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I (10 valores)
Suponha que durante a pandemia que estamos a viver e com o intuito de controlar a sua
propagação era estabelecida a obrigatoriedade de realizar testes de diagnóstico para COVID
19 a todos os utentes dos centros de saúde que apresentassem febre superior a 38ºC. Os
resultados dos testes, a indicação de temperatura e a situação clínica dos utentes seriam
registados numa base de dados nacional única. Os utentes que apresentassem resultados
positivos passariam então a ser rastreados através de uma aplicação para telemóvel de
instalação obrigatória.
II (5+5 valores)
1. No dia 20 de Abril de 2016 A e B celebraram um contrato-promessa de compra e venda de
uma fracção autónoma X, correspondente ao rés do chão com logradouro, destinado a
habitação, do prédio urbano W em regime de propriedade horizontal, sito na Freguesia Z. A,
promitente comprador, vem a verificar mais tarde que o referido logradouro não é de uso
exclusivo da fracção X mas sim uma parte comum do imóvel, de uso comum de todos os
condóminos. Tendo-se decidido pela compra daquele imóvel pelo facto de este compreender
um logradouro, que pensou ser de seu uso privativo, A não compareceu na escritura pública
de compra e venda marcada para o dia 6 de Junho de 2016. A enviou, entretanto, um email a
B declarando resolver o contrato-promessa com fundamento em incumprimento da
contraparte. B, por sua vez, pretende accionar judicialmente A pelo incumprimento do
contrato-promessa.
Quid iuris?
[Ac. TRL 20.02.2020 (António Santos)]
I (10 valores)
— Enquadramento da questão no âmbito dos direitos de personalidade e breve descrição das
suas caraterísticas, começo e termo da personalidade jurídica.
— A obrigatoriedade de realizar o teste diagnóstico da COVID-19 contendia com os
seguintes direitos de personalidade: com o direito à liberdade negativa do utente, isto é, a
possibilidade de recusa de certos comportamentos; com o direito à inviolabilidade pessoal,
concretamente, com a sua projeção vital, na qual está compreendido o direito à reserva da
intimidade da vida privada; com o direito à integridade física.
— A recolha dos dados pessoais, nomeadamente a temperatura corporal, bem como a
conservação dos dados pessoais numa base nacional de dados e o seu acompanhamento
através da aplicação de instalação obrigatória no telemóvel, configuram diferentes
tratamentos de dados pessoais, entre os quais se incluem dados sensíveis, como os dados de
saúde (art. 9.º/1 do RGPD). Estamos, por isso, na presença do direito à proteção de dados
pessoais dos utentes.
— A obrigatoriedade de realização do teste diagnóstico da COVID-19 configurava uma
violação ilícita dos direitos de personalidade descritos. Contudo, tratando-se de direitos
disponíveis pelo seu titular, respeitando o limite superior da vida humana e as cláusulas gerais
da ordem pública e bons costumes, o ato é lícito se foi previamente prestado o consentimento
do ofendido (art. 81.º e 340.º do CC). No caso em apreço, estamos na presença do
consentimento autorizante, que configura um poder fático de agressão.
— No que respeita ao processamento de dados pessoais, o responsável pelo tratamento deve
observar as disposições do RGPD. Destaca-se a exigência de um fundamento de licitude para
o tratamento de dados pessoais. Na presença de dados pessoais sensíveis, isto é, aqueles
descritos no artigo 9.º/1, e cujo tratamento é em princípio proibido, os fundamentos de
licitude aplicáveis constam do artigo 9.º/2. Deste elenco salienta-se o consentimento do titular
de dados, fundamento jurídico de legitimidade por excelência, o qual terá de constituir uma
manifestação de vontade explícita.
— Além do consentimento do titular de dados, o enquadramento da questão da legitimidade
do tratamento dos dados pessoais na alínea i) do artigo 9.º/2 (“se o tratamento for necessário
por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra
ameaças transfronteiriças graves para a saúde”) foi também considerada correta. Neste
sentido, (apenas neste), podíamos falar num direito do responsável pelo tratamento ao
processamento de dados pessoais que colidia com os direitos dos utentes. Nos termos do
artigo 335.º/2 do CC, o direito do responsável pelo tratamento ao processamento de dados
pessoais fundado no interesse público no domínio da saúde pública podia ser considerado
superior, prevalecendo. (Note-se que o artigo 335.º do CC disciplina o exercício de direitos
subjetivos pertencentes a diferentes pessoas em caso de colisão/incompatibilidade entre eles.
É necessário, por isso, descortinar, pelo menos, dois direitos subjetivos em colisão.)
— Além do princípio da licitude do tratamento, a questão suscitava a observância do
princípio da minimização dos dados. Apenas devem ser processados os dados necessários ao
cumprimento da finalidade. O rastreio e monitorização do utente através da dita app podia
revelar um tratamento de dados excessivo.
— Relativamente ao receio de A acerca da possível desvirtuação das finalidades da base de
dados, releva o princípio da limitação das finalidades, previsto no artigo 5.º/1/b) do RGPD
que estatui a necessidade do tratamento de dados se cingir à finalidade para a qual os dados
foram recolhidos, apenas sendo permitido o seu desvio na presença de uma finalidade
considerada compatível.
II (10 valores)
1. [“No dia 20 de Abril de 2016 A e B celebraram um contrato-promessa...”]
— Enquadramento da questão no âmbito dos vícios de vontade.
— Caracterização do vício da vontade presente nos negócios celebrados com A e B como
erro-vício; contraposição face ao erro-obstáculo.
— Condições gerais da relevância do erro enquanto vício da vontade: essencialidade e
propriedade.
— Identificação do erro em causa enquanto erro sobre o objeto do negócio (art. 251.º CC);
contraposição face ao erro sobre a base negocial (art. 252.º, n.º 2 CC).
— Condições especiais de relevância do erro sobre o objeto do negócio (art. 247.º ex vi art.
251.º CC): o declaratário deverá conhecer ou não ignorar a essencialidade do elemento sobre
que incidiu o erro.
— Consequências da relevância do erro sobre o objeto: a anulabilidade (legitimidade; prazo;
efeitos – art. 287.º e 289.º CC) e não a resolução.
— Não houve lugar à sanação do vício pelo decurso do tempo, porque o prazo ainda não
começou a correr, atendendo a que o contrato prometido não chegou a ser celebrado; arguição
da anulabilidade por via de excepção.