Você está na página 1de 4

91

Exame Clínico
Heitor Rosa

INTRODUÇÃO
A interpretação popular para uma série de sinais e sintomas, admitidos como causados pelo fígado e vesícula ou relacionados com esses órgãos, deve ser cuidadosamente decodificada pelo médico.
Assim, entre pessoas mais rudes, a icterícia é chamada de “tiriça”; o termo “amarelão”, ou estar “amarelo”, comumente não se relaciona com a coloração amarelada da pele e mucosas (icterícia), mas sim com a palidez encontrada nas síndromes anêmicas.
O paciente mais urbano costuma ter uma ideia mais elaborada de seus sintomas. Assim, sua queixa principal pode revelar um autodiagnóstico, como “meu problema é fígado”, tão frequente quanto “tenho gastrite” ou “sofro de colite”. Tais afirmações baseiam­se em
experiências e/ou diagnósticos de terceiros ou simplesmente na admissão de ter “herdado” esta “doença” por pertencer a uma família na qual ela é muito comum. Outras vezes, a queixa principal traduz um estigma iatrogênico, isto é, um diagnóstico afirmado por
médicos. Tais diagnósticos rotulam o paciente e ele os carrega por toda a vida como um verdadeiro estigma. Um exemplo é o termo “vesícula preguiçosa”.

Manifestações clínicas interpretadas como de origem hepática ou biliar

■ Cefaleia. A dor de cabeça comumente é atribuída a um “alimento que fez mal” ou à “intoxicação do fígado”. Isto é observado com muita frequência nos portadores de enxaqueca.
■ Dispepsia. A sensação de “má digestão” ou plenitude pós­prandial geralmente é vista como perturbação hepática.
■ Vômitos. O vômito do tipo bilioso assusta o paciente e dá­lhe a certeza de estar com uma doença do fígado ou da vesícula.
■ Boca amarga. Trata­se de um fenômeno de difícil explicação, mas é considerada pelo paciente como manifestação de doença da vesícula ou do fígado.
■ Acne. Mais comum nos jovens, os quais procuram o médico para tratar do “fígado” e dos “intestinos”, depois de exaustiva medicação cosmética.
■ Discromias. Hiperpigmentação da pele, como o cloasma gravídico, leva a mulher a medicar­se com substâncias colagogas e coleréticas.
Essas convicções etiológicas do paciente podem confundir, induzindo­o a solicitar exames complementares desnecessários ou a adotar uma terapêutica inadequada.

ANAMNESE
Dor. A dor originária do fígado e das vias biliares localiza­se no quadrante superior direito do abdome e apresenta diferentes características, conforme a afecção que a provoca.
O parênquima hepático não tem sensibilidade, mas a cápsula de Glisson, quando distendida abruptamente, ocasiona dor contínua localizada no hipocôndrio direito e epigástrio, sem irradiação e que piora com a palpação da região.
A causa mais comum é a congestão do fígado, que ocorre na insuficiência cardíaca, constituindo o que se costuma denominar hepatomegalia dolorosa. Este tipo de dor pode ocorrer também na hepatite aguda viral, na hepatite alcoólica e no câncer avançado, que se
acompanham de rápido crescimento do fígado.
A dor do abscesso hepático pode ser muito intensa, com localização mais restrita, correspondente à área de projeção do abscesso, a qual se torna hipersensível, dificultando sobremodo a palpação da víscera.
A dor originada nas vias biliares apresenta­se de duas maneiras: (1) cólica biliar, outrora denominada cólica hepática, tem característica de cólica, de início súbito, de grande intensidade, localizada no hipocôndrio direito, com várias horas de duração; em geral, o
paciente fica inquieto, nauseado, podendo apresentar vômitos. A causa mais frequente é a colelitíase. O aparecimento de icterícia após episódio de cólica biliar sugere a passagem do cálculo para o colédoco; (2) na colecistite aguda, a dor é contínua, localizada no
hipocôndrio direito, podendo irradiar­se para o ângulo da escápula ou para o ombro direito, via nervo frênico. Acompanha­se de hiperestesia e contratura muscular. A palpação da região desperta dor (sinal de Murphy) e pode surpreender uma vesícula distendida.

Diagnóstico diferencial da dor

O diagnóstico diferencial da dor originada no fígado e nas vias biliares inclui várias afecções, destacando­se a pancreatite aguda, a úlcera péptica perfurada, a cólica nefrética, a pleurite e a isquemia miocárdica. O caráter da dor e a análise
dos sintomas acompanhantes quase sempre oferecem elementos para esta diferenciação. Contudo, não é raro que só se consiga definir a causa da dor com a ajuda de exames complementares.

Icterícia. Icterícia consiste em uma coloração amarelada da pele e das mucosas, devida à impregnação dos tecidos por pigmentos biliares (só se consegue detectar icterícia quando os níveis de bilirrubina são maiores que 2 mg/dℓ (normal, 1 mg/dℓ).
Em algumas pessoas hígidas, a pele apresenta tonalidade amarelada, mas, nesse caso, a esclerótica não fica pigmentada. Alguns alimentos (cenoura e mamão) e certos medicamentos, em especial os antimaláricos, contêm substâncias que podem conferir coloração
amarelada à pele, mas, nesses casos, a esclerótica também permanece de cor normal.
Nas pessoas da raça negra, pode­se perceber uma tonalidade amarela na parte exposta da esclerótica, dado o acúmulo, na conjuntiva, de uma camada de gordura. Mas, como ela não atinge toda a superfície anterior do olho, basta um exame mais detalhado dos olhos para
descartar a possibilidade de icterícia.
A investigação diagnóstica de um paciente com icterícia inclui tempo de duração, intensidade e evolução da icterícia, se foi de instalação súbita ou gradativa, se aumentou progressivamente ou se está havendo flutuação da intensidade. Interessa, também, saber a cor da
urina e das fezes e se há ou não prurido.
Náuseas e vômitos. Náuseas e vômitos são manifestações clínicas frequentes nas doenças do fígado e das vias biliares. Na colecistite e na colelitíase costumam estar relacionados com a ingestão de alimentos gordurosos.

EXAME FÍSICO
Serão analisados separadamente o exame do fígado, da vesícula biliar e do baço, aqui incluído por ser comum o crescimento simultâneo do fígado e do baço.

Exame do fígado
Inspeção. Somente grandes nódulos ou massas na superfície hepática podem ser percebidos à inspeção. Nestas condições, observa­se elevação ou abaulamento na área hepática (quadrante superior direito ou região epigástrica). A melhor maneira de examinar esta área é
inspecionando­a lateral e tangencialmente.
A vesícula, quando obstruída, pode aumentar seu volume e ser visível como uma área elevada e arredondada no quadrante superior direito.
Percussão. A percussão visa determinar os limites superior e inferior do fígado e estabelecer o seu tamanho.
Esta manobra é imprescindível para: (1) identificar o limite ou borda inferior, precedendo e orientando a palpação; (2) determinar a área hepática para biopsia; (3) certificar­se do volume hepático. Nos casos de diminuição do volume do fígado, como ocorre nas
cirroses, esta manobra é insubstituível.
O limite superior é determinado pela percussão ao longo da linha hemiclavicular, no nível do 5o espaço intercostal esquerdo, identificado pelo som submaciço. Este som corresponde à musculatura diafragmática sobre a cúpula hepática e é uma transição entre a
sonoridade pulmonar e a macicez hepática.
A percussão do limite ou borda inferior – lembrar que não existe borda superior – é feita, suavemente, de baixo para cima, na projeção das linhas hemiclavicular e medioesternal, em direção à arcada costocondral. Os pontos de macicez correspondem ao limite inferior
do fígado e servem como locais de referência para a palpação. A distância entre o limite superior e o ponto de macicez inferior, mais baixo, corresponde, com boa aproximação, ao tamanho real do fígado.
Palpação. Os elementos que o examinador deve identificar ao palpar o fígado estão resumidos no Quadro 91.1. A palpação superficial e profunda é executada em conjunto, como se verá a seguir.
■ Borda. O primeiro elemento a se determinar na palpação é a borda, que pode ser examinada de duas maneiras. Na primeira, a mão direita, aberta e espalmada, é colocada no ponto onde a percussão identificou o limite inferior. Se a primeira manobra não for possível ou
se o examinador tiver dúvidas, a palpação deve começar a partir do quadrante inferior direito. Em ambos os casos, a mão deve estar suave e totalmente apoiada na parede abdominal, com sua borda interna paralela à linha média do abdome, com exceção do polegar. Os
demais dedos devem permanecer unidos e estirados. A seguir, imprimem­se movimentos de flexão da articulação intermetacarpiana, rápidos e firmes, deprimindo a parede como se se “telegrafasse” sobre ela, em sentido ascendente. Quando não há hepatomegalia, nenhuma
resistência é oferecida até a arcada costal. Quando o fígado está aumentado, as pontas dos dedos encontram resistência sólida, correspondente à sua borda. O examinador deve então prosseguir a manobra de modo a senti­la em toda a sua extensão, ou seja, os lobos direito
e esquerdo. Após a delimitação da borda, procede­se à análise da sua espessura da seguinte maneira: a mão esquerda do examinador é colocada sob a região lombar, na topografia da loja renal direita, em uma área limitada pela margem externa da musculatura
paravertebral e o arco costal. Os dedos devem empurrar as estruturas para cima, podendo­se usar a terceira articulação metacarpofalangiana como fulcro da alavanca cujo ponto de apoio será a cama. Esta manobra tem por objetivo “empurrar” o fígado para diante,
aproximando­o da mão direita do examinador, que estará espalmada sobre o abdome, com os dedos indicador e médio tocando a borda hepática. A seguir, pede­se ao paciente que inspire profunda e lentamente. Esta manobra movimenta o fígado para baixo pela descida do
diafragma. Assim, a palpação conta com dois movimentos do fígado: para diante e para baixo. Enquanto o órgão está sendo deslocado para baixo, o examinador desloca sua mão para cima. Com isto percebe­se a borda hepática.

Quadro 91.1 Elementos de análise à palpação do fígado.

Dimensão (cm)

Borda (espessura)

■ Fina ou romba

Superfície

■ Regular ou lisa

■ Irregular

Sensibilidade

■ Indolor

■ Dolorosa
Consistência

■ Elástica ou normal

■ Firme ou aumentada

■ Diminuída

Refluxo hepatojugular

■ Ausente

■ Presente

Uma segunda maneira de palpar a borda hepática é por intermédio da “manobra em garra”. Para executá­la, o examinador coloca­se à altura do ombro direito do paciente deitado, podendo o médico ficar em pé ou sentado no leito. Onde as outras manobras identificaram
a borda, colocam­se os dedos mínimo, anular e médio de ambas as mãos, no mesmo alinhamento, de tal maneira que as extremidades dos dedos médios se toquem (Figura 91.1). Isso permite formar uma enorme superfície contínua para a palpação. Solicitando ao paciente
que inspire profunda e lentamente outra vez, as pontas dos dedos trazem para cima a borda hepática, que pode ser então avaliada.
A dimensão dos lobos direito e esquerdo é a distância entre a borda costal e as bordas hepáticas. A medida com fita métrica é mais exata que em “dedos transversos”.
A borda hepática pode ser fina ou romba.
A espessura normal da borda é fina, cortante, o que se percebe pelo deslocamento ou passagem rápida da mesma pelos dedos do examinador. Nem toda borda fina indica um fígado normal. A superfície compreendida entre a borda costal e a borda hepática deve ser
medida em centímetros e não em dedos transversos, pois a largura dos dedos varia de pessoa para pessoa. Assim, é conveniente que cada examinador meça a largura de seus dedos (Figura 91.2).

Figura 91.1 Manobra em garra para palpação do fígado. O examinador, sentado ou em pé, fica na altura do ombro direito do paciente. As polpas dos dedos mínimo, anular e médio de ambas as mãos ficam no mesmo alinhamento, formando uma grande superfície contínua para a
palpação da borda hepática.

A borda romba, como o nome já indica, é espessa e tem altura variável, dependendo da afecção e do tempo de doença.
■ Superfície. Ao tocar a borda e sentir sua espessura, o examinador deve deslizar a palma de seus dedos pela superfície hepática, tentando senti­la em toda a sua extensão, isto é, para cima e para os lados, de maneira suave. Com concentração e sensibilidade podem­se
perceber desde pequenas irregularidades na superfície, como diminutos nódulos, até grandes massas.
Ao encontrar um nódulo, o observador descreve sua localização e seus diâmetros aproximados, com frases objetivas, como “nódulos em ambos os lobos, de tamanhos variados, entre 0,5 e 3 cm”, e assim por diante.
■ Sensibilidade e consistência. Avaliada a superfície do fígado, o examinador pressiona­a com a polpa dos dedos, em um gesto firme e de curta duração, enquanto indaga ao paciente se sente dor ao toque. A hepatomegalia dolorosa ocorre, por exemplo, na insuficiência
cardíaca congestiva ou na hepatite viral aguda. As hepatomegalias de instalação súbita ou rápida geralmente são muito dolorosas, devido ao estiramento da cápsula de Glisson. Nas formas crônicas existe uma adaptação volumétrica da cápsula, e o fígado é indolor.
Ao mesmo tempo que se avalia a sensibilidade, a pressão sobre a superfície possibilita também determinar a consistência do órgão. A consistência normal do fígado é relativamente elástica. Um exemplo de fígado firme ou duro é o da cirrose, devido à intensa
proliferação de tecido fibrótico. A infiltração gordurosa ou esteatose aguda da gravidez é um exemplo de fígado de consistência diminuída ou amolecida.
■ Pesquisa do refluxo hepatojugular. Nos pacientes com cardiopatia aguda (ICC), deve­se fazer a compressão da superfície hepática com a palma da mão. Após uma compressão firme e contínua, o examinador observa se há enchimento e turgência da veia jugular
externa direita (o paciente deve ter a cabeça voltada à esquerda, para facilitar a observação). Em caso positivo, se diz que há refluxo hepatojugular, um dos sinais da insuficiência ventricular direita (ver Capítulo 49, Doenças do Coração e da Aorta).
Figura 91.2 Representação esquemática do abdome, em forma de um hexágono. Os órgãos palpados são delineados no esquema, com indicações das distâncias entre o limite inferior e a reborda costal, em centímetros. O modelo também é válido para esquematizar qualquer massa
ou coleção líquida.

Ausculta. A ausculta da área da projeção do fígado pode ser útil, pois, em algumas doenças, podem ser ouvidos sopros suaves, como no câncer primitivo e na hepatite alcoólica. As neoplasias hepáticas não raro produzem um pequeno atrito cujo ruído pode ser
nitidamente auscultado.
O Quadro 91.2 resume as características do fígado nas hepatopatias mais comuns.

Descrição breve do exame de fígado

Para facilitar a anotação dos achados, o médico deve habituar­se a fazer uma descrição sucinta e objetiva, por exemplo: “Limite superior percutível no 5o espaço intercostal esquerdo. Limites inferiores a 12 cm abaixo da reborda costal no
nível da linha hemiclavicular e a 9 cm da linha medioesternal. Superfície irregular, caracterizada por múltiplos nódulos em ambos os lobos, variando de 2 a 4 cm de diâmetro, sendo alguns dolorosos à compressão. Consistência firme. Não se
auscultam sopros ou atritos.”
É interessante fazer um desenho esquemático do abdome representado por uma figura hexagonal, na qual se registrem as alterações encontradas. No exemplo anterior, o esquema ficaria como o representado na Figura 91.2.

Hepatomegalia

Denomina­se hepatomegalia o aumento volumétrico do fígado à custa de um ou de todos os lobos. Isto significa que o órgão, como um todo, ultrapassa seus limites superior, inferior e transverso. Entretanto, devemos estar atentos ao fato
de que nem todo fígado palpável está aumentado de volume. Por exemplo, nos enfisematosos pode­se palpar o fígado graças à expansão dos pulmões, os quais deslocam para baixo o diafragma. Neoplasias no polo superior do rim direito
podem deslocar o fígado para baixo e para frente, simulando uma verdadeira hepatomegalia. O lobo de Riedel, raro prolongamento do lobo direito, pode simular volumosa hepatomegalia, neoplasia ou rim.
A medida do tamanho do fígado, pela palpação e por cuidadosa e delicada percussão hepática, é o método hepatimétrico mais rápido, fácil e barato. Talvez, adquirindo­se experiência, possa ser um dos mais precisos. Porém, a medida
mais exata é com a fita métrica.
Quando houver dúvidas a respeito do volume e dos limites do fígado, assim como das características de sua superfície, podem­se utilizar outros métodos, tais como a ultrassonografia e a tomografia, descritos no Capítulo 92, Exames
Complementares. As causas de hepatomegalia são múltiplas (Quadro 91.3). Cabe agora analisar o significado da hepatomegalia, e nenhuma deve ser considerada como um fato sem importância clínica. A correlação com o quadro clínico
é fundamental, embora sejam frequentes as hepatomegalias silenciosas ou assintomáticas.
A exploração funcional hepática é obrigatória e a biopsia e/ou exame por imagem podem vir a ser os elementos de decisão. Um exemplo de hepatomegalia não patológica é a do recém­nascido, no qual o fígado está aumentado enquanto
cumpre sua temporária função hematopoética.
Uma hepatomegalia de questionável significado patológico e de evolução assintomática é a secundária ao uso crônico de fenobarbital e outros medicamentos que produzem o fenômeno de indução enzimática, o qual provoca hipertrofia e
hiperplasia do retículo endoplasmático liso.
Enfim, a hepatomegalia não caracteriza o fígado como sede primitiva da doença. Na verdade, o fígado aumentado de volume é um sinal clínico que traduz hepatopatia ou apenas a resposta a uma doença a distância ou sistêmica.

Exame da vesícula biliar


A vesícula biliar normalmente não é acessível à palpação e só se torna palpável em condições patológicas. É necessário que ocorra alteração na consistência de suas paredes, como no câncer vesicular, ou que haja aumento de tensão no seu interior por dificuldade de
escoamento de seu conteúdo em consequência de obstrução do ducto cístico ou do colédoco para se tornar palpável.

Quadro 91.2 Características físicas do fígado em algumas hepatopatias.

Você também pode gostar