais do que você com Alessio — devolvo a
provocação, sabendo que comigo ela não se importa de revelar o
que sente.
— Alessio não é meu noivo, muito menos alguém que se
interesse por mim, cugina[191]. Os olhos do maledetto sempre estão
em Michela. — Ela impulsiona o braço esquerdo e atinge a bola com
força para meu lado da quadra, atingindo a parte de dentro da linha.
Caspita! Como a garota consegue usar os dois braços assim?
A ragazza é canhota, então…
Ela sempre foi uma oponente digna, e por isso gosto de
jogar com ela. Poderia ser mais determinada quanto aquilo que
realmente quer. Valentina parece ter desistido de conquistar Alessio
nos últimos tempos.
— Sabe… — Jogo a bola para cima e efetuo uma sacada.
— Você desistiu muito fácil.
— Não dá para desistir de algo que nunca tentei. Ele
sempre deixou claro sua escolha.
— E você a sua.
— Como se a vontade de uma mulher fizesse diferença.
Hum?
De fato, quanto a isso, não posso argumentar.
Movo meu corpo ágil, tentando alcançar a bola e responder
com um ótimo slice[192] cruzado. A bola voa pelo ar, e Valentina faz
um retorno perfeito.
Os sets se sucediam, e a partida estava equilibrada. Até que
meu celular começou a apitar indicando o recebimento de
mensagens. Eu só precisava acertar a última bola e então…
— Uh-huuuuu! — Ergo os braços em comemoração vendo
os ombros de Valentina caírem, por um breve momento, até que
minha prima me encara com seu sorriso amistoso.
Ela não se importava de perder a partida. Sabia que eu
precisava de uma distração e mais que depressa aceitou o convite
para jogar tênis comigo. Minha prima era a melhor companhia de
todas depois de Michela.
Nossa amizade era forte e sedimentada não apenas na
convivência forçada. Nós nos amávamos. Não havia competição,
nem rivalidade em nosso trio. Porém, eu gostaria muito que
Valentina soubesse que deveria aprender a jogar para conseguir a
atenção de Alessio.
Michela me confessou que não possui o mesmo interesse
em nosso primo. Não como Valentina, pelo menos.
— Agora vá logo ver as mensagens do farabutto[193]. Tenho
certeza de que vamos precisar arrumar outras desculpas para suas
escapadas. — Valentina brinca, levando a garrafa d’água aos lábios.
Ela e Michela têm me ajudado a encontrar Giulio sem a
supervisão de papà e Luigi nas vezes que meu noivo apareceu em
Messina sem convite.
Depois da corrida de Monza, o que já faz três meses, meu
sposo me levou a mais jantares que poderia, passando inclusive
uma semana inteira em nosso território. Algo que papà demonstrou
extrema preocupação.
Ouvi a conversa de Dario e Luigi sobre um carregamento
falho na marina Degli Angeli, uma das privativas da famiglia no
litoral sul de Messina. Não sabia o quão grave era o evento que
determinou a estadia de meu noivo, porém, nossos encontros
oficiais e extraoficiais me fizeram agradecer pelo infortúnio.
O que Giulio me fez sentir insignificante no período dos
meus 15 anos até nosso noivado estava esquecido diante de toda
atenção que me conferia.
Sentia que finalmente possuía um relacionamento. E quanto
mais contato tinha com o futuro Don da Cosa Nostra, mais me
sentia envolvida por seu charme e sensualidade.
Giulio Moretto é um homem muito mais que belo. Ele é
inteligente, sagaz e viciante. Dio Santo! Que vício!
Ao mesmo tempo em que recebo palavras duras em nossos
momentos a sós — que são conseguidos com a ajuda de Valentina
e Michela — recebo palavras doces e sensíveis, antes e depois de
alcançar as nuvens.
Sinto-me galanteada até por suas mensagens de boa noite
que geralmente acompanham uma rosa murcha no início e uma
rosa esguia ao final. O simples fato de saber que mio sposo tomou
seu tempo de buscar os emojis em sua caixa de texto já me
deixaram em êxtase na primeira mensagem.
E por mais que gostaria que as mensagens apitando em
meu celular fossem dele, sei que não são.
Giulio me contou que estaria em alto-mar hoje e que nossa
comunicação ficaria prejudicada pela ausência de sinal. Ele queria
fazer a viagem de Palermo até Cagliari e testar algum tipo de
tecnologia em seu precioso navio Alexandro.
Eu sabia que alguns dos nossos Caporegimes tinham certa
paixão por determinada embarcação, mas jamais imaginei que um
dia iria ouvir de Giulio sobre os negócios da famiglia como o fez em
nosso último encontro. Um dos muitos encontros clandestinos
forjados por ele e com a ajuda de minha cugina[194] Valentina.
Alguém que meu noivo tomou como aliada para me ensinar
como é bom transgredir as regras de boa conduta impostas por
nosso meio.
Não sei como Giulio convenceu Valentina a ser nossa
cúmplice, e manipulou a mente jovem de Michela. Talvez mencionar
tantas vezes que precisávamos nos conhecer fora dos holofotes da
famiglia para criar laços sentimentais tenha sido o suficiente para as
duas garotas.
Oras… para mim foi suficiente apenas seu sorriso maroto
que parecia inocente. Só o sorriso, aliás.
Poucos sabem das vindas de Giulio à Messina. Ele
praticamente aparece aleatoriamente, surpreendendo-me.
Soube sobre sua viagem desta tarde anteontem, quando
forjamos uma ida ao cinema com Valentina e Michela. Minha prima
e irmã seguiram para a sala de cinema com nossos dois soldatos a
tiracolo. Eu fui extraviada através da saída de emergência,
encontrando Giulio no estacionamento e passando o período todo
do filme com ele em um dos seus carros esportivos.
Foi muito difícil retornar ao cinema depois de sentir os beijos
avassaladores de mio sposo amado.
É isso…
Amado. O fato de abrir o aplicativo de conversas e estar
decepcionada por saber que as mensagens não serão de Giulio é a
constatação que preciso para concretizar o real status do que sinto
por mio sposo: estou completamente e enlouquecidamente
innamorato di lui[195].
— E então… você entrou? — Valentina me tira do torpor,
assustando-me ao tirar o telefone de minhas mãos. Ela grita e
começa a dar pulinhos, rindo sem parar. — Cuginaaaa[196]… Você
conseguiu! Você conseguiu!
Sorrio de volta, satisfação invadindo meu peito. Eu
consegui! Giulio disse para eu tentar e que me apoiaria caso papà
criasse caso. Sei que meu clã iria ficar do meu lado se decidisse
tentar, no entanto permaneci em silêncio querendo ver até que
ponto mio sposo lutaria por mim.
Ele não precisa.
Pego o aparelho celular para ver o dia que deveria
comparecer à universidade. Dali duas semanas.
— Eu consegui…
— Sì! — Valentina me abraça. — Precisamos comemorar!
Não é todo dia que tenho uma prima que entra para a faculdade de
direito mesmo sendo noiva do Sottocapo.
— Zitto[197], Valentina! — repreendo-a, com uma falsa
carranca. Ela ri. Não me contenho e bufo um riso de volta.
Para quem não tinha perspectiva de vida, agora eu tenho
muito mais do que isso.
FRANCESCA ZANCHETTA

Passar na prova de ingresso para faculdade de Direito não é


nem de perto algo tão difícil quanto o que estou vivenciando.
Minhas pernas tremem a cada passo até a sala de aula e
sinto os olhos dos demais alunos sobre mim como se um milhão de
rajadas estivessem me julgando conforme caminho.
Madonna mia! Será que coloquei maquiagem de mais? Ou
de menos? Percebo que algumas garotas parecem gostar muito de
batom vermelho. Muitas delas paravam nos corredores para retocar,
inclusive.
Não sei…
Meu estômago está revirando com a sensação de enjoo que
conheço tão bem. A lembrança das péssimas manhãs pós-
quimioterapia indica que provavelmente vou visitar o banheiro.
Aliás… Onde encontro um banheiro nesse lugar?
Caspita!
Deveria ter pegado um mapa.
Respiro fundo, apertando a alça da bolsa pendurada em
meu ombro. Agora não dá mais.
Sei apenas a direção que devo seguir para entrar no horário
e assistir minha primeira aula de hoje. Filosofia. Ainda bem.
Sócrates, Platão e Aristóteles nunca me pareceram tão atraentes.
Tudo para me fazer esquecer a ansiedade contida em meu peito.
Por fim, após me perder em alguns corredores, alcanço a
sala. Inspiro o ar com força e expiro devagar, entrando com outros
alunos pela porta dupla. Preciso enfrentar meus demônios sozinha,
e sem escudos. Empunho uma espada imaginária e vou fatiando
cada monstro invisível conforme caminho.
Vasculho o ambiente, enxergando algumas carteiras vagas
na lateral da sala próximas à mesa do professor. Direciono-me a
elas, criando uma linha reta para não fraquejar.
Sento-me e retiro meu Macbook, posicionando-o de modo a
dar espaço ao livro indicado como uma das obras a ser estudada no
semestre.
— Nossa! A ragazza está preparada para tudo, hum? —
Ouço uma voz brincalhona logo acima de minha cabeça. Ergo o
queixo, com uma resposta arisca na ponta da língua que… fica ali
mesmo, pois perdi a fala ao ver o rosto conhecido de Nino Basile. —
Perdeu a fala, bela?
— É… hum…
— Eu sei… causo isso na maioria nas garotas. Geralmente
elas murmuram outras sílabas, mas acho melhor guardar para mim
ou seu noivo ficará puto. — Ele pisca e acomoda-se na cadeira
vazia ao meu lado.
— Vo-você não é mais velho?
Ele bufa um riso frouxo.
— Que você? — Ainda estou absorta com a aparição e o
raciocínio lento, por isso recebo a resposta da pergunta que o
próprio deus grego formulou. — Sim. Mas não sou tão velho, bela.
Bom… acho que não.
— E faz faculdade? — Sei que as perguntas começaram a
sair antes mesmo de um cumprimento adequado para o
Caporegime de Trapani, mas veja bem, o sujeito apareceu do nada,
então…
— Cara mia… — Ele sorri presunçoso. — Estou no último
ano de Jurisprudenza[198], só que não tive a nota para passar em
filosofia no primeiro. Vamos dizer que meu trabalho me fez perder
mais aulas no primeiro ano do que podia. E meu conselheiro fez um
acordo comigo — ele cochicha, colocando uma mão em concha
sobre a boca em minha direção.
— Você vai cursar só filosofia e se formar em Direito? —
minha voz sai parecendo uma menininha e me arrependo no
instante em que vejo o sorriso debochado de Nino.
Ele joga o corpo no espaldar da cadeira, lambendo os lábios
e fazendo-me admirar como os homens da Cosa Nostra possuem
uma beleza perigosa. Ainda mais para garotas inocentes como eu.
Você não tem sido tão inocente assim…
Mas ainda não manchei qualquer lençol com meu sangue e
em nossa famiglia isso que vale.
Dou algumas tossidinhas, ajeitando novamente meu
material, vendo outros alunos começarem a ocupar os demais
lugares na sala de aula.
— Eu cursei boa parte das matérias, cara mia. Nem sequer
precisaria estar presente em sala de aula, no entanto, quis
frequentar para não perder a experiência.
— Isso… eu admiro — pontuo. — Ainda mais por ter
escolhido filosofia.
— Gosto de estudar a evolução do pensamento humano
para manter a coexistência em sociedade.
Ter um Uomo d’onore[199] da máfia gostando de estudar o
convívio da humanidade através dos séculos me deixou curiosa. A
violência costuma reinar de modo gritante na cadeia alimentar da
máfia e não a argumentação. Como seria se os mafiosos do mundo
resolvessem discutir através de leis para melhor convivência do que
a matança desenfreada?
Será que o mundo ficaria de cabeça para baixo?
— Que foi? — Nino sorri e acredito que a questão está
escancarada em meu rosto como a minha boca para ele.
— Nada… é que…
— Ficou surpresa? — Ele cruza os braços, enaltecendo os
músculos protuberantes dos bíceps na camiseta branca. Dio Santo!
Todos realmente precisam ser tão gostosos?
Enquanto Giulio possui olhos tão escuros quanto uma noite
sem lua, Nino Basile é dono do céu em um dia ensolarado. Eles
possuem a mesma tonalidade de cor de cabelos, no entanto. Ambos
são morenos de peles bronzeadas. Os dias nos portos da Sicília são
favoráveis para manter o dourado que enriquece a visão desses
deuses demoníacos.
Recordo-me de quão dourada a pele de Giulio estava em
nosso último encontro. Suspiro e apoio o rosto sobre a palma com o
cotovelo escorado na carteira, completamente perdida em
pensamentos por alguns segundos. Volto para meu corpo com as
passadas rápidas do professor que surge atordoado, colocando o
material de modo frenético sobre a mesa.
Nino ri com a forma desajeitada de nosso mestre e eu acabo
seguindo-o, colocando uma mão sobre a boca para esconder o riso.
O Caporegime de Trapani faz “shiii” para mim, ainda
sorrindo, com o dedo sobre os lábios. Depois ele coloca um bilhete
em minha mesa informando que o professor possui mania de
perseguição e que rir em sua aula era o mesmo que pedir para ser
reprovado.
Agradeço com um menear de cabeça a informação.
Na semana seguinte, encontro novamente Nino na sala de
aula e somos designados para fazer um trabalho juntos.
Descubro durante a resposta de uma questão que
possuímos a mesma linha de raciocínio e conseguimos concluir o
trabalho primeiro que os outros alunos.
É… a presença de alguém da famiglia me deixou mais
confiante. Nunca pensei que pudesse ser amiga de um homem que
não fosse do clã Zanchetta. Muito menos que sentiria falta do meu
sposo com tanta frequência.
Pelo visto, estava enganada.

ALGUNS DIAS DEPOIS.

— Está me dizendo que Nino Basile é seu colega na


faculdade? — Giulio me puxa pelo braço através de um dos
corredores da mansão do zio Demetrio. Esta noite estamos
comemorando seu 50º aniversário, por isso boa parte dos membros
do consiglio está presente.
— Eu te falei antes, Giulio.
— Não. Não falou. — Gostaria que mio sposo não fosse tão
meticuloso em certas informações. Ainda mais quando essas fazem
seus olhos me fuzilarem desse jeito.
— Gi-Giulio… você não pode me arrastar pela casa do meu
tio. — Tento em vão argumentar, conforme continuamos andando
em passos mais rápidos do que consigo acompanhar. — Todo
mundo ficou olhando.
— Foda-se todo mundo. — Ele olha de um lado para o
outro, procurando sabe-se lá o quê. — Não existem portas nessa
casa?
Ah… é isso. Uma porta…
Para quê?
— Você me arrastou da festa, Giulio. Não somos casados
ainda.
— Eu te arrastei depois de Nino Basile falar para todos que
tem te visto toda semana sem meu conhecimento. — Giulio segue
sua busca até que noto seus olhos fixarem em um objetivo. Ele
encontrou uma porta. Caspita!
Olho atrás de nós, vendo que os soldatos de mio papà
foram impedidos de seguir pelos homens de Giulio.
Isso não vai acabar bem.
— Tuo padre[200] sabe muito bem sobre suas obrigações
como meu futuro sogro. Deveria ter me informado. — Giulio rosna,
furioso. A porta é aberta de súbito e sou puxada com força para
dentro. Ele me solta apenas para virar a chave na fechadura. —
Você, mia Bambola, deveria ter me contado.
— Pensei que soubesse.
— Se pensou, por que engasgou com o vinho assim que o
cazzo Basile falou?
— Porque… — Não tenho uma resposta, muito menos
tempo de responder, pois Giulio segura minha cintura e me
impulsiona para cima, fazendo-me sentar sobre a pia de mármore
do lavabo.
Madonna mia! Nunca vi mio sposo tão furioso.
Acredito que Giulio vai continuar discutindo, mas ele se
encaixa entre minhas pernas. Solto um gritinho de susto.
Mio sposo[201] mantém-se sério quando colide nossas bocas
em um beijo faminto repleto de fúria, forçando sua língua entre
meus lábios, impiedosamente.
— Giulio… — murmuro, quando seus lábios se afastam e
ele me fita com olhos confusos, absortos em pensamentos.
Nem mesmo ele sabe por que está agindo assim…
Ah… mio noivo. Se soubesse que meu coração é só seu.
A dureza em seu olhar se ameniza quando faço um leve
carinho em seu rosto. Ele ampara a face, roçando a barba bem-feita
em minha palma.
— Por que não me contou, Bambola? Hum? — Sua voz está
menos ríspida.
— Eu ia contar… mas então você passou a perguntar sobre
os rapazes da faculdade, deixando claro seus ciúmes. Fiquei com
medo de que…
— De que exigisse que parasse?
Demoro alguns segundos, até que meneio a cabeça.
Poucas mulheres da máfia vão à faculdade. Eu ter conseguido
mesmo estando noiva é uma vitória.
Fiquei com medo de perder algo que nem ao menos
comecei direito.
— Não quero que pare de estudar, Bambola. Não vou tirar
esse sonho de você. — A entonação com que pronuncia esse sonho
faz com que me questione sobre quais sonhos Giulio poderia tirar de
mim.
Até agora ele tem feito com que todos os meus sonhos
caminhem para a realidade. E o principal deles é sentir o que
ninguém em um casamento forçado poderia imaginar…
Eu estou completamente e infinitamente apaixonada por mio
sposo, sem nem ao menos ter me casado com ele.
— Perdoname, mi amore[202]. — Seguro seu rosto com
ambas as mãos, fitando seus olhos de obsidianas que agora me
encaram perplexos pelo apelido carinhoso. — Perdoname, Giulio…
Io ti amo[203].
Giulio me observa por segundos que parecem horas sem
dizer uma só palavra. Meu coração aperta no peito e sinto-me uma
peça insignificante, realmente uma bambola quebrada.
Que merda eu estava pensando?
Desvio o olhar para o lado, envergonhada. Melhor retornar
para a festa antes que nossa saída tenha consequências
desastrosas, penso.
Quando empurro levemente os ombros de Giulio para me
libertar da jaula de seus braços, ele segura minha nuca e me faz
encará-lo.
— Repete, Bambola — ele exige com uma voz enervada.
Assusto-me e recuo, não sabendo ao certo para onde. — Repete. —
Sua mão pressiona um punhado de cabelo da minha nuca e sinto
meus olhos lacrimejarem.
— Io ti amo… — digo baixinho, tão baixo quanto meu
orgulho ferido consegue pronunciar. E então, Giulio toma minha
boca lentamente, numa tortura carinhosa que me assusta muito
mais do que o rompante de há pouco.
A princípio seus olhos estão abertos, aguardando que eu
aceite os movimentos. Não demora a acontecer. Meu coração
implora por atenção, implora para que Giulio Moretto segure-o e
nunca mais o solte.
Dio Santo! Será que essa é a forma de Giulio dizer que
também me ama?
Não tenho a mínima ideia. Mas sei que não quero deixar
este navio zarpar sem que eu seja uma de suas tripulantes. Mesmo
que não exista colete, muito menos botes salva-vidas.
GIULIO MORETTO

Ela me ama…
Minchia! Che merda[204].
A ragazza tão inteligente e desenvolta com assuntos que
nem sequer consigo discutir com alguns dos capos disse que me
ama. Pior… as palavras sagradas foram ditas para controlar meu
ataque de fúria ao saber que Nino Basile está brincando com o que
é meu.
Ela é minha. Meu brinquedo. Mia Bambola.
Uma peça essencial para arruinar a honra daqueles que não
souberam limpar a escória da famiglia. Eles são a escória.
Pessoas que se julgam melhores que tantos, possuindo uma
mancha acobertada por segredos que tiraram a luz da minha casa.
Francesca se apaixonou pelo vilão…
Não lhe dei escolha.
Mas até agora pensei que tivesse apenas seu desejo carnal.
A curiosidade que toda ragazza possui quando lhe é tolhida de
experimentar o mundo. O século XXI é movido pelo sexo e suas
engrenagens são a sensualidade de corpos e gestos implícitos
pelos meios de comunicação.
Mantive alguns encontros e depois de Monza sabia que
seria fácil envolver Francesca em minha rede. Ela não teria
escapatória. E eu… Cazzo! Não era para ter dúvida alguma sobre o
que devo fazer. Muito menos pensar tanto na ragazza.
Minha mente tem estado nublada de modo inconsequente.
Por vezes não precisaria vir para Messina vê-la. Mas por alguma
razão que desconheço, meu corpo age por vontade própria.
Foram tantas as vezes que apareci sem avisar, pelo simples
fato de querer vê-la. Senti-la. A necessidade de tocá-la tem se
tornado um vício incontrolável. Fiz uma comparação absurda acerca
dos momentos em que briguei com Max em relação às drogas. Ele
dizia o quanto seu corpo comandava sua mente.
Minha mente e meu corpo possuem ambos uma
necessidade insaciável de Francesca.
Quando estou afastado, não consigo parar de pensar em
nossas conversas e interações. Mia Bambola é inteligente e sagaz,
sabe conduzir discussões sobre negócios e demonstrou ter
conhecimento sobre as importações e exportações da famiglia. Uma
mulher falando sobre embarcações não deveria ser tão sexy.
Caspita! Esta semana, antes de avançar para discutir com
um associado cheguei a pensar em como Francesca gostaria que
agisse. PorcoDio! Que porra essa bruxa fez em minha cabeça?
E quando estou perto, como agora, quero seu corpo tanto
quanto ouvir a sua voz. Enfio o nariz em seus cabelos respirando
fundo e sentindo o aroma de rosas que fiquei viciado.
As suas palavras doces e a forma de encarar o mundo
sempre apontando novas chances me fez repensar um milhão de
vezes naquilo que pretendo fazer com ela.
Não…
Não vou vacilar.
Se la tuo padre[205] não teve coragem suficiente para limpar a
honra do nome Zanchetta, deixando-o imundo e por conseguinte,
manchando a honra da famiglia, eu não o faria.
Francesca é um meio para um fim.
Eles irão sangrar, bem como ela…
Todos eles.
Inspiro fundo, sabendo que meus atos seguintes serão
decisivos. Preciso que ela ceda e queira tanto quanto eu.
— Bambola, desculpa. Fiquei louco ao saber que Nino tem
passado mais tempo com você do que eu e… — Beijo seu pescoço,
sentindo-a estremecer.
— Você pode me ver mais vezes, Giulio — murmura,
inclinando a cabeça para me dar mais acesso.
— Agora não dá, mia Bambola. Preciso encontrar quem é
nosso inimigo. — Sim. Fiz a bobagem de comentar com mia sposa
sobre a desconfiança que tenho sobre um dos membros da famiglia
dando informações privilegiadas para a polizia. Merda. — Tenho
medo de não conseguir te proteger e…
— Marque a data, Giulio — sussurra, tão baixo que preciso
encarar seus olhos. — Marque nosso casamento e ficarei segura
com você. Em sua casa.
Pisco algumas vezes, notando como a rata se tornou a gata.
Francesca usou do ardil mais antigo que as mulheres aprenderam
como forma de ataque. Que ironia… Estou sendo seduzido, quando
o que quero realmente é seduzir a ragazza.
— Já está marcada, mia cara. Marquei hoje com tuo padre
— digo, subindo sua saia e deslizando os dedos pelo interior de sua
coxa. Ela arfa no instante em que alcanço sua potta[206] molhada.
— Hum… e quando? — Francesca impulsiona o quadril,
esfregando-se em minha palma.
— Novembro, mia Bambola. — Ela arregala os olhos, saindo
da nuvem de luxúria.
— Daqui a três meses? — A pergunta sai um tom acima da
voz delicada. Sorrio, mantendo a pressão e esfregando levemente
entre suas pernas. Cazzo… ela está tão molhada.
— Sì… daqui a três meses você será minha por completo,
Bambola. E então vamos saber… — Enfio o tecido, hoje acetinado,
em seu interior. — O quanto você sangraria por mim…
— Io ti amo, Giulio. Sangraria por você a qualquer momento.
— Continuo estimulando, puxando o tecido e percorrendo a fenda
melada com o dedo do meio. Cazzo… tenho medo de gozar na
cueca só com a sensação de Francesca.
— Então me mostra… — peço, com a voz rouca próxima ao
seu ouvido, sentindo a pele arrepiar. — Mostra o quanto me ama e
sangraria por mim, Bambola.
— Como?
Tomo sua boca em um beijo que começa lento até ela
ofegar e abrir os lábios para invadi-la, consumi-la… Cazzo. Como
Francesca é gostosa. Vou sentir falta de beijar essa boca.
— Venha comigo. Fuja comigo esta noite — Dou a cartada.
— Mas papà, mia famgilia?
— Eles não precisam saber, mia Bambola. Diga que está
passando mal e chame Valentina para ir com você. A festa irá durar
algumas horas. Podemos…
— Giulio, você acabou de dizer que nos casaremos daqui a
três meses, por que a pressa agora?
— Você disse que me ama… pensei que não tivesse
dúvidas. — Viro o rosto. — E tem visto Nino Basile com tanta
frequência.
— O grande Giulio Moretto está inseguro? — Sinto seu
sorriso, quando segura meu rosto. — Ei… eu sei o que sinto. Mas e
você? Sabe o que sente?
— Eu sei o que quero, Bambola. E neste momento, quero
você. Só você. — É o máximo de verdade que consigo. Na
sequência, retomo sua boca com um beijo faminto. Se palavras não
a convencem, irei pelo modo mais fácil. Farei seu corpo querer.
Lambo, chupo e me delicio com os lábios e língua de
Francesca, descendo por seu pescoço e raspando com suavidade a
barba na pele sensível do modo que aprendi fazê-la sussurrar meu
nome mais vezes.
Mantenho um vaivém torturante em sua intimidade,
espalhando a lubrificação sem alcançar o local que precisa. Mia
Bambola passa a rebolar, querendo ser tocada. Sorrio sacana,
sabendo o quanto estou provocando-a.
— Giulio… Giulio, eu quero…
— Sì, Bambola… eu sei o que quer… e eu também quero.
Quero mais de você, cara mia. Seja minha.
— Eu sou…
— Seja minha por completo.
— Mas como? — Algo surge em minha mente. Estamos há
mais minutos do que o esperado no banheiro e tão logo meus
soldatos não vão conter o irmão da minha sposa.
— Deixe a janela aberta, Bambola.
— Hum?
— Não feche a janela do seu quarto, mia bela. Deixe-a
aberta. — Deslizo o tecido da calcinha fina por suas pernas,
deixando-a desnuda abaixo do vestido de gala. Cheiro sua
essência, verificando a lingerie de cetim branco. Francesca ainda
está entorpecida e desejosa.
Não a satisfazer com os dedos foi proposital para que ceda
sem mais indagações. Ela vai querer tudo o que pretendo fazer com
ela.
Arrumo seu vestido, descendo-a da pia com cuidado. Ela
ajeita algumas mechas do cabelo e alisa a saia do vestido escuro
com tiras de strass.
— Pedir para devolver minha calcinha é caso perdido?
Coloco o material macio no bolso da calça com um sorriso
irônico.
— Tanto quanto desperdiçar palavras ao vento.
— Não vou insistir. Meio que gosto de saber que está com
algo meu.
Abraço-a por trás, fitando nossa imagem no espelho do
lavabo.
— Ah… mia Bambola, eu quero muito mais que sua calcinha
e seu amor. Quero você por inteira.
O som de vozes no corredor nos faz sair mais depressa do
pequeno cômodo. E logo passamos a caminhar de mãos dadas,
dando a entender que estávamos tranquilamente caminhando pela
mansão, vindo do jardim.
Assim que seu irmão e primos nos alcançam, veem
Francesca sorrindo para mim de modo tímido, poderia dizer até
inocente caso não sentisse na ponta dos dedos sua calcinha em
meu bolso.
Eles a encaram e com um menear de cabeça, seus cães de
guarda ficam menos agressivos.
— Está tudo bem, piccola? — Luigi a indaga, me encarando.
— Claro. Só estamos conversando. Precisava tomar um
pouco de ar e Giulio veio comigo. — Ele olha para a irmã,
preocupado, agora. Por quê?
— Você se sentiu mal? Teve falta de ar?
Noto Francesca incomodada com o questionamento.
— Está tudo bem, fratello. — Ela arregala os olhos no intuito
de fazê-lo parar com as indagações. Outra interação estranha que
percebi na dinâmica que seu clã tem para com ela.
Sei que Francesca é a princesinha dos Zanchettas e o
quanto tuo padre fez de tudo para proteger as figlie das garras da
famiglia. A garota passou boa parte da puberdade sem frequentar a
festas.
Foi algo bom para que minha mente conturbada não a visse
como uma criança quando fosse o momento de colocar minhas
garras sobre mia Bambola.
— Vamos, antes que as pessoas comecem a falar sobre nós
— pontuo, conduzindo mia sposa pelo braço para dentro do salão.
Esse evento precisa terminar logo para poder terminar o que
comecei. Melhor deixar Homero e Zacheo, pois diante do que vou
fazer talvez precise ser resgatado.
FRANCESCA ZANCHETTA

As cortinas de meu quarto balançam com a brisa noturna


que invade o cômodo parecendo marolas ricocheteando o ar.
A cada abrir do tecido duplo, indo e vindo, meu peito segue
apertando e cedendo como a atitude que tive ao deixar as portas
duplas da sacada abertas.
Por que Giulio pediu isso?
Ele está louco?
Pensa que é seguro entrar em minha casa assim?
Talvez a segurança em saber que é praticamente impossível
entrar na mansão Zanchetta me fez seguir com a sugestão de mio
sposo. Ele jamais conseguirá entrar em meu quarto.
Nossa residência é praticamente uma fortaleza tanto quanto
as outras mansões dos Caporegimes da famiglia. Sem contar com o
nosso cão de guarda particular que vive na casa da piscina, posto
que mio frattelo passa mais tempo em alerta do que qualquer ser
vivo feroz da espécie canina.
Luigi só não está atento quando não está em casa.
Mesmo sabendo sobre a dificuldade de invadir minha casa e
da escassa possibilidade de ter Giulio em meu quarto esta noite,
quis vestir uma das camisolas que mammina identificou como a
perfeita para uma noite de núpcias.
Ela é branca, com alças finas em seda fina e uma pequena
barra de renda. Desfiz o penteado, agradecendo que alguns dos fios
presos desceram em pequenos caracóis por minhas costas. Passei
um pouco do gloss sabor de morango e escovei mais de uma vez os
dentes. A última parte foi por conta da ânsia de vomito que senti
devido ao nervosismo.
Caspita!
Giulio devia estar brincando comigo. Ele jamais se arriscaria
ao ponto de entrar em meu quarto de madrugada apenas para me
provocar como vem fazendo nos últimos meses.
Ele disse que marcou a data do nosso casamento. Porém,
papà não disse nada durante o retorno para nossa casa.
Bom… Signore Zanchetta ficou chateado ao ter que me dar
a notícia sobre o noivado minutos antes de eu encarar meu futuro
noivo em minha festa de 15 anos. Como possui alguns meses a
frente, possa ser que irá me contar no decorrer da semana. Talvez?
Enfim. Giulio não precisava mentir. Se ele disse que marcou
a data, é porque marcou.
O fato de querer reivindicar minha virgindade antes deve ter
sido por mero ciúmes de Nino. O cazzo teve que provocar mio
sposo e mencionar sobre nossas aulas juntos. Essa semana irei
conversar direitinho com mio amigo. Ah… se vou.
Levanto-me em direção à sacada, intencionada em fechá-
las para dormir sossegada. Não vou conseguir dormir se deixá-las
abertas esta noite, penso.
Empurro a primeira lâmina de madeira e sou impedida de
efetuar o encaixe assim que uma mão me para e outra é levada
sobre minha boca para conter o pequeno grito de susto.
— Shiiii, Bambola. Sono io[207]. — Giulio surge, exibindo seu
sorriso convencido, perfume inebriante, com vestes escuras,
camiseta preta de mangas longas e uma calça com estampa
camuflada escura.
Nas histórias de princesas normais, o príncipe aparece em
traje de gala montado em um cavalo branco. Como sou uma
principessa da máfia, o príncipe é o vilão que entra camuflado em
seu quarto como um perfeito larápio.
Sorrio com a discrepância do mundo em que vivo.
Tudo é virado de ponta-cabeças. Então, por qual motivo
ainda guardo minha virgindade?
Por todos esses meses em que Giulio, o dito príncipe, que
nunca fez uma declaração de amor a não ser o quanto fico linda
gozando — se é que posso chamar algo do tipo como declaração
—, tem se empenhado tanto a tirá-la.
Inclusive esta noite que está tentando um jogo muito
perigoso.
Se Luigi e meus primos o pegam aqui, o Sottocapo será
dado como desaparecido por alguns dias e ninguém da famiglia os
condenaria. E pior… Giulio pode ser desafiado a entrar no anello[208]
da cutelaria.
Dio Santo! Por mais que meu noivo tenha fama como um
dos melhores cuteleiros e lutadores da famiglia, Luigi não fica atrás.
É o que dizem… Ele nunca perdeu.
Após meu noivado, soube muito mais sobre a cutelaria do
que gostaria. Fiquei inclusive curiosa para assistir a uma das
competições. A ideia da disputa fora e dentro do tal ringue, me
deixou curiosa.
— Não esperava uma recepção tão glamorosa, Bambola.
Devia estar mais a caráter. — Giulio brinca, percorrendo o olhar por
meu corpo, transformando minha insensatez em um momento para
reconsiderar. — Não, mia bela. Não pense… — Ele enlaça minha
cintura com um braço, puxando meu corpo contra si. Seguro em
seus ombros fortes na busca de equilíbrio.
— Você não devia estar aqui… Nós não devíamos…
— Esse barco já zarpou, mia Bambola. — Ele roça a ponta
do nariz em meu pescoço, causando um leve arrepio. — Que tal
mudar para: Eu te quero, Giulio; ou, fica comigo, Giulio?
— Nenhuma das opções está: vá embora, Giulio. — Ele ri
baixo, em seguida faz uma trilha de beijos molhados até puxar
entredentes o lóbulo da orelha. — Giulio… — gemo seu nome.
— Gosto do perigo, Bambola. Mas quando tenho uma
premiação ao final. — Ele sussurra, assoprando a pele molhada de
saliva e fazendo meu corpo responder com arrepios. É incrível como
algo tão pequeno tem o poder de contrair toda a minha região
pélvica.
— E se eu não quiser te dar o troféu… o que pode
acontecer?
Giulio continua as carícias com sua boca, passando a
movimentar suas mãos pelas laterais do meu corpo. Ele beija minha
clavícula e sinto uma alça da camisola descer, mostrando um dos
seios. Sua mão é colocada em taça para posicionar meu mamilo de
modo que meu noivo aperte a pele e chupe a pontinha, assumindo o
controle e tomando aos poucos mais pele até chupar como um todo.
— Quem disse que já não deu, Bambola? — Fito para baixo,
querendo entender o que diz. Giulio eleva o rosto para nossos olhos
se encontrarem, tomando minha atenção e descendo a segunda
alça da camisola. O tecido se torna um amontoado sobre meu
quadril, um leve movimento e vou estar só de calcinha. — Como
você é bela, Bambola. Seu corpo foi esculpido para me enlouquecer.
Sem me dar chance para outra pergunta, Giulio me levanta
em seus braços como uma noiva deveria ser carregada, posiciona-
me ao centro da cama. Após, ele tira a camiseta num único puxão,
arremessando em algum canto do quarto. Ainda com os olhos em
mim, meu noivo desce a calça aproveitando para tirar as botas.
Provavelmente os sapatos de verniz da festa não seriam
apropriados para a escalada até meu quarto.
Estou diante de um Giulio apenas usando uma cueca boxer
branca. Suspiro audivelmente, posto ser a primeira vez que o vejo
tão de perto e com pouca roupa.
— Pode lamber o quanto quiser, Bambola. Esta noite, sou
todo seu. — O safado sorri sob meu escrutínio, ficando de joelhos à
minha frente. Ele sabe exatamente o que causa no público feminino,
e eu sou mais uma na plateia. Ergo o tronco ficando na altura do
seu quadril, praticamente de cara com o membro vigoroso que faz
volume no tecido.
Inspiro, querendo sentir o aroma de Giulio por todos os
lugares. Seu cheiro característico não me afugenta e sim me atrai,
fazendo-me passar o rosto sobre sua dureza.
— Bambola… Bambola… não provoque um leão em sua
jaula, ragazza — ele avisa com uma pontada de diversão na voz.
Não sei o que estou fazendo de verdade. Segui meus
instintos e a vontade de cheirá-lo e senti-lo com a face do rosto. É
como se conseguisse aumentar a sensação do calor sob a pele da
bochecha. Inspiro mais uma vez, entorpecida com o momento de
intimidade.
— Eu não sei o que fazer… — atesto. Giulio me observa
alterando um pouco o olhar de malícia para algo terno. Ele desliza o
polegar em minha face carinhosamente.
— Primeiro, precisa saber que estar aqui com você é o meu
troféu. Não vou tomar nada que não queira me dar.
— Você escalou a parede do meu quarto para ter o que
consegue de mim em nossos encontros?
— Ter você sob uma cama completamente nua não parece
com nada do que tem sido nossos encontros, Bambola. Não consigo
esquecer o que aconteceu em Monza. E esses lençóis — ele passa
as mãos sobre minha cama. — São da Cosa Nostra. Agora me diga,
o que você quer?
— Quero… — deslizo a ponta dos dedos no tecido de lycra,
revelando a ereção granDiosa de mio sposo. Caspita! Pode parecer
piegas, mas duvido que esse rolo de macarrão vá entrar em mim.
Admiro a extensão da pele esticada e a protuberância de algumas
veias, que adornam o pau de Giulio fomentando a escultura tão
próxima dos meus lábios.
É loucura ter vontade de sentir um homem em minha boca?
Se for… reservem minha camisa de força.
Sigo admirando e cheirando da virilha até a cabeça rosada e
lustrosa, arrebatada pela sensação de domínio que Giulio me
permite. Ele permanece estático, aguardando meu segundo passo.
Olho-o de baixo para cima, vendo o quanto está se segurando
conforme movimenta o pomo de adão e pressiona o maxilar com
força.
Minha língua tece um traço fino na cabeça do seu pau,
rodopiando e tomando conhecimento do tamanho que vou precisar
abrir a boca para acomodá-lo. Espero não ter a mandíbula
deslocada, penso. E quando ele emite um gemido másculo, abro a
boca e aceito-o invadir meus lábios.
Giulio se segura, levando a mão e fechando-a em punho
nos cabelos de minha nuca com firmeza, porém sem impulsionar
minha cabeça. Ele apenas aperta e me deixa conduzir o movimento,
lentamente.
— O primeiro bocchino[209] da mia Bambola — anuncia. —
Cazzo… que boca gostosa.
O barulho de mio fidanzato[210] é o estímulo que necessito
para ficar mais ousada. Então, seguro a base e passo a chupá-lo
com força. Aos poucos aumento o ritmo e passo a brincar com sua
paciência quando acelero e reduzo a velocidade da invasão em
minha boca.
Ele resmunga algum palavrão e sorrio. Sabendo que neste
momento, eu o tenho sob meu controle.
— Bambola mia, vai me fazer gozar ou quer brincar com
meu pau a noite toda? Não me importo de ficar assim. Io tenho
controle do meu corpo e posso gozar a qualquer momento. Mas
quero muito te chupar ainda hoje. O que vai ser?
Solto o membro duro em um pop e encaro Giulio. Sinto-me
desafiada, pois se fosse tão fácil por que estaria argumentando ao
invés de o fazer? Sorrio e circulo a ponta da língua ao redor de sua
circunferência, ouvindo-o suspirar com força. É… eu sabia.
— Quero sentir seu gosto. Quero que goze em minha boca
como eu tenho feito na sua.
— Você não solta porra, Bambola. — Rio do comentário
bobo, ele também. — Tem certeza?
Retorno às lambidas e chupões, pressionando a base com
as duas mãos. A saliva grossa auxilia o movimento e conforme
estoca em minha boca, faço um vácuo que parece agradar mio
sposo[211]. Ele resmunga alguns palavrões que desconhecia.
Então, o punho se fecha ainda mais nos cabelos de minha
nuca, deixo-o conduzir tentando relaxar a garganta e falhando
miseravelmente quando engasgo algumas vezes. Não é algo que
impede o movimento que se torna mais brusco. Estou sem ar
quando sinto o líquido quente de sabor salgado preencher minha
boca.
Engulo o que posso, vendo Giulio com a boca aberta e o
rosto retorcido. Poderia até ser confundido com um semblante de
dor, caso não tivesse acabado de esporrar. Ele demora para
retornar da sensação de êxtase. Espero, querendo que o momento
perpetue mais um pouco.
Alguns segundos depois, sinto Giulio segurar meu rosto
para o encarar.
— Ah… Bambola… como quero te foder agora…
Por mais que suas palavras façam com que os músculos do
meu canal se contraiam, o medo incutido em mim desde bambina se
sobressai. Coloco entre nós certa distância, mantendo-me próxima e
distante ao mesmo tempo.
Giulio me observa calado, com o cenho franzido
demonstrando incômodo com minha atitude.
— O que você quer, Bambola?
OdDio![212]
Respiro fundo, tentando pensar no que eu realmente
gostaria que acontecesse esta noite. Giulio parece entender, pois se
acomodou semideitado, apoiando o peso do corpo com um dos
cotovelos enquanto que sua mão livre desliza pelos meus cabelos e
seus dedos percorrem os fios que caem sobre meu rosto.
— Deite-se, mia Bambola. Até que decida o que quer, me
deixa apreciar meu prêmio — Giulio fala com calma, a voz
aveludada me conduzindo para deitar ao seu lado.
Ele aproxima o rosto tão lento que as borboletas em meu
estômago retomam voo, almejando o seu toque. Inclino a cabeça
para frente capturando os lábios macios e sedutores de meu sposo.
Sem receio. Quero ser corajosa. Eu quero saltar neste abismo sem
fim ao lado do homem que amo.
A vida me deu uma segunda chance e anseio ter todas as
experiências mundanas que eu possa vivenciar. Sem contar que
logo Giulio será Mio marito[213].
— Eu te desejo tanto, Bambola… tanto — Ele roça os lábios
nos meus, depois inicia uma tortura passando a ponta da língua nos
cantos de minha boca, saboreando o resquício do seu gosto.
Gemo seu nome baixinho, num pedido implícito para
continuar a me corromper em sua luxúria. Io voglio…[214]
No passado, recebi o diagnóstico de câncer e tudo o que
conhecia mudou da água para o vinho. Aprendi a viver um dia de
cada vez, sem a espera do amanhã que talvez nunca chegaria.
Giulio Moretto é meu hoje, meu amanhã e meu infinito.
Entreguei meu coração a ele há muito tempo. Talvez
naquele corredor escuro, ou talvez no dia em que era apenas uma
menina recebendo-o como visita para um jantar.
Não sei ao certo quando minha mente passou a gritar por
esse homem com uma necessidade insana de possui-lo e ser
possuída.
— Eu também… — sussurro e recebo um beijo mais
intenso, com lábios e língua dançando de forma lasciva. As mãos de
Giulio se multiplicam, me tocando em tantos lugares que fico
confusa diante das sensações.
Seus lábios se tornam afoitos, exigentes e sua língua
contorna a minha em movimentos difíceis de acompanhar.
Simplesmente cedo e me derreto sob seu controle.
A boca escorrega em meu colo desenhando uma trilha de
beijos e lambidas até abocanhar um dos seios. Murmuro palavras
desconexas com o prazer irradiante por todos os poros. Sem medo.
A penumbra da noite parece ser minha aliada, pois a cicatriz
é esquecida por mim e por ele.
Sinto o tecido da camisola deslizar por meu quadril
juntamente com a lingerie de renda fina que mal cobria meu púbis.
Gostaria que ele admirasse a delicadeza do tecido, mas pelo visto
terei que usar novamente em nossa noite de núpcias.
— Tu sei così gnocca, Bambola…[215] — ele beija a junção
entre a coxa e o quadril. — Tão cheirosa… Estou viciado em seu
cheiro. — Outro beijo agora mais próximo da virilha. Desaprendo a
respirar até senti-lo no vão entre minhas pernas. Ele abre minha
vulva e fita a carne exposta, inspirando e soprando o ar.
OdDio! Sinto um calafrio ao mesmo tempo em que um calor
irradia por todas minhas terminações nervosas.
Jogo a cabeça para trás no instante que sinto a língua
quente e molhada subir da minha entrada até o clitóris com mais
pressão que me recordava. Não identifico o som que arranha minha
garganta por conta do toque pujante em meu sexo.
Eu vou sucumbir antes mesmo de começar…
Madonna mia das virgens safadas, aiutami[216] a aguentar
mais um pouquinho. Per favore![217]
— Essa visão é meu prêmio, Bambola. Não preciso de mais
nada depois de ouvi-la gemer meu nome — ele fala debochado,
dando um beijo de boca aberta no montinho de nervos enrijecido.
Assoprando e rodopiando a ponta da língua.
— Eu posso te premiar de outras formas se você voltar a
chupar aí embaixo — sugiro brincalhona, acariciando o cabelo
volumoso no topo de sua cabeça. Ele sorri safado e retoma para o
segundo ato, demonstrando quão bom ouvinte que é.
Minha intimidade é dolorosamente chupada e consumida
como um banquete disposto na mesa para Giulio Moretto. Ofego
quando sinto que a introdução de um dedo em minha entrada
preguiçosamente. Giulio sobe o olhar para analisar minha reação.
Suspiro, acenando para que continue.
O aceno serviu para encorajar mio sposo a aumentar o
número de dedos. Reteso um pouco, pensando que ele tem cinco
dedos e um pau que lembra o rolo de macarrão de mammina.
Dio Santo!
Ele continua a me chupar, aumentando a velocidade e
invadindo-me com dois dedos. O som das estocadas na entrada
molhada, identifica o quanto Giulio está me enlouquecendo. A
excitação em meu baixo ventre torna-se cada vez mais
incontrolável.
Meu corpo caminha rumo ao precipício. Sinto meu canal se
contrair com espasmos intercalados que aumentam em quantidade
e intensidade.
— Giuliooo… — grito seu nome, perdida no êxtase de um
orgasmo feroz.
As ondas elétricas se concentram em minha virilha de modo
a explodir em um milhão de estrelas sob o céu cujo qual sou
arremessada. O formigamento se expande levando prazer a cada
extremidade do meu corpo.
Estou em estado nostálgico quando sinto frio no lugar antes
preenchido pelo calor do corpo de Giulio. De pernas abertas e
totalmente exposta, recebo o impacto do lençol que é jogado em
minha direção.
— Seu testa di michia! Eu vou te matar, figlio di putana! —
Luigi grita e vejo Giulio nu, jogado na lateral da cama recebendo
chutes no estômago.
— Ma che succede?[218] — O som escandalizado de
Mammina ao notar mio sposo nu sendo surrado por meu irmão e o
fato de que estou agarrada apenas a um lençol é a sequência da
tragédia.
O som incessante dos golpes de Luigi no corpo nu de Giulio
me deixa apavorada. Ele vai matá-lo. Mio frattelo vai matar o meu
amor.
— Papà! Papà! Papà! — Consigo gritar, alguns segundos
depois. Signore Zanchetta surge assustado, após mammina.
— Ma che fai?[219] — mio padre indaga meu irmão,
aproximando e tentando controlá-lo. — Dai, basta![220]
Ouço Michela, mas minha mammina murmura algo e a
conduz para fora antes que flagre meu pecado.
Não sei ao certo quando comecei a chorar, mas as lágrimas
de vergonha queimam meus olhos, descendo por meu rosto de
modo a molhar o tecido que estou abraçada.
Vejo papà num borrão jogar um amontoado de roupas
escuras sobre Giulio. Provavelmente as vestes que usava.
— Vista-se! — Signore Zanchetta comanda. Eu apenas
choro copiosamente, sem outra reação. Sinto uma confusão de
sentimentos dentre culpa, vergonha e medo.
Pode ser impressão, mas noto um sorriso maldoso nos
lábios de Giulio quando começa a se vestir encarando papà e mi
fratello.
Assim que termina, Luigi o empurra em direção à porta. Sei
que mio sposo é mais forte que ele, porém nada o faz para
contrapor à atitude de mio fratello. Giulio é estrategista nato, caso
contrário não teria chegado aonde chegou dentro da Cosa Nostra.
No máximo, seu cargo deveria ser apenas como o herdeiro
do Don. Porém, mio sposo galgou sua carreira como Caporegime e
hoje Sottocapo.
Ele vai saber o que fazer…
Respiro fundo, seguida de alguns soluços do choro que
continua. Madonna mia! Como pude deixar isso acontecer?
Eles entraram em meu quarto por me ouvirem gritar?
Madonna mia!
Mio fratello entrou em meu quarto durante meu orgasmo?
Que vergonha, Senhor! Que vergonha…
— Vamos conversar em meu escritório — papà anuncia. —
E você — aponta para mim já sob o batente da porta, —
recomponha-se e coloque uma roupa adequada. Venha quando for
chamada.
Deixo um soluço dolorido balançar meus ombros e retomo o
choro baixinho.
Dio Santo…
Espero não ter cavado a cova do mio sposo e muito menos
de mio fratello.
GIULIO MORETTO

Caminho seguindo o Caporegime Zanchetta escada abaixo,


com seu filho a tira-colo bufando em meu cangote. Estou
aguentando calado seu resmungo com palavras extremamente
ofensivas vindas de un Soldato para o Sottocapo.
Deixei que me batesse enquanto estava no quarto de mia
Bambola. Ela estava tão assustada e não quis aumentar seu
sofrimento presenciando uma briga corporal em sua presença.
E, realmente não pensei que seríamos interrompidos
naquele momento.
Cazzo!
Ouvi-la gritar meu nome, embebida de prazer, fez com que
me esquecesse do lugar em que estava.
Eu queria mais dela…
Queria poder beijar cada parte do seu corpo. Sabia o que
devia fazer e o que viria a seguir, mas pensei que tivéssemos mais
tempo.
Então, fui arrancado de supetão deixando-a exposta. Se ele
não fosse seu irmão estaria agora com os olhos furados. Francesca
recobrou os sentidos e tão logo percebeu o que estava
acontecendo, sentiu vergonha.
O rosto pálido e o medo estampado em suas feições não
sairão de minha memória. Eu deveria estar satisfeito, não?
Mas não estou.
Seu choro compulsivo não deveria me afligir, porém meu
peito ficou apertado a cada soluçar de mia Bambola.
Não!
Não posso me arrepender agora.
Venho planejando sujar a honra do clã Zanchetta há anos.
Invadir o quarto de Francesca pareceu-me uma oportunidade única.
Só pensei que pudesse passar mais tempo ao seu lado…
Mesmo que não tivesse seu sangue na cueca branca que
vesti com este propósito.
Eu queria…
Porém, não a forçaria.
Aceitaria apenas o que fosse me dado.
Io sono un figlio di puttana[221].
Os degraus parecem dobraduras infinitas. Repenso cada
atitude e como mia sposa se entregou a mim aos poucos, confiante
na promessa que pretendo quebrar.
Zanchetta vai implorar pelo casamento. Seu clã ficará
exposto com a desonra de tua figlia.
Mia Bambola…
Quebrada.
Essa era a intenção… corromper, sujando o nome do
Caporegime de Messina já que não soube lavar sua honra quando
era preciso.
Cornuto[222].
Sou empurrado para dentro de uma porta e olho sobre o
ombro o infelicce, figlio do pecado de meu pai.
Não revidei até agora para lhe dar o gosto de vingança por
desonrar a sua fratella. Mas não vou tolerar outra insubordinação.
— Entrem. — O boquejar de Luigi se torna mais audível
conforme fecha a porta. Viro para responder quando sou pego de
surpresa.
— Figlio di puttana. Você é um homem morto, Moretto de
merda. — Luigi desfere outro soco certeiro em meu rosto. O gosto
de ferrugem inunda minha boca por conta do corte interno na
bochecha. Cuspo o sangue no chão sem qualquer decoro para sua
casa.
Eles não merecem.
— Che pasa?[223] Que merda pensou ao invadir minha casa,
ragazzo? — o capo Zanchetta esbraveja um pouco mais contido que
o filho.
Limpo o canto da boca e esboço um sorriso maldoso.
— Fui convidado— esclareço. — É falta de educação não
atender ao pedido de una ragazza.
— Ma che dici?[224]— Signore Zanchetta parece não
acreditar em como sua figlia foi seduzida. — Ninguém te convidou
para vir até minha casa. Muito menos no quarto de Francesca. Tua
sposa!
— Não foi o que pareceu mais cedo na casa de seu fratello.
Francesca indicou qual a sacada que deveria subir e também me
recebeu muito bem em seu quarto. — O soco que levo a seguir na
boca do estômago de Luigi é a gota d’água.
Resisto à dor como tantas vezes aprendi e desfiro um golpe
de baixo para cima em seu queixo, fazendo-o cambalear para trás.
Por mais que a dor fosse bem-vinda para aplacar a náusea
do que falei sobre mia Bambola. Não podia manter-me inerte e
permitir que o stronzo pensasse que estava ganhando.
Ele não está…
Eles não estão…
— E o que você pretende com isso, farabutto? — Luigi
questiona. — Quer adiantar o casamento ou morrer na cutelaria?
— Nem um, nem outro…
— Como?
As palavras seguintes amargam minha boca como veneno.
— Jamais me casaria com alguém que se entrega a
qualquer um. — E a sequência arde minha garganta com a bile, mas
engulo para pronunciar: — Ela é uma troietta[225] como tantas que já
comi.
— Você a seduziu! Testa di minchia![226] — O Zanchetta mais
novo avança e não acerta meu rosto, pois esquivo para o lado. No
entanto, gostaria de ter recebido a dor uma vez que sinto outra
dilacerar meu peito.
— Eu não me entreguei a você… — A voz baixinha ressoa
da porta e sou abatido pelo olhar decepcionado de mia Bambola.
O que ela faz aqui?
— Você vai se casar com Francesca — Signore Zanchetta
determina, espalmando no tampo da mesa com fúria.
— Não sou obrigado a manter o compromisso com alguém
sem honra.
— Mia figlia é honrada — Agora é Annunziatta Zanchetta
que intervém, comparecendo à pequena reunião. Rio debochado.
Quem ela pensa que é?
— Tanto quanto a mãe dela? — expilo o amargor de anos
de rancor.
— Abbastanza![227] — Zanchetta esbraveja. Ouço sua mulher
choramingar, balançando a cabeça em negativa. Eles trocam
olhares confidentes.
O ódio retoma seu lugar de direito, fazendo-me ter a certeza
que todos os meus atos foram dignos para honrar a morte de mia
mammina.
Quem realmente me amou e teve sua vida interrompida por
culpa deles.
Inspiro forte, inflando o peito com orgulho.
— Papà… eu não… — A voz pequena é a única que me tira
do torpor. Encaro mia Bambola cabisbaixa, porém elevo meu queixo
altivo. Não posso me arrepender… Não agora.
Francesca caminha lentamente até mim e meus olhos fitam
o topo de sua cabeça. Sou um Moretto e não há remorso entre
homens da famiglia. Escolho palavras duras para renegar nosso
compromisso.
— Eu não…
Sou interrompido com o toque de sua mão que eleva minha
palma para cima e coloca ali o anel de noivado. Sinto o formato
circular do ouro branco e a delicada aspereza dos diamantes
encrustados ao redor da pedra de água marinha, bem como o
pequeno pingente no formato de ‘M’. A saliva se torna grossa
demais para passar em minha faringe.
Ela fecha meus dedos, roçando as pontas delicadas dos
seus em minhas falanges grossas como um último carinho, último
toque… Seu rosto ergue até os olhos repletos de dor me encararem.
Meu coração está esmagado no peito. Quero abraçá-la. Protegê-
la… Não. Travo o maxilar com força, contendo a angústia que ruge
em mim.
— Não vou tomar nada que não queira me dar. — Minhas
palavras repetidas na voz delicada com uma conotação tão diferente
fincam punhais em meu peito. Em seguida, mia Bambola volta-se
para tuo padre. — Papà, deixe-o ir.
— Mas, piccola… — O velho empertiga com receio.
Novamente enxergo algo diferente em seu semblante.
— Eu não me entreguei para ele… só…
— Francesca… eu o tirei de… — Luigi interrompe as
palavras assim que ela eleva sua mão na direção do irmão.
— Per favore… — A mão livre é colocada um pouco abaixo
do seio a centímetros do coração. Lembro-me da fina cicatriz e me
questiono se houve algum incidente com a filha mais velha do
Zanchetta que não foi reportado ao Consiglio.
O barulho de passadas apressadas e vozes masculinas
adentrando na mansão Zanchetta, demonstram que o pequeno
dispositivo acoplado na fivela em meu cinto é tão efetivo quanto os
programas para invasão cibernética que Fausto vem
desenvolvendo.
Não sou covarde ao ponto de evitar o embate que
aconteceria por invadir a mansão do meu sogro. Bom… ex-sogro.
Mas não sou idiota ao ponto de não avisar meus irmãos o
local para me resgatar. Sem contar que usei de alguns
equipamentos do meu fratello para conseguir burlar a segurança
das câmeras, e subir mais de quatro metros até o quarto de
Francesca.
Acredito que Fausto sabe quando usamos qualquer um dos
seus brinquedos.
A porta logo é escancarada e quatro dos meus soldatos
acompanham meus irmãos.
— Vá embora — Francesca dá um passo para que passe
por ela. Fico tenso por um momento, sabendo que nunca mais mia
Bambola vai me olhar como antes. — Só vai.
Olho para tuo padre, indagando-me o motivo que me levou a
tanto.
— Vattene! — Signore Zanchetta acata ao pedido da filha.
Passo por ela sentindo sua fragrância uma última vez.
Cazzo!
Ergo a cabeça, encarando o casal Zanchetta como se
tivesse finalmente vingado a morte de minha madre.
Aproximo-me do meu clã que surgiu a postos para eventual
combate.
O que não vai acontecer.
A principessa violada, que devia reivindicar uma atitude pela
honra corrompida, deu seu golpe de misericórdia ao permitir minha
saída sem lutar.
Ela simplesmente aceitou seu destino.
Cazzo!
Mal consigo respirar. Ultrapasso o portal do escritório, sendo
seguido por mios fratelli. Assim que saímos, vamos direto para o
hangar no qual nosso jato nos aguarda.
Passado alguns minutos, ouço Fausto resmungar.
— È successo tutto come volevi?[228] — Ele senta-se ao meu
lado, a tonalidade da pergunta recriminando o que fiz.
Permaneço em silêncio, observando as nuvens espessas
possíveis de ver mesmo na noite escura.
E então penso numa resposta para mio fratello. O vazio
arranhando e me afundando na dor agoniante de minha alma.
È successo[229] tudo como planejei…
Mas não como eu queria.
FRANCESCA ZANCHETTA

O suspiro coletivo em meu quarto em resposta à cena na


qual Goo Won pede para Cheon Sa-rang dar mais voltas em sua
casa é a constatação de que estou na fossa. Perdi a conta de
quantas vezes assisti a série Sorriso Real e todas as vezes eu,
Michela e Valentina suspiramos.
— Nossa… Onde seu pai comprou esse sorvete, Tchesca?
Parece melhor do que o de ontem. — Valentina enfia uma colher
que me fez questionar várias vezes como consegue manter a
cintura tão fina.
Estamos nós três sentadas em minha cama, com um pote
de sorvete ao centro assistindo uma infinidade de doramas.
— Esse Mammina que fez — respondo.
— Sério? Zia Zanchetta aprendeu a fazer sorvete, é? —
Meneio a cabeça em positivo.
— Ela pegou a receita no Youtube e uma das damigelle a
desafiou a fazer. Disse que mammina não tinha força para conseguir
dar o ponto.
— Vou desafiar a zia com ganache — diz, lambendo a
colher.
— Não vai rolar essa semana. Ela ainda está à procura de
outra cozinheira. E como as pobres precisam passar por um teste
culinário, mammina não consegue fazer outra coisa — Michela
pontua.
— Não acredito ainda que Signora Rosa foi capaz de
espalhar o boato — mia cugina comenta sobre nossa antiga
cozinheira que falou mais do que devia para alguém que falou para
outrem e toda a famiglia agora sabe.
— Ainda bem que a fofoca saiu pela metade — Michela
emenda, enfiando a colher desajeitada e sou obrigada a segurar o
recipiente para não ter um creme de baunilha gelado por todo o meu
lençol. Nossa ex-funcionária disparou aos quatro ventos que Giulio e
eu havíamos rompido. Talvez tenha contado apenas metade dos
fatos por ter sido ameaçada a perder a língua.
Mas o estrago estava feito.
Eu era o mais novo escândalo da famiglia. Ou melhor… o
dito rompimento que ninguém sabia o motivo. Para todos, mio padre
teve certo desentendimento com o Sottocapo e por isso entenderam
por bem suspender o contrato.
Suspender…
Parece mentira, não?
A influência de papà tem amenizado eventuais cobranças
dos vecchi[230] e domigelle d’onore[231]. Não sei por quanto tempo,
mas o suficiente para encontrar uma solução.
O casamento, de fato, estava com data marcada para daqui
a alguns meses. Não haverá mais…
Respiro fundo e expiro o ar profundamente. Há uma
semana, tive meu castelo de princesa implodido com o homem-
bomba disfarçado de Giulio Moretto.
A destruição ocorreu de dentro para fora, posto que tudo
começou em meu quarto e terminou no escritório de papà.
Signore Zanchetta pediu para confiar nele. E assim tenho
feito.
Meus olhos ainda estão inchados pelo choro da manhã.
Uma rotina recém-adquirida. Mas no período da tarde, Valentina e
Michela aparecem, fazendo as lágrimas e tristeza diminuirem um
pouquinho.
As duas continuam seus estudos de manhã e estou me
restabelecendo para voltar à faculdade. Não que vá encontrar com
membros da Cosa Nostra, salvo Nino, mas preciso desses dias para
me recompor.
As palavras de Giulio dizendo que não se casaria com
alguém sem honra me corroeram por dentro.
Como sem honra?
Ele que tem sido um canalha desde a festa dos meus 15
anos na qual começou seu joguinho de sedução. E tudo para quê?
Para discutir com papà quando foi pego literalmente com a
boca em mim?
Bom… Na verdade foi Luigi que nos flagrou.
Enfim.
Aquela discussão ainda não sai de minha cabeça. Muito
menos o motivo no qual levou meu ex-noivo a conduzir a solução do
nosso pecado me chamando de troietta[232] e me descartando como
papel picado.
Não faz sentido…
Nada faz…
Os ciúmes que teve por saber sobre Nino Basile tendo aulas
comigo… Os encontros furtivos… A viagem para Monza… O pedido
para entrar em meu quarto…
Impossível alguém ter orgulho em excesso para jogar fora
uma história em razão de uma repreensão.
Impossível o Sottocapo da Cosa Nostra ser tão intolerante
em reconhecer seu erro que preferiu me desdenhar a assumir a
culpa. Impossível…
Todas as condutas de Giulio não condizem com o que
realmente fez.
Troietta…
Quando passei a vida toda dentro de casa seguindo as
regras e costumes da famiglia…
Eu deveria me tornar de fato uma scopatrice[233]como a
cugina Erica. Ela sim sabe como viver em nosso meio, pois
experimentou tantos prazeres quanto os homens e ainda assim não
foi obrigada a se casar com nenhum deles.
Desde que não saia com alguém compromissado, o que há
de errado em uma mulher se satisfazer sexualmente?
Nada. Absolutamente nada.
Ele chamou minha mammina de desonrada! Caspita! Minha
mammina!
Se não ter honra significa ser parecida com a Signora
Zanchetta, prefiro não ter honra alguma.
Sempre tive orgulho de ser a figlia de Annunziatta,
presidenta do Consiglio delle Damigelle. Não há mulher mais
honrada do que ela.
Papà tirou o meu celular para evitar qualquer contato com o
stronzo. Mas nem sequer precisava. Eu estou muito machucada
para pensar em conversar com ele. Minha intenção é bloqueá-lo de
vez de minha vida.
Por mais que parte de mim queira muito questioná-lo. A
outra está com o orgulho ferido.
Giulio Moretto é um farabutto[234] de merda.
Ele não merece minhas lágrimas. E quanto mais assisto
Goo Won na pele de Junho, mais tenho certeza disso.
— A gente não tem ligação nenhuma com a Yakusa? Me
casaria fácil com algum Junho — Valentina é quem lê meus
pensamentos. — Tudo bem que não são da Coreia do Sul, mas os
olhinhos puxados podem me fazer sonhar, hum?
Nós três rimos.
— Acho que eles não se casam com ocidentais, cugina.
Nem tente… — replico, ainda rindo.
Passamos o restante da semana entre meu quarto e a
cozinha para experimentar os testes das cozinheiras novas.
Na segunda-feira seguinte, decido retomar as aulas na
faculdade. Papà estranhou por me ver arrumada e disse que
precisava conversar comigo.
Pedi para discutir qualquer assunto quando voltasse. Eu
estava atrasada e por mais que fosse difícil, voltar a estudar me
ajudaria a manter a mente ocupada.
Não sei quando a dor vai passar. Às vezes abro os olhos e
penso como fui boba ao dizer a ele que o amava… que fiquei com
medo de perdê-lo, e que meu coração era dele.
Caspita!
Como fui boba.
Será que ele tem pensado em mim?
Será que tentou enviar mensagem, mas percebeu que o
bloqueei?
Dio Santo! Não posso alimentar esse amor. Não mais…
Sigo com as aulas do meu currículo, relutando se devo
participar do período no qual divido com Nino Basile.
Inspiro fundo e estufo o peito. No máximo ele sabe sobre a
aparição de Giulio durante a madrugada. O que poderia ser
qualquer assunto referente à famiglia.
Acomodo-me na carteira de costume que ainda possui
lugares vagos ao redor. Ele ainda não chegou. Ajeito meu Bookpad,
ordenando o livro, caderno e algumas canetas.
— Senti falta das suas anotações na última aula, dona
certinha. — A voz brincalhona me faz sorrir enquanto Nino senta-se
ao meu lado.
— Eu tive um contratempo. Então, quem vai precisar de
anotações aqui sou eu — replico, batendo uma caneta sobre o
caderno.
— Tenho até vergonha de mostrar, bela. Você é muito
organizada para a minha bagunça.
— Nem tanto. — O moreno abre o notebook e dispõe seu
material espelhado ao meu em sua carteira. Expiro um riso frouxo
ao notar a semelhança. Será que ele sempre fez isso?
Fico sem graça quando percebo que fui flagrada
observando-o. Passo a mão pelo cabelo, puxando uma mechinha e
fazendo uma pequena trança.
— Você está bem? — Sua voz soa preocupada.
— Claro… por que não estaria? — respondo sem encará-lo.
— Ah… não sei. Talvez porque seu sposo terminou o
noivado e seu irmão está pressionando-o para assumir o desafio na
cutelaria.
— O quê? — Minha voz sai um tom acima.
— Eu sabia. — O infelicce bate a mão sobre o livro,
indicando que era um blefe. Caspita. — Nenhuma damigelle iria
contra Signora Zanchetta sem motivo. Elas votaram sobre o local do
jantar de gala da primavera e nenhuma aceitou a sugestão de tua
madre. O que cá entre nós era o melhor, mas… — Nino para de
falar e me fita. — Eu sabia…
— Você não sabe de nada, Nino. Zitto[235], cazzo![236] —
comando.
— Então, o casamento continua com a data para daqui a
dois meses?
— Dois meses? — a voz na tonalidade mais alta é quase
um grito. — Ma che succede[237]! Essas damigelle não têm nada
mais para fazer não?
— Quando o assunto é a figlia da presidenta? — indaga
irônico. — Não.
— E como você está por dentro das fofocas das donne[238]?
— Porque mia mammina gosta de me manter informado. —
Ergo uma sobrancelha em desafio. — Ou eu gosto de ouvir atrás da
porta. Satisfeita?
— Você não devia fazer isso.
— É um hábito de sobrevivência. O Consiglio delle
damigelle[239] é a melhor central de notícias para conseguir uma
sposa[240].
— E você está procurando por uma?
— A que eu queria foi laçada. Mas sim. Estou. Sou o
Caporegime mais novo da Cosa Nostra. Para ter força no Consiglio
del Vecchios preciso estar casado.
— Então, você queria alguém, hein? — Empurro seu ombro,
brincalhona. — Me conta. Você mesmo disse que éramos amigos.
— E somos.
— Então, quem é?
— Você primeiro. Com quem gostaria de ser casar?
— Eu? Eu já tenho… Bom, você sabe — desconverso, não
querendo dizer em voz alta que estava feliz com minha escolha,
mas que agora não tinha mais um sposo[241].
— Me conta a verdade sobre seu rompimento com Giulio
Moretto, Francesca. Que eu te conto com quem quero me casar. —
Nino fala com seriedade na voz, demonstrando que sabe o que
aconteceu e que não comprou a ladainha que tentei manter a título
de aparências.
Desço o olhar para o teclado do Bookpad não querendo
encarar o azul intenso do seu olhar.
— Como você soube? — indago baixinho. — Papà disse
que ninguém sabe…
— Ninguém sabe, Tchesca. Só que eu não sou ninguém. O
comentário de um Soldato gerou a faísca e tive interesse em
descobrir.
Viro o rosto para o lado, envergonhada por ter sido
desmascarada por ele. Sempre vesti a roupagem da principessa da
máfia, casta e pura. O término de um noivado significava apenas
uma coisa: Eu perdi meu valor.
Tive esse ensinamento repetido tantas e tantas vezes desde
que era criança, que por mais irracional que seja no mundo
moderno, meu subconsciente insiste em me definir como um objeto.
O ser humano possui dignidade justamente por ser
impossível imputar-lhe valor. No entanto, na máfia, nascer mulher
significa não ter direito à dignidade humana, pois somos todas
valorizadas de acordo com o grau de inocência e capacidade de
procriação.
— Fui rejeitada pelo Sottocapo… — bufo o ar com um riso
triste. — Quem vai querer se casar comigo agora?
Estou tão imersa em autopiedade que não percebo Nino
Basile erguendo meu rosto para mirá-lo nos olhos.
— Eu me caso. Se você quiser… Assumo o lugar de sposo
e mantemos a data como todos pensam.
Pisco algumas vezes, demorando para me atentar ao que
Nino está oferecendo.
— Nino… — choramingo. — Você não precisa.
— Não. Não preciso. Mas eu quero.
Sou salva pelo desastre ambulante que é nosso professor,
entrando na sala e derrubando o material sobre a mesa como tem
feito todos os dias de aula.
Quando a explicação termina e somos divididos em duplas
novamente, Nino não insiste mais no assunto. Mas antes que eu
saia, ele segura meu braço.
— É só você dizer “sim”, Francesca. Pense sobre minha
proposta — faz de novo a oferta.
Abaixo a cabeça, respirando fundo. Em seguida, assinto
com um leve movimento de cabeça.
Não consigo assistir as próximas aulas, pois minha mente
está em um looping constante nas palavras de Nino. Madonna mia!
E agora?
Caminho pelo hall de entrada da minha casa tão distraída
que demoro alguns segundos para ouvir papà me chamando.
— Está tudo bem, figlia?
Saio do torpor e balanço a cabeça, vendo Signore Zanchetta
mais como um borrão em minha frente.
— Francesca?
— Sì papà, che succede?[242] — contesto, com um sorriso de
lábios.
— Venha em meu escritório, piccola. Precisamos conversar.
A última vez que entrei no cômodo destinado aos negócios
de papà, eu não tive uma experiência muito boa, por isso resisto um
pouquinho.
Entro com os ombros encolhidos, aguardando o pior depois
da conversa de Nino na faculdade. Se ele sabe… quem mais sabe?
— Figlia, sei que você quer continuar os estudos e não vou
proibi-la. Mas agora, nos próximos meses, preciso que se ausente.
— Sabia que as coisas iriam piorar.
Fecho os olhos, mantendo-me submissa e ouvinte.
— Sì, papà. Eu entendo.
— Bom. — Ele limpa a garganta, ajeitando alguns papéis
em sua frente. — Então, você vai aproveitar e fazer o tal intercâmbio
para a Inglaterra. Va benne? — Signore Zanchetta dispara rápido.
Arregá-lo os olhos surpresa com a mudança brusca de
cenário. Há um tempo vi a possibilidade de frequentar a
universidade de Cambridge e cheguei a mencionar para papà. Na
época, ele desconversou. Eu sabia que era um sonho no qual mio
padre não queria negar expressamente. E agora…
— Scusa[243]? Acho que não entendi.
— Sì, figlia. Você entendeu. Conversei com tua madre e
decidimos que o melhor a se fazer é mantê-la afastada por
enquanto. — Papà puxa o notebook para perto, digitando algo. Não
consigo ver a tela, pois está voltada para ele. — Você ficará em uma
casa segura da famiglia. Dario estará encarregado de sua
segurança com alguns soldatos. Per favore, figlia[244], não entre em
contato com o maledetto. Và benne[245]?
— O signore está me mandando embora? — choramingo,
sabendo que estarei praticamente em prisão domiciliar com Dario
em minha cola.
— Você não está indo embora, piccola. Só passará um
tempo fora. E poderá frequentar algumas aulas. Seu primo irá
acompanhá-la.
— Quanto tempo?
Signore Zanchetta hesita antes de me encarar e limpar a
garganta.
— Dois meses… talvez.
— E-eu… — Estou tão confusa que não consigo ter reação.
Não sei o que fazer…
— Tua madre irá visitá-la a cada 15 dias. Você ficará em
uma das casas da famiglia junto com tuo cugino[246]. Está tudo
acertado.
Dario sempre foi o mais rigoroso de todos. Será impossível
escapar de sua supervisão. É uma fração de liberdade com a
sombra eterna da famiglia.
Meu silêncio é o incentivo para papà estender alguns
papéis.
— Aqui estão os cursos que está matriculada. Não vai ter
tempo de pensar bobagens, và benne? — Mio padre pensou em
tudo.
Meneio a cabeça, encarando uma pasta de papel com a
logo da universidade e alguns estudantes na capa.
— Agora andiamo![247] Seu voo sai daqui a três horas.
— Hum? Da-daqui a três horas?
— Piccola… Per favore — Papà passa uma das mãos pelo
rosto em frustração. — Me ajude, tudo bem? Só consigo manter sua
localização em sigilo por um tempo. E é o que preciso para lidar
com Luigi.
É isso então… Mio fratello quer o desafio pela desonra.
Caspita!
— Tuo fratello[248] não é alguém fácil de controlar, mia cara.
É quando finalmente entendo porque o Caporegime de
Messina precisa me tirar do quadro. Ele precisa lidar com um filho
de cada vez.
Faço outro movimento de cabeça, contorno a mesa e
deposito um beijo na bochecha de papà.
— Mi dispiace, papà[249].
— Você não fez nada, piccola. Nada. Tenha essa viagem
como um presente, Va bene?
— Uh-hum — murmuro e vou para meu quarto. Não tenho
muito tempo para arrumar minha mala, afinal.
GIULIO MORETTO
UMA SEMANA ATRÁS

Mal adentro o escritório na mansão dos Moretto e sou


recepcionado com um solavanco, conforme o punho do Don é
direcionado ao meu rosto.
— Mas que caralho você pensa que fez, Giulio? — Mio
padre questiona na sequência, chacoalhando a mão utilizada para
me golpear.
Por acaso estou em uma dimensão paralela na qual as
pessoas pensam que podem me bater sem retaliação?
— Che succede, papà?[250] — Limpo o canto da boca que
voltou a sangrar. Mais cedo já estava cuspindo sangue na casa de
Francesca, agora de novo aqui?
— Che succede? Está maluco, stronzo? — devolve. — Por
que diabos Zanchetta disse que estava no quarto de sua sposa?
— Eu fiz o que qualquer uomo[251] faria — replico, como se
estivesse tendo uma conversa banal. — Fui convidado para o quarto
de uma ragazza, e aceitei.
— Uma ragazza que é sua sposa, infelicce! E ainda foi pego
por sua famiglia! — Don Moretto gesticula.
— Ela insistiu melhor na festa do seu zio Demetrio. —
Encaro minhas unhas. — Não pude resistir. — Minto, sentindo-me o
pior carcamano de todos os tempos.
Cazzo![252] Remexo-me na cadeira, recordando do olhar
cabisbaixo e triste de mia Bambola.
Carcamano é pouco para aquilo que fui.
Como pude compará-la a uma troietta[253]. Ela nunca foi uma.
Sua atitude compassiva, aceitando o destino em ser
deflagrada perante seu clã gerou sentimentos que não sei como
lidar. Eu estava preparado para tudo, menos aceitação.
Mio padre parece incrédulo, puxando os fios brancos de sua
nuca e debruçando sobre a mesa de carvalho.
— Por que você fez isso? — Don Moretto bate a mão sobre
a mesa, repetindo o gesto de Signore Zanchetta.
A imagem do homem raivoso e da mulher que apareceu
chorosa, exigindo que limpasse a honra de sua filha ressurge em
minha mente como o alimento para argumentar meus motivos.
— Talvez porque o corno Zanchetta não teve culhões para
limpar a própria honra quando ouviu você se declarar para a
esposa… nesta mesma sala? — Abro os braços, indicando o lugar.
Até então não havia me dado conta de que meus irmãos
também estavam na sala como plateia.
— Do que você está falando, stronzo? — mio padre
realmente parece em dúvida.
— Estou falando da festa que o Signore deu para sair do
luto após a morte de mammina — esclareço. — Naquela noite, eu o
ouvi muito bem quando se declarou para a Signora Zanchetta.
Don Antonio esfrega a testa, resmungando alguns
palavrões.
— Será que mammina estava tão enganada no dia em que
morreu te acusando de traição, Papà? — Certa comoção masculina
me faz repensar se deveria continuar. Porém, já joguei a merda no
ventilador.
O olhar de mio padre está perdido em uma órbita de
compreensão como se algo lhe fosse revelado.
Possivelmente está recapitulando todas as minhas atitudes
quanto à escolha de minha noiva.
— Você não sabe o que ouviu — comenta, decepcionado.
Não sei se comigo, ou com a situação como um todo. — Não tem
noção da verdade.
— Sì, eu tenho. Mia madre te amava. — Engulo o nó da
garganta. — Ela sempre te amou e você… você, papà… nunca
correspondeu.
Ele se enerva e sobressalta, passando a caminhar pela sala.
— Tua madre era louca, Giulio. Perdi as contas das vezes
que vocês e seus fratelli sofreram risco de morte nas mãos dela.
— É mentira! — grito. Papà me dá as costas, murmurando
consigo e pedindo paciência para Deus como o vi fazer tantas vezes
quando eu era bambino.
Só que agora eu não sou um bambino. Io sono um Uomo
d’onore .[254]

— Você sabe quantas vezes tive que tirar Fausto e até


mesmo Maximus de algum lugar perigoso, Giulio? — questiona. Ele
não precisa ir por este caminho. Eu sei muito bem… — Quantas
vezes cheguei a nossa casa após Isabel me telefonar, dizendo que
não sabia onde vocês estavam?
Lembro-me de muitas das vezes que mammina me
escondeu e eu esperava para procurar mios fratelli. Algumas delas
parecem borrões, outras são mais nítidas.
— Por acaso se lembra quando Chiara te trancou no quarto
do pânico e programou para ter apenas cinco minutos de ar? Hum?
— Esta é uma das vezes que minha mente tornou a recordação
como um borrão.
Balanço a cabeça em negativa.
— Ela ia te matar, figlio. — A voz de papà está trêmula. —
Eu quase… mio figlio… tua madre ia te matar se eu não a colocasse
na clínica.
Como um filme com imagens cortadas, a lembrança retorna
e o quarto do pânico ressurge vívido em minha memória.
Merda! Lembro quando… ficou difícil respirar. Minha mão
sobe em meu pescoço instantaneamente. Havia uma voz
sussurrada, incentivando-me a continuar forte… que logo tudo
ficaria bem. Isabel… Era a Signora Isabel que me dava esperanças.
— Depois daquele dia, desativei o quarto. Na verdade, eu o
destruí. Tuo zio Marcelino foi quem veio naquela noite. Eu estava
em alto-mar e tua madre com a loucura que vivia pensou que
colocando você em perigo eu voltaria antes. — Don Moretto passa
uma das mãos sobre o rosto. — Ela vivia em um mundo no qual
arriscar a vida dos nostri bambini era o método para me fazer
aparecer. — Ele senta-se no canto da mesa. — Eu não podia estar
presente e ser o Don da Famiglia, Giulio. Você deve saber disso
agora.
— Ela nos amava… — ainda contesto, duvidando, mas
contesto.
— Tua madre era doente, cazzo! Ela foi diagnosticada com
a síndrome de Borderline[255] cumulado com psicopatia. — Papà
avança, segurando meus ombros. — Aquilo não era amor, figlio. Era
uma doença.
— NÃO! Você está errado… — contraponho como um
ragazzo mimado.
— Giulio… — Agora ouço Fausto, um passo à frente
balançando a cabeça em negativa. — Você sabe… — Aperto as
pálpebras, não querendo que continue.
Sim… Eu sei, mio fratello. De nós três, Fausto é quem pode
ter alguma lembrança dos dias sombrios de mammina.
— Escute, figlio. Por mais doente que sua madre fosse,
nada do que você ouviu é o que parece.
— Eu ouvi…
— Escute! — mio padre empertiga erguendo parte do corpo
da cadeira para me fazer calar. Ele solta uma expiração longa e
esfrega a lateral da cabeça. Um minuto depois, volta a se sentar
atrás da mesa. — Eu nunca traí mia moglie. E jamais faria algo do
tipo. Sou o Don da Cosa Nostra e devo respeito à famiglia.
— Mas… no dia em que ela morreu, disse…
— Ela não estava errada ao dizer sobre meu amor por
Annunziatta.
O pequeno clamor de meus irmãos deveria ser motivo de
orgulho pela constatação da verdade que venho exigindo tirar de
papà. Todavia, como o que aconteceu horas mais cedo na casa dos
Zanchetta, meus sentimentos tendem a se tornar contraditórios.
Cazzo!
— Mas… — ele acrescenta: — O amor que sinto por aquela
donna me fez aceitar a sua escolha.
— Como? — Faço uma careta, querendo tudo menos seguir
com o questionamento a seguir: — Você aceitou que outro homem
criasse o seu filho com a mulher que amava?
— Mio figlio? Que figlio?
— Luigi Zanchetta, papà. Ele é tuo figlio… nostri fratello —
Aponto para mim e meus irmãos.
Don Moretto bufa um riso fraco… decepcionado, até.
— Como eu queria que fosse verdade, caro mio. Mas não.
Luigi não é tuo fratello. — Sinto como se recebesse pancadas na
boca do estômago diante de cada presunção que julguei verdade
absoluta por anos. — Luigi é figlio de Enrico Zanchetta. Eu pedi para
Anunziatta abandonar o marito no jantar que saí do luto. Mas… ela
não quis.
— O que faria com o pai de Francesca? — Fausto é quem
formula a indagação.
— Daria um jeito de desafiá-lo e mataria na cutelaria.
Depois, me casaria com a mulher da minha vida. — Don Antonio dá
de ombros com a saída mais fácil.
— E por que… não fez? — retomo o interrogatório.
— Ela me pediu. — De novo fico sem entender, piscando
confuso.
— Antes do meu compromisso com tua madre ser
oficializado, cortejei Annunziatta. Bom… eu e metade dos ragazzi[256]
da época. — Mio padre fica com o olhar perdido em meio às
recordações. — Por fim, sua escolha ficou entre mim e Enrico.
Mas… — ele estala a língua. — Mio padre fechou o acordo com a
Camorra. Então, ela casou-se com Enrico e se apaixonou por ele.
— Eu ouvi sua conversa no jantar depois do luto — informo.
— E…
— Tentei conversar com Annunziatta, pedindo uma segunda
chance. Não me importava de criar Luigi. Eu já era pai de três —
Don Moretto aponta para nós.
— E ela não aceitou, porque Enrico Zanchetta apareceu no
escritório — constato o óbvio, posto que o homem havia me
mandado retornar ao quarto. Mas depois aceitou a ofensa do seu
Don e não limpou a honra de seu clã.
Papà me fita intrigado.
— Ele não apareceu em meu escritório — relata. — foi
Annunziatta que me pediu para esquecê-la, pois amava o marido. —
Don Moretto expira o ar saudoso. — Então, percebi que tinha
perdido. Entenda, figlio, eu amava Annunziatta ao ponto de querer
vê-la feliz, mesmo que fosse com outra pessoa. Ela escolheu
Enrico. Eu só pude respeitar sua decisão como prova do meu amor.
Por isso, quis esconder de todos meus sentimentos. Não devo ter
feito um bom trabalho, já que olha a merda que você fez.
Agora a atenção de todos volta-se para mim. Desvio o olhar,
encarando a porta e fazendo um cálculo mental do tempo que
levaria de volta até a casa de Francesca.
Quantos socos eu teria que levar para o irmão dela me
deixar vê-la?
Não que esteja angustiado pela possibilidade em perder mia
Bambola. Não. É pelo fato de ter infligido dor a uma pessoa
inocente. A uma das mulheres da Cosa Nostra que jurei respeitar
quando me consagrei Uomo d’onore[257] aos 13 anos.
— Por acaso quis desonrar a ragazza Zanchetta pelas
mentiras de tua madre? — Meu plano dito em voz alta aparenta algo
mesquinho e pequeno. Se não fosse a visão distorcida do mundo no
qual nossa vontade é o poder e submissão de muitos, papà poderia
me recriminar. Afinal, foi ele que me doutrinou a impor minha
verdade sobre a de todos.
— A minha vontade impera… — justifico.
— Enquanto a famiglia prospera. — Ele termina o princípio
crucial da Cosa Nostra, cujo qual repetimos todos os dias durante a
iniciação e reuniões do Consiglio. — Você vai se casar com
Francesca.
— Ela não quer mais se casar comigo — digo, olhando para
baixo.
Eu preciso de uma noiva, afinal. Sou o Sottocapo e futuro
Don, segui todos nossos costumes e escolhi Francesca dentre
tantas. Não importa os reais motivos agora. Ela é minha.
— Ela não tem escolha. Você a desonrou.
— Signore Zanchetta não pareceu se importar com a
decisão da figlia quando ela me devolveu o anel — Ergo a aliança
de Francesca, querendo que papà me mande de volta para enfiar
novamente em seu dedo.
Por mais que esteja parecendo como um bambino sendo
encurralado, o que mais quero é retornar até mia Bambola e
consertar toda essa merda.
— Ah, figlio… hai fatto una grande merda[258]. — Papà passa
uma das mãos pelo queixo, pensativo. — E se bem conheço o
orgulho dos Zanchetta, ou você corre; ou vai perder a mulher da sua
vida.
Então, mio padre sai do escritório deixando-me para trás
sem reação.
Como ele sabe que Francesca é a mulher da minha vida?
Ela era um meio para um fim. Pode se tornar mia moglie. Mas o
amor é uma doença ou um fardo para nosso clã. E não quero
nenhum dos dois para mim.
— Hai fatto tutto[259] isso só para se vingar? — Fausto
questiona, puxando a cadeira e sentando-se ao meu lado.
Jogo as costas no espaldar, cruzando os braços e
recusando-me a responder.
— Nossa… Eu sabia que você estava obcecado por tua
sposa, ou ex-sposa[260]… Mas querer que o irmão mais velho seja do
nosso sangue? — Maximus solta um riso de escárnio. — Foi um
pouquinho demais, não foi? — Ele aperta meu ombro num gesto de
consolo.
— Zitto![261] — comando de pronto.
— Oppure?[262] — brinca e tento dar-lhe um soco, ainda
sentado. Mas Maximus é ágil, e desvia. Estou lento, pois estou com
as costelas doloridas por conta dos chutes de Luigi.
— E agora? O que você precisa? — Fausto indaga,
aguardando instruções para me ajudar. Pressiono os lábios,
balançando a cabeça em negativa.
Eu precisava limpar a merda sozinho.
— Beleza. Então não vamos voltar para Messina oggi[263]? —
Maximus indaga, pegando o celular e digitando uma mensagem na
sequência. — Vou sair com minha gata.
— Você devia parar de ver a polizia — aviso-o.
— E você não devia foder a sposa antes do casamento. —
Mio fratello retruca mantendo a atenção no visor luminoso e sorrindo
para algo. — Mas olha só! — Ergue o olhar para mim. — Somos da
máfia e não fazemos nada do que somos ditos, então… — Ele
cantarola e dá um aceno com dois dedos, batendo uma continência
invertida. — Corre atrás da tua donna[264], que eu corro atrás da
minha.
E antes que consiga contestar, estou somente com Fausto
no escritório de papà.
Respiro fundo, sentindo o ar castigar minhas costelas.
— Vamos, fratello. Eu te dou uma carona. — O irmão
ajuizado oferece. — Chegando na cobertura, pedimos pizza.
— Você pode descer depois do jantar para seu apartamento,
Fausto. Não estou com o coração partido.
— Melhor tirar seu acesso a qualquer meio de comunicação
até formar um plano, Giulio. Dessa vez, me diga o que está fazendo.
— Mio frattelo balança a cabeça para os lados como alguém que
repreende un bambino[265]. — Pelo visto, planejar uma vingança
sozinho não saiu como esperado. — Ele diz sem sorrisos, porém
sinto a pontada de sarcasmo.
— A famiglia não ficaria contra mim se mantivesse o
rompimento — constato para Fausto.
— Fratello, você não faz ideia da força que o clã Zanchetta
possui no Consiglio. Se eles se juntarem com as pessoas certas,
você não perde só o cargo de Sottocapo.
Começo uma caminhada árdua ao seu lado, guardando a
informação. Fausto é um dos melhores hackers que conheço e um
dos dois homens que mais confio no mundo.
— Não vou mandar mensagem para ela.
— Mudei a senha do seu celular, fratello. Esta noite você só
recebe mensagens e ligações.
— Figlio di puttana!
— Mesma madre que a tua.
Passo o caminho todo de volta para nosso prédio querendo
estrangular mio fratello. Mas ele tem razão.
Preciso de um plano para ter mia Bambola de volta.
Não vou perder o cargo de Sottocapo, muito menos
prejudicar minha ascensão futura como Don.
Se para tanto precisasse casar com Francesca Zanchetta,
que fosse.
O motivo que Fausto apontou foi suficiente para aplacar o
incômodo que estava sentindo por querer mia sposa de volta. É
apenas para manter a chefia da Cosa Nostra dentre os Moretto.
Nada a mais.
FRANCESCA ZANCHETTA
2 MESES DEPOIS.

À medida que o avião tocava o solo do Aeroporto de


Catania, uma onda de emoção tomava conta de mim. Eu estava de
volta. Dio Santo!
— Você vai comer isso? — Dario aponta para o pacotinho
de amendoim que havia deixado no bolso do assento à nossa
frente. Nego com a cabeça e meu cugino mais que depressa pega,
colocando no bolso interno do blazer.
Durante o voo, notei que ele estava menos tenso do que
esteve na viagem de trem até Londres. Nosso voo sairia às dez da
noite e mio cugino estava apreensivo. Um figlio da máfia sabe o que
esperar quando o sol se esconde. E, de acordo com o aplicativo de
clima, seria dez minutos antes das sete. Chegaríamos antes, porém
nada que dizia parecia diminuir sua carranca.
Finalmente ouço o agradecimento do comandante. Sorrio.
Quando a porta da aeronave foi aberta, sentimos a brisa quente, e
era palpável a ansiedade crescente no olhar de Dario. Ele, apesar
de seu jeito rabugento, foi uma companhia agradável durante meu
isolamento de dois meses.
À medida que avançávamos pelo terminal, meu peito se
enchia de alegria. Logo, eu estaria abraçando mammina, papà e
Michela. Caso Luigi permita, lhe darei um abraço também.
Meu relacionamento com mio frattelo ficou estranho após o
episódio com Giulio. O flagrante constrangedor fez uma fissura entre
nós. Ele não falou comigo em nenhum momento. Via as mensagens
que enviava para Dario vez ou outra, questionando se eu estava
bem.
Luigi poderia me ligar. Apenas o clã Moretto sabia o meu
novo número de telefone. Então… por quê?
Sabia o quanto o havia magoado, porém me evitar não
mudaria o passado. Eu fui imprudente com minha virtude. Confiei no
diabo e quase causei uma tragédia.
Espero que a saudade seja favorável para conquistar o
perdão de mio frattelo. Não vou suportar viver sendo ignorada por
ele.
— Por aqui, Tchesca. Um Soldato já pegou nossas malas.
Só precisamos chegar até o carro. — Dario mostra o visor do celular
com um pequeno mapa indicando por onde seguir.
Mio cugino[266] acabou tendo uma aproximação forçada
comigo. Eu me inscrevi nas disciplinas de Política e História. Não
que tenha me formado nessas matérias, até porque é impossível tal
façanha em dois meses. Mas por serem cursos de férias houve o
enfoque em certos temas.
Acredite se quiser, Dario Zanchetta gosta de história da arte.
Estudamos alguns artistas da Renascença e qual foi minha surpresa
quando mio cugino sabia as datas de nascimento e sepultamento de
todos os artistas abordados, suas obras e até mesmo as intrigas da
época.
Ele sempre estava comigo como um bom vigilante. Ninguém
se aproximava frente sua presença imponente e tamanho
amedrontador. Dario recebeu ordens para me manter segura e fora
do alcance de qualquer outro clã que não fosse o Zanchetta.
No entanto, perguntou mais de uma vez se eu queria saber
o que estava acontecendo na Sicília. Tradução: quer saber sobre
Giulio Moretto?
O aparelho conferido a mim estava clonado a outro no qual
papà tinha acesso. Quaisquer contatos através dele eram
monitorados. Eu sabia que estava sofrendo as consequências por
me deixar envolver. E sabia que meu retorno era sigiloso.
Dario tinha a incumbência de me acompanhar até Messina,
para só então, retornar para casa e ver tua madre. Zia Eleonora nos
visitou mês passado com mammina. Mas diferente do que papà
havia me garantido, Signora Zanchetta não pôde ir até a Inglaterra
com a frequência ofertada antes do meu embarque.
Mio cugino informou que estavam monitorando os passos de
todos próximos a mim. Manter-me fora dos holofotes foi mais
importante. Como fui eu a responsável pelo isolamento, aceitei.
Orei copiosamente para que a oferta de papà não cumprida
à risca fosse apenas as visitas de mammina. Por mais que tenha
gostado da experiência vivida fora das muralhas da Cosa Nostra,
meu coração estava pequenininho com a saudade.
Queria o aconchego do meu lar. Os abraços apertados da
Signora Zanchetta, ouvir a risada alta de Michela, assistir às saídas
clandestinas de Luigi pela janela, conversar com papà…
Caspita!
Eu precisava da mia famiglia, Os Zanchetta, tão somente
eles.
— Bom, cugina. Agora é relaxar e aproveitar a viagem de
mais uma hora — Dario pisca, mais descontraído.
Ele estava feliz por estar de volta. Passo o tempo todo
admirando a paisagem de nossa terra não querendo perder
qualquer detalhe. Estava cansada por viajar a noite toda, mas minha
ansiedade em chegar não permitiu que fechasse os olhos.
No instante em que vejo os arredores de Messina, não me
contenho e abraço mio cugino. Ele me acolhe, soprando um leve
sorriso no topo de minha cabeça.
A limusine ultrapassa os portões de ferro com alguns
soldatos nas guaritas. Até o movimento da câmera de segurança
mexe com meus nervos ansiosos para descer e rever a todos.
Não aguardo a porta ser aberta e salto em direção à entrada
que parecia me aguardar escancarada para o jardim.
Vejo mammina vindo ao meu encontro com Michela ao seu
lado e os dois homens logo atrás. Corro e abraço mia mammina
encaixando-me abaixo de seu queixo como se ainda fosse uma
bambina.
— Oh… piccola… figlia… — A voz da Signora Zanchetta sai
embargada.
— Tchesca! — mia fratella grita empolgada. — Senti tanto
sua falta, frattela. Tanto… — ela diz chorosa.
— Eu também, cara mia. Io anche[267]. — Queria que meus
braços se alongassem para circular as duas donnas o máximo que
conseguisse para nunca mais soltar.
— E de tuo padre, não sentiu falta, ragazza? — Signore
Zanchetta indaga de modo brincalhão.
— Sì… papà! — E volto-me para o homem de braços
estendidos e um sorriso amistoso. Não há mais a carranca de
alguns meses atrás. Respiro aliviada, sentindo o calor
proporcionado pelos braços de papà.
O arranhar de garganta nos tira da emoção e então vejo
Luigi, fitando a parede com as mãos atrás do corpo.
— Voglio anche un abbraccio[268], piccola — o apelido sai
baixinho após uma tossida que demonstra a dificuldade de mio
frattelo em expor suas emoções.
Não espero outra oportunidade e pulo, pendurando-me pela
nuca de Luigi que ri da minha atitude exagerada.
— Sentimos sua falta, frattela… — acrescenta, com a voz
rouca, disfarçando o máximo que pode seus sentimentos. Sorrio,
pois pensei que o havia perdido.
Não o perdi. Giulio Moretto pode ter destruído meu mundo
cor-de-rosa, mas nem sequer arranhou o mundo real. E este no final
das contas, é o que vale.
Afasto-me um momento, secando as lágrimas de felicidade
que escorreram por meu rosto.
— Bueno… Il mio servizio è finito[269]. Posso ir, capo? —
Dario solicita.
— Pensei que fosse ficar para o pranzo[270]? — mammina
indaga, um pouco desapontada.
— Grazie, zia. Mas preciso ver mia mammina. A outra
signora Zanchetta está me bombardeando de mensagens. — Ele
ergue o celular, mostrando os quadradinhos subindo
incessantemente.
Mia mammina ri.
— Va benne. Eu entendo.
— Está dispensado, Soldato. E grazie, nipote[271]… por
cuidar de tua cugina[272]. — Mio padre responde. Dario assente com
a cabeça.
— Fino a sabato, zio. Arivederci[273].
— Arivederci, ragazzo. — papà devolve, parecendo
incomodado por ser relembrado de algo. Olho para os demais entes
de minha família que procuram encarar minhas malas, as paredes,
menos a mim.
— O que vai acontecer sábado, papà?
— Nada que precise discutir agora. Talvez após o almoço —
determina, dando um passo apressado e afastando-se, bem como
Luigi que segue ao seu encalço.
Volto-me para mammina que corre para demandar em
coordenadas para nossos funcionários mais rápido que o normal.
Primeiro, ela determina que minhas malas sejam levadas para o
quarto, na sequência, indaga se os ingredientes para o cardápio
foram comprados. É uma onda de ordens e “sì, signora” que tenho a
impressão de estar se ocupando para não me encarar.
— Então… Michela. — Desisto de mammina e persigo o
polo mais fraco. — O que vai acontecer no sábado?
Ela ameaçar fugir, mas sou rápida em agarrar seu braço.
Fito mia frattela com as sobrancelhas erguidas.
— Papà disse para não falar nada. Ele quer conversar com
você antes.
— Papà não está aqui agora…— Aponto para as laterais.
Não há mais ninguém ao nosso redor.
— Tchesca… — fala com entonação de alerta. Mantenho o
rosto inflexível, talvez forçando as sobrancelhas mais um pouco. —
Ai, para! Essa sua cara mais parece que estou em um filme de
terror.
— Poi parla…[274] — insisto.
— Va benne. Mas vou só dizer o evento, va benne? Nada
além.
— Aceito suas migalhas — replico brincalhona, ficando
momentaneamente com remorso por persuadi-la, porque mia
frattela altera a feição para algo apreensivo. Medo até.
— Um casamento — fala rápido demais.
O quê?
Casamento… e por que ninguém que falar a respeito
comigo?
— E todos vocês estão fazendo esse dramalhão todo para
me contar? Por quê? — A realização me atinge como uma pedrada
levada na testa e causando não um hematoma, mas a perfuração
do crânio.
Perco por alguns segundos a mobilidade do maxilar, ficando
com a boca aberta de surpresa. Não pode ser…
Será que…
Tento encontrar a resposta nas feições de Michela. Ela
abaixa a cabeça, sentindo-se culpada.
Madonna mia! Non ci posso credere.[275]
Minha liberdade acabou.
Saio do assombro com um balançar de cabeça e não
aguardo nenhum minuto sequer, correndo em direção ao escritório
de papà. Ouço Michela tentar me acompanhar, resmungando que
não devia ter falado nada. Abro a porta num baque, sendo encarada
pelos dois homens que deveriam estar no topo da lista para me
proteger.
Papà encara Michela com um semblante acusatório. Mia
frattela pressiona os lábios e movimenta um dos lábios como um ato
de redenção. Viro para mio padre.
— Quem vai se casar, papà? — questiono de pronto.
— Michela… Non sei capace di tenerti un cece in boca[276] —
ele acusa a delatora.
— Vocês me deixaram sozinha com lei[277]. Eu disse que não
conseguia guardar segredo.
Ele bufa o ar, mostrando sua indignação com a língua
comprida de mia frattela. Após um breve momento no qual o
Caporegime de Messina respira profundamente cinco vezes — sim,
eu contei —, a história da qual queria ter me livrado começa a ser
contada.
— Você não sabe o quanto tentei, mia figlia. Mas foi
inevitável. Tuo frattelo não parava de acusar de farabutto o infelicce
Moretto.
— Não coloque a culpa sobre mim, papà. Nada disso estaria
acontecendo se… — Luigi assume uma postura de embate,
erguendo o dedo em riste. Mas não deixo para trás, emendando o
seu “se” com algo que os surpreende.
— Se eu tivesse nascido homem! — elevo a voz, cansada
de ser tratada com o recato das mulheres da máfia.
Che cavolo![278] Se tivesse um pau entre as pernas meu
destino não passaria das mãos do meu pai para de um marido.
— Francesca, — papà não está mais afetuoso como antes
— você deve respeito aos uomini di questa casa[279]. Não fale contra
tuo padre e tuo frattelo.
— Vocês continuam me vendendo! — pontuo, agora
chorosa. Sento-me derrotada à cadeira em frente à sua mesa.
— Desta vez, a opção era um casamento ou a morte do seu
irmão. — papà gesticula para Luigi. — Precisávamos de um ato
para retomar sua honra e manter o respeito na famiglia. Nossas
tradições existem por um motivo, piccola.
— E precisa ser casamento? Quando fui embora nem ao
menos tinha mais um sposo.
— E você ficaria surpresa se soubesse da fila de
pretendentes que surgiu com a notícia do rompimento entre você e
Giulio.
Esfrego meu rosto querendo acordar desse pesadelo. Em
seguida me dou conta e arregalo os olhos, encarando meu pai na
sequência.
— Pretendentes?
Papà acena com um sorriso convencido.
Oddio![280]
A fala de Nino Basile vem de imediato em minha mente.
Ele…
— Francesca? Piccola? — Mammina surge no batente da
porta, me procurando completamente alheia à conversa. — Venha
tomar um banho e descansar, figlia.
Não vou começar a discussão novamente apenas para
incluir mammina no banco dos réus.
Respiro profundamente, fechando os olhos e contando até
vinte conforme meu peito sobe e desce devagar.
Levanto-me com cautela e sigo signora Zanchetta.
Não vou poder resolver nada agora.
Não vou ter de volta o controle de minha vida.
Papà permitiu que eu tivesse um gostinho de liberdade para
depois passar a foice sem restar uma folha de esperança.
Minha vida voltaria a ser um mero objeto de troca.
A única diferença?
Eu não sou a mesma.
FRANCESCA ZANCHETTA

O vestido de noiva é o mesmo que namorei por tantas vezes


e mostrei para Michela como meu favorito nas revistas que
mammina comprava.
O modelo é basicamente uma réplica daquele usado pela
Duquesa de Cambridge, Kate Middleton. Suspiro enquanto aliso a
saia do vestido, não sentindo a emoção que esperava ao vesti-lo.
Mas é o vestido perfeito. Tentei ver outros, inclusive da mesma grife,
Alexander McQueen.
Caspita! Até da mesma estilista, Sarah Burton. Nenhum me
encantava como o clássico da Duquesa. Todas as vezes que
brincávamos em definir algum modelo que seria o escolhido, era
este que ganhava minha atenção.
Meus olhos teimavam em cair nas modelos que usavam o
vestido, independentemente da revista. Eu admirava como o colo
rendado ia até o pescoço com um leve decote. O corset justo que
acentuaria minha cintura e a saia levemente rodada com as rendas
desenhadas em arabescos na barra. Tudo no vestido era perfeito. A
calda longa o suficiente para me acompanhar até o altar, mas não
descomedida para alcançar a porta da igreja.
Eu conseguia me imaginar exatamente como estou agora
me encarando no reflexo perfeito. Posso afirmar que a visão foi uma
premonição que tive. Somente a sensação de melancolia e tristeza
não é.
Quando fui prometida para Giulio, tive medo por ser nova
demais. Mas ele soube deixar uma faísca para uma adolescente
criar fantasias. Em nosso noivado, ele me deixou desejosa com os
toques íntimos que tivemos. O medo ainda existia.
Após Monza, mio ex-sposo[281] me fez acreditar que
poderíamos ser algo mais… até não ser.
Remexo para os lados, testando o movimento da saia. O
peso do tecido a faz oscilar bem pouco. Ajeito uma mecha do cabelo
que caiu do penteado colocando atrás da orelha. A coroa de pérolas
e brilhantes compõem o looking da realeza. Bom… não deixo de ser
uma princesa, afinal.
Inspiro profundamente e emito uma expiração audível, sem
receio de ser ouvida no cubículo em que aguardo papà. Ele está
com mammina dentro da igreja recepcionando os Caporegimes para
depois vir até mim.
Encaro o buquê de rosas vermelhas sobre o móvel acostado
na parede e penso em Giulio. Sua cor preferida.
Suspiro novamente, colocando para fora a frustração em me
sentir vazia. Engulo em seco e sinto as pernas tremerem enquanto
me preparo para caminhar pelo corredor. Eu tenho que ser forte,
tenho que fazer isso
O ranger da porta pesada de madeira me tira do delírio. Vejo
mio padre entrar e seu rosto brilhar assim que me vê. Ele não
parece que está levando a figlia para o abatedouro.
O que eu queria?
Papà é um homem criado nos moldes patriarcais da Cosa
Nostra. Casar sua filha com alguém de alta patente é o melhor que
poderia conseguir por mim. Pelo menos, para os conceitos que
acredita.
Após o embate que tivemos no dia da minha chegada, evitei
conversar sobre meu casamento. Idiotice, eu sei. Mas falar a
respeito o tornava real, e de certo modo, eu queria imaginar que não
era.
Todos aderiram ao meu pedido implícito, pois perceberam a
minha intenção e respeitaram quando eu mudava o assunto
repentinamente. Precisei fazê-lo três vezes e o recado estava dado.
Todavia, não ouvir a respeito pelos corredores, ainda mais
quando passava por perto do escritório de papà, tornou-se uma
tarefa impossível. A única coisa que consegui foi evitar ouvir o nome
do sposo substituto. Minha teoria deveria estar correta, porque era
alguém de alta patente.
No caminho para igreja, comecei um mantra para profetizar
que seria feliz no casamento com Nino Basile. A convivência
poderia me fazer apaixonar novamente e esquecer quem me
machucou.
— Está pronta, piccola? — Mio padre sorri aberto, todo
pomposo em seu smoking de festa preto. O diferencial do dia de
hoje está no cravo branco pinçado na lapela do paletó.
— O máximo que consigo estar… — praguejo baixinho.
— Andiamo! Não será tão ruim assim. Tuo sposo é novo e
as donnas afirmam que é bonito. Sabe que homens não acham
outros bonitos, não é, piccola? — Papà tenta fazer uma brincadeira
infeliz.
Confesso que estou tão exausta emocionalmente que não
consigo elaborar uma resposta, então apenas aceno com a cabeça.
Signore Zanchetta caminha e pega o buquê entregando-o a
mim e estendendo o braço esquerdo para me conduzir.
Seguro o arranjo de rosas como se fosse meu colete salva-
vidas. Deveria ter pedido para a florista não ter tirado os espinhos,
agora poderia estar apertando para sentir uma dor diferente daquela
que dilacera meu peito.
O pensamento masoquista some assim que visualizo as
portas duplas. Meu coração cavalga acelerado em meu peito ao
ouvir o início da marcha nupcial com o volume que ecoa através da
madeira grossa.
É agora…
Assim que é tocada a segunda estrofe, as portas são
abertas e ouço o levantar de corpos da assembleia que se volta
para nossa entrada. As luzes do ambiente me cegam
momentaneamente. Ainda é dia e o sol das onze horas da manhã
castiga os vitrais, mesmo sendo imagens coloridas de anjos.
Meus olhos se acostumam em segundos e posso ver a
passarela enfeitada com um tapete vermelho e arranjos de rosas
brancas que intercalam dentre um banco e outro. Continuo
analisando cada detalhe, até alcançar o altar.
Mia mammina está chorando em seu vestido de renda rosé,
segurando a mão de Michela, que está linda no vestido bordô
escolhido para minhas madrinhas, outras duas ragazze estão ao
lado, mas não identifico quem são. Sei que Valentina é uma delas.
Antes que passe o olhar para os padrinhos, deparo-me com
a figura masculina e imperial de costas para mim. O sposo não
deveria estar de frente para receber sua noiva?
Ele está com as mãos nos bolsos do terno, mirando seu
olhar para o Cristo crucificado acima do altar. É o que consigo
perceber pela elevação de sua cabeça. Os cabelos escuros
penteados perfeitamente para trás, brilham por conta do gel.
Por fim, mio sposo inicia sua virada triunfal para a entrada.
Neste instante, o mundo parece estar em câmera lenta. O
sorriso presunçoso é a primeira coisa que meus olhos enxergam,
subindo em seguida para o olhar escuro que me confundia, ora
terno, ora tempestuoso.
— Cazzo! — Estaco no lugar. Papà tropeça ao meu lado
pela parada brusca e blasfêmia prolatada dentro da igreja.
Minha reação ao sonho distorcido foi paralisar no lugar. Mal
havíamos chegado à metade do caminho.
E como em um devaneio sádico, Giulio Moretto caminha
tranquilamente até mim.
— Piccola, ma che succede? Andiamo! — Mio padre insiste,
puxando meu braço e sorrindo para alguns dos convidados que
passaram a comentar sobre meu espanto. Minha atenção está
totalmente voltada à aproximação do perigo iminente.
— Profanando na casa de Deus, Bambola? — Sorri
enviesado, o que aumenta ainda mais as batidas no meu peito.
Coração traidor. — É… meu sogro. Ela realmente foi feita pra mim.
— O maledetto[282] estende a palma para cima como se aguardasse
que papà passasse o prêmio para frente.
— Espero não precisar pegá-la de volta, ragazzo. — Papà
menciona baixinho, pegando minha mão e colocando-a sobre a de
Giulio.
Tornei-me de fato una bambola, pois não consigo mais me
movimentar conforme a minha vontade. Sinto que saí do corpo e
sou uma reles espectadora do que está acontecendo.
Signore Zanchetta caminha até mammina e sou deixada
para trás com o lobo. Pisco algumas vezes enquanto vejo minha
mão ser levada gentilmente aos lábios de Giulio. Ele beija o dorso,
sem tirar os olhos de mim.
Estamos com toda a famiglia nos observando de perto.
Giulio se prostra ao meu lado e enlaça meu braço no seu,
impulsionando o nosso caminhar que hesito por dois segundos.
Oddio![283] Dois míseros segundos e já estou seguindo o
cazzo.
— O que você está fazendo? — cochicho a pergunta.
— Levando mia sposa até o altar — responde com o sorriso
sarcástico.
— Eu não sou mais tua noiva.
— Há boatos de que sim, você é — ele devolve, olhando
para frente e erguendo ainda mais o canto da boca. Merda. Por que
o maledetto precisa ser tão bonito? Tenho que ser forte.
— E há boatos de que você me chamou de troietta —
replico impiedosa, tendo um leve gostinho de vitória quando noto um
vislumbre de arrependimento. O que vai embora rápido no momento
que ele se inclina para falsamente beijar meu rosto, mas com o
objetivo diferente.
— E você pode ser a mia putinha o quanto quiser, Bambola.
Apenas mia. Mas por hoje me contento em te fazer mia moglie. — É
a derrota total. Um, porque alcançamos o altar. Dois, porque a
palavra suja não me deixou constrangida, mas tão excitada que
perdi minha calcinha. E três, “apenas mia” e “mia moglie”
alimentaram o amor que sinto por ele.
Oddio[284]! Irei cometer um milhão de pecados em
pensamento no dia do meu casamento, sendo o pior deles cometer
assassinato contra mio fianzatto[285].
Por que é ele, afinal?
O que mudou para que seja ele a se casar comigo e não
outrem da famiglia?
Será que algo mudou nesses dois meses que estive fora?
Merda…
Papà sempre foi influente, mas não acho que conseguiria
fazer o futuro Don casar-se com sua figlia supostamente desonrada.
Madonna mia… estou tão confusa.
De qualquer forma, Giulio Moretto está ao meu lado
esboçando um sorriso que nunca vi antes. Ele parece extremamente
satisfeito, o que me faz questionar a memória do dia em que fui tão
humilhada.
Meus olhos percorrem os demais entes do meu clã, todos
em pé ao meu lado esquerdo do altar. Luigi é o único de semblante
fechado. Ele não está de acordo com o que está acontecendo.
Também não estou…
Sinto o amargor do meu orgulho ferido tomar conta do meu
rosto e não consigo erguer os cantos da boca para esboçar o
mínimo de contentamento. O sorriso plastificado é um adereço
impossível de encenar na peça teatral de maior dramaturgia de
minha vida. Não consigo…
Tudo passa como um borrão no tempo e espaço. Minha
consciência leva meus pensamentos para um lugar seguro, no qual
a realidade dos acontecimentos mais parece um sonho distante.
Felizmente, a confusão de emoções nubla meus sentidos, e
quando dou por mim, acabou.

Reflito por um longo tempo sobre tudo o que aconteceu hoje


na hidromassagem do meu atual quarto.
A festa de casamento aconteceu no salão mais luxuoso de
Palermo. O local estava decorado com flores brancas e velas que
criavam uma atmosfera mágica. Os convidados conversavam
animadamente, riam e brindavam à nossa felicidade, enquanto eu
me sentia como uma marionete em um palco, prestes a entrar na
última cena de uma peça trágica.
Mia mammina estava radiante, seus olhos brilhavam de
emoção ao meu lado. Minha aceitação no decorrer da semana por
conta do silêncio e sorriso amarelo que dava quando contava sobre
os preparativos da festa, lhe dava a falsa impressão que estava de
acordo com o meu destino.
Eu não estava… não estou. Estou?
Não sei mais.
Senti uma combustão de emoções ao rever Giulio na igreja.
Um misto de euforia e alegria por constatar que era ele e não Nino,
somado à indignação não contra mio padre e mio frattelo, mas
contra mim. Estou furiosa comigo por conta de estar… feliz?
Durante a festa, pensei no sentimento de saudade e
recuperação quando os lábios de Giulio encontraram os meus num
beijo mais escandaloso do que apropriado para o término da
cerimônia.
Ele parecia estar faminto por mim tanto quanto eu estava
por ele. Em dado momento, a euforia tornou-se uma onda de
emoção misturada com tristeza. Senti que me perdia para Giulio
novamente.
Saio da água com a pele enrugada e desligo a
hidromassagem. Deveria me preparar para o que ainda estava por
vir. Minha cabeça estava confusa… Mio marito comportou-se de
modo diferente no instante em que saímos da igreja, eu não sabia
mais ao lado de quem estava.
Ele foi atencioso ao me ajudar a sair da limusine, passou
boa parte da recepção ao meu lado cumprimentando e até sorrindo
para os convidados. Giulio Moretto sorriu! E Dio mio que sorriso…
Eu estava completamente perdida.
Como poderia me dividir ao meio e separar meus
sentimentos das sensações que invadiam meu corpo a cada
movimento do homem que me detinha como um objeto.
Raiva, tristeza e uma vontade imensa em me perder nos
braços de Giulio mexiam com minha sanidade de modo a brincar
com cada parte minha, que tentou se recuperar de suas palavras
duras, e do afastamento de casa que fui obrigada a enfrentar.
Por que ele casou-se comigo será a primeira pergunta que
faria agora.
Por que quis assumir um compromisso que deixou claro não
desejar mais?
Sua possessividade sobre mim era maior do que o orgulho
ferido?
Ou o tão poderoso Giulio Moretto, Sottocapo da Cosa
Nostra, sentiu-se ameaçado por mio frattelo?
A última opção parecia mais falsa do que minha negação
em querer assumir o que estava gritando em meu interior.
Enrolo meu corpo em uma toalha após a árdua tarefa de
desembaraçar e secar meu cabelo. Por mais que tenha preferido
deixar os fios metade soltos, afofar o topo da cabeça onde a tiara
ficou foi um desafio para a cabeleireira, tanto quanto tirar os nós.
Suspiro e dou um passo de cada vez.
A porta do banheiro dava direto para o closet imenso da
suíte máster. Assim que abro, sou nocauteada pela fragrância do
perfume amadeirado de Giulio. Como viciada, inspiro fortemente,
querendo mais. Caspita!
Se nosso destino para noite de núpcias fosse outro além de
sua cobertura, talvez eu pudesse parecer menos patética. Acabo
deslizando as pontas dos dedos nas mangas de paletós e camisas,
pensando o quanto os tecidos são privilegiados por estarem aqui tão
perto daquele que tem meu coração em suas mãos. Não!
Ele perdeu meu coração quando o deixou cair meses atrás.
Giulio é apenas uma obsessão insana.
Isso… obsessão. Melhor negar para mim mesma e tentar
sobreviver a este casamento sem mais feridas do que já me
causaram.
Aperto a toalha justa ao corpo quando estudo o restante do
cômodo e vejo minhas roupas e sapatos dispostos na outra lateral,
inclusive com um pequeno acesso a outro espaço com mais
vestidos. O local está todo iluminado parecendo de propósito para
que eu o conhecesse.
Caminho até a parte com diversas gavetas e passo a
explorá-las, descobrindo que mais de uma contém diversas
lingeries. E então, alcanço o local onde minhas camisolas estão.
Escolho e visto uma peça tão similar quanto àquela que usei
em Monza, branca com um leve rendado, tão angelical quanto. Em
seguida, prendo parte do cabelo com uma presilha de pérolas.
Encaro meu reflexo no espelho sentindo-me tão igual e tão diferente
ao mesmo tempo.
— É agora… — sussurro para a ragazza do espelho. Encho
o peito de ar e caminho para o portal ao final. Lá encontraria meu
algoz. Quem iria arrancar a última película de inocência que ainda
existia em mim.
Finalmente, Giulio me faria sangrar em lençóis da Cosa
Nostra.
No instante em que alcanço o ambiente amplo, noto a
iluminação diferente de quando entramos. O lustre extravagante
demais para um quarto, estava sem luz. Estudo o cômodo, dando-
me conta de que está repleto de velas espalhadas nos cantos, pelo
chão, móveis e algumas de cores quentes e formatos diferenciados
nas mesinhas de cabeceira.
Assim que entrei, confesso que fiquei impressionada com o
ambiente másculo que mesclava o moderno e antigo. A cabeceira
da cama num grafite escuro com desenhos dourados, e parte da
parede com madeiras rústicas eram uma combinação que refletia o
poderio da personalidade de Giulio.
O quarto todo era ele. Impiedoso, poderoso e impositor aos
nossos olhos com as cores fortes e mistura de materiais. Com
iluminação à luz de velas, eu me sentia ainda mais envolvida. Uma
música instrumental é tocada em volume sútil.
— Pensei que a veria em outra camisola esta noite,
Bambola — Giulio chama minha atenção e avisto-o com o corpo
semiereto sobre a cama. Ainda está com a calça do smoking, mas a
camisa está aberta revelando o peito e abdômen esculpido.
— Não seja por isso — replico rápida, dando-lhe as costas e
descendo primeiro uma alça e em seguida o restante do tecido
desce, caindo ao solo facilmente posto que perdi peso.
Por mais que tenha me afundado em sorvete na primeira
semana de tristeza com Valentina e mia frattela, as semanas
seguintes na Inglaterra foram vividas de modo automático. Desse
modo, eu esquecia os horários das refeições. A dor no estômago de
fome era bem-vinda. Preferia sentir qualquer coisa que não fosse as
pontadas em meu peito pela ausência que o homem em minha
frente me causava.
Ouço o momento em que se levanta e começa a vir até mim.
Meu coração troveja com batidas descontroladas, ameaçando sair
do peito. Sinto o ar se tornar algo pulsante e vibrante, pesado até.
Seus dedos ásperos tocam a pele exposta do meu ombro,
seguindo para meu pescoço e fechando de leve, a palma
envolvendo-o praticamente.
Vejo-me tão pequena perto do homem gigante que quer me
possuir. Eu deveria ter medo do seu poder e o quanto estou à sua
mercê, mas o roçar carinhoso de pele me confunde. Inclino a
cabeça, oferecendo-me.
Dio, o que estou fazendo?
— Por que tantas velas? Quer colocar fogo no quarto? —
provoco, querendo que minha voz rouca seja sedutora.
— Quero colocar fogo em você… — Então sou virada de
súbito, colidindo com a dureza do peito e abdômen esculpido do
herdeiro Moretto. Arfo ao sentir seu calor tocar meus mamilos
doloridos. — O que quer me dar hoje, Bambola? — indaga,
analisando meu rosto.
Neste momento, sua pergunta me leva para o dia em que
meu castelo desmoronou. A memória latente da forma que Giulio
expeliu seu veneno, despejando impropérios para papà e Luigi que
afundaram uma adaga dolorida em meu peito. Puxo o ar com força
e ergo os olhos, encarando-o.
— O que você quiser… — respondo, refletindo a submissão
que aprendi e que os homens da Cosa Nostra esperam. Ele poderia
ter meu corpo, mas não teria nada além disso.
— Não tomo nada que não é me dado. — A mão de Giulio
fica imóvel, aguardando que prolate as palavras que almeja.
— Por que se casou comigo, Giulio?
— Porque eu quis… — Ele erra a resposta, aumentando o
abismo entre nós. Expiro o ar com um riso irônico.
— Tome aquilo que você quiser, mio marito. Sou sua moglie
e você está no seu direito — atesto secamente o prêmio que
conseguiu.
— Você ser minha esposa, não me dá o direito de torná-la
minha mulher sem o seu consentimento, Francesca. Então, diga-
me, o que quer me dar? — Ele dá um passo para trás, deixando o ar
noturno ocupar o calor, onde antes estava o seu corpo tão próximo
ao meu.
Não deixo que por me chamar pelo nome e não por
Bambola altere meus sentimentos.
— Nada… Deste casamento, contento-me apenas com o
título de esposa.
Ele perguntou o que eu quero dar, e assim também conferiu
a opção de escolher a não ser nada além de um reles adereço de
mobília. Aquele enfeite que fica guardado, sendo apenas exibido em
ocasiões especiais.
Essa é a minha escolha, ser apenas a esposa troféu que o
Sottocapo escolheu para o Consiglio, e nada a mais.
Agacho, pegando a camisola antes dispensada e cubro os
seios num gesto de proteção. O aroma antes sensual do quarto
passou a me dar enjoo, o que aumentou no instante que meus olhos
encontraram os lençóis brancos.
O tecido aguardava ser manchado de vermelho por meu
sangue. A memória ácida de Giulio indagando se eu sangraria por
ele começa a gritar, iniciando uma pequena dor em minhas
têmporas.
Sem pensar duas vezes, pego a presilha em meu cabelo,
abrindo o fecho e passando no meio da palma esquerda, sentindo a
ardência do corte fino. A seguir, aproximo-me da cama, abrindo e
fechando a mão para ter o suficiente do líquido viscoso para o que
almejo.
Quando sinto a umidade vermelha, esfrego o sangue bem
no meio do colchão, criando a pequena mancha. É neste momento
que olho para mio marito, vendo-o completamente catatônico com a
cena.
— Você mesmo disse que algumas mulheres não sangram.
Bom… acredito que isso seja suficiente para atestar minha pureza
para o Consiglio. — Giulio não retira os olhos do borrão que fiz nos
lençóis brancos. E antes que saia do transe, sigo em direção à
porta. — Vou dormir no quarto de hóspedes — emendo, deixando
mio marito e batendo a porta atrás de mim.
Assim que estou no corredor, corro e me tranco no outro
cômodo. Meu coração está batendo freneticamente e mal acredito
no que acabei de fazer. Minutos depois, ouço um estrondo pesado,
seguido de outro e outro.
Maddona mia! Será que Giulio está quebrando seu quarto?
Aguardo alguma fumaça, com medo de que todas aquelas
velas acesas se tornem chamas e algo de grave realmente
aconteça. Porém, um tempo depois não ouço mais nada. Espio pela
porta e busco pelo cheiro algo que identificasse um incênDio. Nada.
Apenas silêncio.
Tranco novamente a porta do quarto, que não é tão
espaçoso quanto o de Giulio, mas contém um pequeno closet com
algumas camisetas e um roupão felpudo. Amanhã pegaria algumas
roupas mais apropriadas e deixaria aqui.
Pego o roupão e me enrolo no tecido macio, deitando-me na
cama de casal, sozinha.
Talvez fosse esse meu destino: um casamento fracassado
com o Sottocapo da Cosa Nostra. Permanecendo eternamente
virgem, intocada, mas com a alma completamente corrompida pela
dor.
FRANCESCA ZANCHETTA

Passo os dias seguintes trancafiada no quarto até ouvir


Giulio descer as escadas e a porta da entrada ser fechada com um
baque, para dali então sair e me entreter na sala de TV, que
descobri ser um minicinema.
Como os funcionários de Giulio parecem possuir poderes
sobrenaturais, sempre tenho alguém que aparece do nada com
bandejas contendo as refeições diárias, o que retém minha
locomoção apenas aos cômodos que escolhi conhecer, ou seja,
meu quarto e o local em que tenho assistido todos os filmes que
alimentam o buraco negro em meu peito.
Merda.
Hoje para piorar escolhi “Diário de uma Paixão”.
Por que diabos fui querer assistir a um filme onde os
personagens conseguem enfrentar todas as dificuldades, inclusive o
mal de Alzheimer[286]?
E aquele homem, Dio?
Quando que alguém leria o diário da esposa todos os dias
para ter uma fração de segundos do seu amor?
Deixo um pequeno soluço escapar juntamente com as
lágrimas que escorrem por minha face no final do filme. Gostaria de
ser a Allie que teve a sorte de encontrar um Noah.
Estou me torturando ao ver um sentimento que jamais
poderei ter em minha vida.
Cazzo!
Giulio batia em minha porta nas primeiras noites. Ele pedia
para conversarmos, mas eu não o deixava entrar. Nada que
dissesse mudaria meus dias no exílio, bem como a sensação de
mediocridade daquela noite enfadonha.
Não posso e não quero sofrer mais.
Após algumas horas, sigo para o ritual de retornar ao meu
quarto, tomar um banho e deitar sem nem ao menos ouvir os
passos de mio marito. Nunca sei quando retorna, e se… retorna.
Já é de manhã quando passos pesados caminham em
frente à porta do meu quarto. O som diminui por um breve momento,
indicando que está parado e logo continua rumo às escadas.
Suspiro, bufando o ar de modo audível. Minutos mais tarde,
ouço três batidas suaves na porta.
— Signora Moretto? Signora? Posso entrar? — A voz
feminina rouca pela idade, mas ainda aveludada, pede passagem.
Levanto-me, colocando o penhoar para em seguida destrancar a
porta.
— Sì?
— Chiao, Signora. Io sono Isabel.[287] O Sottocapo pediu
para cuidar da sua casa hoje, pois a governanta está doente.
Nem sabia que tínhamos uma governanta. Claro que se
fazia necessário já que Giulio antes de se casar não tinha uma
donna para cuidar de sua casa enquanto estivesse trabalhando. E
este lugar realmente precisa de alguém para administrar por conta
do tamanho.
Deveria ser você. Minha consciência mesquinha aponta a
falha de quão péssima moglie tenho sido. Eu deveria pelo menos
cuidar da casa como mammina passou anos me ensinando. Mas
quis me afundar ainda mais em meu mundo e fugir de tudo aquilo
que remetia ao casamento fracassado.
Caspita.
Embora tenha todos os motivos do mundo para justificar
minhas atitudes, o que realmente sinto é decepção comigo mesma.
— Aqui, Signora. Mio bambino pediu para trazer seu café da
manhã. — Signora Isabel oferece a bandeja e novamente fico
aborrecida com meus atos mal-educados que não perceberam o
objeto de prata com diversos alimentos que carregava.
Afasto-me, dando-lhe passagem e ela não se faz de rogada,
caminhando e colocando sobre a mesa disposta ao canto do
cômodo.
— Grazzie — digo baixinho. Isabel acena e após se
prontificar em colocar as frutas, pães, queijos e um copo de suco de
modo ordenado, caminha em direção à porta.
Sento-me na cadeira que a signora havia puxado e deixo os
ombros caírem na medida em que analiso as opções do desjejum.
Todas são de minha preferência e aquela pontada de esperança por
saber que Giulio teve o cuidado de informar ao encarregado da
cozinha arde em meu coração.
Impiastro[288].
Pego o cacho de uvas verdes e vejo o pequeno envelope ao
lado, elegantemente selado com cera vermelha firmada pelo
carimbo do clã Moretto. Meus olhos se fixam nele, acreditando ser
uma ilusão de ótica. Como o papel não desaparece, entendo por
bem abri-lo e ver seu conteúdo.
Com cuidado, retiro a folha fina de papel delicado, e leio as
palavras escritas à mão:
"Mia Bambola,
Não sou bom em pedir desculpas e talvez erre algumas
vezes. Acredito que já errei o suficiente por uma vida toda
com você. Permita-me a redenção, mia moglie.
Tuo marito,
Giulio.”
No instante em que coloco o bilhete de volta na bandeja,
sou invadida por um milhão de sensações sem sentido. Parte de
mim quer gritar com Giulio por me deixar completamente confusa;
parte de mim está com saudade dos nossos momentos juntos; e
uma parte menor, sente raiva por ele ter me feito sofrer.
Desde que Giulio e eu nos casamos, nossa vida foi marcada
por uma teia de segredos e arrependimentos. Não sei mais o que
fazer diante da bagunça que berra por liberação dentro de mim.
Deixo as lágrimas que ardem o fundo dos olhos ganharem mais
espaço, molhando meu rosto. Choro copiosamente sem me dar
conta do tempo.
Então, decido tornar-me a Signora Moretto durante o dia e
cuidar de minha casa. Seria necessário primeiro aprender quantos
cômodos existiam, mas acredito que a pequena senhora que trouxe
o café da manhã me ajudaria nesta empreitada.
Passei a estudar a cobertura onde iria morar. Havia alguns
ambientes maiores à frente da escada, algo que notei no primeiro
dia. Era basicamente uma sala imensa, dividida em repartições.
Consegui identificar os corredores por conta dos quadros diferentes
nas paredes, sendo que a menos ornamentada indicava a ala dos
empregados.
Noutro dia, Signora Isabel repassou o cardápio da semana
comigo, enfatizando a necessidade de sempre ter a mesa posta
mesmo que o Sottocapo não esteja presente.
Tudo era um ciclo para manutenção das ordens ministradas
aos empregados. Não entendia ao certo o motivo, mas sabia por
bem acatar seus ensinamentos e manter o cotidiano na casa do
futuro chefe da Cosa Nostra, se quisesse ser respeitada.
Foi bom, pois não me senti completamente inútil, posto que
a sensação me acompanhava constantemente por não ter retornado
à faculdade.
Nos dias seguintes, recebia outros bilhetes de mio marito,
tornando-se uma rotina.
Hoje, o pequeno papel está disposto ao lado do bule de leite
sobre a mesa de jantar, local em que passei a fazer as refeições
matutinas. Eu tomava o cuidado de esperar Giulio sair para descer
as escadas.
Suspiro, novamente vendo o envelope selado com a cera
vermelha e o brasão do clã Moretto, como fechamento do pedido de
perdão. Abro-o, quebrando o pequeno lacre e leio as palavras
desenhadas com a caligrafia de Giulio.
“Perdão por cada lágrima que você derramou, por cada
noite solitária que você passou e por cada momento de
tristeza que te causei.
Tuo marito,
Giulio"
O pequeno lenço branco com o bordado inglês na barra
colocado à minha frente é a indicação que a Signora Isabel notou o
cisco que entrou em meus olhos, embaçando momentaneamente
minha visão.
— Mio bambino pediu para avisar que vai estar presente
para o jantar esta noite, mia signora. Gostaria de pedir ao cozinheiro
para fazer o risoto de camarão que tanto gosta, se for do seu agrado
— A mulher gentil sugere, e acaba por revelar o quanto não sei
nada sobre mio marito, enquanto que ele sabe muito sobre mim.
Pelo menos ele sabe tudo aquilo que poucas pessoas têm
conhecimento. No tocante ao passado, papà e mammina disseram
que fica no passado.
— Va benne. Faça o que achar melhor. — Não espero
qualquer resposta e sigo para minha mais nova prisão. Ainda não
entendia como Giulio permitia que algumas das minhas roupas
fossem passadas para o closet do quarto de hóspedes sem
qualquer discussão.
O perfil que havia traçado de mio marito ia contra esse
modelo de homem com quem vinha dividindo o mesmo teto, mas
que como um fantasma, não o via. Eu apenas sentia sua presença
por perto.
Se tivesse que comparecer em algum evento futuramente
como a Signora Moretto precisava começar a me comportar como
tal, mesmo que sem a intenção de consumar o casamento. Eu
precisava aprender a lidar com as sensações do meu corpo e
encarar mio marito de uma vez por todas.
Esse jantar faria parte do teste que iria me submeter para
controlar meus nervos tendo Giulio por perto.
Momentos depois, a minha cama parece um local de
guerrilha entre calças jeans, camisetas e alguns dos vestidos que
provei até escolher a roupa que encaro no reflexo do espelho. Perdi
a conta de quantas vezes entrei e saí deste pequeno closet,
xingando mentalmente porque não fiz com que Giulio viesse para cá
e me deixasse na suíte master que possui um espelho maior, e
outras das minhas roupas que poderia experimentar.
Talvez fosse demais desalojar do próprio quarto o Sottocapo
Moretto, não é mesmo?
Quem se importa?
Fecho o armário do closet com um baque e sigo para fora
do quarto, desistindo de encontrar algum vestido melhor do que
este. Peguei uma peça simples de organza na cor azul-claro, com
alças finas e saia em vase até os joelhos. Escolhi uma sandália de
tiras brancas de salto baixo que não disfarçaria a minha diferença
de altura com mio marito.
Não tenho altura de modelo para competir com os 1,90 de
Giulio e estava me vestindo para jantar em minha própria casa.
Caspita!
Estou dizendo impropérios quando dobro a esquina e
adentro a sala de jantar dando de cara com o peitoral musculoso
coberto pela camisa branca justa de mio marito.
— Deveria retirar o que disse, sabia? — Ele sussurra em
meu ouvido e fico confusa com sua fala, passando a respirar com
dificuldade por conta da hiperventilação. De novo, a presença de
Giulio mexia com todo o meu corpo, deixando-me confusa em todos
os sentidos.
— O-o quê?
— Que conquistaria mia sposa[289] com outros atributos.
Acho que minha beleza pode fazer o trabalho, não? — Giulio
estende os braços, revelando-se com um sorriso presunçoso. Então,
recordo-me de nossa primeira interação no jantar na casa de mios
padres.
Dou um passo para trás, para ter um pouco mais de espaço
e torço o nariz.
— Primeiro, que não sou tua sposa, sou tua moglie. E
segundo, que o diabo é tão belo quanto e continua sozinho no
inferno — contesto afrontosa.
Giulio joga a cabeça para trás com uma gargalhada que faz
meu corpo todo arrepiar com o som rouco que ecoa pelo cômodo.
Oddio! Por que o maledetto precisa ser tão belo?
— Há controvérsias, mia Bambola. Mas não quero atestar a
teoria tão cedo — diz, diminuindo o riso. — Venha, vamos jantar.
Quero discutir alguns assuntos com mia moglie esta noite. — As
palavras “mia moglie” são ditas com um olhar profundo para mim e
prendo a respiração no instante que dou o primeiro passo rumo à
mesa de jantar.
Ele me direciona para sentar, segurando uma cadeira ao
lado daquela destinada a ele. Acomodo-me e aguardo que seja
servida a salada de entrada conforme Signora Isabel indicou mais
cedo.
Estamos nos deliciando com o risoto quando Giulio geme
baixinho, apreciando o prato que a governanta dos Moretto disse ser
o seu favorito.
— Conversei com o Reitor da Universidade e ele disse que
pode retornar na próxima semana, Bambola.
— Voltar a estudar? — questiono surpresa. — É sobre isso
o assunto que queria falar? — Giulio me encara e sorri da minha
confusão. Ele sabe que não esperava discutir sobre esse assunto.
— Sì. Por quê? Teria outro assunto? — Ele debruça sobre a
mesa, fazendo com que seu perfume tome conta do meu olfato.
Cerro as pálpebras de modo apertado, tentando obstruir o ar de
nocautear meus pulmões com o aroma viciante de mio marito.
Maddona mia… A forma com que tem respeitado meu
espaço, depois os bilhetes pedindo perdão e agora isso…
Permitir que volte a estudar sem impor condições?
Cazzo! É para resistir até quando mesmo?
— Giulio, vo-você…
— Eu quero mia moglie, Bambola. E a quero por vontade
própria. Vou fazer de tudo para te reconquistar, cara mia. Não
importa o tempo que leve.
Não se trata de tempo, mas sim de respostas. Coloco o
guardanapo sobre a mesa, querendo saber mais sobre o homem à
minha frente.
— Por que me escolheu, Giulio? — indago de pronto. — Por
que quis me desonrar antes do casamento?
É o mínimo que ele me deve. Respostas. Eu preciso de
respostas para conseguir perdoá-lo.
Mio marito fica sério de repente, desviando o olhar e
esboçando descontentamento por ser colocado na parede.
— Isso não importa — declara, jogando pela janela qualquer
chance que poderia existir entre nós.
— Isso importa sim! E muito. Você me seduziu. Entrou em
meu quarto. Ofendeu a mim e à minha família — pontuo, erguendo
o tom da voz conforme levanto-me da cadeira. — Eu fui mandada
para longe por sua causa.
— Eu tentei te encontrar, Francesca. Não sei como, mas
nem Fausto conseguiu achar seu paradeiro.
— Ou ele soube e não quis te contar — afirmo, fazendo com
que Giulio abra e feche a boca como um peixe fora d’água.
— Mio frattelo não faria algo assim.
— Talvez tuo padre o obrigou.
— Ele não…
— Quer saber? Não preciso discutir com você. Se não quer
me contar o motivo que te levou a me magoar para depois querer se
redimir, casando-se comigo, você não é digno de perdão. — Viro-me
em meus calcanhares e corro escada acima.
Giulio chama por meu nome e não mais por Bambola,
correndo logo atrás. Subo o mais rápido que posso, trancando-me
novamente em meu quarto. Mio marito esmurra a porta algumas
vezes.
— Francesca! Abra a porta. A gente precisa…
— Conversar? — questiono do outro lado. — Vamos
conversar quando você tiver as respostas que preciso ouvir, Giulio.
Até lá… — Respiro fundo, procurando ser forte para manter a
distância que preciso.
Mio marito não espera as próximas palavras, seguindo a
passos duros para o outro quarto e batendo a porta com um
estrondo que me faz saltar de susto.
Por fim, ele havia entendido que o muro que nos separava
não foi construído apenas do meu lado… mas do dele também.
FRANCESCA ZANCHETTA

Minhas pálpebras estão pesadas e teimam para abrir, não


querendo enfrentar a realidade. Porém, insisto um pouco ao sentir
que meu corpo está em movimento e não é por vontade própria.
Estou suspensa, sendo carregada, e a sensação de bem-estar e
proteção pelo cheiro que invade minhas narinas aflige meu coração.
O perfume característico de Giulio nunca foi tão certeiro em
confundir o que sinto tanto quanto agora. Ainda mais embriagada de
sono.
Esfrego o rosto sobre a penugem de pelos que cobre seu
peito, satisfazendo a necessidade de meu vício.
— Amore mio[290]… por que você me quebrou mais ainda? —
indago, imaginando que tudo é um sonho.
— Você não é quebrada, Bambola. Nunca foi… — A voz
grossa emanada próxima de minha têmpora me acorda, de modo
que me afasto no instante em que percebo estar sob uma superfície
macia.
Olho para os lados assustada e verifico que retornei ao
quarto de Giulio e estou em sua cama, iluminada apenas por poucas
das velas, iguais à noite em que nos casamos.
— Co-como entrou no meu quarto?
— Como entrei no quarto de hóspedes? — ele refaz a
pergunta e bufa um riso sem humor. — Acha mesmo que não tenho
cópia de cada cômodo dessa casa, cara mia?
Pressiono os cílios com força e balanço a cabeça em um
movimento pequeno e rápido. Preciso recobrar a lucidez do que
está acontecendo antes que enlouqueça pelas atitudes desse
homem.
— Você disse que não toma o que não lhe é dado —
pontuo, menos sonolenta. Foi ele que me permitiu sair daqui e
manter o pouco da dignidade que me restava.
— E não tomo, Bambola. Mas este aqui é o seu quarto. E
esta é a sua cama, como também é a minha. Você vai dormir nela a
partir de hoje ao meu lado como mia moglie.
Fecho os olhos e inspiro profundamente, expirando o ar
numa lufada longa e cansada. Se ele quer dormir, vamos dormir.
Mas antes, quero tentar novamente obter uma resposta.
— Por que se casou comigo, Giulio? Por que… — Ele
coloca o indicador em meus lábios, fazendo-me calar. É… talvez
esta batalha esteja perdida.
— Porque eu queria me casar com uma Zanchetta. — A
resposta vem da forma que não queria ouvir. — Bom… quando
soube que precisava me casar um dia, eu sabia o que queria. Ou
pensava que achava…
— Casar com uma Zanchetta… — repito, deixando
transparecer minha insatisfação. — Por quê? Para brincar comigo?
Apenas para desonrar minha família?
— Casei com você, mia Bambola, porque quis. — Ele tenta
acariciar meu rosto, só que desta vez, o afasto. Sinto sua expiração
frustrada.
— Seu querer não é uma resposta.
O Sottocapo percebe que precisa aprimorar sua tática e por
isso, recua. Vejo pelo canto do olho que assume uma posição
sentada mais ereta e aguardo.
— Eu… eu vi mia mammina morrer — confessa, com um
tom grave. Permaneço estática, como ser qualquer movimento fosse
quebrar o encanto e fazê-lo parar. O silêncio se propaga por minutos
que parecem uma eternidade. Quero que continue…
— Tinha nove anos quando vi mios padres discutindo e…
para mim era algo habitual. — Ele suspira. — Eles brigavam todos
os dias. Só que… naquele dia, mammina falou sobre uma traição de
papá. Ela mencionou claramente o sobrenome Zanchetta e fiquei
aguardando em meu esconderijo até que tudo terminasse. — Giulio
me encara. — Eu sempre fazia isso. Esperava que Don Moretto
saísse para ir até mia mammina e consolá-la.
Pisco algumas vezes aturdida com a revelação. Giulio me
observa, demonstrando o quanto é difícil falar do passado.
— Ela gritou com papà e bateu nele, como sempre fazia.
Porém, eu nunca o vi revidar… só que… ela o puxou. Então… ele
não viu que mia mammina tropeçou no tapete, caindo e batendo a
cabeça na mesa. — Ouvir uma tragédia como essa sendo
presenciada por uma criança, deixou-me imersa em compaixão. Por
este motivo, busco segurar uma das mãos de Giulio para
demonstrar empatia.
— Deve ter sido difícil… — comento e ele assente.
— Quando cheguei ao escritório onde discutiam, ela estava
envolta numa poça de sangue. Morta. — Giulio hesita, engolindo
com dificuldade. — Quando o luto de papà acabou, ele deu um
jantar em nossa casa. Por coincidência, passava novamente pelo
seu escritório e o ouvi conversando com Annunziatta Zanchetta. Ele
dizia que finalmente era livre para que vivessem seu amor — Giulio
diz a última palavra com uma pontada de ironia.
— Não… — nego, balançando a cabeça em negativa. Mas
Giulio continua.
— Ele dizia que a amava… e as palavras de mammina
tinham um significado ainda maior. Naquele dia, Enrico — ele me
encara — tuo padre… me encontrou em meu esconderijo e mandou
que voltasse para o quarto. Eu fui… pensando que ele iria fazer algo
para lavar a sua honra.
Minhas sobrancelhas se unem, não querendo entender o
que me contava. Mia mammina… não. Ela não…
— Mia mammina nunca foi infiel a mio papà, Giulio —
defendo-a, cuspindo a indignação por sua ofensa.
Mio marito me olha de soslaio com um riso de escárnio e
estou pronta para continuar quando sinto sua mão em minha coxa,
como um pedido de espera.
— Não… ela não foi. Só que descobri isso tarde demais.
Como tuo padre não fez nada, decidi que quando pudesse, eu
mesmo iria. — Giulio baixa o olhar, e poderia dizer que estava
envergonhado se não o conhecesse.
— Você foi um stronzo porque pensou que tuo padre traía
tua madre com mia mammina?
— Eu fui um… pensei que… — Ele não encontra as
palavras. — Mia madre era doente, Bambola. E eu era muito ligado
a ela.
— Que tipo de doença? — Giulio eleva o olhar, tocando meu
rosto com a ponta dos dedos.
— Amor… — Demoro alguns segundos para entender, pois
até então pensei que nunca ouviria esta palavra saindo da boca de
Giulio, mesmo que as circunstâncias para tanto fossem absurdas. —
O amor que mia madre tinha por mim, mios frattelos e papà era
tanto, que a fez ficar doente.
— Amor não é uma doença.
— Para meu clã… é. Por isso, Bambola, eu nunca vou amar.
Mas… mas eu quis você. Eu… eu quero você. — Giulio estica o
braço, pegando o celular da mesinha de cabeceira e me entrega
com a tela desbloqueada. — Olha… — oferece. — Eu mandei
mensagens para você todos os dias, cara mia. Quando soube o
quanto estava errado, eu quis consertar tudo, mas… Você estava
inacessível.
Primeiro fico receosa em pegar o aparelho jogado em
minhas pernas, e depois a curiosidade fala mais alto. Vou até o
aplicativo de mensagens e quando percebo, estou passando o dedo
na tela conferindo a veracidade das alegações.
O calor de minhas bochechas irradia para meu interior
quando leio meu apelido como contato salvo e a confiança em Giulio
de me estender o próprio celular.
“Atenda o telefone, Bambola.”
Tudo bem. A primeira mensagem é um comando.
“Eu não quis dizer aquilo…”
A segunda soa como um pedido de desculpas.
A sequência dos textos é um interminável interrogatório
sobre o porquê não atendia ao telefone, onde eu estava, algumas
ameaças infundadas e a última delas foi o que me fez suspirar e
devolver o aparelho.
“Sinto sua falta. Me perdoa, Bambola. Faço qualquer coisa
para te ter de volta.”
— Você disse que não me ama… — recito suas palavras.
— Não… Mas sou um Uomo d’onore[291] e fiz o omertà[292]
para honrar nossas donnas. E… — Giulio balança a cabeça. —
Francesca, o amor em meu clã é uma doença. Porém, o casamento
não é algo que precise de amor. Serei fiel a você e eu… quero você
como mia donna. Você… Então, me responda: o que você quer, mia
Bambola?
Mesmo podendo tomar tudo de mim, Giulio ainda faz a
pergunta e parece genuinamente sincero ao aguardar a resposta.
Giulio Moretto está pedindo para que o aceite como marito e
do seu modo distorcido quis revelar para mim o motivo que o levou
a ser tão cruel comigo. Ele podia como tantos uomos da Cosa
Nostra tomar-me a força, mas me deu a escolha e agora aguarda
não apenas minha entrega. Vejo em seus olhos que quer meu
perdão.
Posso não ter um milhão de escolhas no futuro. Por isso,
aceito no momento o que é dado.
— Tudo… io quero ser sua moglie[293], Giulio.
— Você já é minha esposa, Bambola. Quero saber se quer
ser minha mulher? — Ele aproxima-se, colocando parte do meu
cabelo para trás do meu ombro e me encarando com seus olhos
negros repletos de expectativa.
Dio Santo, por que o Signore colocou em meu caminho
alguém tão belo para meu corpo ter vontade própria?
Giulio percebe que estou hesitante e para dificultar mais
ainda deposita um beijo molhado em meu ombro, assoprando em
seguida. Suspiro desejosa. É a permissão para que seus lábios
percorram uma linha quente e úmida até o meu maxilar. O hálito
quente arrepia a epiderme, indo e visto numa sequência de sopros e
beijos.
— Giulio… — ofego.
— Não vou perguntar de novo, Francesca. Que ser mia
donna?[294]
— Bambola… — sussurro, cerrando as pálpebras e
erguendo o queixo em súplica por um beijo. Quero ouvi-lo dizer. Eu
preciso… — E sim. Eu quero — murmuro dengosa, deliciando-me
com a contração gostosa entre minhas pernas, e sinto a umidade
crescente deslizar pela musculatura interna do meu sexo.
Meus mamilos se enrijecem tornando-se doloridos ansiando
pela boca de Giulio. É como se meu corpo tivesse a memória vívida
de tudo aquilo que ele me causa.
Mio marito continua lambendo e mordiscando minha nuca e
região do trapézio. Engulo a saliva com dificuldade, pois o pequeno
ato de consideração foi uma surpresa.
Madonna delle mandine bragnate[295], me ajuda…
Encosto nossos lábios sutilmente e sinto o sorriso irritante
de Giulio. Se havia qualquer receio antes na mente conturbada de
mio marito, acredito que agora ele tem certeza que me tem por
completo.
Não há mais espera, não há mais medo, não há mais
barreiras de moralidade falsas que impeçam a consumação do
nosso casamento.
Giulio Moretto é meu desespero, meu desejo, meu temor,
minha esperança… e meu malledeto amor.
Nossas bocas finalmente se movem num beijo lento, com
lábios que reconhecem a morada um do outro. Sinto a maciez da
carne e a umidade da saliva se espalhar entre os beijos. Chupo o
lábio superior e sou agraciada com uma leve mordida em meu
inferior. Em seguida, as línguas se tocam e se envolvem em
movimentos ora lentos, ora rápidos.
Ele enrosca os dedos nos fios de cabelo de minha nuca e
passa a aprofundar o beijo, guiando-me para acompanhá-lo. Deslizo
minhas mãos por seus ombros musculosos, afastando a camisa.
Giulio permite, e o tecido é jogado em algum canto do quarto, bem
como minha camisola que sai do meu corpo um minuto depois.
Em seguida, percorro as unhas por suas laterais, sentindo
as ondulações dos músculos definidos. Desafivelo seu cinto e com
uma habilidade que até então desconhecia, desabotoo sua calça.
Giulio Moretto é uma visão maravilhosa com um sorriso
lascivo, vestindo apenas uma cueca boxer preta. Preta… não
branca.
Deito-me no meio da cama, sentindo o corpo másculo
inclinar sobre mim, afastando minhas pernas com cuidado para se
encaixar entre elas. Ele me enjaula entre os cotovelos e volta a
atacar minha boca, mais enérgico do que antes. Sou envolvida em
movimentos de lábios e língua que me deixam ofegante.
— Bambola… mia Bambola… — Giulio repete enquanto
desliza por meu maxilar, deixando uma trilha de beijos molhados e
chupões até um dos seios. Ele envolve o bico em seus lábios e suga
com força, fazendo-me erguer as costas de encontro à sua boca.
Posteriormente, ele enrosca o bico entre os dentes e puxa a
pele. Faz algumas vezes até alternar para o outro e aplicar a mesma
tortura viciante.
Seus beijos modificam também, sendo ora duros, ora
delicados. Estou tão envolvida que demoro um pouco até perceber
que Giulio desliza a ponta da língua por minha cicatriz, sentindo a
textura da pele.
— Giulio… — gemo baixinho, num tom que deveria ser um
pedido para que pare. Apesar disso, seu olhar de comando me faz
calar. Ele deposita um beijo de boca aberta no local e desce até
meu umbigo sem me indagar a respeito do passado.
Mio marito sabe que conversar a respeito estragaria toda
aura de sedução que construiu até o momento. Então, sua boca
continua insaciável, mordiscando minha barriga num caminho
decrescente. Ele dedilha a renda vermelha da lingerie e coloca as
duas mãos na lateral, rasgando o tecido com um puxão. Ofego pela
surpresa.
Giulio não se detém e eleva minha perna direita, dobrando
meu joelho e empurrando para o lado, abrindo minha fenda melada
com os dedos. Ele assopra e meu corpo treme em resposta.
Não me sinto constrangida, mas ansiosa. Quando penso
que serei agraciada com seus lábios, ele pressiona o botão de
nervos com o polegar e o indicador em um beliscão, ao mesmo
tempo em que penetra minha abertura com a língua.
— Oh… Giulio… — gemo, contorcendo-me e agarrando o
lençol com os punhos.
Ele movimenta os dedos oscilando a pressão como uma
massagem precisa no broto inchado. A língua indo e vindo
ritmicamente. Meu quadril se eleva, querendo mais.
Giulio segura meu clitóris como uma pinça, tirando a língua
da minha entrada e chupando o monte de nervos avidamente.
Elevo o outro joelho e seguro os dois para cima me abrindo
mais para mio marito. Fito-o de cima para baixo e vejo seu olhar
satisfeito por me enlouquecer.
Minhas pernas tremem com as contrações em minha
intimidade. Sinto o formigamento se espalhar em meu baixo ventre.
Perco-me em sensações quando o primeiro orgasmo me atinge,
insano, feroz e implacável.
Mordo o lábio, contendo o gemido e uma mordida na virilha
me faz abrir os olhos assustada, mesmo ainda absorta em êxtase.
— Não segure seus gemidos, Bambola. Quero ouvir meu
nome em sua boca todas as vezes que te fizer gozar. — Outra
mordida, desta vez do outro lado. — Capito?[296]
Balanço a cabeça afirmativamente, posto que não me
lembro mais como falar.
— Bom… — ele diz, faceiro. — Agora… está vendo a
pequena vela vermelha em formato redondo? — Giulio gesticula
com o queixo em direção à mesinha de cabeceira do lado direito.
Elevo o olhar, ainda com as costas coladas no colchão, procurando
o objeto flamejante.
— Sì… — respondo, um pouco insegura.
— É uma vela para massagem. Não vai te queimar,
Bambola… só esquentar um pouco. Pensei em como poderia
diminuir sua dor na primeira vez — Giulio diz levantando-se e
retirando a cueca boxer. Sua ereção salta vigorosa, expondo a
cabeça rosada e brilhante por conta do pré-gozo.
A lembrança do seu gosto faz minha boca salivar querendo
senti-lo em meus lábios. Mio marito sorri, vendo-me faminta por ele.
— Quer chupar, mia moglie? — Assinto. — Ele é todo seu
— Giulio segura seu pau —, mas hoje quero enfiá-lo na sua boceta
e não na sua boca, Bambola.
Mio marito afunda um joelho no colchão para estender o
corpo e alcançar a dita vela.
— Vira de costas, cara mia. — Resmungo manhosa, mas
viro. Giulio abre minhas pernas com uma única mão, segurando a
vela com a outra. Ele se acomoda entre o ‘v’ de modo a ficar
ajoelhado de frente para meu centro. — Vou despejar a cera
devagar, va benne?
A princípio penso que terei a potta[297] tostada, mas Giulio é
muito maior do que eu. Chio ao sentir uma gota quente atingir o topo
da espinha.
— Shiiii… Bambola… é só calor… — Então, outra gota se
segue, até se tornar uma linha fina. Tenho a impressão que Giulio
escreve algo, mas não falo nada. — O que está escrito, mia moglie?
— Não sei… — respondo baixinho, virando a cabeça para o
lado. Recebo um tapa ardido em uma nádega. — Aiiii… — reclamo.
— Não é essa a resposta certa. Vamos tentar de novo —
ordena, despejando o líquido quente em minha cintura.
— Está escrito Giulio — digo, sabendo estar errado.
Aguardo ansiosamente o ardor do outro tapa. Ouço mio marito rir
baixo.
— Quase, Bambola. Você sente isso? — Giulio dedilha meu
centro. — Sua boceta está pingando, cara mia. Você é a mia
troietta[298], afinal, hum? Diga?
— O quê? Que sou uma troietta?
Recebo um tapa ardido agora do outro lado.
— Nunca diga troietta sem dizer que é minha, capito[299]?
Você é minha. — Ele aperta e massageia o local que bateu. — Fica
de quatro, mia Bambola. Quero beijar sua boceta antes de te foder.
Puxo os joelhos para minha barriga preguiçosamente,
elevando os braços acima da cabeça. Estou de quatro com os
joelhos separados, pois Giulio estava no vão das minhas pernas.
Não demora muito para que sinta seus lábios carnudos
tocando minha intimidade em um beijo de língua esfomeado. Ele
morde cada lado da minha bunda e se posiciona mais próximo.
Sinto-o posicionar a cabeça do pau em minha entrada e ofego
baixinho.
Oddio! Vou perder a virgindade de quatro mesmo?
O tapa ardido na nádega esquerda é a resposta quando
Giulio entra mais um pouco. Então, a dor ínfima em meu interior, só
aumenta a ansiedade em ser ainda mais preenchida. A mão livre
envolve minha cintura e sou imobilizada no lugar.
— O que está escrito em suas costas, Bambola? — Giulio
despeja outra fina linha de cera tracejando ao lado das letras em
minha pele, enquanto que avança seu membro em meu interior mais
um pouco.
— Bambola — respondo, e o líquido quente escorre ainda
mais conforme a ereção me invade e ultrapassa a camada fina de
pele, sinônimo da pureza para a famiglia. — Hum… — gemo,
abafando o som com o rosto no colchão. Desta vez, não sou
repreendida.
Giulio espera. O calor da vela e o ardor nas nádegas
camuflaram um pouco a dor. Mas ela ainda existe. Mio marito aperta
com força minha cintura, beliscando a pele. Percebo pelo cheiro que
apagou a vela e ouço quando a joga ao solo.
Meu corpo está se acostumando no instante em que Giulio
empurra minhas costas, pairando sobre mim e enfiando uma mão
entre o colchão e minha carne sensível. Ele ergue um joelho e
massageia meu clitóris em movimentos circulares com dois dedos.
Não consigo identificar qual sensação está mais acentuada
até que o prazer assume a liderança.
— Eu vou me mexer, Bambola. Seja uma brava ragazza[300]
e me aceite inteiro, va benne? — anuncia em meu ouvido. O
comando autoritário é um gatilho à minha libido e não sei se a
umidade é causada pelo sangue ou excitação, mas o movimento de
quadril de Giulio parece mais lívido.
— Giulio… — gemo seu nome. — mio Giulio.
Ele não devolve qualquer comentário além das investidas
que aceleram num vaivém devastador. As ondas de prazer se
acumulam em meu baixo ventre e sei estar a caminho do precipício.
— O que está escrito em suas costas, Bambola?
Giulio me segura pelos ombros e estoca mais forte, mais
preciso, alcançando um ponto específico de prazer. Meu clitóris
sensível é esfregado nos lençóis causando um atrito bem-vindo.
— Moretto — ofego. — Você escreveu “Moretto”.
A velocidade do quadril de Giulio aumenta e eu grito com a
explosão megacósmica em meu interior, conforme a sensação
avassaladora se esparrama por cada terminação nervosa do meu
ser.
Estou em queda livre, sentindo o pulsar vibrante de minha
boceta ao redor da circunferência de Giulio, engolindo-o e querendo
mantê-lo ali, dentro de mim.
O urro másculo que ouço em seguida é a cartada final para
me manter um tempo a mais no paraíso. Estou completamente
perdida em êxtase, com parte do corpo dormente quando ouço mio
marito:
— Sì, mia moglie… — ele arfa — você agora é propriedade
de um Moretto.
Permaneço consciente só para registrar se ouvi direito, e
antes que a tristeza arrase minhas esperanças pelo amor, me
entrego à escuridão e adormeço.
FRANCESCA ZANCHETTA

Ergo o tronco de súbito assim que abro os olhos, como se


despertasse de um pesadelo. Mas não é. Na realidade, não queria
ter apagado após minha primeira vez e não saber o que havia
acontecido com meu corpo na sequência. Por este motivo, passo a
me tatear e noto que estou vestida.
Deixo escapulir um pequeno soluço de susto ao constatar
que não é a mesma de ontem, e sim, outra na cor vermelha.
Giulio…
Olho para o lado destinado a ele. Vazio. Os raios solares
que invadem o quarto indicam que estamos na metade da manhã,
pelo menos. Oddio!
Os lençóis parecem os mesmos de ontem. Então, puxo para
o lado buscando a marca de sangue. Nada.
Bom… Giulio tirou minha virgindade comigo de quatro,
provavelmente sangrei pouco e a prova ficou em minhas coxas. Mas
mio marito podia ter sujado o tecido mesmo assim. Suspiro,
deixando os ombros caírem no processo.
Aonde ele foi?
Esfrego uma perna na outra sentindo uma leve ardência e
percebo estar sem calcinha. Ele só me trocou, levando o tecido da
camisola sem encontrar uma gota de sangue ou dos resquícios que
Giulio esporrou em mim.
Mio marito limpou o brinquedo. Por mais que tenha
mostrado todas aquelas mensagens, indicando sua busca nos
meses em que eu estava isolada, seus sentimentos não vão além
do que expressou ontem.
Eu sou propriedade de um Moretto, ou seja, um objeto como
outro qualquer.
Não sei o que pensei. Fiquei comovida e com a expectativa
de ser correspondida, pelo menos um pouquinho. Boba. Suspiro,
esticando os braços e as pernas, despertando meu corpo. Na
sequência, escaneio o quarto e não vejo mais as velas.
Ele tirou tudo enquanto eu dormia? E eu não acordei?
Realmente fiquei surpresa com a atenção de mio marito em
colocar velas e usar de algum artifício para amenizar a dor na minha
primeira vez.
Deveria agradecer pela consideração, penso. Mas por que a
vontade que tenho é de estrangulá-lo?
Ah… talvez porque do mesmo modo em que demonstrou
seu cuidado, me objetificou chamando de propriedade?
Tola. Idiota. Inocente…
Esfrego a testa, e analiso novamente os lençóis, bom… o
último adjetivo tem que ser tomado de modo diferente agora. A
imagem de Giulio nu e seu toque sedutor me fazem suspirar.
Caspita! Por que o amo, Madonna mia? Eu não deveria amar esse
homem.
Mas… eu o amo.
Argh!
É impossível falar sobre desejo, e Giulio já disse que me
acha bela. O que não me diferencia de outra donna[301] que passou
por sua vida. Salvo ter sido a mim que escolheu como moglie[302].
Não basta.
Melhor tomar um banho e procurar por ele. Permanecer no
quarto não mudará em nada o que quero.
Após fazer minha higiene pessoal, com direito a um banho
rápido, escolhi vestir uma calça jeans e um suéter de linha na cor
azul-claro. Calcei um tênis branco confortável e segui para o
primeiro piso em busca da cozinha.
Podia estar perto do horário de almoço, mas eu precisava
comer algo e buscar notícias do homem que evaporou durante meu
sono, limpando qualquer indício da noite anterior.
Assim que desci o último degrau, sigo em direção à cozinha.
Mesmo que estivesse morando ali há algum tempo, ficava confusa
se o corredor era ou não o correto. O lugar era imenso, e pensei até
em desenhar um mapa um dia desses.
Enfim, eu havia acertado. Porém, não encontrei uma viva
alma. Não sabia ao certo se encontraria algo para montar uma
refeição decente na geladeira. Consegui fazer um sanduíche de
presunto pelo menos.
Estou retornando da cozinha e caminhando tranquilamente
até a sala de estar quando sou içada e prensada na parede.
— Onde você estava? — Giulio indaga, segurando meus
ombros. — Em que lugar você se meteu, Francesca?
Ele parece bravo e assustado ao mesmo tempo. Seus olhos
tempestuosos clamam pela resposta.
— Gi-Giulio, você está me machucando — informo sobre o
aperto que agora descia para os braços.
— Responde, Francesca! Aonde você foi?
— E-eu estava com fome… Fui até à cozinha — indico com
o olhar. Ele retoma a razão e me libera, praguejando alguns
palavrões e passa as mãos pelos cabelos.
É quando noto que está com roupas casuais e não o
costumeiro terno. Apenas uma calça jeans de lavagem escura e
uma camiseta branca, que contrasta com os olhos e cabelos
escuros. Minha boca saliva frente ao prato favorito.
— O café da manhã está servido na sala de jantar. Você
deveria ter ido até lá — Giulio devolve, ainda ríspido.
— E como eu ia saber? — Coloco uma mão na cintura,
jogando o quadril para o lado. — A culpa de não estar onde você
queria é sua que não me acordou para ficar comigo.
A parte do “ficar comigo” eu poderia ter deixado passar. Mas
oras! Foi a minha primeira vez, será que ele não pensou que eu
gostaria de acordar ao seu lado?
— E você queria isso? — A pergunta é a resposta, não? —
Eu pensei que… Porcodio! Você dormiu ontem. Pensei que queria
descansar e… depois iria descer para tomar café da manhã.
— Eu desci e por incrível que pareça nenhum dos
funcionários da sua casa apareceu com alguma coisa para mim.
Então, tive que me virar, indo até à cozinha.
Então, Giulio bufa um riso como se eu tivesse dito algo
engraçado.
— Va benne… Venha. Não sei o que comeu, mas talvez
caiba um pouco mais de comida em você. — Giulio me conduz pela
mão. — E você está errada.
— Não. Não estou. Todos os dias alguém aparecia com uma
bandeja repleta de comida de café da manhã.
— Está errada ao dizer minha casa. Aqui é a nossa casa,
Bambola. Agora você é uma Moretto.
— Ah… isso não vou esquecer. Você deixou bem claro que
sou a propriedade de um Moretto ontem à noite. — A afirmação
devia ter saído de modo enérgico, mas não pude esconder a
mágoa.
Estou com as emoções à flor da pele e só por este motivo
uma lágrima desobediente escorre em minha bochecha. Seco
rápido, mas Giulio vê.
Assim que chegamos à sala de jantar, vejo uma mesa posta
com diversos pães, frutas e duas jarras de suco, um na cor
vermelha e outra na cor amarelada.
Então, não aguento e passo a soluçar, sentindo-me boba.
Como controlar o que sinto por esse homem, quando faz coisas
como essas.
— O que foi, Bambola? Não chora. — Giulio me abraça com
carinho. Em seguida, me ajuda a secar as lágrimas, o que faz o
tsunami de emoções destroçar toda morada de sanidade em meu
interior. — Eu te machuquei ontem à noite?
Nego com a cabeça, pois mio marito está indagando sobre o
físico e não o emocional.
— Vem aqui — Ele puxa uma cadeira e me faz sentar em
seu colo. — Tome. Sei que gosta de uvas, você comeu quase a
bandeja inteira no jantar em Monza.
Expiro um riso sem humor, pegando o cacho. Acabo por
aceitar e comer a fruta em busca de colocar algo doce no amargo
da boca.
Giulio ajeita uma mecha do meu cabelo, colocando-a atrás
da orelha.
— O que você quer, Bambola?
A pergunta genérica me dá a oportunidade perfeita. Não vou
desperdiçá-la.
— Que você me ame — confesso. Giulio me encara,
estudando minhas feições com seriedade. Ele fica parado por tanto
tempo, que imagino ter grudado em seu colo pelas teias que se
formaram ao nosso redor. Pelo menos, é a sensação que tenho.
— O amor em meu clã é sinônimo de doença, Bambola. E
eu não quero ficar doente.
Meu coração se aperta um pouquinho mais, dolorido pelo
tiro que levou. Encolho-me em seus braços, fitando as uvas em meu
colo.
— Mas te prometo que irei cumprir com as palavras ditas na
igreja, e serei fiel a você.
Ergo o olhar para mio marito, sem entendê-lo. Giulio é a
pessoa que machuca e costura meu coração, deixando-o repleto de
marcas.
— Tudo bem — aceito, mesmo gritando por dentro. Em
seguida, me ajeito em seu colo e me estico para alcançar uma das
jarras de suco.
Passo a me alimentar como sugerido por mio marito, e
descubro que realmente cabe mais comida dentro de mim. Tento
sair de seu colo, mas ele me segura no lugar. Fico ali, esticando o
braço e inclinando o corpo para alcançar o que quero, vez ou outra.
Em dado momento, sinto a grossura de Giulio e viro-me
para ele. Seus olhos são duas órbitas de puro desejo.
— Se não está machucada, Bambola, termine logo seu café
e vamos voltar para o quarto. Tirei três dias de folga como nossas
núpcias tardias que quero aproveitar muito bem.
Sorrio, imaginando meus próximos dias trancada na torre
com o dragão. Sou a princesa que se apaixonou por seu algoz.
A vontade de sentir suas garras me faz remexer em seu
colo. Giulio libera um gemido rouco e sou tomada pela coragem que
surge juntamente com a minha libido.
— Terá que me pegar primeiro. — Mordo a última uva e pulo
de seu colo, correndo em direção às escadas. Ouço Giulio gargalhar
e segundos depois seus passos pesados estão atrás de mim.
Eu queria viver um grande amor. Mas como não será
possível, vou me contentar com a fidelidade que prometeu, mesmo
sabendo que a moral de um mafioso é tudo, menos confiável.
Nos dias seguintes, passamos boa parte na cama e outra
nos diversos cômodos da cobertura. E como se soubessem do caos
no qual eu e Giulio vivíamos após o casamento, seus irmãos
surgiram na cobertura apenas após os três dias de folga em que nos
entendemos.
Gostei muito de ver a interação entre eles.
Vi mio marito mandar seus frattelos embora mais de uma
vez, pois eles pareciam extremamente grudados. Não sei se Giulio
era assim antes de mim, mas Max mencionou que atormentar o
irmão mais velho fazia parte da rotina dos mais novos.
Enfim.
A convivência deles me fez sentir a falta dos meus e, por
este motivo, hoje, estou empolgada. Michela chegou ao aeroporto e
Fausto foi buscá-la para mim.
— Não sei se te contaram, cognata[303], mas a velocidade do
carro de Fausto não vai mudar em nada se esperar sentada —
Maximus diz debochado, sentado de modo desleixado no sofá.
Ignoro a brincadeira por realmente estar andando de um
lado para o outro, e isso incomodá-lo de certa forma. Suspiro e
sento-me no braço da poltrona mais próxima.
— Mi scusi[304]. É que só fiquei tanto tempo longe de Michela
quando fui para Cambridge.
— Não peça desculpas, Bambola. Você pode fazer dessa
sala seu lugar de caminhada se quiser. Este impiastro[305] não
precisa estar aqui em cima — Giulio esbraveja, entrando no cômodo
e sentando-se na poltrona em que estou escorada.
Ele me puxa pela cintura e deslizo para seu colo. Sorrio e
dou-lhe um tapinha no ombro, repreendendo-o.
— Não fala assim com tuo frattelo. Ele só quer um pouco de
atenção — pontuo, rindo quando Giulio afunda o rosto em meu
pescoço, escondendo-se em meus cabelos soltos.
— Isso mesmo, Tchesca. Io sono muito carente. — Não sei
o que mais me faz rir do contexto, Maximus fazendo beicinho e
falando com voz de criança, ou as cócegas que recebo de Giulio.
— Eu é que quero a atenção da mia moglie — cochicha.
— Fui muito atenciosa hoje cedo, marito — replico baixinho,
tentando não remexer exageradamente em seu colo por conta de
nosso espectador.
— Acho que dá tempo de vocês darem uma rapidinha no
quarto, viu? Minha namorada é ciumenta e agora não posso mais
ser voyeur — Max estala a língua, mas é nítido o ar brincalhão.
Perguntei para Giulio sobre a tal namorada outro dia e ele
desconversou, dizendo ser apenas passatempo do irmão caçula.
Nunca ouvi nenhum comentário sobre Maximus e alguma ragazza
da famiglia. Ele e os irmãos Moretto se envolviam sempre com
alguém de fora.
— E por que você não segue seu rumo e espera o Fausto
em outro lugar, hum? — Giulio insiste, com o cenho franzido.
Porém, é palpável a descontração no ar.
— Porque este sofá — Maximus desliza os braços abertos
no encosto — temos história. — Ele pisca para mim. — Capito?
— Hum? — murmuro a indagação.
— Agora zitto[306]. Devia ter ido com Fausto buscar a
ragazza, cazzo.
— Ele não me esperou. Eu ia, mas… minha cama me
agarrou. Juro. — Não aguento a resposta dada tão levianamente e
solto uma gargalhada. Giulio tenta manter a carranca, mas consigo
ver o sorriso de canto.
Neste momento é que ouvimos uma comoção vinda do hall
de entrada. Então, levanto-me apressada e ajeito a camisa de linho
branca que saiu um pouco da calça jeans.
— Caspita! Você quebrou meu nariz, ragazza teimosa — A
voz de Fausto é a primeira que identificamos.
— Eu já pedi desculpas. Está parecendo um bebê chorão.
— Agora é Michela que devolve alcançando o portal da sala onde
estamos. Seus olhos vagueiam o local até me encontrar. —
Tchesca! — Corremos uma para a outra e nos abraçamos.
— Frattela… Como é bom ver você. — Aperto-a em meus
braços e ficamos unidas por um tempo. Quando nos afastamos,
cumprimento Fausto com um aceno de cabeça. — Grazzie por te se
dado ao trabalho de buscar Michela, cunhado.
— De nada, Francesca. Mas não vou amenizar o quanto
deu trabalho — reclama, fazendo-me fitar mia frattela.
— Eu não fiz nada, Tchesca. Meu nécessaire caiu e fui
pegar. Não tinha como adivinhar que o cazzo queria ser cavalheiro e
se abaixou logo depois. Quando ergui a cabeça, acertei o seu nariz.
— Michela diz um pouco sem jeito, passando uma mão no braço
estendido ao lado do corpo.
— Va benne, va benne. Estou sendo um cazzo mesmo. —
Fausto segura o nariz entre os indicadores e dá um solavanco. —
Acho que coloquei no lugar. Meu dia não está sendo dos melhores e
estou descontando em você. Eu é que peço desculpas.
Michela parece não acreditar que Fausto voltou atrás e está
se redimindo.
— Desculpas aceitas. — Ela estende a mão para ele que
hesita até apertar a palma de mia frattela. Sorrio com a semelhança
que vejo ao notar o quão pequena a mão de Michela é em relação a
de Fausto.
— Bom… Seja bem-vinda, cognata[307]. Seu quarto está
preparado e espero que sua estadia em Palermo tenha dois “B’s”,
boa e breve. Va benne? — Giulio se aproxima e deposita um beijo
em cada bochecha de Michela. — Bambola, agora tem companhia.
Eu e mios frattelos vamos trabalhar. — Ele me dá um beijo casto
nos lábios. — Venire stronzo[308]! — Faz um gesto para Maximus
levantar.
— Oddio[309]! Vocês não vivem sem mim — Max dá um pulo
de gato para sair do sofá e caminha até Michela. — Seja bem-vinda,
ragazza. E não escute mio frattelo, ele não quis dizer aquilo. —
Como Giulio, Maximus deposita um beijo de cada lado do seu rosto.
— Bambola, retorno à noite. Não me espere para o jantar,
va benne? — Mio marito diz, vestindo o paletó para compor seu look
com o terno chumbo completo.
— Sì. Mas eu e Michela podemos sair? — indago, não
apenas pelo hábito de ser submissa, mas porque Giulio tem ficado
cauteloso e aumentou a minha segurança.
— Hoje não, Bambola. — Assinto e vejo os três irmãos
Moretto saírem de casa. Faço a pequena oração mental que sempre
fiz para papà e Luigi quando também iam trabalhar.
— Nem hoje, nem amanhã… duvido que vamos a qualquer
lugar, Tchesca. — Michela ocupa o lugar deixado por Maximus. —
Não importa. Eu vim para ficar com você.
Esboço um sorriso largo e jogo as costas no sofá fofo.
Maximus tem razão em gostar desse móvel. Ele praticamente nos
abraça quando sentamos nele. Puxo mia frattela em meus braços e
aperto-a mais um pouco.
— Senti sua falta, Chela.
— E eu a sua. — Ela se ajeita, colocando o cotovelo no
encosto e descansando a cabeça na palma. — Valentina também
queria vir, mas zio[310] Esposito não deixou. — Michela faz uma
carinha triste. — Queria aproveitar a viagem para conversar com ela
sobre Alessio.
— O quê que tem Alessio?
— Eu e a Tina o ouvimos perguntar para Luigi quando seria
bom pedir para papà minha mão. — Levo uma mão sobre a boca e
arregalo os olhos. Pobre cugina.
— E Tina?
Michela respira profundamente antes de continuar.
— Ela não quis conversar a respeito e todas as vezes que
tentava, mudava de assunto. — Michela vira de barriga para cima,
fitando o lustre gigante no formato de diversas elipses que descem
do teto alto. — Eu disse que não sinto nada por ele, Tchesca. Disse
que ia falar para papà que não quero assumir um compromisso com
alguém que tenho como irmão. É nojento.
— Tina também deveria vê-lo como irmão — pontuo.
— É diferente. Tina sempre gostou de Alessio. Ela dizia que
ia se casar com ele desde que me conheço por gente. Eu nunca vi
nosso cugino[311] assim. — Suspira alto.
— O que Luigi falou?
— Hum?
— Para Alessio quando vocês estavam ouvindo atrás da
porta. O que nosso frattelo falou?
— Foi por acaso. A gente não ouviu atrás da porta —
Michela me imita, mostrando como que mesmo com saudades ainda
é minha irmã caçula. — Ele disse que podia falar quando quisesse.
Não é como se você tivesse morrido e precisássemos esperar o luto
passar. — Ela emana alguns sons de insatisfação. — Ah, Tchesca…
o pior foi Luigi dizer que se pudesse escolher, era ele mesmo que
escolheria para mim.
— A Valentina sabe que não temos escolha. Ela não deve
estar te culpando de nada.
— Não está, acho… Mas está estranha. Queria tanto fazer
algo para que papà nem cogite a hipótese do meu casamento com
Alessio… Só não sei o quê…
— Se você ficasse noiva de outro, oras — constato o óbvio.
— E como posso fazer isso, Tchesca? Existe algum feitiço
para fazer um homem me pedir em casamento, mas que não queira
se casar comigo e rompa o noivado?
A pergunta completa de Michela basicamente descreveu o
que aconteceu comigo numa escala Richter de maremoto.
Entretanto, houve casamento depois.
Permaneço calada por alguns minutos, pois a memória do
meu noivado não é algo que quero reviver. Meu casamento não é
perfeito. Mas Giulio tem se empenhado em ficar comigo sempre que
pode.
Ele também me fez descobrir que tenho habilidades de
contorcionista — algo novo para mim —, bem como me fez
descobrir quanto tempo fico sem respirar. Em todos esses
momentos, mio marito meu levou ao paraíso e me manteve lá por
alguns minutos. O orgasmo é realmente a pequena morte. E que
morte deliciosa.
— Tchesca? — Saio do devaneio com Michela me
cutucando. — Tchesca você estava com uma cara engraçada.
Sorrio sem graça. Melhor trazer outra coisa à tona.
— Sabia que Giulio disse que posso voltar a estudar na
próxima semana?
— Jura? Que maravilha! Esse meu cunhado está subindo
em meu conceito, hein? — Ela empurra meu ombro. — E quem é
seu segurança agora?
— Ele se chama Zacheo. O cara que me salvou na festa da
escola, lembra?
— Aquele cara tem língua? Tuo marito não cortou não?
— Credo, Chela! Claro que tem. — Rio.
— Ele não fala. Acho que de todos os soldatos que já
fizeram a nossa segurança, ele era o mais calado. — Michela faz
uma cara de mistério engraçada, cerrando os lábios numa linha fina.
— Boba — rio. — Zacheo é um bom homem. Só não vai
assistir às aulas comigo como Dario fez.
— Uma pena… Seria bom ter mafiosos mais cultos nos dias
de hoje. — A engraçadinha persiste. Rimos juntas.
Passamos o restante do dia conversando sobre assuntos
diversos, evitando mencionar qualquer coisa sobre o eventual
pedido de casamento com Alessio.
É uma pena nosso cugino ser tão apaixonado pela cugina
errada. Uma pena…
GIULIO MORETTO

Já passa de uma hora que a reunião do Consiglio começou


e até agora nenhum dos Caporegimes apresentou algo diferente
daquilo que descobrimos com as nossas investigações.
Após ter cargas apreendidas por motivos diversos dentre
contratempos com a alfândega e excesso de peso, o que mais me
preocupava eram os pequenos ataques que sofríamos juntamente
com dois ou três containers.
Não havia como nossos inimigos saberem exatamente qual
container continha os produtos da Cosa Nostra. Às vezes, eram
mais de setenta unidades, e a disputa acontecia para extraviar o
que trazia ora armamentos, ora entorpecentes.
O rato estava em nosso porão e o fato de estarmos
demorando tanto para encontrá-lo dava a entender que estava
ganhando mais confiança, e pior, que não era apenas um.
Foi então que Fausto teve a ideia de implantar rastreadores
nas cargas que parecem agradar os figli di puttana[312].
Não dá para saber com exatidão quando ocorrerá a
emboscada, e também em quem confiar. Por isso, eu e meus irmãos
começamos a fazer viagens esporádicas, escolhendo apenas dois
soldati[313] de confiança cada. Ninguém mais sabia.
Nós mesmos nos infiltramos dentre empregados dos
fornecedores para colocar o dispositivo.
Tinha esperança de encontrar a última carga. Fausto estava
no comando da operação, pois não podíamos errar e nos
acobertávamos uns aos outros. Mio frattelo atravessou o canal de
Messina até o território da ‘Ndrangheta e seguiu o caminhão de
perto.
Todavia, o infelicce fez um retorno errado e parou num posto
de combustível. Ali foi o erro de Fausto. Ele não imaginou que
pudesse ser reconhecido e entrou no lugar para mijar. Foi quando
dois soldati[314] dos calabreses reconheceram Fausto.
Mio frattelo matou a ambos e retornou sem êxito.
Estou cansado em ouvir sobre os corpos queimados no
embate que aconteceu em Saracusa, bem como a ligação com a
Stidda. Não havia nenhuma prova concreta a não ser as correntes
com o símbolo de cobra retorcida que usavam. Algo que podia ter
sido forjado.
Não vejo por que continuar com a merda se não
chegaremos a lugar algum. Encaro tio Marcelino que cochicha algo
no ouvido de papà.
Nunca é possível saber o que mio zio fala. O cazzo sabe
movimentar a boca de um jeito a retorcer as palavras e nem o mais
exímio leitor de lábios conseguiria decifrar.
A única coisa que me deixa contente é saber que o toque
sútil no ombro de papà significa a necessidade de encerrar logo.
Sorrio. Oggi[315] vou levar mia Bambola para jantar e depois
irei experimentar alguns brinquedos que comprei para ela.
Mia moglie[316] pode ser uma principessa criada com cuidado
em excesso pelos Zanchettas. Mas em meus braços se torna uma
rainha sedutora. A safada tem se descoberto e me feito cativo de
sua boceta de ninfeta.
— Minha vontade impera, — papà recita a primeira parte
para o encerramento.
— Enquanto a famiglia prospera. — O coro de homens da
sala responde em uníssono.
As cadeiras se arrastam e todos começam a se despedir,
seguindo seus caminhos. Estou fechando o paletó do terno quando
ouço Maximus gargalhar e busco o que é tão divertido. Nino e Tito
Basile estão conversando animadamente. Cerro os olhos
fulminando mio frattelo.
Não tenho que me preocupar com o Caporegime de Trapani
porque fui eu quem se casou com Francesca e não ele. Sem contar
que soube ter finalizado os créditos da disciplina na qual estudava
com mia Bambola.
Mesmo assim, a pressão em meu maxilar é inevitável ao
recordar de sua audácia em apresentar suas intenções ao Signore
Zanchetta para assumir o meu lugar de noivo.
O pior foi saber que a seu exemplo outros tenentes
propuseram e se colocaram como candidatos.
Eu sabia que mia Bambola era bela. Mas foi aí que soube
que não era apenas sua beleza, e sim a força que o Caporegime de
Messina possui na Cosa Nostra.
Gostaria de poder matar a todos. O barulho de trincar de
dentes é suficiente para me tirar do torpor de ódio. Se matasse
todos os homens que desejam mia moglie, não sobrariam homens
para comandar.
Não foi fácil reaver o compromisso. Primeiro, tentei abordar
o meu sogro dizendo que assumiria minha obrigação como Uomo
d’onore[317] e respeitaria o ormetà[318] em honrar as mulheres da
famiglia.
O vecchio pareceu se divertir com minha humilhação no
pequeno discurso para depois dizer que sua figlia não me queria
mais. Simples assim.
Então, aderi para os boatos e os comentários que poderiam
surgir se eu apenas dissesse em um momento de bebedeira o que
fiz com Francesca. O homem ficou puto e só não me desafiou ali
mesmo para a cutelaria, pois seu filho foi mais rápido.
Minha inteligência também não me deixou ir para tal
conversa sozinho. E papà tomou as rédeas como Don, frustrado por
ter que resolver a merda que eu havia feito. Ele deixou escapar
durante a conversa sobre minha idolatria para com mia mammina,
bem como minha revolta ao entender uma conversa errada.
Fui tratado como um bambino. Luigi foi controlado, com a
promessa que o desafio aconteceria se o casamento não
acontecesse em dois meses.
No final das contas, eu tinha conseguido o que queria. Não
do modo que meu orgulho queria, mas…
— Figlio, está indo para o cais? — Mio padre indaga atrás
de mim.
Assinto com a cabeça.
— Então vamos juntos. Preciso resolver algumas
pendências.
— Va benne. — Sigo ao lado do Don e vamos para o cais
lado a lado como hábito que fazemos desde que sou um menino.
Estaciono o veículo próximo à Marina e jogo as chaves para
nosso motorista que nos acompanhou para levar papà de volta para
a mansão. Dali eu iria direto para a cobertura.
Passamos pelo setor de carga e descarga, vendo os
marinheiros conversarem alto. O lugar todo é uma balbúrdia de
sons. Após alguns metros o som diminui e é possível ouvir os
comentários de papà sobre as engrenagens que costumavam usar
nos guinchos de antigamente.
— Se um dos homens precisasse se coçar e soltasse a
corda… — Ele faz um som de suspense e estrala o dedo em
seguida, indicando a queda livre da carga.
Bufo um pequeno riso, pois já ouvi isso um milhão de vezes.
— Estou feliz por você, Giulio — diz, mirando o horizonte.
Estamos na beirada do platô de ferro. A embarcação que estava
aqui ancorada acabou de zarpar. — Eu não pude casar por amor. —
Ele inspira o ar e libera devagar. A maresia acaricia nossos rostos e
a leve brisa bagunça nossos cabelos, antes alinhados. — Valorize o
que você tem.
— Eu não amo Francesca — digo de pronto. — O signore
mesmo disse que amor é uma doença.
— Eu disse que o amor da sua mammina era. Mas o
sentimento não é, figlio.
— Foi mammina que me ensinou algo perto de amor. Não
posso amar ninguém, ou também ficarei doente.
Don Moretto me observa abismado, crispando os lábios
descontente com a minha conclusão.
— Você não é só filho de sua mãe, Giulio. Eu vejo muito de
mim em você.
— Eu jamais deixaria Francesca ficar com outra pessoa. Ela
é minha. — Papà bufa, decepcionado. Ele desvia o olhar para o mar
e continua a divagar.
— Meu amor por você e seus irmãos nunca foi uma doença,
figlio. — Agora isso eu não tenho como contradizer. — Só se lembre
disso, va ben-
E Don Moretto não termina a expressão. Sua mão é levada
ao peito e tão logo ele tosse, cuspindo sangue. O homem ao meu
lado cai sobre mim e quando seguro mio padre sinto o pequeno furo
no paletó em suas costas.
— PAPÀ! — Ajoelho-me ao lado de Don Moretto que
continua tossindo o líquido viscoso. A camisa branca e o colete
cinza estão com uma mancha vermelha e passa a aumentar
gradativamente. Olho para os lados, percebendo que estávamos
longe dos nossos soldatos. Por estar em nosso cais, não nos
precavemos.
— Giulio… — mio padre fala com dificuldade.
— Calma papà. Io voglo[319]… — Pego o aparelho celular e
disco para Homero. — Atiraram em Don Moretto. Venha agora. —
Mando a localização de imediato, sabendo que viria com ajuda.
Deito mio padre e seguro-o em meus braços. Sinto a imensa
nostalgia pela posição na qual me encontro, recordando do modo
que segurei mammina quando criança, agora estou com mio papà.
A dor rasga meu peito como um relâmpago que dilacera o
céu. As pálpebras do homem grisalho que tanto admiro começam a
se fechar e vejo a sua luta em mantê-las abertas.
— Giulio… — ele me chama baixinho. Sinto a primeira
lágrima escorrer dos meus olhos quando me inclino. — Você já a
ama… e não é doente.
Os braços amolecem caindo ao lado do corpo, bem como a
cabeça de Don Moretto que pende para trás. Morto.
— Aaaaaaaaa… — grito, ouvindo os passos tardios dos
nossos homens.
Abraço o corpo de mio padre e deixo as emoções de
angústia e tristeza tomarem conta, chorando por perder mio padre e
mio Don.
GIULIO MORETTO

Aguardei por esse momento a minha vida toda, mas não


imaginei que seria sob essas circunstâncias. Sabia da possibilidade
em virtude dos nossos negócios, mesmo assim, tinha a falsa
esperança de que mio padre tinha o corpo blindado.
A tentativa de manter o coração fechado após a perda de
mia mammina era em vão. Sentia-me um miserável usurpando o
lugar de Antonio Moretto. Queria ver em seus olhos o orgulho ao
passar a cadeira de Don para mim e ter sua benção. No momento, a
amargura pela tragédia no cais maculou minha ascensão.
A dor de perder mio padre está cravada em meu peito como
uma lâmina afiada. Ele morreu em meus braços por uma bala
traiçoeira que veio do nada. Ninguém tinha visto qualquer pessoa
diferente que pudesse ser um suspeito.
Nem ao menos poderia usar das habilidades de Fausto,
posto que estávamos em um local sem acesso às câmeras. Fomos
imprudentes. A arrogância dos Moretto em pensar que ninguém
ousaria nos atacar em nosso território foi a causadora da morte do
Don da Cosa Nostra.
No dia, não aceitei os braços de mia moglie quando entrei
em casa ensanguentado e segui em direção a outro quarto para
ficar sozinho. Francesca não podia me ver daquele jeito. Eu não
queria que ela visse. Demorei algumas horas, mas quando saí do
cômodo estava de banho tomado, vestindo o terno preto. Ela me
aguardava na sala em trajes discretos também na cor fúnebre.
Mesmo sendo velado na maior igreja de Palermo, o lugar
estava lotado. Parte da cidade parou por conta do cortejo até o
cemitério.
Agora, duas semanas após a tragédia, o manto de liderança
pesava sobre meus ombros, um fardo que aceitava com honra.
Estávamos todos na sala de conferência maior na mansão
Moretto. O lugar era no subterrâneo e correspondia a um imenso
anfiteatro, pois não era possível realizar a celebração com
aproximadamente 300 pessoas.
Quando passou dos 119 beijos no dorso de minha mão
direita, não contei mais. Devo admitir que os cochichos de tio
Marcelino ao pé de meu ouvido, como fazia com seu irmão, têm me
mantido mais sereno. Pensar que um desses homens que juram
lealdade com a própria vida pode ser o assassino de papà me faz
querer descarnar alguns corpos.
A voz serena do meu zio Marcelino que me manteve
centrado. Ninguém se incomodava com a atitude que se tornara um
hábito. Ele permanecia ao meu lado como Consigliere, oferecendo
orientação para conduzir a primeira reunião que presidiria como
Don. Assim que nos sentamos à mesa central ocupada por onze
lugares, ele continua a me guiar.
— Renzo é o único que te olhou nos olhos apenas quando
prestou o Omertà — Meu zio sussurra em meu ouvido. Eu havia
notado, mas ter a confirmação vinda de outra pessoa torna o indício
mais crível.
Inconscientemente meneio a cabeça de leve, percebendo
agora que fiz tal qual papà fazia. É impossível evitar a sensação de
melancolia que me atinge no peito.
Respiro fundo e recobro o controle necessário para
encontrar o culpado pela morte do Don. A sabedoria do Consiglieri
estava do meu lado. Zio Marcelino chorou como menino ao enterrar
o irmão, mas assim que o caixão foi fechado ele se recobrou e
retomou a postura firme. Todos ficamos alguns dias reclusos até a
data marcada para que eu assumisse.
A reunião começou com uma tensão palpável no ar.
Primeiro houve certa aclamação pelo fato de ter nomeado Fausto
como Sottocapo e Maximus como Caporegime de Palermo,
sentados um ao meu lado esquerdo e o outro ao meu lado direito.
Alguns tenentes se colocavam indevidamente na linha de sucessão
como se a prestação de serviços houvesse crédito para isso.
Toda essa ganância de poder fomentava a desconfiança. Eu
sabia que havia um traidor entre nós, alguém estava passando
informações para o inimigo atacar nossas cargas. Era uma afronta
que não podia mais tolerar.
Meus olhos se voltaram para Renzo Silvestre, o Caporegime
de Siracusa. A perda de sua esposa e filha ainda era ferida que
nunca cicatrizaria completamente. Era difícil entender os motivos
que poderiam levá-lo a trair a famiglia. Afinal, eu havia vingado a
morte de sua família.
Bufo o ar com um suspiro frustrado. Em seguida pego o
maço de charutos de papà. Seguro o invólucro entre meus dedos,
sentindo a textura áspera e levemente oleosa da folha de tabaco.
Com um cortador afiado, faço um corte preciso na extremidade,
lembrando de quantos dedos o antigo Don tinha decepado com o
objeto. Acendo o charuto com um isqueiro de aroma suave.
Cada tragada subsequente era uma lembrança de mio
padre algumas vezes neste lugar, e tantas outras no salão menor,
andares acima.
Meu limite para as discussões fajutas que alguns capos
colocavam à mesa diretamente a outros, esquecendo-se quem eu
havia me tornado, estava por um fio.
Eu olhei cada Caporegime nos olhos, buscando qualquer
sinal de traição naquela balbúrdia.
— Quem entrou no cais só pode ser alguém de confiança —
Demetrio, tio de Francesca, é o primeiro a apontar o óbvio.
— Mas quem? O lugar estava aberto — Enrico Zanchetta
emenda.
O murmúrio continua por mais alguns minutos. Até que me
vejo entediado com a sequência de comentários e até acusações
indiretas.
— Zitto![320] — digo em alta voz. — Talvez alguns tenham
problema de memória recente, mas acabaram de jurar lealdade para
mim. — Empurro a cadeira pesada, conforme me levanto de súbito.
Passo a caminhar ao redor da mesa, observando pela primeira vez
a assembleia de modo diferente.
A pequena plateia de tenentes que compunha as fileiras de
cadeiras estava organizada por regiões de modo a ver nitidamente a
divisão das províncias.
— Temos um traidor — declaro. Imediatamente, o silêncio
tomando conta do ambiente. — E ele vai responder pelo que fez.
Alcanço a outra extremidade da mesa, debruçando sobre o
espaldar e cruzando as mãos, com o charuto pendente entre os
dedos.
— Don Moretto, peço a palavra — Nino Basile é quem
prolata o primeiro pedido direcionando-se a mim como Don, e
respeitando nossos costumes.
Observei que enquanto todos falavam, ele e seu irmão
estavam de braços cruzados sem se manifestar.
Um ponto para o stronzo que tento roubar a minha moglie.
Talvez lhe cortar a mão estivesse fora de cogitação… mas quem
sabe alguns dedos, penso.
— Você a tem — devolvo.
— Há provas sobre a traição?
— Não acha que a morte de mio padre é prova suficiente?
— Maximus se exalta, e eu o fuzilo com o olhar pela impertinência.
Meu outro frattelo deve tê-lo chutado por debaixo da mesa, pois tão
logo recebo um pedido de desculpas.
— Não digo sobre a existência da traição, mas sim se há
provas — Nino destaca sua intenção. Se há um traidor, claro que
revelar o que temos seria dar munição ao bandido.
Pergunto-me se de fato o laudo que atestou sua inteligência
acima da média estava correto. Então, penso melhor, e vejo que sua
argumentação não é para obter um resultado direto.
O silêncio voltou a reinar por um breve instante. Caminho
vagarosamente e paro próximo à cadeira de Renzo Silvestri. A
oportunidade única para ver não somente sua reação, mas dos
demais.
— Renzo, Caporegime de Siracusa, você está disposto a
fazer o que for preciso para proteger a famiglia? — lanço a
indagação e sigo até minha cadeira.
É nítido o incômodo causado pela pergunta dirigida a um
dos vecchi[321] mais antigos, bem como o que mais sofreu perdas
dentre os presentes.
— Don Giulio Moretto, juro pela minha vida e pela memória
do antigo Don que faço o que for preciso para encontrar quem é o
traidor — responde com determinação na voz, como se tivesse
cuspindo sua indignação pela desconfiança.
Eu o observei atentamente, avaliando suas palavras e sua
expressão. Vasculhei o rosto de todos, percebendo o sorriso de
canto de Nino Basile. O sujeito conseguia ser mais arrogante do que
eu e estava demonstrando que foi ele a me mostrar o caminho a
seguir.
Figlio di la puttana.
O Caporegime de Trapani continuaria a ser una busta di
piscio[322]. Desfaço-me do charuto no cinzeiro e dou por encerrada a
reunião.
— A minha vontade impera, — dito, aguardando a resposta
de todos.
— Enquanto a famiglia prospera. — Ouço o coro de uomini
d’onore[323] ecoar na sala pela primeira vez direcionado a mim.
Assopro o ar com força pelas narinas e aguardo. Todos sabiam que
a discussão do Consiglio seria breve por conta da celebração da
minha ascensão como Don.
Meia hora depois o anfiteatro estava praticamente vazio,
restando apenas eu, meus irmãos e o clã Zanchetta.
— Don, peço a palavra — Enrico Zanchetta parece que
aprendeu algo com Nino. Assinto e ele prossegue: — Precisamos
resolver sobre a situação de mia figlia Michela.
Eu estava disposto a argumentar algo sobre Francesca até
notar que o nome era diferente.
— Scusa?[324] — O assombro veio primeiro. — Por quê? O
que aconteceu com a ragazza? — Não entendia por que fiquei
incomodado com a ideia de mia Bambola ter que sofrer por sua
irmã, seja lá o que aconteceu com ela.
— Tuo frattelo pode revelar, não? — Os olhos de mio
suocero[325] caem sobre Fausto com ferocidade.
— Vish… ainda bem que o outro filho é macho, ou também
sobraria pra mim — Maximus debocha, fazendo outras de suas
piadas sem graça. — Como o assunto da famiglia passou a ser
bom… da famiglia — ressalta, gesticulando para nós. — Acredito
que minha presença é desnecessária.
E ele sai apressado pela porta mais próxima que apenas
nós costumávamos usar. Como educar Maximus pode esperar outro
dia, escolho pelo frattelo que aparentemente foi influenciado por
mim.
— Então, mio suocero[326], qual a situação entre Fausto e
Michela que precisamos resolver?
— Talvez o fato que os Moretto não sabem respeitar uma
damiggela — diz com altivez.
— Desde quando derrubar um maldito necessaire é
desrespeito? — Fausto empertiga, deixando Signore Zanchetta e
tuo figlio Luigi sem entender.
Bom… pois nós também estamos. Luigi dá um passo para
avançar em Fausto, porém o braço de tuo padre é mais veloz.
— Papà, per favore… esse carcamano é pior que o outro
que assumiu a merda.
— Não. — O vecchio volta-se para mim. — Tuo frattelo não
foi pior que você, Don Moretto. Mas ultrapassou a barreira dos
nossos costumes também. Michela disse que foi escandalosamente
beijada por Fausto Moretto.
— O quê? — Fausto berra.
— Foram as palavras dela.
— Mas que porra! Que mentirosa do caralho — mio frattelo
se descontrola.
— Olha como fala de minha irmã, stronzo.
— Sua irmã é uma mentirosa! Eu nunca nem sequer
encostei naquela ragazza.
— Mia figlia não mente. — Signore Zanchetta insiste. — Ela
não tinha motivo algum para mencionar tal coisa. Seja Uomo,
ragazzo. E assuma as consequências dos seus atos.
É a primeira vez que vejo meu irmão sair do controle. Ele
caminha de um lado para o outro, puxando seus cabelos pela nuca.
Se meu estado emocional fosse outro, acharia a situação toda no
mínimo interessante. Mas quero ir para casa, estávamos no meio da
manhã e não veria Francesca até que retornasse da faculdade, o
que já me deixa frustrado.
Ela não queria ir. Não poderia reclamar agora. Sabia que a
reunião iria passar a madrugada e talvez até o dia de hoje.
— Que seria o quê? — Fausto estaca na frente de Enrico,
querendo ouvir as palavras.
— Oras… que se case com ela — Zanchetta dá a cartada e
mio frattelo começa a rir de modo sarcástico.
— Papà… — Luigi tenta pedir algo para tuo padre.
— Que foi? Quer me desafiar na cutelaria, stronzo? É isso?
— Vendo como Fausto está agindo mostra o quanto a morte de
nosso padre mexeu com cada um de nós.
— Ninguém vai desafiar ninguém. — Seguro um ombro de
mio frattelo para que pare. — Você está na idade e precisa de uma
noiva. Por que não aceitar aquela que caiu no seu colo?
— Michela não caiu no colo de ninguém! — Luigi esbraveja.
Tuo padre o encara com um olhar de autoridade e vejo o momento
de quem comanda aquela casa.
Ficamos eu de um lado acalmando mio frattelo e Enrico
Zanchetta do outro com tuo figlio tão parecido com ele. Não sei
como um dia pensei que pudesse ser mio frattelo também.
— A ragazza quer um noivo. Então, diga que ela tem um —
Fausto grasna e sai da sala pisando duro.
— Precisamos respeitar o luto, mas Fausto vai assumir o
compromisso com tua figlia, Sginore Zanchetta.
— Agradeço, Don. — E surpreendentemente mio suocero
inclina a cabeça para frente, num cumprimento de subordinação e
respeito. — Vamos figlio. Temos uma notícia para dar a sua irmã.
Por fim, estou sozinho. Sento-me novamente na cadeira de
Don e observo tudo ao meu redor com um aperto maior que o
normal no peito. O celular que vibrava há algum tempo esquecido
no paletó toma a minha atenção.
Franzo o cenho quando vejo tratar-se de Zaccheo. Ele tem
sido o segurança de mia Bambola. Sabia que ter alguém conhecido
a deixaria mais à vontade.
— Ciao, Zaccheo. Che succede?
— Don, Signora Moretto está no hospital.
— Como? O que aconteceu?
— Ela passou mal e desmaiou.
— Qual hospital? — indago, fechando o paletó e
praticamente correndo para mia moglie. O aperto no peito se
intensificando a cada passada.
Não podia perder mais alguém.
Não podia perder mia Bambola.
FRANCESCA ZANCHETTA

Meus passos estão mais lentos hoje do que o habitual. Ando


tão cansada pela ausência de sono que praticamente me arrastei de
manhã até a cozinha para o desjejum. Signora Isabel passou em
casa antes de verificar a cobertura dos demais Moretto.
Ela tem feito isso todos os dias desde que mio suocero[327]
faleceu. É uma forma da pequena Signora sentir-se útil, suas
palavras. Mas sei que é por conta do carinho que tem para com
Giulio e seus irmãos.
Agradeci mentalmente pelo café e corneto[328] deixado para
mim, pois minhas pernas pareciam pesar uma tonelada a cada
passo. A letargia é tanta que até Zaccheo começou a me aguardar
alguns metros à frente e se entreter com o celular enquanto não
passava por ele. O homem não desacelera em momento algum.
Estava com medo de dormir em sala de aula, mas já tinha
passado o período que o atestado por luto me conferia e eu não
podia ter outras faltas.
Giulio também me incentivou a manter a rotina de estudos,
posto que a celebração para assunção do novo Don demoraria um
dia e meio porque todos de cargo de autoridade da Cosa Nostra
fariam o omertá para ele. Palermo esta semana era uma das
cidades mais seguras para nós membros da famiglia do que nunca.
Bom, eu precisava me distrair e por mais cansada que
estivesse, quando deitava na cama meus olhos permaneciam
abertos e minha mente confabulando mil e uma situações de perigo
que mio marito pudesse enfrentar. Dio Santo! Preciso procurar um
profissional adequado para essa ansiedade.
A maluquice era tanta que me sentia perseguida inclusive
aqui. Os olhares de todos que cruzavam meu caminho pareciam
pesar sobre mim, como se pudessem sentir a pressão que carrego
no peito. Sono pazzo[329]!
— Francesca? — Ouço uma voz feminina me chamar ao
lado. Encaro a figura da mulher alta e esguia, com cabelos loiros e
olhos penetrantes. Seu rosto não me parece estranho. Pressiono as
pálpebras para recobrar um pouco da memória e então… sinto
como um raio de tempestade atingir meu ego. — Você é Francesca
Zanchetta, correto?
— Moretto — replico no automático.
— Ah… sim. Esqueci do casamento… Eu me chamo
Rafaella…
— Eu sei quem você é — interrompo-a antes que finalize
seu sobrenome. Seus lábios se curvaram em um sorriso maldoso.
— Ah, sabe? — estala a língua no céu da boca. — Então,
me diga ragazza, como é saber que Giulio foi meu? Saber que a
boca que beija entre suas pernas já esteve aqui — ela aponta sua
virilha e dá um passo, curvando-se para sussurrar em meu ouvido
— lambendo e me fazendo gozar por querer estar comigo e não por
obrigação.
Na última palavra, empurro-a pelos ombros. Meu coração
dispara enquanto a encaro, a sensação de desconforto crescendo
rapidamente.
— Giulio me escolheu — contesto com a voz fraca, sentindo
uma onda dolorida crescer próximo ao coração.
— Pode ter escolhido para a famiglia, mas quem garante
que escolheu para sua cama? — Ela continua a me provocar com
palavras que remetem à possível infidelidade. Mas Giulio me
garantiu que cumpriria com as promessas feitas em nosso
casamento. Ele não pode…
Foram poucos os dias que chegou tarde em casa após o
trabalho. Será quê?
Não… não queria, mas sentia-me frágil e vulnerável, e as
palavras de Rafaella atingiam em cheio minhas inseguranças. Minha
mão foi instintivamente para o local da minha cicatriz. O desconforto
se transforma em uma dor latejante.
— Você está mentindo — contraponho, vendo Zaccheo se
aproximar e reconhecer a ragazza loira. Os olhos inquietos do
Soldato indicam receio a princípio, para em seguida agir com
determinação. A pontada agoniante é certeira abaixo do seio
esquerdo. Mal registro quando ele agarra o braço de Rafaella.
— O que faz aqui? — indaga com a voz grave e
amedrontadora que poucas vezes ouvi.
— Zaccheo? — A loira exibe um sorriso cruel, tudo para
demonstrar o quanto conheceu Giulio e todos ao seu redor. Meu
estômago retorce e a dor fica mais aguda. — Que bom te ver.
Olha… — ela rapidamente entrega um isqueiro prata. — Giulio
esqueceu lá em casa. Devolve pra ele. — O Soldato pega o objeto,
resmungando palavrões e puxando a donna para longe de mim.
Madonna mia, me segura em seus braços. Sinto o ardor e a
aflição galoparem na mesma velocidade da dor que esmaga meu
peito física e emocionalmente. Ouço alguém gritar por ajuda e a
imagem embaçada de Zaccheo voltando-se para mim é a última
coisa que vejo.

Abro os olhos e, por um momento, tudo à minha volta está


embaçado. Sons estranhos invadem meus ouvidos, e o cheiro
característico de hospital se mistura com o ar.
Leva um tempo para que minha mente confusa se acalme, e
eu perceba que estou deitada em uma cama hospitalar, cercada por
equipamentos médicos.
Oddio! O que aconteceu?
Lembro-me de estar na faculdade, discutindo com aquela
bagascia[330] tão logo senti uma dor intensa próxima à minha cicatriz.
As vozes dos alunos no corredor pedindo por ajuda e a imagem do
rosto de Zaccheo vindo ao meu socorro são lembranças confusas
que se misturam em minha mente.
Tento me mover, mas algo me impede. Tubos e fios estão
conectados ao meu corpo, monitorando cada batimento cardíaco.
Quando, finalmente, consigo identificar com mais clareza os
objetos, noto que não estou sozinha no quarto. Giulio está andando
de um lado para o outro em frente à minha cama.
Ele parece visivelmente irritado, seus olhos fixos no chão
como se estivesse concentrado em algo. È incazzato[331].
Não posso me fazer de desfalecida para sempre. Melhor
enfrentar a fera de uma vez.
— Giulio? — chamo-o, minha voz saindo fraca e incerta.
Ele ergue o olhar, surpreso por me ver acordada, mas
mantinha a expressão de raiva. Caspita!
Encolho-me toda no instante em que se aproxima da cama,
e senta-se na beirada ao lado de meu corpo.
Meu coração está acelerado, e eu me sinto tão vulnerável e
assustada. Mio marito é conhecido por seu temperamento
tempestuoso, por mais que nossos dias como marito e moglie[332]
tenham sido um sonho, não faço ideia do que esperar.
Ele esfrega sua testa e percebo que está tentando se
acalmar antes de conversar comigo.
— Bambola… — ele hesita um pouco e segura minha mão.
— Por que nunca me contou? — Não compreendo sobre o que está
falando, apenas sinto a mudança na tonalidade de sua voz.
Diferente…
— Contou o quê? — indago baixinho, sentindo o calor de
sua mão aquecendo a minha. Giulio suspira profundamente antes
de responder, claramente se esforçando para controlar sua raiva.
— Que você teve câncer… — A voz soa áspera, mas pude
detectar uma pitada de ressentimento.
Madonna mia… ele sabe.
— Giulio, eu…
— Como que ninguém da famiglia soube disso? Como que
conseguiram acobertar tudo? — ele explode, sua voz carregada de
raiva reprimida. — Tuo padre pode ser acusado de traição por isso
— acusa, porém com certo receio, levantando-se e passando a
caminhar pelo quarto.
— Mio padre não traiu a Cosa Nostra, Giulio — atesto.
— Como não? Nunca ouvi qualquer pessoa falar que ficou
doente. Sempre o quanto era bela e que Signore Moretto a protegia
para um casamento vantajoso, e…
Enfim, ele chega à conclusão escancarada em sua cara.
— Era porque estava doente… — diz mais para si mesmo.
— Mio padre contou para quem era necessário saber. —
Giulio volta-se para mim surpreso.
— Mio padre sabia? Don Moretto sabia que teve câncer e
não me contou?
— Não posso responder por que Don Antonio decidiu não te
contar, mas sim, ele sabia. E… você? Como descobriu?
— Você não acordava. Então, chamei seu médico. Aquele
infelicce pensou que eu já sabia. — Mio marito emana um som de
desdém com um gesto de mão. — Depois conferi sua ficha médica.
Cazzo![333]Você não tem uma costela. Essa é a razão da cicatriz, não
é?
Minha mão é levada automaticamente ao local abaixo do
seio esquerdo. Por anos, eu e minha família mantivemos esse
segredo. O receio de papà em prejudicar não apenas o meu futuro,
mas o de Michela também. Respiro fundo, pronta para barganhar
por ela.
— A mercadoria realmente está estragada, Giulio. Tua
bambola é quebrada. Pode me devolver se quiser, mas por favor,
como o antigo Don foi misericordioso, eu te peço para ser também.
— Busco ajeitar o corpo numa posição mais sentada. — O futuro de
mia frattela pode ser prejudicado se descobrirem. Michela pode não
encontrar um bom marido e…
Giulio bufa um riso de escárnio e não entendo em que
momento contei alguma piada.
— Não se preocupe com tua frattela, preocupe-se com você
— pontua, caminhando novamente até o lado da cama. Seus olhos
escuros não deixavam de me observar, mas havia uma mudança
em sua expressão.
O atual Don Moretto olhou para mim com uma mistura de
emoções, e sua raiva pareceu ceder à compreensão. O furor estava
cedendo espaço a algo mais profundo, algo que eu não esperava.
— Você tinha apenas 14 anos, mia moglie. Tão nova… —
Giulio arruma a camisola hospitalar que havia descido pelo meu
ombro de modo cuidadoso. Sinto meu interior se aquecer com a
ternura. Eu o estudo, vendo uma fenda em sua armadura de durão.
Era como se ele tivesse esquecido por um momento seu
temperamento explosivo, concentrando-se apenas em mim.
— Por que não me contou, Bambola?
— Eu… Eu não queria que soubesse — murmuro, sentindo
as lágrimas surgirem em meus olhos.
— Você ainda estava doente na sua festa de 15 anos? —
Seu tom agora receoso.
— Não… — digo baixinho, e elevo minhas mãos para
deslizar nas mechas de cabelo que desciam compridas até meu
peito. — Mas ainda não tinha recuperado os cabelos que perdi
durante a quimioterapia.
Giulio no mesmo instante acaricia o topo de minha cabeça
percorrendo os fios até minhas mãos. Ele afasta para trás num
gesto tão afetuoso que fico estática surpresa com a cena.
— Por isso afastou minha mão… — Mesmo não sendo uma
pergunta, assinto.
— Era uma peruca. Meus cabelos estavam começando a
crescer, mas ainda estavam rente à cabeça.
— Eu não sabia… — O sussurro na voz grave pareceu-me
um pedido de desculpas. Seu tom era suave, e seus olhos
transmitiam genuína preocupação. Eu estava chocada com a
mudança em seu comportamento. — Se soubesse… — A condição
é subentendida.
Aquele homem que muitos temiam estava mostrando um
lado mais humano e compassivo.
Não contenho as lágrimas que escorrem pelo meu rosto.
Giulio estava arrependido, genuinamente arrependido.
Ele se inclinou e me abraçou com firmeza, e eu senti que a
revelação havia derretido um pouquinho seu coração de gelo.
— Nunca vou te devolver, Bambola. Você é minha. Sempre
foi — declara, cheirando meu pescoço e depositando um beijo
casto, antes de se afastar.
Em seguida, pega alguns lenços de papel numa mesinha ao
lado da cama e enxuga minhas lágrimas.
— Foram feitos alguns exames enquanto estava
desacordada — informa.
— Caspita, quanto tempo fiquei apagada?
— Umas quatro horas. Estamos aguardando os resultados.
Isso acontecia com frequência? Digo, antes do nosso casamento?
— Não… É que… Acho que fiquei muito nervosa pela
discussão e… — Meus batimentos se alteram e Giulio segura minha
mão, acariciando o dorso com o polegar.
— Rafaella não será mais um problema. — Desvio o olhar
com uma pontada de ciúmes. Meu amor por Giulio é tão insano que
só de ouvi-lo mencionar o nome dela, sinto vontade de vomitar. Ele
segura meu queixo entre o indicador e polegar, virando meu rosto
para o encarar. — Ela não é ninguém. Nunca foi. E nunca mais irá te
incomodar.
— Você a matou?
— Você quer que a mate? — questiona, de modo a deixar
claro que a vida da infelicce poderia se encerrar com um pedido
meu. Mas não quero isso… As atitudes de mio marito até agora só
comprovaram que a loira aguada estava com uma imensa dor de
cotovelo.
Giulio Moretto escolheu a mim.
Balanço a cabeça negativamente, entrelaçando nossos
dedos e respirando profundamente.
— Io ti amo, Giulio. E não me importo se não sou
correspondida, desde que fique sempre do meu lado.
— Eu vou estar, Bambola.
Neste momento, Dr. Ângelo decide entrar no quarto,
trazendo consigo um semblante grave e preocupado.
— Francesca, Signore Moretto — ele começou, sua voz
calma contrastando com a tensão no ar. — Os resultados dos
exames mostram que precisamos investigar mais a fundo as dores
que você tem sentido na costela. É uma possibilidade real de que o
câncer tenha voltado.
Minha garganta se aperta ao notar a expressão de
preocupação nos olhos de Dr. Ângelo. Giulio, por outro lado, não
conseguiu conter sua raiva.
— Não! Não é verdade! — ele ruge, sua voz ecoando pela
sala. — Como você permitiu que isso acontecesse? Você é o
médico dela! Deveria ter certeza de que isso nunca voltaria!
Meu médico mantém a calma, apesar da fúria de Giulio.
— Signore Moretto, compreendo sua preocupação, mas o
câncer é uma doença imprevisível. Sempre fiz de tudo o que está ao
meu alcance para cuidar de Francesca.
Giulio olhou para mim, seus olhos faiscando de fúria
mesclada com… medo?
— O tumor está alojado próximo ao local da antiga cirurgia,
teremos que operá-la para pegar uma amostra e fazer a biópsia —
Dr. Ângelo explica para mio marito sobre a primeira etapa.
— Quando vou poder levar mia moglie para casa, doutor? —
Dou um sorriso triste ao recordar da pergunta parecida de papà,
anos atrás.
— Podemos marcar a cirurgia para amanhã. O resultado
ficará pronto em uma semana. — Dr. Ângelo dá um passo para trás
com o olhar assassino de Giulio. — Como o câncer de Francesca foi
agressivo da última vez, recomenda-se que ela fique no hospital
alguns dias. — Então, o médico com instinto suicida me fita. — O
que aconteceu, mia cara? Você nunca esqueceu sobre os exames
periódicos, podia ter visto isso antes da situação ficar fora de
controle.
— Como assim? — Giulio indaga, raivoso por ter sido
mantido à parte sobre minha saúde.
— A bambina Zanchetta sabe que precisa fazer exames
periódicos para constatar sua cura. Mas pelo visto, perdeu a data.
Era para ter feito há três meses.
Giulio bufa o ar numa lufada longa, passando uma mão
sobre o rosto e mostrando que o médico não lhe deu a resposta que
queria ouvir.
— Eu quero a melhor equipe médica à disposição dela.
Traga os melhores profissionais, faça o que for necessário.
O médico assente, concordando em providenciar uma junta
médica dos melhores especialistas. Logo após, deixa-nos sozinhos.
Mio marito retorna para minha cama hospitalar, ajeitando-se
de modo a ocupar certo espaço, aconchegando-me da melhor forma
possível em seus braços, já que alguns fios estavam conectados em
meu peito. Suspiro e fecho os olhos, permitindo-me dormir com a
sensação de sua respiração no topo de minha cabeça.
Eu sentia uma mistura de medo, esperança e gratidão.
Sabia o que estava por vir mais uma vez, mas enfrentaria todas as
batalhas desde que Giulio estivesse do meu lado.
GIULIO MORETTO

Sempre fui um homem de ação, criado e forjado em sangue


para liderar a Cosa Nostra. Não tinha tempo para fraquezas, e
emoções eram consideradas vulnerabilidades em nosso mundo.
Eu tinha sangue nas mãos, decisões difíceis a tomar e
inimigos a enfrentar. Já ouvi gritos de angústia que causariam
pesadelos em qualquer ser humano, mas nunca senti medo. Não
reconhecia esse sentimento, então a pressão em meu peito era
inédita.
O rosto pálido de mia moglie desacordado no leito do
hospital trouxe à tona emoções confusas e antigas que não sentia
há muito tempo. Suspiro, expirando o ar pela boca. Minha mente
está uma bagunça. Estou confuso e com raiva, mas, no fundo, sinto
que algo mexeu comigo.
Agora, eu estava no meu closet, em busca de roupas
confortáveis para levar até ao hospital. Aproveitei que mia Bambola
estava dormindo e saí, alertando as enfermeiras de plantão para me
ligar caso ela acordasse.
A revelação sobre não ter feito os exames de rotina
aumentou ainda mais o sentimento de impotência e culpa por ter
sido a razão que fez mia moglie se esquecer do quão frágil ela é. A
possível data seria próxima ao nosso casamento.
Cazzo…
A cirurgia da biópsia aconteceu ontem pela manhã, como
Dr. Ângelo havia previsto. Os pais de Francesca, bem como tua
frattela — e minha futura cognata[334] ao quadrado — chegaram
enquanto ela ainda estava no centro cirúrgico. Luigi, por outro lado,
ficou em Messina para cuidar das embarcações que precisavam ser
recepcionadas. No entanto, informou que tão logo terminasse o
descarregamento viria para Palermo.
Pedi para Signora Isabel providenciar os quartos na mansão
Moretto. Assim, o clã de mia moglie estaria bem alojado e em
segurança.
Abro as gavetas que contêm suas camisolas, mas não
encontro roupas de dormir adequadas para sua estadia no quarto de
hospital. Francesca pediu para levar alguns moletons e talvez isso
fosse suficiente.
O cheiro de rosas vindo das roupas íntimas entorpece meus
sentidos e me vejo levando um dos tecidos até o rosto, inspirando o
aroma como um viciado. De imediato a recordação vívida da pele
macia de mia Bambola coberta com a fina camada entre meus
dedos me deixa completamente atordoado.
Recordo-me de como seu corpo fica irresistível em cada
camisola e sinto uma onda de fúria ao imaginar mia Bambola sendo
examinada com roupas sensuais e transparentes.
Cazzo!
Por que diabos pensei que roupas de dormir pudessem ser
mais confortáveis?
Não! Devolvo o tecido para a gaveta, fechando-a com mais
um baque. Ninguém a veria assim além de mim.
Nada disso serviria para os dias que iríamos enfrentar.
Seus moletons confortáveis e algumas camisetas deveriam
ser suficientes, afinal, Francesca não ficará muito tempo no hospital.
Não… ela não pode.
Eu preciso de mia moglie junto de mim.
Seguro firmemente os suéteres, apertando-os contra o peito,
na esperança de que a dor súbita diminua à medida que os abraço
com mais força. Minha garganta se fecha, e a imagem dos dois
caixões, um lembrando-me de mia mammina e o outro, de mio
padre, é o gatilho para o medo de ter outra visão no futuro como
essa, causando um ataque de pânico.
Minhas costas escorregam pela parede até estar sentado no
chão, com os joelhos dobrados e o rosto afundado na roupa de
Francesca. O perfume suave que ganhou lugar não apenas no
closet, mas em todo canto do nosso quarto abraça as inseguranças
que teimo em sentir.
Meus olhos ardem conforme pressiono as pálpebras e sinto
o rosto molhado. Não sei em que momento a primeira lágrima
escapou e deslizou sem permissão, dando caminho a outras e
outras.
Ela precisa voltar… Ela tem que voltar para casa.
Não vou conseguir continuar sem mia Bambola do meu
lado. Não quero continuar…
Um tempo depois, respiro fundo e levanto-me, ajeitando da
melhor forma que consigo as peças de roupa que separei. Peguei
algumas peças íntimas, mesmo não sabendo se ela poderia ou não
usar sutiã por conta da cirurgia próxima ao peito.
Deveria ter ido a fundo quando desconfiei daquela cicatriz.
Mas minha insensatez por uma vingança egoísta me deixou cego
para as evidências que berravam em minha cara.
Mia moglie havia acabado de lutar pela vida quando
praticamente se entregou em sacrifício para mim. Ela sempre foi
corajosa e enfrentou cada desafio de cabeça erguida como uma
verdadeira Damigella d’onore[335]. Enquanto que eu…
Bufo com raiva e desfiro um soco no anteparo de madeira
que serve como divisória entre o closet e o quarto, criando um
buraco de estilhaços no lugar. Sinto alguns fiapos de madeira
entrarem em minha pele e certo ardor pelo impacto. Nada chega
perto da queimação que consome meu interior.
Uma risada grotesca se mistura com o choro de dor
arranhando minha garganta. O destino possui um senso de humor
mais cruel do que o meu. Veja bem, o temido Don da Cosa Nostra,
quando finalmente conquista não apenas seu posto, mas também a
donna que deseja, perde tudo.
Você já a ama e não é doente.
As palavras de papà invadem minha mente juntamente a um
turbilhão de emoções.
Para mio padre eu não era doente, mas para outros, talvez.
O simples fato de enviar a ragazza Rafaella para o meio da África, e
mandar ser liberada próxima a uma tribo violenta, devia dizer algo a
meu respeito.
Apenas não a matei diretamente, pois pensei que mia
moglie pensaria que o débito da vida da infelicce fosse dela. Prometi
ser leal a Francesca em nosso casamento, e mentir significava
quebrar a promessa. Por isso, dei a ragazza uma possibilidade de
salvar sua vida. Sabe-se lá como conseguiria.
Não importa.
Cada segundo que passo longe de Francesca pode ser o
último e não podia continuar aqui. A possibilidade de o câncer ter
voltado era real e eu preciso suportar esse peso para me manter
firme ao seu lado.
Minhas mãos tremem enquanto olho para suas roupas e
vestidos na lateral do cômodo. A impotência nessa situação é um
martírio. Tudo que eu desejava era poder protegê-la, mas não tenho
ideia de como fazer isso contra essa doença maledetta.
De repente, ouço passos vindos do quarto e Fausto surge
no portal que divide os ambientes com sua feição fechada. Ele ainda
deve estar puto pelo fato de ter caído na emboscada que a irmã de
mia Bambola armou para ele.
Sabia que a ragazza era ardilosa, pois reconheço uma
raposa de longe, ainda mais nos poucos dias que convivemos pude
analisar o perfil de seu caráter. Mas não imaginei que fosse tanto.
Fausto crispa os lábios formando uma linha fina quando
seus olhos caem imediatamente na cavidade do meu closet
causado por meu punho.
— Ela está bem?
— Por enquanto. Ainda não sabemos a gravidade. Tem que
esperar o resultado da biopsia — respondo, caminhando até a
cama, onde deixei uma maleta aberta.
— Vai voltar ao hospital?
— Nem devia ter saído. Mas Michela está com ela. —
Percebo mio frattelo se enfurecer com a menção ao nome da
ragazza. — Vou saber o que de fato aconteceu?
— Nada aconteceu… ela está mentindo. — Fausto não
possui a índole de mentir para mim, até porque é inútil. Conheço-o
melhor que qualquer um e sei quando diz a verdade, o que está
fazendo desde que chamou Michela de mentirosa.
Bufo um riso sem humor. Novamente, se fosse em outro
momento, estaria me divertindo com sua raiva e a situação que uma
menina colocou mio frattelo em suas mãos.
— Você vai se casar com ela?
— E tenho escolha?
— Se provar que ela está mentindo, o problema da raposa é
do padre que a criou e não sua — ressalto, dando a meu frattelo a
opção de correr. Ele poderia comprovar por várias formas.
— Quero saber o motivo. — Fausto revela. — Até porque,
gosto de jogar tanto quanto você, mio frattelo.
— Apenas cuidado com esse jogo, pois não há vencedores
e você pode se apaixonar — concluo o que aprendi, sentindo o peso
dos meus sentimentos confusos.
— É só saber o momento de jogar os dados, Don Moretto.
— Esboça um pequeno sorriso que não chega aos olhos. — Sem
contar que você mesmo disse que o amor para nosso clã é uma
doença, lembra?
Solto um suspiro pesado, arrependido de ter a presença de
Fausto e Maximus quando conversei a respeito com papà.
— Por isso mesmo, mio frattelo, tome cuidado. — Dou o
conselho, fechando a pequena bagagem e caminhando para a
saída.
Minha mente atormentada grita por salvação, então disparo
para a única pessoa que pode acalmá-la. Francesca, mia Bambola.
Eu podia não saber amar, mas sabia que não podia viver
sem ela.
FRANCESCA ZANCHETTA

— Nem acredito que consegui ficar sozinha com você —


Michela comenta, pegando o potinho de gelatina sobre a bandeja
com as sobras da refeição do almoço que Signora Isabel trouxe no
quarto para mim. — Pensei que seu cão de guarda não fosse dar
folga.
Por um milagre, Giulio conseguiu que fosse liberada para
aguardar em casa o resultado da biopsia dois dias após a
microcirurgia que retirou material para o exame. Agora, ao invés de
ficar no hospital, passo o tempo todo em meu quarto.
E Michela está exagerando quanto a Giulio passar o tempo
todo ao meu lado. Ele fica comigo apenas no período da noite, pois
durante o dia mio marito deixa que mios padres e ela fiquem à
vontade, entrando e saindo para me ver.
Luigi veio ontem me visitar, mas logo precisou retornar à
Messina, bem como papà. Não posso ouvir o que está acontecendo
como sempre fiz, por estar enclausurada num cômodo. Mas sei que
algo aconteceu. Fico com receio de ser novamente outro daqueles
ataques que sofreram meses atrás.
Por fim, o que me resta são minhas orações para que eles
retornem, para casa, vivos todos os dias, como tenho feito com
Giulio desde o dia em que entrou em minha vida coo mio sposo.
— Giulio saiu assim que você entrou, Chela. Não sei por
que está reclamando — enfatizo a gentileza de mio marito. Ele tem
sido extremamente atencioso e nunca o vi tão carinhoso comigo. —
Acho que você deveria dar as mãos à Fausto que tem estado tão
mal humorado quanto você.
Mia frattela parece perder a coordenação motora, pois a
gelatina verde toma vida e é arremessada pelos ares juntamente
com a colher.
— Oddio! Como sou desastrada. Scusa, Tchesca —
desculpa-se sem me encarar. Ela corre até o banheiro e pega a
toalha de rosto e passa a limpar a gosma verde que caiu em minha
cama.
— O que está acontecendo, Michela? Há algo que você
queira me contar — sugiro o assunto para ouvir de seus lábios a
confissão.
No dia seguinte à cirurgia, quando Giulio e Fausto
pensavam que ainda estava dormindo, ouvi a conversa sobre o que
mia frattela havia aprontado. No instante que perceberam, Fausto
tentou mentir, mas Giulio contou a verdade.
Ele disse que nunca iria mentir para mim, desde que fizesse
o mesmo para com ele. Decidi que para manter nossa relação
complicada, o melhor a se fazer era confiar em mi amore.
Confesso que fiquei surpresa pela coragem de Michela, e
também culpada por sugerir um noivo substituto para evitar seu
casamento com Alessio. Se for para contar algo a meu favor, jamais
pensei que a maluca de minha irmã fosse escolher justamente meu
cunhado.
— Olha… eu fui encurralada. Quando papà me chamou
para falar sobre o possível noivado eu tinha acabado de ver a
rachadura que o maledetto do Fausto havia feito em minha
frasqueira. E…
— E você achou que seria uma ótima ideia mentir para
conseguir outro noivo que não fosse nosso cugino[336] Alessio.
Ela bufa desanimada, e senta-se ao meu lado na cama.
— É só até Valentina seguir o plano e conquistar de vez
Alessio. — Mia frattela fala baixinho, sem me encarar. —Então, o
todo poderoso Fausto poderá ter sua vida de mulherengo de volta.
— E a sua reputação, como fica?
— Oddio… o que vou fazer se não conseguir um casamento
com um mafioso? — ela satiriza, em seguida fita-me com olhar
piedoso e balbucia um pedido de desculpas. — Você queria essa
vida, Tchesca. Eu… nunca quis.
— Papà não vai permitir que não se case, Michela.
— Se não houver pretendentes… — ressalta.
— Do mesmo jeito que aconteceu comigo… sei — lembro-a
dos soldatos e até mesmo alguns tenentes, além de Nino Basile que
bateram à nossa porta.
— Eu não sou a bela Francesca com intelecto de milhões,
corpo de violão e rosto de princesa. Sou a filha rebelde que ninguém
quer se dar ao trabalho.
— Não sei não…
— Confia, Tchesca. Só preciso conversar com aquele
infelicce e explicar tudo. Mas o stronzo parece um rato ensaboado
todas as vezes que me aproximo e tento falar.
— Por que será, não? — Bato o dedo indicador sobre os
lábios, com uma cara pensativa e brincalhona. Michela deixa
escapar um riso fraco.
— Não se preocupe comigo… Tudo ficará bem. Agora me
diga, está sentindo algo?
Ajeito-me, afofando os travesseiros em minhas costas e
pegando o controle remoto da TV.
— Dr. Ângelo passou remédios para dor. Não sinto nada
ainda. Se tudo voltou, vou passar de novo pela quimio antes e
depois da cirurgia — digo, chateada, passando as mãos pelos
cabelos.
— Estou aqui, Tchesca. E… por incrível que pareça, tuo
marito também. Ele não quer mais matar Dr. Ângelo como antes. Na
verdade, ouvi uma conversa ontem. O Don Giulio Moretto parecia
abatido.
Pensei que somente eu tivesse percebido. Mio marito tem
ficado sem dormir desde que voltei do hospital. Ele não se deita ao
meu lado, fica o tempo todo sentado na poltrona me observando.
Talvez fosse o caso de retornar para Messina e passar o tratamento
com mios padres.
— Ele não tem ido ao cais e fica mais tempo em casa. Não
quero atrapalhar, justamente agora que assumiu como Don. Talvez
se eu voltasse para casa, ele pudesse…
— Não! — A negação tempestuosa em um tom grave
chama nossa atenção. — Você vai ficar aqui. Eu vou cuidar de você.
Giulio está sob o batente da porta segurando a pequena
bandeja com um copo d’água e os comprimidos da vez. Tenho
tomado, a cada seis horas, anti-inflamatório e analgésico. Não me
atentei que o horário estava próximo.
— Giulio, eu…
— Michela, preciso conversar com mia moglie. — Giulio
impõe após me interromper. — Talvez queira descer e conversar
com seu noivo. Ele está em meu escritório… — o Don agora encara
mia frattela. — sozinho. Acredito que você gostaria de conversar
com Fausto, não?
Michela mais que depressa se põe de pé e caminha para
fora do quarto. Antes ela me fita, com a pergunta escrita na testa se
eu ficaria bem. Assinto com um leve menear de cabeça, o que a faz
andar mais rápido.
Assim que ela passa pelo portal, Giulio atravessa e fecha a
porta. Engulo em seco, com os olhos fixos nas cortinas que
balançam com a suave brisa da tarde.
Mio marito coloca a bandeja sobre o móvel ao canto e vem
até mim, oferecendo o copo d’água e dois comprimidos. Pego-os e
sigo o ritual em tomá-los, bebendo todo o líquido em seguida.
Na sequência, Giulio coloca o copo na mesinha de
cabeceira e segura minhas mãos entre as suas.
— Por que quer voltar para Messina, Bambola? — A
pergunta é feita num tom carregado de tristeza.
— Não quero que… Você não precisa…
— Eu disse que as promessas feitas sob o altar seriam
cumpridas, mia moglie. E na saúde ou na doença, estarei do seu
lado.
— Não quero ser um fardo em sua vida, Giulio. E vou ser…
se…
— Não vou deixar de ser tuo marito porque está doente,
Francesca. Eu vou cuidar de você — Sua mão é levada até meu
rosto num gesto de carinho. Deito a face em sua palma, sentindo
seu calor.
— Posso não sobreviver desta vez… e você… não precisa
de uma moglie quebrada.
— Você nunca foi quebrada, Bambola. Ao contrário, sempre
foi perfeita.
— Você não vai pensar isso depois de me ver após alguns
ciclos de quimioterapia. — Libero uma lufada de ar com um riso sem
humor.
— Não digo isso. Você é perfeita para mim, Bambola. É
corajosa, inteligente e vamos passar por tudo juntos.
— Giulio… — hesito antes de mencionar as palavras
sofridas. — Eu posso não aguentar desta vez e… se sobreviver…
— suspiro vagarosamente. — Não vou conseguir te dar um
herdeiro.
Finalmente consigo revelar que uma das capacidades
esperadas por todos da famiglia pode vir a não acontecer. Já ouvi
que alguns casamentos foram anulados por este motivo.
— Então, Fausto se prontificará em dar um herdeiro para
Cosa Nostra com tua frattela. Não me importo com figli, Bambola,
desde que esteja do meu lado.
— E se eu… morrer?
— Não será a primeira vez que nossa famiglia terá um Don
viúvo.
— Você é jovem, Giulio e não teremos filhos. Pode se casar
de novo.
— Posso… mas não vou. Então, se não quer que fique
sozinho, Bambola, vou te pedir para ser forte de novo e lutar. Lutar
por mim.
— Giulio… você fala e… — Respiro profundamente. — Fico
tão confusa… Você diz que não me ama, mas…
— Ah… Bambola… — ele expira de modo frustrado. — O
que você entende por amor? — Ele me analisa, aguardando uma
resposta que não sei dar. Desde quando amor tem forma de
interpretação?
— Po-por quê?
— Mio padre disse que deixou sua mammina viver com
Enrico Zanchetta por amá-la. Ele disse que a amava tanto que
aceitou sua escolha em viver com outro homem, desde que
estivesse feliz.
A revelação me atinge desprevenida. Fico sem qualquer
reação. Eu sabia sobre Chiara Moretto ser obcecada ao ponto de
discutir com o Don, inventando uma traição que nunca aconteceu,
mas jamais pensei que Don Antonio realmente amou mia
mammina…
Isso é novidade.
— Não posso dizer que te amo, Bambola, pois jamais
permitiria que vivesse com outro homem que não fosse eu. Não
consigo imaginar minha vida sem poder tocá-la… Sem saber que
sou o dono dos seus pensamentos. Sou obcecado por você.
Capito?
— Ma-mas você cuida de mim. Você confia em mim. Até
voltei a estudar e…Você nunca me machucou fisicamente e depois
do nosso casamento tem sido tão atencioso que…
— Mia Bambola, ouça — Giulio segura meu rosto para o
encarar. — Eu jamais vou te machucar de novo. Prefiro tirar minha
própria vida a fazê-la chorar. Se isso você consegue chamar de
amor, cara mia. Então, io ti amo.
Fecho meus olhos, puxando Giulio pela nuca para sentir sua
boca na minha. Pressiono nossos lábios com firmeza, inspirando o
aroma de mio marito.
— Repete — peço baixinho, com a testa colada na dele.
— Io ti amo, mia Bambola. — Giulio Moretto sorri,
acariciando-me com o deslizar de seus dedos em meus cabelos.
— Io ti amo, amore mio — devolvo o sentimento em
palavras, sabendo que encontrei meu par, uma vez que a ideia em
deixá-lo viver ao lado de outra mulher também não é uma opção.
Nossos olhares se encontram, e eu sinto uma faísca de
esperança se acender em meu coração. Talvez, apenas talvez, eu
pudesse superar tudo de novo.
Então… decido que lutaria mil batalhas contra o câncer até
vencer a guerra e viver ao lado do meu amor, Giulio Moretto.
GIULIO MORETTO

Nunca pensei que um reles luminoso verde acima da porta


pudesse me causar tamanho temor. Já suportei torturas e perdi
todas as unhas, mas nada neste mundo foi tão apavorante quanto
agora.
— Calma ragazzo. A cirurgia mal começou. Da última vez
demorou umas seis horas.
— Mas ela extraiu uma costela. Não vai acontecer isso hoje.
Signore Zanchetta encara a porta do centro cirúrgico,
pressionando os lábios numa linha fina e suspirando com a
recordação dolorida.
Não consigo evitar que a ansiedade me consuma. Minhas
mãos estão trêmulas e meu coração bate descompassado no peito.
Mia moglie está na sala de cirurgia há mais de duas horas.
Dr. Ângelo informou que o procedimento era delicado
mesmo que para remover um cisto perto da nona costela, onde
antes foi extraído um tumor maligno.
O resultado do exame identificou que a dor sentida por
Francesca tratava-se do incômodo ocasionado não pela volta do
câncer, mas uma pequena bolsa formada na região pela ausência
de tecido.
Não era algo extremamente perigoso, mesmo assim, não
deixava de ser uma cirurgia com anestesia geral.
Cazzo!
O silêncio que permeia essa sala de espera é ensurdecedor.
Por mais forte que Enrico Zanchetta quer aparentar, consigo
ver os olhos cansados de mio suocero, que refletem a mesma
preocupação que sinto. Ele e eu não tivemos o melhor dos
relacionamentos, mas a situação atual nos uniu de uma maneira
que eu nunca teria imaginado.
— Giulio — diz ele, quebrando o silêncio tenso. — Sei que
está apreensivo, mas temos que ter fé. Os médicos são os
melhores, e mia piccola é uma guerreira.
Concordo com um aceno de cabeça, agradecendo suas
palavras de encorajamento.
— Frattelo, Francesca é forte. Ela já passou por isso antes
— Fausto é quem oferece conforto. Encaro-o, bem como Max que
meneia a cabeça, concordando. Ele e Maximus também vieram ficar
ao meu lado neste momento.
Olho para o relógio na parede, tentando desesperadamente
controlar o tempo que parece se arrastar. A cada minuto que passa,
meu coração se aperta ainda mais.
A imagem de mia Bambola naquela maca, indo em direção
à sala de cirurgia, ainda está nítida em minha mente. Ela estava
corajosa, mas seus olhos refletiam seu próprio medo.
Enrico toca meu ombro, como se pudesse sentir a agonia
que estou vivenciando.
— Sabe, ragazzo. Quando entrou em meu escritório
exigindo casar-se com mia figlia, pensei que não era digno dela.
— E não era… Não sou…
— Sì. Você é, mio Don. Você é Uomo que lutou por tua
moglie antes mesmo que fosse sua. — Ele expira o ar cansado,
vendo sua esposa e os outros figli[337] sentados do outro lado da
sala. — Eu vi como você a amava naquele dia, Giulio. E eu sei que
esse amor só cresceu desde então. Você é o melhor marito que
poderia desejar para mia piccola, pois sei que como eu — ele
encara mia suocera[338] — morreria por ela.
— Enfrentaria mil soldatos todos os dias se fosse preciso —
afirmo com toda certeza que sinto em meu coração.
O relógio continua a sua marcha implacável, e o tempo
parece se esticar infinitamente. Cada minuto que passa parece uma
eternidade. Finalmente, depois de um longo período de espera
angustiante, Dr. Ângelo aponta na sala de espera. Sinto meu peito
apertar, querendo respostas.
O médico sorri de orelha a orelha e respiramos aliviados.
— A cirurgia foi um sucesso — ele diz. — Conseguimos
remover o cisto sem problemas adicionais. Francesca está se
recuperando bem e deve acordar em breve. Já está a caminho do
quarto.
As palavras do médico são um bálsamo para a aflição em
meu peito. Enrico, Annunziatta, Michela, Luigi e eu trocamos um
olhar de alívio e gratidão. Mios frattelli me abraçam e urram em
comemoração.
Sorrio escancarado, esboçando a satisfação pela vitória.
Agora, podemos respirar mais fácil, sabendo que mia Bambola está
a salvo e nada nem ninguém a levaria de mim.

Estou sentado ao lado da cama de hospital, meu olhar fixo


em mia Bambola. Os lençóis brancos cobrem seu corpo pálido, e
sua respiração é suave e constante.
Ela está dormindo, ou pelo menos parece estar, mas eu
sinto a tensão em cada parte do meu corpo, como se estivesse
esperando por alguma catástrofe iminente.
Os médicos me asseguraram que a cirurgia para remover o
cisto foi um sucesso. Eles disseram que ela ficará bem, mas eu não
consigo controlar o aperto no peito. O pensamento de perdê-la,
mesmo que seja só por um momento, me deixou completamente
louco.
Seguro a mão de mia moglie, a pele dela é quente sob meus
dedos, e isso me conforta um pouco. É inacreditável, mas o calor de
sua mão é a única coisa que faz sentido em minha vida.
Nunca pensei que um dia diria “io ti amo” para alguém.
Porém, se precisasse repetir todos os dias para ver os olhos de
água marinho novamente, eu o faria. Nada é como antes. Tudo
mudou.
Sinto sua falta, mesmo estando ao seu lado. A forma como
mia Bambola sorri, o jeito como ela me olha esperançosa, a risada
suave que enche todos os cômodos da cobertura, fazem com que
experimente sensações antes desconhecidas.
Estou perdido em pensamentos quando Francesca mexe na
cama e seus olhos se abrem lentamente. No instante em que
nossos olhares se encontram, sinto um calor percorrer o meu corpo.
Ela esboça um sorriso fraco, ainda sonolenta, mas seus olhos
brilham de emoção.
— Giulio… — ela sussurra, sua voz suave como uma brisa
noturna.
— Estou aqui, mia Bambola — digo com a voz embargada,
meu coração batendo mais rápido do que deveria. — Você está bem
— atesto. — Correu tudo bem.
Seus olhos se enchem de lágrimas, e seu rosto denota puro
alívio.
— Onde está papà, mia mammina…
— Estão todos na mansão Moretto, e vou ligar daqui a
pouco informando que acordou. Eles passaram a noite, cara mia.
Precisavam descansar.
Francesca acena.
— Você está aqui… — informa, como se fosse suficiente. E
momentaneamente, sinto-me satisfeito por garantir a sensação de
segurança a ela. Seguro sua mão, e ela aperta a minha com força,
como se quisesse me dizer algo, mas não sabe como.
— Grazzie, Giulio — fala baixinho. — Grazzie mille por estar
aqui e cuidar de mim.
Não consigo lidar com o sentimento que invade meu peito,
incapaz de dizer uma palavra. Em vez disso, inclino-me e beijo sua
testa suavemente, esperando que esse gesto possa transmitir parte
do que estou sentindo.
Mia Bambola parece ser tão frágil e vulnerável, mas na
verdade é uma lutadora. Poucos lutam por sua vida como ela.
Mesmo diante de todas as dificuldades, ela venceu.
Bufo o ar, ainda lidando com a impotência que senti por não
conseguir protegê-la caso o câncer realmente tivesse voltado.
Cazzo! Tudo o que está acontecendo está fora do meu controle.
O rosto retorcido de Francesca me assusta, então aperto o
botão para chamar a enfermeira.
— Per favore… — peço e a moça já sabe o que fazer. Fico
ali observando, vendo a enfermeira retornar com uma injeção de
analgésico. Fico ali, impotente, enquanto ela administra o
medicamento e ajusta os lençóis ao redor de mia moglie.
— Não fique assim, mi amore. Já passei por algo pior. — Ela
sorri fracamente.
— Scusa, Bambola. Scusame. — peço baixinho, querendo
de alguma forma me redimir. Uma voz dentro de mim sussurra que
talvez seja hora de expressar a frase que tanto mia moglie quer
ouvir. — Io ti amo.
Vejo o momento em que o sono se sobressai e o sorriso
desvanece dando lugar à uma expressão tranquila, em paz.
Minha mão encontra a dela, e nossos dedos se entrelaçam.
No silêncio do quarto de hospital, onde a vida e a morte dançam em
uma linha tênue, eu finalmente aceito que Francesca é quem me
possui por inteiro.
GIULIO MORETTO

— O que está fazendo, Bambola? — Abro os olhos de


súbito, pois me sinto imóvel e se a visão à minha frente não fosse
una donna extremamente bela, estaria tenso.
— Te arrumando para brincar, amore mio. — Mia moglie
passa pela terceira vez o tecido de nylon trançado pela laçada e
puxa, alavancando meu braço em direção a cabeceira.
— Você sabe que quando sair daqui — tento liberar um
pulso —, terá troco, não sabe?
Ela eleva o canto dos lábios num sorriso safado que
somente eu tenho o privilégio de ver.
— Não faça ameaças, mio marito, ou seu castigo será ainda
maior.
Elevo o tronco puxando os punhos, mas os dois estão
presos em uma corda de nylon de modo a me deixar de braços
abertos. Começo a me arrepender mentalmente por ter ensinado
como fazer alguns nós de marinheiro para mia moglie, assim que
percebo estar imobilizado também pelas pernas.
— Você foi maldosa, Bambola mia… Esperou que
dormisse… — concluo, vendo o resultado do seu trabalho. Estou
completamente exposto e para variar com o pau duro por constatar
que sou o brinquedo da diaba.
— Só estou dando o troco. Afinal, olha isso aqui — Ela
aponta os pequenos vergões que subiram pelas leves chicotadas
que lhe dei mais cedo em nossas preliminares.
— Se bem me lembro, você pediu por cada uma dessas
marcas, amore mio.
— Eu sei… e vou fazer você pedir por tudo que farei em
você, mio Don.
— Faça seu pior, mia donna. Lembre-se apenas que daqui
duas horas temos que estar na mansão Moretto para sua festa de
aniversário — ressalto, erguendo as duas sobrancelhas para que
Francesca saiba o tempo que temos dentre a nova rodada de sexo
e a comemoração de seu vigésimo aniversário.
— Fique tranquilo, mio Don — replica, mordendo o lábio
inferior e escorregando por meu peitoral, sentando sobre meu pau
com as pernas abertas. Sinto sua excitação melar toda a extensão.
Ofego, querendo invadi-la, mas sou privado pela justeza com que
prendeu minhas pernas nos dois mastros que coloquei aos pés da
cama.
Minha intenção não era criar outra situação se não aquela já
vivenciada por nós, onde coloquei mia Bambola com as pernas
arreganhadas, deitada de bruços sobre a cama. Olho que ela abriu
a maleta com os dois chicotes, alguns vibradores, prendedores de
mamilos e as algemas.
A corda de nylon não fazia parte do kit. Encaro Francesca
pensando o quanto ela vinha maquinando para usar o adereço
macio, porém eficaz para imobilizar um homem como eu.
— Você gostou de enfiar isso em mim, marito? — Ela pega
o pequeno plug anal com ondulações que usei nela. Eu sabia o
quanto mia moglie sentiria prazer ao se entregar completamente a
mim, sem pudor. Por isso, usei alguns adereços para aumentar o
orifício detrás, após fazê-la gozar com algumas chicotadas na
boceta.
No entanto, a ideia em ser penetrado jamais passou por
minha cabeça e não seria agora que cogitaria a hipótese.
— Nem pense, Bambola.
— Ah… por que não? — Ela faz beicinho. E como já ouvi
Michela e Luigi mencionarem, Francesca realmente não combina
com essa feição.
— Porque meu rabo não foi feito para enfiar nada. — Ela ri,
vendo meu desconforto. Bufo um riso frustrado. — Andiamo, mia
moglie. Senta logo aqui, vai — impulsiono o quadril para cima.
Francesca arfa com o contato. Ela ficou excitada com a lembrança
de agora há pouco. — Se me soltar, prometo fazê-la gritar o meu
nome como fez minutos atrás.
— Não… mio marito. Você vai me obedecer. Esse é meu
presente de aniversário.
— Pensei que seu presente fosse o colar de pérolas que te
dei — Ela sorri e me encara com malícia transbordando em seu
olhar.
— Por falar nele. — Mia Bambola pega a joia, dedilhando as
pequenas esferas em sua mão. — Que tal brincar com ele?
— Como? — A pergunta é respondida assim que Francesca
desfere o primeiro golpe na cabeça do meu pau. Urro com o ardor
que se espalha, erguendo o tronco com brusquidão. — Porra!
— Não… mio marito. A porra você deixou aqui dentro de
mim, lembra? — Ela desfere outro. E a queimação que deveria me
fazer murchar de imediato tem o efeito inverso. Francesca é certeira
em atingir a glande, mas também o faz com a força necessária que
não inflige uma dor desumana.
Sem contar que a visão de mia moglie completamente nua
sobre mim, como uma verdadeira rainha me faz querer ser seu
eterno súdito.
— Você me deu chicotadas aqui — indica a boceta lisinha e
ainda vermelha. — Nada mais justo de devolver o favor.
— Acho que dei mais do que duas lambadas nessa boceta
gostosa, Bambola — provoco-a. Francesca sorri e balança
novamente o colar, diminuindo o impulso gradativamente. Ela
circunda a base do meu pau com as pérolas, apertando em seguida.
No instante em que sua boca alcança a cabeça inchada.
Após espremer a base com o colar, não aguento e passo a me
remexer, necessitando de mais contado.
— Shiiii… quietinho, mio Don. Você não tem autorização
para gemer e muito menos gozar.
— Você me chama de mio Don, mas se comporta como a
perfeita dominatrix, Bambola — Sinto seu sorriso em minha
circunferência.
— Então, seja dominado por mim, amore mio. Este é o meu
presente de aniversário.
— Você já domina tudo em mia vitta, amore. Mas acabou de
pedir por meu silêncio. Por isso, vou me concentrar nos dois
comandos — replico, acatando o que Francesca quer.
Não me importo em ser obediente a ela, desde que essa
versão seja apenas minha e de mais ninguém.
Mia Bambola inicia minha tortura, lambendo da base até a
cabeça, circulando com a língua. Ela deixa a saliva escorrer, o que a
auxilia em me engolir e masturbar, segurando a parte do membro
que não cabe em sua boca. Rosno baixinho alguns palavrões, me
concentrando para não gozar como ela pediu. Porém, a infelicce
rodopia outro laço em meu pau o que quase me remete ao
precipício.
— Amore mio, per favore… eu preciso gozar… eu…
— Don Moretto implorando? Ora, ora… — Ela zomba,
dando uma última lambida e se afastando rapidamente.
— Volta aqui, per favore… termina — peço, de modo
patético.
— Não vou terminar, marito. Não dá mais tempo e você não
gozou… Então… — A diaba sorri, desfazendo primeiro os nós dos
meus pés, para depois desatar o dos punhos.
Puxo-a mais que depressa em meus braços, enjaulando-a
com todo meu corpo, sentado sobre o colchão.
— Giulio, você disse que obedeceria… — reclama, rindo.
— É isso que quer, mia moglie? — Ela acena com o queixo.
Exalo um suspiro frustrado literalmente. — Não acredito que me fará
andar de bolas azuis em sua festa.
Francesca ri, saindo do meu agarre e correndo para o nosso
banheiro.
— A noite está só começando, amore mio — informa, sobre
o ombro e se tranca para tomar banho sozinha. Nisso, mia moglie
foi esperta, pois talvez minha benevolência terminasse assim que
visse seu corpo molhado.
Certo tempo depois, estamos sentados à mesa destinada
para nós no salão de festas da mansão Moretto. A residência de mio
padre é mantida apenas para as reuniões do Consiglio, bem como
eventos como este.
Francesca não queria sair de Palermo. E o salão da mansão
não era usado há anos. Nem eu mesmo lembrava que poderia
comportar tantos convidados como os presentes.
Havíamos cumprimentado boa parte antes do horário
determinado para o jantar ser servido, mas a fome de muitos nos fez
postergar o aperto de mãos dos demais vecchi para depois da
refeição.
Agradeci mentalmente, posto que meu pau ainda
pressionava firmemente a calça de alfaiataria, não diminuindo nem
após beijar a face de algumas signore[339] que sempre me causaram
asco. Caso alguma delas pensasse que o Don Moretto se excitava
com mulheres com idade de serem minha avó, a culpa seria de
Francesca Moretto.
Estou ajeitando a taça com a sobremesa quando sinto uma
mão pequena escorregar entre minhas coxas. Olho de súbito para
mia Bambola que faz um aceno, com a outra mão para uma de suas
cuginas, e continua massageando-me sobre a braguilha sem me
encarar.
Respiro fundo, mantendo a atenção no tamanho das
colheres dispostas sobre a mesa e demoro mais que o normal até
me recordar qual é a certa a se usar.
— Tuo frattelo está conversando muito com Michela — diz,
apertando meu pau até encontrar o zíper e descê-lo. Ela consegue
com habilidade baixar minha cueca e colocar todo o membro no vão
que criou. Sinto o movimento da palma pequena subir e descer em
minha ereção, escondida embaixo da mesa.
— Você está vendo coisas onde não existe — defendo mio
frattelo, regulando o ar que entra e sai de meus pulmões para
manter o rosto impassivo.
— Eles estão saindo do salão, Giulio — mia Bambola
declara com veemência. — Se Fausto levar Michela até a
biblioteca, vou atrás deles — ameaça, colocando uma colherada de
sobremesa com a mão livre, demonstrando uma coordenação
motora impecável.
— Se Fausto fizer qualquer coisa com Michela, você estará
muito ocupada em outra sala dando atenção ao tuo marito. — Solto
um grunhido rouco, com o apertão recebido onde preciso.
— Quero dar atenção para mio marito agora. — Ela sorri
sacana e acelera a fricção. — Selo meus lábios numa linha fina,
afundando o rosto em seu pescoço para gemer baixinho. Quem nos
observa pensa que estou cochichando algo no ouvido de mia moglie
que segura a toalha, bloqueando a visão de eventual expectador no
vaivém de sua mão.
— Eu vou gozar… — Ofego, resmungando palavrões na
sequência.
— Goza, amore mio. Goza para tua Bambola. — As
palavras finais são meu fim.
Meu pau lateja, minhas bolas se comprimem e o gozo se
esvai de modo quase desastroso no assoalho do salão abaixo de
nossa mesa. Quando ergo os olhos e encaro Francesca, ela está
sorrindo satisfeita.
Arranho a garganta, escondendo um grunhido e sento-me
mais ereto, sentindo a pequena mão traiçoeira colocar meu pau de
volta à cueca e fechar o zíper discretamente. Para finalizar, mia
moglie deixa o guardanapo de pano cair e limpa qualquer resquício
que pudesse ter em sua mão.
— Você planejou isso — constato. — Ah… mia Bambola.
Ela me dá um sorriso presunçoso, coberto de lascívia. Não
aguento e rio de como Francesca se transformou em mia regina.
— Don Moretto? — Demoro alguns segundos até perceber
que o Caporegime de Ragusa, Germano Vacchio, está aguardando
em nossa frente. — Gostaria de cumprimentar tua Signora pelo
aniversário.
— Ela está aqui, Signore Vacchio. Pode se direcionar a ela
— ressalto, querendo esclarecer que mia moglie não possuía
qualquer problema auditivo para que interviesse por ela.
Mas a conduta de Francesca é muito melhor do que a
minha. Ela eleva a mão que estava no meu pau e foi limpa com o
guardanapo para que o Caporegime a beijasse.
Vejo-me novamente pressionando os lábios, embora desta
vez seja para conter o riso e não o gemido por gozar.
Germano beija os dedos de mia moglie que sorri apenas
com os lábios, naquela feição plastificada que usa para as pessoas
que não merecem seu sorriso genuíno. Quando a moglie de Signore
Vacchio se aproxima, Francesca se coloca de pé, cumprimentando
a donna com beijos em cada bochecha.
Não demora para que o casal se afaste e tenho mia
Bambola de volta para mim.
— Você é perfeita, amore mio — digo ao pé do seu ouvido.
— Já que Signore Vacchio está sendo um pé no saco, nada
mais justo beijar sua porra. — Ela dá uma piscadinha, e ruboriza
pela atitude audaciosa. Acaricio seu rosto com a ponta dos dedos,
pensando no quanto Francesca significa para mim. — Eu decidi que
você seria mia moglie no dia em que nasceu, Bambola. Mas sabia
que te queria naquele jantar quando tinha 14 anos.
— É mesmo, mio marito? — Assinto com um menear de
cabeça. — E eu… sempre te quis — confessa num sussurro.
— Você foi feita para mim, amore mio. E eu… sempre
esperei por você. — Francesca se inclina, escorando a cabeça em
meu ombro. Beijo o topo de sua cabeça, inspirando o cheiro doce do
shampoo que sou viciado há tanto tempo.
Por anos pensei que o amor fosse uma doença. Mas se é ou
não, não me importa, pois estou completamente infectado.
E por Francesca… se mil vidas eu tivesse, mil vezes
morreria.
FIM.
Nunca sei como começar este tópico, porque sempre são
tantas pessoas que quero colocar aqui.
Eu não vou demorar em mencionar as minhas betas
maravilhosas Juliana (@juhstar_literario) e Flavinha
(@leituras_da_fley), que me ajudaram demais para a história do
Giulio e da Francesca ficar assim… tão linda. Obrigada, amadas!
Adorei todos os surtos e agradeço imensamente o carinho de vocês.
Raquel Moreno, sua linda, você também está aqui, viu?
Obrigada pelo carinho, dicas e atenção durante a revisão.
Mas é sério, obrigada meninas sem vocês, nosso Giulio não
teria redenção não, risos.
Muito obrigada minha Social Mídia Milenaaaaaaaaa
(@mihilustra)! Mih, você foi espetacular, amore. Pude me desligar
para escrever e Oddio[340] — risos — fiquei tranquila, sabendo que
você estava lá, cuidando de tudo. Obrigada, amore mio.
E Gabiiiiiiiiiii (@leitoraa.compulsiva)!!! Sua preciosa!! Você
vem cuidando das meninas do grupo e tem me ajudado tanto, que
obrigada é pouco para ti. Só tenho a agradecer por mais um anjo
em minha vida. Gratidão, minha linda!
Não posso esquecer da Ariel, que está ali juntinho das minhas
parceiras maravilhosas. Muito obrigada, chuchu, seu trabalho é
demais.
Enfim, minhas Damigelle, obrigada por chegar até aqui e
gastar um tempinho para ler meus agradecimentos. Você faz parte
do Consiglio do meu coração.
Espero que tenha se apaixonado pelo nosso mafioso que
precisou levar umas lambadas para se redimir.
E por favor, não se esqueçam de avaliar no site da Amazon. Cada avaliação é
importante, especialmente para nós que estamos começando.

Por favor! Por favor! Avaliem.


Isso ajuda muito todas nós autoras.
Um super beijo e até breve,
Sou uma mulher que se realizou profissionalmente quando publicou o primeiro livro.
Minha carreira sempre caminhou no sentido inverso à minha personalidade até que veio a
pandemia.
Como tantas outras pessoas, acabei me encontrando ao ficar isolada em casa com
meu marido, dois filhos e naquela época, 5 cachorros (hoje temos 4 cachorros e um gato).
Enclausurada, resolvi escrever as histórias que berravam em minha cabeça… e foi
libertador.
Encontrei em meio ao caos um caminho que não é fácil, mas que no final do dia, com
minhas palavras escritas no Word, vale a pena.
Pois então, queridos leitores, sejam muito bem-vindos ao Silvieverso!
Me sigam nas Redes Sociais, lá você saberá tudo sobre os lançamentos:

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Se quiser fofocar comigo, entre aqui no Clube da Sil:
Damigelle da Sil
S É RIE NEW ADULT - UNIVERSIDADE DE BRAVETON

Todos os livros podem ser lidos separadamente, mas recomenda-se


a leitura na sequência.
Atenção: Os livros da Série Braveton University estão
passando por revisão e nova diagramação.
CAÇADA — Conto de Halloween — Livro 1
CAÇADA é o 1º conto da Série Fallen Angels, que originou
Reconquistada, a pedido de muitas leitoras que quiseram mais do
casal Elisa e Alec.
Sinopse:
O que poderia dar errado em uma simples festa de faculdade?
Sou uma caloura prestes a enfrentar um dos mais conhecidos
trotes da Universidade de Braveton. Algo que começou com os pais
dos malfadados Fallen Angels, ou melhor, os quatro cavaleiros do
Apocalipse, como carinhosamente eu os chamo.
É assim que se intitulam quatro riquinhos que se acham donos
do mundo, herdeiros de fortunas imensuráveis e idolatrados por
todo o corpo estudantil.
Clichê, não é mesmo?
E agora teria que participar do “trote” ou eu e minhas amigas
estaríamos excluídas da vida social durante toda a faculdade.
A Caçada começa à meia-noite do dia 31 de outubro.
Qual a graça em ser perseguida no meio de uma floresta por
rapazes lindos e maravilhosos?
Enfim…
Para as garotas deste lugar ser uma das escolhidas dos quatro
era um troféu, enquanto que para mim, parecia mais um castigo.
NÃO ME ODEIE - Livro 2
Não me Odeie é o relançamento de Encanto — 2º livro da
Série Fallen Angels.
Conta a história de Aline Cooper e Gabriel Henderson, um
dos herdeiros do quarteto Fallen Angels, formado por quatro famílias
que comandam a Universidade de Braveton.
Um New Adult com plot de Bully Romance.
Sinopse:
Eles se conhecem desde a infância, e depois de um
acontecimento, a amizade tornou-se ódio… ou não.
Aline:
“Ele era meu amigo… até não ser mais.
Gabriel pode ter me humilhado um milhão de vezes, e deixou
meu coração em cacos. Mas isso acaba agora.
Seu ódio não pode alcançar alguém inocente. A pessoa que
amo mais que a mim mesma, muito mais do que o amei.
Ele jamais saberá que me deu o maior presente de todos:
Nosso filho.”
NAMORADA — Livro 3
NAMORADA é o 3º conto da Série Falling Angels que conta a
história de Henry e Debby.
Sinopse:
Descobri que existem sentimentos inexplicáveis e que o amor
da sua vida pode surgir de forma inesperada. A verdade é que eu
me apaixonei naquela floresta.
Ela usava asas de fada, me mandou fechar os olhos e a última
coisa que vi foram os sapatos de pompom. Depois disso, eu me
perdi em sua boca macia e no desejo ardente em meu peito.
E ela desapareceu como mágica.
Eu sou Henry Raymond, o terceiro dos Falling Angels, também
conhecido como "O Exibicionista". E fui enfeitiçado na última festa
de Halloween.
Agora, eu acredito em fadas e vou descobrir quem ela é.
ENGANO — Livro 4
ENGANO é o 4.º livro da Série Falling Angels que conta a história
de Brina e Will.

Sinopse:
Um cara popular e que, inevitavelmente, faz parte da elite na
Universidade de Braveton. O último Falling Angel, o mais fechado, o
cara calado, que ostenta a pose e um sobrenome muito desejado,
não só pelas garotas.
Willian King se esconde nos cantos da velha biblioteca, intrigando o
corpo estudantil por não ser do tipo que se rende e aceita apenas
uma noite de prazer.
Ele guarda sua virgindade para uma garota digna de suas virtudes.
Brina Heinz é a rainha e não apenas nos corredores da faculdade.
Dentro de campo, ela é titular do time feminino de futebol.
Ele sonha em se entregar à sua princesa eleita, e tem uma rainha
inversa disposta à sua frente.
Will deseja um relacionamento duradouro.
Brina é inconstante.
Quando duas coroas ocupam seus lugares de ordem, um engano
colocará tudo à prova.
RECONQUISTADA — Livro 5
RECONQUISTADA é um Romance New Adult - enemies to
lovers, ambientado na universidade.
Faz parte da Série Falling Angels que conta a história de Elisa e
Alec. O casal protagonista de CAÇADA - um conto de Halloween.
Cada livro pode ser lido separadamente.
Sinopse:
Eu deveria ter confiado que tudo daria errado naquela porcaria
de trote universitário, certo?
Naquele dia, fui caçada desde os primeiros milissegundos de
trinta e um de outubro. Totalmente seduzida por ele, me rendi.
Meu demônio particular não poderia ser ninguém menos que ele,
Alec Winston: o verdadeiro líder dos anjos-demônio. Fatalmente
apaixonada.
Seria uma pena dizer que descobri que além de duas faces, ele
também tem duas vidas?
É… e eu não faço parte de uma delas.
Pobre do meu coração, pois é tarde demais para fazê-lo entender o
quanto realmente dói se apaixonar pelo proibido: O herdeiro número
1.
NOVELAS
Novelas

A PROPOSTA

Sinopse:
Conhece o ditado:
“Onde se ganha o pão, não se come a carne”?
Pois é…
Tentei arduamente cumpri-lo e falhei miseravelmente.
Meu nome é Daniela Vegaz, sou secretária do CEO do Grupo
Empresarial Rodrigues. Amo meu trabalho e estava muito feliz com
ele, até meu chefe se aposentar e seu filho assumir sua posição. Foi
quando o conheci…
Já ouviu falar que o diabo é lindo?
Isso eu posso confirmar para vocês, com provas verídicas: Ele
geralmente usa ternos finos, tem um belo sorriso sarcástico, exibe
um corpo que mais parece um playground para as mulheres deste
universo e, passa o dia na sala ao lado.
Nesta vida, a personificação de Satã resolveu se chamar
Carlos Eduardo Rodrigues.
Ele é meu atual chefe.
Para completar o ciclo, Satã me fez uma proposta contratual.
No papel, ele diz querer apenas meu corpo, mas estamos falando
de Satã, não é mesmo?
Bem…
Eu assinei.
E adivinha?
Vendi a minha alma.
LIVROS INDIVIDUAIS

CONSULTA MÉDICA e Consulta Íntima

Sinopse:
Valentina estava se adaptando a uma rotina que basicamente
envolvia reaprender a viver sozinha.
Tudo aconteceu de uma vez.
Lidar com a repercussão da traição do marido, um divórcio
turbulento e um trabalho completamente alheio à sua formação
consumia toda sua energia. Cansada, frustrada e mãe solo de
gêmeos pré-adolescentes, desabafou para um desconhecido
qualquer na fila do supermercado.
Um desconhecido muito peculiar…
O homem ouviu tudo com muita atenção, foi gentil e lhe
entregou um cartão bastante misterioso, apenas com dois números
de telefone, recomendando uma consulta médica num consultório
especial.
“Envie uma mensagem para o segundo número. Prometo que
vai mudar sua vida”.
Então… que tal marcar uma consulta?
MEU AVESSO é todo seu

Sinopse:
"Minha vida está do avesso.
Eu tenho uma irmã gêmea…
E nunca soube de sua existência, até agora.
Não sei explicar o motivo, mas preciso encontrá-la.
A única pista?
O inquérito arquivado no porão de uma delegacia. Precisei pegar
emprestado.
Só não contava que o delegado turrão viria atrás de mim. Muito
menos que ele fosse o cowboy com quem passei a noite.
Já contei que minha vida está do avesso?"
Beatriz Fonseca é a bagunça em pessoa.
Zé Henrique é o extremamente correto.
Entre o certo e o errado, ele escolhe o errado.
Sua ajuda é para encontrar a irmã perdida. Porém, ele vai além… e
acaba sendo cúmplice de uma mentira, infiltrando uma doida num
Mosteiro de freiras.
Meu Avesso é uma comédia romântica que promete muitas risadas,
friends to lovers e cenas hots de tirar o fôlego.
TRILOGIA MINHA ESCOLHA

Tudo em Preto é um romance New Adult, repleto de aventura com aquele enemies to
lovers que amamos.
Este é o Livro 1 da Trilogia Minha Escolha. Cada livro conta a história de um casal
diferente.
Sinopse
Vivian Delacour está de volta à cidade que evita há anos, contratada para intermediar um
acordo bilionário do Grupo Empresarial de uma família muito conhecida.
Um reencontro inesperado com alguém do passado abala nossa heroína.
Eric Silverstone, o ex capitão do time de futebol, ainda é indecifrável para ela. Contudo, a
atração entre os dois é irresistível.
Ela é destemida.
Ele é persistente.
Ela é rebelde.
Ele o golden boy.
Algo aconteceu há 10 anos e separou o casal nada perfeito.
Coloque o seu capacete e venha de carona na moto de Black para se deliciar com esse
romance clichê - cão e gato -, repleto de emoções que vão de lágrimas à euforia, com
muita, muita adrenalina.

Branco como a Neve é o 2º livro da trilogia Minha Escolha e pode ser lido
separadamente.
Meu nome é Elisie Marie Romanets. Minhas amigas me chamam de Lizie, às vezes Barbie,
outros de White.
Gosto de me vestir de branco como a cor da minha moto, para esconder a sujeira que
tenho dentro de mim.
Escolhi a cor da pureza para limpar o passado e o presente.
Um dia, precisei ser salva.
Ainda criança tive minha inocência roubada. E lá, no passado, foi a primeira vez que o
vi… Meu anjo.
Ele passou por minha vida e quis ficar.
Eu o rejeitei e empurrei para longe.

Ele é o Golden boy.


De jogador de futebol americano no colégio para CEO na vida adulta.
Ela é a Barbie estereotipada por fora.
De líder de torcida para herdeira da Máfia.
Ele foi rejeitado.
Ela quer uma segunda chance.
Quantas vezes um coração pode ser partido?
Não sei…
Mas o Ken não vive sem a sua Barbie, não é verdade?

Eu Sou Vermelho - Livro 3 da série Minha Escolha.


Pode ser lido separadamente.
O que você irá encontrar:
New Adult- Passado sombrio - Herdeiro rendido - paixão avassaladora
Raquel
Ele me enfurece só com o olhar.
O que esse cowboy arrogante e prepotente quer aqui, afinal?
Brian não precisa de mais títulos do que tem. Sem contar que sua fortuna como herdeiro
de um senador é imensurável.
Tudo indica que sua vinda está além de ser meu treinador no Rancho New Hope.
Seu olhar sedutor não me engana
O pior é saber que mesmo sendo um inimigo, meu corpo reage por vontade própria.
É um desejo insano e confuso.
Eu quero quebrar a sua cara e beijá-lo em seguida.
Como resistir quando o corpo não obedece ao cérebro?
Não sei… mas irei descobrir.

[1]
Entendeu?
[2]
Bonequinha em italiano.
[3]
[4]
Noiva em italiano.
[5]
Esposa.
[6]
Deus te abençoe em italiano.
[7]
Mamãe.
[8]
Papai.
[9]
Irmãos em italiano.
[10]
Esposa.
[11]
Tio.
[12]

[13]
Homem de honra.
[14]
Primos.
[15]
Primo.
[16]
Minha filha! O que há, pequena?
[17]
Meus primos – no plural, não há o acréscimo de ‘s’ em italiano.
[18]
Filhas – no plural, não há o acréscimo de ‘s’ em italiano.
[19]
Conselho das Damas de Honra.
[20]
Mulheres.
[21]
Damas de Honra.
[22]
Não posso acreditar.
[23]
Querida.
[24]
Prima.
[25]
Prima.
[26]
Princesa.

[27]
Garotas.
[28]
Minha Nossa Senhora!
[29]
Seu pai e irmão.
[30]
Noivas.
[31]
Homem de honra.
[32]
Esposa.
[33]
Homens.
[34]
Prometida (fidanzatta será usada como noiva em alguns trechos).
[35]
Primas.
[36]
Noiva.
[37]
Esposa.
[38]
Garotas – no italiano não se coloca ‘s’ no plural, mas muda o final da palavra.
[39]
Idiota.
[40]
Noiva.
[41]
Minha bonequinha.
[42]
Prima.
[43]
Cargo abaixo do caporegime e acima do soldato. Não existe na linha de hierarquia da
máfia. É fictício.
[44]
Homem de honra.
[45]
Noiva – em italiano.
[46]
Ainda nada – em italiano.
[47]
Fora da
[48]
Filhos da puta.
[49]
Idiotas.
[50]
velhos
[51]
Esposa.
[52]
Filhos da puta.
[53]
Conselho.
[54]
Uma esposa.
[55]
Meu irmão.
[56]
Homem de honra.
[57]
Garotas – plural não tem s.
[58]
Minha noiva.
[59]
Garotas.
[60]
Plural de soldados.
[61]
Velho no plural – velhos.
[62]
Velhos.
[63]
Cargo de autoridade abaixo dos caporegimes. Fictício, criado para a história.
[64]
Noiva.
[65]
Caralho.
[66]
Filho da puta.
[67]
Idiota.
[68]
É verdade, irmão.
[69]
Irmãos.
[70]
Velhos – velho no plural em italiano.
[71]
Velhos.
[72]
Santo Deus, Antonio!
[73]
Desculpe-me, bela.
[74]
minha prima.
[75]
Prima.
[76]
Rainha.
[77]
Esposa.
[78]
Filho da puta/canalha.
[79]
Rapazes – no plural em italiano não se usa o s.
[80]
Deus santo! Me perdoa, prima!
[81]
Feia.
[82]
Tradições malditas.
[83]
Demônio.
[84]
Basta!
[85]
Senhoras.
[86]
Embarcação utilizada pra transporte de produtos em seu estado bruto.
[87]
O que há?
[88]
Homem feito – homem de honra.
[89]
Bela mulher.
[90]
Boba.
[91]
Marca de empresa automobilística fictícia.
[92]
Restaurante fictício na Marina.
[93]
Não sinto nada.
[94]
Boa garota.
[95]
Entendeu?
[96]
Puta.
[97]
Está bem… está bem… fala logo, idiota!
[98]
Conselho de Damas de Honra.
[99]
Pobres coitados.
[100]
Senhoras.
[101]
Boa noite.
[102]
Minha noiva.
[103]
Minha.
[104]
Muito linda, minha querida.
[105]
Meu senhor.
[106]
Minha noiva.
[107]
Sogro.
[108]
Verba – aqui corresponde ao imposto da famiglia.
[109]
Cabeça de caralho – xingamento em italiano.
[110]
Punheteiro – xingamento.
[111]
Mas o que está havendo?
[112]
festival de cinema internacional, é um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema do mundo.
[113]
Local onde os membros da Cosa Nostra lutam com as armas confeccionadas na
cutelaria. Tradução: Ringue de facas.
[114]
Misericórdia.
[115]
Região da Calábria próxima à Sicília.
[116]
O que há? – tradução italiano.
[117]
Aconteceu uma coisa, cunhado.
[118]
O que ocorre?
[119]
Duas.
[120]
Como?
[121]
Olá, tio. Sou eu.
[122]
Seu filho da puta!
[123]
Olá, Giulio! Como está?
[124]
Região no extremo norte da Itália.
[125]
Essas meninas.
[126]
Meu pai.
[127]
Da corrida.
[128]
Sua noiva.
[129]
Sobrinha.
[130]
Conosco.
[131]
Sim tio. Eu vou.
[132]
Sogro.
[133]
primos.
[134]
Seu pai.
[135]
Puto.
[136]
Irmã.
[137]
Como está, menina?
[138]
Tão bela.
[139]
Obrigada.
[140]
Corrida.
[141]
De nada, menina. Somos uma família.
[142]
Atenção aqui meninas, sposa é noiva e não esposa, hein?
[143]
Sim. É aqui.
[144]
Boa noite!
[145]
Pensava que não.
[146]
Tanta ansiedade assim.
[147]
Está louco?
[148]
Tão bela quanto.
[149]
Está bem?
[150]
Aqui.
[151]
Mas, que moça bonita.
[152]
Tua futura nora é belíssima.
[153]
Com certeza, terá.
[154]
Nossa Senhora das calcinhas, me ajude!
[155]
Meu pai.
[156]
Noivo.
[157]
prato feito de fettuccine com queijo parmesão e manteiga
[158]
É verdade, tio?
[159]
Drag Reduction System, em inglês. Sistema de Redução de Arrasto em português.
[160]
acrónimo de Sistema de Recuperação de Energia Cinética, em inglês Kinetic Energy
Recovery Systems.
[161]
Amanhã a vitória está garantida.
[162]
Desculpa a ignorância.
[163]
muito bom, não é menina?
[164]
É muito bom mesmo. Obrigada.
[165]
Entende?
[166]
Meu Deus, me perdoa!
[167]
Agora, vai!
[168]
Homem de honra
[169]
Sim. Você é.
[170]
Boa menina, Bambola?
[171]
Mulher.
[172]
Uma mulher.
[173]
Uma menina.
[174]
Quanto mulher você…
[175]
Hoje.
[176]
Como já perguntaram uma vez, resolvi esclarecer um pouquinho de nossa anatomia
feminina, ok? Então, monte de vênus é o pequeno monte de tecido adiposo presente na
região acima dos órgãos genitais. O tão conhecido capô de fusca �� .
[177]
Uma das formas de dizer boceta. Também é possível chamar de mona ou fica.
[178]
Quero gozar…
[179]
O meu noivo.
[180]
Meu cunhado.
[181]
Meu tio.
[182]
Expressão correspondente a exclamação de “Caralho!”
[183]
Tio e primos.
[184]
Primo.
[185]
Algo similar a caralho!
[186]
Quero lamber sua boceta, minha Bonequinha. Quero te lamber inteira.
[187]
Homem de honra.
[188]
Piranha – xingamento.
[189]
Homem de honra.
[190]
Corno.
[191]
Prima.
[192]
É o ato de fazer com que a bola gire para trás, resistindo ou “planado” no ar,
permitindo lançamentos de longa distância ou com menor esforço.
[193]
Filha da puta.
[194]
Prima.
[195]
Apaixonada por ele.
[196]
Primaaaaa…
[197]
Cala a boca.
[198]
Como se chama a faculdade de Direito na Itália.
[199]
Homem feito.
[200]
Seu pai.
[201]
Meu noivo.
[202]
Me perdoa, meu amor.
[203]
Me perdoa… eu te amo.
[204]
Caralho! Que merda!
[205]
Seu pai.
[206]
Boceta.
[207]
Sou eu.
[208]
Forma adaptada para identificar o ringue da cutelaria.
[209]
Boquete.
[210]
Meu noivo.
[211]
Meu noivo também.
[212]
Oh, meu Deus!
[213]
Meu marido.
[214]
Eu quero…
[215]
Você é tão gostosa, Bambola.
[216]
Me ajuda.
[217]
Por favor.
[218]
Mas… o que está acontecendo?
[219]
Mas… o que você está fazendo?
[220]
Vai, basta!
[221]
Eu sou um filho da puta.
[222]
Corno.
[223]
O que acontece?
[224]
Mas… o que você está dizendo?
[225]
Putinha.
[226]
Cabeça de caralho. É um xingamento forte.
[227]
Já basta!
[228]
Aconteceu tudo como queria?
[229]
Aconteceu.
[230]
Antigos, velhos, forma que identificam os mafiosos de mais idade.
[231]
Damas de honra.
[232]
Puta.
[233]
Mulher que transa muito.
[234]
Filho da puta, cretino.
[235]
Basta.
[236]
Cala a boca, idiota!
[237]
Oque acontece!
[238]
Mulheres.
[239]
Conselho das Damas de Honra.
[240]
Noiva.
[241]
Noivo.
[242]
Sim papai, o que se passa?
[243]
Desculpa?
[244]
Por favor, filha.
[245]
Maldito. Está bem?
[246]
Teu primo.
[247]
Apresse-se.
[248]
Seu irmão.
[249]
Me desculpa, papai.
[250]
O que é isso, pai?
[251]
Homem.
[252]
Porra!
[253]
Putinha.
[254]
Eu sou um homem de honra.
[255]
Transtornos mentais que geram sentimentos persistentes de vazio. Raiva
inadequadamente intensa ou problemas para controlar a raiva. Pensamentos paranoicos
temporários ou sintomas dissociativos graves desencadeados por estresse. Conhecido
como síndrome de mulher que ama demais.
[256]
Rapazes.
[257]
Homem de honra.
[258]
Você fez uma grande merda.
[259]
Você fez tudo…
[260]
Sua noiva, ou ex-noiva.
[261]
Cala a boca!
[262]
Ou então?
[263]
Hoje.
[264]
Sua mulher.
[265]
Uma criança.
[266]
Meu primo.
[267]
Eu também.
[268]
Eu também quero um abraço.
[269]
meu serviço está feito.
[270]
Almoço.
[271]
Sobrinho.
[272]
Sua prima.
[273]
Até sábado, tio. Até breve.
[274]
Então fala.
[275]
Não posso acreditar.
[276]
Expressão equivalente: não consegue ficar de boca fechada.
[277]
Ela.
[278]
Que droga!
[279]
Homens desta casa.
[280]
Oh, Deus!
[281]
Meu ex-noivo.
[282]
Maldito.
[283]
Ó Deus!
[284]
Ó Deus!
[285]
Meu noivo.
[286]
Doença degenerativa do cérebro.
[287]
Olá, senhora. Eu sou a Isabel.
[288]
Pentelho.
[289]
Minha noiva.
[290]
Meu amor.
[291]
Homem de honra.
[292]
Juramento.
[293]
Esposa.
[294]
Minha mulher.
[295]
Nossa Senhora das calcinhas molhadas.
[296]
Entendeu?
[297]
Boceta.
[298]
Minha puta.
[299]
Entendeu?
[300]
boa garota.
[301]
Mulher;
[302]
Esposa.
[303]
Cunhada.
[304]
Desculpe-me.
[305]
Pentelho.
[306]
Já basta.
[307]
Cunhada.
[308]
Venha idiota!
[309]
Ó Deus!
[310]
Tio.
[311]
Primo.
[312]
Filhos da puta.
[313]
Soldados.
[314]
Soldados.
[315]
Hoje.
[316]
Esposa.
[317]
Homem de honra.
[318]
Juramento.
[319]
Calma, pai. Já vou…
[320]
Basta!
[321]
Velhos.
[322]
Poça de mijo.
[323]
Homens de honra.
[324]
Desculpe-me?
[325]
Meu sogro.
[326]
Meu sogro.
[327]
Meu sogro.
[328]
Espécie de croissant doce.
[329]
Estou louca!
[330]
Puta.
[331]
Ele está puto.
[332]
Marido e mulher.
[333]
Caralho.
[334]
futura cunhada
[335]
Dama de honra.
[336]
Primo.
[337]
Filhos.
[338]
Minha sogra.
[339]
Senhoras – lembrar que em italiano não se usa o “s” no plural.
[340]
Ó Deus!

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