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UNIVERSIDADE DO PORTO — FACULDADE DE DIREITO

TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL


Exame Final — Época normal — 1.06.2020

Duração da prova: 2 horas


Nota prévia: Exame final global, correspondente à matéria leccionada no 1.º e no 2.º semestres.
Certifique-se de que este é o exame que pretende realizar.
É permitida a consulta de códigos anotados e de outros elementos bibliográficos. Na resposta a cada
questão deve, sempre que se justifique, considerar as diversas hipóteses relevantes. Fundamente sempre as
respostas e apresente exemplos pertinentes. O rigor e a clareza de exposição serão factores de valorização da
prova. Em caso de desistência, deverá declarar a intenção de desistir na primeira resposta e submeter o exame.

I (10 valores)
Suponha que durante a pandemia que estamos a viver e com o intuito de controlar a sua
propagação era estabelecida a obrigatoriedade de realizar testes de diagnóstico para COVID
19 a todos os utentes dos centros de saúde que apresentassem febre superior a 38ºC. Os
resultados dos testes, a indicação de temperatura e a situação clínica dos utentes seriam
registados numa base de dados nacional única. Os utentes que apresentassem resultados
positivos passariam então a ser rastreados através de uma aplicação para telemóvel de
instalação obrigatória.

Acontece que A, enfermeiro de profissão, preocupado com a possível desvirtuação das


finalidades da base de dados e da aplicação para o telemóvel, se recusa a realizar o teste de
diagnóstico, apesar de registar uma temperatura superior a 38ºC. Quid juris?

II (5+5 valores)
1. No dia 20 de Abril de 2016 A e B celebraram um contrato-promessa de compra e venda de
uma fracção autónoma X, correspondente ao rés do chão com logradouro, destinado a
habitação, do prédio urbano W em regime de propriedade horizontal, sito na Freguesia Z. A,
promitente comprador, vem a verificar mais tarde que o referido logradouro não é de uso
exclusivo da fracção X mas sim uma parte comum do imóvel, de uso comum de todos os
condóminos. Tendo-se decidido pela compra daquele imóvel pelo facto de este compreender
um logradouro, que pensou ser de seu uso privativo, A não compareceu na escritura pública
de compra e venda marcada para o dia 6 de Junho de 2016. A enviou, entretanto, um email a
B declarando resolver o contrato-promessa com fundamento em incumprimento da
contraparte. B, por sua vez, pretende accionar judicialmente A pelo incumprimento do
contrato-promessa.
Quid iuris?
[Ac. TRL 20.02.2020 (António Santos)]

2. Suponha que A e B celebraram um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção


autónoma de um imóvel destinada a habitação. A pretendia realizar algumas obras no imóvel,
tapando um logradouro de uso exclusivo da fracção, de modo a aumentar a sua área útil,
tendo solicitado o licenciamento da obra em causa. As partes acordaram verbalmente que a
celebração do contrato de compra e venda dependeria da aprovação das obras, embora nada
tenha sido previsto nesse sentido no contrato. Tendo em conta que as referidas obras não
foram aprovadas e que A perdeu o interesse na compra do apartamento, diga se este se poderá
desvincular da obrigação assumida.
A situação alterar-se-ia se no contrato-promessa tivesse sido expressamente ressalvado que a
marcação da escritura de compra e venda ficaria dependente da possibilidade de realização
das obras?
UNIVERSIDADE DO PORTO — FACULDADE DE DIREITO
TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL
Exame Final — Época normal — 1.06.2020
Critérios de correcção

I (10 valores)
— Enquadramento da questão no âmbito dos direitos de personalidade e breve descrição das
suas caraterísticas, começo e termo da personalidade jurídica.
— A obrigatoriedade de realizar o teste diagnóstico da COVID-19 contendia com os
seguintes direitos de personalidade: com o direito à liberdade negativa do utente, isto é, a
possibilidade de recusa de certos comportamentos; com o direito à inviolabilidade pessoal,
concretamente, com a sua projeção vital, na qual está compreendido o direito à reserva da
intimidade da vida privada; com o direito à integridade física.
— A recolha dos dados pessoais, nomeadamente a temperatura corporal, bem como a
conservação dos dados pessoais numa base nacional de dados e o seu acompanhamento
através da aplicação de instalação obrigatória no telemóvel, configuram diferentes
tratamentos de dados pessoais, entre os quais se incluem dados sensíveis, como os dados de
saúde (art. 9.º/1 do RGPD). Estamos, por isso, na presença do direito à proteção de dados
pessoais dos utentes.
— A obrigatoriedade de realização do teste diagnóstico da COVID-19 configurava uma
violação ilícita dos direitos de personalidade descritos. Contudo, tratando-se de direitos
disponíveis pelo seu titular, respeitando o limite superior da vida humana e as cláusulas gerais
da ordem pública e bons costumes, o ato é lícito se foi previamente prestado o consentimento
do ofendido (art. 81.º e 340.º do CC). No caso em apreço, estamos na presença do
consentimento autorizante, que configura um poder fático de agressão.
— No que respeita ao processamento de dados pessoais, o responsável pelo tratamento deve
observar as disposições do RGPD. Destaca-se a exigência de um fundamento de licitude para
o tratamento de dados pessoais. Na presença de dados pessoais sensíveis, isto é, aqueles
descritos no artigo 9.º/1, e cujo tratamento é em princípio proibido, os fundamentos de
licitude aplicáveis constam do artigo 9.º/2. Deste elenco salienta-se o consentimento do titular
de dados, fundamento jurídico de legitimidade por excelência, o qual terá de constituir uma
manifestação de vontade explícita.
— Além do consentimento do titular de dados, o enquadramento da questão da legitimidade
do tratamento dos dados pessoais na alínea i) do artigo 9.º/2 (“se o tratamento for necessário
por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra
ameaças transfronteiriças graves para a saúde”) foi também considerada correta. Neste
sentido, (apenas neste), podíamos falar num direito do responsável pelo tratamento ao
processamento de dados pessoais que colidia com os direitos dos utentes. Nos termos do
artigo 335.º/2 do CC, o direito do responsável pelo tratamento ao processamento de dados
pessoais fundado no interesse público no domínio da saúde pública podia ser considerado
superior, prevalecendo. (Note-se que o artigo 335.º do CC disciplina o exercício de direitos
subjetivos pertencentes a diferentes pessoas em caso de colisão/incompatibilidade entre eles.
É necessário, por isso, descortinar, pelo menos, dois direitos subjetivos em colisão.)
— Além do princípio da licitude do tratamento, a questão suscitava a observância do
princípio da minimização dos dados. Apenas devem ser processados os dados necessários ao
cumprimento da finalidade. O rastreio e monitorização do utente através da dita app podia
revelar um tratamento de dados excessivo.
— Relativamente ao receio de A acerca da possível desvirtuação das finalidades da base de
dados, releva o princípio da limitação das finalidades, previsto no artigo 5.º/1/b) do RGPD
que estatui a necessidade do tratamento de dados se cingir à finalidade para a qual os dados
foram recolhidos, apenas sendo permitido o seu desvio na presença de uma finalidade
considerada compatível.
II (10 valores)
1. [“No dia 20 de Abril de 2016 A e B celebraram um contrato-promessa...”]
— Enquadramento da questão no âmbito dos vícios de vontade.
— Caracterização do vício da vontade presente nos negócios celebrados com A e B como
erro-vício; contraposição face ao erro-obstáculo.
— Condições gerais da relevância do erro enquanto vício da vontade: essencialidade e
propriedade.
— Identificação do erro em causa enquanto erro sobre o objeto do negócio (art. 251.º CC);
contraposição face ao erro sobre a base negocial (art. 252.º, n.º 2 CC).
— Condições especiais de relevância do erro sobre o objeto do negócio (art. 247.º ex vi art.
251.º CC): o declaratário deverá conhecer ou não ignorar a essencialidade do elemento sobre
que incidiu o erro.
— Consequências da relevância do erro sobre o objeto: a anulabilidade (legitimidade; prazo;
efeitos – art. 287.º e 289.º CC) e não a resolução.
— Não houve lugar à sanação do vício pelo decurso do tempo, porque o prazo ainda não
começou a correr, atendendo a que o contrato prometido não chegou a ser celebrado; arguição
da anulabilidade por via de excepção.

2. [“Suponha que A e B celebraram um contrato-promessa de compra e venda...”]


1.ª hipótese: contrato-promessa e forma do negócio (art. 410.º e 875.º CC).
— Âmbito da forma legal: as estipulações acessórias anteriores ao documento são nulas
(presunção de que o documento esgota o consenso obtido, nos termos do art. 221.º, n.º 1 CC).
— Afastamento, na hipótese, das exceções permitidas a esta regra pela não verificação dos
requisitos do art. 221.º CC.
— Irrelevância da pressuposição (erro quanto ao futuro/“condição não desenvolvida”,
enquadrável, analogicamente, no art. 437.º) de A e inviabilidade da sua pretensão (não
verificação dos requisitos deste artigo).
2.ª hipótese: aposição de uma cláusula acessória típica (condição) no contrato (elemento
acidental do negócio jurídico).
— Caracterização da cláusula: condição suspensiva (art. 270.º CC).
— Não verificação da condição da condição e, consequentemente, não produção dos efeitos
definitivos a que o negócio tendia.

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