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40.

º Curso de Formação para os Tribunais Judiciais

Prova escrita de Direito Civil, Comercial e Processual Civil

VIA ACADÉMICA – 1.ª chamada

18 de fevereiro de 2023

Grelha de correção

Nota:
O conteúdo da grelha disponibilizada reflete as abordagens jurídicas que, do ponto de vista da forma e da
substância, se reputam as mais corretas em função das peças facultadas e dos dados do processo e que devem, na
prova do candidato, mostrar-se devidamente enquadradas e fundamentadas.
Sem embargo, outros tipos de abordagem, de forma ou de substância, que sejam razoáveis e plausíveis face
aos dados facultados e que se revelem suportados em fundamentos consistentes, serão igualmente valorizados, na
medida do respetivo mérito.

COTAÇÃO TOTAL DA PROVA (20 VALORES)

CASO I
Questão 1 - (4 valores)

Qualifique o acordo celebrado, em janeiro de 2021, entre Ana e Beatriz, apreciando a respetiva validade.

- Qualificar o acordo celebrado entre Ana e Beatriz como um contrato de trespasse de estabelecimento comercial,
recorrendo, face à ausência de uma definição legal, ao disposto no artigo 1112.º, n.º 2, do Código Civil e aos contributos
da doutrina e da jurisprudência;

- Assinalar que tal acordo teve por objeto o conjunto de bens e direitos que se destinavam ao exercício da atividade
comercial de venda e prestação de serviços de confecção e decoração de bolos de aniversário, constituindo um
estabelecimento comercial; referir que esse estabelecimento comercial foi transmitido por Ana a Beatriz juntamente
com a posição de arrendatária do espaço onde o mesmo estava instalado;

- Salientar que o negócio subjacente ao contrato de trespasse consistiu numa compra e venda do estabelecimento
comercial, uma vez que a transmissão da titularidade do estabelecimento ocorreu mediante contrato de alienação de
coisas e direitos, mediante o pagamento de um preço, o qual foi parcialmente entregue por Beatriz a Ana (artigo 874.º
do Código Civil);

- Mencionar que tal contrato, contemplando a posição de arrendatária, deveria ser celebrado por escrito e comunicado
ao senhorio, concluindo, em face dos elementos disponibilizados, que não foi observada a forma escrita, pelo que o
contrato é nulo (artigos 220.º e 1112.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código Civil).

Questão 2 - (6 valores)

Considerando os elementos disponibilizados e tendo presente a ação instaurada por Beatriz, enquadre do ponto de
vista jurídico-substantivo, a solução a dar ao litígio.

- Referir que o Tribunal deve conhecer oficiosamente a nulidade do contrato de trespasse, declarando o mesmo nulo,
por falta de forma, concluindo, em consequência, pela improcedência do pedido de declaração da resolução do
contrato (artigos 220.º, 286.º e 1112.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código Civil);

- Enunciar os efeitos da nulidade do contrato de trespasse, referindo que a Ré deve restituir à Autora a totalidade da
quantia de 3.500 Euros (correspondente à parte do preço entregue por Beatriz) ou o valor correspondente à diferença
entre a parte do preço entregue e o valor do benefício que Beatriz retirou da efetiva utilização do estabelecimento
comercial, entre fevereiro e setembro de 2021. Em qualquer das hipóteses, fazer referência ao disposto no artigo 289.º,
n.º 1, do Código Civil e ao Assento n.º 4/95 (DR 114/95 Série I-A, de 17-05), concluindo em conformidade pela
procedência total ou parcial do pedido de condenação de 3.500 Euros;

- Sustentar que o contrato de trespasse celebrado entre as partes não produziu os seus efeitos, por ter sido declarado
nulo, afastando a possibilidade de procedência dos pedidos de condenação, respeitantes aos danos patrimoniais e não
patrimoniais, com fundamento no incumprimento contratual da Ré;

- Equacionar, quanto a esses dois pedidos, se tais danos poderiam ser ressarcidos com fundamento na responsabilidade
por factos ilícitos, ao abrigo do disposto nos artigos 483.º, 487.º e 562.º a 564.º do Código Civil;

- Problematizar se a conduta da Ré, ao substituir a fechadura da loja sem entregar à Autora a nova chave, privando-a
de aceder àquele espaço e aos bens por esta adquiridos e confecionados, violou o direito de propriedade da Autora,
apreciando se tais factos se subsumem aos pressupostos da ação direta, previstos no artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do Código
Civil, concluindo negativamente;

- Sustentar, em conformidade, a procedência da pretensão da Autora, no que toca aos danos patrimoniais, no valor de
1500 Euros (artigos 562.º, 563.º, 564.º, n.º 1, e 566.º, do Código Civil);

- Quanto aos danos não patrimoniais, enquadrar o pedido formulado à luz do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil,
considerando que os mesmos merecem a tutela do direito, concluindo pela sua procedência total ou parcial, sendo o
montante de indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, conforme estatuído no n.º 4 do referido preceito;

Questão 3 – (2 valores)

Indique se Beatriz tinha ao seu dispor algum/uns meio/s processual/ais de tutela cível, e em caso afirmativo, qual/ais.

- Identificar o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, previsto no artigo 377.º do Código de Processo
Civil, como um meio processual de tutela da posse;

- Caracterizar a posição de Beatriz enquanto possuidora da bicicleta (artigo 1251.º do Código Civil);

- Referir que Beatriz, contra a sua vontade, foi privada de utilizar e fruir a bicicleta (artigo 1238.º do Código Civil);

- Quanto ao requisito da violência, problematizar a sua verificação no caso concreto, face às posições divergentes da
doutrina e da jurisprudência sobre a questão de saber se a violência do esbulho só pode ser exercida sobre a pessoa
do possuidor ou se pode igualmente recair sobre a própria coisa possuída (artigo 1279.º do Código Civil);

- Consoante a posição adotada quanto a este requisito, concluir pela possibilidade de recurso à restituição provisória
da posse ou, sustentando a ausência de violência, admitir a possibilidade de recurso a uma providência cautelar
comum, desde que verificados os respetivos pressupostos (artigo 362.º do Código de Processo Civil).

CASO II
Questão 1- (6 valores)
Enquadre, do ponto de vista jurídico – substantivo, as pretensões de Catarina, apreciando se as mesmas devem
merecer acolhimento.
Alínea a)
- Mencionar que António e Catarina viveram em situação de união de facto até 31 de dezembro de 2022, nos termos
do artigo 1.º n.º 2 da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (Lei de proteção das uniões de facto);
- Referir que a união de facto se dissolveu por vontade de António e que a dissolução da união de facto por vontade de
um dos membros tem que ser judicialmente declarada, quando se pretendam fazer valer direitos que dela dependam
– artigo 8.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, da Lei n.º 7/2001;
- Concluir que a declaração judicial da dissolução da união de facto deve ser proferida na ação mediante a qual o
interessado pretende fazer valer direitos dependentes daquela dissolução; pelo que esta pretensão de Catarina deverá
proceder - artigo 8.º, nº 3, 1ª parte, da Lei n.º 7/2001.
Alínea b)
- Referir que a comparticipação dos membros da união de facto para os gastos diários configura uma contribuição livre
para a economia comum, baseada na entreajuda ou partilha de recursos;
- Constatar que, contrariamente ao casamento, na união de facto essa comparticipação não é o cumprimento de um
dever de cooperação e de assistência, que aqui não existe;
- Indicar que, no âmbito da união de facto, essa comparticipação se configura como cumprimento de uma obrigação
natural – artigo 402.º do Código Civil;
- Tratando-se de prestações efetuadas sem coação, não pode ser repetido o que foi prestado, pelo que não há direito
ao recebimento de qualquer valor; devendo esta pretensão de Catarina improceder – artigo 403.º, n.ºs 1 e 2, do Código
Civil.
Alínea c)
- Referir que, quando as lides domésticas da casa em que ambos vivem e a educação dos filhos é repartida pelos dois
membros da união de facto em proporções equilibradas, tais prestações constituem obrigações naturais que, sendo
efetuadas sem coação, não dão lugar à repetição do que foi prestado – artigos 402.º e 403.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil;
- Tendo em conta que, no caso concreto, desde março de 2014, essas tarefas foram realizadas exclusivamente por
Catarina, sem qualquer contrapartida por parte de António, ponderar a possibilidade de aplicação à situação em análise
do instituto do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 473.º segs. do Código Civil;
- Equacionar se se verifica um verdadeiro empobrecimento da Autora, e se a correspetiva libertação do Réu dessas
tarefas configura um verdadeiro enriquecimento; concluindo afirmativamente, ponderar se esse enriquecimento
carece de causa justificativa, considerando que cessou a união de facto que o motivou;
- Seguindo esta orientação, o Tribunal poderá contabilizar o trabalho desenvolvido pela Autora nas lides domésticas e
educação do filho como um fator contributivo que permitiu ao Réu adquirir património no decurso da relação de união
de facto, fixando o valor dessa contribuição para a aquisição do prédio rústico e do automóvel; condenando o Réu no
pagamento desse valor, podendo, nessa medida, a pretensão de Catarina proceder (ainda que parcialmente).
- Alínea d)
- Mencionar que o unido de facto não está vinculado aos deveres conjugais previstos nos artigos 1672.º e segs. do
Código Civil, referindo que o regime da união de facto não prevê qualquer compensação pela rutura da união, por parte
de um dos seus membros;
- Concluir que não existe suporte legal que fundamente o direito a indemnização por rutura da união, devendo esta
pretensão de Catarina improceder.

Questão 2 – (2 valores)
Poderá, sem mais, o Tribunal condenar o Réu no pagamento dessa quantia?
- Referir que a Autora deduziu um pedido genérico e que, para se obter desde logo a condenação num montante
concreto, tal pedido teria que ter sido previamente quantificado pela Autora, no decurso da ação declarativa, o que
não se verificou – artigos 358.º, n.º 1, 359.º, n.º 1, e 360.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
- Desconhecendo o Tribunal os concretos limites da pretensão da Autora, concluir que não pode substituir-se a ela e
fixar o valor do respetivo montante concreto, sob pena de violação dos limites da condenação previstos no artigo 609.º,
n.º 1, do Código de Processo Civil e de nulidade da sentença, nessa parte, por condenação ultra petitum, nos termos
do artigo 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.

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