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1.

º SEMESTRE

INTRODUÇÃO

A) O que é direito das obrigações? Duas diferentes noções!

Enquanto uma subdivisão do direito civil?

- É um dos cinco livros – integrantes daquela que é a sistematização germânica dos direitos 1 –
constituído pelo conjunto das normas jurídicas reguladoras das relações jurídicas de crédito, ou
também chamadas relações jurídicas creditórias!

É Direito Privado, o que significa que se baseia, além doutros princípios gerais do direito civil, na
igualdade de partes e na liberdade. No Direito Civil, em todos seus ramos, a regra é: tudo o que
não é proibído, é permitido

Enquanto um ramo da doutrina?

- Aqui o direito das obrigações possui como finalidade essencial a elaboração sistemática, feita com
espírito científico, de todas as soluções facultadas pelas normas disciplinadoras das relações de
crédito.

*Já se sabe o conceito e importância de relações jurídicas! Mas e quando as relações jurídicas
creditórias? Qual sua definição, estrutura, elementos?
Ora as RJ creditórias, são todas aquelas em que ao direito subjetivo atribuído a parte ativa,
corresponde, por outro lado, um dever de prestar2, especificadamente imposto a parte passiva.
*Ter em atenção: Noções preliminares relativamente a relação jurídica!

1
Sistematização que dividia em cinco livros, estes em títulos, os títulos em capítulos, os capítulos em secções e as
secções em subsecções! Apesar de que na parte geral (livro 1) o título 2 ainda divide-se em subtítulos. São
respetivamente: Livro I – PARTE GERAL / Livro II – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / Livro III – DIREITO DAS COISAS / Livro IV
– DIREITO DA FAMÍLIA / Livro V – DIREITO DAS SUCESSÕES

2
Dever este que como se verá, em nenhuma hipótese, pode ser tomado por equivalente aos chamados deveres
jurídicos!
1
A maior parte das relações humanas que o Direito das Obrigações regula, tem carácter económico
– são relações patrimoniais, que versam valores económicos, mas trata-se apenas de uma
característica tendencial. Há prestações que visam a satisfação de interesses meramente ideais e
podem dar lugar a prestações obrigacionais na mesma.

B) E qual o objeto desta disciplina?

- Ora o “dever de prestar” corresponde a parte mais característica, individualizadora assim por dizer,
das relações obrigacionais (jurídico creditórias). É principalmente por conta dele que esta relação se
distingue das demais (relações nos direitos reais, das sucessões, na família etc). E daí, que se
tomarmos esta parte mais característica da relação, no seu todo, possamos afirmar que o objeto
fundamental do direito das obrigações traduz-se nos deveres de prestação!

C) Qual a relevância prática das do direito das obrigações?

A matéria das obrigações constitui objeto do livro II de nosso código civil, que se estende desde o
artigo 397º até ao 1250º.

As obrigações ainda constituem uma vasta parte das matérias disciplinadas por outros de direito,
como o direito comercial, passando pelos negócios bancários e pelos títulos de crédito.

De entre as espécies reguladas nos títulos II do livro II do código civil como fontes especiais de
obrigações, figuram-se além doutras de menor relevo, a compra e venda, a doação, o contrato de
sociedade, a locação (que compreende o arrendamento /e o aluguer) o mandato, o depósito, o
comodato, a empreitada, fazendo-se referência ainda ao contrato de trabalho (regulamentado em
legislação especial)

2
Do exposto resulta:

- Vastidão de matérias reguladas pelo direito das obrigações – quer no código civil – quer fora dele!

- Extraordinária frequência com que em nossas vidas, no quotidiano, recorremos a algumas das
espécies contratuais típicas (veja-se compra e venda! Contrato de trabalho! Um seguro! Uma
locação! Empreitada!)

Tudo isto basta para demonstrar o quão grande é a relevância no plano prático, das relações
creditórias!

D) Funções da Obrigação

As obrigações têm a função do trânsito dos bens de uma esfera para outra! (Daí dizer-se
que regula a parte dinâmica do direito civil patrimonial)

O Direito das Obrigações é um motor de operabilidade dos bens, que permite a sua
circulação ampla entre as várias esferas jurídicas.

NOTA: Difere dos direitos reais, em que a preocupação-mor é assegurar, ao titular, o


aproveitamento das utilidades da coisa, uma visão estática, em que o sujeito se relaciona com a
coisa. Nas relações obrigacionais, está em causa a relação entre o sujeito na comunidade, em
relação com os outros membros da comunidade.

No direito das obrigações também há aproveitamento dos bens: Existem direitos pessoais
de gozo, que são direitos creditícios, que permitem ao seu titular aproveitamento das utilidades da
coisa em questão! É exemplo a locação, em que temos uma relação obrigacional, disposta no
artigo 1022.º do Código Civil, e onde encontramos a obrigação do locador de proporcionar o gozo
da coisa ao locatário. O locatário fica habilitado a aproveitar da coisa locada, em vista do qual ele
celebrou o contrato de locação. Já nos contratos de compra e venda, não há gozo da coisa – o
comprador tem direito à coisa e ponto final. Ele pode usar, com toda a amplitude possível, os

3
poderes que lhe assistem enquanto titular da coisa, não havendo a intenção de proporcionar
utilidade de coisa alheia.

Também no Direito das Obrigações, enquadramos modos de compensação e reequilíbrio


patrimonial, que o Direito em geral enquadra no Direito Civil. A ordem jurídica estabelecida
pode ser perturbada e, se o for, necessita de ser restruturada, o que é muitas vezes feito
através de obrigações. Por exemplo, a responsabilidade civil é um meio de tutela creditícia e,
também, real. O

Direito das Obrigações, através dos institutos como a responsabilidade civil, disponibiliza meios
de tutela gerais para outras posições jurídicas, que não são tipicamente obrigacionais.
Uma outra função do Direito das Obrigações é a correção de repartições patrimoniais
injustas. A tutela é feita através de mecanismos obrigacionais (responsabilidade civil). Por
exemplo, temos enriquecimento sem causa quando alguém enriquece injustamente à custa de
outro, como é o caso se A entregar 50€ a B, pensando que lhos deve; revertemos esta situação
através da obrigação de restituição (artigos 473.º e seguintes do Código Civil).

A área dos serviços é também integrante do Direito das Obrigações, sendo exemplos o
mandato, o depósito, a empreitada, que versam sobre a atividade e não sobre os bens (ao contrário
da compra e venda ou da doação, em que estão em causa direitos sobre bens). O Direito das
Obrigações regula as estruturas intersubjetivas de colaboração entre as pessoas.

4
*HISTÓRIA DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

O Direito das Obrigações surge logo na origem do Direito Romano.

O Direito Romano contrapunha: actiones in persona (ações relativas a atividades de pessoas, como
a condenação da pessoa à prática de um ato) e actiones in rem (ações relativas a coisas, como
quando o proprietário necessitava de defender a sua propriedade). Das actiones in rem surgiram os
direitos reais, e das actiones in persona surgiram as obrigações. Aqui nasce o Direito das
Obrigações, do reconhecimento de que havia possibilidade de tutela jurisdicional através de uma
ação de condenação à prática de determinado ato.

O Direito das Obrigações foi sendo desenvolvido e enriquecido durante o período medieval, mas só
na Idade Moderna, a partir do século XV, é que começamos a ver evolução.

E só nos últimos dois séculos vimos um Direito Civil codificado. Até 1826, os alemães não tinham
um Código Civil. Em França, o primeiro Código Civil surgiu em 1804, com Napoleão. Em ambos
os países, o Direito Civil era entendido em torno da autoridade, havia sedimentação cultural do
que havia para trás na História, e relacionava-se sempre com a razão. Havia sido criado um corpo
jurídico no qual todos se reviam, com base costumeira e/ou tradicional. Esta autoridade do Direito
Civil, que temos hoje nos sistemas codificados, tinha alguns inconvenientes: como a complexidade
das sociedades modernas, com a industrialização, as exigências do Direito aumentaram, e foi
necessário repensá-lo. O Direito de base tradicional, com que todos conviviam, deixou de satisfazer
as necessidades destas sociedades. Assim, dois movimentos propuseram-se a cumprir esta tarefa:
um movimento com origem francesa e um movimento com origem alemã.

Nos primórdios da Idade Contemporânea, surge a Pandectística Alemã, Escola de pensamento que
procurou atualizar o Direito da época, à luz do Direito Romano clássico. Esta Escola foi composta
por juristas que ainda hoje mencionamos frequentemente: SAVIGNY, VIN SCHAIN, HANT,
YERING.

O que perdurou para o Direito português foi, fundamentalmente, a elaboração germânica do Direito
Civil. O nosso Direito das Obrigações é construído a partir do pilar germânico e a partir do pilar
italiano, o que dá a resposta à proximidade que encontramos entre os mesmos, a nível de preceit
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

O Direito das Obrigações foi como a generalidade do Direito Civil, um Direito de raiz costumeira.
O movimento de Codificação é recente, sendo os Códigos, tal como os entendemos hoje, uma
técnica legislativa que tem pouco mais de dois séculos, se aceitarmos que o começo da Codificação
se deu com o Código Civil Napoleónico. Os Códigos são caracterizados por 3 S’s: são sintéticos,
(s)científicos e sistemáticos.

O Código Civil português recebeu uma profunda influência do pensamento e do Direito


germânico, que foi desenvolvido particularmente durante a “vigência” da Escola Pandectística
Alemã do século XIX, Escola que desenvolveu o Código Civil alemão, que remonta ao ano de
1900.

A influência germânica veio depois de um período em que estávamos alinhados a um estilo


napoleónico, inspirados no Código franc~es de 1804, que influenciou o Código de Seabra de 1867,
Código este que acompanhava a vida do cidadão desde o nascimento até à sua morte, sendo este
arco natural da vida do cidadão comum o critério sistematizador utilizado na organização da
matéria jurídica deste Código.

Na primeira metade do século XX, a doutrina germânica foi ocupando os autores portugueses, que
passaram a interpretar o Código de Seabra à luz do pensamento dos alemães. Havia um vísivel
desajustamento da doutrina civilística com fonte francófona quando em comparação com os
quadros da ciência jurídica alemã. Com a imposição da ciência jurídica germânica, é feito o Código
Civil de 1966.

Uma figura importante para o Direito das Obrigações em Portugal foi VAZ SERRA, Professor em
Coimbra e encarregado de elaborar os projetos do Livro II. Esses trabalhos preparatórios são o
equivalente português da Pandectística Alemã, são a grande fonte de sentido material do Direito das
Obrigações codificado em Portugal e são a grande fonte do mesmo ramo de Direito. Foram também
importantes nesta matéria LOBO XAVIER e GALVÃO TELLES, que trabalharam a matéria dos
contratos em especial. ANTUNES VARELA, na altura Ministro da Justiça, foi o responsável por
duas revisões ao apresentado anteriormente.
O Direito das Obrigações aparece-nos como o objeto do Livro II de V. Dos cinco livros, quatro
correspondem à quadripartição germânica – porque advêm da influência da Pandectística, que a
propôs, o Direito Civil alemão aparecendo-nos também assim organizado. A quadripartição não é
inteiramente lógica, sendo que o que distingue o Direito das Obrigações dos Direitos Reais é um
critério estrutural, por termos direitos relativos (obrigações) e direitos absolutos (direitos reais).

No que respeita ao Direito da Família e ao Direito das Sucessões, a distinção é através de outro
critério, que reside na forma de organização das normas. Não estão em causa prestações, mas sim
uma aglutinação em função da família e da sucessão por morte. Em ambos os Livros e em ambos
os ramos, encontramos obrigações e direitos reais. Isto poderia ser considerado como uma
ilogicidade, mas não o é, porque atendemos ao Direito enquanto fenómeno cultural e, por isso, não
podemos basear-nos apenas na aplicação de um critério absolutamente lógico e coerente na
organização da matéria jurídica, por razões de praticidade, de sentido, que fazem com que certas
matérias obrigacionais ou reais sejam reguladas nos Livros IV e V.

Quanto ao critério de sistematização, apesar de não ser absolutamente coerente, é pedagógico,


prático, e organiza bem as matérias atendendo ao fenómeno cultural que o Direito é.

Agora, o interessante é a Parte Geral, o Livro I do Código Civil. A Parte Geral pretendeu uma
organização sintética, sistemática e científica das matérias, oferecendo ao jurista orientações gerais
aplicáveis às quatro partes especiais, e resultou do esforço da Pandectística Alemã, que procurou
ficar as matérias que são imprescindíveis ao Direito Civil.

A Parte Geral engloba um conjunto de ensinamentos importantes para o Direito das Obrigações: a
teoria geral do contrato, a teoria das declarações negociais recetícias (que têm um destinatário e
são eficazes quando ao mesmo chegam, sergundo disposto no artigo 224.º), entre outras. A Parte
Geral do Código Civil português é, em boa medida, uma Parte Geral vocacionada para o
Direito das Obrigações. Muitas das matérias nesta parte enquadradas são matérias de Direito das
Obrigações, não sendo assim tão geral como se poderia pensar.
De acordo com CARNEIRO DA FRADA, houve um erro do legislador que, quando pretendeu
uma Parte Geral, fez com que a mesma fosse fundamentalmente relacionada com obrigações.
Existem matérias de Direito Civil geral que não estão na Parte Geral do Código (por exemplo, a
responsabilidade civil, o enriquecimento sem causa, a gestão de negócios são institutos gerais do
Direito Civil).

A conclusão é que a Parte Geral, tendo matérias do Direito das Obrigações e excluindo algumas
matérias do Direito Civil geral, não é uma solução feliz. O Código Civil italiano de 1982, por
exemplo, não tem uma Parte Geral, bem como diplomas posteriores, o que prova a falta de
consenso que a mesma agrega. MENEZES CORDEIRO e OLIVEIRA ASCENSÃO consideram
que a Parte Geral não é verdadeiramente geral, visto tratar-se de um conjunto de disposições de
Direito das Obrigações, na sua maioria.

Devemos atender ao seguinte sobre a relação obrigacional enquanto relação jurídica. A nossa
Parte Geral assenta na técnica da relação jurídica. Na obrigação, temos a ligação entre dois polos,
o do devedor (adstrito para com o credor à realização de determinada prestação) e o do credor.
Não existe relação obrigacional se não tivermos os dois polos: não há credor sem devedor e não há
devedor sem credor. O que pode acontecer é que, por vezes, o credor não esteja determinado, mas
há a obrigatoriedade de ser determinável (a Lei protege estas situações). A relação incide sobre
uma prestação, porque o vínculo que une esses dois polos da relação tem como objeto a prestação.
Conclui-se: a obrigação é uma relação jurídica.

A impossibilidade originária da obrigação pode ser:

− Uma impossibilidade objetiva, tendo a ver com o objeto (por exemplo, uma casa que
arde num incêndio), a consequência sendo a nulidade.

− Uma impossibilidade subjetiva, tendo a ver com a pessoa (por exemplo, um médico
que fica com Alzheimer não pode cumprir a obrigação de operar alguém), a
consequência sendo a substituição do devedor por outra pessoa.

A obrigação tem de ser determinável, podendo não estar estabelecido o seu fim, mas tendo de
ser possível determiná-lo. Aplica-se subsidiariamente o critério da equidade, balançando- se os
interesses de ambas as partes.
Agora, quando estamos a falar de direitos reais, não são relações jurídicas como as entendemos
anteriormente – para o legislador da Parte Geral, tudo são relações jurídicas. Parece que todo o
material jurídico, apresentado nesta parte, diria respeito a relações jurídicos, e segundo essa ideia,
as relações jurídicas verificar-se-iam também nos direitos reais. Todavia, isto é um erro, é um
excesso pretender que o titular de uma coisa esteja em relação com quaisquer pessoas a respeito da
coisa de que é titular. No direito de propriedade há apenas uma conexão, um direito dos sujeitos
sobre uma coisa, como dispõe o artigo 1305.º do Código Civil. Nos direitos reais, não se relacionam
pessoas.

Também nos direitos de personalidade verificamos isto. Não somos colocados em relação com os
demais, por exemplo, quando falamos do direito ao nome ou direito à fama. Estes direitos são
absolutos e devem ser respeitados pelos demais, porém, o respeito de um direito não estabelece, por
si, uma relação entre o titular do direito e aquele que está obrigado a respeitá-la.

A obrigação passiva universal é um dever genérico de respeito, não é uma verdadeira obrigação
como juridicamente a definimos, não estabelece uma relação. A relação só existe quando
determinado sujeito viola um determinado direito absoluto, porque há uma lesão que dá ao titular
do direito ou bem lesionado o direito a uma indemnização.

OLIVEIRA ASCENSÃO critica a relação jurídica, enquanto instrumento para regulamentar todo o
Direito Civil, dizendo que existem situações relativas, como os direitos de personalidade ou os
direitos reais, em que não existe relação jurídica. Este erro faz com que devessemos repensar a
organização das nossas matérias.

O Código Civil, no que respeita à fonte do Direito das Obrigações, está bem construído, mas do
ponto de vista da sistematização, tem erros, relacionados com o acima exposto sobre a Parte Geral.
O facto desta assentar na técnica de relação jurídica é desadequado, inaceitável para a expressão do
material jurídico que o Código agrega.
CONCEITO E ESTRUTURA DA OBRIGAÇÃO

A. CONCEITO

O termo “Obrigação” é utilizado tanto na linguagem corrente como na própria literatura jurídica em
diversos sentidos3!

O que sucede é que a maior parte das obrigações, surge por conta de conceções, sentimentos éticos
ou morais (obrigação de respeitar a vida, propriedade, bom nome de outrem etc). Mas juridicamente
assim não pode ser!

Nos diversos sentidos que podem ser compreendidos, misturam-se figuras que por mais que
parecidas, não se confundem umas com as outras, mormente na sua expressão vinculativa, e que
por assim ser, cumpre a ciência jurídica distinguir!

A.1) Deveres Jurídicos4 - É uma noção extremamente ampla!

Necessidade imposta a uma pessoa (parte passiva) de observar um determinado comportamento –


positivo ou negativo – para satisfazer um direito.

Não se trata de uma simples advertência, conselho ou exortação! Trata-se de uma verdadeira ordem,
de uma injunção, que é em regra, acompanhada da cominação 5 de algum ou de alguns meios
coercitivos próprios, que poderão ser sempre mais ou menos fortes, consoante o grau de
exigibilidade social da conduta prescrita6!
3
Inquilino é obrigado a pagar a renda! Eu tenho a obrigação de cumprir o serviço militar! O mandatário é obrigado é
aceitar a revogação do mandato! Temos a obrigação de pagar os impostos lançados pelo estado!

4
Ficam sempre de fora da categoria destes, os deveres morais, sociais ou religiosos (respeito pelos mais velhos, defesa
dos fracos, auxílio dos pobres, amar ao próximo como amamos a nós mesmos etc). Estes podem muito bem ter
relevância para o direito, em certas circunstâncias, no entanto não são sancionados pela ordem jurídica como deveres
jurídicos.

5
Ato ou efeito de cominar; ameaça de pena ou castigo / determinação ou aplicação de pena ou sanção por infração ou
incumprimento

6
Que foi oficialmente ordenado.
Este dever jurídico, tutelado pelo direito, pode ser ditado no interesse de uma só pessoa, de uma
generalidade de pessoas (pessoa coletiva por exemplo), no interesse de toda a sociedade ou mesmo
no interesse do estado.
Sempre que a ordem jurídica confere, as pessoas em cujo o interesse o dever é instituído, o poder de
disporem dos meios coercitivos que as protegem, corresponderá ao dever um direito subjetivo!

1”
Todo sentido lógico! Noção de direitos
subjetivos: Poder de exigir ou
pretender de outrem um determinado
comportamento positivo ou negativo Exigir Ou pretender!
/ou de só de per si ….

O exigir na noção, deriva precisamente do poder que é concedido ao titular do direito subjetivo, de
ser juiz da vantagem do funcionamento, em cada caso concreto, da tutela jurídica do dever jurídico!7

Também o dever jurídico, correspondente aos direitos subjetivos, não se mistura com o lado passivo
das obrigações que é sempre, um dever de prestar!

DEVER JURÍDICO DEVER DE PRESTAR

Direitos subjetivos públicos (tendo


em vista também o “Status
CONTRAPÕE-SE Passivus”) e ainda, mas no âmbito do Direitos Subjetivos de Crédito! Somente
NO LADO direito privado, quer os direitos de estes!
ATIVO? crédito, como os direitos reais, os
direitos de personalidade, os direitos
conjugais e os direitos de pais e
filhos.

7
Noutros termos! O titular ativo da RJ não é um mero vigilante interessado no comportamento prescrito!
Como se vê, o dever jurídico é algo muito mais amplo, muito mais abrangente do que o dever de
prestar!
A.2) Estado de sujeição8

Figura diferente do dever jurídico! Esta já equivale ao contrapolo dos chamados direitos
potestativos!

Poder que um senhor A proprietário de um prédio encravado tem, de constituir uma servidão de
passagem, ou então o poder que tem o Sr B de revogar livremente seu mandato ou mesmo o poder
que possui a Senhorita C de se divorciar.

Tanto o Sr A como o Sr B como a senhorita C, exercem seu direito sem carecer de qualquer
aprovação, consentimento, parecer ou algo similar de suas respetivas contrapartes! 9

Em ambos estes casos o que acontece é que não há dever de prestar da outra parte. Há um estado
de sujeição!
A contraparte do Sr A do Sr B e da senhorita C, sujeitam-se inelutavelmente aos efeitos resultantes
do exercício do direito potestativo (constituição/modificação/extinção de direitos), quer queiram
eles, quer não!

No dever de prestar, o sujeito tem de desenvolver uma atividade/comportamento (seja ela negativa
ou positiva). Na sujeição, o indivíduo não tem de fazer nada, está automaticamente disposto a que se
produzam consequências, por vontade alheia, na sua esfera jurídica.

NOTA: Por vezes o titular do direito potestativo poderá atuar mediante recurso forçoso a
autoridades públicas (tribunais como seja)

A parte passiva da relação jurídica não tem de fazer nada de modo a cooperar na realização do
direito, mas também, nada poderá fazer para a impedi-la!
8
Muitos tem sido os autores que, a fim de distinguir os direitos potestativos das meras faculdades, acrescentam-lhe
dois elementos caracterizadores: 1) direito potestativo é inerente a uma relação jurídica pré-constituída entre sujeitos
determinados – é uma construção “a priori” do direito (veja-se o caso do divórcio, da servidão de passagem) 2) direitos
potestativos se esgotam com o ato de seu exercício!

9
Há quem diga (BOTTICHER) que é precisamente esta desnecessidade de consentimento a tónica dos direitos
potestativos.
Situação de necessidade inelutável em que se encontra a contraparte do titular de um
direito potestativo, de ter de suportar em sua esfera jurídica a produção de determinados
efeitos – constituição, modificação, extinção – provenientes do exercício daquele direito.
A.3) Ónus Jurídico

Figura um tanto mais distinta dos deveres jurídicos e dos estados de sujeição!

O que está em causa aqui é a necessidade de adoção de um determinado comportamento, para


manutenção de um direito, de uma posição jurídica!

A ordem jurídica atribui certa vantagem pela prática de um determinado comportamento,


considerando-o indispensável para obtenção daquela, mas deixando, por outro lado, a total descrição
do interessado a opção por aquela mesma conduta, ou por outra que mais lhe convenha!

Um clássico exemplo é a necessidade de inscrição de bens imóveis no livro do registo predial!

Esta necessidade não equivale:

- A nenhum estado de sujeição, dado que se exige do interessado, a prática de um determinado ato
(que ele é totalmente livre para executar ou não)

-A nenhum dever jurídico10, quer, pois, o sentido da lei não passa por impor a realização do ato sob a
cominação de uma sanção, quer porque o registo funciona no interesse de quem o requer.

Assim, em termos claros:

- Os ónus correspondem na necessidade da observância de um determinado comportamento, não


por imposição legal, mas como um meio de obtenção ou manutenção de uma vantagem, ou mesmo
de evitar uma desvantagem para o próprio onerado

O sujeito é livre para atuar ou não! Mas apenas conseguirá obter/manter a vantagem ou evitar a
desvantagem se atuar. Detalhe que observância do ónus, em regra está subordinada a um
determinado prazo

10
Supondo aqui que nao seja aplicável o caso do registo predial obrigatório (arts 14 e ss do código do registo predial)
A.4) Poderes funcionais

Figura também distinta dos deveres de prestar, e de todas as anteriores situações (deveres jurídicos,
ónus estado de sujeição) são os chamados direitos-deveres ou poderes funcionais.

NOTA: Não raras vezes estes são confundidos com a figura dos direitos subjetivos!11

Os poderes funcionais são direitos conferidos aos seus titulares para que possam efetivamente
cumprir com a função a que estão adstritos (poder paternal /tutela), só sendo legitimamente
exercidos dentro dos limites desta função.

São direitos que possibilitam o seu titular a agir, e cumprir com as obrigações que possui para com
uma outra pessoa.

Exemplos clássicos aqui são os institutos do poder paternal e da tutela! Também os deveres
recíprocos dos cônjuges.

Direito da Família – Deveres de caráter pessoal nas relações


Jurídico familiares, imbuídos do espírito institucional da família

11
Assemelham-se muito com aqueles, consequentemente, com os direitos de crédito, na medida em que conferem ao
seu titular o poder de exigir um certo comportamento de outrem. Mas distinguem-se daqueles, no exato ponto em que
os seus titulares não os exercem com liberdade! Precisam exerce-los sempre em obediência a função social a que se
encontram adstritos.
A.5 Direitos Potestativos

Visam produzir a constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica na esfera jurídica
de outra pessoa (como é exemplo o direito a constituir uma servidão de passagem a favor do
titular de determinado prédio, em que o sujeito, por um livre ato de vontade, pode constituir a
servidão, não precisa do concurso de vontade de mais ninguém).

Os direitos potestativos são poderes jurídicos (tal como o é todo o direito subjetivo)!

-Como tal, são exercidos com liberdade pelo seu titular (havendo diferenças entre os vários direitos
subjetivos)

Os potestativos, não exigem para a sua atuação o concurso/colaboração de quem quer que seja, estão
exclusivamente na pendência do titular!

Os direitos de crédito, ainda que estejam livremente a disposição do titular para serem exercidos ou
não, dependem da pessoa do devedor! Direitos de crédito conferem o poder de exigir a outrem
uma conduta.

Os direitos potestativos podem ser autónomos (se surgem por si) ou integrados (se surgem no seio
de uma situação jurídica mais vasta
A.5 Obrigação em Sentido Técnico – Conceito a ser Utilizado – Operacional

Ora visto as diversas outras figuras, que podem misturar-se sempre que adentramos no universo das
obrigações, agora é preciso compreender o significado jurídico ou técnico do termo obrigação,
que nos será mais relevante!

Em sentido técnico, chama-se obrigação, nos termos do Artigo 397º do CC:

“O vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para
com outra à realização de uma Prestação

NOTA: Em Direito, as definições podem ser perigosas, nem sempre expressando a realidade, sendo
meros instrumentos para determinada regulamentação, função daquilo que se pretende (Definições
Relativas – a algo?)

Apesar da possível perigosidade das definições em Direito, o autor, CARNEIRO DA FRADA,


acredita que a definição legal do artigo 397.º, está bem construída, ajudando-nos a entender também
o objeto da disciplina

*Uma das críticas ao artigo 397.º é que este não contempla o mecanismo de responsabilidade do
devedor! Limita-se a caracterizar a obrigação como um vínculo entre duas pessoas, não referindo em
momento algum a tutela.

Noutros termos, entender-se-á por obrigação, a relação jurídica12 em virtude da qual uma (ou mais)
pessoa (s) pode exigir de outra (ou outras) a realização de uma prestação.

Uma relação jurídica… Mas que tipo? Uma relação jurídica creditória/obrigacional!
12
São exemplos de relações deste tipo, as relações constituídas entre um comprador (dever de pagar) e um vendedor
(direito de exigir a entrega), senhorio e arrendatário, vítima do atropelamento e o condutor eventualmente
responsável pelo acidente.

De realçar que quando falamos em obrigação no sentido técnico, isto vai abranger as relações na sua globalidade e
não apenas, como sucede muitas vezes na linguagem comum, a parte passiva! Compreende, portanto, o dever de
prestar, mas também, o poder de exigir da parte ativa!
Relações em que ao direito subjetivo de um (ou mais indivíduos) – direito de crédito – contrapõe na
parte passiva, um dever jurídico de prestar!

NOTA: Quando se quer distinguir entre os dois lados desta mesma relação – ativo e passivo – que
são de facto duas faces da mesma moeda, da mesma realidade, chama-se crédito (ou direito de
crédito) ao lado ativo e débito (ou dívida) ao lado passivo!

QUID IURIS – DEVER DE PRESTAR?

Já sabemos que dever de prestar é diferente:


-Sujeições
-Ónus-
Deveres jurídicos13

O dever de prestar, nas obrigações, recai apenas sobre determinadas pessoas. É um dever jurídico
específico, que pesa sobre o património delas. Diferente do “dever geral de abstenção” nos direitos
reais.

O dever de prestar ainda se caracteriza por dois aspetos:

- Tal como ele recai apenas sobre pessoas determinadas, o próprio dever jurídico é imposto no
interesse de uma determinada pessoa!
-O objeto do dever de prestar traduz-se na PRESTAÇÃO

Consiste na maioria esmagadora das vezes, uma ação, mas podendo também assumir a forma de
omissão! Isto é, pode ser uma conduta positiva ou negativa, “facere” ou “non facere”. Até por isto,

13
É diferente quanto aos deveres jurídicos correspondentes da maioria dos DS: Os direitos reais, direitos de
personalidade etc. O dever jurídico correspondente ao lado passivo dos direitos reais, trata-se de um dever geral de
abstenção! É uma omissão generalizadamente imposta, a quem quer que não seja o titular do direito, consistindo,
portanto, num dever genérico, que não pesa especificadamente sobre o património de nenhuma das pessoas.
em termos práticos, com a finalidade de conceitualização de prestação, deva-se considera-la não
como uma ação, e sim, como uma conduta adotada pelo obrigado, um comportamento.

À pessoa que possui o poder de exigir a prestação, chama-se genericamente: CREDOR14

À pessoa sobre a qual incide o correlativo dever de prestar, chama-se-lhe: DEVEDOR

 R.J creditórias SIMPLES e/ou COMPLEXAS

Dentro do conceito de obrigações, obviamente caberá realizar a distinção entre R.J SIMPLES ou
14
A expressão toma aqui um significado muito mais amplo do que na terminologia comum, onde o credor é apenas
aquele que possui o direito de exigir de outrem a entrega de uma certa soma de dinheiro!
COMPLEXAS.

Já foi estudo em teoria geral do direito civil – relações jurídicas simples e complexas!

As relações obrigacionais serão SIMPLES/OU UNAS, quando apenas abrangerem um direito


subjetivo pela parte ativa e um correspondente dever jurídico/ou sujeição na parte passiva.

Serão sempre COMPLEXAS/OU MÚLTIPLAS, quando abrangerem o conjunto de direitos e de


deveres, de estados de sujeição, ónus jurídicos, expetativas etc, NASCIDOS DO MESMO FACTO
JURÍDICO.

*Esta complexidade se ramifica noutros aspetos…

Um direito subjetivo, como é o direito de crédito, tem no seu âmago um conjunto de


poderes/faculdades (=conteúdo). Reside já aqui, uma das vertentes da complexidade da relação
jurídica-obrigacional

O credor, que tem o direito de crédito, é titular de uma posição jurídica complexa, que se deixa
desdobrar num conjunto de posições mais simples, ativas e passivas. Os créditos (e
também os débitos) não surgem, normalmente, isolados, mas sim integrados e acompanhados
por outras posições jurídicas, que se integram num conjunto de relações complexas em si
mesmas. Esta é a outra vertente da complexidade da relação obrigacional.

NOTA: Deve-se mencionar ainda sobre a complexidade das obrigações, que tanto o crédito (direito)
como o débito (dever de prestar) são realidades complexas! sendo a obrigação, portanto,
complexa tanto do lado ativo (crédito) como do lado passivo (débito), numa relação de simetria!

Por exemplo: um credor que tem direito a que lhe prestem aulas de português, tem o poder de
interpelar o devedor no sentido de realizar a prestação, prestar-lhe as aulas.
Outro exemplo seria um credor que exige a prestação de 1 quilo de maçãs; o credor tem também o
poder de recusar prestações inadequadas quando, por exemplo, meio quilo das maçãs esteja podre.
Também está inserido no direito de crédito, e no âmbito deste mesmo exemplo, a possibilidade do
credor escolher as maçãs que vai levar, se isso tiver sido convencionado. Se nada foi dito, cabe ao
devedor a escolha da maçã

*Aplicabilidade da distinção no plano prático do direito das obrigações:

1ªs SITUAÇÕES

Veja-se relativamente a responsabilidade civil! Aqui neste caso, surgiria uma obrigação (relação
jurídica obrigacional) una ou simples!

Isto porque por um lado, teríamos o dever que indivíduo que lesa o direito do outro, tem de pagar
uma indemnização pelos danos causados, e por outro, o direito subjetivo da pessoa de exigir o
pagamento daquela. (dever de prestar /direito de exigir)

2ªs SITUAÇÕES (E muito frequentes, talvez a mais)

Contratos de compra e venda! A relação jurídica obrigacional nascida deles é complexa!15

Ao lado do dever de entregar a coisa (que recai sobre o vendedor) e do correlativo direito de exigir a
entrega da coisa (que recai sobre o comprador), há ainda:

- Dever jurídico do comprador de entregar o preço e o correlativo direito subjetivo do vendedor de

15
Isso praticamente sempre, na generalidade das compras e vendas, variando apenas o grau de complexidade! Este
grau poderá ser sempre maior, quando a aqueles dois direitos e seus respetivos deveres, acrescerem-se outros direitos
e deveres (direito a entrega de documentos, compensação das despesas feitas com a realização do ato,
reparação/substituição da coisa, indemnização de prejuízo causado por conta de mora do devedor ou do comprador
etc)
exigir o seu pagamento!

Estes dois direitos e seus correspondentes deveres, são comuns a generalidade dos contratos de
compra e venda!

Algo idêntico ao que pode suceder com a relação jurídica nascida da compra e venda, pode
verificar-se na maioria das outras espécies contratuais! Em muitos contratos bilaterais, ou mesmo
nos plurilaterais, como a locação, sociedade, contrato de trabalho, empreitada ou o mandato
remunerado podem suceder coisas parecidas!

NOTA: As relações jurídico-obrigacionais (=obrigações), podem ser também complexas por


estarem inseridas numa relação complexa da vida!

Na vida real, a relação obrigacional é complexa porque se mistura com múltiplas realidades, e
apresenta-se dinâmica e mutável, sem perder a sua identidade, sempre orientada até à sua extinção,
pela satisfação do interesse do credor. (plano da complexidade da relação da vida (#não o plano da
complexidade da RJ obrigacional
 Obrigações não autónomas

d.1 Um grandioso contingente das obrigações (As provenientes dos contratos e negócios jurídicos
unilaterais) nascem, sem que hajam entre as partes quaisquer vínculos prévios!

d.2 Por outro lado, em muitas outras como as obrigações, surgidas da prática de um facto ilícito,
pressupõe já um vínculo jurídico preexistente! Mas um vínculo com caráter genérico! Tal como o
que liga o titular dos direitos reais e dos direitos de personalidade a todas as outras pessoas.

Tanto no primeiro caso, quando se trata de obrigações que não assentam num vínculo jurídico
preexistente (por exemplo as nascidas dum contrato, não precedido de contrato-promessa) como no
segundo, quando fala-se de obrigações que pressupõe em sua constituição, um simples vínculo de
caráter genérico – tal como o vínculo que recai sobre a pessoa que danifica coisa alheia, ou que
usurpou o nome de outrem) a doutrina tem adotado o nome de obrigações autónomas!

*A doutrina nunca duvidou que estas estivessem sujeitas às disposições legais, que nos vários
códigos civis, fixam a disciplina geral das obrigações! Livro II do código civil!

*Mas e quanto as chamadas obrigações não autónomas? – Ou seja, as obrigações que pressupõe a
existência de um vínculo jurídico especial – não genérico - entre as partes?

Nestas, a doutrina já discute algumas vezes se devem estar submetidas ao mesmo regime.

Por exemplo: Sempre que a lei obrigar Um dono A, de um prédio que ameaça ruir abaixo,
provocando danos previsíveis para o prédio de seu vizinho, Sr B, a tomar, a requerimento de B, a
providencias necessárias para o eliminar do perigo. (1350º)
Quando a lei obriga determinadas pessoas a prestar alimentos, a outras que estão a elas ligados por
um vínculo de caráter familiar!

Quando a lei obriga um herdeiro a cumprir, com forças da herança, os legados feitos pelo testador

Quando a lei confere o direito de prémio ao achador de animais ou outras coisas perdidas, contra o
dono delas
NOTA: As obrigações nestes casos, carecem de autonomia, e isto porque pressupõe a existência
(prévia) entre as partes, de um vínculo especial de outra natureza (uma relação de posse, parentesco,
de sucessão hereditária, de ocupação da coisa

 EXTENSÃO DO CONCEITO DE OBRIGAÇÃO – OS DIREITOS PESSOAIS DE


GOZO E AS OBRIGAÇÕES NATURAIS

Os direitos pessoais de gozo

Deve-se estender o conceito de obrigação, de forma a abranger também esta figura especial, que se
pode considerar mista ou híbrida.

Os direitos pessoais de gozo são direitos especiais de crédito, que proporcionam ao seu
beneficiário o gozo (uso ou fruição) de uma coisa corpórea, o que os torna especialmente
próximos – não equivalentes - dos direitos reais.

A Lei portuguesa, reconhece quatro direitos pessoais de gozo:

− O direito do locatário, como dispõe o artigo 1022.º, contrato pelo qual uma das
partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante
retribuição. A locação de imóvel diz-se arrendamento e a retribuição renda, e na
locação de móvel tanto a locação como a retribuição denominam-se aluguer.

− O direito do parceiro pensador, como dispõe o artigo 1121.º, contrato pelo qual o
parceiro pensador recebe, do parceiro proprietário, um ou mais animais, para que os
crie, pense e vigie, para repartir os lucros.

− O direito comodatário, como dispõe o artigo 1129.º, contrato pelo qual o comodante
entrega de forma gratuita uma coisa ao comodatário para que se sirva dela.

− O direito depositário, como dispõe o artigo 1185.º, contrato pelo qual o depositante
entrega uma coisa ao depositário para que este a guarde e, caso esteja autorizado a tal
(artigo 1189.º), a use.
Os direitos pessoais de Gozo – como direitos de crédito que são - assentam numa relação: Entre o
titular pessoal do gozo e o titular do direito real que permite o gozo.

Titular pessoal Titular do


do Gozo da direito real
Coisa que permite o
Gozo

São relativos, dependem desta relação! Ora, isto permite deslocá-los dos direitos reais, para a
fronteira dos direitos de crédito!

(Por exemplo: a posição jurídica de locatário é sempre uma posição relativa pessoal, porque
depende da posição jurídica do locador, depende da relação com este outro)

 Se são direitos de crédito, torna-se imperativo que se lhes aplique o respetivo regime
(=do direito das obrigações)

Contudo, não são quaisquer direitos de crédito, pois além do direito à prestação, o credor fica com
um direito sobre a coisa (são direitos pessoais de gozo, porque assentam num vínculo pessoal e
conferem o gozo de uma coisa).

São direitos de crédito especiais, conferem um direito (de gozo sobre uma coisa), mas assentam
num vínculo pessoal/relacional, por isso não são direitos reais!

Assim, aplica-se sim o regime geral das obrigações, mas om algumas exceções (que acabam por os
aproximar dos direitos reais):

− Se há um conflito entre dois direitos pessoais de gozo, ou entre um direito pessoal de


gozo e um direito real, prevalece o primeiramente constituído, como dita o artigo
407.º. É uma manifestação do princípio da prevalência. Aplica-se, também, aqui o
princípio da prioridade registal (por exemplo, o contrato de arrendamento superior
a 6 anos tem de ser registado, sob pena de inoponiblidade a terceiros, como nos diz o
artigo 5.º/5 do Código de Registo Predial). Nos direitos pessoais de gozo, o sujeito
tem um domínio de facto sobre a coisa, e defende-a contra quem quer que seja, mas
não tem defesa do direito correspondente; ele invoca a posse, mas não invoca o
direito para se fazer constituir. Há, assim, tutela da posse e não do direito, que
existiria se estivesse em causa um direito real. (Vejamos o artigo 892.º. Quando estão
em causa dirietos reais, se A venda a B e a C, a segunda venda é nula, porque A não
tem legitimidade para o fazer, é venda de bens alheios. No caso dos direitos pessoais
de gozo, se A arrenda a B e a C, o segundo arrendamento é válido, mas permanece o
primeiramente constituído, podendo C exigir uma indemnização.)

− Os titulares de um direito pessoal de gozo podem recorrer à ação possessória


para a reivindicação do mesmo junto de terceiros, sem necessidade de
intervenção ou colaboração do titular do direito real. (Vejamos o disposto nos artigos
1037.º/2, 1125.º/2, 1133.º/2 e 1188.º/2.) No entanto, estes direitos não são
acompanhados do direito à ação de reivindicação, pois esta é exclusiva do titular do
direito real. O titular do direito pessoal de gozo só tem a tutela possessória na medida
em que tem também um contrato, e um direito pessoal que desse contrato deriva,
enquanto que, nos direitos reais, o titular baseia a sua posição num facto constitutivo
originário, aquele que é suscetível de fundar, por si só, a propriedade. (Nos direitos
reais, existem várias formas de aquisição originária de propriedade, como é o caso da
ocupação, da aceção ou da usucapião. No caso dos direitos pessoais de gozo, por
exemplo, no direito do locatário, para obter tutela possessória, apresenta-se o
contrato de arrendamento, que é a prova da constituição do crédito, fazendo valer a
sua posição. Tratando-se de uma ação real, não basta invocar o contrato que esteve
na base da sua aquisição, é necessário mostrar que o direito real se funda num facto
constitutivo originário.) O titular do direito pode defender a sua posição através
da responsabilidade civil, quando sofra algum prejuízo. Nas ações possessórias,
pretende-se a restituição, ao possuidor, do domínio de facto, sobre a coisa, contra
perturbações. Os direitos pessoais de gozo têm eficácia, embora limitada, contra
terceiros, pelo que têm uma tutela indemnizatória ao abrigo do artigo 483.º/1,
visando o reconhecimento de um direito e a possibilidade de exigência do seu
acatamento, a quem quer que seja.
− O direito do locatário é assistido por um direito de sequela, podendo ser invocado
mesmo contra terceiros que tenham adquirido o bem na pendência da locação (artigo
1057.º). Isto significa que o contrato de locação segue o bem, mesmo que ele tenha
sido alienado por terceiro. (Por exemplo: A é arrendatário de B e B quer vender a C –
a venda não prejudica a locação, pois o locatário pode opôr o seu direito a quem quer
que venha ocupar a posição de senhorio.) Este direito de sequela é exclusivo do
direito de locação, não sendo extensível aos outros direitos pessoais de gozo.

Os direitos pessoais de gozo não podem ser adquiridos por usucapião, só existindo na medida em
que o contrato seja válido, estando dependente(s) da regularidade da relação.

NOTA: O ponto em que o afastamento entre direitos pessoais de gozo e direitos reais é mais
notório, é em relação ao princípio da tipicidade, que vigora para os reais mas não para os direitos
pessoais de gozo, pois estes tratam-se de direitos obrigacionais que conferem ao sujeito um poder
sobre algo, podendo ser mesmo atípicos!

POR EXEMPLO: Uma empresa que está a construir uma barragem, confere um direito de
habitação, em casas próximas da barragem, no âmbito de um contrato de trabalho, fazendo com que
existam direitos pessoais de gozo no contrato de trabalho em causa.

MENEZES CORDEIRO entende que os direitos pessoais de gozo são obrigações sem prestação
principal, sendo esta substituída pelo direito de gozo, sobrando apenas prestações secundárias e
deveres acessórios.
As obrigações naturais

O conceito de obrigação também deverá ser extensível ao ponto de englobar as obrigações naturais!
(Art. 402º CC)

As obrigações naturais, estão consagradas no artigo 402.º do Código Civil – “A obrigação diz- se
natural quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é
judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”.

Estas características enunciadas, tornam questionável um facto: Saber se elas se tratam de


verdadeiras obrigações jurídicas ou não!

Primeiramente é preciso referir que tudo aquilo que é entregue, no âmbito de uma obrigação
natural, não pode ser repetido/restituído (artigo 403.º), o que faz sentido, já que uma obrigação
natural nem se quer é judicialmente exigível (Em casos destes, os devedores cumprem por vontade
própria)

Por exemplo: Um patrão continua a pagar uma quantia a um ex-trabalhador, apenas pelo facto deste
ter trabalhado toda a vida para si!
Aquilo que é entregue, não pode ser reavido, porque visa saldar uma dívida existente (dever
moral/social), mas que não era exigível.

O regime geral das obrigações naturais está disposto no artigo 404.º, havendo equiparação em
tudo que não diga respeito à exigibilidade judicial da prestação, quanto ao resto tudo se aplica.

Tratando-se de obrigações naturais, a coação moral tem importância, porque tem de se tratar de um
cumprimento livre!

Assim, e porque não se podem exigir, não se aplicam a estas obrigações cláusulas penais, preceitos
que estabelecam a responsabilidade civil pelo incumprimento ou ainda disposições sobre o tempo, o
lugar e o modo do cumprimento. Quanto à forma da extinção, pode-se aplicar às obrigações
naturais o mesmo que é aplicável a obrigações civis.
 Estrutura da obrigação

Perguntar-se-ia? Qual a estrutura das relações jurídicas creditórias? Quais elementos a constituem?

B.1 Elementos constitutivos (+Elementos gerais da RJ – Como o facto jurídico!)

Importa aqui detalhar quais os elementos constitutivos da relação jurídica obrigacional, como se
podem definir e ainda como se relacionam logicamente entre si. Assim sendo, são eles:

-Sujeitos – Credor / Devedor – titulares ativo e passivo da relação jurídica, ou, simultaneamente
ativo e passivo da relação, como sucede num contrato bilateral

-Objeto (Prestações debitórias)

-Vínculo jurídico

-Garantia*(Segundo este autor está incluído no vínculo jurídico)

Art. 397º Código Civil – “A obrigação é o vínculo jurídico mediante o qual o devedor fica adstrito
para com o credor à realização de uma prestação.”

A noção técnica de obrigação, dada no artigo 397.º é uma noção também estrutural/não meramente
conceitual;

Temos naquele conceito, de forma explícita, referências explícitas a elementos estruturais da


obrigação - credor, titular ativo da relação jurídica obrigacional, ao devedor, no lado passivo desta
mesma relação, ao vínculo jurídico estabelecido entre ambos, e ao objeto da relação jurídica
obrigacional, a prestação!

NOTA: Uma das críticas ao artigo 397.º é que este não contempla o elemento da GARANTIA! -
limita-se a caracterizar a obrigação, como um vínculo entre duas pessoas, não referindo em momento
algum a tutela.
Esta noção, apesar de bem construída e, sobretudo, útil, é muito abstrata, de escassa compreensão!
Isto porque existem prestações das mais diversas, e a obrigação, na linguagem comum, tem
sentidos
dos mais diversificados
B.1.1 Primeiro Elemento – Os sujeitos – CREDOR E DEVEDOR

O primeiro elemento da relação jurídica obrigacional, até pelo papel fulcral que desempenha dentro
dela, é constituído pelos sujeitos: Do lado ativo – O CREDOR – e do lado passivo – DEVEDOR

-As mais das vezes, apenas existem em cada relação jurídica obrigacional, um credor e um devedor,
dizendo assim que a obrigação é singular!

-Mas a verdade é que podem existir R.J chamadas plurais, isto quer do lado ativo – muitos credores
– quer do lado passivo – muitos devedores – quer de ambos os lados – Muitos credores e muitos
devedores

 CREDOR16

*O CREDOR, ou os credores, correspondem ao lado ativo da relação jurídica creditória!

*São as pessoas (ou a) a quem se proporciona a vantagem resultante da prestação!

*São os titulares dos direitos subjetivos de crédito! (que conferem o direito a uma prestação! Não se
trata de uma mera expectativa de cumprimento. É um legítimo direito, que só se realiza na medida
em que o devedor colabore para tal – há, portanto, mediação! O credor precisa do devedor para a
realização do seu direito! Será, em regra, a pessoa deste, a encarregada de satisfazer seu interesse)

Nos direitos reais já não sucede assim! Nos Direitos Reais, o proprietário não
depende de alguém para que seja satisfeito o seu interesse, para que se assegure o seu
direito.

*Titulares do interesse (que poderá ser patrimonial /moral /espiritual) legalmente protegido, que o
dever de prestar visa satisfazer!

16
Credor (“Creditor”) Porque acreditou no devedor – na sua lealdade e capacidade de pagamento – ou então porque,
como diz LARENZ, crê na pessoa do obrigado, no seu desejo de cumprir, por um lado, e em sua capacidade para tal,
noutro lado. Noções que não funcionariam tão bem assim, nas obrigações nascidas de factos ilícitos extracontratuais
E o que envolve a noção de titular de um interesse protegido? Três aspetos:

-Se é credor – ou melhor portador – de uma situação de carência ou de uma necessidade


- Existem bens (coisas/serviços etc) capazes de preencher essa necessidade
-Há um desejo de obter esses mesmos bens de modo a suprir a necessidade

E ainda mais – O credor não somente é titular do interesse tutelado, como também é amo/senhor da
tutela de seu interesse17! Ou seja: Esta tutela depende de sua vontade, seu funcionamento
subordina-se a sua iniciativa!

O credor pode dispor, pelas mais variadas formas, dos mecanismos coercitivos predispostos pela
ordem jurídica para reger a relação!
NOTAS: A pessoa do CREDOR está determinada. Mas poderá não o ser no momento em que a
obrigação se constitui (Art. 511), tal como sucede nas promessas públicas (459º ss), nos contratos
para pessoa a nomear (Art. 452º e ss) etc

 DEVEDOR

Esta figura, equivale ao sujeito passivo da relação jurídica obrigacional! É sobre o devedor que
recairá o dever (específico) de efetuar a prestação!

É o devedor que se encontra adstrito ao cumprimento da obrigação para com a figura do credor!

Enquanto parte passiva, o devedor ocupa na RJ creditória uma posição de subordinação!18

17
Diferente de ser titular de um interesse reflexamente protegido! Não é um interesse de ordem geral (como dos
comerciantes nacionais, dos industriais de um certo ramo, dos consumidores, dos habitantes de certa zona afetada por
epidemias etc) que a lei protege muitas das vezes mediante providencias pautais, aduaneiras ou sanitárias adequadas,
mas sem conferir aos titulares – dos interesses – o poder de dispor das medidas adotadas!

18
Atenção: Subordinação jurídica e não uma subordinação pessoal /social /política
E em caso de incumprimento?

Será também sobre a pessoa do devedor que recairão as sanções fixadas na lei!

Atualmente, é sobre o património do devedor, que recai a execução destinada a indemnizar o


dano causado ao credor, quando a obrigação não seja voluntária ou judicialmente cumprida!19
Somente o credor (ou credores) tem direito a prestação! E esta apenas poderá ser exigida por estes ao
ou aos devedores!

Direitos de Crédito – Efeitos “Inter partes”. A obrigação somente vincula determinadas pessoas – as
que sejam parte no negócio!20 – daí seu caráter relativo.

19
Numa fase mais primitiva do direito romano, em virtude do laço de subordinação pessoal que se criava (por meio do
nexum, e posteriormente, da sponsio ou da stipulatio) entre o credor e o ob-ligatus, as sanções aplicáveis iam da
privação de liberdade (prisão como meio compulsivo de pagamento até redução a escravatura) até a morte. Depois,
com a Famosa “LEX POETELIA PAPIRIA” de (305 A.C) – completada no fim do período da república, com a criação da
bonorun venditio – A Sanção principal passou a ser a execução, não da pessoa, mas dos bens pertencentes a ela = seu
património. E isto mantém-se até os dias de hoje!

20
Esta é a regra do artigo 406º n2! Princípio da relatividade - Mas há exceções como se verá!
 Persistência da Obrigação não obstante a alteração de sujeitos21

A existência dos dois sujeitos, é de facto essencial à obrigação, como uma relação intersubjetiva!22

No entanto, a permanência dos mesmos sujeitos – dos sujeitos originários – não é face ao direito
moderno23, condição essencial a persistência da obrigação.

A obrigação tem todas as condições de persistir, com todos os seus atributos essenciais (garantias,
juros, contagem do prazo prescricional etc) apesar de ser alterado um dos sujeitos da relação ou de
mudarem ambos eles!

E o que se diz quanto aos sujeitos originários, é igualmente válido, para todos aqueles que lhes
sucederem na titularidade da obrigação!

Exemplos práticos:

Um sujeito A é credor de B. Se o A eventualmente morre, e lhe sucede um único herdeiro, C, este


vai ocupar a posição de A na relação creditória! Sendo que o correto entendimento, é que não houve
constituição de uma nova obrigação! É a mesma que havia sido constituída, embora tenha sido
repassada!

O mesmo sucede relativamente às coisas – No caso da cessão de créditos, em que o credor Sr A,


cede seu crédito sobre uma coisa a outrem (vendendo, doando, trocando) ou no caso de um terceiro –
que na veste de fiador24 – paga em vez do devedor e a lei o investe (sub-roga), em virtude do
pagamento efetuado.
Tudo isto para chamar a atenção que: A obrigação permanece a mesma!

21
Modificação do sujeitos – Modificação de um direito subjetiva!

22
Embora se admita que no momento em que a obrigação se constitui, o credor não esteja não esteja determinado, a
lei no artigo 511º, exige que este seja no mínimo determinável, sob pena de nulidade do negócio do qual a obrigação
resultaria.

23
No direito romano não era assim! O caráter essencialmente pessoal do vínculo que prendia o “obligatus” ao credor
tornava completamente inconcebível a ideia da sua transmissão para outra pessoa, bem como da criação de um crédito
para terceiro.

24
Dar como empréstimo.
Com a intenção de frisar esta ideia, muitos são os autores, e junto deles a própria lei, fala
explicitamente em transmissão das obrigações! – Quer a propósito cessão de créditos, quer da sub-
rogação quer da assunção de dívida (Art. 577º e ss ) Ou seja:

- Na linguagem da doutrina e até da própria lei, tudo se passa como se fosse a mesma obrigação, não
obstante a natureza espiritual do vínculo, que materialmente se desloca do património de um para o
de outra pessoa!25

B.1.2 O segundo elemento – Objeto das relações jurídico-obrigacionais – As prestações


debitórias

O objeto das obrigações, das relações jurídico-creditórias, consiste na prestação devida ao credor!

As prestações, consistem em regra, num comportamento/atividade, que poderá revestir, tanto a


forma de ação26, como a de omissão /permissão/abstenção27!

A prestação é o fulcro/alicerce da obrigação! É através delas que é satisfeito o interesse da parte


ativa da relação jurídico-obrigacional!

*Prestação = deveres de prestar – Não se confundem em nada com o dever geral de abstenção!
Típico dos direitos de personalidade e dos direitos reais!

NOTA: Tendo as obrigações, principalmente em vista, prestações de coisas28, muitos são os autores
25
Contrariamente a figura da novação (Arts 857º e ss), que implica a constituição de uma nova obrigação em
substituição da antiga!
26
Entregar uma coisa, realizar uma obra, dar uma consulta, patrocinar alguém numa causa, transportar alguns móveis,
transmitir um crédito, dar um certo número de lições etc

27
Obrigação de não abrir estabelecimentos de determinado ramo de comércio na mesma rua ou localidade, obrigação
de não usar a coisa recebida em depósito etc

28
Apesar da distinção ser bem menos nítida no âmbito das prestações de facto!
que costumam a distinguir entre:

- Um objeto imediato da obrigação – Que consiste na atividade/no comportamento devido

-Um objeto Mediato da obrigação – Que se traduz na própria coisa, em si mesma considerada – Isto
é, o objeto da prestação!29

Por exemplo:

Se A vende um prédio a B, e em virtude da venda, fica obrigado a entrega-lo, duas coisas são
completamente distintas:

-O ato da entrega – Prestação devida

-Prédio – Objeto da prestação!

 Modalidades de Prestações

29
Há vários objetos, como sejam coisas no sentido jurídico, um conjunto de coisas, coisas incorpóreas etc
A prestação debitória pode revestir as mais diversas modalidades, pelo que é da maior importância
conhecer ao menos as mais importantes

1. Prestações de COISAS30/ Prestações de FACTOS (talvez a mais importante)

Distinguem-se conforme o seu objeto se esgote num FACTO (serviços/atividades) ou então se refira
a uma COISA31!

Foi durante um longo período de tempo que as prestações de coisas preponderaram nas relações
da vida económica (quer nas economias mais primitivas de fundo agrário quer até depois da 1ª
revolução industrial).
Principalmente após a segunda grande guerra, e com boom tecnológico processado, que aos poucos a
fisionomia das sociedades contemporâneas foi se alterando, e gradativamente foi se acentuando a
importância das prestações de serviços que as grandes empresas oferecem, muitas vezes em massa, a
um núcleo crescente de utentes!32

1.1 Prestações de facto

Estas podem ser subdivididas em positivas e negativas, conforme:

-Positivas– Caso se traduzirem numa ação – comportamento positivo33


-Negativas Estas subdividem-se ainda em, pelo menos, dois outros tipos:
*Nuns casos, o devedor se compromete apenas a não fazer34 (“non facere”) – Abstenção/Omissão
30
Coisa que no caso vai constituir objeto mediato / e a prestação, o objeto imediato!

31
Coisa que no caso vai constituir objeto mediato / e a prestação, o objeto imediato!
32

Serviços de combate aéreo aos incêndios, distribuição aérea de pesticidas nas plantações, prestação em massa dos
serviços domésticos de lavagem e limpeza do vestuário e dos edifícios, serviços de investigação policial particular,
contratação de jogadores de futebol etc.

33
São prestações de facto típicas, por exemplo, as prestações do mandatário num contrato de mandato, as do
trabalhador num contrato de trabalho etc. Assumirão ainda especial configuração as prestações de facto positivas
resultantes dos contratos promessa (“pactas de contrahendo”), e os pactos de preferência

34
Por exemplo, não praticar determinados atos, não abrir estabelecimentos de determinado ramo de comércio, no se
abastecer de outro fornecedor, não fornecer produtos aos concorrentes do comprador, não fabricar algum produto em
concorrência com alguma empresa, não usar (no caso do contrato de depósito), não prestar serviço durante um
determinado período em determinada empresa
*Noutros casos, o devedor fica apenas obrigado a consentir /tolerar35 (“PATI”) que outrem –
CREDOR – pratique alguns atos a que, de contrário, não teria direito.

NOTA: Segundo CARNEIRO DA FRADA, a diferença entre estas prestações de “pati” e uma
servidão predial de passagem, é que o segundo é um direito real, a obrigação de pati é um
compromisso pessoal, não há uma relação jurídica real mas sim obrigacional, a pessoa obriga-se, não
onera o seu terreno, como acontece no caso da servidão de passagem!

Detalhe ainda que, nas prestações de facto, o facto em si prestado, poderá sempre ser material ou
jurídico! (Distinção elementar, por exemplo, no âmbito do contrato de mandato! “uma das partes se
obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outra! – Entre estes atos, avultam-se os
negócios jurídicos!)

Exps:
- Material – Reparar uma viatura, pintar uma casa (Como temos no caso do contrato de empreitada!)
- Jurídica – Emitir uma declaração de vontade, assumir certa dívida

* Prestações de Factos de Terceiros?

As prestações de facto, em regra, correspondem a um facto do devedor/ou seja, da contraparte da


relação jurídica obrigacional.

No entanto, poderá por vezes suceder – embora sejam relativamente poucas - que o facto devido se
reporte a factos de um terceiro!

Assim, por exemplo: A é dono de um posto de abastecimento. Promete que os futuros (e eventuais)
adquirentes do posto manterão o direito de exclusivo concedido à companhia fornecedora!
B, casado, obriga-se a vender um prédio a C, prometendo que a mulher lhe dará o consentimento
necessário a validade da venda.

As promessas de facto de terceiro são admitidas em nosso ordenamento jurídico. Já o eram

35
O sr. A obriga-se a permitir que o Sr B pesque em sua lagoa ou que cace em sua propriedade. Ou então, o Sr. C,
permite que os alunos de um colégio utilizem o logradouro de seu prédio como um campo de jogos, durante um
determinado número de meses ou anos.
inclusivamente no âmbito do código de 1867, à sombra do princípio da liberdade contratual!

1.2 Prestações de coisas (Prestações de “Dare”)

Coisas – A este respeito – Vale artigo 202º e ss

Ainda no direito romano, quer as prestações tivessem por objeto uma coisa certa/determinada, quer
recaíssem sobre uma coisa indeterminada, o contrato de alienação/transferência da coisa, não
envolvia a translação do domínio, do direito de domínio sobre a coisa! Em consequência do contrato
de alienação, nascia uma obrigação, “de dare” destinada a transferir o domínio sobre a coisa para o
adquirente.

NOTA: No direito vigente português – Art. 408º CC, tal como na legislação anterior – Art. 715º do
código de Seabra), a constituição ou transferência de direitos reais sobre determinada coisa dá-se –
opera-se em regra – por mero efeito do contrato/mero acordo das partes.

Ou seja?
Atualmente, em contraste com o direito romano, a prestação da coisa – e já que a
transferência/constituição do direito real dá-se por mera celebração do contrato – corresponde
a uma mera obrigação de entrega da coisa, tendo por finalidade a transmissão da posse (visto que a
transferência do domínio ou constituição doutro direito real já se obteve – com uma “eficácia
espiritual” da mera celebração do contrato!

 Noutros casos, porém, quando a transmissão/constituição de direitos reais depender, por


força de lei ou convenção das partes, do ato da entrega da coisa (por exemplo, Art. 409º
nº 2) a prestação desta constituirá uma “PRESTAÇÃO “DE DARE” no sentido romanista do
termo

Exemplos típicos de prestações de coisas – “de dare” – Entrega da coisa feita pelo mutuante ao
mutuário para a conclusão ou aperfeiçoamento do contrato de mútuo (Art. 1144º), a prestação de
coisa realizada pelo mandatário ao mandante, em cumprimento do mandato, no mandato sem
representação (1181º) a entrega da coisa ao legatário, feito pelo sucessor onerado nos casos previstos
no Art. 2251º nº 2.

 Haverá ainda, as chamadas SIMPLES PRESTAÇÕES DE ENTREGA

Prestações de entrega, nas relações obrigacionais que visem facultar ao credor, não a aquisição do
direito de domínio, mas sim, a mera fruição ou uso da coisa ou a guarda e conservação dela! (A
entrega do bem pelo comodante ao comodatário por exemplo, Entrega da quantia pelo depositante
etc) – 1031º al. a)

 E por último, bem semelhante às últimas, ligadas a elas, mas com independência, temos
também as PRESTAÇÕES DE COISA CORRESPONDENTES À OBRIGAÇÃO DE
RESTITUIR36

Por exemplo: A entrega ao comodante Art. 1135º al. h), ao locador (Artigo 1038º al. i) ao
depositante (Art. 1187º al. c) ou ao mandante (artigo 1161º al. e)), uma vez findo o contrato!

Portanto, tem-se concluído que a prestação de coisa pode constituir – face ao direito vigente – 3
modalidades fundamentais:

- Obrigação de dar (Prestações “de dare”) – Sempre que a prestação visar constituir ou transferir um
direito real definitivo sobre uma coisa

-Obrigação de entregar – Prestação visa apenas transferir a posse ou a detenção dela, para permitir
seu uso, guarda ou fruição (Art. 1031º do CC por exemplo)

-Obrigação de restituir – Através da prestação, o credor recupera a posse ou a detenção da coisa ou o


domínio sobre coisa equivalente, do mesmo género e qualidade.

 Prestação de coisas futuras? (Art. 211º CC37/ 399º)


36
São no fundo, também um ato de entrega, por isto a ligação!
37
O artigo 211º confere uma definição daquilo que sejam consideradas “coisas futuras”, definição legal que é bastante
ampla, abrangendo as coisas que carecem de existência e as coisas que por mais que existam, o disponente ainda não
tem direito ao tempo da declaração negocial (mas que conta vir ter em momento posterior). É importante esta
classificação, já que apenas poderão existir prestações sobre coisas futuras mas nunca direitos reais sobre coisas
futuras!
Em via de regra, as prestações de coisas, referem-se a coisas que já existem!

No entanto, esta regra admite exceções! As prestações de coisas podem ainda, segundo nosso
ordenamento jurídico – artigo 399º do CC - referir-se a coisas futuras

DESDE QUE A LEI NÃO PROÍBA!

Por exemplo: Um lavrador vende a outrem sua produção de vinho, de sua próxima colheita/ Ou
ainda a produção do seu laranjal no ano posterior ao da celebração da convenção.

O artigo 211º confere uma definição daquilo que sejam consideradas “coisas futuras”, definição legal
que é bastante ampla, abrangendo as coisas que carecem de existência – no sentido naturalístico – e
as coisas que por mais que existam, o disponente ainda não tem direito ao tempo da declaração
negocial (mas que conta vir ter em momento posterior).

Portanto, há uma variedade entre:

-Obrigações de “facere” (comportamentos positivos), como é exemplo a realização de uma auditoria.

-Obrigações de non facere (negativas), traduzindo-se em comportamentos negativos, em não fazer,


não concorrer, não disputar, nas quais o devedor obriga-se a não adotar uma conduta (abstenção ou
omissão), como é exemplo a cláusula de não concorrência.

- Obrigações de “pati” (negativas), traduzindo-se em suportar ou tolerar, não apenas um não


fazer/non facere, como é exemplo deixar que alguém passe pelo meu terreno para chegar a
determinado sítio. (Segundo CARNEIRO DA FRADA, a diferença entre esta obrigação de pati e
uma servidão de passagem é que o segundo é um direito real, a obrigação de pati é um compromisso
pessoal, não há uma relação jurídica real mas sim obrigacional, a pessoa obriga-se, não onera o seu
terreno, como acontece no caso da servidão de passagem.)

- Obrigações de “dare”, traduzindo-se em dar ou entregar a outrem determinada coisa.

2. Prestações Instantâneas/Prestações duradouras

Quanto ao tempo da sua realização, as prestações poderão ser instantâneas / Fracionadas /


Duradouras38

2.1 PRESTAÇÕES INSTANTÂNEAS

Prestações em que o comportamento exigível do devedor, se esgota num só momento ou num


período de tempo de duração praticamente irrelevante! Prestações – “QUAE UNICO ACTU
PEFICIUNTUR” – realizadas num único ato

Exemplo: Temos a entrega de uma coisa, o pagamento do preço em uma só prestação etc

2.2 OBRIGAÇÕES DURADOURAS

Não sucede tal como nas prestações instantâneas, nos casos das obrigações fundamentais/típicas dos
contratos de arrendamento, do depósito, do contrato de trabalho, dos contratos de prestação de
serviços – fornecimentos de água, gás, eletricidade etc!

Nestas relações, o que acontece é que as prestações se protelam no tempo, tendo a duração
temporal da relação jurídica creditória, uma influência decisiva na conformação global da
prestação (na definição de seu objeto entre outros aspetos)39 – Por isto são designadas prestações
duradouras
 Dentro destas, muitos são os autores que realizam uma subdivisão entre:

-Prestações de execução continuada

38
Ao lado delas, ainda se consideram as chamadas prestações intermitentes/ou desgarradas, que também se
prolongam no tempo, mas sem a periodicidade e homogeneidade próprias das prestações reiteradas. É o caso das
prestações que recaem sobre o mandatário judicial!

39
Não é suficiente que a relação se protele no tempo, para que existe uma relação duradoura.
São todas aquelas prestações cujo cumprimento se prolonga ininterruptamente no tempo - quotidie
et singulis momentis debetur – todos os dias e todos os minutos!

Exemplos típicos: As prestações dos fornecedores de serviços, prestação do depositário, do


comodante – de um modo geral as prestações de facto negativas (que muito raramente deixarão de
ter natureza continuada)

-Prestações de reiteradas/periódicas /com trato sucessivo

São todas aquelas prestações que se renovam, em prestações singulares sucessivas, em regra, ao fim
de períodos consecutivos. (semanais/mensais)

Exemplos: As prestações dos consumidores dos serviços de água, energia, gás, internet, do devedor
de renda perpétua ou vitalícia etc

 Portanto, do exposto, dentro das relações jurídicas obrigacionais duradouras – tal como a
locação, o arrendamento, mandato, depósito, contrato de trabalho entre outras, vão surgir a
cada passo:

-Obrigações de prestação instantânea (como por exemplo, o pagar da renda vencida, a indemnização
por despesas feitas pelo comodatário ou depositário ou pelo patrão ao trabalhador acidentado)
-Obrigações de prestação continuada / ou periódicas

Tudo isto imprime um certo caráter a relação considerada na sua globalidade!

2.3 OBRIGAÇÕES FRACIONADAS OU REPARTIDAS

Diferente das obrigações duradouras é o caso das obrigações fracionadas ou repartidas!


Nestas obrigações, o que acontece, é que o seu cumprimento se protela no tempo através de
sucessivas prestações instantâneas, mas o objeto da prestação está previamente fixado, sem qualquer
dependência da duração da relação contratual (do factor tempo)40

Exemplos: Casos de vendas à prestações, fornecimento de certa quantia de mercadoria a efetuar em


várias partidas.

NOTA: No caso das obrigações duradouras, a prestação depende do factor tempo, o qual tem uma
influência decisiva na fixação do seu objeto!

Nas prestações fracionadas/repartidas, o factor tempo não influi na determinação do seu objeto! Ele
está desde o início determinado. O factor tempo apenas relaciona-se com o modo de execução da
prestação

 Diferenças de Regime principais - Obrigações duradouras e Obrigações fracionadas

- Relativamente a Resolução
40
A duração temporal da relação jurídica creditória, não influência decisivamente na conformação global da prestação!
Influencia sim, no modo de execução!
Nas obrigações duradouras, em que tenhamos prestações de execução continuada ou periódica, a
resolução do contrato, ainda que goze de eficácia retroativa 41, não vai abranger, em regra, as
prestações já efetuadas! (Art. 434º nº 2/ 277º). A resolução neste caso abrangerá apenas as prestações
futuras e ainda vai operar relativamente duração futura da prestação em curso!42

Esquematicamente:

P1 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8

*Na 7º Prestação, imagine que o contrato é resolvido! O que acontece:

- Todas as anteriores, em regra, são asseguradas (não serão retroativamente resolvidas)


-As prestações futuras, resolvem-se
-A prestação em curso – na sua duração futura (tudo que ela ainda durar)

Nas obrigações fracionadas/repartidas, pelo contrário, a resolução do contrato vai atingir, em


princípio, todas as parcelas da prestação, incluindo as já efetuadas. A resolução é retroativa!

- Relativamente ao Cumprimento

A falta de cumprimento de uma das parcelas da prestação dividida/fracionada vai provocar, em

41
Esta eficácia retroativa vai se manifestar aqui de forma mais suavizada! Por exemplo: Num contrato de
arrendamento, através da eliminação de direitos (como o de preferência na venda do prédio arrendado) de que o
arrendatário gozaria, se não fosse a extinção resolutiva (cuja eficácia retroage até o momento da verificação da causa
de resolução)

42
As prestações de execução continuada/ ou então as prestações periódicas, estão idealmente ligadas a frações de
tempo! Uma empresa que presta serviços de abastecimento de água por exemplo. Se o contrato foi resolvido a meio
de março, O sr A já tinha pagado o mês, no início. Então sucede que o resto que houvesse de prestar durante este mês,
resolve-se.
regra, o vencimento imediato das restantes43 (Artgs. 781º e 934º), exatamente porque a formação ou
a constituição destas não está dependente do decurso do tempo! (O tempo influencia no modo de
execução)

-Nas obrigações duradouras, atenta a estreita conexão das prestações com o decurso do tempo, não
acontecerá a mesma coisa!

A falta de pagamento da renda do mês de janeiro poderá dar ao senhorio o direito à indemnização
especial prescrita no artigo (1041º nº1), mas não lhe confere o direito de exigir imediatamente o
pagamento das rendas correspondentes aos meses futuros!

Relações Duradouras Relações fracionadas/repartidas

Prestações se protelam no tempo, tendo Seu cumprimento se protela no tempo


Quid iuris a duração temporal da relação jurídica através de sucessivas prestações
creditória, uma influência decisiva na instantâneas, mas o objeto da prestação
conformação global da prestação está previamente fixado, sem qualquer
dependência da duração da relação
contratual

NOTA: Em todos os casos, nestas classificações de prestações quanto ao tempo de duração, não
deverá se confundir os atos de preparação da prestação com o cumprimento!44
3. Prestações Fungíveis/ Prestações Infungíveis

3.1 Fungíveis

43
Nos casos em que a obrigação que emerge do contrato é liquidada (=paga) ao longo de várias prestações  – por
exemplo, no contrato de crédito à habitação - a Lei (art. 781.º do Código Civil) determina que o não pagamento de uma
prestação, importa o vencimento (exigibilidade e coercibilidade imediata) de todas as prestações que faltam até ao
final da execução do contrato.
 
Ora, isso significa que o credor poderá, a partir desse momento, intentar uma ação judicial para a cobrança coerciva da
totalidade do montante mutuado acrescido de juros de mora, de acordo com o contrato.

44
Na doutrina, é uma distinção muito colocada no âmbito da empreitada
As prestações dizem-se fungíveis, quando podem ser realizadas por pessoa diferente da do
devedor, sem qualquer prejuízo aos interesses – la está, juridicamente titulado - do credor!

São exemplos: Lavar um terreno, pagar uma determinada quantia, pintar uma casa, caiar um muro
etc

3.2 Infungíveis/Não fungíveis

São prestações que precisam necessariamente ser efetuadas pela figura do devedor!

Este não pode ser substituído no cumprimento por um terceiro – sem que os interesses do credor
saiam prejudicados!

Aqui, tratam-se de obrigações em que ao credor, interessa mais do que simplesmente o simples
prestar do devedor! Interessa, sobretudo, aspetos técnicos do devedor, como sua habilidade, saber,
destreza, força, bom nome, outras muitas mais qualidades pessoais que possa ter!

Exemplos aqui: Tenho um quadro muito especial, e contrato um pintor conhecido. Precisa ser ele a
o fazer. É de total e exclusivo interesse do credor que o seja, ficando este interesse afetado caso
contrário!

A questão da fungibilidade das prestações, encontra-se no código civil! – É o que dispõe o


artigo 767º nº 2

* Esta disposição faz ressalva, apenas para os casos em que expressamente se tenha acordado que
a prestação deva ser feita pelo devedor (chamada não fungibilidade convencional) ou então, para
os casos em que a substituição vá prejudicar o credor (não fungibilidade fundada em natureza de
prestação)

Paralela a esta classificação, inserida no âmbito do direito das obrigações, temos já nos parâmetros
dos direitos reais a noção de coisas fungíveis/infungíveis – Artigo 207º - Coisas que podem ser
determinadas pelo seu género, qualidade, quantidade! (é uma noção um tanto diferente e que não
pode ser misturada com a anterior, sem prejuízo da sua boa correlação)
NOTA: Em regra, quando se trate de prestação de coisa, a prestação será fungível, quer a coisa em
si seja ou não fungível. Em ambos os casos o interesse do credor não será lesado com a substituição
do devedor.

 Importância da questão da fungibilidade – No âmbito das prestações de Facto!

A questão da fungibilidade das prestações, atinge seu maior relevo prático no âmbito das
prestações de facto! Encontram nesta o seu principal campo de aplicação!

Por exemplo: Nos contratos de trabalho, de mandato, de depósito, de empreitada45, de prestação de


serviços etc

Em todas estas espécies contratuais (onde há prestações de facto) pode – com grandes chances –
ocorrer que não seja indiferente para o interesse do credor, que as prestações do mandatário, do
depositário, do trabalhador, do empreiteiro, do médico/advogado etc, sejam efetuadas por uma outra
pessoa!

 Importância da questão da fungibilidade das prestações no regime da ação executiva

Tendo a prestação por objeto um facto fungível, poderá o credor requerer, no processo de execução,
que o facto seja prestado por outrem as custas do devedor! (Art. 828º)

Sendo de facto não fungível, o credor apenas poderá exigir o cumprimento do devedor (Art. 817º) e,
na hipótese de este não cumprir, terá de contentar-se com a indemnização do prejuízo sofrido,
resultante do não cumprimento (indemnização por equivalente).

*Altera-se o regime – algo de muita relevância prática!


B.1.3 O terceiro e central elemento das relações jurídico-obrigacionais – O vínculo Jurídico

Como opera-se a ligação entre os sujeitos da R.J creditória – neste caso, o devedor - e a prestação?

45
Ver o artigo 1230º do código civil relativo a empreitada. O contrato de empreitada extingue-se por morte ou
incapacidade do empreiteiro, no caso de terem sido tomadas em consideração pelo credor as qualidades pessoais.
Como sabemos que é a prestação a satisfazer o interesse do credor?

Como é que sabemos que a coisa, direito ou facto, aptos a satisfazer o interesse do credor, são postos
ao serviço do titular do crédito?

Através do Vínculo, que a ordem jurídica estabelece entre o credor e o devedor!46

Este vínculo, constituído pelo enlace dos poderes conferidos ao credor com os correlativos deveres
impostos ao titular passivo da relação, forma o cerne, o núcleo central da obrigação!

NOTA: Atenta a possibilidade de alteração dos sujeitos da relação – o que frequentemente ocorre – e
ponderadas as transformações que passo a passo vão sofrendo as próprias prestações, o vínculo
jurídico, corresponde verdadeiramente no único elemento irredutível/inalterável das relações
jurídicas creditórias

Muitos autores e também o código civil Português, voltam a bater na mesma tecla, quando
vieram a definir a obrigação como – Artigo 397º CC – O vínculo jurídico por virtude do qual uma
pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação!

*A própria etimologia da palavra47 – Obrigar (de obligare) aponta para o vínculo que prende um ao
outro!
IMPORTA: Vínculo jurídico nas relações obrigacionais – Vínculo de caráter relativo/específico!
Dever de prestar/direito de crédito
 Vínculo Jurídico – Análise descritiva dos principais poderes e deveres que advém da
obrigação, para cada um dos lados

A relação de subordinação entre os titulares da R.J creditória, traduz-se logo:

46
Já os romanos tinham conhecimento da essencialidade deste elemento! Nas “institutiones” do imperador justiniano
definiram obrigação como sendo um vínculo….

47
Estudo gramatical da origem e história das palavras, de onde surgiram e como evoluíram ao longo dos anos.
- No poder que tem o credor de exigir a prestação

-No dever que tem o devedor de efetua-la

-Na sanção aplicável ao devedor inadimplente ou em mora, a requerimento do credor lesado


(Garantia = Segundo este autor, não será um 4º elemento estruturante)

I. Direito do Credor a Prestação

É um poder! Não um qualquer! Mas um poder juridicamente tutelado de exigir a prestação ao


devedor!

O credor tem um direito a prestação 48 a qual poderá ser exigida, apenas por ele, ao seu/ou seus
devedores (Ou seja, tem seu interesse juridicamente tutelado!)

E mais que isto! O credor é o amo/o senhor desta tutela! O ordenamento jurídico confere as medidas
de proteção, e fica a total e exclusiva e disposição do credor/da sua vontade, a entrada em cena
daqueles, seu funcionamento – como por exemplo o mecanismo da execução!

*Somente o credor, poderá exigir a prestação ao devedor! Independentemente da forma!49 – Até


pela relatividade das R.J obrigacionais. Sem prejuízo do disposto no Art. 606 e ss – Institutos da
Impugnação pauliana e sub-rogação!

Mas e se o devedor…

cumprir de forma voluntária com a obrigação a que está adstrito?

48
E não um direito sobre a prestação! Para acentuar que a obrigação tem caráter pessoal – exige o concurso da
vontade do devedor (ainda que esta vontade encontre-se sujeita as medidas coercitivas) diferentemente dos direitos
reais que, pela sua natureza erga omnes, não dependem da aceitação, ou concurso de vontades.

49
Que poderá ser extra-judicialmente (mediante interpelação ao devedor) ou por via judicial (socorrendo-se da
citação para ação de cumprimento ou de execução / ou por meio de notificação judicial avulsa: Art. 805º do código civil
e Arts. 228º, 234º, 811º e 261º do código de processo civil)
-O credor vai poder reter a prestação, e retê-la:

(1) A título de cumprimento soluti retentio – retenção desvinculada

*Diferente de uma retenção a título de liberalidade50

- Devedor não poderá exigir nesta altura a restituição, não goza de “Condictio Indebiti” 51 – Esta é a
regra!

E se não cumprir de forma voluntária?

Visto não ser lícito – em regra52 – fazer justiça pelas próprias mãos (justiça privada) o credor será
forçado a recorrer aos mecanismos dispostos – jurídicos ou extra-jurídicos.

Extra-jurídicos: Interpelação do devedor – não judicial (feita pelo credor)

Jurídicos: Citação pra ação53 - de cumprimento ou execução de património54 / notificação judicial


50
O credor tinha direito a prestação, ainda que tenha sido cumprida voluntariamente, sem necessidade de jurídicos ou
extra-jurídicos para exigi-la.

51
O condictio indebiti é uma ação na lei civil (romana) pela qual um autor pode recuperar o que pagou ao réu por
engano; esse pagamento equivocado é conhecido como solutio indebiti.

52
O ordenamento jurídico condena por via de regra – apesar de admitir exceções raras – o recurso ao sistema de justiça
privada – Art. 1º do código de processo civil
53
A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama
ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa
interessada na causa.

54
Numa fase mais primitiva do direito romano, em virtude do laço de subordinação pessoal que se criava (por meio do
nexum, e posteriormente, da sponsio ou da stipulatio) entre o credor e o ob-ligatus, as sanções aplicáveis em caso de
incumprimento iam da privação de liberdade (prisão como meio compulsivo de pagamento até redução a escravatura)
até a morte! Depois, com a Famosa “LEX POETELIA PAPIRIA” de (326 A.C) – completada no fim do período da república,
após a criação da bonorun venditio – A Sanção principal passou a ser a execução, não da pessoa, mas dos bens
avulsa (Arts. 256º e ss do código de proc civil

Em regra, o credor terá de recorrer à execução forçada, que vai agredir não a pessoa do devedor,
mas sim, o património deste! A execução terá por objetivo proporcionar ao credor a realização do
interesse que a prestação visava facultar-lhe, ou então, uma satisfação tao próxima quanto possível!
E se o credor tem direito a agredir o património, isto acontece porque os bens do devedor
respondem pelo cumprimento das obrigações – Garantindo-a.

NOTA: As afirmações do CREDOR sobre (A existência da R.J, a titularidade e objeto da obrigação


– prestação bem como do não cumprimento pelo devedor) necessitam de ser devidamente
comprovadas!

A lei somente vai permitir a execução do património do devedor se o credor estiver já munido de um
TÍTULO EXECUTIVO (Um documento que constitua um mínimo de prova sobre os pontos
referidos – considerado suficiente para servir de base a ação executiva)

-Não possuindo um deste, ao que parece o credor terá de começar por propor uma ação
declarativa55 – destinada a averiguar a existência e falta de cumprimento da obrigação e a obter uma
sentença de condenação – do devedor – que é a ordem de cumprimento dada em concreto pelo
estado – representado por seus órgãos judiciários – ao devedor.

pertencentes a ela = seu património. Foi um diploma contra o exercício da “manus injecto” sobre a pessoa do devedor!
– Manus Injecto Era um meio de fiscalização contra um devedor que não havia cumprido seu compromisso. Esse
procedimento, previsto na Lei das Doze Tabelas (450 a.C.), permitiu ao credor, após 30 dias sem ter sido pago, ir até
seu devedor a fim de forçá-lo a comparecer perante um pretor (Procedimento é marcado pelo formalismo ritual: o
credor teve que colocar a mão em seu devedor, pronunciar uma fórmula com as palavras certas (sob pena de nulidade
do procedimento), então ele poderia acorrentar o devedor e levá-lo à força para uma prisão de sua casa onde o
manteve prisioneiro por 60 dias. Se ao final desses 60 dias, o devedor ainda não tinha encontrado uma maneira de
executar seu compromisso, o credor exibiu-o em 3 mercados e depois vendeu-o como um escravo além do Tibre para
receber suas dívidas pagas, ou colocá-lo à morte. E isto mantém-se até os dias de hoje! Art 601º de nosso código civil -
Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos
regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.

55
Esta possibilidade – e necessidade num certo sentido – de obter uma ação que, certificando a falta de cumprimento,
apenas condene o devedor a cumprir, reservando-se a execução para um segundo e eventual procedimento judicial,
constitui um progresso do direito moderno.
Por outro lado, se o credor tiver o título executivo, é a partir dele que se instaura a execução forçada,
a qual poderá revestir diversas formas, consoante a natureza da prestação devida e ainda com outras
circunstâncias:

-Execução para pagamento de quantia certa


-Execução para entrega de coisa determinada
-Execução para prestação de facto

Tratando-se de prestações de coisas certas, o tribunal vai procura apreende-la, utilizando força, se
necessário, para entregar ao credor.

Se estivermos diante de uma prestação de facto fungível – podem ser realizadas por pessoa
diferente da do devedor, sem prejuízo aos interesses do credor – então, o tribunal poderá, a
requerimento do próprio credor, mandá-la realizar por outrem às custas do devedor! (Como dita o
Art. 828º do código civil e ainda o 933º e ss do código de processo civil)

 POR OUTRO LADO: Se estivermos diante de prestações que envolvam uma determinada
quantia de dinheiro ou ainda, um facto não fungível, se não encontrar-se a soma devida no
património do devedor, ou se mesmo houver a necessidade de pagar a realização da prestação
de facto fungível por terceiro, a execução terá necessariamente de seguir por outro
caminho!56

Vai ser preciso sacrificar os bens do devedor que forem necessários para, com o produto – dinheiro
de sua alienação, pagar-se:

-A indemnização devida ao credor pelo prejuízo derivado do não cumprimento da obrigação

-Pagar as despesas com a prestação do facto fungível

56
O mesmo acontecerá ainda no caso da prestação ter objeto a entrega de coisa certa e esta haver sido apreendida
judicialmente
A execução vai atravessar nestes casos, três diferentes momentos: PENHORA dos bens do devedor,
VENDA JUDICIAL (dos bens penhorados) e o PAGAMENTO AOS CREDORES!

-PENHORA: Traduz-se na apreensão – por parte do tribunal – dos bens considerados necessários
para cobrir, através de seu valor, a indemnização devida, retirando esses bens da disponibilidade do
devedor e afetando-os aos fins próprios da execução. Em regra, esta apreensão possui eficácia
absoluta (Art. 819º CC) – visto que a penhora é um direito real de garantia.

-VENDA JUDICIAL: É através da venda judicial que o estado – representado pelos tribunais –
prescinde da vontade do proprietário para alienar os bens penhorados e, a custa da alienação forçada,
obter o dinheiro necessário aos fins da execução.

-PAGAMENTO DE CREDORES: O dinheiro obtido pela venda judicial, será distribuído aos
credores, até ao limite do montante de seus créditos, tendo sempre em atenção as regras de
preferência que a lei civil estabeleça entre eles!57

NOTA: Em qualquer que seja o momento do processo, quer o executado – devedor – quer algum
terceiro, pode extinguir a execução, pagando a dívida exequenda e as custas da ação (como ditam o
Art. 916 do código de processo civil)

Apesar, e como já visto, da não licitude da justiça privada como regra – tal como era no antigo
direito romano – para efeitos de garantia das obrigações, não é nem um pouco correto dizer-se que
o credor é apenas livre de optar:

-Entre o livre cumprimento da obrigação (voluntário)


-Sujeição ao direito de execução

E ainda que a aquela mesma parte caiba, numa primeira fase da R.J creditória, não um poder de
57
Como os bens do Credor respondem de forma igualitária perante todos os credores, independentemente da data, do
montante da constituição do crédito ou da natureza da dívida, diz-se que o património é a garantia comum dos
credores. A não existir causas legítimas de preferência, o Artigo 604º refere que os credores tem direito a ser pagos de
forma proporcional pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para a integral satisfação dos débitos.
exigir a prestação, mas uma simples expetativa do cumprimento!

É um facto que, a juridicidade do poder conferido ao credor – de exigir a prestação ao devedor –


manifesta-se principalmente, com maior vigor, mais força, mais aparato, no direito de agressão
ao património do devedor!

Mas não deixam de refletir-se noutros aspetos, à margem desta faculdade, que demonstram o poder
que tem o credor relativamente a prestação!

- A mora58 (Arts. 804º e ss)

A mora transfere para o devedor o risco do perecimento ou deterioração da coisa, mesmo que não
tenha culpa (Art. 807) – Como um sinal de que a coisa está onde, segundo o direito, não deveria
estar (807º n2)
O devedor constituído em mora passa a responder por todos os danos que o não cumprimento da
obrigação possa acarretar para o credor!
A lei recusa ao devedor constituído em mora – Art. 438 – o direito de obter a resolução ou
modificação do contrato

-Obrigações com objeto pecuniário (Prestação de uma certa quantia de dinheiro) passam a vencer
juros, a contar do dia da constituição em mora, ainda que anteriormente os não vencesse (Art. 806)

Em suma – Dir-se-á que o credor tem o poder de exigir a prestação! Ou que tem o direito à
prestação!

58
O incumprimento contratual ocorre sempre que o devedor não realiza a prestação a que está adstrito.
 
Incumprimento definitivo, mora e cumprimento defeituoso:
 
Em sentido amplo, o incumprimento contratual ou não cumprimento abrange:
- O incumprimento definitivo;
- A mora do devedor, que consiste no atraso da realização da prestação, sendo esta ainda possível;
- O cumprimento defeituoso ou imperfeito, que ocorre quando há uma violação do direito de crédito que não integra a
hipótese de mora nem de incumprimento definitivo, nomeadamente quando o devedor realiza a prestação a que está
adstrito com irregularidades ou deficiências.
 
*NOTA: Dado o caráter essencial da GARANTIA para a exequibilidade prática da obrigação,
a lei faculta aos credores meios de a conservar, reagindo contra determinados atos que possam
diminuir o património ou mesmo impedir o aumento de seu valor! – Institutos da sub-rogação,
impugnação pauliana, Arresto, declaração de nulidade Artigos 605º e ss.
De forma similar, costuma a falar-se muitas vezes, nos direitos subjetivos, de um poder de
pretender!

Poder de PRETENDER59 este, que caracteriza muito o direito do credor a prestação no âmbito das
obrigações naturais!

-Existe igualmente a “soluti retentio” mas falta a ação creditória, ou seja, o direito de exigir
judicialmente o cumprimento (Artigo 402º).

*Em casos de obrigações que já nascem naturais, ou em obrigações que prescrevem, o seu
cumprimento não poderá ser exigido, perde a exigibilidade – Ação creditória – tutela jurídica.

II. Dever Correlativo de Prestar

O dever de prestar traduz-se no contrapolo da relação jurídica obrigacional! Se por um lado temos a
parte ativa, Credor – direito à prestação, por outro lado temos a parte passiva, Devedor – Dever de
prestar.
O dever jurídico de prestar, traduz-se pela necessidade imposta – pelo direito – ao devedor de
realizar a prestação, sob a cominação das sanções aplicáveis à inadimplência!
*Como já visto, o dever jurídico de prestar é um dever específico que não se confunde com diversas
outras figuras!

 Dentro deste polo da RJ obrigacional, existem os chamados deveres jurídicos de prestar


principais/primários ou típicos e ainda os deveres secundários/Acidentais

Existem em muitas relações obrigacionais, as chamadas prestações principais – que definem o


59
O autor considera a expressão, “poder de pretender” equívoca e de certo modo desnecessária, se considerar-se que
as obrigações naturais não são obrigações civis, não constituem deveres jurídicos, mas sim, simples deveres morais,
sociais que são juridicamente reconhecidos como tais. Este reconhecimento pelo direito traduz-se essencialmente no
facto de a lei os considerar como causa bastante da atribuição patrimonial realizada por influxo deles!
tipo/a natureza da relação! São deveres que conferem identidade a essa relação, a distinguem de
outras tipologias.

Dentro desta categoria estão a título exemplificativo:

-Entrega da coisa vendida pelo vendedor/Entrega do preço pelo comprador (879º alº b; c)

-Cedência do gozo da coisa / Pagamento da renda /Aluguer

-Realização de determinada atividade intelectual ou manual sob a direção e autoridade do credor


/Pagamento desta atividade

-Obrigação de indemnizar, nascida de responsabilidade civil extracontratual!60

E podem existir ainda, ao lado destes deveres principais, primários ou típicos, outros a que, por
contraste, podemos chamar deveres secundários/ acidentais – e que alguns autores designam
deveres “acessórios da prestação principal” de prestação.

Estes, são deveres instrumentais, que servem uma cabal satisfação de interesses do credor, e que
estão relacionados com os deveres primários. Interiormente a eles, estão:

-Deveres acessórios das prestações principais (destinados no fundo a preparar o seu cumprimento ou
então assegurar a perfeita execução)

-Deveres relativos às prestações substitutivas ou complementares da prestação principal (Deveres


indemnizatórios resultantes do cumprimento defeituoso da obrigação)

60
Já que a relação obrigacional nasce direta ou originariamente deste facto!
Se as obrigações na relação não estiverem a ser cumpridas corretamente, podemos dizer que, ao
dever de prestação inicialmente previsto, podem suceder deveres substitutivos, por exemplo os
deveres indemnizatórios (pelo incumprimento da obrigação a que o devedor está adstrito, o dever
indemnizatório substituindo o dever de prestação por haver um incumprimento definitivo, não sendo
mais possível cumprir essa obrigação, havendo uma frustração definitiva dos interesses do credor; ou
pelo retardamento do cumprimento, que não faz extinguir o direito à prestação por parte do credor,
mas faz com que este possa obter uma indemnização pelo prejuízo da mora, como dispõe o artigo
804.º do Código Civil). Estes deveres secundários, que existem como forma de tutela da posição do
credor, nem sempre surgem na relação, podendo surgir ao lado ou substituindo os deveres de
prestação, quando o façam.

Também são deveres de prestação aqueles que decorram da ineficácia originária ou subsequente da
relação. (Por exemplo, num contrato de compra e venda inválido ou resolvido, existem deveres
restitutórios, como dita o artigo 289.º.) é preciso liquidar os preços de uma relação que se frustrou
dos seus objetivos, tornando-se ineficaz.

Ex: Quando se compra um presente, entregar o presente é o dever de prestar primário (este
representa um vínculo obrigacional autónomo). Embrulhar a coisa, é o dever acessório!

Estes, apesar de representarem também um vínculo obrigacional, não deixando de ser exigíveis,
constituem vínculos não autónomos!

 Deveres acessórios de conduta

Ao lado dos últimos, existem ainda os chamados DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA!

Estes, não interessando diretamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer ação
autónoma de cumprimento, são, todavia, essenciais ao correto processamento da relação
obrigacional em que a prestação se integra.
A relação obrigacional apenas poderá funcionar devidamente se as partes se comportarem de forma
razoável, uma para com a outra!

Os deveres acessórios de conduta decorrem das regras da boa-fé (artigo 762.º/2)! Existem três
tipologias:

-Os deveres de informação (relacionados com a capacidade de auto- informação da outra parte,
podendo o credor exigir a prestação de determinadas informações quando as mesmas sejam
necessárias para evitar riscos, por exemplo),

-Os deveres de lealdade (exige que as partes ajam com seriedade na relação, para que a obrigação
se cumpra, e evitando condutas que afetem a utilidade da mesma)

-E os deveres de proteção (as partes devem adotar todas as condutas adequadas para prevenir danos
pessoas ou patrimoniais na esfera da outra parte).

EXEMPLOS:

O locatário, por exemplo, tem como dever principal/típico, o pagamento da renda – Art. 1038º al. a)

Mas além desta, e outras mais, tem o dever acessório de conduta, de avisar imediatamente o locador,
sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, ou quando saiba que algum perigo a ameaça ou
mesmo quando terceiros estejam a arrogar direitos em relação a ela (desde que estes aspetos sejam
desconhecidos pelo locador)

Aqui, não estamos nem diante de deveres primários nem de secundários. São deveres acessórios de
conduta, que interessam ao regular/correto processamento da relação jurídica locatícia, nos exatos
termos em que ela deve desenvolver-se entre contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas
suas relações recíprocas.

OUTRO EXEMPLO:

Situação do depositário que é privado da detenção da coisa por causa não imputável!
A lei neste caso impõe ao depositário o dever acessório de conduta de avisar imediatamente o
depositante do ocorrido (Art. 1188º nº1) e concede a faculdade de recorrer aos meios possessórios
adequados (1188º nº2)

*Este dever não é, um dever de prestação cujo cumprimento possa o depositante exigir através de
ação judicial prevista no Art. 817º. É um dever acessório de conduta cuja violação pelo depositário
poderá desencadear obrigação de indemnizar os danos dela resultantes.

E AINDA:

Na própria situação da compra e venda, existem múltiplos deveres acessórios de conduta que
poderão recair sobre os contraentes!

Se a venda for sobre animais, que não sejam imediatamente entregues, o vendedor terá ainda o dever
de cuidar deles, com toda diligência e cuidado, enquanto permaneçam em seu poder, preservando
sua saúde e acautelando sua vida.

Se a venda for de géneros alimentícios, caberá ao devedor tomar todas as medidas de higiene,
limpeza e segurança necessárias, para que estes não se estraguem ou percam suas qualidades!
Tratando-se de imóveis, o vendedor estará obrigado a entregar todos os documentos que interessem à
transmissão do prédio e a prestar todas as informações necessárias sobre a aquisição do transmitente!

NOTA: Dum modo geral, pode-se dizer sobre os deveres acessórios de conduta, que nas relações
obrigacionais bilaterais (de onde eles mais avultam), cada um dos contraentes deverá tomar todas as
medidas necessárias – ou razoavelmente exigíveis – pra que a obrigação a seu cargo satisfaça o
interesse do credor na prestação.

 DETALHE: Relativamente a toda esta exposição, é preciso ainda referir a existência de


casos de relações obrigacionais, sem deveres principais de prestação!

A relação obrigacional pode apresentar-se como desprovida de deveres de prestar, enquanto objeto
de vínculos, podendo, todavia, existir essa relação confinada a meros deveres acessórios de conduta!
Ex: culpa in contrahendo (falha na celebração dum contrato) – As partes estabelecem entre si uma
negociação com vista à formação de contrato e, mesmo nesse período (formação contratual), em que
as partes ainda não estão adstritas ao contrato, têm de ser observados os ditames da boa-fé, sob pena
de responsabilidade pelos danos causados, como dispõe o artigo 227.º/1.

Esta relação inicial, que pode ou não desembocar na celebração do contrato, é particular, pois seu
conteúdo consiste em meros deveres de conduta!
No caso de se decidir pelo contrato, aí sim se dará lugar a uma relação contratual com legítimos
deveres de prestação, mas que antes começou por estar apenas cingida a deveres de conduta.

III. A garantia

O ordenamento jurídico não se limita a impor um dever de prestar ao obrigado e atribuir ao credor
um correlativo direito a prestação.

Muito mais do que isto, procura também assegurar a realização coativa da prestação! Sem
prejuízo do direito que possui o credor de resolver o contrato ou de recusar legitimamente o
cumprimento da obrigação que recaia sobre ele próprio, até que o devedor se decida a cumprir.
E como para este efeito o ordenamento jurídico não admite – em regra – o recurso a auto-defesa
(Artigo 1º do Código de Processo Civil), abre-se ao credor eventualmente lesado o recurso à ação em
tribunais.

O elemento que mais imprime juridicidade ao vínculo estabelecido entre credor e devedor, é
precisamente a AÇÃO CREDITÓRIA!

Poder de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação, quando o devedor não cumpra


voluntariamente, e de executar o património deste (Art. 817º)

 Vista do lado do devedor: A garantia traduz-se fundamentalmente na responsabilidade de


seu património pelo cumprimento da obrigação (Artigo 601º) e na consequente sujeição dos
bens que o integram aos fins específicos da execução forçada.

NOTAR:

Relação entre o direito à prestação e o dever de Prestar

Entre o direito a prestação e o dever de prestar, há uma normal relação de


correspondência/correlação

Trata-se do cumprimento do dever de prestar, que satisfazendo o interesse do credor, extingue, em


regra, o direito a prestação!

Mas a normal relação de correspondência poderá, em certos casos, vir a falhar por conta de dois
aspetos:

-Há várias formas de extinção do direito do credor – não somente o cumprimento do dever de
prestar! Como sejam a prescrição, confusão, a novação, a compensação, a dação em cumprimento, a
remissão, o cumprimento por terceiro, desaparecimento do interesse do credor, impossibilidade
fortuita da prestação etc

-Poderá o devedor ficar desonerado do seu dever de prestar ou mesmo cumprir este dever sem que
seja exercitado o direito do credor à prestação.
Relações jurídico-obrigacionais e outras classes de relações jurídicas

As obrigações não estão apenas no direito das obrigações (Livro II CC) Encontram-se noutros,
como é o caso do Direito da Família. Aqui, existem vínculos mediante os quais alguém deve
desenvolver determinada atividade em prol de outros, como é o exemplo dos cônjuges; são
obrigações institucionalizadas!

NOTA: As obrigações contidas no livro II, Direito das Obrigações, diferenciam-se de todas as
demais, desde logo, pois são pensadas enquanto tais, independentemente dos contextos particulares
em que estas surgem.

A. Obrigações vs Direitos Reais – Diferenças e Semelhanças

É uma distinção com muita relevância! Estas duas categorias apesar de possuírem suas
particularidades, contem muitos pontos de contato fundamentais! Juntas elas formam aquele que é
chamado o DIREITO CIVIL PATRIMONIAL, sendo que este divide-se em duas partes:

Uma primeira, regulada pelo direito das obrigações – pelas relações jurídicas creditórias – a
chamada dinâmica patrimonial! Tramitação legal até que já tenha adquirido a coisa, o direito)

No Direito das Obrigações, lidamos com (um)a relação social, dinâmica! As obrigações são, em
regra, em sem prejuízo de poderem ser de longa duração – efémeras! Existem para ser cumpridas,
momento no qual se extinguem.

A vocação da perpetuidade, típica dos direitos reais, contrasta com a vocação de


transitoriedade que nas obrigações existe, desde logo, porque o próprio cumprimento extingue a
obrigação – artigo 762.º/1.
Uma segunda, disciplinada pelo direito das coisas/Reais – Relações jurídicas reais– a chamada
estática patrimonial! (momento em que a coisa já foi adquirida – e agora?)

Lidamos no âmbito dos direitos reais, portanto, com (um)a relação estática. Os direitos reais de
gozo e de garantia são estáticos, não existem para que se altere nada (não existe para ser cumprido,
como um direito de crédito)!
* ainda que existam direitos reais de aquisição, que possam tender ao contrário do disposto, mas
mesmo estes são subordinados à necessidade de garantir o gozo, assegurando ao sujeito o domínio
de coisas (através do Direito das Obrigações, por vezes, também se assegura este domínio).

Os direitos reais tendem à perpetuidade (pelo menos, os direitos reais de gozo, que não se
extinguem pelo uso, pelo aproveitamento das utilidades da coisa, têm perdurabilidade, a
propriedade é um direito real sem qualquer limite temporal – prescrição aquisitva)

São espaços de autonomia garantidos. Um direito real não nos coloca numa relação com outros –
só acessoriamente necessitamos da relação aqui. A lógica da relação jurídico-obrigacional, não
funciona para os direitos reais, porque esta primeira prende-se com uma relação humana, e nos
direitos reais a relação humana não existe de facto – é uma relação entre um sujeito e uma coisa.

NOTA: Há necessidade de relativizar as caraterísticas da transitoriedade e perpetuidade, pois há


obrigações que podem perpetuar (como é o caso de certos contratos de abastecimento com base
em obrigações) e há direitos reais que poderão ser de curta duração (propriedade sobre uma coisa
consumível)

A parte da comparação que mais interessa, é a das relações jurídico-reais, visto ser esta categoria
que, considerando seu lado estrutural, diretamente se contrapõe as relações jurídico-creditórias.

*Importa apenas dizer que, na doutrina, os termos exatos da distinção entre estas duas
categorias está longe de ser encontrado, aceite por todos os autores! Há muitas opiniões!
-Mas desconsiderando por um momento a doutrina e observando objetivamente a lei, quais
podem ser os termos da distinção?

I) As relações jurídico-creditórias, envolvem os direitos subjetivos de crédito, que


são direitos relativos! Enquanto que as relações jurídico-reais, envolvem direitos
subjetivos de domínio, com caráter absoluto! Este é o traço mais forte e evidente!

Com efeito, resulta deste traço que:

Se um Sr. A adquire o direito de propriedade (direito subjetivo de domínio – “erga omnes”) de uma
coisa imóvel, seu novo direito impor-se-á:

-A todos os adquirentes posteriores a quem o antigo proprietário transmita o domínio ou conceda


outro direito real sobre a coisa.

-A todos os titulares de algum direito pessoal de gozo sobre a coisa (comodatários, arrendatários)

-Aos credores do antigo proprietário

-A todos os possuidores ou detentores da coisa (1311º do CC)

-A quemquer que se apodere da coisa, a danifique, a use em seu proveito ou conteste o direito do
titular.

Tudo isto conclui-se, mormente do artigo 1305º do CC, segundo qual o proprietário goza de modo
pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem!

Por outro lado…

Imaginemos que o mesmo Sr. A, fosse apenas credor. Tivesse direito a um crédito – Prestação. Este
seu crédito, pelo menos em regra, valerá somente como pretensão contra o devedor, destinada a
obter deste a concessão do uso, fruição ou a detenção da coisa, ou se assim quisermos, o domínio da
coisa!
II) Diferenças de menor relevo?

-Os direitos reais versam sobre coisas determinadas e certas! Já as obrigações podem incidir
sobre coisas indeterminadas, tal como sucede nas obrigações genéricas, pecuniárias e facultativas.

-Direitos reais não poderiam mesmo, segundo alguns autores, abranger mais do que uma
coisa (segundo o princípio da especialidade)

-Instituto da usucapião, aquisição de direitos reais. Não tem nenhuma aplicação no âmbito
das obrigações.

*E quais podem ser as semelhanças entre ambas as categorias?

I) Fonte comum – Atualmente, ambos podem nascer por mero efeito do contrato
(acordo das partes)

Fonte comum o contrato, que no ordenamento jurídico português cria tanto efeitos obrigacionais
como efeitos reais. Contrariamente a outras ordens jurídicas, em Portugal não é necessário um ato
posterior de transmissão do domínio da coisa para que se alcance o efeito real. Assim dispõe, como
regra, o artigo 408.º/1.

II) Violação – Tanto no caso dos direitos reais, como no dos direitos de crédito, de uma
eventual violação dá-se lugar a criação de um vínculo entre o titular do direito
violado e o autor da lesão. Embora nos primeiros, se dê lugar a responsabilidade
civil extracontratual, e nos segundos, à responsabilidade civil contratual (ambas
tipologias do instituto responsabilidade civil)

NOTA CURIOSA: Da violação de direito real gera-se um direito de crédito!


Ex: Quando um direito absoluto é violado sobrevive uma obrigação de indemnização entre o
lesante e o titular do direito violado, nos termos da responsabilidade civil (artigos 483.º e
seguintes).

Existem ainda casos de certos direitos reais têm como propósito proteger direitos de crédito: são os
direitos reais de garantia (consignação de rendimentos – artigo 656.º; penhor – artigo 666.º;
hipoteca – artigo 686.º; privilégios creditórios – artigo 733.º; direito de retenção – artigo 754.º).

Por outro lado, podem – como em regra ocorre - que os direitos de crédito servam de base à
constituição de direitos reais!

Há obrigações cuja adstrição advém da titularidade da coisa: obrigações reais e ónus reais. Na
obrigação real, a pessoa do obrigado é definida pela titularidade da coisa à data da constituição da
obrigação. Assim, são obrigações impostas ao titular de certa coisa, pelo simples facto de o ser.
(São exemplos a obrigação de reparar partes comuns da propriedade horizontal; a obrigação de
arrancar arvores plantadas em desrespeito das distâncias impostas pelas relações de vizinhança,
etc.)

Por seu turno, os ónus reais são obrigações, em regra de prestação periódica/reiterada, inerentes a
certa coisa, que a acompanham na sua transmissão.

A diferença dos ónus reais face às obrigações reais está em que neste segundo caso, o titular da
coisa só está vinculado às obrigações que tenham surgido depois da constituição do seu direito, ao
passo que nos ónus reais o titular da coisa fica obrigado mesmo em relação às prestações anteriores
à constituição do seu direito, mas apenas responderá pelo valor da coisa onerada
A. Obrigações vs Direitos de Família – Relações Jurídico-Familiares

 Principais pontos de diferença?

Relativamente a estas duas categorias, as principais diferenças a serem apontadas, provêm


essencialmente do facto das relações jurídico-familiares se integrarem numa instituição social 61 – a
instituição família! Cujos fins e princípios podem ser dos mais variados, e sofrer mutações com o
tempo, o que vai sempre exercer uma influência vincada no seu regime jurídico!62

A este mesmo propósito, chama-se-lhe, direitos “Institucionais”! Precisamente pelo fato das
normas que compõe o direito da família, não serem criadas/concebidas propriamente pelo
direito/ordenamento jurídico, “ex nihilo” (=do nada), mas sim, segregadas da instituição familiar.

Reside precisamente nisto, a distinção entre os deveres de prestar abrangidos pelas obrigações e os
deveres de caráter patrimonial (surgidos no seio das relações jurídico familiares (dívidas dos
cônjuges entre si, dívidas dos cônjuges relativamente a terceiros, deveres de administrar os bens dos
filhos, obrigação de alimentar)

Porém, já não é tao bem assim relativamente aos direitos/deveres de caráter pessoal! (relações
pessoais entre os cônjuges, poder paternal, tutela).

61
Para viver em sociedade o homem precisa de instituições! E estas podem ser definidas como “um conjunto de fatores
na realidade que, como estruturas de organizações sociais, possuem regras de conduta ou de comportamento e que
têm deste modo o seu aspeto normativo e normador (norma = regra), garantindo assim a segurança nas relações entre
os homens, ao mesmo tempo que permitem a cada homem encontrar-se e definir-se num contexto ou universo
significativo”.
É nas instituições (familiares, educativas, económicas, culturais, desportivas, políticas, etc.) com as suas regras próprias,
que o homem aprende viver regradamente em sociedade com os outros.

Muitas vezes, as regras de convivência nem são sentidas como tais porque na consciência das pessoas já estão
completamente interiorizadas. A primeira instituição em que o homem está inserido e começa a ser socializado é a
família, em que é exposto ao ambiente social em que começa a sua aprendizagem do mundo. E, obviamente, também
as regras ou normas jurídicas são parte da realidade social dos homens

62
Não é a toa que o livro 4 do código civil, seja um dos que mais tenha sido alvo, e que seja o mais suscetível de
alterações legislativas!
Estes não podem ser objeto de qualquer relação jurídico obrigacional, fora do círculo das pessoas
ligadas pelo vínculo familiar! Não pertencem ao comércio jurídico!

São direitos/deveres exclusivos da instituição familiar!

E ainda:

-Os direitos pessoais familiares, apenas podem ser exercidos dentro dos limites de uma
determinada função! Não são exercidos com liberdade, tal como um próprio direito subjetivo, e tal
como ocorre nos direitos subjetivos de crédito!

Poderes funcionais! Ou poderes-deveres!

-Os deveres pessoais familiares, ao contrário dos deveres de prestar, próprios das obrigações, não são
impostos único e exclusivamente no interesse da outra parte! Contrariamente, estes são verdadeiros
deveres morais que se impõe também, se não principalmente, no interesse da própria pessoa
vinculada, e ainda no interesse superior da comunidade familiar como um todo!

*Outra grande e notável diferença, é que o direito da família, é um ramo muito permeável as diversas
modificações estruturais a nível político, económico, social e principalmente, religioso! Estas
diversidades nacionais já não possuem tanta influencia assim – ou quase nada – no domínio das
obrigações!

*Ainda uma consequência prática interessante, resultante da diversidade de natureza entre as duas
categorias!

Advém do facto da violação dos deveres pessoais familiares não determinar uma simples obrigação
de indemnizar a contraparte – pelo menos não apenas patrimonialmente! Como os interesses lesados
são bem mais amplos, são diferentes os efeitos que a lei vai extrair da infração!

B. Obrigações vs Direitos Sucessórios – Relações Jurídico-Sucessórias - Diferenças e


eventuais pontos de contato
A verdade é que não existem, entre as obrigações, e as relações jurídicas correspondentes, integrados
no fenómeno sucessório, diferenças estruturais ou intrínsecas.

Nascem na sucessão “mortis causa” relações obrigacionais (legados ou encargos que oneram o
herdeiro ou o legatário, obrigações do cabeça de casal ou do testamenteiro; obrigações do fiduciário
etc) cujo regime terá, na falta de disposição especial, de ser procurado no livro das obrigações.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS OBRIGAÇÕES

Questão da patrimonialidade (Artigo 398º)

A obrigação tem de ter necessariamente conteúdo patrimonial? Tem de traduzir o interesse do


credor, num valor económico?

Patrimonial Suscetibilidade de ser avaliado em dinheiro /não patrimonial – não poderá ser
avaliado de forma pecuniária.

É um facto que a maior parte das relações obrigacionais, tem conteúdo patrimonial, deixando-se
avaliar do ponto de vista económico. Porém, nem sempre é necessariamente desta forma.

Quando se fala do carácter patrimonial do Direito das Obrigações, talvez deva-se dizer que se trata
apenas de uma característica tendencial ou genérica, pois não há uma necessidade da obrigação
ser avaliável em dinheiro.

O artigo 398.º refere expressamente, que a prestação não tem de ter valor pecuniário, o que
importa é que a prestação corresponda necessariamente a um interesse do credor, digno de
proteção legal.
Assim, a prestação não necessita de enriquecer o património do credor ou de evitar o seu
empobrecimento! Tem é de corresponder a um interesse real do credor, que seja suscetível de
proteção jurídica (interesse juridicamente protegido)

Com esta fórmula, resolveu o legislador o problema da natureza patrimonial da prestação,


mas fez surgir dois outros: como sabemos o que é uma prestação “sem valor pecuniário” e como
sabemos qual é o “interesse do credor”, bem como quando é que ele é “digno de proteção legal”.
(Um exemplo de uma prestação não patrimonial é quando uma pessoa se compromete a ajudar
outrém.)
Imediação vs mediação

Nos direitos reais, existe uma afetação direta e imediata – porque atingem a coisa e porque
prescindem de intermediários – da coisa ao seu titular, que todos devem respeitar. O titular do
direito real pode satisfazer o seu interesse autonomamente.

Já nos direitos de crédito, temos como característica a mediação. Ainda que dirigidos a
coisas (prestações de coisa), o credor só pode satisfazer o seu interesse, mediante colaboração do
devedor (com a prestação – objeto imediato), ou seja, por intermediário deste.

É por conta disto, pelo facto de a satisfação do interesse do credor depender da realização da
prestação pelo devedor que a obrigação é, por natureza, violável, porque depende da colaboração
da outra parte.
MENEZES CORDEIRO faz algumas críticas à mediação dos direitos de crédito.

− Em primeiro lugar, refere que a mediação só pode ser caraterística de prestações de


coisa, visto que nas de facto falta, precisamente, a coisa.
− Em segundo lugar, refere que os direitos reais nem sempre estão sujeitos a imediação,
havendo casos em que é necessária a atuação de certas pessoas ou do tribunal (Por
exemplo: penhor, hipoteca).
− Em terceiro, refere que a mediação não é caraterística necessária das obrigações,
porque o credor pode ver o seu interesse satisfeito por via da execução específica.
Ressalve-se, porém, que a execução específica implica, ela mesma, a intervenção ou
mediação de terceiro, neste caso, o Tribunal.
− Por fim, nota o autor que certos direitos de crédito constituem poderes diretos e
imediatos sobre a coisa, não havendo necessidade de mediação. Tal seria o caso dos
direitos pessoais de gozo (direitos que permitem, ao seu titular, o aproveitamento ou
gozo direito de uma coisa corpórea não considerada como direito real (exemplo da
locação). Mas, tal como o autor reconhece, mesmo os direitos pessoais de gozo estão
dependentes de uma relação entre dias pessoas, sendo necessária a colaboração de
ambas para a constituição do vínculo e para o gozo da coisa.

Atendendo a estas críticas, e na esteira de CARNEIRO DA FRADA, somos obrigados a


aceitar a mediação como caraterística das obrigações. Podemos, ainda, e como defende
MENEZES CORDEIRO, substituir a ideia de mediação pela ideia de “colaboração devida”.
Nestes termos, no âmbito das obrigações, as partes trabalham em conjunto para alcançar um
determinado objetivo.
A relatividade (Princípio regra) das obrigações

Princípio da relatividade – as obrigações estabelecem relações jurídicas, o credor só pode


exigir do devedor, e o devedor só está vinculado ao credor –, ínsito no artigo 397.º, e também
recolhido, em sede de contratos, no 406.º, quando se estabelece a propósito dos contratos
obrigacionais.

A relatividade é uma característica fundamental das obrigações. Ao contrário do carácter


patrimonial, que não é sempre necessário, as obrigações são em regra relativas, porque são
vínculos estabelecidos entre partes! (daí a relatividade – obrigações relativas às partes – como
regra!)

- Que podem não ser determinadas, mas que são determináveis! No caso da promessa pública por
exemplo (A outra parte que vai receber o benefício não está determinada, mas poderá vir a ser!)

Se estas partes se adstringiram uma à outra, no uso da sua autonomia privada, compreende-
se que a relação constituída apenas se vincule a elas!

O que não significa que a relatividade das relações jurídicas obrigacionais seja incompatível
com a existência de credores e devedores plurais! O que de facto importa, é que seja sempre
estabelecida entre pessoas determinadas ou determináveis.

Relembremos que os direitos relativos operam apenas inter partes, produzindo – por via de
regra - efeitos apenas entre as partes vinculadas, e os direitos de crédito são a maior categoria
deste tipo de direitos.

Contrariamente, os direitos absolutos, que são direitos reais e direitos de personalidade,


operam erga omnes, isto é, podem fazer-se valer contra todos os que com estes interfiram,
havendo uma obrigação universal de respeito, uma obrigação passiva universal.

Se por um lado, os direitos de crédito pressupõem uma relação (Credor(s) devedore (s) ), os
direitos reais resultam do exercício, para o seu titular, de uma posição isolada (ou de uma relação
sui generis pessoa / coisa) , ao passo que para o lado passivo supõem uma espécie de “relação
universal”.
Nos direitos reais, o titular pode obter a restituição da coisa de qualquer terceiro (artigo
1311.º1/1) ou exigir o respeito de qualquer terceiro. O titular de um direito de crédito apenas
poderá ver a prestação ser feita pelo seu devedor, sem prejuízo do Artigo 767º nº 1 e nº2
Nos direitos de crédito, só o devedor pode entrar em incumprimento (dando origem à
responsabilidade civil contratual – 798º), nos direitos reais, qualquer pessoa pode atingir a coisa,
sujeitando-se, por essa via, à responsabilidade extracontratual (483º)

Num conflito entre o direito real de uma pessoa e o direito de crédito de outra,
prevalece o direito real – o titular do direito real pode opôr o seu direito a qualquer pessoa,
mesmo que o direito real tenha sido constituído posteriormente ao direito de crédito.

Num conflito entre direitos reais, prevalece o primeiro direito real constituído.

Num conflito entre direitos de crédito, não prevalece o primeiramente constituído – é o


devedor que vai escolher qual obrigação a cumprir, ficando um dos credores prejudicados,
embora tendo o direito a indemnização! (Por exemplo, A diz que compra o bem de B por 100€,
mas C diz que dá 200€ por esse bem – não é ilícito que B escolha contratar com C, é
concorrência.)
[Apesar da previsão da relatividade dos direitos de crédito no artigo 406.º, nomeadamente no
artigo 406.º/2, são previstas exceções, nos termos da Lei, em que os direitos de crédito se
absolutizam, produzindo efeitos em relação a terceiros. É o caso da promessa ou pacto de
preferência com eficácia real (artigos 413.º e 421.º), da obrigação de indemnizar terceiro por
alimentos não pagos devido a morte ou lesão corporal do lesado (artigo 495.º/3), do commodum de
representação (artigos 794.º e 803.º), da sub-rogação do credor ao devedor em que credor exerce
contra terceiros um direito patrimonial do devedor, quando isso se manifeste essencial para a
satisfação do seu crédito (artigo 606.º), da ação pauliana em que o credor pode impugnar os atos
do devedor que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (artigo 610.º/1) ou
exigência de restituição de bens a terceiros (artigo 616.º/1), da ação direta pela qual o credor age
contra terceiro que obstaculize ao cumprimento pelo devedor da prestação (artigo 336.º/1), ou
ainda dos contratos a favor de terceiros (artigo 443.º/1).]

A consagração do princípio da relatividade consiste no facto de que só surtem efeitos entre


os contraentes, havendo, no entanto, exceções (por exemplo, contrato a favor de terceiro: através
de contrato atribui-se crédito a terceiro que não é parte do contrato).
Daqui decorre também que só o devedor pode propriamente violar a obrigação, se só ele está
adstrito, a obrigação pendendo sobre ele, só ele podendo não cumprir. Decorre da relatividade
estrutural da obrigação que a responsabilidade pelo incumprimento é apenas do devedor.
O problema está em saber como tratar as hipóteses em que um terceiro interfere no crédito,
através da sua conduta prejudicando, direta ou indiretamente, o interesse do credor. (Por exemplo,
um ladrão entra na casa de uma explicadora e impede-a de realizar a prestação. Além do dano
físico, está a prejudicar o crédito.) O credor tem algum modo de obter a satisfação do seu interesse
contra terceiro? É ou não possível que o credor reclame de quem levou a cabo agressão contra o
seu devedor? Pode o credor exigir indemnização pela perturbação/frustração do seu interesse na
prestação, quando terceiro interferiu no programa obrigacional?
Há situações que podem resultar na frustração do interesse do credor por condutas de
terceiros que muitas vezes não conhecem a relação obrigacional, temos de saber se há ou não
responsabilidade. O que nos parece é que o credor, à partida, só tem tutela pelo incumprimento da
obrigação contra o seu devedor. A frustração do seu interesse de credor só pode ser um dano na
relação com o devedor, que é aquele e apenas aquele que esta vinculado a assegurar a satisfação
do interesse do credor.
Portanto, também para efeitos de responsabilidade, a obrigação é relativa. O que não
significa que, em algumas situações, o terceiro não possa responder, ele pode responder, mas não é
pelo incumprimento da obrigação. (Por exemplo, uma cantora tem que dar espetáculo, chega ao
aeroporto de táxi, que vai a excesso de velocidade, e tem um acidente. A cantora não pode cantar,
o empresário viu as suas receitas diminuírem, as pessoas que compraram bilhete – este elenco
pode ou não pedir indemnização contra o taxista? O taxista não tinha obrigação perante o
empresário nem perante os espectadores, a responsabilidade eventual do taxista, que é o terceiro,
não pode assentar no incumprimento da obrigação, tem de se fundamentar de outra forma. Neste
caso, os autores entendem que ele não é responsável, a não ser que tenha agido com dolo, com o
propósito de causar prejuízo. Qualquer dano causado com intenção malévola, causando prejuízo
sem que daí advenha uma vantagem para o sujeito, é ressarcível, como dano dolosamente
provocado, mas não por se tratar de um crédito. A responsabilidade do taxista só existe em caso de
dolo, não de mera negligência. Responde pelos danos à cantora, mas não pelos danos do
cancelamento do espetáculo, não havendo dever de cuidado de terceiros relativamente a créditos.)
Por isso, podemos assumir que a obrigação é relativa e só pode ser violada pelo devedor,
é obrigação cujo dano de incumprimento só podia ser reclamada do próprio devedor e não de
terceiro. O crédito é relativo, mas pode haver situações de responsabilidade de terceiro, não
propriamente por frustração do crédito, mas por violação de regras jurídicas que se destinam a
acautelar danos que possam existir.
Eficácia externa das obrigações

No Direito da Responsabilidade, temos uma divisão importante, que nos dita que existem
dois grandes pólos de responsabilidade:
− O pólo delitual, quando decorra da prática de delitos, que normalmente visa a
proteção de bens ou direitos absolutos, não visando a responsabilidade
obrigacional mas as

hipóteses em que alguém viola um direito de propriedade, de personalidade, de


propriedade industrial, posições erga omnes/absolutas. Encontramo-lo no artigo
493.º.
− O pólo obrigacional, decorrente da falta de cumprimento da obrigação, onde é o
devedor que incorre em responsabilidade, não podendo ser um terceiro, como é
possível no outro pólo, sendo a relatividade da obrigação aqui espelhada.
Encontramo- lo nos artigos 798.º e seguintes.

A que problema pretende dar resposta a Teoria da Eficácia Externa das Obrigações? Um
terceiro, alheio ao programa obrigacional, tem o dever genérico de não perturbar o crédito? Pode o
credor exigir uma indemnização de um terceiro por ter tornado impossível o cumprimento da
obrigação, ou por ter instigado o devedor a não cumprir? Na Europa, existe uma posição bastante
cautelosa em relação ao reconhecimento da eficácia externa das obrigações. A instigação por parte
de um terceiro para que alguém opte pelo incumprimento contratual não é juridicamente
censurável na maioria dos casos, porque afetaria brutalmente o direito da concorrência.

GALVÃO TELLES, MENEZES CORDEIRO, SANTOS JÚNIOR têm uma posição mais
permissiva quanto ao instituto de eficácia externa das obrigações.

Estes autores baseiam-se no artigo 483.º do Código Civil, para responsabilidade civil
extracontratual, defendendo que a letra do artigo 483.º não limita a proibição de violação de
direitos aos direitos absolutos. A violação dos direitos relativos cabe também neste artigo,
portanto. Mesmo para estes autores, que enquadram a situação no 483.º e têm uma posição mais
permissiva da eficácia externa das obrigações, é exigido o dolo, não se bastando a culpa.

MENEZES CORDEIRO diz que não há ilicitude no mero ato de instigar ao não
cumprimento. É necessário que o terceiro tivesse vontade de violar a situação considerada ou, pelo
menos, o dever jurídico de cuidado face ao credor do crédito. (Nota: Ainda se discute muito a
diferença entre ilicitude e culpa, especialmente na responsabilidade objetiva. Aqui não é exceção.)
Os adeptos da teoria da eficácia externa da obrigação dizem que o terceiro que interfira no
cumprimento de determinada obrigação pode ser responsabilizado ao abrigo do artigo 483.º. (No
exemplo que vimos anteriormente, da cantora e do taxista, o taxista seria responsabilizado por
negligência, ao violar o direito de crédito, sendo os terceiros, a empresa e os espectadores,
tutelados, porque houve uma violação ilícita do seu direito.)

MOTA PINTO, ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, RIBEIRO FARIA, SINDE


MONTEIRO, MENEZES LEITÃO têm uma posição mais restritiva.

Para estes autores, o artigo 483.º foi pensado especificamente para a violação de direitos absolutos.
Para os autores que negam que a eficácia externa das obrigações resulte deste artigo, na sua
maioria, resolvem esta problemática com recurso ao abuso de direito – artigo 334.º. RIBEIRO DE
FARIA fala da reprovação da consciência ética imperante.

Jurisprudencialmente, os Tribunais, em todas as instâncias, têm-se dividido, havendo


decisões em todas as direções. Durante muito tempo foi possível identificar uma certa linha
jurisprudencial virada para a figura do abuso de direito. Na última década, porém, uma corrente
cada vez mais forte vem admitindo a eficácia externa das obrigações ao abrigo da
responsabilidade aquiliana. No plano internacional, a tendência vai sendo a do crescente
reconhecimento da eficácia externa das obrigações. Na Alemanha, tal consegue-se através do BGB
e do recurso aos deveres acessórios e de tráfego. Em França, o problema não se coloca, devido à
conceção mais ampla do ordenamento jurídico da responsabilidade extracontratual. Nos países da
Common Law, em particular nos EUA, figuras como a do wrongful contract interference ou
tortious interference têm-se disseminado.

CARNEIRO DA FRADA discorda com este entendimento, porque ignora a história da Lei,
e atribui à letra da Lei uma amplitude que esta nunca teve no pensamento dos autores, bem como
dá ao Direito Delitual uma aplitude tal que torna impraticável o sistema de responsabilidade,
tendo em conta as consequências aqui demonstradas. Se alargamos a responsabilidade a todos
aqueles que, ainda que de forma remota, venham a interferir em relação obrigacional alheia, temos
espirais de responsabilidades que não acabam. Há razões de praticabilidade que justificam que
o certo é que o artigo 483.º não abrange a tutela do crédito. A tutela do crédito é feita através
do artigo 798.º, para o artigo 483.º interessam apenas posições erga omnes, que podem ser opostas
a quem quer que seja.
CARNEIRO DA FRADA entende que o que está em causa é o imperativo ético-jurídico de
censurar a criação malévola de um prejuízo a terceiro. A solução mais correta consta do parágrafo
826.º do BGB, que diz: “Uma pessoa que, em oposição aos bons costumes, infligir
intencionalmente danos a outra pessoa, está obrigada a indemnizá-la pelos danos causados.”

Desta solução do BGB não só resulta a questão da intencionalidade (o dolo), mas ainda a
questão da ofensa à moral prevalecente na sociedade à data da prática do facto.

Problema: este parágrafo não tem equivalência na jurisdição portuguesa. De acordo com
CARNEIRO DA FRADA, não se trata de utilizar aqui o 483.º, porque esse está pensado para a
violação de direitos absolutos. Defende ainda que não se pode aplicar diretamente o 334.º, porque
não está em causa o exercício de um direito, mas sim de uma liberdade genérica de agir. Portanto,
entende o autor que se aplicará ao caso o artigo 334.º por analogia, densificado pelos tais
requisitos da intencionalidade e da ofensa à moral prevalecente.

A conclusão, para CARNEIRO DA FRADA, é que não há responsabilidade direta de terceiro


pelo incumprimento. A eficácia externa das obrigações não existe. O crédito é relativo.
A questão da autonomia

No Direito da Família e no Direito das Sucessões encontramos obrigações, mas não se tratam
de obrigações autónomas – isto porque estão funcionalizadas, institucionalizadas.
Ao Direito das Obrigações, interessam as obrigações autónomas, que são aquelas que não
estão dependentes das relações estabelecidas anteriormente. No entanto, a autonomia não é uma
característica necessária das obrigações, que podem ser autonómas como não autónomas.
PRINCÍPIOS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

Princípio da relatividade das obrigações – É a regra!

Princípio da relatividade – as obrigações estabelecem relações jurídicas em que o credor só pode


exigir do devedor, e o devedor só está vinculado ao credor –, ínsito no artigo 397.º, e também
recolhido, em sede de contratos, no 406.º, quando se estabelece a propósito dos contratos
obrigacionais.

A relatividade é uma característica fundamental das obrigações. Ao contrário do carácter


patrimonial, que não é sempre necessário, as obrigações são em regra relativas, porque são
vínculos estabelecidos entre partes! (daí a relatividade – obrigações relativas às partes – como
regra!)

- Que podem não ser determinadas, mas que são determináveis! No caso da promessa pública por
exemplo (A outra parte que vai receber o benefício não está determinada, mas poderá vir a ser!)

Se estas partes se adstringiram uma à outra, no uso da sua autonomia privada, compreende-se que
a relação constituída apenas se vincule a elas!

O que não significa que a relatividade das relações jurídicas obrigacionais seja incompatível com a
existência de credores e devedores plurais! O que de facto importa, é que seja sempre estabelecida
entre pessoas determinadas ou determináveis.

Relembremos que os direitos relativos operam apenas inter partes, produzindo – por via de regra -
efeitos apenas entre as partes vinculadas, e os direitos de crédito são a maior categoria deste tipo
de direitos.

Contrariamente, os direitos absolutos, que são direitos reais e direitos de personalidade, operam
erga omnes, isto é, podem fazer-se valer contra todos os que com estes interfiram, havendo uma
obrigação universal de respeito, uma obrigação passiva universal.
Apesar da previsão da relatividade das obrigações no Art. 397º e 406. 406.º/2, são previstas exceções,
nos termos da Lei, em que os direitos de crédito se absolutizam, produzindo efeitos em relação a
terceiros.

É o caso da promessa ou pacto de preferência com eficácia real (artigos 413.º e 421.º), da obrigação
de indemnizar terceiro por alimentos não pagos devido a morte ou lesão corporal do lesado (artigo
495.º/3), do commodum de representação (artigos 794.º e 803.º), da sub-rogação do credor ao
devedor em que credor exerce contra terceiros um direito patrimonial do devedor, quando isso se
manifeste essencial para a satisfação do seu crédito (artigo 606.º), da ação pauliana em que o credor
pode impugnar os atos do devedor que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu
crédito (artigo 610.º/1) ou exigência de restituição de bens a terceiros (artigo 616.º/1), da ação direta
pela qual o credor age contra terceiro que obstaculize ao cumprimento pelo devedor da prestação
(artigo 336.º/1), ou ainda dos contratos a favor de terceiros (artigo 443.º/1).]

A consagração do princípio da relatividade consiste no facto de que só surtem efeitos entre


os contraentes, havendo, no entanto, exceções (por exemplo, contrato a favor de terceiro: através
de contrato atribui-se crédito a terceiro que não é parte do contrato).
Daqui decorre também que só o devedor pode propriamente violar a obrigação, se só ele está
adstrito, a obrigação pendendo sobre ele, só ele podendo não cumprir. Decorre da relatividade
estrutural da obrigação que a responsabilidade pelo incumprimento é apenas do devedor.
O problema está em saber como tratar as hipóteses em que um terceiro interfere no crédito,
através da sua conduta prejudicando, direta ou indiretamente, o interesse do credor. (Por exemplo,
um ladrão entra na casa de uma explicadora e impede-a de realizar a prestação. Além do dano
físico, está a prejudicar o crédito.) O credor tem algum modo de obter a satisfação do seu interesse
contra terceiro? É ou não possível que o credor reclame de quem levou a cabo agressão contra o
seu devedor? Pode o credor exigir indemnização pela perturbação/frustração do seu interesse na
prestação, quando terceiro interferiu no programa obrigacional?
Há situações que podem resultar na frustração do interesse do credor por condutas de
terceiros que muitas vezes não conhecem a relação obrigacional, temos de saber se há ou não
responsabilidade. O que nos parece é que o credor, à partida, só tem tutela pelo incumprimento da
obrigação contra o seu devedor. A frustração do seu interesse de credor só pode ser um dano na
relação com o devedor, que é aquele e apenas aquele que esta vinculado a assegurar a satisfação
do interesse do credor.
Portanto, também para efeitos de responsabilidade, a obrigação é relativa. O que não
significa que, em algumas situações, o terceiro não possa responder, ele pode responder, mas não é
pelo incumprimento da obrigação. (Por exemplo, uma cantora tem que dar espetáculo, chega ao
aeroporto de táxi, que vai a excesso de velocidade, e tem um acidente. A cantora não pode cantar,
o empresário viu as suas receitas diminuírem, as pessoas que compraram bilhete – este elenco
pode ou não pedir indemnização contra o taxista? O taxista não tinha obrigação perante o
empresário nem perante os espectadores, a responsabilidade eventual do taxista, que é o terceiro,
não pode assentar no incumprimento da obrigação, tem de se fundamentar de outra forma. Neste
caso, os autores entendem que ele não é responsável, a não ser que tenha agido com dolo, com o
propósito de causar prejuízo. Qualquer dano causado com intenção malévola, causando prejuízo
sem que daí advenha uma vantagem para o sujeito, é ressarcível, como dano dolosamente
provocado, mas não por se tratar de um crédito. A responsabilidade do taxista só existe em caso de
dolo, não de mera negligência. Responde pelos danos à cantora, mas não pelos danos do
cancelamento do espetáculo, não havendo dever de cuidado de terceiros relativamente a créditos.)
Por isso, podemos assumir que a obrigação é relativa e só pode ser violada pelo devedor,
é obrigação cujo dano de incumprimento só podia ser reclamada do próprio devedor e não de
terceiro. O crédito é relativo, mas pode haver situações de responsabilidade de terceiro, não
propriamente por frustração do crédito, mas por violação de regras jurídicas que se destinam a
acautelar danos que possam existir.
Eficácia externa das obrigações

No Direito da Responsabilidade, temos uma divisão importante, que nos dita que existem
dois grandes pólos de responsabilidade:
− O pólo delitual, quando decorra da prática de delitos, que normalmente visa a
proteção de bens ou direitos absolutos, não visando a responsabilidade
obrigacional mas as

hipóteses em que alguém viola um direito de propriedade, de personalidade, de


propriedade industrial, posições erga omnes/absolutas. Encontramo-lo no artigo
493.º.
− O pólo obrigacional, decorrente da falta de cumprimento da obrigação, onde é o
devedor que incorre em responsabilidade, não podendo ser um terceiro, como é
possível no outro pólo, sendo a relatividade da obrigação aqui espelhada.
Encontramo- lo nos artigos 798.º e seguintes.

A que problema pretende dar resposta a Teoria da Eficácia Externa das Obrigações? Um
terceiro, alheio ao programa obrigacional, tem o dever genérico de não perturbar o crédito? Pode o
credor exigir uma indemnização de um terceiro por ter tornado impossível o cumprimento da
obrigação, ou por ter instigado o devedor a não cumprir? Na Europa, existe uma posição bastante
cautelosa em relação ao reconhecimento da eficácia externa das obrigações. A instigação por parte
de um terceiro para que alguém opte pelo incumprimento contratual não é juridicamente
censurável na maioria dos casos, porque afetaria brutalmente o direito da concorrência.

GALVÃO TELLES, MENEZES CORDEIRO, SANTOS JÚNIOR têm uma posição mais
permissiva quanto ao instituto de eficácia externa das obrigações.

Estes autores baseiam-se no artigo 483.º do Código Civil, para responsabilidade civil
extracontratual, defendendo que a letra do artigo 483.º não limita a proibição de violação de
direitos aos direitos absolutos. A violação dos direitos relativos cabe também neste artigo,
portanto. Mesmo para estes autores, que enquadram a situação no 483.º e têm uma posição mais
permissiva da eficácia externa das obrigações, é exigido o dolo, não se bastando a culpa.

MENEZES CORDEIRO diz que não há ilicitude no mero ato de instigar ao não
cumprimento. É necessário que o terceiro tivesse vontade de violar a situação considerada ou, pelo
menos, o dever jurídico de cuidado face ao credor do crédito. (Nota: Ainda se discute muito a
diferença entre ilicitude e culpa, especialmente na responsabilidade objetiva. Aqui não é exceção.)
Os adeptos da teoria da eficácia externa da obrigação dizem que o terceiro que interfira no
cumprimento de determinada obrigação pode ser responsabilizado ao abrigo do artigo 483.º. (No
exemplo que vimos anteriormente, da cantora e do taxista, o taxista seria responsabilizado por
negligência, ao violar o direito de crédito, sendo os terceiros, a empresa e os espectadores,
tutelados, porque houve uma violação ilícita do seu direito.)

MOTA PINTO, ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, RIBEIRO FARIA, SINDE


MONTEIRO, MENEZES LEITÃO têm uma posição mais restritiva.

Para estes autores, o artigo 483.º foi pensado especificamente para a violação de direitos absolutos.
Para os autores que negam que a eficácia externa das obrigações resulte deste artigo, na sua
maioria, resolvem esta problemática com recurso ao abuso de direito – artigo 334.º. RIBEIRO DE
FARIA fala da reprovação da consciência ética imperante.

Jurisprudencialmente, os Tribunais, em todas as instâncias, têm-se dividido, havendo


decisões em todas as direções. Durante muito tempo foi possível identificar uma certa linha
jurisprudencial virada para a figura do abuso de direito. Na última década, porém, uma corrente
cada vez mais forte vem admitindo a eficácia externa das obrigações ao abrigo da
responsabilidade aquiliana. No plano internacional, a tendência vai sendo a do crescente
reconhecimento da eficácia externa das obrigações. Na Alemanha, tal consegue-se através do BGB
e do recurso aos deveres acessórios e de tráfego. Em França, o problema não se coloca, devido à
conceção mais ampla do ordenamento jurídico da responsabilidade extracontratual. Nos países da
Common Law, em particular nos EUA, figuras como a do wrongful contract interference ou
tortious interference têm-se disseminado.

CARNEIRO DA FRADA discorda com este entendimento, porque ignora a história da Lei,
e atribui à letra da Lei uma amplitude que esta nunca teve no pensamento dos autores, bem como
dá ao Direito Delitual uma aplitude tal que torna impraticável o sistema de responsabilidade,
tendo em conta as consequências aqui demonstradas. Se alargamos a responsabilidade a todos
aqueles que, ainda que de forma remota, venham a interferir em relação obrigacional alheia, temos
espirais de responsabilidades que não acabam. Há razões de praticabilidade que justificam que
o certo é que o artigo 483.º não abrange a tutela do crédito. A tutela do crédito é feita através
do artigo 798.º, para o artigo 483.º interessam apenas posições erga omnes, que podem ser opostas
a quem quer que seja.
CARNEIRO DA FRADA entende que o que está em causa é o imperativo ético-jurídico de
censurar a criação malévola de um prejuízo a terceiro. A solução mais correta consta do parágrafo
826.º do BGB, que diz: “Uma pessoa que, em oposição aos bons costumes, infligir
intencionalmente danos a outra pessoa, está obrigada a indemnizá-la pelos danos causados.”

Desta solução do BGB não só resulta a questão da intencionalidade (o dolo), mas ainda a
questão da ofensa à moral prevalecente na sociedade à data da prática do facto.

Problema: este parágrafo não tem equivalência na jurisdição portuguesa. De acordo com
CARNEIRO DA FRADA, não se trata de utilizar aqui o 483.º, porque esse está pensado para a
violação de direitos absolutos. Defende ainda que não se pode aplicar diretamente o 334.º, porque
não está em causa o exercício de um direito, mas sim de uma liberdade genérica de agir. Portanto,
entende o autor que se aplicará ao caso o artigo 334.º por analogia, densificado pelos tais
requisitos da intencionalidade e da ofensa à moral prevalecente.

A conclusão, para CARNEIRO DA FRADA, é que não há responsabilidade direta de terceiro


pelo incumprimento. A eficácia externa das obrigações não existe. O crédito é relativo.
Princípio da autonomia privada

É no Direito das Obrigações que o princípio da autonomia privada tem a sua maior
amplitude. Nos Direitos Reais, vale o princípio da tipicidade, ou seja, os direitos reais só se
podem constituir nos termos do disposto no artigo 1306.º do Código Civil, não havendo liberdade
de conformação do conteúdo do direito. As relações familiares também estão sujeitas ao princípio
da tipicidade, família é aquilo que o legislador entendeu ser família; no Direito das Sucessões, as
relações estão tipificadas na Lei também.
À partida, a constituição de obrigações e a conformação do seu conteúdo é livre, está na
disponibilidade dos sujeitos. As partes podem, por contrarto, conformar as relações obrigacionais
que quiserem, dentro dos limites da Lei.
O artigo 405.º, do princípio da liberdade contratual, tem duas vertentes: a liberdade de
celebrar ou não celebrar contratos e a liberdade de atribuir a esses contratos o conteúdo que se
quiser (as partes podem celevrar os contratos previstos pela Lei, podem misturar vários elementos
de vários contratos previstos pela Lei, gerando contratos mistos, e podem celebrar contratos para
além das possibilidades que a Lei estabelece). Existe, portanto, liberdade de constituição de
relações obrigacionais, princípio contrastante com o princípio da tipicidade aplicado aos direitos
reais.
A liberdade no Direito das Obrigações é uma liberdade de constituição das relações
obrigacionais por contrato; quanto aos negócios jurídicos unilaterais, vigora o princípio da
tipicidade (artigo 457.º), os negócios unilateriais só podendo ser fontes de obrigações nos casos
previstos na Lei. Esta restrição é uma forma de proteger um obrigado mediante um negócio
unilateral a que se vincula, se nada recebe em troca.
O princípio da liberdade contratual tem restrições. Desde logo, a obrigação legal de
contratar, em determinados serviços. É uma restrição, mas não significa isso que perde a
autonomia. A autonomia é colocada ao serviço de atividades que, para uma das partes, não está no
seu âmbito. O Direito das Obrigações é chamado para estabelecer disciplina em âmbitos que não
são autónomos. Ou seja, há hipóteses em que existe uma obrigação legal de contratar, o que
representa uma restrição à liberdade privada (por exemplo, a STCP não pode impedir uma pessoa
de frequentar os seus autocarros a priori).
A autonomia privada é garantida ao sujeito, o sujeito exerce ou não as possibilidades pela
ordem jurídica conferidas, não podendo antecipadamente renunciar à tutela que a ordem jurídica
lhe confere, expressando isto a importância que a ordem jurídica dá à autonomia privada. No
artigo 809.º, é-nos dito que o credor não pode renunciar antecipadamente ao direito a pedir a uma
indemnização no caso de incumprimento do devedor, também não pode renunciar
antecipadamente o poder de resolução no caso de incumprimento do devedor, e não pode ainda
renunciar antecipadamente à possibilidade de agredir o património do devedor para a satisfação do
seu interesse em espécie ou em equivalente. No âmbito dos direitos de personalidade, a situação
é semelhante – não é possível a renúncia antecipada dos direitos, como dita o artigo 81.º.
Tudo isto mostra que a ordem jurídica se preocupa com uma autonomia privada que se
expresse na realidade, em condições de ser efetivamente exercida, e de modo atual, pelo sujeito. A
renúncia antecipada a proteção de direitos de crédito não é, portanto, permitida.
A autonomia privada nem sempre tem condições fácticas de exercício em algumas
áreas. Uma das exceções do seu exercício é a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, nesta
contratação a ordem jurídica indo mais além e não permitindo cláusulas que, noutras
circunstâncias, seriam permitidas. A ordem jurídica desinteressa-se pelo conteúdo do acordo, regra
geral, mas além das CCG, temos, por exemplo, a exceção do negócio usurário, no artigo 282.º. A
ordem jurídica não reage à simples desproporção do contrato, mas basta que o mesmo seja
desiquilibrado para que seja anulável por usura, através da combinação entre elementos objetivos e
subjetivos. ). Esta é uma cláusula geral de grande amplitude, que permite tutelar as situações mais
gritantes de injustiça do conteúdo do contrato, porque essa faz, pelo menos, presumir que houve
alguma deficiência da vontade, e que alguém se aproveitou da situação de dependência, de
ligeireza, que de outra forma, de acordo com padrões de normalidade, não levaria as pessoas a
negociar.
A questão aqui é saber se o negócio profundamente injusto e desiquilibrado tem ou não
validade na ordem jurídica portuguesa, porque, se virmos a autonomia formal, como
possibilidade abstrata de autodeterminação, estes negócios são válidos, mas se defendermos um
conceito material da autonomia privada, devemos então respeitar a autonomia privada quando
se encontre dentro dos limites daquilo que é uma justiça mínima – aqui, falamos de um princípio
da justiça contratual. (É exemplo o abuso de direito. Para mostrar que a autonomia privada é, no
Direito, entendida em sentido ético-jurídico, entende-se que a mesma é livre, mas não significa
isso que o sentido das suas ações seja totalmente indiferente para o Direito, porque é exigido um
mínimo de
compatibilidade entre a forma de exercício da autonomia privada e os valores de Direito. O
indivíduo que incorre em abuso de direito age ao abrigo de uma permissão normativa específica,
mas o seu exercício pode ser ilegítimo, na medida em que a sua autodeterminação ofenda valores
da ordem jurídica, sob os quais não tem autoridade e sob os quais a sua liberdade é eticamente
comprometida.)
Em suma, não está desconectada da capacidade de cada um de nós autodeterminar aquilo
que é justo e aquilo que é bom. A autonomia privada, como valor do Direito, é-o no seu sentido
material, conforme os valores do ordenamento.

Princípio da boa-fé

A boa-fé é um conceito indeterminado, que permite uma certa osmose entre o sistema de
normas rígidas e todo o ambiente cultural da sociedade. Tem uma carga valorativa: ao exigirmos
condutas segundo a boa-fé, estamos a recusar comportamentos que só formalmente se adequam à
finalidade do Direito; a norma é apenas um instrumento da realização do Direito, a boa-fé é o que
permite que a ordem jurídica encontre a justiça.
A boa-fé tem extrema relevância no Direito Civil português, particulamente nas relações
jurídicas. Não é uma fonte de obrigações, mas um comando do modo como as partes se
relacionam e se comportam nesse relacionamento, o seu objetivo sendo a justiça material das
relações jurídicas, estando em causa o modus faciendi do credor e do devedor, que pode estar
relacionado com várias manifestações desse comportamento: por vezes, trata-se do modo de
prestar, outras vezes, trata-se da desproporção. (Neste último caso, o Tribunal tem o papel de
sancionar comportamentos contrários à boa-fé, através de indemnizações ou da determinação de
inexigibilidade, por exemplo.)
A boa-fé desenvolveu-se ao longo dos séculos, não sendo entendida, no Direito Romano,
como uma noção do direito subjetivo; mais tarde, na Idade Moderna, a expressão germânica
atribui- lhe o significado de “fidelidade e fé”, consistindo na lealdade das relações entre pessoas,
sendo um vetor que transcende as particularidades culturais, no espaço ou no tempo. Ela existe até
como justificação de mandamentos elementares, como o de que o contrato deve ser cumprido,
como dispõe o artigo 406.º, ainda que o artigo não a refira.
O nosso Código Civil atribui-lhe duas aceções:

− A boa-fé em sentido subjetivo, quando a entendemos como um estado do sujeito.


Aqui compreende-se uma atitude pessoal, daquele que acredita no comportamento de
outro. A ordem jurídica conexiona essa atitude do sujeito a consequências favoráveis
a si, por outro lado atribuindo consequências negativas àquele que age de má-fé. (Por
exemplo, adquire por usucapião mais depressa aquele que está de boa-fé do que
aquele que não está; no artigo 243.º/1, os simuladores não podem opor a simulação a
terceiros de boa-fé. A boa-fé é, aqui, utilizada para proteger as pessoas.) Entendemos
que o estado de sujeito é um estado meramente psicológico, em que há a ignorância
de determinado facto e a representação de determinada realidade, ou entendemos que
não basta a representação do sujeito, sendo necessária a justificação, compreensível e
razoável, da mesma? Bastar-nos-á que se ignore a violação do direito de outrem, ou é
necessário que essa ignorância seja justificável? A orientação geral da doutrina
portuguesa vai no sentido de uma conceção ética da boa-fé subjetiva, sob pena de
haver o benefício de alguém que não o merece, pelo que deve haver uma justificação
para a ignorância de determinados factos. (No entanto, não se descartam situações
em que a boa-fé possa ser entendida no sentido de uma conceção psicológica, como
é o caso do artigo 243.º – não é exigível que o sujeito tenha um desconhecimento
justificado, basta desconhecer a simulação do negócio. Não faz sentido proteger os
simuladores, porque eles próprios procuraram defraudar as expectativas dos
terceiros.)
− A boa-fé em sentido objetivo, quando a entendemos como uma regra de conduta,
como um padrão de aferição de situações jurídicas. (São exemplos o artigo 227.º/2,
que refere que as partes devem agir de boa-fé na celebração do acordo, o artigo
239.º, reference à integração de lacunas, o artigo 334.º, quando ao abuso de direito, e
o artigo 437.º, relativo à alteração superveniente das circunstâncias). A boa-fé em
sentido objetivo é considerada um dítame, um critério de resolução de litígios, de
questões jurídicas. Fora destes casos, a maior parte das referências da boa-fé na
jurisdição portuguesa estão relacionadas com a representação das partes e, portanto,
com a boa- fé em sentido subjetivo.
Várias vezes se coloca a questão: boa-fé como princípio ou como regra? A boa-fé não é
propriamente uma regra de conduta, pois a sua noção comporta várias aceções. A regra de
conduta, segundo a boa-fé (que nos surge no artigo 762.º/2), não deixa de ser importante, porém
convém ter em conta a boa-fé no seu conjunto e não apenas como tal. É uma noção ampla, da qual
emergem vários institutos, como a culpa in contrahendo (artigo 227.º) e a alteração das
circunstâncias (artigo 239.º).
Apesar de vários autores considerarem que a boa-fé é um princípio do Direito das
Obrigações, no entanto, CARNEIRO DA FRADA entende que a mesma é uma regra, uma ideia
reguladora, que não só regula as matérias como determina consequências de natureza jurídica.
A boa-fé comporta várias funções:

− A função integradora, enquanto critério de integração do negócio jurídico, de


relações jurídicas incompletas. Havendo uma lacuna, a boa-fé intervém de forma a
solucionar essa incompletude.
− A função sindicante/regulativa, relativa ao comportamento do sujeito. Surge-nos no
artigo 334.º, quanto ao abuso do direito, no qual a boa-fé tem o poder de controlar,
sindicar e vigiar um espaço de liberdade, pois este espaço de liberdade não pode
ultrapassar os limites por esta impostos. Aparece também no artigo 437.º, que dispõe
que a boa-fé é o conceito-chave para entender se o contrato é suscetível de
modificação ou não, quando há alteração das circunstâncias.
− A função protetora, relacionada com a boa-fé subjetiva, que protege e beneficia o
sujeito, contendo disposições pessoais que a ordem jurídica garante ao cidadão. A
boa- fé protege as expectativas, tendo um papel na tutela da confiança. Há também a
proteção da boa-fé alheia (por exemplo, artigos 898.º e 899.º).
− A função fundamentadora, relacionada com os deveres que não estão positivados,
mas acompanham a relação obrigacional desde o seu nascimento, encontrando-se no
seu núcleo vital até que a mesma se extinga. Exige-se uma conduta segundo a boa-fé,
um comportamento devido. Podemos contrapor a boa-fé aos bons costumes: a boa-fé
é mais exigente, porque a pessoa, em relação, tem mais deveres do que isoladamente.
A ordem jurídica é incapaz de disciplinar a totalidade do comportamento das
pessoas, não tendo critérios concretizados, sendo a ordem da vida muito mais ampla.
A boa-fé é quem dá esse critério. A boa-fé expressa padrões objetivos de conduta,
não dependentes das representações dos sujeitos.
Os deveres que emanam da boa-fé são deveres das partes.

Pode haver o não cumprimento das disposições de boa-fé, sendo dessa conduta desleal e
egoísta que surgem vários conflitos obrigacionais. Não se impõe a nenhuma das partes a
prossecução dos interesses da outra parte, cada uma seguindo os seus, no entanto é imposto que se
tenham em conta, minimamente, não se podendo prejudicar a utilidade dos mesmos.
O elenco dos deveres emanados da boa-fé é infindável, e existem várias formas de
organização dos mesmos. De acordo com MENEZES CORDEIRO, existem três categorias:
os deveres de
informação, os deveres de lealdade e os deveres de proteção. CARNEIRO DA FRAD discorda,
agrupando as funções de proteção com características do comportamento, preferindo um critério
que divide os deveres emanados da boa-fé em duas categorias: os que servem o fim da relação
obrigacional, e os que estão ao serviço da realização do interesse da contraparte.

A ideia de boa-fé desenvolve várias dimensões regulativas, sendo uma das mais importantes
a disposta no artigo 334.º do Código Civil – o instituto do abuso de direito (por ofensa dos
dítames da boa-fé). (Devemos considerar o abuso de direito um instituto? Alguns autores
consideram que não, visto que temos aqui uma figura fragmentada, não podendo falar de uma
unidade, e sendo a unidade um pressuposto para que exista o instituto. No abuso de direito, temos
preocupações de justiça material, de equilíbrio de posições e uma tutela de confiança.)
O princípio do abuso de direito como manifestação da dimensão regulativa da boa-fé tem
carácter geral, aplicando-se a todos os domínios do Direito Privado. Temos uma disfunção entre
aquilo que está formalmente permitido pela ordem jurídica ao sujeito, e aquilo que corresponde à
sua vontade mais profunda. A liberdade é permitida, mas não é indiferente para o Direito
como a mesma é exercida.
O abuso do direito expandiu-se amplamente, primeiramente através da discussão teórica, que
contrapunha:
− As teorias internas, que defendem que quem está a exercer o seu direito não tem
direito, pelo que o abuso seria, no limite, dispensável quando há uma falta de direito,
quando ele nem sequer existe.
− As teorias externas, que dizem que o sujeito pode ser proprietário (por exemplo), no
entanto existem condicionantes à propriedade, que efetivamente limitam o seu direito
(de propriedade). Durante grande parte da história do Direito Civil, encontrar norma
onde sustentar estas limitações não foi fácil, não existindo nada escrito; havia algo
externo a limitar o direito, porém não se sabia como fundamentar esse limite externo.
No entanto, hoje esta dificuldade desvanece, dando lugar a uma ordem jurídica
sujeita a camadas de abstração, a valores intrínsecos do ordenamento. A partir
destes valores, surgiu o artigo 334.º do Código Civil, que diz que os limites ao
uso do direito são o fim económico-social do Direito, a boa-fé e os bons
costumes.
− Para os positivistas, que defendem um sistema de normas apenas, a
justificação atribuída pelas teorias externas não seria possível, só as teorias
internas servindo. Remetemos, aqui, para a teoria tridimensional do
Direito, de
MIGUEL REALE, segundo a qual o Direito assenta em três pilares: o facto, a
norma e o valor. Esta teoria aplica-se ao abuso do direito, na medida em que
aquilo que determina que certo direito não pode ser exercido em função de
determinadas circunstâncias são os factos.
Numa situação de abuso de direito, o direito é exercido de uma forma que a ordem jurídica
condena, aplicando-se, nas situações limites, que são os atos emulativos, em que um sujeito atua
com a intenção de prejudicar o outro. Os atos emulativos são atos que a a ordem jurídica
dificilmente tolera. A consequência é a ilegitimidade do exercício do direito, que se pode dar sob
muitas formas: preclusão do exercício do direito, total ou parcial, entre outras, dependendo do tipo
de direito e exercício em causa. Viola gritantemente as exigências éticojurídicas do
comportamento, bem como os bons costumes. Contudo, é a última ratio, tendo aplicação
subsidiária.
As modalidades de abuso do direito são:

− Venire contra factum proprium, que consiste numa contradição de comportamentos.


O indivíduo dá a entender que vai adotar uma determinada conduta, mas atua de
modo diferente, prejudicando com isso a contraparte que confiou na constância e
coerência do seu comportamento, e orientando a sua vida confiando nela, vendo
depois as suas expectativas defraudadas. Encontra-se, por exemplo, na culpa in
contrahendo, artigo 227.º, em que alguém dá a entender que vai cumprir o contrato
até ao fim, e depois não o faz. Será necessário, contudo, diferenciar duas situações:
se o indivíduo atua no âmbito da liberdade que tem, podemos ter esta situação; se o
indivíduo está vinculado à produção de um dever, então já não existe esta situação,
pois aí se o indivíduo não cumprir já está a incorrer no não cumprimento, o que já
está fora do âmbito de liberdade. Por outro lado, quando se verifique estarmos no
âmbito da primeira hipótese, o venire é lítico ou ilícito? É lícito, pois a pessoa pode
mudar de critério, é livre para pensar de modo diferente hoje, do que pensou ontem.
O problema não é o da sua ilicitude, não está na mudança de comportamento em si,
mas sim que, às vezes, a nossa atitude incoerente acaba por desencadear em outrem
uma situação de prejuízo que a ordem jurídica precisa de reparar, ou seja, o problema
está na frustração das expectativas do sujeito que acreditou, sendo violada a
confiança. Assim, para haver venire contra factum proprium é preciso que a
mudança de comportamento lese a confiança de outrem. (Por exemplo, no que toca à
rutura das negociações, ela em si é um ato perfeitamente lícito, porque não há
obrigação de contratar, por isso não há culpa in contrahendo, não há violação da boa-
fé. Mas o que é certo é que não se deixa
de justificar uma responsabilidade por uma expectativa gerada – é uma
responsabilidade por atos lícitos. Na rutura das negociações temos uma verdadeira
situação de venire contra factum proprium. Olhando especificamente para as
situações de violação de prescrições de forma: a forma, em princípio, é para ser
observada. Há, no Direito português, casos em que não se pode alegar vícios de
forma? Por exemplo, o dono de um café exige de volta o café que trespassou, em
virtude da nulidade do contrato, por falta de forma, sendo que sabia que era
necessária escritura pública. Cria- se, na outra parte, a expectativa de que está tudo
bem e mais tarde há problemas. Nestas situações, para CARNEIRO DA FRADA, é
pensável a existência de inegabilidades formais mas, apesar disso, o venire poderá
ajudar a corrigir consequências irreparáveis e indesejáveis. Aqui, o venire não
significa necessariamente que o sujeito tenha tido um propósito inicial, como a
reserva mental. O artigo 286.º não manda o Tribunal declarar a nulidade, diz que o
pode fazer, então perante a situação tem de ver se é oportuno declarar a nulidade ou
não. Segundo CARNEIRO DA FRADA, o vício de forma pode ser, em alguns casos,
invocado, e a contraparte pode ser protegida através de indemnização – há uma tutela
para quem confiou, mas é uma tutela que não opera através da paralisação do direito
de invocar a nulidade, mas sim através do mecanismo indemnizatório.)
− Supressio, neutralização ou preclusão do exercício, quando há a supressão do
direito em virtude de não ser exercido por muito tempo, levando a contraparte a crer
que já não vai ser exercido e criando assim expectativas. (Por exemplo, um
fornecedor decide suspender o fornecimento em virtude de queixas da contraparte
por defeitos, a contraparte não disse nada e passados dois anos reclama prejuízo de
mora – se a contraparte queria que o fornecimento continuasse, porque precisava das
mercadorias, deveria tê-lo dito num prazo de tempo razoável; não que não tenha o
direito, mas criou expectativas na contraparte.) A diferença em relação ao venire
contra factum proprium é que, neste, há uma conduta que induz confiança e depois
há uma contradição, ao passo que na supressio há uma omissão, há um não-exercício
prolongado do direito e, muito mais tarde, uma manifestação – toda a gente sabia,
mas ninguém fez nada, ninguém se manifestou, e mais tarde vieram reclamar. Na
supressio, temos um lapso de tempo excessivo entre o surgimento de um direito e o
seu exercício. Qual o problema da supressio? Pode acontecer que se encurtem prazos
de caducidade. Quem estiver dentro do prazo, à partida pode atuar, por isso dentro
do prazo de caducidade
não se devem criar expectativas. Mas se os prazos são muito longos, é concebível, a
título de exceção, que se invoque o abuso de direito. (Por exemplo, uma empresa dá
uma gratificação aos trabalhadores, que não consta dos seus salários para efeitos de
Segurança Social – não é obrigatório, por isso pode ser negado a qualquer momento,
mas podemos vislumbrar situações em que negar a concessão, à boca da concessão
desse benefício, pode prejudicar uma expectativa legítima, até porque era habitual.)
− Tu quoque, situação em que alguém exige determinado comportamento à contraparte,
quando nem essa pessoa prestou aquilo que se encontrava obrigado. Não se trata de
proteger a confiança, trata-se de introduzir alguma moralidade e senso na relação
jurídica. É uma contradição grave do comportamento, ninguém pode alegar perante
outrem aquilo que não cumpriu. (Por exemplo, alguém que incumpre vem exigir o
cumprimento pontual da contraparte. Ou um senhorio que não faz reparações na casa
e, quando o inquilino desocupa o locado, por não o poder ocupar, o senhorio intenta
uma ação de despejo com fundamento na desocupação.)
− Inalegabilidade formal ou exercício desproporcionado dos direitos, quando há
uma desproporção entre o proveito que vai causar a um indivíduo e o prejuízo que
vai causar a outrem. O abuso de direito dá margem para a aplicação deste
pensamento da proporcionalidade: a vantagem que o exercente de uma posição
jurídica pode obter não há de ser à custa da lesão excessiva da contraparte, deve
haver proporção. (Por exemplo, o sócio de um banco, que detinha uma pequena
quantidade de ações, não foi convocado para uma deliberação, porque se entendia
que a sua posição não ia alterar em nada a deliberação – parece desproporcionado
admitir ao sócio não convocado a possibilidade de anular todo o processo, com
grandes prejuízos para muitas pessoas. Reconhece-se a existência da sua posição
jurídica, ele devia ter sido convocado, e por não ter sido tem direito à anulação da
deliberação, mas há limites: o que está certo para a normalidade das situações, pode
não estar numa ou outra situação.) Há casos em que a desproporção não pode ser
invocada. (Por exemplo, um senhor que não aceita a colocação de um aerogerador
num terreno seu que não tem nada – o prejuízo do proprietário do terreno seria pouco
ou nulo e o investidor teria um enorme proveito, mas o direito de propriedade
prevalece, é um direito absoluto, o proprietário faz o que entender,
independentemente da desproporção.) Nos direitos de natureza obrigacional, o
exercício desproporcionado de posições jurídicas pode consubstanciar abuso de
direito, mas nos direitos absolutos parece que não.
Assim, no âmbito de posições jurídicas absolutas em que cabe ao sujeito decidir o
que quer fazer, o principio da proporcionalidade não se aplica, pois o pensamento da
proporcionalidade não serve para limitar direitos nem para retirar direitos que se
tenha efetivamente na esfera jurídica.

Tutela da confiança

Alguns autores consideram que a tutela da confiança é outra vertente da boa-fé, um dos seus
dois objetivos (sendo o outro objetivo a justiça material/substancial). No entanto, para outros
parece entender-se que a tutela da confiança é frequentemente confundida com a tutela do abuso
de direito ou da boa-fé, apesar de se tratarem de figuras distintas. Na boa-fé, está em causa a
correção do comportamento das partes, censurando-se condutas desleais. Já na tutela da confiança,
está em causa a proteção de situações em que, embora não haja um comportamento
incorreto, desleal ou desonesto de uma das partes, o mesmo comportamento gerou
expectativas cuja violação causou danos. A boa-fé protege a confiança, mas não se confundem
as duas.
De acordo com CARNEIRO DA FRADA, não é possível construir o direito com base na
confiança. A confiança de uns contrapõe-se à confiança de outros, surgindo conflitos, pelo que a
boa-fé não é o critério ordinário e decisivo da resolução dos mesmos. Os critérios são materiais e
prescindem da representação material dos sujeitos. Cada um tens as suas convicções, e o direito
não pode cair na subjetividade individual.
No entanto, e apesar da confiança, enquanto tal, não ser o critério ordinário de resolução de
conflitos, não significa que não possa ter consequências especificas enquanto confiança. Há
previsão de consequências especificas para proteger a confiança (são exemplos os artigos 81.º,
245.º/2, 291.º, 899.º ou 909.º).
Quando assim é, não há dificuldade – havendo previsão, aplica-se. O problema é quando não
existem cláusulas específicas. Podemos proteger através de cláusulas gerais? Uma das
cláusulas propostas é a cláusula do abuso de direito (334.º). em que o sujeito ganha a confiança de
outrem e depois a frusta. Quando é que o abuso de direito pode existir por frustração da confiança?
Aqui, interessa-nos a interpretação dos limites impostos pela boa-fé.
Os requisitos para que haja a possibilidade de proteção da confiança são:

− A existência de um facto indutor da confiança, requerendo-se uma situação de


confiança, pois quem não a tem, não vê expectativas frustradas.
− A justificação da confiança, não bastando que o sujeito acredite em algo, mas
devendo ter motivos para ter criado a confiança. Bastando-nos na confiança,
estaríamos, no fundo, a premiar as pessoas mais descuidadas em detrimento das
mais conscienciosas. (Por exemplo, a rotura das negociações em que uma das partes
inutilize outros projetos, confiando em que dado contrato se realizaria.)
− O investimento de confiança, sobre a confiança tendo o agente erguido o conjunto
de atos de disposição, como ocorrido em custos, como tendo tomado ações que não
pode reverter, entre outros. Se não existem interesses patrimoniais, para quê
proteger? Se não perdeu ou não se arriscou a perder nada, não há nada que se deva
proteger.
− A imputabilidade àquele contra o qual se pretende fazer funcionar a proteção da
confiança, isto é, é preciso que aquele contra quem vai funcionar a tutela da
confiança tenha criado e defraudado a confiança. (Por exemplo, uma das partes
conquista a confiança de outra e depois recusa-se a celebrar o contrato posto em
perspetiva. Criou e defraudou a confiança, pelo que justifica que ela seja chamada a
suportar os custos da confiança depositada. Se temos uma pessoa que cria a
confiança, mas não foi essa pessoa que a defraudou, mas sim um terceiro, então a
pessoa que criou a confiança não responde, não havendo lugar à tutela da confiança.)
Por fim, é preciso ver se é possível uma solução justa sem proteger a confiança, ou seja,
temos de perceber se a proteção da confiança é ou não uma exigência da justiça. Se se entender
que é necessário proteger a confiança para que haja uma solução justa, temos de ver se há uma
norma específica que a proteja e, caso não haja, atenderemos à cláusula geral do artigo 334.º.
Assim, estes requisitos só chegam para proteger a confiança nos casos em que esta está ordenada
pela ordem jurídica. Fora destes casos, só pode proteger-se a boa fé ao abrigo de cláusulas gerais
se ela for uma exigência da justiça (para uma decisão ser justa não pode deixar de se atender à
proteção da confiança de uma das partes, à boa-fé, pois só assim pode ser protegida, tendo de ser
bem fundamentada).
A tutela da confiança não é absoluta, tendo de ser ponderada com outros valores da ordem
jurídica, tais como a segurança jurídica, a confiança da contraparte e a justiça. Daí que a tutela da
boa-fé prevaleça sobre a tutela da confiança.
Contudo, CARNEIRO DA FRADA entende que, numa matéria, a tutela da confiança tem
relevo particular: a rotura injustificada de negociações. Esta rotura corresponde, evidentemente,
a uma liberdade de que as partes dispõem, não podendo ser remetida aos quadros da culpa in
contrahendo. Acontece, porém, que em certas situações pode essa rotura ser censurável, tutelando-
se a pura confiança.

Princípio da responsabilidade patrimonial

No caso de incumprimento de obrigações, o esquema sancionatório da ordem jurídica


assenta numa responsabilidade patrimonial, e não numa responsabilidade pessoal, do devedor. No
entanto, existem alguns casos, de escassa aplicação prática, em que se atinge a pessoa do devedor
(é exemplo o incumprimento da obrigação de alimentos, que dá pena de prisão, porque garante a
existência física de outrem).
Como se efetiva a tutela patrimonial? Através da ação por incumprimento, que pode dar
lugar a execução específica – a partir do artigo 827.º do Código Civil. A execução específica
significa a obtenção da realização inatura da prestação, contornando, se necessário, a vontade do
devedor. Pode tratar-se de prestação de um facto fungível, por terceiro, na situação disposta no
artigo 828.º - o credor pode requerer a execução a outra pessoa, à custa do devedor. A prestação
pode, também, ser negativa (por exemplo, não erguer uma construção), e se a obrigação não é
acatada, isto é, se é prestada, segundo o artigo 829.º, podemos ter a realização em espécie do
interesse do credor, atingindo o património do devedor (por exemplo, a demolição dessa
construção).
No entanto, há situações infungíveis que não são possíveis de substituir – vejamos o artigo
829.º-A, relativo à sanção pecuniária compulsória. Esta consiste na possibilidade do credor, em
caso de incumprimento por parte do devedor, dispor de meios coativos para a satisfação da sua
posição, nomeadamente através da execução do património do devedor. Dita o artigo 817.º,
relativo à ação de cumprimento, para o qual remetemos, que é uma intimação ao devedor para que
cumpra.
Da responsabilidade patrimonial, é possível retirar três corolários, cada um com as suas
exceções:
1. O credor pode executar todos os bens do devedor, como dita o artigo 601.º. No entanto,
a responsabilidade patrimonial não é ilimitada; à partida, todo o património do devedor
responde, mas existem exceções, previstas pela Lei:
− Os bens insuscetíveis de penhora, estabelecendo-se, por esta via, a
impenhorabilidade dos bens do devedor que sejam essenciais à sua subsistência ou
dignidade, ou aqueles que, pela sua importância, devam prevalecer sobre a garantia
patrimonial do crédito (artigos 736.º a 739.º do Código de Processo Civil). (É
exemplo o salário, que não pode ser penhorado em mais de ⅓, o legislador
acreditando que ⅔ são necessários à sobrevivência; outro exemplo é que a cama
não pode ser penhorada, mas um telemóvel pode.)
− O regime dos patrimónios autónomos, que permitem a separação de certos bens
que só respondem perante determinadas dívidas e só por essas dívidas podem estes
responder. São patrimónios separados. (São exemplos a situação dos bens
adquiridos pelo mandatário no mandato sem representação, como expõe o artigo
1184.º, ou as dívidas de alguém em que só responde o seu património e não o dos
herdeiros.)
− A convenção das partes, ao abrigo da autonomia privada, em que se prevejam
limitações à penhorabilidade de bens do devedor (artigos 602.º e 603.º).
2. O credor só pode executar bens do devedor, como dita o artigo 817.º. Pelas dívidas do
devedor, só responde o seu património, e não o de terceiro que não deve. Esta é a regra
geral, porém existem as seguintes exceções:
− A garantia pessoal ou real ao crédito prestada por terceiro (artigo 818.º), que se
traduz numa corresponsabilização pelo crédito, estando o credor autorizado a atacar
os bens do terceiro que responda pela dívida, ou seja, é possível agregar outros
patrimónios ao do devedor (É exemplo o fiador que agrega o seu património ao do
afiançado. O fiador é um terceiro que responde pela dívida.)
− A impugnação pauliana (que é um meio de conservação da garantia patrimonial)
dita que pode o credor atacar os bens de terceiro, quando este os tenha adquirido
como parte de uma estratégia para diminuir ilegitimamente o património do
devedor (artigos 610.º e seguintes). Assim, esta permite ao credor impugnar atos
dolosos do devedor em seu prejuízo. Os atos gratuitos, com prejuízo da garantia
patrimonial do credor, são impugnáveis. Os atos onerosos também podem ser, mas
há um requisito: têm de ser feitos de má fé.
3. Os credores estão em pé de igualdade no momento da execução, vemos no artigo
604.º/1. Cada credor tem acautelado ao seu crédito uma ação creditória, cada um deles
pode procurar a satisfação do seu direito. Se não houver património do devedor suficiente,
ele será distribuído proporcionalmente entre os credores. Se não houver liquidação do
património do devedor para pagar as dívidas, o credor que se adiantar aos outros é
satisfeito primeiro. Quando falamos em igualdade, estamos a falar em casos em que ambos
executam o seu crédito em simultâneo. Se isso não acontece, o primeiro é o que obtém a
satisfação do seu direito. No entanto, esta igualdade pode ser afastada se, nos termos
legais, existirem causas
legítimas de preferência. Estes casos existem quando um dos credores tem direito a ser
satisfeito antes do outro, por ter garantias reais sobre o bem do devedor (por exemplo, o
credor hipotecário, o credor penhorado). Só na medida em que este seja satisfeito, pode o
restante ser entregue a outro/s credor/es. (Por exemplo, a declaração de insolvência
consiste numa liquidação universal do património do devedor, dividindo-se este pelos
credores. Ora, nesse processo de insolvência pode não haver património para todos os
credores. Imaginemos que na relação creditícia temos A que tem 1000 euros, mas deve 700
euros a B e outros 700 euros a C – o seu património não chega, sendo necessário ver a
quanto correspondem os 700 euros de cada um dos credores tendo em conta que há apenas
1000 euros. Mas, pode acontecer que haja preferência sobre um credor, ou seja, que haja
uma garantia real por parte de um deles e, neste caso, a lógica é outra: se A for credor
hipotecário, um direito real, ele tem preferência sobre os demais credores.)

FONTES DAS OBRIGAÇÕES

Teoria Geral das Fontes

Falamos da realidade que está na origem, no fundo, o facto constitutivo das obrigações. A
obrigação adquire conteúdo que varia de acordo com a fonte que a origina.
No Direito Romano, conhecíamos duas grandes fontes de obrigações: os contratos, dos
quais nasciam obrigações por vontade das partes, sendo estes a base do Direito Privado; e os
delitos, estando em causa factos ilícitos danosos, praticados com dolo ou intenção, havendo
responsabilidade delitual (remissão para a atual responsabilidade civil), dando origem a obrigações
não decorrentes da vontade, mas sim da própria Lei, pela necessidade de proteção das posições
dos sujeitos contra situações danosas. No Direito Justinianeu, acrescentaram-se dois outros pólos:
os quase-contratos, que consistiam em situações em que a vontade do sujeito parecia relevante,
mas a obrigação não requeria propriamente um contrato, sendo factos lícitos e voluntários que, não
sendo contratos pela falta de um elemento essencial dos mesmos (por exemplo, o acordo entre as
partes ou a intenção de vinculação), criavam obrigações para o autor ou para terceiro (é exemplo a
gestão de negócios); e os quase-delitos, situações de dano em que havia mera negligência, sem
dolo (descuido ou imprudência desculpável).
Até aos primeiros movimentos codificadores do século XIX, foi comum proceder-se a uma
sistematização quadripartida das fontes das obrigações. Mais tarde, acrescentou-se uma nova
categoria: a Lei. Nesta eram incluídas as espécies que, por não caberem em nenhuma outra
categoria, afirmavam ser causa a “vontade do legislador” (por exemplo, a obrigação de alimentar,
a obrigação de conceder comparticipação ao vizinho do muro ou da parede divisória, entre outros).
Sempre que a Lei determinasse a formação de uma obrigação, a mesma formava-se.
No século XIX, a classificação tradicional foi abandonada, fruto de críticas quanto à falta de
rigor científico. À figura dos quase-contratos apontava-se a falta de consistência da noção que,
enquanto classificação abrangente de uma série heterogénea de situações que pouco tinham em
comum, não conseguiu nunca construir um conceito unitário nem encontrar um acordo quanto à
lista existente de quase-contratos. ANTUNES VARELA salienta que a criação desta figura sempre
esteve relacionada com a relutância dos autores em aceitar que as obrigações pudessem nascer por
imperativo legal, solidariedade social ou por cooperação humana, até. Esteve sempre em causa o
dogma da vontade, que estabelece que uma obrigação teria origem na força criadora da vontade
das partes. Os quase-contratos vinham precisamente vencer a dificuldade de que alguém possa ser
obrigado sem o seu consentimento. A distinção entre delitos e quase-delitos tinha, no campo da
responsabilidade civil extracontratual, reduzido interesse, visto que o regime é comum à prática de
factos ilícitos culposos ou negligentes. Revela-se mais importante a distinção entre
responsabilidade proveniente da prática de factos ilícitos e a responsabilidade baseada no risco. E,
ainda, a Lei é sempre, mediata ou imediatamente, fonte e causa das obrigações, pelo que não
poderia constar desta sistematização.

Atualmente, as fontes das obrigações reconhecidas pelo ordenamento jurídico


português, presentes entre os artigos 405.º e 510.º do Código Civil, são:
− Os contratos, onde temos autonomia privada.

− Os negócios jurídicos unilaterais, onde temos autonomia privada, mas não tão
ampla quanto nos contratos.
− A gestão de negócios, que se dá quando alguém assume a direção de um negócio
alheio sem para tal estar autorizado, presente nos artigos 464.º e seguintes. (Por
exemplo, uma pessoa que cuida do animal de estimação do vizinho que está
hospitalizado – não há contrato, mas há obrigações, como reembolsar as despesas.)
São obrigações que surgem de uma conduta voluntária não contratual, podendo ser
consideradas como quase-contratos.
− O enriquecimento sem causa, que é uma figura híbrida que podemos considerar
como um quase-contrato (artigo 473.º/1).
− A responsabilidade civil, onde temos tipicamente a heteronomia (artigos 483.º e
499.º).
O nosso Código Civil segue um critério pragmático e formal de enumeração tipológica das
fontes, seguindo o que a História do Direito foi considerando como fontes. (No entanto, admite-se
que poderia ter usado critérios mais racionais, limitando-se a apresentá-las de seguida por uma
questão pragmática.)
O Código Civil não adianta se o elenco de fontes é taxativo ou exemplificativo, limita-se a
regular como conjunto de fontes, realidades aptas a fazer surgir obrigações, sem preocupações
ordenadas. Contudo, fora desta sistematização, sobram as obrigações não autónomas, nascidas
por força de vínculos sucessórios, familiares e reais (casos dispersos de responsabilidade por
factos lícitos – artigos 1348.º/2 e 1349.º/3), e a responsabilidade pré-contratual.
Assim, as fontes que vamos analisar não esgotam todas as fontes possíveis. A nossa ordem
social é uma ordem de liberdade e as obrigações têm de estar de acordo com isto, não se
vedando a constituição de obrigações por outros factos para além dos previstos na Lei. Há
que ter alguma cautela nesta consideração, pois há discussões jurídicas em torno da aptidão de
determinadas situações para gerar obrigações, como é o caso da boa-fé (CARNEIRO DA FRADA
entende que não é uma fonte, pois esta determina o modo de as cumprir, mas não gera, só por si,
deveres de prestar), da confiança e das relações contratuais de facto. Estas não constituem
obrigações, mas modos de comportamentos em obrigações já existentes. Não são deveres de
prestar, mas de conduta. Tirando estes casos, temos um elenco de fontes estável.

No âmbito das fontes das obrigações, distinguimos:

− Os atos lícitos, sendo atos humanos contratuais ou traduzidos em negócios jurídicos


unilaterais, e os atos ilícitos, nos quais se enquadram os delitos e a responsabilidade.
− Os factos constitutivos de obrigações (exemplo da responsabilidade pelo risco, do
enriquecimento sem causa e da gestão de negócios).
À partida, só a vontade do sujeito pode conduzir à constituição de obrigações, e as fontes
devem respeitar a ideia de liberdade subjacente ao Direito Privado e Civil – é um direito de
autonomia. Fora da vontade do sujeito, só haverá constituição de obrigações quando a Lei o diga
expressamente. Temos, portanto, autonomia e heteronomia. A obrigação que advém de um
contrato resulta da vontade das pessoas, mas a obrigação decorrente de um delito não resulta da
vontade, impondo-se ao sujeito heteronomamente. Se não prejudicarmos os outros, se não
cometermos delitos, temos a nossa esfera de liberdade. Só incorremos em obrigações que nos são
impostas se efetivamente prejudicamos alguém, dolosa ou negligentemente. Se somos livres, é
preciso fundar a existência de obrigações, e percebemos que elas surgem ou porque há um negócio
ou porque prejudicamos alguém.

OS CONTRATOS

Os contratos são, desde sempre, a fonte mais relevante de obrigações, mas também são
fontes de direitos reais, familiares e sucessórios.
O contrato é o ato jurídico vinculativo composto por duas ou mais declarações de vontade de
sentido tendencialmente oposto, mas que convergem num mútuo acordo, visando produzir efeitos
jurídicos coincidentes com o teor das vontades declaradas. Assim, o seu elemento essencial é o
consenso (artigo 232.º), acordo das partes, havendo um ato de autodeterminação, que é uma
manifestação de excelência de autonomia privada, sendo muito importante, pois as partes
atribuem- se a elas próprias, efeitos jurídicos que as vinculam. Temos autonomia privada a
manifestar-se na liberdade de celebração e liberdade de modelação dos contratos.
Para que haja contrato, é necessário que a aceitação cubra todos os pontos da proposta,
que deve abranger todos os elementos essenciais da negociação, de modo a não ser considerada
um simples convite a contratar. Se o destinatário da proposta não a aceitar integralmente,
considera-se recusada, havendo uma nova proposta até que o acordo se alcance (artigo 233.º). Para
que haja contrato, é essencial que as partes queiram um acordo juridicamente vinculativo e não um
acordo de mera obsequiosidade ou um acordo de cavalheiros.
Qual é o fundamento da vinculatividade do contrato?

− O entendimento clássico considera que a razão mais forte é que há um preceito


moral de honra e lealdade que manda que a palavra dada seja cumprida. Há uma
veracidade da palavra, a fiabilidade naquilo que o sujeito diz que é contrária à
mentira. O fundamento da vinculatividade do contrato está na natureza ética da
pessoa que é um ser ético, livre, capaz de se comprometer, e por isso é que os
contratos vinculam. Há um mandamento ético que diz que se a pessoa se
comprometeu, tem de cumprir. Então e os contratos celebrados por pessoas
coletivas, que não têm vontade ética? Aqui talvez o fundamento da vinculatividade
do contrato não possa ser este. Mas estamos a falar de paradigmas, de referentes.
− O contrato vincula pela necessidade de respeitar e proteger a confiança daquele
que acredita na vontade de outrem – é a tutela das expectativas e a proteção da
confiança e segurança jurídica da contraparte como razão de ser da vinculatividade
do contrato. Se o sujeito não confia o contrato não vincula. No entanto, e apesar da
sua importância, é essencialmente complementar da primeira razão, de acordo com
CARNEIRO DA FRADA. Apenas algumas expectativas são protegidas, pois a
verdadeira causa e justificação da confiança está na primeira razão (na virtude ética
da lealdade e fiabilidade), pois acredita-se que se a pessoa se compromete, cumpre a
sua palavra.
− O contrato é a forma mais eficiente de regular as relações humanas, garantindo a
paz social (HOBBES, LOCKE, ROUSSEAU), isto é, é um instrumento para um
modelo de sociedade que precisa de viver em paz. Repartem-se os encargos entre as
pessoas e atribui-se vinculatividade ao contrato. Contudo, é preciso explicar porque é
esse mecanismo que garante a paz, pois sendo importante para isso, fica por explicar
porque se assegura a paz desse modo, e não de outro, por exemplo, através de um
Estado policial que tudo planeie e distribua heteronomamente. Não é por terem dado
bom resultado que as pessoas podem contratar, e com proveito económico. É um
aspeto importante, mas a razão de ser do Direito não é a Economia, embora se
reconheça que o contrato tem uma função importante na economia de mercado, pois
toda a atividade empresarial e concorrencial livre assenta na liberdade contratual,
mas não é verdade que a preservação do contrato seja ou conduza inevitavelmente a
um sistema capitalista. Este privilegia, dos três fatores de produção da economia
clássica (terra, trabalho e capital), o capital sobre os outros dois. Não é isso que o
sistema de mercado implica, este pode ser compatível com um sistema que privilegie
o trabalho. O que se quer dizer é que a sociedade do Direito é uma sociedade livre.

O contrato, se não pode deixar de ser valorizado pela sua ligação à liberdade e sentido ético
do sujeito, que pode como ser racional produzir consequências jurídicas próprias pelo exercício da
sua vontade, tem sofrido algumas crises.
Há uma certa corrosão deste ideário do contrato: por um lado, a expressão tem sido usado
em vários sentidos, inclusive no contexto político; por outro lado, proliferam hoje muitas
obrigações de contratar, pelo que não se sabe onde está a autonomia privada e a liberdade
contratual nestes casos, pondo em causa a ideia de quem decide, como e quando se compromete.
Encontra-se, em muitos setores, a liberdade contratual diminuída, embora existindo, sendo
restringida (exemplo das cláusulas contratuais gerais). Além disso, há uma forte intervenção
legislativa no domínio dos
contratos, que não dependem da autonomia privada e que servem para proteger a parte mais fraca
(exemplo das leis de garantia dos consumidores). O dirigismo económico tem também
implicações no domínio contratual, de reorganização da economia e redistribuição da riqueza que
são normas de ordem pública de proteção, mas também de intervenção na economia (exemplo das
leis que incentivam a fixação de empresas em determinadas zonas). O juiz também pode
conformar o contrato (exemplos como a moderação de uma cláusula penal excessiva, ou a
modificação do conteúdo do contrato após a alteração superveniente das circunstâncias, etc.).
Apesar destas tendências e configurações atuais, os contratos continuam a florescer, pelo
que se tem dito que as expansões dos contratos para estes planos só revelam a enorme
fecundidade da figura dos contratos, que ultrapassa as suas barreiras naturais, para ocupar um
espaço que nenhum outro instituto jurídico alguma vez conseguiu preencher.
Na nossa tradição continental, o contrato implica um consenso, mas na tradição anglo-
saxónica, ao consenso pouco relevo se dá, falando-se antes de promessa (é o que vincula o
contrato). Há promessas recíprocas nas relações obrigacionais, pelo que os contratos obrigacionais
são consensos em torno de promessas. No entanto, é certo que os contratos também podem ser
reais, familiares e sucessórios, que têm efeitos que não são promessas. Não obstante, é um sistema
similar que dá a mesma resposta aos problemas fundamentais. Os americanos têm dificuldade em
distinguir promessas vinculativas de não-vinculativas.
Há imensas promessas feitas na vida social do quotidiano que não merecem a tutela do
Direito. Em Portugal, a generalidade da doutrina interroga-se apenas da existência ou não de
contrato. Se houve, há efetivamente possibilidade de levar a questão ao Tribunal, exigindo-se o
cumprimento, já se não houver, nem se pensa porque é que não há contrato. Assim, não se dá
relevância às promessas não-vinculativas. Para os americanos, a promessa é vinculativa mediante
a verificação de certos elementos, nomeadamente, a correspetividade da prestação (têm uma
consideration), pois dá seriedade à promessa. Têm acoplada uma contraprestação, um sacrifício
que justifica que elas sejam levadas a Tribunal se não forem acatadas (por exemplo, se tiver sido
dado um sinal, há justificação). Nas promessas simples, pelas quais não há que prestar nada em
troca, suscitam-se dúvidas se serão vinculativas ou não. (Vejamos o exemplo do caso do padrinho
que promete ao afilhado que lhe compra um carro se passar no exame de condução, e este passa.)
Entre nós, exigimos então o consenso: que as partes se comprometam reciprocamente e
que haja uma vontade de produção de efeitos jurídicos.
Os contratos pautam-se por um princípio da relatividade contratual (artigo 406.º/2), em
que não podemos ser confrontados com obrigações que não assumimos, pelo que os efeitos
jurídicos dos contratos só vinculam as partes que os determinaram, embora haja exceções. O
contrato institui uma espécie de lex privata entre as partes. Da mesma forma que só por acordo é
possível constituir ou modificar o contrato, também só se pode extinguir o contrato por acordo, a
não ser quando a Lei o dispense em certas situações. Surge, também, a este propósito, o princípio
da legalidade do contrato. Nos termos dos artigos 443.º e seguintes, a Lei admite que o contrato
tenha efeitos em relação a outras pessoas (por exemplo, no seguro de vida, o terceiro que não foi
parte do seguro pode reagir contra a seguradora). Contudo, a regra é a relatividade.
O artigo 408.º refere que os contratos podem ter eficácia real, podendo produzir efeitos
reais por si só, sem necessidade de um ato ulterior, mas isso só opera em relação aos contratos
sobre coisas determinadas. (Por exemplo, se vendo um livro a A, há um efeito real sem
necessidade de um ato, mas se A vende a B cinco ovelhas do seu rebanho, é preciso saber quais
são as ovelhas, é preciso individualizá-las, pois só existem direitos reais sobre coisas
determinadas.) O contrato de compra e venda tem eficácia real, que é a transferência da
propriedade da esfera do vendedor para a do comprador. Há um efeito real suscetível de ser
produzido por mero acordo das partes, basta o consenso. Há outros ordenamentos nos quais só se
gera a obrigação de entregar a coisa e não o direito sobre ela (atribui-se à outra parte o poder
fáctico de a exigir, sendo preciso um ato material), fazendo-se através da inscrição do registo, que
é facto constitutivo do direito. Entre nós, o registo só tem efeito declarativo, pelo que só
declara aquilo que já está constituído. (Só há um caso em que o registo é constitutivo, que é no
caso da hipoteca.) [O artigo 409.º dita que, no caso de não cumprimento do comprador (artigo
886.º), a propriedade transferida não volta à esfera do alienante, por isso há interesse na cláusula
de reserva de propriedade, que pode ser feita através de condição suspensiva (o vendedor transfere
a propriedade quando for pago) ou resolutiva (o vendedor transfere a propriedade, mas o contrato
resolve-se se o preço não for pago).]

Aos contratos aplicam-se também determinados princípios: o princípio da autonomia


privada, o princípio da justiça contratual e o princípio da tutela e proteção da confiança nos
contratos.
O princípio da autonomia privada também é de extrema relevância para os contratos, sem
o qual não poderia existir o contrato. A liberdade contratual é, de um modo mais genérico,
corolário do primado da autonomia privada no Direito Civil. Esta consiste no poder do indivíduo
gerir os seus interesses, fixando de forma independente as regras que o vinculam nas relações com
os outros.
No artigo 405.º, podemos ver que é a Lei que dá aqui o testemunho que a liberdade privada é
o princípio que enforma principalmente a relação obrigacional, funcionando os outros como
subordinados a ele. Em princípio, a Lei não se mete naquilo que as partes querem. Temos um
modelo informativo e de tutela da informação, pelo que, o que importa à Lei é que a pessoa esteja
bem informada daquilo que vai contratar, dos efeitos que daí advirão e que a sua vontade seja livre
(isenta de coação externa) e esclarecida. Se assim for, a Lei, em princípio, autoriza a vinculação
das partes à sua vontade. Tudo o que não é proibido é permitido.
A liberdade contratual é decomposta em três: a liberdade de contratar (podendo aceitar ou
recusar); a liberdade de escolher a contraparte; e a liberdade de modelar o conteúdo do
contrato (através da possibilidade de celebrar contrato típico, atípico e de aditar a qualquer um
desses cláusulas que melhor convenham aos interesses que se visa prosseguir como é o caso da
condição e do termo). O exercício de qualquer uma destas liberdades pressupõe o respeito dos
requisitos exigidos a todos os negócios jurídicos, nomeadamente no que toca à capacidade
negocial dos sujeitos, aos requisitos de forma de certos negócios, entre outros. Esta é a regra
geral, mas há exceções (por exemplo, o artigo 282.º, sobre a desproporção de vantagens para uma
das partes, isto é, negócios usurários; o artigo 437.º, que admite a resolução ou modificação do
contrato pela alteração das circunstâncias; o artigo 280.º, que diz que tem de ser conforme a Lei,
bons costumes e ordem pública), que são situações em que a ordem jurídica se preocupa.
No que respeita aos limites que as dimensões do princípio da liberdade contratual sofrem:

− Quanto à liberdade de contratar, temos o dever de contratar (nos casos do


contrato- promessa, em que a parte se obriga à celebração de determinado contrato,
como dispõem os artigos 410.º e seguintes; a obrigação de contratar diretamente
decorrente da Lei, como é exemplo a constituição de certos seguros por
responsabilidade civil; a obrigação de contratar de empresas concessionárias de
serviços públicos, como água ou gás; as profissões de exercício condicionado em que
a Lei e os estatutos profissionais exigem determinada habilitação ou ato de inscrição,
como os médicos que não podem recusar prestar assistência em casos urgentes; a
venda de bens e serviços considerados essenciais, quando a Lei explícita ou
implicitamente imponha essa obrigação), a proibição de contratar com
determinadas pessoas (venda de coisas feita por pais a filhos ou por avós a netos,
artigo 877.º; doações a favor de pessoas abrangidas por indisponibilidades relativas,
que vemos nos artigos 953.º, 2192.º e 2198.º; a cessão e venda de direitos ou coisas
litigiosas, como dispõem os artigos 579.º e 876.º) e a necessidade de
consentimento de terceiros (artigos
1682.º/3, alínea a, e 1682-A; artigo 153.º/1; artigo 1889.º; artigo 1938.º; artigos 139.º
e 140.º).
− Quanto à liberdade e escolher a contraparte, temos restrições resultantes da
vontade das partes (autolimitações; pacto de preferência, em que um contraente
obriga-se a escolher o outro como contraparte caso celebre certo contrato) e
restrições resultantes da Lei (direitos legais de preferência, mais fortes que os
pactos de preferência, que, regra geral, têm mera eficácia obrigacional, os direitos
legais de preferência gozam de eficácia real, opondo-se erga omnes; a exigência de
que determinados atos sejam praticados por determinadas categorias profissionais,
por exemplo aplicável a médicos).
− Quanto à liberdade de modelação do conteúdo contratual, temos requisitos do
objeto negocial (nos termos dos artigos 280.º, 281.º, 282.º e 398.º/2), os contratos-
normativos, contratos-tipo ou contratos-coletivos, que se impõem como um
padrão contratável imperativo (como são exemplo as convenções coletivas de
trabalho), as normas imperativas, que se refletem no conteúdo dos contratos (como
é o caso da imposição de respeito pelo princípio ético-jurídico da boa-fé, no artigo
762.º/2; ou o caso da imposição da duração mínima ou máxima do contrato, como
nos surge nos artigos 1025.º, 1240.º, entre outros), as normas de proteção do
consumidor e ainda as normas resultantes do diploma das Cláusulas Contratuais
Gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro).
O princípio da justiça contratual é, sobretudo, um princípio de justiça comutativa,
incluindo-se aqui um conjunto de normas que visam a proteção do equilíbrio comutativo e
justiça real ou material dos contratos (pelo que alguns autores apelidam este princípio de
princípio da equivalência das prestações).
A partir do momento em que o contrato é celebrado, a conduta das partes tem de se
confirmar àquilo que entre elas foi estabelecido, e naquilo que não estabeleceram estão
subordinadas a uma regra de equilíbrio, de proporcionalidade. BATISTA MACHADO fala numa
“cláusula do razoável”
– a partir do momento em que o sujeito celebra o contrato, fica sujeito a critérios que não estão
apenas relacionados com a sua autonomia. O equilíbrio manifesta-se num conjunto de
disposições do Código Civil, como é o caso dos artigos 237.º (regra de equilíbrio quando haja
dúvidas acerca do resultado interpretativo), 239.º (integração de lacunas de acordo com a vontade
hipotética das partes, caso tenha sido previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da
boa- fé, não podendo haver soluções arbitrárias).
O princípio da tutela e proteção da confiança nos contratos encontra-se logo no artigo
406.º, e conhecemo-lo melhor como pacta sunt servanda. É exigido o cumprimento pontual dos
contratos, só podendo haver modificação ou extinção por acordo das partes ou nos casos em que a
Lei o permita unilateralmente.
No contrato, temos dois ou mais sujeitos, pelo que tudo aquilo que diz respeito a um tem
de ser possível de ser justificado face ao outro. (Por exemplo, na interpretação, a declaração
negocial não é interpretada de acordo com a vontade do declarante, face à Lei, releva a teoria da
impressão do destinatário, significando que se está a tutelar a confiança do declaratário. É uma
necessidade de harmonizar dois interesses: uma vontade e aquilo que a outra parte entende dessa
vontade. Há que ter em conta a representação dos sujeitos para proteger a confiança dos mesmos.)
A partir do momento em que o contrato é celebrado ele torna-se vinculativo, tendo de ser
pontualmente cumprido. É vinculativo porque é a única maneira de cumprir a sua função, dando
garantias à outra parte.
Deste princípio é possível retirar dois subprincípios:

− O princípio da pontualidade, que nos diz que os contratos têm de ser cumpridos
ponto por ponto nos seus exatos termos. Disto decorrem duas consequências: o
devedor não pode cumprir com coisas diversa daquela que se obrigou, sem
consentimento do devedor (ação em cumprimento – artigo 837.º) e a proibição da
condenação in id quod facere potest, isto é, a exclusão da condenação naquilo que
pode fazer (por exemplo, não se reduz o cumprimento da prestação àquilo que o
devedor pode fazer). O devedor não pode invocar a sua situação económica para
obter um benefício de cumprimento, o devedor tem de realizar a prestação
integralmente e não por partes. Se o devedor se oferecer para cumprir apenas parte, o
credor pode recusar, incorrendo o devedor em mora quanto à prestação em falta. Se o
credor aceitar parte, o devedor fica em mora quanto ao restante, exceto se houver o
alargamento do prazo de cumprimento. Se o credor exigir apenas parte, o devedor
pode cumprir por inteiro. Nos termos do artigo 763.º, o cumprimento parcial
apenas é possível quando a Lei, os usos ou as partes assim o entendam.
− O princípio da estabilidade do cumprimento dos contratos, que tem duas
consequências: a irrevogabilidade do vínculo contratual (as partes não podem
desvincular-se unilateralmente do contrato, exceto nos casos previstos na Lei, diz o
artigo 406.º) e a imodificabilidade ou intangibilidade do conteúdo contratual (as
partes
não podem modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, exceto por consenso das
partes ou nos casos que a Lei admita, dito no mesmo artigo).

Vejamos agora a classificação dos contratos:

− Temos contratos consensuais e contratos formais. Nos contratos consensuais, basta


a declaração de vontade para que o negócio surta efeitos. Não releva a forma que a
declaração segue, pois vigora a princípio da liberdade de forma, como dispõe o artigo
219.º. Nos contratos formais, a declaração negocial carece de revestimento de forma
especial, sob pena de nulidade, como dita o artigo 220.º.
− Temos contratos típicos e contratos atípicos. Os contratos típicos são aqueles que a
Lei regula como tipo, enquanto que os contratos atípicos surgem fora dos modelos
traçados na Lei, não sendo algo de regulamentação legal específica. [É comum falar-
se em contratos sociais típicos, ao lado dos tipos legais – estes contratos, conquanto
não tenham disciplina legalmente prevista, são amplamente reconhecidos
socialmente e habitualmente praticados em certos setores, identificando-se
facilmente o seu conteúdo (são exemplo os contratos de hospedagem).]
− Temos contratos sinalagmáticos e contratos não sinalagmáticos. Os contratos
sinalagmáticos geram obrigações para ambas as partes, obrigações que estão unidas
por um vínculo de reciprocidade ou interdependência (o sinalagma). Dentro dos
contratos sinalagmáticos, encontramos dois tipos: o sinalagma genérico, em que
uma das prestações é a contraprestação da outra, ou seja, a obrigação assumida por
uma parte constitui a razão de ser da obrigação assumida pela outra parte; e o
sinalagma funcional, em que há um entrelaçamento das prestações previstas no
contrato, pelo que se compreende o cumprimento de uma obrigação apenas em
função do cumprimento da outra, tendo de ser exercidas em paralelo, por serem um
pressuposto lógico uma da outra (é percetível nas obrigações duradouras, e são
exemplos o contrato de trabalho ou o contrato de locação). Os contratos não
sinalagmáticos são aqueles dos quais resultam obrigações apenas para uma das
partes.
− Temos contratos onerosos e contratos gratuitos. O contrato oneroso gera um
sacrifício e uma vantagem patrimonial para ambos os contraentes, havendo esforços
económicos simultâneos com vantagens correlativas, enquanto que os contratos
gratuitos (liberalidades) geram um sacrifício patrimonial para apenas um dos
contraentes, havendo uma vantagem para o outro. (Os contratos sinalagmáticos
tendem a ser onerosos e os contratos não sinalagmáticos tendem a ser gratuitos.
Contudo, atente-se à diferença de classificação, não misturando as duas: a
sinalagmaticidade atende à reciprocidade das prestações e a onerosidade tem em
conta a intenção do equilíbrio patrimonial das partes. Assim, há contratos
sinalagmáticos gratuitos, como é exemplo a doação modal, e contratos não
sinalagmáticos onerosos, como é exemplo o mútuo retribuído.)
− Temos contratos principais e contratos instrumentais. Os contratos instrumentais,
por oposição aos contratos principais, não têm finalidade específica que os
autojustifique, servem outros contratos (como é o caso dos contratos sobre a forma,
que regulam a forma dos contratos principais).
− Temos contratos definitivos e contratos preparatórios. Os contratos preparatórios
visam preparar outros contratos. Os contratos definitivos destinam-se ao
estabelecimento definitivo de posições jurídicas das partes.
− Temos contratos sobre contratos: é o caso de um de contrato sobre o qual há um
litígio, e as pessoas fazem uma transação. Esta transação é um contrato sobre um
contrato, se a matéria transacionada for objeto de um contrato.
− Temos contratos normativos, que dão lugar a normas aplicáveis a outros contratos.
(Por exemplo, os contratos coletivos de trabalhado geram efeitos jurídicos para lá
desses contratos, porque subordinam a celebração dos contratos dessa atividade a um
certo regime normativo, ou seja, há uma eficácia do contrato normativo para lá do
seu âmbito.)
− Temos contratos-tipo, que são um modelo. Não têm efeitos jurídicos próprios,
podendo ser usado ou não ser usado. As partes celebram o contrato a um desses
modelos e, a partir desse momento, passa a produzir efeitos, isto é, não por si
próprio, mas porque as partes o invocaram.
− E temos, ainda, os contratos-quadro, que dão um enquadramento geral para muitas
operações que depois vão ser feitas, ou seja, visam dar operatividade à relação. (Por
exemplo, um contrato de abertura de conta bancária disciplina a relação que o sujeito
vai desenvolver com o banco e o enquadramento geral de outras relações
estabelecidas como o contrato de crédito, o investimento de valores imobiliários, de
depósito acoplado, entre outros.)
Importa-nos falar sobre os contratos mistos, devido à sua grande frequência no tráfego
jurídico. Previstos no artigo 405.º/2, vão buscar elementos de vários contratos previstos na Lei,
que as partes escolheram. As partes, em vez de realizarem dois ou mais contratos típicos, celebram
apenas um contrato, com prestações de natureza diversa. Os contratos mistos podem ter várias
modalidades:
− Os contratos múltiplos ou combinados são contratos em que as partes combinam
elementos de vários tipos contratuais típicos. (Por exemplo, o contrato de
hospedagem é na realidade um contrato misto, porque temos o gozo da coisa, mas
também pode haver elementos da prestação de pequenos serviços, como lavar roupa,
servir pequeno- almoço, entre outros.)
− Os contratos de tipo duplo ou geminados são contratos em que, de um lado, uma
das partes obriga-se à prestação própria de um tipo contratual e, do outro lado, a
outra parte obriga-se à prestação própria de outro tipo contratual. (Por exemplo, o
alojamento de portaria – condomínio obriga-se a dar alojamento ao funcionário,
contrato de locação, e em troca este desempenha as funções de porteiro, prestação de
serviços.)
− Os contratos mistos em sentido estrito são a perfeição dos contratos mistos. Utiliza-
se a estrutura de um tipo contratual para se prosseguir total ou parcialmente a
finalidade de outro tipo contratual. (Por exemplo, a doação mista, na qual se usa um
contrato de compra e venda, mas vende-se mais barato para beneficiar a outra parte –
A quer doar 10 mil euros a B, mas em vez de lhos doar diretamente, vende-lhe algo
que vale 20 mil euros por 10 mil euros.)
− Os contratos complementares pertencem fundamentalmente a um tipo contratual,
mas convencionam-se prestações complementares próprias de outro tipo contratual.
Ex.: CV de automóvel com prestação de assistência pelo vendedor nos primeiros dois
anos. A uma CV com prestação de serviços, à prestação principal de entrega do
automóvel, acresce uma complementar de prestação de um serviço de garantia.
Combinando-se elementos de vários contratos, o problema que surge é saber qual é o
regime aplicável a estes contratos, pois não podemos utilizar apenas as regras aplicáveis a um tipo
de contrato que se enquadra nesse negócio jurídico. Existem várias conceções acerca desta
situação, embora a nossa Lei não siga nenhuma. Na ausência da Lei, temos de ter parâmetros
orientadores, que retiramos destas teorias.
− A doutrina da absorção defende que o elemento prevalecente dita o regime
principal do contrato, absorvendo todos os outros elementos. Assim, seria preciso
identificar a prestação predominante e o tipo dessa prestação determinaria o regime.
Faz sentido, mas é uma doutrina que obriga a ponderação – o problema está em saber
se o regime que a Lei associa às prestações típicas que são predominantes são
adequadas àquele contrato misto. (No exemplo do alojamento local, o elemento
prevalente é a disponibilização de um espaço, sendo que o regime próprio será o da
locação. Mas, não podemos partir do princípio que é suficiente. E se se recusam a
fornecer o pequeno-almoço? No arrendamento não tem importância, mas neste caso
dá direito a uma resolução do contrato. Já no caso do contrato geminado, os
elementos são equivalentes, porque só se arrenda em função do serviço.) Assim, o
intérprete- aplicador tem de corrigir sempre esta doutrina, pois toma a parte mais
importante pelo todo, sendo que os elementos não predominantes do contrato
são importantes e podem gerar problemas.
− A doutrina da combinação combina os elementos de regime próprios de cada
contrato envolvido. (Por exemplo, à prestação própria de um arrendamento, aplica a
locação, ao pequeno-almoço aplica a compra e venda ou regime da prestação de
serviços.) Acerta ao procurar colmatar as deficiências da teoria anterior,
considerando os elementos do regime que esteja em causa no caso concreto, mas
coloca-se a questão de como ponderar o conjunto, pois o que está no regime de
um, não está no outro. (Não entregar o pequeno-almoço dá lugar à resolução do
contrato segundo a compra e venda ou prestação de serviços, mas não dá segundo o
regime da locação. São posições delicadas que esta teoria não esclarece.)
− A doutrina da analogia defende que os contratos mistos constituem lacunas no
ordenamento jurídico, uma vez que a Lei não os prevê e, por isso, deve-se integrar
essa lacuna aplicando analogicamente os preceitos da Lei existentes para os contratos
típicos. É uma doutrina puramente formal, que acaba por não ajudar em nada,
porque toda a dificuldade da analogia está em encontrar casos semelhantes, e sobre
isso nada diz esta doutrina. Além disso, parte de um equívoco: não há nenhum
ordenamento jurídico que seja capaz de prever um regime jurídico completo
para cada contrato que as partes venham a celebrar. O contrato misto
corresponde ao exercício da autonomia privada dos sujeitos (405.º), e o facto de
essa matéria não estar regulada no ordenamento jurídico não implica que haja
uma lacuna. Assim, não podemos aplicar a analogia, pois não há uma lacuna.
(Esta doutrina só faz sentido nos contratos que têm tipo social e que não estão
previstos na Lei – aí sim podemos dizer que há uma lacuna.) No entanto, há dois
pontos que se pode aproveitar nesta doutrina. Primeiro, se estivermos perante
contratos atípicos, podemos recorrer a inspirações próprias de regimes que
tenham algum contacto com essa situação contratual atípica, havendo
fundamento para convocarmos um regime alheio. Mas fazemos isso não por haver
lacuna, mas porque há semelhanças com o contrato em causa, sendo boa ideia
retirar daí inspiração. Segundo, temos de qualificar o contrato e conhecer os
elementos que a ordem jurídica nos dá e que estão misturados no contrato em
questão, mas temos sempre de nos orientar pelo interesse das partes, ou por aquilo
que é considerado o interesse das partes, por ser típico naquelas situações. Falamos
não de uma tipicidade legal, mas social (aquilo que as pessoas normalmente
associam a um contrato deste tipo, podemos considerar que provavelmente o
quiseram). É um critério de razoabilidade.

Os contratos mistos não se confundem com a união de contratos. Os primeiros representam


a reunião, num contrato, de vários tipos contratuais, sendo contratos que fogem a qualquer
tipicidade ou recondução a tipos contratuais previstos na Lei. Na união de contratos, temos mais
do que um contrato, há uma pluralidade de contratos que mantêm a sua identidade e
individualidade, mas que estão unidos por determinado nexo. As modalidades da união de
contratos são:
− A união de contratos com nexo externo (superficial e ocasional), em que o vínculo
que liga os contratos é exterior ou acidental e, por conseguinte, os contratos mantêm
a sua individualidade própria, embora estejam conexos. (Por exemplo, A compra um
relógio e, no mesmo dia, volta à relojoaria para reparar o relógio.) São contratos com
individualidade própria, em que as eventuais vicissitudes num dos contratos não são
comunicadas à validade do outro contrato, não o afetam.
− A união de contratos com nexo interno (funcional), em que os contratos não
perdem a sua individualidade, mas estão unidos por um nexo de interdependência
funcional ou substancial que faz com que um interfira no regime do outro, havendo
uma interdependência juridicamente relevante. Podem assumir tipos diferentes,
consoante o nexo: temos casos em que um dos contratos é condição do outro (por
exemplo, A encomenda refeições no restaurante de B, mas só se B lhe arranjar
alojamento na localidade; se um dos contratos não se realizar, haverá consequências
relativamente
ao contrato que é a condição), casos em que um dos contratos é uma
contraprestação do outro (por exemplo, A vende o seu apartamento a B, se B em
troca lhe vender o seu automóvel; há um nexo de reciprocidade, um dos contratos é
tido como contraprestação do outro), casos em que um dos contratos é motivo do
outro (por exemplo, A arrenda um apartamento na Guarda porque está convencido
de que lá vai ser colocado, sendo um contrato de arrendamento e contrato de
trabalho, mas a transferência dá-se para Lisboa; trata-se de um erro sobre os motivos,
em que a união pode não ser visível, a outra parte pode não saber, mas se for
interposta uma condição suspensiva, por exemplo, arrenda se for colocado, já é
visível a união interna de contratos) e casos em que um dos contratos é a base
negocial do outro (por exemplo, o contrato de sociedade serve de base negocial aos
futuros contratos celebrados pela sociedade com outros, como os contratos de
distribuição e fornecimento).
No contrato misto há a fusão num só negócio de elementos contratuais distintos que,
além de perderem a sua autonomia, fazem simultaneamente parte do conteúdo do negócio. Na
união de contratos, apesar de se notar uma dependência entre os contratos coligados, os
nexos de correspetividade ou de motivação que prendem um dos contratos ao outro não
destroem a sua individualidade. A questão complexa será a de saber, mediante um contrato
com múltiplas prestações, se estamos perante dois ou mais contratos substancialmente
interdependentes (união de contratos) ou se estamos perante um só contrato (atípico) formado
por diversas prestações (contrato misto). Resolvemos o problema ao tentar encontrar o nexo.
Temos, por isso, a base do negócio.

O contrato-promessa

O contrato-promessa é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se


obrigam à celebração futura de um certo contrato, decorrido certo prazo ou verificados
determinados pressupostos. Encontramo-lo nos artigos 410.º a 413.º do Código Civil. Esta
definição parece englobar apenas os contrato-promessa bilaterais em que ambos os
contraentes se comprometem a, no futuro, celebrar o contrato prometido, mas o artigo 411.º
admite a possibilidade de promessa de contratos unilaterais em que apenas uma das partes está
disposta a vincular-se. Assim, deve dizer- se que é a convenção pela qual ambas as partes ou
apenas uma delas se obrigam.
A vinculação consiste na celebração de um outro contrato (contrato prometido) e daqui
resulta uma obrigação de emitir a declaração negocial que conduza à sua celebração. O
direito correspondente à outra parte, de exigir a declaração negocial do promitente, traduz-se numa
verdadeira pretensão. Este é mais um tipo estrutural de contrato do que um contrato com uma
função económico-social determinada, porque pode haver contrato-promessa de vários tipos
contratuais. É uma promessa em particular: a promessa de contratar.
Podemos questionar – porque não contratam logo em vez de fazer a promessa? Nem
sempre é suscetível de ser celebrado imediatamente. Pode haver uma vontade de celebração
mais ténue, provisória e fraca: promete celebrar porque, apesar de ainda querer pensar melhor,
quer já segurar qualquer coisa. Há possibilidade de arrependimento, mas há uma preocupação em
atestar a vinculação das partes, através do sinal que está associado. Além disso, nem sempre
ambas as partes se vinculam à celebração do contrato prometido: uma delas pode não ficar
vinculada e a outra aceitar vincular-se, havendo um jogo de vontades que nem sempre corresponde
àquelas vontades firmes e definitivas próprias do contrato prometido.
MENEZES CORDEIRO aponta várias funções ao contrato-promessa. De forma sucinta, diz
que todas as funções se reconduzem a duas: a função de pré-vinculação, que permite às partes
uma vinculação mesmo que não estejam reunidas as condições de forma ou outras que permitam a
celebração do contrato visado (por exemplo, falta uma licença da Câmara Municipal; falta o
financiamento bancário; há indisponibilidade do bem, pretende-se uma compra de uma
propriedade que está a ser construída, só quando houver uma determinação da fração é que se
pode constituir um direito de propriedade sobre ela, mas pode desde logo haver um contrato-
promessa) e a função de dilação, que permite a celebração do contrato prometido. Contudo, tem
também uma função mitigadora, pois permite uma conjugação razoável entre a vinculação das
partes e o arrependimento das mesmas. O sinal dá a possibilidade de arrependimento (função
penitencial), não deixando de haver sanções (por exemplo, a perda do sinal).
O contrato-promessa não se confunde com figuras afins, como; a proposta contratual,
que não dá azo a contrato enquanto não houver aceitação; o convite a contratar, em que há
apenas uma sugestão, uma atividade tendente a induzir a contratar, não resultando daí quaisquer
efeitos jurídicos (já o contrato-promessa é um verdadeiro contrato do qual derivam efeitos
jurídicos); as minutas de contrato, repositório daquilo que se insere num processo negocial
complexo, mas que ainda não está celebrado. (são atividades preparatórias, não se impõe às partes
qualquer vinculação de contratar); a obrigação de contratar que não decorre de contratos, aqui
não havendo contrato- promessa, mas uma obrigação legal de contratar (é uma obrigação que
decorre de um estatuto a que
a Lei sujeita um conjunto de entidades que fornecem serviços essenciais, por exemplo, a EDP é
obrigada a fornecer eletricidade, mas essa obrigação decorre do estatuto da entidade); as cartas de
intenção, em que alguém declara que tem uma intenção de celebrar um contrato ou de conceder
um crédito, por exemplo (isso não é ainda um contrato, é uma declaração unilateral que manifesta
a intenção de emitir uma declaração negocial); a obrigação própria do pacto de preferência, em
que a pessoa fica vinculada a, caso decida contratar, dar preferência a determinada pessoa em
prejuízo de outra (mas a pessoa não se vincula a contratar); a promessa pública de contratar, em
que um individuo vincula-se unilateralmente a celebrar um contrato com quem se encontre em
determinada situação ou pratique determinado facto; o acordo de negociação, um negócio
jurídico que disciplina a forma como vão decorrer as negociações, não implicando a obrigação de
contratar; e o acordo-base/acordo-quadro, em que, num conjunto de contratos que integrem
operações complexas, por vezes, há acordos base ligados a acordos posteriores (estes acordos base
podem ter cláusulas de promessa, mas não havendo uma promessa de contratar, não são contrato-
promessa).
Existem várias modalidades do contrato-promessa:

− Falamos de contratos-promessa formais e contratos-promessa informais,


consoante se exija ou não forma especial.
− Falamos de contratos-promessa unilaterais e contratos-promessa bilaterais, sendo
que nos unilaterais nascem obrigações apenas para uma das partes, a outra podendo
decidir mais tarde se quer ou não celebrar o contrato (reserva), e sendo que nos
bilaterais nascem obrigações para ambas as partes. (Exemplo de contrato-promessa
unilateral é A querer vender a B um móvel, embora B não tenha a certeza se o quer
comprar, mas interessa a B vincular A àquele contrato, para evitar a subida de preço.
Exemplo de contrato-promessa bilateral é o contrato-promessa de compra e venda.)
− Falamos de contratos-promessa com eficácia real e contratos-promessa sem
eficácia real. O contrato-promessa não produz, por si mesmo, efeitos reais, mas as
partes podem atribuir-lhe eficácia real, conforme dita o artigo 413.º, a posição do
sujeito passando a ser suscetível de ser oposta a terceiros, pois privilegia-se o
detentor do direito real. Falamos unicamente de contratos cujo objeto seja suscetível
de produzir efeitos reais. (Há uma particularidade quanto ao contrato de compra e
venda, no artigo 796.º/1 – o contrato de compra e venda, no Direito português, tem
efeitos reais e pode, por si próprio, constituir, modificar ou extinguir relações, dado
que a transferência de propriedade se dá por mero efeito do contrato, como dita o
408.º/1. Em países como a Alemanha e Brasil, isto não se verifica – tem
meramente efeitos
obrigacionais, e a transferência dos direitos reais sobre a coisa, se for móvel, dá-se
com a entrega da coisa. Contudo, o contrato-promessa de compra e venda só tem
efeitos obrigacionais, não tendo efeito real, pois ainda não há transferência de
propriedade. A venda obrigacional e a venda real são distintas quanto ao risco, na
promessa o risco é do vendedor, enquanto que no contrato o risco é do comprador.)
− Temos contratos-promessa com execução específica e contratos-promessa sem
execução específica. Consiste numa providência mediante a qual, face ao
incumprimento do promitente vendedor, a contraparte pode requerer ao Tribunal que,
através de uma sentença, se substitua ao faltoso para a satisfação do seu interesse
(artigo 830.º/1). É uma realização coativa da prestação em espécie.

Tratemos agora de entender qual é o âmbito possível para a celebração de contratos-


promessa. Determinados contratos não podem ser objeto de um contrato-promessa, pois não são
suscetíveis de execução específica (830.º/1), que é uma característica do mesmo. (Por exemplo, a
promessa de casamento não é um contrato-promessa, não havendo obrigação de cumprimento nem
execução específica, veja-se nos artigos 1591.º e seguintes.)
Não admitem contrato-promessa os seguintes contratos:

− A doação. Esta é livre, pelo que não parece ser possível a celebração de um contrato-
promessa de doação. O regime jurídico português das doações permite a liberdade
atual daquele que dispõe do bem, a espontaneidade. Se nos termos do artigo 942.º,
ninguém pode doar aquilo que só futuramente vai receber ou integrar a sua esfera
jurídica, mesmo que haja vontade do sujeito de doar, por maioria de razão, também
não se pode vincular a realizar uma doação no futuro. Além disso, se o doador só
responde pelos vícios da coisa se agir com dolo (956.º), não faz sentido admitir-se
um contrato-promessa que atribuiria uma responsabilidade em caso de
incumprimento.
− Os contratos reais de constituição em que se exige a entrega da coisa (são
exemplos o comodato, o mútuo, a parceria pecuária, o depósito). Na opinião de
CARNEIRO DA FRADA, não devem admitir-se estes contratos-promessa. Temos a
entrega da coisa como requisito para a perfeição do contrato. De acordo com o que é
razoável, o sujeito não se quer vincular juridicamente ao empréstimo. A vinculação
só surge com a entrega, porque surgem efeitos para ambas as partes. (Por exemplo, A
empresta uma bicicleta a B, e a vinculação só se exige com a entrega da bicicleta. A
entrega é uma manifestação da juridicidade do acordo, porque sem ela, a vontade
manifestada não é
certo que se dirija à produção de efeitos jurídicos. No caso do mútuo, imagine-se que
A diz que empresta a B dinheiro para comprar a casa, empresta-se com uma
determinada liberalidade. Assim, enquanto o dinheiro não for entregue, a parte pode
recuar na sua vontade de emprestar o dinheiro, porque não há ainda uma vontade de
produzir efeitos jurídicos. Como é que podemos aceitar que alguém fique vinculado a
um contrato de depósito sem lhe ser entregue a coisa? E do lado do depositante? Se é
ele o sujeito cujo interesse foi combinar o depósito, enquanto não entregar a coisa,
pode desistir.)
− O mandato. O interesse proeminente neste contrato é o do mandante, então não faz
sentido vincular o mandante a celebrar um contrato de mandato, pelo que não parece
ser de admitir a celebração de um contrato-promessa.

No que concerne ao regime do contrato-promessa, o seu regime geral estabelece-se com


recurso ao princípio da equiparação, determinando que, aos requisitos e efeitos do contrato-
promessa, são aplicáveis as regras legais relativas ao contrato prometido (artigo 410.º/1). Aplica-se
a este contrato-promessa a disciplina geral dos contratos no que toca à capacidade, aos vícios da
vontade, à resolução, à execução de não cumprimento, bem como o regime do contrato prometido.
Contudo, diz o artigo 410.º/1 que existem duas exceções a este princípio, não se
aplicando as disposições legais do contrato prometido:
− Não se aplicam as disposições legais do contrato prometido relativas à forma,
estabelecendo-se como regra geral de requisito de forma para o contrato-promessa o
preceituado no artigo 219.º, isto é, o princípio da liberdade de forma. No entanto,
há aqui exceção da exceção: o artigo 410.º/2 dá liberdade de forma, mas diz que,
quando a Lei exige para o contrato prometido um documento autêntico ou particular
(exemplos nos artigos 875.º e 947.º/1), a promessa não tem de seguir esse regime
porque não tem a formalidade característica, porém o contrato-promessa só é
válido se for celebrado por documento escrito assinado pela parte que se vincula
(no caso de contrato-promessa unilateral) ou por ambas as partes (no caso de
contrato-promessa bilateral). . Se não for assinado por nenhuma das partes (seja ele
unilateral ou bilateral), é nulo por violação de requisitos de forma (artigo 220.º).
Contudo, não é exigido que as duas assinaturas constem do mesmo documento. E se
os contrato-promessa bilaterais são assinados apenas por uma das partes? (Na prática
dos negócios, é frequente que o contrato-promessa seja titulado por um documento
muito simples:
constitui-se um sinal, e a única forma que as partes consideram adequada é a parte
emitir um documento a dizer que recebeu uma quantia de x como sinal relativamente
à compra da propriedade. Este documento atesta que se recebeu a quantia de x, e
consubstancia uma vinculação, mas só há uma assinatura. O contrato-promessa é
bilateral, mas este recibo de sinal atesta a vinculação da parte, mas não a vinculação
daquele que constitui o sinal.) Ora, o 410.º exige assinatura de ambas as partes, pelo
que será nulo, por violação de requisitos de forma. Como temos uma nulidade
formal, a doutrina e a jurisprudência foram, durante muito tempo,
questionando se o contrato seria totalmente inválido ou se poderia valer
enquanto promessa unilateral através dos institutos da redução, como sugere o
artigo 292.º, ou da conversão, no artigo 293.º. Estas duas diferem: na conversão há
que provar que as partes quiseram o novo negócio, sendo que o ónus da prova recai
sobre quem deseja a conversão (tendo este de provar que a vontade hipotética das
partes ia nesse sentido), ao passo que na redução é o contrário, ou seja, há redução,
exceto se a parte que a não deseja, provar que essa era a vontade hipotética das partes
(há que provar que as partes não o queriam e o ónus recai sobre quem não a quer). O
problema exposto conhece duas soluções possíveis: a tese da conversão (defendida
por ANTUNES VARELA) entende que as partes queriam um contrato-promessa
bilateral e, não podendo o contrato valer como tal, por falta de assinatura de uma das
partes, há uma nulidade total e só poderá valer como contrato-promessa unilateral
através da conversão; já a tese da redução (defendida por RIBEIRO DE FARIA e
ALMEIDA COSTA) diz que, se o contrato-promessa assinado por apenas um dos
contraentes preencher os requisitos de um tipo contratual expressamente reconhecido
na Lei como tal (artigo 411.º), a nulidade do contrato é meramente parcial, valendo o
contrato como promessa unilateral nos termos do regime da redução. Numa tentativa
de sanar este debate, o Assento do Supremo Tribunal Justiça de 29/11/1989 vem
estabelecer que “o contrato-promessa bilateral [...] exarado em documento
assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido
como contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das
partes”. Assim, formalmente, o assento segue a tese da redução, mas a parte
dispositiva estabelece o regime da conversão. Esta tentativa sai frustrada e dela não
resulta resposta clara, devido à última parte, pois continua a ser preciso provar, ou
seja, presumir se era ou não essa a vontade das partes. Mais tarde, o Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/1993
parece consagrar, por unanimidade, a solução de que a nulidade do contrato-
promessa é parcial e, portanto, sujeito a redução (CARNEIRO DA FRADA diz
não concordar com este acórdão). Contudo, convém notar que os acórdãos não são
vinculativos, podendo ser utilizados como solução, mas não sendo obrigatório que o
sejam. Outra exceção à liberdade de forma é o disposto no artigo 410.º/3, que diz
haver uma exigência de forma especial para os contratos-promessa respeitantes à
celebração de contratos onerosos de transmissão ou constituição de direitos reais
sobre prédios urbanos ou frações autónomas deles, já constituídos, a constituir ou em
construção. Para além do documento particular assinado pelas partes, exigido pelo
artigo 410.º/2, exige-se o reconhecimento presencial das assinaturas pelo notário
e a certificação da existência de licença de construção/utilização. É uma garantia
de que a vontade dessas mesmas pessoas é uma vontade solene que representa a
formalidade. A certificação da licença, deve-se a que a lei tente combater a
construção clandestina, não autorizada. Para evitar a vinculação das partes a negócios
que ofendiam a lei e os interesses gerais é que se veio exigir isto. Nota: documento
autenticado é quando o próprio notário autentifica, porque testemunha que as pessoas
que estão lá e que se vinculam; o documento particular é feito pelas partes e o
reconhecimento é feito posteriormente. O âmbito destas normas não se aplica a
prédios rústicos, porque os edifícios não têm autonomia económica (404.º). (Por
exemplo, se se quer vender uma bomba de gasolina, aplica-se este artigo, mas
normalmente o que se vende é o terreno, e aí este já não se aplica.) Não se aplicam
também a contrato-promessa que verse ao direito à herança da qual constam imóveis,
porque quando se aliena através de uma contrato-promessa uma parte numa herança,
não estamos a falar de uma situação que vá alterar o imóvel, pelo que não faz sentido
exigir certificação da licença ou reconhecimento presencial das partes. E se os
requisitos do 410.º/3 não se verificarem? O reconhecimento presencial da
assinatura e a certificação da existência de licença são formalidades que não têm
propriamente a ver com a declaração negocial em si, mas não deixam de ser uma
formalidade essencial. Como consequência para a inobservância destas formalidades,
o promitente-vendedor só pode invocar a falta dos requisitos formais se essa
falta tiver sido causada culposamente pelo promitente-comprador. Mas podem
terceiros (por exemplo, credores do promitente- vendedor) invocar a falta destas
formalidades? E pode o Tribunal fazê-lo oficiosamente? Há na Lei uma omissão
a este respeito. ANTUNES VARELA
responde afirmativamente a estas questões, ao abrigo do regime geral da nulidade
(artigos 286.º). Já CALVÃO DA SILVA diz que está subjacente ao 410.º/3 uma
finalidade de proteção do promitente-comprador, pelo que a omissão dos
requisitos formais gerava anulabilidade, invocada apenas pelo promitente-
comprador. Esta última posição é reiterada por dois assentos do Supremo Tribunal
de Justiça, que vêm dizer que as omissões de formalidades do 410.º/3 não podem ser
invocadas por terceiros nem podem ser reconhecidas oficiosamente pelo Tribunal.
Assim sendo, estamos perante a anulabilidade, mas falamos em anulabilidade
mista ou atípica, na medida em que não se sana com o decurso do tempo. A
prática do mercado tem sido a de incluir uma cláusula no contrato-promessa pela
qual as partes voluntariamente abdicam da necessidade do reconhecimento presencial
das assinaturas ou da apresentação da licença de utilização ou construção. Alguns
Tribunais têm considerado que se o promitente-comprador invocasse a invalidade do
contrato, incorreria em abuso de direito, sob a forma de venire contra factum
proprium. Porém, em 2013, o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmar o contrário,
considerando que não estão reunidos os requisitos do abuso de direito e que o
promitente-comprador pode invocar a invalidade.
− Não se aplicam as disposições legais do contrato prometido que, pela sua
natureza e razão de ser, não possam ser estendidas ao contrato-promessa. É o
caso da transmissão de propriedade. Refere-se esta exceção aos efeitos do contrato-
promessa. É que, como é evidente, muitas regras há do contrato prometido,
principalmente quando se trate de alienação de coisa determinada, que, pelo seu
fundamento, não devem ser aplicadas à simples promessa. Para determinarmos se
uma regra do contrato prometido é ou não aplicável ao respetivo contrato-promessa,
há que compreender a razão de ser da norma. O contrato-promessa tem, por regra,
apenas e só eficácia obrigacional (vincula apenas as partes contratantes). Mas há
casos em que pode ter eficácia real, tratando-se de alienação ou oneração de coisa
determinada. Assim, o artigo 413.º prevê uma forma especial para os casos em que
as partes atribuam ao contrato-promessa eficácia real (pode ser oposto a terceiros,
prevalecendo sobre direitos reais que eventualmente se constituam a favor desses
terceiros – por exemplo, se entretanto o promitente-vendedor alienar a coisa que é
objeto do contrato- promessa a um terceiro, o promitente-comprador pode opor a este
o seu direito). (Por exemplo, não se aplica à promessa de venda com eficácia
meramente obrigacional os
artigos 879.º, alínea a, 892.º, 796.º/1 ou 1682.º-A, ao abrigo da exceção apresentada.)
Assim, quanto aos contratos com eficácia real há um formalismo mais rígido.
Constituem, ainda, regras especiais, as disposições do artigo 411.º e do artigo 412.º. No
artigo 411.º, relativo ao contrato-promessa unilateral, quando as prestações não têm prazo, se as
partes não o fixarem, pode o Tribunal, a pedido do promitente, estabelecer um tempo dentro do
qual a promessa deve ser cumprida, para o promitente não ficar vinculado por tempo
indeterminado. Contudo, estas situação só acontecem quando não há contrapartida e para evitar as
vinculações por tempo indeterminado. No artigo 412º, relativo à transmissão de direitos e
obrigações emergentes do contrato-promessa, em regra, os direitos e obrigações que resultem
da promessa contratual são transmissíveis inter vivos e mortis causa, nos termos gerais (artigo
412.º/1/2). Excetuam-se a transmissão de direitos e obrigações em que as qualidades ou atributos
pessoais das partes tenham exercício de papel decisivo (por exemplo, contratos intuitu personae
que são direitos e obrigações exclusivamente pessoais). Se a pessoa que celebra um contrato-
promessa falece, as obrigações transferem-se para os seus sucessores, se não estiverem em causa
direitos pessoais (por exemplo, promessas de mandato, de arrendamento, de trabalho, de prestação
de serviços em geral, etc.). Também por ato entre vivos se pode transferir a posição resultante de
contrato-promessa – cessão da posição contratual (artigos 424.º e seguintes e artigos 577.º e
seguintes).

Falemos do caso dos contratos-promessa com eficácia real. As partes podem atribuir
eficácia real ao contrato-promessa (artigo 413.º), estando em causa um contrato-promessa que visa
a transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.
Qual a vantagem? B promete vender a C um apartamento seu. Entretanto promete vender o
mesmo apartamento a D. Quando a promessa tenha eficácia meramente obrigacional, a validade
do direito adquirido por D não será afetada, tendo o contraente que ficar prejudicado, mas ainda
assim tem direito a ser indemnizado. Neste caso, e porque estamos mediante promessas
incompatíveis, nem C nem D podem opor o seu direito contra o outro, porque ambas as promessas
são válidas. Prevaleceria, provavelmente, o direito daquele que primeiro recorresse à execução
específica ou conseguisse o cumprimento de B. O outro teria sempre o direito a ser indemnizado.
Mas se o contrato-promessa entre B e D tivesse eficácia real, o caso seria já diferente: aqui, o
direito de D prevaleceria sobre o de C, ainda que constituído posteriormente. Assim, a eficácia real
constitui um alargamento dos efeitos do contrato em relação a terceiros, passando a promessa a
valer erga omnes.
Mas, para que a um contrato-promessa relativo à transmissão ou constituição de bens
imóveis ou móveis sujeitos a registo se atribua eficácia real, o artigo 413.º impõe a
verificação de três requisitos cumulativos:
− As partes têm que declarar expressamente, no contrato-promessa, a sua intenção de
lhe atribuírem eficácia real (413.º/1).
− Quanto à forma, o contrato-promessa tem de ser celebrado por escritura pública ou
documento particular autenticado, exceto se o contrato-prometido não exigir
essa forma, caso em que basta documento particular com reconhecimento das
assinaturas de quem se vincula (413.º/2), tendo de se observar a mesma forma.
− O contrato-promessa tem de incidir sobre bens objeto de registo (aqui o registo é
constitutivo, é uma condição de eficácia real da promessa), sendo estes normalmente
imóveis. (É possível de ser aplicado nos bens móveis, mas em relação a estes a Lei
não é tão exigente quanto à escritura pública ou documento particular autenticado. Se
assim é, faria sentido atribuir eficácia real a esta promessa e submetê-la a um
formalismo tão pesado? Não faz sentido, por isso a Lei aligeira a forma.)
Reunidos estes requisitos, e se a promessa não for revogada, declarada nula ou anulada ou
não caducar, o contrato-promessa com eficácia real prevalecerá sobre todos os direitos
pessoais ou reais que posteriormente se constituam em relação ao bem imóvel ou móvel
sujeito a registo, tudo se passando, em relação a terceiros, como se o contrato prometido tivesse
sido celebrado na data do registo do contrato-promessa com eficácia real. A falta de qualquer um
dos requisitos implica que o contrato-promessa, ainda que válido, tenha eficácia meramente
obrigacional, sendo inoponível a terceiros e não podendo perturbar os direitos que estes
adquiriram sobre o bem, com uma exceção, que diz respeito ao registo da ação de execução
específica. Aqui, a sentença favorável (declaração da ação procedente), desde que registada, é
oponível a terceiros, prevalecendo aquele contrato-promessa sobre todos os contratos de
transmissão de bens posteriores a esse registo.

O contrato-promessa cumpre-se emitindo as declarações negociais correspondentes,


porque as partes se vincularam a celebrar um negócio jurídico. Para isso é preciso haver vontade
de ambos os contraentes. Os contratos-promessa podem ser celebrados sem uma definição de
prazo para o cumprimento – estaremos perante uma obrigação pura: qualquer uma das partes pode
a qualquer tempo exigir o cumprimento. As partes podem ainda estabelecer alguns aspetos que o
contrato-promessa não estabeleceu (por exemplo, pode não estar estabelecido o preço no contrato-
promessa).
Quando estamos perante não-cumprimento, a primeira coisa a analisar é se se trata de um
contrato-promessa com ou sem eficácia real, e, seguidamente, se se trata de contrato-
promessa com ou sem sinal (este mecanismo consubstancia uma forma de tutela do contrato-
promessa), pois os regimes de incumprimento variam conforme se combinem estes atributos do
contrato. O incumprimento pode ser:
− O mero retardamento ou mora na realização da prestação (artigo 804.º), visto que
se o promitente está vinculado a um prazo, a partir desse dia está em mora. Estamos
perante uma situação destas quando a prestação debitaria, apesar de não ter sido
realizada no tempo devido, ainda é possível e o credor mantém o interesse
fundamental na prestação e, por isso, faz sentido recorrer à execução específica do
contrato. Traduz- se, no fundo, num atraso do cumprimento.
− O incumprimento definitivo, quando a prestação não for mais possível. O credor
fica gravemente prejudico, há uma situação de impossibilidade de cumprimento que
é imputável ao devedor.
− A perda de interesse do credor na prestação (artigo 808.º), que se integra no
anterior, pois há um incumprimento definitivo: o credor perde objetivamente o
interesse na sua realização por via do atraso do cumprimento (o caso típico do
vestido de noiva entrega já depois do casamento). O prejuízo é a frustração da
totalidade do interesse do credor, por isso a indemnização deverá ser maior. Aqui não
interessa ao credor uma ação de cumprimento.
− O cumprimento defeituoso, se não é realizado nos moldes que deveria ser: a
prestação é cumprida, mas sem a qualidade devida ou de uma forma que não permite
ao credor a satisfação do seu interesse.
− A recusa antecipada do cumprimento, em que os promitentes combinam que o
contrato prometido seria celebrado no mês seguinte, mas hoje o promitente diz que
não vai cumprir. Esta recusa antecipada, tem consequências.

Vejamos o sinal (artigos 441.º e 442.º) – consiste na coisa (dinheiro ou outra coisa
fungível) que um dos contraentes entrega ao outro, no momento da celebração do contrato
ou em momento posterior, como prova da seriedade do seu propósito negocial e garantia do
seu cumprimento (sinal confirmatório), ou como antecipação da indemnização devida ao
outro contraente, na hipótese de o autor do sinal se arrepender do negócio e voltar atrás
(sinal
penitencial), podendo a coisa entregue coincidir (no todo ou em parte) ou não com o objeto de
prestação devida pelo contrato.
O sinal não tem de estar presente sempre do mesmo modo e com a mesma intensidade, tendo
uma multiplicidade de funções: a função confirmatória da vontade de produção de efeitos
jurídicos, quando mostra a sua vontade de cumprir e que a sua vinculação não é de trato social ou
de mera obsequiosidade; a função coercitiva/compulsória, porque pode funcionar como coação
ao cumprimento; e a função penitencial (de preço do arrependimento), uma função liberatória em
que o sujeito liberta-se do vínculo pagando o sinal. O sujeito compromete-se, mas tem a liberdade
de sair do contrato com o mínimo de consequências, no caso de se arrepender (a consequência será
pagar o sinal, indemnizando assim a pessoa cujas expetativas são frustradas).
Estamos perante o sinal quando as partes atribuam essa natureza a uma antecipação do
cumprimento por uma das partes (artigo 440.º). Contudo, a antecipação do cumprimento não se
confunde com o sinal, pelo que esta só pode ter caráter de sinal se as partes lho atribuírem .
Pelo contrário, quanto aos contrato-promessa de compra e venda sinalizados, coloca-se a questão
de saber o que a quantia entregue significa. Estará o promitente-comprador a antecipar o
cumprimento da sua prestação? Nestes casos, o artigo 441.º estabelece que se presume que tem
caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, por
isso, aqui a regra é inversa. Há uma imputação numa situação de cumprimento, as partes podem
reaver aquilo que foi entregue a título de garantia.
O sinal é um meio de tutela, mas às vezes revela-se um meio insuficiente. Na medida em
que houve uma valorização dos imóveis e aparecendo compradores mais fortes, o legislador veio
regular que, no sinal, confrontado com o facto de não ser uma tutela adequada, os indivíduos que
tinham constituído o sinal tinham adquirido o bem pela entrega da coisa. Por isso, no artigo
442.º/2, a Lei permite que quando haja entrega da coisa e expectativas relevantes, o
adquirente possa obter o valor do sinal ou da coisa ou o direito a transmitir a coisa. Tem de
se deduzir o preço convencionado e o mecanismo do sinal deixa de operar. Se o promitente
vendedor tiver de pagar ao promitente comprador, morre o incentivo a aceitar negócios mais
benéficos.

O pacto de preferência

O pacto de preferência é o contrato pelo qual alguém se obriga a, em igualdade de


condições, escolher uma determinada pessoa (a contraparte ou terceiro) como contraente,
caso decida celebrar um dado contrato. Não há obrigação de contratar, a vinculação consiste
em dar
preferência a outrem, caso se decida contratar. Assim, o titular do direito de preferência goza de
liberdade para aceitar ou não a celebração do contrato em que possa preferir, e só caso decida
contratar é que tem de dar preferência. Pelo contrário, no contrato-promessa, o sujeito fica
obrigado a contratar.
Esta figura vem consagrada entre os artigos 414.º e 423.º. O artigo 414.º define o pacto de
preferência com base no contrato de compra e venda (onde é mais vulgar), mas ao abrigo da
autonomia privada é possível para todos os contratos onerosos nos quais faça sentido dar
prioridade a uma determinada pessoa em relação a outras (por exemplo, arrendamento,
sociedade, parceria pecuária, fornecimento). É esta a orientação do artigo 423.º, quando determina:
“as disposições dos artigos anteriores relativas à compra e venda são extensivas, na parte
aplicável, à obrigação de preferência que tiver por objeto outros contratos com ela compatíveis”.
Há contratos que pela sua própria natureza não podem ser objeto de pacto de preferência,
como a doação, porque nesta reina a ideia de liberalidade. Assim, o negócio-alvo da preferência
deve ser oneroso.
O pacto de preferência é sempre uma restrição à liberdade de contratar, na medida em
que, em condições normais, contratar-se-ia com quem se quisesse, embora não tão intensa quanto
a do contrato-promessa. A obrigação que nasce deste pacto pode ser vista numa dupla perspetiva:
obrigação de facto positivo (facere) ou uma obrigação de facto negativo (non facere), conforme se
entenda tratar-se da obrigação do devedor, caso entenda contratar, o faça com determinada pessoa
ou, pelo lado negativo, a proibição de celebrar aquele contrato com terceiro, se o preferente quiser
exercer o seu direito.
Precisamente porque o pacto de preferência não obriga a contratar, não se estabelecem
regras gerais como se estabelecem para o contrato-promessa. Aqui não temos formulada
nenhuma regra de equiparação geral, pelo que temos de recorrer ao regime do contrato alvo de
preferência: se o contrato for inválido, a preferência que incida sobre esse contrato também o será.
A Lei não apresenta um preceito com um âmbito de extensão que permita entender na totalidade
os requisitos para o pacto de preferência, por isso, aplicam-se a este os requisitos gerais de
validade relativos ao negócio jurídico, estendendo-se por analogia.
Quanto à forma, há uma regulação: diz o artigo 415.º que é aplicável ao pacto o disposto no
artigo 410.º/2. Assim, quando o contrato objeto do pacto de preferência só possa ser
celebrado mediante escritura pública ou documento particular, o pacto só será válido se
constar de documento escrito assinado pelo obrigado à preferência. Fora destes casos em
que o contrato
objeto da preferência tem forma específica, vigora o princípio da liberdade de forma (artigo
219.º).
As classificações fundamentais de preferências são:

− Pactos de preferência legais, quando decorrem da Lei e são direitos legais de


preferência. Têm, normalmente, um interesse a prosseguir quando são estabelecidos,
e esse interesse não pode ser afastado pelas partes. [Existem muito no direito da
vizinhança (no caso de alienação de prédio encravado, há direito de preferência do
prédio contíguo) e no direito do arrendamento (os arrendatários têm preferência na
alienação do local arrendado).] O legislador, em prol da simplificação das situações
jurídicas, estabelece a preferência. Em princípio, como é a Lei que estabelece a
preferência, esta tende a ter eficácia real. E pactos de preferência convencionais,
que radicam da vontade das partes (de um contrato). São o nosso foque e, em
princípio, são obrigacionais, mas as partes podem atribuir-lhes eficácia real (421º.).
− Pactos de preferência reais, que são preferências com eficácia real, nos quais o
titular pode opor o seu direito a terceiros. Quando assim é, independentemente da
indemnização que possa ser exigida, o lesado pode substituir-se ao terceiro na
titularidade da coisa em exercício do seu direito de preferência. Algumas
preferências convencionais podem ter eficácia real, quando as partes lhe atribuam
esse valor (artigo 421.º). (Portanto, no Direito das Obrigações é necessário estudar as
preferências com eficácia real de base convencional. Esse regime convoca-nos ao
regime geral das preferências legais, pois, uma vez que a Lei tem interesse quer
estabelecer um direito de preferência, normalmente essa tem eficácia real.) E pactos
de preferência obrigacionais, que geram a obrigação de dar preferência e a sua
violação corresponde à violação de um direito de crédito, com as suas consequências
próprias, mas não dá ao titular do direito de preferência uma proteção. (Se A não
oferece a preferência a B e vende a um terceiro, na preferência obrigacional há um
conflito entre direito de preferência obrigacional e direito real de terceiro,
prevalecendo a posição do terceiro. O titular do direito de preferência não fica sem
tutela, mas será uma tutela típica da violação de direitos de crédito – indemnização
contra o obrigado à preferência que faltou ao cumprimento da sua obrigação.)
Quando aos efeitos dos pactos de preferência, regra geral têm eficácia meramente

obrigacional. (O artigo 422.º acrescenta até que o preferente não pode exercer o seu direito nas
alienações que resultem de processos de “execução, falência, insolvência ou casos análogos”,
porque, apesar de não parecer haver impedimento em que houvesse um direito de preferência pelo
valor de arremate ou adjudicação dos bens, a mera existência do direito poderia afastar
interessados na aquisição dos bens, para prejuízo do credor, que os veria desvalorizar.)
Porém, há casos em que se admite que a preferência com eficácia real (erga omnes).
Referências reais resultam de determinações legais (Lei quer atribui-lhes um estatuto forte) ou por
convenções das partes, mas para tal, têm de estar preenchidos os requisitos que decorrem do
artigo 421.º/1, combinado com o artigo 413.º: as partes acordarem expressamente dar eficácia
real ao pacto; tratar-se de um bem imóvel ou móvel sujeito a registo; dar-se publicidade à eficácia
real por via do registo; constar de escritura pública ou documento particular autenticado, salvo se a
lei não exigir essa forma para o contrato sobre o qual recai a preferência, caso em que bastará
documento particular com reconhecimento da assinatura do obrigado.
Adquirindo eficácia real, o pacto de preferência passa a produzir efeitos em relação a
terceiros, podendo-lhes ser oponível (torna-se num verdadeiro direito real de aquisição). Em
caso de violação, o titular do direito pode substituir-se ao terceiro na propriedade da coisa e assim
a sua preferência será atendível nos processos de execução, falência e insolvência, onde serão
tratados como direitos legais de preferência. Apesar de poder ser oponível a terceiro, o
beneficiário da preferência pode continuar a ter direito à indemnização contra o obrigado à
preferência. ANTUNES VARELA defende que, havendo direitos legais de preferência
anteriores aos que resultem dos direitos de preferência da eficácia real, aqueles prevalecem
e, igualmente, prevalecem sobre os direitos de preferência os direitos reais de gozo ou de
garantia anteriormente registados sobre a coisa (caso da hipoteca).

No que respeita à natureza jurídica do pacto de preferência, alguns autores


enquadram- no na figura mais ampla dos contratos-promessa. Contudo, ANTUNES
VARELA entende que nestes pactos não há nenhuma obrigação ou promessa de contratar típica
do contrato-promessa. Há também quem defenda que este pacto é um contrato-promessa
unilateral sujeito a uma dupla condição: que o obrigado queira celebrar o contrato sujeito a
preferência e que o titular da preferência queira aceitar. Ora, esta dupla condição não faz qualquer
sentido. O objeto típico pacto de preferência está na obrigação de escolha daquele que há de ser o
futuro contraente, se o obrigado vier a contratar, ou seja, este compromete-se a escolher
determinada pessoa, a dar preferência a
alguém, na eventual realização do contrato.

De acordo com CARNEIRO DA FRADA, a teoria da oferta contratual considera que não
há nenhuma oferta, pelo que a teoria não vale. O direito a adquirir para si a coisa depende de uma
condição que é a decisão e contratar por parte do obrigado à preferência e por outro lado, a
vontade de ele próprio se vincular.
A teoria do facto negativo diz que preferência seria uma prestação de facto negativo (não
poderia vender sem dar a preferência). Assim, se desse a preferência e depois não vendesse, no
fundo ainda estaria a agir licitamente. Aqui está o problema, pois isto significaria que se decidisse
não vender não estaria a violar a preferência e conseguir-se-ia violar a confiança do titular do
direito de preferência. (A verdade é que não pode, pois viola a preferência. Isto é claro em relação
às preferências reais, como é o caso do artigo 1410.º/2).
É, pois, um contrato com prestação de facto positiva, havendo um verdadeiro direito
potestativo para o preferente em caso de violação do pacto com eficácia real (o titular do direito
pode, mediante declaração unilateral integrada por sentença judicial substituir-se ao adquirente).

Quanto ao procedimento de preferência:

1. A comunicação ao preferente é desencadeada perante uma verdadeira proposta de


contrato que se insira no objeto da preferência, desde que o obrigado à preferência esteja
interessado nela. Tal proposta será, em regra, formulada pelo terceiro. Requer-se uma
proposta firme e completa, de modo que, uma vez dada a forma exigida, uma aceitação
simples faça surgir o contrato. Já na posse da proposta, o obrigado à preferência deve
comunicá-la ao preferente (comunicação para preferir) – artigo 416.º/1. Temos, assim,
dois requisitos: a proposta de negócio e a intenção do obrigado à preferência de
celebrar, com base nela, o contrato. A comunicação (via notificação judicial ou
extrajudicial) deve ser feita pelo obrigado à preferência ou por alguém que, com poderes
bastantes, o represente. O preferente, caso aceite, fecha de imediato um contrato ou,
pelo menos, um contrato-promessa equivalente - isto só é possível se o comunicante
tiver legitimidade para contratar. A comunicação deve ser feita ao preferente e, se houver
vários, deve ser feita a todos (por exemplo, perante cônjuges; a pluralidade de
preferentes é ainda frequente nos casos de arrendamento num edifício que não esteja em
propriedade horizontal, em que os locatários podem ser vários, cabendo a todos receber a
comunicação). Deve ser comunicado o projeto de negócio existente, nos seguintes
termos:
− A proposta, devidamente caraterizada enquanto tal e sobre a qual exista um
acordo de princípio, embora não o contrato. Não chegam intenções não
definitivas nem projetos hipotéticos.
− Com o clausulado completo ou, pelo menos, com todos os elementos essenciais
que relevem para a formação da vontade de preferir ou não preferir, dando
oportunidade ao titular da preferência de decidir se pretende substituir-se ao
terceiro, usando a sua faculdade. A falta de fatores relevantes ou o facto de,
depois da comunicação, se concluir o negócio com o terceiro, mas em condições
diferentes, invalida a comunicação feita (por exemplo, condições de realização
do preço, como a autorização de pagamento em prestações). Se a comunicação
não for completa, há um incumprimento da obrigação de preferência, que pode
ter consequências indemnizatórias.
− Identificando a pessoa do terceiro interessado. Isto tem levantado dúvidas, que
advêm do facto de a Lei, expressamente, não a exigir, ou de se procurar
distinguir situações em que, pela presença de especiais vínculos entre os
envolvidos essa indicação possa ter relevância. A decisão do preferente é
subjetiva: ele decidirá como entender, na base de raciocínios económicos,
estéticos, sociais ou outros. Uma das funções históricas da preferência é
justamente o poder de exclusão de certos terceiros das relações negociais.
Além disso, sem se indicar o terceiro interessado, não é possível configurar nem
sindicar uma proposta concreta. Assim, quer pela gestão intrinsecamente privada
dos interesses em jogo, quer pelas funções histórico-sociais da preferência, quer
pelas necessidades de controlo objetivo do processo, a identificação do terceiro é
sempre necessária, de acordo com MENEZES CORDEIRO. Contudo,
CARNEIRO DA FRADA considera que é possível pensar em algumas
circunstâncias em que se pode prescindir desta necessidade, pelo que o legislador
não terá agido mal. Mas o facto é que, ordinariamente, essa comunicação é
necessária (por exemplo, o arrendatário pode querer ou não exercer o seu direito
de preferência em função daquele que possa vir a ser o seu senhorio), podendo
tornar-se ineficaz se, depois, o negócio definitivo for celebrado com pessoa
diferente da indicada na comunicação.
− Pedindo uma resposta, quanto ao exercício do direito de preferência. De outro

modo, poderia passar por uma mera informação.

− Chegando a comunicação ao conhecimento efetivo do preferente.

A comunicação não está sujeita, por Lei expressa, a nenhuma forma (pode até ser oral).
Contudo, sendo uma comunicação relativa a um contrato definitivo para que a lei exija
documento autêntico ou particular, exige-se a forma escrita (por aplicação do 410.º/2): a
comunicação, a ser aceite pelo preferente, gera um dever de contratar a que se aplicam as
regras do contrato-promessa. Além disso, uma comunicação verbal, em regra, coloca
grande dúvidas de prova, recomendando-se aos obrigados à preferência o recurso à forma
escrita, por uma questão de prudência e segurança. O próprio obrigado terá também
interesse em recorrer a um meio seguro, que lhe permita provar o cumprimento da sua
obrigação de preferência (por exemplo, cartas registadas). A comunicação deve ser feita
quando exista uma proposta contratual eficaz e enquanto tal eficácia se mantiver ou, pelo
menos, na presença de um projeto de contrato firme e sério. A não se verificarem tais
requisitos, pode acontecer uma de duas coisas: o preferente prefere, convicto de que se
não o fizer o terceiro ficará com o negócio, estando enganado pois o terceiro não
celebraria tal contrato; ou o preferente rejeita, deixando o negócio para o terceiro que,
afinal, não o quer. A Lei fixa um prazo curto para que o terceiro se pronuncie (8 dias:
426.º/2), para se assegurar de que a proposta ou o projeto mantêm a sua atualidade, mas
este é um prazo supletivo, pois as partes podem convencionar outro, sob pena de
caducidade do seu direito. Para tal, pressupõe-se que a comunicação foi bem feita (ou
seja, se A anuncia a intenção de vender uma joia, mas não diz o preço ou não diz as
condições de pagamento, temos uma comunicação insuficiente, por isso o direito do
titular da preferência não caduca – só caduca se a comunicação não for bem feita e/ou se
a decisão não for tomada dentro do prazo).
2. A resposta do preferente, que pode consistir nas seguintes atitudes da sua parte: o
exercício da preferência, o que significa a aceitação do contrato, com o conteúdo
indicado pelo obrigado (aceitação da comunicação, com alterações/modificações,
envolve de pleno direito a renúncia, por parte do preferente, ao seu direito; qualquer
outra solução já implicaria um acordo fora do direito de preferência em causa; além
disso, vale a primeira parte do artigo 233.º); a renúncia à preferência, declarando que
não está interessado (por exemplo, diz que não quer comprar por aquele preço; a
renúncia antecipada não é válida, como dita o artigo 809.º/1, apenas perante uma
situação concreta de preferência é possível ao preferente renunciar, já com todos os
elementos de comunicação em ordem; assim, tal renúncia só é eficaz quando referida
uma transação concreta, quando ao preferente tiver sido dado conhecimento do projeto
de venda e das cláusulas do contrato, e quando o preferente seja inequívoco e claro; a
abdicação pode ser feita através de simples renúncia verbal); nada faz e o seu direito
extingue-se por caducidade (o prazo para a caducidade previsto no artigo 416.º/2 só
começa a correr
perante uma comunicação completa e legitimamente feita e endereçada). Em caso de
caducidade ou renúncia, o obrigado cumpriu a obrigação e pode contratar com
qualquer terceiro, mas respeitando as condições oferecidas ao preferente. Se vier a
ser celebrado um contrato com terceiro em termos mais vantajosos para o adquirente do
que os oferecidos ao titular da preferência, o direito deste manter-se-á em relação ao
contrato efetivamente celebrado. Havendo aceitação da comunicação de preferência,
perfila-se o contrato definitivo, isto é, o contrato visualizado pelo pacto de
preferência (ou pela preferência legal) e que, por opção do beneficiário, se vem mesmo
a concluir na esfera deste. Temos agora três subhipóteses:
− Estão reunidos, pela comunicação/aceitação, os requisitos formais do contrato
definitivo, altura em que o mesmo se deve ter por concluído de imediato.
− Não estão reunidos os requisitos formais do contrato definitivo, mas por haver
forma escrita considera-se perfeito um contrato-promessa relativo ao definitivo,
cabendo a ambas as partes seguir o seu trâmite.
− Falta todo o circunstancialismo acima descrito, e então, por via da boa fé negocial
e dos competentes deveres acessórios, caberá às partes formalizar o definitivo,
sob pena, por parte do obrigado, de violar a preferência e, do preferente, de violar
os deveres acessórios ao mesmo ligado.
Havendo contrato-promessa, a sua execução específica não oferece dúvidas, se for
necessária. Se o titular do direito de preferência disser então que quer exercer o seu
direito, temos três possibilidades:
− Se o contrato não tiver forma especial, na comunicação há uma proposta, pelo
que, a partir do momento em que o titular exerce o seu direito de preferência,
aceita, e forma-se o contrato. (Por exemplo, quer-se comprar joias por mil euros
e o titular diz que exercerá o seu direito de preferência, representando-se uma
aceitação.)
− Se o contrato exigir uma forma especial, mas a comunicação para preferir não
revestir a forma exigida. Se for requerida escritura pública ou documento
particular autenticado, as simples comunicações escritas da preferência
acompanhada da resposta não preenchem as condições de forma. Nestes casos, a
partir do momento em que o titular do direito de preferência a exerce, temos a
formação de um contrato-promessa: da proposta e aceitação nasce uma
obrigação de contratar, que é uma vinculação emergente do direito de
preferência, ou seja,
fica vinculado ao contrato prometido, devendo realizá-lo com a necessária
forma. O artigo 830.º que prevê a execução específica à obrigação de contratar
emergente do contrato-promessa, pode alargar-se a outras situações da obrigação
de contratar, como é o caso de contratos com pacto de preferência. Pode haver
lugar à culpa in contrahendo.
− Se o contrato tiver forma especial e a comunicação obedecer à forma prescrita, e
incluindo todas as cláusulas da convenção, serve de proposta contratual que,
sendo aceite, dará automaticamente lugar à celebração do contrato. Contudo,
defende GALVÃO TELES que, nestas situações, estamos perante um
contrato-promessa bilateral.
O artigo 417.º/1 diz que o direito de preferência pode ser exercido apenas em relação à
coisa singular, ou terá de ser exercido em relação a todas as coisas vendidas? Pode,
acidentalmente, acontecer que o obrigado pretenda alienar, por um preço global, uma ou mais
coisas conjuntamente com a que é objeto de preferência. Nestes casos, o preferente mantém o seu
direito a preferir a coisa singular, pelo preço que lhe for proporcionalmente atribuído. (Por
exemplo, num caso de alienação de prédios por parte de uma seguradora no concelho do Porto, a
Câmara Municipal do Porto tinha direito de preferência sobre alguns deles, e pôde exercer a
preferência apenas em relação aos quais tem o direito de preferência.) No entanto, se a separação
da coisa trouxer prejuízo considerável (se o valor da soma for substancialmente superior ao valor
que esse conjunto teria sem essas mesas coisas) ao obrigado à preferência, ele pode exigir que o
preferente adquira a totalidade das coisas, se não quiser perder o seu direito. Note-se que pode, no
pacto de preferência, o titular do direito precaver-se, clausulando uma proibição de alienação da
coisa juntamente com outras. (O regime da venda de coisa conjuntamente com outras é
bastante desfavorável para o obrigado à preferência, pois perde a capacidade de negociar em
conjunto e retrai, inevitavelmente, os potenciais adquirentes, desejáveis de evitar todo o possível
litígio subsequente, que é péssima para os negócios. Cabe, todavia, sublinhar que ao celebrar um
pacto de preferência, o obrigado assume o encargo de manter a coisa isolada, para permitir o
exercício da preferência. De outro modo, o pacto de pouco ou nada valeria. E quando existam
preferências legais, foi o legislador que optou pela primazia dos interesses do preferente, em
relação aos do obrigado e de terceiros. Impõe-se aqui sempre uma sindicância, no sentido de se
verificar se os valores prosseguidos pela lei estão a ser concretizados no terreno ou se há abuso do
direito de preferir.)
De acordo com o disposto no artigo 418.º, pode acontecer que o obrigado à preferência
receba de terceiro, que pretenda adquirir o objeto do direito de preferência, a promessa de
uma
prestação acessória (por exemplo, serviço pessoal), que o titular da preferência não possa
satisfazer. (Imagine-se que A pretende vender um terreno que é objeto de direito de preferência de
B. O terceiro interessado na aquisição do terreno pode, acessoriamente, dizer que presta um
serviço de consultoria profissional a A. Será que se mantém a preferência? Na economia do
contrato, não terá a prestação acessória relevo. Temos três hipóteses: se o objetivo da prestação
acessória for afastar a preferência, ela tem-se por inexistente; se a prestação puder ser avaliada em
dinheiro, o preferente pode acrescentar o valor dela ao preço convencionado (o sujeito não pode
fazer aquilo que o terceiro se ofereceu a fazer por não ter conhecimentos técnicos naquela área,
mas pode pagar uma quantia, por isso a preferência não se extingue); se a prestação oferecida não
for avaliável em dinheiro, a preferência extingue-se, devendo o preferente ser indemnizado, a não
ser que se presuma que a venda seria efetuada mesmo sem a prestação estipulada ou que a
prestação foi convencionada precisamente para excluir a preferência.)
O artigo 419.º regula a situação da pluralidade de titulares. Quando o pacto de preferência
se estabeleça entre um obrigado e mais do que um titular, temos duas opções:
− O direito é exercido por todos os titulares (regra geral). Manda o 419.º/1 que o
direito seja exercido pelos titulares em conjunto, mas se em relação a um dos
titulares o direito se extinguir ou o titular não quiser preferir, então o seu direito
acresce ao direito dos restantes. Estas são as preferências conjuntas.
− O direito é exercido exclusivamente por um de entre vários titulares. Estas são as
preferências disjuntas. Manda o 419.º/2 que, nos casos em que o pacto não tenha
estabelecido um critério de prioridade (preferências sucessivas, nas quais o direito é
submetido ao primeiro, passando ao segundo se ele não quiser exerce-lo e assim
sucessivamente), se abra uma licitação entre todos os titulares, revertendo o
excesso para o obrigado à preferência. (Por exemplo, há vários arrendatários de
um prédio e o dono pretende alienar o prédio no seu conjunto, os arrendatários têm
direito de preferência. Os vários inquilinos querem preferir, então haverá lugar a um
leilão entre eles. Quem vencer tem direito a haver para si o prédio que é vendido e
reverte o excesso do resultado do leilão para o alienante.)
Quando é que temos só um direito de preferência com vários titulares ou vários
direitos de preferência? Depende de poderem ou não exercer a sua posição individualmente. Em
termos de comunicação, deve ser feita sempre a todos os preferentes, só depois se abrindo o
processo de escolha entre eles. Da mesma forma, não pode um preferente exercer validamente o
seu direito se não mostrar que todos os outros foram avisados e que não quiseram ou puderam
preferir.
Na tramitação do direito e da obrigação de preferência, como dita o artigo 420.º, o
legislador estabeleceu o carácter intuitu personae da preferência, seguindo uma regra diferente da
do contrato-promessa. Neste, os direitos e obrigações, em princípio, transmitem-se, porque há uma
vinculação definitiva (só não se transmitem os direitos e obrigações pessoais). Nesta disposição,
estabelece-se a regra contrária: considera-se que o direito de preferência é pessoal, por isso,
em princípio, não será transmissível. Isto vale para as preferências convencionais, porque não
há obrigação de estabelecer preferência e ela é estabelecida, então, à partida, a razão de ser disso
será pessoal. (Em princípio, será de presumir que, por exemplo, falecendo o titular da preferência,
o obrigado já não teria interesse em atribuir preferência a um filho herdeiro. Não vale para as
preferências legais, pois a razão de ser para a Lei as estabelecer justifica a transmissão das
mesmas.)

Partindo do princípio de que a comunicação foi bem feita e que a preferência foi exercida,
não havendo exigência de forma, considera-se o contrato celebrado.
Se houver exigência de forma, tem de se celebrar o contrato prometido, o que pode não vir a
acontecer. Pode também acontecer que o obrigado à preferência nem sequer comunique ao titular
do direito e celebre o contrato com terceiro. Estamos, assim, perante situações de violação da
preferência.
Alguns autores afirmam que do direito de preferência decorre apenas a obrigação de não
contratar com terceiro caso o titular do direito de preferência pretenda contratar, mas a
maioria da doutrina diz que é uma obrigação positiva – obriga o sujeito a contratar com o
titular da preferência, caso este o queira. A obrigação decorrente do exercício da preferência
não é a de não contratar com terceiro, é sim uma obrigação de conteúdo positivo de contratar com
quem exerce o direito de preferência. Assim, o sujeito está vinculado a cumprir, mas pode não
cumprir e alienar a um terceiro.
Se o pacto de preferência tiver eficácia meramente obrigacional, o direito real prevalece,
mas o obrigado à preferência tem de indemnizar, dado que é responsável pelos danos
provenientes do desrespeito do direito de preferência (artigo 798.º). Para que seja possível opor a
preferência ao terceiro, é necessário que ela seja dotada de eficácia real.
Não é exigível que o terceiro tenha conhecimento do direito de preferência convencional,
por isso nada obsta a que ele se apresente para contratar. Além disso, não terá de indemnizar o
titular do direito de preferência se as suas expectativas ficarem frustradas, pois a relatividade das
obrigações assim o determina.
O artigo 421.º determina que, nas preferências que não são meramente convencionais, ao
titular do direito de preferência abre-se a possibilidade uma ação de preferência (1410.º), ou
seja, o direito de preferência prevalecerá sobre o contrato já realizado. Essa possibilidade também
está aberta aos titulares de preferências convencionais, se a elas for atribuída eficácia real
(421.º/2). A ação de preferência permite ao titular do direito substituir-se, com efeitos retroativos,
ao adquirente no contrato realizado, tudo se passando como se o contrato tivesse sido celebrado ab
initio entre o obrigado e o preferente. Contudo, não é obrigatório o recurso à ação de
preferência, mas há um prazo (máximo de 6 meses, depois deste tempo a ação caduca) para
recorrer a este meio de tutela, por uma questão de certeza e segurança jurídicas. (O artigo 1410.º
está inserido numa secção relativa à copropriedade. Os coproprietários têm um direito de
preferência em relação às cotas. Foi a propósito da copropriedade que a lei regulou a ação de
preferência, contudo esta última é aplicável a direito de preferência com eficácia real, mesmo que
não tenham nada a ver com situações de copropriedade. Daí que seja feita a remissão para a ação
de preferência.)
A ação de preferência visa a substituição e não a indemnização. Se não houver direito de
substituição, a ação improcede, mesmo tendo eficácia real. Se o bem é destruído, o direito real
desaparece, porque é sempre o direito sobre uma coisa.
Tem sido colocada a questão de saber contra quem deve o titular do direito de
preferência intentar a ação de preferência? Quando tenha havido alienação a terceiro, esse
terceiro tem de ser citado para a ação, mas a dúvida coloca-se quanto ao obrigado à preferência:
deve este ser, também, chamado à ação? Uma coisa é clara: se se quiser cumular com a ação de
preferência uma ação de indemnização pelos danos causados, o obrigado à preferência tem sempre
de ser chamado à ação. Contudo, quando o preferente não queira indemnização, a doutrina não é
unânime. Vários autores como ANTUNES VARELA e RIBEIRO DE FARIA, entendem que
deve, ainda assim, ser o obrigado à preferência chamado à ação, num litisconsórcio necessário
passivo entre alienante e adquirente. Esta seria a solução mais adequada por três ordens de razão: a
primeira reporta ao elemento literal da disposição do 1410.º que, no anteprojeto do Código Civil,
referia a necessidade de se citar “os réus” no plural e não no singular; depois, chamar o
adquirente e o alienante à ação evita a discrepância entre decisões judiciais (imagine-se que o
preferente intenta uma ação de preferência contra ao adquirente que é procedente e depois intenta
uma ação de indemnização contra o alienante que é improcedente); finalmente, colocar-se-ia uma
questão de justiça na distribuição das custas processuais, visto não parecer correto ser o
adquirente a suportar todas as custas do processo, quando o obrigado à preferência é que deu causa
à ação. Apesar destes argumentos, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido não ser
necessário chamar o
obrigado a preferir à ação de preferência, considerando que bastava que a ação fosse intentada
contra o terceiro. Isto não invalida que possa haver uma ação contra o obrigado à preferência, se
o titular do direito assim o quiser (mas terá de intentar especificamente contra ele, podendo até
cumular contra os dois na mesma ação).

O pacto de opção

Os pactos de opção são contratos mediante os quais uma das partes tem um direito
potestativo de, mediante uma declaração unilateral de vontade, fazer surgir um novo contrato
anteriormente combinado com o declaratário.
É próximo da preferência, mas distingue-se desta pelo facto de o contrato ser incerto e
eventual, enquanto que no pacto de opção não, pois há um contrato que está na exclusiva
dependência de um dos sujeitos. Enquanto que o titular do direito de preferência fica investido
na posição de preferido num negócio que o obrigado venha a combinar com um terceiro, num
pacto de opção ele pode forçar o contrato com o obrigado ao pacto de opção – desde que se
verifique a situação, o titular do direito de opção pode fazer surgir um contrato com o obrigado. É
um contrato optativo, pois o sujeito ainda não sabe se quer celebrar um contrato, mas pode
assegurar o direito de o celebrar, combinando que, caso o venha a querer, faz surgir esse contrato
unilateralmente. Uma das partes emite uma declaração negocial, tendo a outra o direito potestativo
de concluir ou não o contrato.
Estes podem formar-se autonomamente ou podem ser inseridos como cláusulas noutros
contratos (sendo neste caso, cláusulas que frequentemente se integram em contratos de trabalho
desportivo e em valores mobiliários e, geralmente, há uma cláusula de remuneração dessas
opções). Não está regulado especificamente no Código Civil, mas acontece ao abrigo da
liberdade contratual. Sendo um regime livre ao abrigo da autonomia privada, o legislador tenta
achar-lhe um regime, muito de acordo com o regime das preferências. Estes pactos só são lícitos
na medida em
que os contratos a respeito dos quais se estabelece a opção sejam lícitos.

Em princípio, tem forma livre. Contudo, se o contrato em relação ao qual se exerce a opção
é formal, é necessário cumprir a forma, pelo que a opção terá de revestir uma forma mínima
compatível com a forma do contrato.
Em regra, têm eficácia meramente obrigacional, mas não está excluída a hipótese de lhes
ser atribuída eficácia real. Pode haver necessidade de indemnizar (artigo 798.º).
Contrato a favor de terceiro

O contrato a favor de terceiro está previsto nos artigos 443.º e seguintes, e constitui uma
exceção à relatividade dos contratos, consistindo numa convenção pela qual alguém (o
promitente) atribui por conta e à ordem de outrem (o promissário) uma vantagem a um
terceiro (o beneficiário) estranho à relação contratual. Assim, temos um terceiro que retira um
benefício de um contrato de que não é parte, adquire um direito próprio a uma prestação. Estes
contratos atribuem mais ao terceiro do que uma vantagem reflexa.
É uma figura de caráter geral e não tem uma causa económico-social determinada, podendo
adaptar-se a muitas necessidades económico-sociais. Podemos ter um contrato-promessa a favor
de terceiro (por exemplo, A promete a B vender um terreno a C), bem como um pacto de
preferência a favor de terceiro (por exemplo, A comprometesse para com B a dar preferência a C).
Um exemplo típico deste tipo de contrato é o seguro de vida: a seguradora, no caso de morte do
segurado, deverá fazer uma atribuição patrimonial aos beneficiários do seguro de vida.
À primeira vista poderíamos dizer que temos uma figura triangular (três sujeitos têm
posições jurídicas afetadas por este tipo de contrato), mas os contraentes são apenas dois.
Contudo, o terceiro beneficia de um contrato alheio e é titular de um direito de crédito que pode
autonomamente exigir do promitente, ou seja, está legitimado a exigir do devedor a realização do
benefício. Muitas vezes beneficiamos de contratos que são celebrados por outras pessoas, mas não
se tem nenhuma pretensão autónoma desse contrato, não se tratando de um contrato a favor de
terceiro (o disposto no artigo 444.º/3 é um falso contrato a favor de terceiro). Para o podermos
considerar assim, tem de haver uma modificação na esfera jurídica do terceiro, atribuindo um
direito subjetivo/próprio por mera força do contrato.
A vantagem atribuída pelo promissário a terceiro pode consistir numa prestação (artigo
443.º/1), mas pode reportar-se, também, à liberação de uma dívida de terceiro ou à
constituição, modificação, transferência ou extinção de direitos reais, nos termos do 443.º/2.
Assim, a vantagem pode ter natureza obrigacional ou real. Para que este contrato se constitua
validamente, é necessário que o promissário tenha na relação um “interesse digno de proteção
legal”, ou seja, um interesse sério e atendível à luz da ordem jurídica em atribuir o direito ao
terceiro beneficiário.
O contrato a favor de terceiro distingue-se de algumas figuras afins, como: a
representação, que pode consubstanciar-se na celebração de um contrato no interesse de outrem,
não diretamente interveniente na relação, contudo, o representado é o verdadeiro contraente (não
podemos dizer que se trata de um terceiro, sendo o representante um mero instrumento da
realização
da sua vontade; o representante não assume direitos para si mesmo, mas para o representado;
assim, através da representação não se visa satisfazer o interesse de alguém alheio ao contrato); o
mandato sem representação, em que o mandatário vai agir no interesse e por conta do mandante,
sendo o mandatário a assumir os direitos e obrigações do contrato que celebrar (o mandante tem
direito a que o mandatário lhe transfira os direitos decorrentes do contrato que este celebrou, só
depois de celebrado o contrato é que fica obrigado a transferir para o mandante os direitos e
obrigações inerentes; por exemplo, B compra a A uma casa no interesse e por conta de C, e o
direito de C de ver transferida a propriedade para a sua esfera jurídica deriva do contrato de
mandato que celebrou com B e não do contrato de CV entre A e B, pelo que não podemos
considerar este último contrato um contrato a favor de terceiro); o contrato com eficácia de
proteção para terceiro, que não atribui direitos a terceiros, mas atribui-lhes uma certa proteção
pelo contrato que é celebrado por outrem no interesse deste (por exemplo, o pai contrata com o
cirurgião por causa de uma intervenção no seu filho, pois o filho não pode exercer autonomamente
o seu direito; neste contrato, apesar dos deveres de prestar só se estabelecerem entre as partes, isto
é, o pai e o cirurgião, há deveres de cuidado que se desprendem desta relação contratual e que se
alargam ao beneficiário da prestação, o cirurgião tem deveres de cuidado perante o filho; o
devedor está adstrito a determinados deveres de prestar com a contraparte, mas há deveres de
cuidado que beneficiam um terceiro, há a tutela de deveres de boa fé que expressam o caráter
complexo da relação obrigacional, e assim os deveres acessórios de conduta podem beneficiar esse
terceiro; já no contrato a favor de terceiro, este tem uma posição jurídica autónoma que pode
exercer contra o promitente e tem um interesse que é prosseguido por essa posição jurídica
autónoma, um direito de crédito verdadeiro que pode exigir).
Há dois tipos de relações a considerar no contrato a favor de terceiro:

− A relação de provisão ou de cobertura é a que se estabelece entre o promitente e o


promissário, de onde promana o direito do terceiro. (A prestação que o promitente
está obrigado a levar a cabo junto do beneficiário nasce de uma relação que surge do
contrato de seguro, de compra e venda, de transporte, de arrendamento, de doação,
entre outros, e é essa relação que alimenta o direito conferido ao terceiro e é dela que
o promitente retira a contraprestação para a atribuição a que fica adstrito.) Se houver
alguma vicissitude nesta relação, o terceiro não pode beneficiar da promessa da
prestação que lhe foi feita. Se o direito brota da relação também pode repercutir-se na
relação do terceiro. Esta relação fixa os direitos e deveres recíprocos, bem como os
meios de defesa que podem opor um ao outro. Os direitos do promitente na
relação de provisão são os seguintes: o promitente pode opor quer ao
promissário, quer
ao beneficiário, todos os meios de defesa derivados do contrato a favor de
terceiro (artigo 449.º – por exemplo, exceção de não cumprimento; nulidade ou
anulação por carência de forma ou vícios da vontade; caducidade por verificação da
condição resolutiva, etc.), mas não pode o promitente opor ao terceiro
beneficiário meios de defesa baseados em qualquer outra relação que mantenha
com o promissário, nem na relação entre o promissário e o terceiro; se o promitente
já tiver cumprido a prestação e o contrato vier a ser declarado inválido ou por
qualquer outra razão se torne ineficaz, o promitente não pode exigir a restituição
da prestação ao terceiro, mas tem o direito a ser ressarcido pelo promissário,
nos termos do enriquecimento sem causa (artigo 478.º).
− A relação de valuta estabelece-se entre o promissário e o terceiro beneficiário. Dá-
nos a razão de ser do contrato, ou seja, aquilo que justifica a vinculação do
promitente à realização de uma prestação para com o terceiro. A elasticidade desta
figura faz com que as relações de valuta sejam muitas, não havendo um regime
uniforme para estes contratos. Esta relação dá origem a direito tanto para o
promissário como para o terceiro. Os direitos do terceiro beneficiário na relação
de valuta são os seguintes: em regra, o terceiro adquire direito à prestação como
efeito imediato do contrato, independentemente da aceitação ou até do
conhecimento do contrato (artigo 444.º/1), sendo que uma exceção se coloca para
quando a prestação seja realizada só após a morte do promissário, presumindo-se que
só depois do falecimento adquire o terceiro o direito (artigo 451.º/1); embora o
terceiro beneficie da promessa independentemente da aceitação, só a adesão tem o
efeito de impedir a revogação da promessa por parte do promissário, se nada
for estipulado em contrário (a adesão tem de ser declarada ao promitente e ao
promissário, vejamos no artigo 447.º/3; enquanto não for declarada ao promissário
ele pode revogá-la, vejamos no artigo 448.º/1), e enquanto não for declarada ao
promitente ele não incorre em mora, nem fica vinculado aos deveres acessórios que
nasçam do contrato; o direito de revogação pertence ao promissário, pois é o titular
do interesse, mas se a promessa for feita no interesse de ambos os contraentes, a
revogação pode também ser feita pelo promitente; mesmo depois da adesão, o
terceiro não se torna contraente, mas apenas titular definitivo do direito que o
contrato lhe conferiu); no entanto, o terceiro pode rejeitar o benefício, visto que
ninguém pode ser obrigado a aceitar, ao abrigo da autonomia privada (deve
declarar tal ao promitente que, por sua vez, notificará o
promissário, vejamos no artigo 447.º/1/2; a rejeição destrói retroativamente os efeitos
da aquisição imediata do direito, reconstruindo a situação jurídica anterior ao
contrato); é ao terceiro que cabe o direito à interpelação admonitória em caso de
mora do promitente, mas é ao promissário que cabe o direito de resolver o contrato
a favor de terceiro (com as exceções previstas no artigo 448.º/2); o terceiro pode
introduzir modificações aos termos do cumprimento da prestação,
nomeadamente aceitando uma dação em cumprimento, mesmo contra a vontade do
promissário. A relação de valuta que se estabelece entre o promissário e o
beneficiário tem de ser tal que justifique o benefício atribuído. Pode tratar-se de
uma relação de troca, liberalidade (por exemplo, no caso do seguro de vida), risco ou
cooperação. Analisemos, agora, os direitos do promissário no contrato a favor de
terceiro: salvo disposição em contrário, o promissário pode, a par do beneficiário,
exigir o cumprimento da prestação ao promitente (artigo 444.º/2; conforme o
444.º/3, nos casos de promessa de liberação de dívida do promissário ao terceiro, só
o promissário pode exigir o cumprimento ao promitente); até à comunicação da
adesão pelo terceiro, o promissário é livre de revogar a promessa, exceto (artigo
448.º) se a promessa se destina a ser cumprida após a morte do promissário (podendo
este revoga-la até essa altura), se a prestação for feita no interesse do promitente e
promissário simultaneamente (o promitente tem de autorizar a sua revogação) e caso
as partes tenham estipulado em sentido oposto da revogação até à adesão; após a
aceitação pelo terceiro, o promissário não tem, em regra, o direito de remitir (de
perdoar a dívida) a obrigação do promitente nem modificar a prestação devida; o
promissário pode invocar todos os meios de defesa que advenham da sua
relação com o promitente, e bem como os emergentes da relação de valuta,
podendo mesmo invocar estes últimos depois da aquisição definitiva do direito pelo
terceiro; é ao promissário que cabe o direito de resolver o contrato em caso de
incumprimento definitivo imputável ao promitente, desde que isso não afete ou
não ponha em causa o direito de indemnização de terceiro.
− Podemos ainda considerar uma relação de atribuição, sendo aquela que faz a
transferência do valor da esfera do promitente para a esfera do terceiro.

O artigo 445.º fala-nos de prestações em benefício de pessoa indeterminada: o destinatário


da prestação prevista nos contratos a favor de terceiro é, em regra, uma pessoa determinada. Mas
pode estipular-se uma prestação em benefício de um conjunto indeterminado de pessoas ou que
vise proteger o interesse público. (Esta é uma situação comum nas doações modais – doa-se
avultada fortuna, mas obriga-se o donatário a distribuir periodicamente certa quantia pelos utentes
de certa organização de caridade. Nestes casos, e sendo o terceiro beneficiário indeterminado, o
legislador zela pelo cumprimento da prestação ao garantir que as entidades competentes para a
tutela ou representação do interesse em causa possam exigir do promitente o cumprimento da
prestação, para além do promissário e seus herdeiros. Recusa-se, contudo, que estas entidades,
bem como os herdeiros do promissário, tenham o poder de disporem da prestação, remitindo-a,
compensando-a, etc., visto a prestação visar satisfazer o interesse público ou o interesse ideal do
doador.) Havendo um incumprimento definitivo do contrato imputável ao promitente, estas
entidades podem exigir a indemnização devida, tendo, no entanto, de aplicar esse montante na
promoção dos interesses em causa.
De acordo com o artigo 446.º, os herdeiros do promissório não podem dispor do direito à
prestação de forma contrária daquilo que o promissório queria. O terceiro não pode transferir
o interesse para outras entidades ou a alterar o seu objeto. Vale a vontade do promissório, que é
aquele que efetuou uma contraprestação para que depois o promitente pudesse fazer a prestação a
favor de terceiro.
No disposto no artigo 449.º, compreende-se que a posição do terceiro esteja totalmente
dependente da relação-base, e todas as exceções que o promitente possa invocar em relação a
esta, também se possam repercutir na posição do terceiro. Contudo, este artigo diz que o
promitente não pode opor ao terceiro as exceções derivadas da relação de valuta e sim apenas as
exceções da relação base. A relação de valuta não é discutida pelo promitente. (Por exemplo,
poderá A recusar-se ao cumprimento perante C porque o promissário não pagou os prémios de
seguro? A resposta é sim.) Se a relação-base tiver alguma vicissitude, o terceiro sofrerá por
causa disso – é justo que assim seja. A relação de atribuição depende da relação-base. O que
não pode o promitente fazer é opor os meios de defesa da relação de valuta – é uma relação que
não diz respeito ao promitente, pois as razões pelas quais o promissário pretende que o promitente
faça uma prestação a terceiro só dizem respeito ao promissário e ao terceiro. No 449.º/2 ,vemos
que tanto o terceiro como o promissário podem exigir do promitente o cumprimento da
prestação, mas se eles não estiverem de acordo (em caso de conflito), em princípio
prevalecerá o interesse do terceiro, pois se assim não fosse, permitir-se-ia ao promitente que
opusesse meios de defesa da relação de valuta, o que não pode acontecer (só pode opor meios de
defesa da relação-base), além de que a finalidade do contrato a favor de terceiro é a atribuição
de um benefício a um terceiro.
Também só são oponíveis ao terceiro, por parte do promitente, os meios de defesa derivados do
contrato, não outros que advenham de outra relação entre promitente e promissário.

Contrato para pessoa a nomear

O contrato para pessoa a nomear consiste na convenção pela qual um dos contraentes, no
momento da sua celebração, se reserva o direito de nomear um terceiro que se substitua a si,
ou seja, que adquira a posição emergente desse mesmo contrato (adquira direitos e assume
obrigações dai provenientes) com efeitos retroativos.
No momento de celebração do contrato, é indeterminada a identidade do sujeito que virá
a adquirir (tudo se passa como se o contrato tivesse sido celebrado com esse terceiro ab initio).
No Direito Romano, era uma matéria complicada, mas ao longo do tempo foi desempenhando uma
função importante no comércio, ganhando relevância especialmente na área do Direito Comercial.
O seu regime está previsto entre os artigos 452.º e 456.º.
(Por exemplo, B quer comprar um prédio para C, mas não sabe se ele o quererá adquirir nem
tem meio de o contactar em tempo útil. Sucede que B estará interessado em adquirir o prédio se C
não estiver, pelo que celebra o contrato de compra e venda com o alienante acrescentando uma
cláusula para pessoa a nomear: se C desejar o prédio, B será substituído no contrato; se C não
estiver interessado, tudo se mantém intocado. Desta forma, evita-se uma dupla transmissão ou uma
dupla tributação fiscal, o que é perfeitamente legítimo.)
Temos uma relação triangular – os contraentes e um terceiro:

− O promitens, contraente que promete uma prestação a outrem.

− O stipulas, contraente que reserva a possibilidade de nomear um terceiro, estipula a


cláusula de pessoa a nomear.
− O amicus, aquele que pode ser nomeado.

A cláusula de pessoa a nomear é, por si só, perfeitamente lícita, não o sendo quando
seja utilizada com intuito defraudatório. (Por exemplo, como a intenção de fuga ao fisco. O
Banco quer comprar um imóvel, havendo contrato para pessoa a nomear, o Banco vai adquirir
retroativamente a posição do contraente que celebrou o contrato de compra e venda e tudo se passa
como se ab initio o contrato fosse celebrado pelo banco. Assim, só se pagava uma vez o IMT, ao
passo que se houvesse mandato sem representação teria de existir um ato de transmissão do
mandatário para o Banco.)
Este tipo de contrato respeita a eficácia relativa dos contratos, pois produz efeitos
apenas entre os contraentes, só que esses contraentes podem mudar: inicialmente, o contrato
produz efeitos entre as partes outorgantes do contrato e depois da nomeação o terceiro substitui
aquele que o nomeou. Não se pretende sempre que a identidade do eventual nomeado seja
desconhecida, até pode ser conhecida desde que se reserve a possibilidade de vir a surtir efeitos a
uma pessoa a nomear.
Algumas figuras próximas, das quais distinguimos este contrato, são: a representação, mas
nesta não há substituição, os efeitos do contrato produzem-se diretamente na esfera do
representado, e sabe-se quem é o terceiro (no contrato para pessoa a nomear, ele é celebrado em
nome próprio, mas com reserva de nomeação, por isso pode haver substituição da parte contratual
com efeitos retroativos, como vemos no artigo 455.º/1, e não sabemos quem é o terceiro; assim, os
efeitos produzem-se inicialmente em relação ao interveniente no contrato e, só depois, podem vir a
produzir-se na esfera jurídica de uma outra pessoa); o contrato a favor de terceiro, mas aqui nem
o promitente nem o promissário deixam de ser os contraentes e o terceiro não faz parte do
contrato, embora este tenha efeitos na sua esfera jurídica (enquanto que, no contrato para pessoa a
nomear, uma vez efetuada a nomeação, um dos contraentes perde essa qualidade, desaparecendo
da relação contratual, assumindo o terceiro o seu lugar; é perfeitamente possível haver contrato a
favor de terceiro com cláusula para pessoa a nomear); o mandato sem representação, cujos
efeitos são entre os contraentes, depois tem de haver transferência da propriedade para o mandante
(é possível haver mandato sem representação em que o mandatário se reserva o direito de nomear
o mandante; havendo mandato sem representação, tem de se transferir a propriedade, mas havendo
cláusula de pessoa a nomear é bem mais simples – o mandante intervém diretamente no negócio,
não há necessidade da posterior transferência de propriedade; o mandatário não deixa de ser
contraente em face dos terceiros com quem negociou, mesmo depois de transferir para o mandante
os direitos adquiridos em execução do mandato; no contrato para pessoa a nomear, uma vez feita a
nomeação, os efeitos do negócio passam a ser encabeçados retroativamente pelo nomeado); a
gestão de negócio, em que alguém espontaneamente prossegue o interesse de negócio alheio sem
para tal ser autorizado (por exemplo, pessoa compra ração para alimentar o cão do vizinho, já que
este está hospitalizado – atua no interesse e por conta de outrem sem estar autorizado); o
contrato- promessa, em que há apenas uma promessa de contratar, ao passo que no contrato para
pessoa a nomear temos já um contrato definitivo.
No que respeita ao regime do contrato para pessoa a nomear, diz o artigo 452.º/2 que, em
princípio, uma cláusula de pessoa a nomear pode ser aposta a uma variedade de contratos
(comum no Direito Comercial).
Contudo, há contratos em que a reserva de nomeação não é possível: quando a Lei não
admita representação para aquele negócio e quando seja indispensável a determinação dos
contraentes. [Cairão neste âmbito: o casamento (como todos os contratos relativos a relações
familiares); os contratos intuito personae; e os contratos que modifiquem ou extingam relações
jurídicas, onde só as partes podem ser sujeitas.]
Diz o artigo 453.º que, em regra, quando o contraente se reserva perante a contraparte
na faculdade de nomear um terceiro como titular do contrato segue-se uma declaração de
nomeação que deve ser feita por escrito (por razões de segurança jurídica) e comunicada à
contraparte no prazo convencionado ou, nada se dizendo, no prazo supletivo de 5 dias. O
prazo supletivo é bastante curto, uma vez que se pretende a proteção da contraparte face à
incerteza gerada pela cláusula de pessoa a nomear. A declaração de nomeação tem de ser
acompanhada da ratificação do negócio pela pessoa nomeada ou de uma procuração com poderes
para o efeito com data anterior à celebração do negócio, sob pena de ineficácia. Para que o terceiro
fique vinculado é necessário que aceite a nomeação – representa uma vontade de assumir os
efeitos jurídicos do negócio do quail não é parte, tratando-se de uma legitimação que opera através
de procuração prévia ou de ratificação (453.º/2). A declaração de nomeação só por si não surte
efeitos.
De acordo com o artigo 454.º, a ratificação tem de ser feita por escrito ou, se o contrato
foi celebrado com uma forma especial, tem a ratificação de obedecer à forma pela qual o
contrato foi celebrado.
Sendo a nomeação feita nos termos legais, o nomeado adquire retroativamente todos os
direitos e obrigações emergentes do contrato, passando-se tudo como se o nomeado fosse o
contraente originário (455.º/1). Se existirem irregularidades na nomeação (se não for feita nos
termos legalmente previstos), o contrato produzirá efeitos em relação ao contraente originário, ou
seja, consolida-se entre os contraentes originários, a não ser que haja acordo em contrário
(455.º/2). Se o contrato for sujeito a registo, a cláusula de pessoa a nomear também deve ser
registada (456.º). Quando se der a nomeação, há lugar a uma inscrição subsequente no registo,
através de averbamento. É importante que a cláusula seja registada, pois assim a nomeação
de terceiro prevalece sobre qualquer direito constituído sobre a coisa entre a celebração do
contrato e a nomeação. Não sendo a cláusula registada, parece que devem prevalecer os direitos
adquiridos por
terceiro entre o momento da celebração do contrato e o momento da nomeação.
Existem várias teorias sobre a natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear.
Alguns autores afirmam que o que temos aqui uma modalidade especial da representação de
uma pessoa anónima, mas não podemos aceitar esta teoria, dado que aquele que contrai o
contrato age em nome próprio.
Outras teorias defendem que se trata de uma modalidade especial de mandato sem
representação ou de contrato a favor de terceiro, mas não é isso que se verifica, como mostram
as diferenças que apontámos entre estas figuras.
ANTUNES VARELA e RIBEIRO DE FARIA (seguindo a doutrina dominante) dizem que
temos um contrato sujeito a uma dupla condição: nomeação e aceitação. Assim, seria uma
condição resolutiva relativamente ao contraente originário (aquele que nomeia), pois a partir
do momento em que nomeia alguém a sua intervenção termina; e condição suspensiva
relativamente à pessoa nomeada, que só fica vinculado a partir do ato de aceitação.

O problema dos contratos enquanto relações contratuais de facto

Atualmente, com o tráfego jurídicos de massas, tem-se mostrado relevante a categoria das
relações contratuais de facto, em que se ultrapassa a bilateralidade típica apontada aos contratos.
[Exemplo de um caso germânico que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal Germânico,
que se traduziu na situação de alguém ter colocado o seu automóvel num parque de
estacionamento em Hamburgo, afirmando que, quando lá entrou, entendeu que a exploração do
parque era ilegítima e que não estava disponível para celebrar qualquer contrato e pagar o
respetivo preço, não se considerava vinculado ao pagamento do respetivo preço. No final do
período em que o automóvel lá esteve depositado, efetivamente ao querer retirá-lo, o dono do
parque exigiu esse preço. Um dos pontos sensíveis deste caso era perceber se havia sido celebrado
um contrato ou não... introduz-se assim o tema das relações contratuais de facto.]
Ao lado dos contratos que têm um processo de formação – proposta e aceitação –, que
assentam num consenso das partes efetivamente produzido, devemos também aceitar, porque a
vida prática a tal nos conduz, contratos com um processo de formação diferente, contratos
como realidades meramente fácticas, como manifestações da vida que, por ocorrerem
independentemente da vontade ou não vontade nesse sentido, acabam por chegar à aplicação
do regime dos contratos?
De facto, estas relações, assentes em atuações de facto, não têm na sua base formativa
declarações de vontade formais ou tradicionais. Incluem-se nestas situações os designados
“comportamentos sociais típicos”, em que as relações entre as partes decorrem por via de atos
materiais reveladores da vontade de negociar (por exemplo, a utilização dos transportes
públicos, das máquinas automáticas, dos parques de estacionamento pagos, entre outros). Aqui,
conquanto não haja nenhuma declaração de vontade do utilizador, considera-se estar reunidos os
pressupostos das relações contratuais.
Designa-as ANTUNES VARELA como relações contratuais “abreviadas ou simplificadas”,
permitidas pelo artigo 234.º. Prescinde-se da declaração de aceitação, mas jamais da vontade de
aceitação, demonstrada pelos atos de execução da vontade.
No entanto, a expressão “relações contratuais de facto” remete-nos a HAUPT, um jurista
alemão que, em 1941, procurou introduzir o tipo, apresentando três categorias fundamentais do
mesmo:
1. As relações derivadas do mero contacto social (culpa in contrahendo), ditando
que, em algumas circunstâncias, bastaria o contacto social para que se devesse
considerar a existência de um contrato, dando como exemplo os deveres in
contrahendo. A culpa in contrahendo, na altura, não tinha base legal no Direito
germânico, só em 2002 passando a existir (mais de um século depois do BGB ter sido
introduzido), e era vista como uma espécie de contrato de facto relacionado com a
entrada em negociações. Outras hipóteses aqui seriam as relações de amizade, de
cortesia, de boleia (transporte gratuito, que geraria determinados efeitos não pela
celebração de um contrato mas por ser uma relação contratual de facto).
2. As relações obrigacionais duradouras inválidas. (Imaginemos um contrato de
trabalho nulo – o que fazer quando um contrato de trabalho, que pode ter produzido
efeitos práticos na vida das pessoas durante vários anos, se vê nulo? Ou uma
sociedade, que apesar de inválida, pode funcionar como uma sociedade de facto.)
3. As relações obrigacionais derivadas de comportamentos sociais típicos do
moderno tráfego de massas, HAUPT admitindo que as relações contratuais
baseadas em simples factos, em hipóteses em que estão em causa comportamentos
sociais típicos, muitas vezes automatizados, repetitivos, que um número
indeterminado de pessoas adota ou pratica, e em que não importaria saber se há
vontade ou não, porque o estatuto do contrato aplicar-se-ia a essa realidade de facto.
(Os indivíduos que entram no metro, todas as manhãs, quando vão para o
trabalho – vejamos, há aqui uma
multiplicidade de contratos. Esses seriam derivados, não propriamente da expressão
da vontade das partes, mas de comportamentos sociais, de realidades de facto.)
Porém, admitir as relações contratuais de facto equivale a admitir que tudo possa ser
fonte de obrigações. Para solucionar este problema, HAUPT apresenta a tese das relações
contratuais de facto, nos termos da qual se considerariam certas situações como relações
obrigacionais contratuais, ainda que sem as correspondentes declarações de vontade,
apelando- se apenas aos comportamentos de facto. Assim, as relações contratuais reclamariam o
regime do contrato, ainda que não tivessem por base nenhum contrato.
Por parecer que nenhuma destas realidades seria capaz de ser explicada adequadamente pela
dogmática comum dos contratos, (a tese d)as relações contratuais de facto proporcionariam a estas
três categorias uma explicação jurídica adequada. Temos um dilema – afinal de contas, o Direito
dos Contratos assentaria numa bifurcação: por um lado, teríamos os contratos formados por
declarações negociais, expressões da vontade, e por outro lado, teríamos contratos como
realidades de facto. Ou seja, uma dupla natureza do tema dos contratos – ao lado do conceito
tradicional de “contrato”, tínhamos uma realidade fáctica correspondente à existência de um
contrato, que seria necessário adotar para conseguir compreender determinados fenómenos da vida
contemporânea.
Para explicar esta ideia, REIZER, outro autor alemão, diz que o contrato não deveria ser
considerado assente na vontade dos sujeitos (dogma da vontade), propondo substituir o papel da
vontade por um conceito funcional do contrato, o que importaria um conceito de contrato que
permitisse prosseguir certos fins da vida económica, independentemente de esses terem sido
queridos ou não pelos sujeitos.
[Aplicando isto ao caso do parque de estacionamento de Hamburgo, haveria então um
contrato, porque seria razoável assumir a existência do contrato, mesmo face à declaração
ostensiva do sujeito, que não quereria celebrar qualquer espécie de contrato, entendendo não se
encontrar vinculado, nem querendo vincular-se ao preço de pagamento pelo parque de
estacionamento. Seria razoável emitir-se um contrato, porque seria esse o instrumento adequado
para uma troca de bens e serviços como aquela, que tipicamente ocorre numa situação destas.
Teríamos por consequência que o sujeito, independentemente da sua vontade de pagar, iria fazê-lo,
pela existência dessa troca de serviços. CARNEIRO DA FRADA tem dificuldade em aderir a esta
posição, entendendo que há aqui uma petição de princípio. O Professor diz que o que temos de
saber aqui é se há de facto uma troca de serviços porque, ao que parece, se um dos sujeitos não
quis nada disso, há o problema de assumir que existe uma troca de bens ou serviços contra a sua
vontade.]
Como entender então a tese de HAUPT, de acordo com CARNEIRO DA FRADA?

O sistema jurídico, devidamente interpretado, parece ter mecanismos que impedem, tornam
desnecessário, a abertura de uma bifurcação no Direito dos Contratos.
− Antes de mais, vejamos os casos de contacto social (relações de amizade, relações de
cortesia, culpa in contrahendo, etc.). Relativamente a estas hipóteses, não é preciso
adotar a categoria do contrato de facto, porque é a própria ordem jurídica que atribui
efeitos a uma determinada situação fáctica quando as partes entram numa relação de
negociação: é a incidência da boa-fé sobre a mesma, e consequentemente a
necessidade de observar um conjunto de deveres que a boa-fé impõe para estas
circunstâncias. Não é necessário que se admita a existência de um contrato entre as
partes de modo a regular as suas negociações porque, pelo facto de negociarem,
independentemente da sua vontade, as partes estão sujeitas a certas determinações
da ordem jurídica, como é o caso do artigo 227.º. A juridicidade da relação pré-
contratual não carece da categoria do contrato, está assente no Direito objetivo, na
Lei. Nas relações de amizade e de cortesia, não existem propriamente contratos, mas
isso não significa que das mesmas não possam advir determinados deveres de
consideração ou de cuidado como relações sociais que são, aplicando-se a estas,
também, regras de conduta que advêm da boa-fé. (No exemplo do indivíduo que se
compromete a dar boleia a outrem para a Faculdade, diz-se que, de acordo com
aquilo que é a interpretação usual destes comportamentos, não há, de facto, vontade
de assumir qualquer compromisso contratual nesse sentido e, portanto, não é
razoável admitir-se numa situação destas a existência de um contrato de transporte.
Mas isso não significa que não haja aqui uma relação que obrigue as partes a
determinados comportamentos, designadamente o aviso à outra parte se há alguma
alteração de planos que impeça a realização do inicialmente programado, de modo a
evitar prejuízos.) A facilidade que, nestas relações, qualquer uma das partes tem de
as modificar, de desistir daquilo que foi combinado, etc., mostra que não há
juridicidade, porque se houvesse contrato, seria necessário cumprir-se, e nenhuma
das partes poderia andar a mudar unilateralmente a sua disposição nessa matéria.
Portanto, nestes casos de contacto social não precisamos da categoria dos contratos
de facto, porque a boa-fé já é incidente sobre aquela relação, que é de facto, só que
não é contrato.
− No que respeita aos contratos duradouros nulos ou anulados, entendemos que existe
um problema, que é o de o que fazer a toda aquela troca de bens e serviços que se foi
fazendo ao longo da vida da relação em causa? (Pense-se numa sociedade que
desenvolveu a sua atividade durante muitos anos, mas que teria sido inválida ad
initio.) O artigo 289.º do Código Civil, em matéria de efeitos da nulidade e da
anulação, prescreve a restituição de tudo aquilo que tiver sido prestado pelas partes
na relação contratual que se veio a verificar inválida, nula ou anulada. Esta relação
contratual dá lugar a uma relação de liquidação, uma relação de repristinação,
recolocando as partes na posição em que se encontrariam caso não tivesse sido
celebrado aquele contrato inválido. Esta obrigação de restituição das prestações
(em espécie ou em valor respetivo), nestas situações, não é de todo prática, e seria
até uma violência aplicá-la em certas relações contratuais. (Por exemplo, um
contrato de trabalho é declarado nulo, significa que a entidade patronal teria que
restituir o trabalho, teria que ser por equivalente, isto é, o valor do trabalho, quando
se calhar até o enriquecimento derivado da prestação de trabalho pode ter já
desaparecido, e o trabalhador teria de restituir o salário, sendo pecuniário haveria
sempre a possibilidade de o restituir. Numa hipótese destas, poderia haver
compensação de valores, mas não é necessariamente de soma 0, só por coincidência
é que seria de soma 0, se fosse de soma 0, no final ninguém teria de dar nada a
ninguém, portanto, tudo se consertaria de alguma maneira. Mas o valor do trabalho
não é o valor da retribuição paga, e é difícil que assim o seja, supor por exemplo, que
o trabalhador era pago por um salário acima da média do trabalho que ele executava,
à partida o trabalhador teria de restituir mais do que receberia, ao fim de quatro ou
cinco anos de trabalho, faria sentido isso? Ou seja, se numa sociedade de facto que
tivesse funcionado uma série de anos, faria sentido nós restituirmos tudo, destruirmos
tudo o que tivesse sido feito ao abrigo dessa sociedade de facto?) Compreende-se a
dificuldade de operarmos adequadamente o princípio da retroatividade nestas
relações duradouras. Para responder a estas situações, poderia dizer-se que houve um
contrato, que de facto se desenvolveu, e portanto devemos aceitar a existência desta
figura para a salvaguarda de efeitos já produzidos, pelo contrato, ainda que entretanto
tenha sido declarado inválido – o problema é que este pensamento não está em lado
nenhum da Lei portuguesa. A doutrina tem procurado resolver estas situações
através de uma diferente interpretação do artigo 289.º no caso das relações
duradouras. ANTUNES VARELA dá a solução: o artigo 289.º manda restituir tudo
aquilo que foi recebido ao abrigo da relação contratual inválida, no entanto, essa
obrigação de restituir, nas relações duradouras, não existiria, porque
nas relações duradouras os efeitos da nulidade ou da anulação só seriam
sentidos ex nunc (dali para a frente). Tudo o que está antes do momento de
declaração de nulidade ou da anulação, não haveria de ser restituído, não havendo
eficácia retroativa, repita-se, nas relações duradouras. Poderíamos até concordar com
o pensamento de ANTUNES VARELA, no entanto não é isso, de todo, que nos
aparece no artigo 289.º. O artigo não prevê qualquer restrição da retroatividade nos
casos em que a relação é duradoura. Embora percebamos o pensamento do autor,
teríamos de restringuir a retroatividade do artigo 289.º às relações instantâneas,
restrição esta que não tem assento na Lei de momento, não cabe no artigo. Quid
iuris? Temos de justificar a perduração dos efeitos dos contratos inválidos à luz
de outras regras ou de outros princípios. CARNEIRO DA FRADA propõe que
procuremos, sobretudo, mobilizar a doutrina da confiança, que assenta não na
vontade dos sujeitos como vontade produtora de efeitos jurídicos, mas na realidade
simples das expectativas, da convicção que as partes possam ter de que, realmente, o
seu comportamento tem determinados efeitos e determinada cobertura legal. Ou seja,
as partes numa relação duradoura, andaram a agir/a comportarem-se reciprocamente
como se aquele contrato fosse válido, quando no fim de contas, não era, mas a
convicção das partes sempre foi, ao longo dos anos, a de que aquele contrato era
válido. Se a dificuldade é sustentar que o artigo 289.º impede a restituição retroativa
das prestações, nos contratos de relações duradouras, não estando isso lá dito, o que
parece a CARNEIRO DA FRADA é que, em casos deste género, se poderia
contra-argumentar que, independentemente da validade do contrato, as partes
executaram-no na convicção de que esse contrato era válido. Essa convicção foi
sendo reciprocamente alimentada, o contrato foi executado durante muito tempo, e as
partes estavam convencidas da validade do contrato. A contraparte contribuiu para
isso, executando o contrato, pelo que, ao vir invocar uma invalidade, requerendo a
repristinação de tudo o que foi prestado no seio desse contrato, na verdade a
contraparte está a incorrer numa contradição de comportamento relativamente ao que
sempre teve – há um venire contra factum proprium, há um abuso de direito. E
desta forma, ao admitir-se uma preclusão por abuso do direito (o direito à
restituição é parado, precludido), significa que tem como consequência que o
contrato é como que se tivesse produzido efeitos, tornar-se, portanto, a nulidade
inoponível, é significar que aquela ineficácia ao ser inoponível
produz os efeitos correspondentes àqueles que existiriam se realmente o contrato não
tivesse o vício.
− Por fim, no que concerne aos comportamentos sociais típicos, estes
comportamentos, das duas uma: ou correspondem efetivamente a declarações de
vontade, ou então temos de lhes atribuir outros efeitos e outras consequências.
Relativamente às hipóteses de comportamentos mecanizados no tráfego jurídico de
massas, CARNEIRO DA FRADA supõe que a doutrina geral dos contratos permite
dar uma resposta satisfatória – há uma vontade de produção de efeitos jurídicos, há
uma oferta ao público (por parte de determinadas entidades, uma proposta
contratual feita pelas mesmas, exploradora de determinada atividade, por exemplo, a
STCP faz a proposta contratual enquanto entidade exploradora de transportes) e há
um comportamento concludente que expressa uma manifestação de vontade de
aceitação dessa proposta. Nos termos do artigo 234.º, há circunstâncias em que a
declaração de aceitação não precisa de ser levada ao conhecimento do
preponente para que o contrato se tenha celebrado e dado como eficaz. O artigo
234.º fala da dispensa de aceitação em relação aos contratos cuja celebração não
dependa da declaração de vontade, e dessa declaração ser levada ao conhecimento da
contraparte, bastando que o comportamento de acordo com os usos sociais mostre
essa intenção. As condutas mecânicas que pretendemos abordar aqui representam
uma aquiescência por parte da Lei. Atenção! A Lei não prescinde da vontade de
celebrar o contrato, mas a vontade é tipicamente presente nestes casos, é uma
vontade tipicamente presumida – as pessoas celebram aqueles contratos porque de
facto à partida o querem e, o seu comportamento tudo indica que efetivamente o
pretendem. Para celebrarem um contrato não é preciso uma consciência atual dos
efeitos jurídicos, algumas vezes essa consciência existe (a pessoa quando comprou o
passe tem essa noção de que há uma troca de bens e serviços juridicamente
vinculante). A consciência não tem de ser atual, a vontade de produção de efeitos
jurídicos também não tem de ser atual, mas existe e, portanto, no tráfego jurídico de
massas, podemos dizer que é o que tipicamente acontece. As dificuldades centram-se
nas hipóteses em que o sujeito afasta o significado usual que, em termos sociais,
a conduta que adota tem, para dizer que não quer celebrar um contrato (que foi
o que aconteceu no caso do parque de estacionamento em Hamburgo). Quid iuris?
Quem adota um determinado comportamento depois não pode a posteriori
afastar aquilo que decorre da
interpretação usual do comportamento que teve (mas neste caso, o problemático é
que, à partida, o sujeito declarou que não queria celebrar nenhum contrato, que não
sentia vinculado ao pagamento do preço, portanto exclui o significado que
usualmente damos ao comportamento de uma pessoa que coloque o carro no parque
de estacionamento). Admitir, aqui, a existência de um contrato é forçar a base
valorativa do contrato – porque é que o contrato vincula? O contrato vincula porque
é querido que assim o seja, sendo essa a grande razão que justifica a vinculatividade,
respeitando a autonomia privada e protegendo-se, através da ordem jurídica, esse
contrato. Admitir um contrato contra a vontade do sujeito é atingir a base que
justifica o princípio pacta sunt servanda – os contratos devem ser pontualmente
cumpridos porque foi assim determinado pelas partes, porque foi essa a sua
vontade. Sendo fiéis à doutrina do contrato, não podemos aplicá-la nesta situação.
Temos de encontrar caminhos que nos levem à resolução de casos como estes, como
poderia ser a responsabilidade civil, fazendo o sujeito responder pelos prejuízos
causados. (Neste caso, a recusa a contratar, a recusa do pagamento pelo serviço
prestado, pelo parque de estacionamento. Verificando-se que o parque de
estacionamento não funcionava ilegalmente, se o sujeito coloca o automóvel no
mesmo e recusa-se a pagar pelo serviço, impedindo que o proprietário do parque de
estacionamento possa obter rendimento com base naquilo a que tem direito, estamos
então perante uma violação da propriedade ou de um direito real análogo, que dá
lugar a uma indemnização pelo prejuízo causado. Prejuízo que se pode basear na
falta de venda do lugar de estacionamento a outros condutores durante o tempo em
que aquele veículo ali esteve estacionado. Embora não haja aqui um contrato, o
indivíduo é responsável pela tarifa horária que a contraparte deixou de obter
em virtude da sua conduta ilícita. Ele não paga o preço dito pelo contrato, mas o
valor das horas como prejuízo que provocou à contraparte. O problema torna-se
mais complicado se, realmente, o sujeito não tiver nenhum lucro cessante, se
havia lugares vazios não pode o proprietário do parque dizer que, por causa daquela
conduta ilícita, a violação da propriedade, ele deixou de auferir um determinado
rendimento, porque todas as pessoas que quiseram colocaram lá o automóvel
poderiam tê-lo feito nos outros espaços vazios. Nestas hipóteses, em que não é
possível construir um lucro cessante, que o sujeito tenha deixado de obter em virtude
daquela conduta, intervém outro instituo que é o enriquecimento sem causa. O
enriquecimento sem causa é um
instituto que não se deve confundir com os contratos, e que determina que, quando
alguém se encontra indevidamente locupletado à custa de outrem, deve restituir o
montante do seu enriquecimento. Se o sujeito estaciona o automóvel num parque
estacionamento, que está a funcionar regularmente e que tem o direito de explorar
esse mesmo parque, o sujeito está a beneficiar de um determinado serviço que lhe é
proposto mediante certa retribuição. E, ao recusar-se a pagar essa retribuição, ele está
a reter para si uma utilidade sem correspetivo. Portanto, há um enriquecimento sem
causa. Ele não quis celebrar nenhum contrato, mas aproveitou-se de uma utilidade e,
portanto, ele terá de a entregar a quem podia estabelecer os termos de beneficiar
dessa mesma utilidade.)
Conclui-se então que não precisamos de aferir um contrato de facto, porque, ou através da
doutrina da confiança, ou através da responsabilidade civil, ou através do enriquecimento sem
causa, bem como de outros institutos que possam servir no caso, podemos resolver os problemas
que HAUPT propôs distanciar da noção de contrato como a entendíamos, advinda do acordo e da
vontade das partes. Não é necessário que a doutrina rompa com o que é estruturalmente a doutrina
dos contratos, separando os contratos em dependentes da vontade e puramente fácticos.
Quem é que vai determinar quais são os factos dos quais emergem obrigações? Se for
possível a alguém dizer que determinados factos correspondem a contratos e, logo, obrigações,
isso rebenta com aquela preocupação que o elenco de fontes de obrigações tem de não deixar que
as obrigações brotem indiscriminadamente de qualquer circunstância de facto. E é por isso que as
relações contratuais de facto não devem ser admitidas, são perigosas pois podem servir de
pretexto para impor obrigações contratuais a quem efetivamente jamais as quereria
assumir, e essa doutrina deixa de respeitar a base valorativa/fundamento da celebração da
vinculatividade dos contratos que é a vontade das partes.
O contrato é um instrumento de exercício da autonomia privada e, não pode deixar de ser
assim e, não deve ser instrumentalizado para fins que não são esses.
Em suma, relações contratuais de facto não nos interessam – não é que não precisemos de
saber como é que o Direito Civil lida ou pode lidar com estas espécies problemáticas, mas o facto
é que, em si, essa categoria como categoria dogmática não deve ser acolhida. Descreve um
conjunto de questões às quais o civilista tem de estar atento, mas não é de modo a alicerçar uma
doutrina jurídica autónoma e diferente da do direito comum dos contratos.

OS NEGÓCIOS JURÍDICOS UNILATERAIS


Outra fonte negocial das obrigações são os negócios jurídicos unilaterais.

Pela sua própria natureza, pressupõem uma única manifestação de vontade, que
historicamente foi questionada – se e em que termos é que o negócio jurídico (unilateral) era
suscetível de criar obrigações? A obrigação implica um relacionamento intersubjetivo, entre pelo
menos duas pessoas, então como é que é possível uma obrigação surgir apenas por determinação
de uma pessoa, sem qualquer intervenção de outro sujeito? A relação obrigacional implica uma
conexão entre o devedor e o credor e, portanto, seria natural que, pelo menos, essas duas
pessoas tivessem, de alguma forma, envolvidas na fonte de obrigações.
Existiram reservas quanto à possibilidade de constituir obrigações através de negócios
jurídicos unilaterais. No Direito Romano, existiam situações equiparáveis, e também no Direito
Intermédio, como contraponto ao princípio do contrato, a figura universal, ordinariamente fonte
negocial de obrigações.
(As promessas unilaterais de realização de uma prestação através de um negócio unilateral
eram tidas como, tipicamente, a promessa unilateral de uma recompensa – alguém atribui uma
recompensa a quem consiga, por exemplo, encontrar um objeto perdido. Ou as hipóteses dos
títulos de crédito, em que alguns atos respeitantes aos mesmos são unilaterais, por exemplo, o
endosso de um cheque, sendo estes atos unilaterais que geram imediatamente vinculação dos
sujeitos.)
Na altura do liberalismo, a filosofia do contrato ditava a predominância do contrato, “quem
diz contratual diz justo” – o contrato seria justo porque seria assente na liberdade e na
autodeterminação dos sujeitos. Não há afirmação dessa natureza quando estamos perante negócios
jurídicos unilaterais.
O Código de Napoleão veio considerar insuficiente a vontade de uma pessoa para a obrigar
face a outra com carácter de generalidade. O mesmo fez o BGB em 1896, dizendo que para a
constituição de uma obrigação através de um negócio jurídico era necessário um contrato,
salvas as exceções do parágrafo 307, ainda atual no documento alemão. O Código italiano de 1942
estabeleceu que a promessa unilateral de uma prestação não produz efeitos obrigatórios, fora os
casos previstos pela Lei.

A reserva genérica nos ordenamentos à constituição de obrigações por negócio unilateral


contrasta com o dogma do consenso, onde se afere uma explicação e onde surgem críticas. Nos
Direitos continentais, o consenso assumiu papel de fundamento da vinculatividade dos contratos.
Diferentemente, no Direito anglo-saxónico, há um centrar da reflexão sobre as promessas.
Nos contratos obrigacionais, haveria trocas de promessas e aquilo que constituiria o
fundamento do contrato seria essa troca de promessa, a promessa em troca, em sinalagma, em
correspetividade (doutrina in consideration); apela-se aqui à onerosidade das promessas que
tipicamente no tráfego negocial se assumem. Centrando-se na promessa, os anglo-saxónicos têm
alguma reserva quando à promessa unilateral, vendo a promessa interligada com outras promessas,
com sacrifícios patrimoniais ordinariamente constituídos por promessas de sinal contrário nos
contratos.
Agora, em relação ao consenso, o papel das declarações negociais das partes nos contratos
não é sempre idêntico – se, num contrato de compra e venda podemos falar, tendencialmente, de
uma igual relevância da declaração negocial do vendedor e do comprador, o mesmo podemos
também dizer noutros contactos sinalagmáticos, como o direito de empreitada. Mas, noutras
circunstâncias, o papel das partes no consenso não é simultaneamente idêntico (vejamos o
exemplo da doação, em que parece que o mais importante é a declaração negocial do doador,
porque o donatário fica cingido ao papel de aceitar a vinculação do doador). Portanto, nos
contratos gratuitos, percebe-se que o beneficiário, com a sua aceitação, pouco traz para o
fundamento da vinculatividade do contrato, embora realmente esteja ali. Podemos perguntar qual é
o papel da declaração da aceitação num comodato, por exemplo, ou numa doação – será que
efetivamente se justifica continuarmos a ter aquela reserva relativamente ao modo de constituição
das obrigações por declaração unilateral de vontade quando, nestes contratos gratuitos,
tipicamente, o papel do beneficiário da atribuição patrimonial, da doação, num comodato, é um
papel reduzido? Discute-se, então, qual é realmente o papel da declaração negocial do donatário,
por exemplo – há várias razões que justificam a intervenção do donatário, alguns dizendo que,
enquanto o sujeito não aceitar a doação, não alicerça a sua vida na doação, nenhuma razão
havendo para tornar irrevogável a promessa. Isto ajuda-nos a compreender a complexidade desta
matéria e o porquê de acabar por haver justificação para que, na ordem jurídica portuguesa, haja
uma restrição do papel das declarações unilaterais de vontade como formas de constituição de
obrigações.
Se, numa promessa unilateral de prestação, ninguém a leva em conta, se ninguém acredita,
se ninguém a toma seriamente, de forma a torná-la vinculativa, enquanto pelo menos tal acontecer,
não há nenhuma razão para que a promessa seja irrevogável; se é revogável, então não é
vinculativa. O que traz vinculatividade à promessa é uma declaração de aceitação, porque esta
mostra que alguém aceita a vinculação, a torna firma, e com base nela desenvolve os seus planos
de vida. O Direito deixará de ter justificação para admitir a revogabilidade da promessa. Com isto,
dizemos que o consenso é determinante. Ou seja, se alguém leva a cabo uma declaração de
aceitação, está a
revelar que vai ou está já a desenvolver os seus planos de vida com base nessa promessa,
acredita nela, e por isso, gera-se vinculatividade para o promitente, ele está vinculado a
cumprir a promessa. Já não há razão para o Direito admitir a revogabilidade da promessa,
ela torna-se irrevogável, gera-se vinculatividade.
Portanto, uma primeira razão que justifica a reserva em relação à promessa unilateral como
forma de constituição das obrigações é que, se não existir declaração de aceitação que revele
que a contraparte acreditou na promessa, então não há razão para que a promessa seja
irrevogável. Torna-se numa promessa revogável a qualquer momento, sem força, portanto. Não
gera, obrigações, não há vinculatividade, há revogabilidade quando quiser.
Outras razões que justificam a reserva das ordens jurídicas em relação à promessa unilateral
como forma de constituição de obrigações é que, enquanto não houver um encontro entre duas
pessoas numa relação (do autor da promessa unilateral da prestação e do beneficiário da promessa
unilateral da prestação), de facto, pode haver leviandades ou precipitações por parte de quem
queira vincular-se negocialmente. Quando não há contrato, quando não há correspetividade
possível, o mínimo de equilíbrio entre as atribuições feitas pelo autor da prestação e por aquilo que
lhe proporciona o destinatário da prestação (caso típico do contrato de compra e venda, por
exemplo), efetivamente há o risco de o sujeito se precipitar, assumindo vinculações desmesuradas.
Por outro lado, também não há justificação nenhuma para que uma vinculação desmesurada
vincule juridicamente, não há razão para que seja suscetível de produzir efeitos jurídicos, se não
houver ninguém que acredite nela e a torne firme, mediante uma aceitação.

Portanto, recapitulando, existem duas razões para que haja reserva, pelas ordens jurídicas,
em relação à promessa unilateral como forma de constituição de obrigações:
1. Tem de haver aceitação para que faça sentido a irrevogabilidade (da promessa unilateral).

2. Tem de haver encontro entre duas pessoas para que se evitem vinculações
desmesuradas. Refere-se ainda que o argumento dado a favor do princípio do contrato –
segundo o qual ninguém pode ser beneficiado na sua esfera jurídica por mero ato de vontade alheia,
por isso implicar uma intromissão não autorizada na sua esfera jurídica, o que aconteceria se se
admitisse amplamente uma promessa unilateral da prestação como fonte de obrigações, criar-se-
iam créditos na esfera jurídica do destinatário da prestação sem que ele fosse tido ou achado na
constituição desse crédito, e diz-se que isso é comprimir a autonomia privada do sujeito, e assim
se justifica o princípio do contrato, ninguém pode ser beneficiado contra a vontade – é um
argumento exagerado, porque menciona a autonomia privada dos sujeitos como ninguém
podendo ser beneficiado contra a sua vontade na sua esfera jurídica, mesmo tratando-se de um
benefício, o sujeito há de poder afastá-lo
da sua esfera jurídica. CARNEIRO DA FRADA diz que pode ser concedido, na mesma, o
benefício à contraparte, independentemente da aceitação, havendo depois a possibilidade de esta a
rejeitar.
Esta possibilidade de recusar um benefício também é suscetível de ser alcançada permitindo
ao sujeito recusar o crédito constituído, não há aí o dogma do consenso como forma de assegurar
que ninguém possa ser beneficiado contra a sua vontade por um ato jurídico alheio, parece que
este dogma do consenso também não é rigorosamente necessário na medida em que
efetivamente ao sujeito bastava que lhe fosse assegurada a possibilidade de recusar o
benefício (que é o que acontece no contrato a favor de terceiro – o terceiro é beneficiado
automaticamente num contrato que não é celebrado com ele mas em que efetivamente, apesar
disso, a ordem jurídica, não se importa de atribuir esse beneficio imediato a terceiro que adquire o
direito à prestação independentemente da aceitação, mas que não obstante, se permite ao terceiro
recusar o benefício que lhe é atribuído).
Temos aqui um quadro complexo – percebemos que há justificações para termos cautelas na
admissibilidade de promessas unilaterais de prestação como fonte de obrigações, admissibilidade
de que a obrigação possa surgir só porque alguém se comprometeu a determinada prestação; mas
também percebemos que os argumentos são difíceis e, porventura, até de sinal contrário. O dogma
do consenso parece não ser necessário ser invocado para justificar designadamente que alguém
possa recusar um benefício que lhe é atribuído, que uma das partes na relação obrigacional possa
rejeitar o crédito. JOÃO ABRANTES GERALDES diz que na Pandectística alemã não se
entenderam sobre os fundamentos da restrição com que a ordem jurídica deveria encarar a
promessa unilateral.

Centremo-nos nos dados da nossa ordem jurídica – o artigo 457.º diz-nos explicitamente que
a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na Lei. Ao contrário do
princípio da liberdade contratual, no campo das promessas unilaterais de prestação só surgem
obrigações quando a Lei tenha previsto que determinada situação é suscetível de criar uma
vinculação.
O chamado princípio do contrato, a contrario sensu, retira-se – para que se constituam
obrigações por vontade negocial requer-se, em princípio, um contrato, mas só não é assim quando
a Lei o preveja, podendo celebrar-se um negócio jurídico unilateral de promessa de uma prestação.
As justificações são várias: primeiro, não é razoável impor um benefício a alguém contra a sua
vontade, embora se possa satisfazer este requisito concedendo ao beneficiário a possibilidade
de rejeitar a atribuição patrimonial feita (como no contrato a favor de terceiro); segundo, não é
razoável manter-se alguém irrevogavelmente vinculado à sua palavra com base numa
simples
declaração unilateral de vontade enquanto não houver expectativas do beneficiário dignas de
tutela, o que parece que implicará uma aceitação, porque só através da aceitação se consuma
também, aos olhos do promitente, a representação de que alguém, de facto, assume como firme
essa promessa. É esta a grande razão para justificar a restritividade da promessa unilateral da
prestação. Há aqui a necessidade de tutela das expectativas do destinatário da
promessa, confrontando-as com a liberdade de desvinculação do promitente (não havendo
expectativas do beneficiário), protegendo-se também o próprio promitente contra
precipitações e vinculações irrazoáveis, uma vez que não há contrapartidas, dado o carácter
unilateral da promessa de realização
da prestação.

A tipicidade da promessa unilateral como ato constitutivo de obrigações faz com que
seja a Lei que determina as hipóteses em que a promessa pode constituir obrigações, seguindo-se,
portanto, o princípio da tipicidade, que contrasta com a atipicidade em matéria de contratos.
Aqui, está em causa uma tipicidade de formas de constituição de obrigações por negócio
unilateral, e não uma tipicidade de conteúdo.
(Por exemplo, admite-se que através de uma promessa pública, uma recompensa possa
constituir obrigações – artigo 459.º: “aquele que mediante anúncio público prometer uma
prestação àquele que se encontra em determinada situação ou pratique certo facto positivo ou
negativo, fica vinculado desde logo à promessa”. É uma tipicidade de forma, não de conteúdo.
Não se diz o que se promete, nem a ordem jurídica se mete em relação ao objeto da promessa. Mas
a forma sim. Só pode unilateralmente criar-se uma obrigação através de uma promessa pública
neste caso. Também são exemplo os concursos públicos, no artigo 463.º – pode o sujeito ficar
vinculado, e só é válida quando se fixar no anúncio o prazo para apresentação dos concorrentes.
Em concreto: exemplo de alguém que promete uma viagem findo o período de pandemia a quem
ganhar um concurso de matemática por exemplo, esta vinculação é admissível porque se reveste
da forma de concurso 463º, está previsto o concurso público, mas é tipicidade de forma, quanto ao
conteúdo esta na disponibilidade do autor do concurso. Também através do testamento, que é um
negócio jurídico unilateral, podem ser criadas obrigações, é uma forma de constituição da
promessa.
No tráfego comercial, existem muitas promessas unilaterais de prestação, que ultrapassam as
mencionadas – para exemplificar, pertencentes ao Direito Civil, temos o caso das ordens de
transferências, por exemplo bancárias, no Direito Comercial. Nas livranças, quando alguém
subscreve uma livrança, um título de crédito, nós temos uma promessa unilateral de uma
prestação, é uma prestação pecuniária e uma prestação que tem a particularidade de ser inserida
num documento que tem um regime de circulação específica que é a livrança, é um documento,
uma
obrigação; quando alguém endossa um cheque está a assumir uma vinculação perante quem venha
a ser o beneficiário do cheque que pode exigir o cumprimento. E reparemos que, muitas vezes,
estes atos não têm beneficiário conhecido – por exemplo, quando alguém emite um cheque/faz um
endosso ao portador, quando alguém preenche uma livrança sem indicar aquele a quem se destina
a prestação que lá está incluída, fica realmente vinculado, independentemente de qualquer
aceitação de alguma contraparte. Os avales são garantias que se prestam, também conexas com os
títulos de crédito – também aí nós temos atos unilaterais, mediante os quais o sujeito fica
vinculado.
São formas que o tráfego comercial conhece que têm cobertura jurídica, que não contrariam
o princípio da tipicidade das formas de constituição das obrigações por negócio unilateral previsto
no artigo 457.º.)

Existem duas figuras que, embora reguladas no artigo 458.º, na verdade, não são verdadeiros
negócios unilaterais de constituição de obrigações, segundo o entendimento tradicional:
− A promessa de cumprimento (e não de realização) de uma prestação. Quando
alguém declara “eu cumpro, eu vou cumprir, garanto que cumprirei”, não está a
constituir uma obrigação, é uma declaração de cumprimento de uma obrigação, uma
promessa apenas.
− O reconhecimento da dívida, em que alguém reconhece que deve, também
considerado declaração: “eu reconheço que te devo 50 euros”.
Este tipo de declarações está inserido no regime dos negócios jurídicos unilaterais, mas não
corresponde a uma fonte autónoma de obrigações, porque a obrigação que é reconhecida existir ou
que se promete cumprir já se encontra pré-constituída.
Estas duas figuras não têm a virtualidade de constituir obrigações propriamente – então, qual
é a razão destas decorações e seu regime jurídico? Vejamos o artigo 458.º/1. Se alguém, por
simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem a indicação
da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar relação fundamental, cuja existência se
presume até prova em contrário. Podem existir várias razões que dificultem ao credor a prova do
seu crédito. Com uma declaração destas, a posição do credor é beneficiada.
(Quando alguém emite uma declaração, assina, por exemplo, um papel a dizer “eu
reconheço a minha dívida para contigo num montante de 50 euros”; presume-se que essa dívida
existe realmente e que tem uma causa válida, o que significa que o credor fica dispensado, com
esse papel, de demonstrar os factos constitutivos dessa dívida. Normalmente, quando o credor quer
exigir o cumprimento da dívida, é a ele que cabe a demonstração do seu direito, e às vezes isso
pode ser
complicado, se emprestou ou não, as circunstâncias do empréstimo, por exemplo, se se tratam
afinal de 50 euros que advieram de uma obrigação de indemnizar, um prejuízo que o sujeito
causou a outrem, as circunstâncias do prejuízo, saber se de facto havia verdadeiramente
responsabilidade ou não, se tudo assentou num equívoco, entre outros motivos.)
Este regime insere-se na distinção entre negócios causais, que dependem de uma causa
válida para a produção de efeitos, e negócios abstratos, que produzem efeitos independentemente
da existência de uma causa válida.
Existem ainda negócios presuntivos de causa, e a propósito destes temos o disposto no
artigo 458.º – é aqui que pertencem a promessa de cumprimento e o reconhecimento da dívida.
São negócios que geram (formalmente) obrigações, relativamente às quais se presume que existe
uma causa. Não são negócios abstratos, porque esta presunção é iuris tantum (e, portanto,
aquele que emite, por exemplo, uma declaração de dívida a dizer que deve a outrem 50 euros,
pode demonstrar que efetivamente essa dívida não existe, que foi coagido a assinar aquela
declaração ou que, afinal aquilo que lhe subjaz não é uma relação de responsabilidade porque ele
nada fez de mal que justifique a responsabilidade), cede perante prova do contrário, beneficia o
credor enquanto essa prova do contrato não for feita. Quando há presunção, sendo iuris
tantum, realmente o credor fica dispensado de prova da relação fundamental e não basta uma
contraprova decidida a abalar a certeza do credor para que esse credor deixe de poder exigir a
prestação, é preciso prova em contrário. Mas se a prova em contrário é produzida, o direito do
credor não subsiste. E, por isso, os reconhecimentos de dívida, ou as promessas unilaterais de
prestação, não são abstratas, porque não substituem a relação fundamental, fazem presumi-la, mas
se se demonstrar que ela não existe, que não há causa válida, para aquela atribuição patrimonial
titulada pela declaração do reconhecimento de dívida ou pela promessa unilateral, também não há
qualquer razão para o pagamento ser feito, e se há algum pagamento feito, a consequência é, não
havendo causa válida, um enriquecimento sem causa, havendo obrigação de restituir aquilo que foi
indevidamente recebido, ou aquilo que, a ser mantido, constituiria um locupletamento ilegítimo do
beneficiário.

Direito Comercial e títulos de crédito

Vejamos agora que existe efetivamente, nos negócios unilaterais, uma problemática que é
convocada com muita intensidade no Direito Comercial particularmente:
Quando se emite um cheque, o cheque por si só é uma fonte do crédito do beneficiário do
cheque contra o banco sacado, mas se se verificar nas relações imediatas entre o sacador do
cheque
e o beneficiário do cheque que não há razão para o pagamento, toda a atribuição patrimonial que é
feita deve ser restituída, porque subjacente à relação de cheque, há uma outra que a sustenta. Se o
indivíduo passa um cheque para pagar uma dívida, e essa dívida não existe, ou se passa um cheque
para pagar um bem, que vem com defeito, então essa dívida pode ser suscetível de ser anulada, se
o cheque foi pago, esse cheque/essa atribuição patrimonial pode ser revertido/a.
(Vamos supor que o vendedor, que recebeu o cheque, endossa o cheque a outra pessoa, e é
este terceiro que vem exigir do banco sacador do cheque, o pagamento. As exceções derivadas da
relação imediata entre comprador e vendedor, por exemplo, entrega de mercadoria defeituosa, não
são suscetíveis de ser opostas ao terceiro beneficiário, precisamente para facilitar o tráfico
jurídico. Comprador/sacador, vendedor/beneficiário e outra pessoa/terceiro/novo beneficiário. Em
caso de entrega de mercadoria defeituosa, o terceiro beneficiário é a outra pessoa, se o comprador
ficou com um bem defeituoso, e em troca deu o cheque ao vendedor que por sua vez transmitiu-o
a outra pessoa, um terceiro, o comprador não pode opor esta situação ao terceiro nem exigir do
terceiro o cheque.)
Estes títulos de crédito, cheques, livranças, letras, entre outros, destinam-se a circular e a
constituir meios de pagamento, substituição de dinheiro físico, no tráfico comercial, e portanto nas
relações mediatas dos sujeitos com terceiros, não diretamente com os seus parceiros contratuais, as
vicissitudes das relações subjacentes não são suscetíveis de ser invocadas isso é que dá garantia ao
cheque, livrança, letra, é que o seu portador, titular, beneficiário, não está sujeito a que perante ele
sejam invocadas exceções a não ser aquelas que lhe possam ser opostas pela contraparte nas
relações que imediatamente estabeleceu com outrem, portanto, terceiros efetivamente, não podem
prejudicar a sua posição. Isto tem a ver com a nossa matéria porque há um desacoplamento entre a
relação fundamental, e a relação cartular – a relação cartular assenta em negócios jurídicos
unilaterais que são presuntivos de causa nas relações entre o autor do negócio jurídico unilateral,
emitente, e seu beneficiário, mas já não são negócios presuntivos de causa relativamente a
terceiros, porque são negócios abstratos em relação a terceiros.
Diz o Acórdão 5703/10.9YYPRT-A.P1, do Tribunal da Relação do Porto, que: “É terceira,
perante a relação cartular, a portadora de uma livrança que lhe foi transmitida por endosso,
ainda que tenha outorgado no contrato de mútuo, caucionado por essa mesma livrança. (…)
Consequentemente, apresentando-se a exequente como legítima portadora da livrança dada à
execução, não lhe podem ser opostas excepções fundadas pelos oponentes na violação do pacto
de preenchimento por parte do banco.”
Nos termos do regime geral da Lei civil, se o proprietário de um bem dele for ilegitimamente
desapossado, poderá reivindicá-lo de qualquer terceiro a quem o mesmo haja sido, entretanto,
transmitido pelo desapossador, já que a falta de legitimidade deste sempre inquinaria todas as
alienações posteriores a non domino, de acordo com o brocardo nemo plus iuris. Ora, é
exatamente o oposto o regime dos títulos de crédito, onde cada portador do título que legitime a
sua posse de acordo com as respetivas Leis de circulação é havido como titular de um direito
autónomo ou nascido ex novo nas suas mãos, sendo-lhe inoponíveis as excepções procedentes de
posses ou portadores anteriores do mesmo título – artigo 16.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e
Livranças e artigo 21.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
Acresce que a emissão de um título de crédito origina o nascimento de uma relação jurídica
específica – a relação cartular. Com efeito, a emissão de um título não representa um simples ato
de documentação de um negócio ou relação jurídica fundamental, que lhe subjaz e o
explica, originando antes uma relação jurídica a se que passará doravante a ter uma vida e regime
próprios. O título de crédito e a conexa relação cartular são criados através de um negócio
jurídico unilateral: de acordo com a doutrina dominante, o ato constitutivo do título de crédito
reveste a natureza de uma declaração unilateral de vontade dirigida pelo emitente a um sujeito
determinável (artigo 511.º do Código Civil), sendo este determinado mediante a posse do
título segundo a
respetiva Lei de circulação.

Promessa pública

Falamos agora de uma das duas grandes hipóteses de negócio unilateral, que o legislador
previu nesta secção do Código Civil – a promessa pública, que encontramos disposta nos artigos
459.º a 461.º.
Depois de termos falado da promessa de cumprimento e do reconhecimento da dívida, doios
negócios unilaterais especiais, falamos da promessa pública, dizendo o Código que o promitente,
neste caso, “fica vinculado desde logo à promessa”, ou seja, na promessa pública, a
vinculatividade não depende da aceitação. No artigo 459.º/2, encontramos a disposição de que o
promitente fica obrigado mesmo em relação àqueles que se encontrem na situação prevista ou
tenham praticado factos sem atender à promessa. (Diz um anúncio: “Alvíssaras a quem encontrar
a cadela que perdi!”. Determinado indivíduo encontrou a cadela, não fazia ideia da promessa, e
portanto, toda a sua conduta não foi motivada na promessa, mas tem direito à promessa,
porque a promessa é
vinculativa desde o momento em que é efetivamente formulada.) Esta é a solução regra, são regras
supletivas que podem ser afastadas.
No que respeita à validade (artigo 460.º), a promessa pode ser emitida sem prazo de
validade, a recompensa a quem encontrar pode ser feita sem prazo de validade, e se tal for,
mantém-se enquanto não for revogada, claro que, pela natureza das coisas, a partir do momento
em que a promessa atinge o seu objetivo, a cadela é encontrada, o fim da promessa realiza-se e ela
caduca.
− Não tendo prazo de validade, a promessa é revogável a qualquer tempo por parte de
quem a fez.
− Tendo prazo de validade, só é revogável se houver justa causa, diz o artigo 461.º/1.
Se há prazo, o sujeito que quer realizar a conduta que lhe permite a obtenção do
benefício da promessa pode ter planeado a sua vida de forma a beneficiar desse
prazo, e portanto, dentro do mesmo conseguirá obtê-lo devido à irrevogabilidade da
mesma nesse período.
No que respeita ao 461.º/2, que diz que “Em qualquer dos casos, a revogação não é eficaz
se não for feita na forma da promessa ou em forma equivalente (…)”, é necessário que a
revogação seja suscetível de ser levada ao conhecimento do sujeito pela mesma forma da
promessa (de modo a que efetivamente ele não seja, também, frustrado nas suas expectativas,
tendo acreditado na promessa, realmente desenvolveu a sua atividade e, afinal de contas, a
promessa acabou por se revogar de uma forma que não foi possível conhecer). Naturalmente, não
é possível revogar a promessa se a situação prevista já se tiver verificado, ou o facto já tiver
sido praticado.
Pode também acontecer que haja a cooperação de várias pessoas para o resultado da
promessa e, nos termos do artigo 462.º, se assim for há que dividir equitativamente a prestação
atendendo- se à parte que cada uma delas teve nesse resultado. (Se várias pessoas se puseram de
acordo para cercar a cadelinha, que estava um bocado assustada, para a apanhar e entregar ao
respetivo dono, todos colaboraram e, realmente todas têm direito à prestação que terá de ser
dividida equitativamente em função daquilo que cada uma das pessoas participou para a obtenção
do resultado.)

Os concursos públicos

A outra das duas hipóteses que mencionávamos são os concursos públicos, previstos no
artigo 463.º. Em primeiro lugar, convém esclarecer que não se tratam, aqui, dos concursos
públicos de que falamos em Direito Administrativo (em que o autor do concurso é o Estado ou
entidades públicas,
que visam a prossecução de interesses públicos), mas sim de concursos públicos em que há a oferta
da prestação como prémio de um concurso que é aberto a concorrentes, por isso sendo público.
Estes concursos podem ter diversas entidades por autoras de concurso – aquele que faz a
oferta da prestação, que pode ser uma entidade pública (por exemplo, a Câmara Municipal do
Porto) ou uma entidade privada (por exemplo, a TVI) – e esse concurso só é valido se se fixar no
anúncio o prazo para a apresentação dos concorrentes. É uma norma que parece desajustada da
realidade dos concursos, mas quando, em 1966, o legislador regulou isto, os concursos não
estavam assim tão vulgarizados. O problema surge quando alguém promove o concurso, mas sem
indicar as condições, e com isso cria uma certa trapalhada, porque as pessoas acabam por se
entusiasmar com o concurso; não criando essas condições realmente, também se pergunta até que
ponto é que um concurso em que não estejam estabelecidos prazos para a apresentação dos
concorrentes pode vincular o sujeito.
E, segundo a Lei, efetivamente, não é valido o concurso se não houver a apresentação de
um prazo para a apresentação dos concorrentes, porque só se houver a indicação do prazo para
apresentação dos concorrentes é que há uma seriedade mínima da vontade de celebrar um
negócio unilateral nestes termos e, portanto também há uma justificação mínima da
confiança de outras pessoas (potenciais destinatários do concurso), uma confiança legítima
dessas pessoas de como realmente o concurso é um concurso consistente.
Diz o artigo 463.º/2 que a “decisão sobre a admissão dos concorrentes ou a concessão do
prémio a qualquer deles pertence exclusivamente às pessoas designadas no anuncio ou, se não
houver designação, ao promitente” (que é o autor do concurso, podendo naturalmente, também
estabelecer-se um júri, então nesse caso seriam essas as pessoas). Num concurso, verificamos que
a vontade essencial é a do promitente/do autor do concurso, que determina os critérios do
concurso, quem é que vai fazer a seleção, quem é que vai fazer o julgamento (se é o júri, se é ele
próprio), entre outros. As condições do concurso são condições que estão dependentes da
autonomia privada.
Olhando para este regime, verificamos que esse regime é muito parco para captar a
totalidade da realidade negocial atual no trafico negocial dos concursos, porque atualmente
existem múltiplos concursos. [Há milhares de situações de Direito Privado que estão subordinadas
às regras do concurso – concurso para a formação de contratos (no último exemplo dado, o
contrato de trabalho é aquilo que se visa derradeiramente), concursos em que há vinculações que
derivam imediatamente do ato de abertura do concurso para o autor do concurso (o autor do
concurso fica vinculado, nos termos do artigo 463.º, para produzir aquele resultado nos termos em
que o determinou).]
O concurso não tem de terminar com a celebração de um contrato (uma pessoa pode celebrar
um concurso para preenchimento de uma vaga de uma empresa e depois não se apresentarem
candidatos idóneos). O que parece claro é que estes concursos de Direito Privado com vista à
celebração de um contrato com o melhor dos candidatos apresentados criam vinculações que se
não são propriamente vinculações de contratar, são pelo menos vinculações de razoabilidade
ou de proibição de recusa injustificada de contratar.
(Onde é que está este regime dos concursos de Direito Privado, por exemplo, para a
celebração de um contrato de trabalho? Esta figura, que é usual no tráfego jurídico, não está tal e
qual regulada, mas não nenhuma razão para não ser admitida se nós fizermos uma simbiose entre
os preceitos da promessa pública e os preceitos dos concursos públicos. Se integrarmos estes
regimes, nós temos aqui um conjunto de elementos que nos permitem encaixar esta figura, que
ninguém negará, que é a possibilidade de abrir concurso para a celebração de um contrato por uma
empresa, de trabalho, por exemplo.
Ninguém negará essa possibilidade, independentemente de estar expressis verbis regulada na
Lei ou não, sendo que todos aceitam que o autor do concurso fica vinculado aos termos do
concurso e, quanto ao regime, na medida em que este não decorra daquilo que o próprio autor
estabeleceu, temos sempre a possibilidade quanto àquilo que ele não previu de aplicar regras
gerais da promessa e do concurso público, nos termos do Código Civil.

GESTÃO DE NEGÓCIOS

Com a gestão de negócios, iniciamos o estudo das fontes não-negociais de obrigações.

Encontramos a gestão de negócios entre os artigos 464.º e 472.º do Código Civil – ocorre
quando alguém assume a direção de um negócio alheio por interesse e conta do respetivo
dono, sem para tal estar autorizado. Normalmente, a atividade é exercida por benevolência.
Relativamente à natureza da gestão de negócios, a gestão é um título que habilita a
intervenção na esfera jurídica alheia, em nome da solidariedade humana. É esse o cerne da figura.
É um ato lícito, em homenagem ao que tipicamente lhe está subjacente, daí o requisito da
intervenção na esfera jurídica ser feita com o intuito de beneficiar outrem, e de transferir para essa
esfera jurídica de outrem os proveitos de uma conduta própria.
É importante que se distingam as figuras da gestão de negócios das figuras associadas a
situações em que alguém gere negócios ao abrigo de um contrato, aí tendo uma gestão por parte de
alguém habilitado e autorizado a cuidar dos assuntos de outrem. (Por exemplo, uma pessoa sabe
que
o seu vizinho está internado, cuida do seu cão sem que esteja autorizado, ou repara o seu telhado
que, em virtude do mau tempo, foi danificado.) Figuras próximas da gestão de negócios são as
figuras do mandato e do contrato de prestação de serviços – são ambos contratos, enquanto que
na gestão de negócios não existe nenhum [contrato]. O gestor não celebra qualquer contrato com o
dominus, a gestão não é autorizada pelo dominus. Uma vez que a gestão de negócios é destinada
a atribuir um benefício a outrem, é feita no interesse do dono do negócio, corresponde à
caracterização legal da própria, compreende-se que, se tivesse conhecimento da gestão, certamente
que o dominus aceitaria celebrar um contrato com vista ao desenvolvimento da atividade que o
gestor se dispõe a realizar no caso de estar impedido de ele próprio levar a cabo.
Compreende-se, a propósito desta figura, que às vezes se fale de um quase-mandato ou de
um quase-contrato de prestação de serviços, porque se realmente o gestor se procura conformar
com
o interesse do dominus negocie com a sua vontade, é também natural que hipoteticamente, o

dominus estaria na disposição de celebrar esses contratos.

Também importa distinguirmos a gestão de negócios do estado de necessidade: no estado


de necessidade, alguém infringe um dano a outrem para evitar um dano maior, e isso é até uma
causa de justificação. (Quem assim procede, tem uma razão para a sua conduta, e não atua
ilicitamente, quem arromba a porta do vizinho para lá ir buscar o tal extintor que permitirá apagar
o fogo que ameaça consumir todo o prédio, age em estado de necessidade, age licitamente, há uma
justificação para a sua conduta, há uma causa de exclusão daquilo que seria em princípio ilícito –
atentar contra a propriedade alheia –, intromissão no domicílio alheio sem autorização.) E há um
contacto com a gestão de negócios, no sentido em que ao procurar prevenir um mal maior, está-se
também a beneficiar, eventualmente, o titular da esfera jurídica onde esse mal se vai produzir.
Mas, enquanto no estado de necessidade se pressupõe discrepância grande entre o mal a evitar e o
dano que se causa licitamente, justamente para prevenir esse dano maior, na gestão de negócios tal
não é necessário. Há uma destrinça: no estado de necessidade alguém vê-se compelido a atuar para
evitar dano maior; a gestão não se resume àquelas circunstâncias (de necessidade) em que, no
fundo, a pessoa está constrangida a atuar para evitar uma situação muito grave, a gestão de
negócio pode operar para além desses contextos de prevenção de danos graves.

O instituto da gestão de negócios tem várias funções:

− No fundo, a gestão de negócios dá uma cobertura à solidariedade humana, à


cooperação espontânea das pessoas umas com as outras, mesmo não estando
autorizadas, a gestão é normalmente benevolente, há um paradigma da atuação
humana positiva, benéfica, somos todos cidadãos do mesmo mundo, temos uma certa
responsabilidade uns pelos outros, é natural que benevolamente nos interessemos uns
pelos outros. É para esse tipo de atitude que a gestão de negócios dá uma cobertura
jurídica. Há aqui um nível significativo-ideológico que inspira todo o regime.
− Independentemente da benevolência, do altruísmo com que muitas vezes age o gestor
de negócios, a gestão de negócios permite desburocratizar ou desformalizar
relações, facilitando o tráfego jurídico. (Por exemplo: nos mandatos forenses, para
prosseguir uma lide judicial, às vezes não há cobertura do mandato para a prática de
determinados atos processuais, mas para evitar a perda ou a paragem desses mesmos
processos, o advogado pratica o ato, em gestão de negócios, não tem procuração do
cliente, é um cliente antigo, e há uma nova ação, não foi possível obtê-la, mas é
preciso contestar a ação sob pena de haver condenação, pode atuar em gestão de
negócios. O mesmo em relação aos diretores comerciais, podem não ter poderes, mas
serem necessários para salvar um interesse importante da sociedade a atuar.) A
gestão de negócios simplifica, desburocratiza, porque permite atuar, dá um título de
atuação que noutras circunstâncias não existiria.
− A gestão de negócios também permite prevenir danos, danos que são evitados ao
dominus (por exemplo, o conserto do telhado em época de chuva) e isso é importante
afastar perigos que podem vir a ser diluídos por diversas esferas, há aqui uma função
distributiva do risco. (Outro exemplo, um indivíduo preocupado com a proximidade
da época de incêndios, resolve fazer uma intervenção num sítio, mesmo que não seja
dele, que permita uma defesa da aldeia em que vive – há beneficiários múltiplos, há
distribuição de uma prevenção do risco, uma distribuição do esforço de prevenção
desse risco pelos diversos sujeitos, de acordo com a regra de gestão de negócios.)
Compensam-se os esforços de cooperação humana – este é o cerne, a cooperação humana é
uma realidade. Vivemos numa sociedade, temos de perceber que o contrato não é a única forma de
concertação das pessoas, as pessoas podem procurar cooperar mesmo sem contrato, e aqui está a
gestão de negócios para dar essa cobertura jurídica.
Será um conceito-quadro a gestão de negócios, haverá aqui um conceito unitário, um
regime unitário correspondente a uma única fisionomia da gestão? Provavelmente não. A
gestão de negócios tem sido aplicada a uma multiplicidade de situações diversas que se afastam
até da situação paradigmática. A gestão de negócios é suscetível de ser convocada mesmo fora
do
âmbito das hipóteses tradicionais com necessidade de aplicação de um regime que nem sempre está
adequado.

A gestão de negócios pode ter várias modalidades:

− Gestão de negócios material ou gestão de negócios jurídica. Na gestão material, a


atividade do gestor é uma atividade do físico, traduz a assunção do negócio alheio
numa atividade material (por exemplo, dar de comer ao animal; mo caso da gestão
jurídica temos, por exemplo, o comprar a ração para o animal).
− Gestão de negócios simples ou gestão de negócios conexa. Consoante os interesses
das pessoas. Na simples, o sujeito visa apenas o interesse alheio; na conexa, o sujeito
visa simultaneamente um interesse alheio e um próprio. É o caso de alguém que
limpa a mata do vizinho no verão e que, ao fazê-lo, também se está a beneficiar a si
próprio. Na conexa não se aplica totalmente os preceitos da gestão de negócios.
− Gestão de negócios comum ou gestão de negócios de emergência. A comum é a
satisfação de interesses alheios num quadro de normalidade. Na gestão de
emergência pode-se evitar que outro sofra um prejuízo ou pode, por exemplo,
resultar do estado de necessidade. (Por exemplo, arrombar a porta da casa do vizinho
para ir buscar o extintor e apagar o fogo nessa casa.)
− Gestão de negócios própria e gestão de negócios imprópria. É própria quando o
gestor atua no interesse de outrem. É imprópria se o sujeito não prossegue
propriamente o interesse aleio, mas para proteger um interesse seu. (Por exemplo, A
limpa o mato à volta da casa do seu vizinho, mas com o intuito de tutelar o seu
interesse
– a ordem jurídica tutela este sujeito de forma diferente, embora o vizinho tenha sido
beneficiado objetivamente. Se o individuo não pagar o custo ao gestor do negócio
que limpou o mato, poderá estar aqui em causa enriquecimento ilícito.) Sendo a
gestão imprópria, à partida, não a consideramos uma verdadeira gestão de negócios.
− Gestão de negócios de lucro capiendo e gestão de negócios de dano evitandum. Na
primeira, trata-se de obter para o dono um benefício, ou seja, atribui-se um benefício
a outrem. Na segunda, pretende-se evitar um dano ou prejuízo, algo que colocaria o
sujeito numa situação pior do que aquela em que se encontra. À partida, a gestão tem
de ser voluntária. No regime do enriquecimento sem causa, existe uma benevolência
da ordem jurídica.
− Animus negocia aliena gerendi – há a vontade de gerir um negócio alheio. Se
o ato é reflexo, como em muitos vasos de acidentes estradais, não se aplica o
regime da gestão de negócios.
− Gestão de negócios representativa ou gestão de negócios não representativa.
Respeita às gestões de negócios jurídicos. Tratando-se de atos jurídicos respeitantes a
negócios alheios, é preciso saber se o sujeito atuou em representação ou em nome
próprio. Na representativa, o gestor atua em representação do sujeito, em nome
alheio. Aqui trata-se de uma representação sem poderes, porque se ele a tivesse não
estaríamos aqui no âmbito da gestão de negócios, isto resolve-se com recurso ao
regime do manato. Na gestão não representativa, o gestor atua em nome próprio, mas
terá de transferir os direitos e o lucro para o dominus.
− Gestão de negócios legítima ou gestão de negócios ilegítima. Consoante estejam ou
não verificados, no início da gestão, os requisitos da gestão de negócios: se o sujeito
assume assuntos alheios pelos seus próprios interesses, a gestão é ilegítima, portanto
os efeitos têm de ser outros, não se podendo dar ao gestor os mesmos direitos que na
gestão ilegítima. (Por exemplo, se o sujeito proibiu que alguém lhe consertasse o
telhado, por muito bem-intencionada que seja a gestão, ela é sempre ilegítima.)
− Gestão de negócios lícita ou gestão de negócios ilícita. Se o sujeito não adequar a
conduta àquilo que a ordem jurídica exige, ela é ilícita.
− Gestão de negócios regular ou gestão de negócios não regular. Consoante o gestor
observe ou não os deveres que lhe cabiam na execução da gestão. Pode acontecer que
a gestão no momento inicial seja legítima e depois se torne irregular – ninguém
obriga a iniciar a gestão, mas a partir do momento que se iniciou, tem de se terminar
(o gestor está vinculado a terminar, pelos deveres de conduta).
− Gestão de negócios conforme a vontade presumível ou gestão de negócios não
conforme a vontade presumível. Está em causa a articulação entre a gestão e a
vontade do dominus. O sujeito, por vezes, sabe qual é a vontade do dono do negócio,
mas outras vezes pode não saber, mas presume qual seria. Se a gestão for contrária à
vontade do sujeito, ela não merece acolhimento por parte da ordem jurídica. A
vontade e o interesse não se confundem e muitas vezes não coincidem, pelo que,
quando isto acontece, o gestor deve abster-se de atuar. Decorre do artigo 464.º. A
vontade e o interesse não se confundem.
− Gestão de negócios aprovada ou gestão de negócios não aprovada. Sendo
aprovada, significa que o sujeito manifesta a sua concordância com a conduta do
gestor, resultando a obrigação de reembolsar pelas despesas que tenha o gestor. Se
não for aprovada, tem de ter um regime diferente, pois manifestou discordância. Nos
termos do enriquecimento sem causa, os prejuízos causados pelo gestor têm de ser
alvo de indemnização. Não se confunde com a destrinça entre gestão ratificada e não
ratificada.
− Gestão de negócios ratificada ou gestão de negócios não ratificada. Há um
negócio jurídico em representação do dominus, e é ratificada se o dominus chamar a
si os efeitos do negócio, mesmo que a conduta do gestor não mereça a sua
concordância. Isto é diferente de aprovar a conduta do gestor ou não. O sujeito pode
ratificar a gestão para evitar prejuízos, por exemplo, mas não estar disposto a aprovar
a conduta do seu gestor de negócios, assim como pode não ratificar uma conduta e
aprová-la na mesma. A ratificação tem a ver com a apropriação pelo dominus dos
efeitos do negócio. O dominus pode não concordar, mas querer na mesma aproveitar
o negócio.
− Gestão de negócios útil, gestão de negócios inútil ou gestão de negócios
prejudicial. Se é útil, há um benefício para o domunis e pode levar a problemas de
enriquecimento sem causa; se é inútil tem que haver a retribuição dos gastos, é uma
gestão neutra; se for prejudicial pode dar lugar a indemnização por responsabilidade
civil.

No que respeita ao seu regime jurídico, falamos principalmente de dois sujeitos: o dominus

e o gestor.

A relação entre estes designa-se por relação gestória que se inicia com a gestão. Fala-se
num sinalagma gestório porque, de facto, há pretensões do dominus contra o gestor, há direitos
do dominus contra o gestor (por exemplo, entregar-lhe tudo aquilo que a gestão de negócios
permitiu obter), e há também pretensões do gestor contra com o dominus (porque, por exemplo, o
gestor terá direito ao reembolso das despesas ou indemnização dos prejuízos).
Mas podemos ainda ter outros sujeitos: os terceiros. Além dos dois intervenientes
fundamentais, que são os típicos da gestão de negócios, temos também de considerar o que
acontece relativamente aos terceiros, às pessoas que também se veem por alguma forma
envolvidas na gestão de negócios e que são as pessoas com quem o gestor contrata, tratando-se de
gestões de natureza jurídica.
Os deveres do gestor para com o dominus estão dispostos no artigo 465.º, que os elenca:

a. [O gestor deve] “Conformar-se com o interesse ou a vontade real ou presumível do


dono do negócio, sempre que esta não seja contrária à lei ou à ordem pública, ou
ofensiva dos bons costumes” – Portanto, a gestão é livre, mas iniciada a gestão deve o
gestor conformar-se com o interesse ou a vontade real ou presumível do dominus. O
que acontece quando há oposição entre um interesse e uma vontade é que, à partida, o
gestor não deve contrariar nem o interesse nem a vontade, portanto, havendo oposição,
deve abster-se de atuar. Apesar disso, haverá circunstâncias-limite em que se poderá
conceber uma gestão levada a cabo por alguém para obedecer a uma vontade real
ou presumível mesmo que o interesse (medido em termos objetivos) seja pequeno.
(Por exemplo, um advogado que não tendo procuração contesta uma ação que é
intentada contra o seu cliente, defesa que não tem hipótese, mas que o seu cliente,
deduziria por honra, para defender a honra, as ações de honra mesmo que não tenham
objetivamente um interesse são certamente legítimas, e a gestão de negócios será
também certamente legítima. Temos uma intensidade grande da vontade real ou
presumível do dominus, que o menor interesse/ou o desinteresse, a falta de interesse da
conduta do gestor, não relevará.) Ou seja, perante uma situação de grande intensidade da
vontade real ou presumível, não revelará a falta de interesse da conduta do gestor. (Mas
podemos imaginar a situação inversa – a situação de candência imensa do interesse, mas
em que há uma vontade obtusa do gestor contrária à tal necessidade de reparação do
telhado da casa do gestor que tem família e que também deseja essa família que o
telhado seja reparado, mas que esse gestor está por alguma razão, obstinadamente a
impedir. Podemos imaginar que nalgumas circunstâncias destas, a gestão possa ser
regular, situações marginais.) Ou seja, por regra, o gestor não pode atuar quer contra a
vontade quer contra o interesse. E se alguma destas realidades se opuser à sua conduta,
ele deve-se abster de atuar. De qualquer forma, compreende-se que poderão estar em
causa situações limite, e aí de acordo com a tese que MENEZES CORDEIRO
desenvolve (o sistema móvel entre interesse e vontade) se pode conceber à possibilidade
de desatender nalguma circunstância residual, ou o interesse ou a vontade.
b. [O gestor deve] “Avisar o dono do negócio, logo que seja possível, de que assumiu a
gestão” – Interveio na esfera jurídica de outrem, em princípio não está legitimado para o
fazer, logo, deve dar conhecimento da sua atuação.
c. [O gestor deve] “Prestar contas, fundo o negócio ou interrompida a gestão, ou quando
o dono as exigir” – É um dever próprio do gestor.
d. [O gestor deve] “Prestar a este todas as informações relativas à gestão” – Portanto,
contas, despesas, receitas, aspetos de natureza patrimonial direta. Relativamente às
informações, estão em causa conhecimentos necessários para que o dominis possa
providenciar adequadamente aquilo que entende que deve ser feito na gestão dos seus
interesses.
e. [O gestor deve] “Entregar-lhe tudo o que tenha recebido de terceiros no exercício da
gestão ou o saldo das respectivas contas, com os juros legais, relativamente às quantias
em dinheiro, a partir do momento em que a entrega haja de ser efetuada” – Tem de
entregar o que recebeu, o que obteve e até com juros. E isto independentemente de se
saber em que medida é que o dominus enriqueceu com a conduta do gestor. Há um dever
de entrega de tudo o que se recebeu, sem qualquer limitação.
O artigo 466.º aborda o dever de continuar a gestão, porque o gestor responde perante o
dono do negócio (466.º/1), tanto pelos danos causados por culpa sua no exercício da gestão, como
pelos danos causados com a injustificada interrupção desta – o gestor é livre de iniciar a gestão,
assim o decide, mas depois não a deve interromper injustificadamente, com isso causando danos
pelos quais tem de responder. A atividade inicial é que é livre, mas passa a ser vinculada no que
diz respeito à sua continuação, se da sua interrupção advierem danos. (Por exemplo, o vizinho que
decidiu consertar o telhado do outro não pode interromper o conserto a meio, sujeito a causar
ainda mais danos, por ter, por exemplo, destelhado totalmente o telhado para o tal conserto.)
O gestor responde pelos prejuízos causados ao dominus, ele não é penalizado pelo
simples facto de se querer imiscuir na esfera jurídica alheia, quando é no interesse e por
conta do respetivo dono. A intervenção na esfera jurídica alheia, aqui, não cria nenhuma
responsabilidade per se. Mas, se causar prejuízos, será responsável pelos mesmos. A
responsabilidade teria de ser delitual, porque, não havendo obrigação prévia entre lesante e lesado,
entre gestor e dominus, no sentido da realização da gestão, nunca poderíamos falar de
responsabilidade obrigacional. Seguimos, então, o disposto no artigo 483.º.
O que dizer acerca dos deveres específicos do gestor para com o dominus? São deveres
que são particulares, próprios, da gestão de negócios e, portanto, são deveres particulares entre
sujeitos particulares, não são deveres gerais, por isso a responsabilidade do gestor perante o
dominus por violação de algum destes deveres que acabamos de ver é uma responsabilidade que
não é propriamente delitual porque não está em causa a violação de deveres genéricos, nem de
posições
absolutas mas sim de posições relativas, de deveres relativos próprios da gestão de negócios,
embora também não haja propriamente obrigações, apenas deveres de comportamento do gestor
para com o dominus – é por isso que a figura da gestão de negócio é um bom exemplo das
responsabilidades não alinhadas: responsabilidade de terceira via.
As terceiras vias de responsabilidade civil não decorrem da violação de obrigações que não
existem (a gestão de negócios é livre), mas decorrem da violação de meros deveres de
comportamento, de meros deveres de conduta, deveres que são particulares, não são gerais de
comportamento como é típico da responsabilidade aquiliana. É esta a posição de MENEZES
LEITÃO.
Como é que medimos a culpa do gestor?

As pessoas podem ser bem-intencionadas, mas causarem danos, por serem incapazes. A
culpa do gestor, deve ser apreciada em concreto, de acordo com as suas próprias aptidões em
função daquilo que ele é capaz de fazer, ou de acordo com uma bitola geral, porque ele pode ter
feito o melhor que conseguiu, mas ser manifestamente inábil.
A doutrina divide-se. CARNEIRO DA FRADA defende que, atendendo à conduta,
benevolente, à intenção benevolente do gestor, não se lhe pode pedir uma diligência maior do que
aquela de que ele é capaz. Pelo menos esta será a regra. Mas compreende que há circunstâncias
que pode levar para outro sentido: se não for normal, natural, uma intervenção gestória, se for
manifesto que ele tenha condições para levar a cabo adequadamente a gestão, talvez se justifique
que a culpa do gestor nessas hipóteses seja aferida de acordo com a bitola geral daquilo que
medianamente as pessoas são capazes. Há um indulgência/bondade que, apesar de tudo, devemos
manter relativamente àqueles que procedem com a melhor das intenções, mas que não estão
à altura do desafio que cometeram, em virtude da intencionalidade positiva com que o
fizeram em prol de outrem.

Quando há pluralidade de gestores (artigo 467.º), a Lei manda aplicar o regime da


solidariedade, pois se agem conjuntamente há, entre eles, uma solidariedade. Assim, todos
respondem e são responsáveis por todos, pelo que há a vantagem de se controlarem e vigiarem
mutuamente para que a gestão corra corretamente. Fortalece-se a posição do dominus, uma vez
que qualquer um dos gestores é responsável pelo prejuízo, pelas obrigações dos demais, o que
significa que o dominus pode exigir a totalidade das obrigações de qualquer um deles.

Vejamos, agora, as obrigações do dominus.


− De acordo com o artigo 468.º, é obrigado a reembolsar ao gestor de negócios as
despesas e a indemnizar por prejuízos sofridos. Porem, só se vê obrigado a tal se a
gestão era conforme com a vontade e no interesse do dominus (gestão regular). Se
a gestão não foi exercida de forma regular, o gestor devia-se ter abstido de atuar,
pelo que o dominus responde apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa
(468.º/2), ou seja, o gestor não tem direito a indemnização nem reembolso de
despesas, mas na medida em que atribuído benefício a outrem, há obrigação de
restituir nos termos do enriquecimento sem causa. A gestão de negócios favorece o
gestor, no sentido em que é mais favorável que a responsabilidade.
− Diz o artigo 469.º que pode suceder que a gestão seja irregular, mas que o dominus
aprove o negócio. Ora, a aprovação pode transformar uma gestão irregular em
regular, pois se aprova significa que reconhece os direitos de reembolso e
indemnização do gestor, assim como significa que o dominus renuncia ao direito a
uma indemnização que possa ter pelos danos provocados por culpa gestor, no
caso de ter havido descuido deste. Se não aprova, este direito do gestor a ser
reembolsado e indemnizado depende da prova da sua conduta regular.
− O artigo 470º estabelece que, em princípio, o gestor não tem direito a uma
remuneração, porque há um espírito de liberalidade. Contudo, se o gestor é um
profissional da área e tiver atuado profissionalmente, deve haver lugar ao
pagamento justo, pelo que já poderá ser remunerado e este artigo prevê esse direito.
(Por exemplo, se um carro cai numa ravina e uma empresa de reboques o tira de lá
sem para isso estar autorizada, esta terá direito a uma remuneração, além do
reembolso das despesas e indemnização dos prejuízos.)

Qual é a posição dos terceiros face à gestão de negócios?

Eles relacionam-se com o gestor, e interessa-nos o que contrataram com o gestor. Estamos
a tratar gestões jurídicas e não gestões materiais (estas não afetam terceiros). Diferente é o caso
em que o gestor celebra negócios com terceiros. Para se perceber a posição do terceiro, é preciso
distinguir entre gestão representativa e gestão não representativa.
− Na gestão representativa, o gestor age em nome do dominus, mas como é uma
intervenção não autorizada, não há transmissão de poderes, pelo que os negócios que
o gestor realize nestas condições, não vinculam o dominus enquanto ele não ratificar
(268.º). Havendo representação, o terceiro sabe que estava a contratar com o dono do
negócio e não com o gestor, que este é só o representante. Se o dominus ratifica,
passa a assumir os efeitos do negócio celebrado pelo gestor. Não se deve confundir a
ratificação (ato mediante o qual o representado chama a si os efeitos do negócio)
com a aprovação (visa o reconhecimento ao gestor dos direitos que ele tem em
virtude de uma gestão regular, pelo que se destina apenas a produzir efeitos na
relação gestória estrita, entre gestor e dominus). Pode haver ratificação sem
aprovação, assim como o inverso. Se não ratificar, o terceiro não pode exigir do
dominus o pagamento do preço. E pode exigir do gestor? Parece que não, pois não
é justo que o gestor suporte o pagamento quando não era a sua vontade ser parte
daquele negócio. Assim, caso não ratifique, só o instituto do enriquecimento sem
causa pode ajudar esse terceiro. Se o gestor atuou em nome de outrem, estava claro
desde o princípio que não era ele que assumia a responsabilidade pelo contrato. E se
o gestor escondesse o facto de ser representante sem poderes, ou seja, se se
apresentasse a contratar com terceiro em nome do dominus, induzindo que estava
investido de poderes para tal e levando-os a executar um contrato relativamente
ao qual os efeitos não estavam seguros? Neste caso, seria responsável por culpa in
contrahendo, artigo 227.º, por criação de uma confiança indevida, mas não é
responsável pelas vinculações emergentes desse contrato. (Por exemplo, o gestor, em
representação do dominus, contrata com um terceiro para que este repare o telhado
do dominus, sendo que o custo da empreitada é de 2000 euros. O terceiro compra os
materiais de que necessita, que custaram 1000 euros. O dominus não ratificou o
negócio, por isso não é responsável pelo pagamento do preço da obra. O gestor
celebrou o contrato em nome do dominus, por isso também não pode ser responsável
pelo pagamento. Se o gestor disse abertamente que está em representação do vizinho,
mas que não tem poderes, o terceiro sabe os riscos que corre, então não merece
nenhuma tutela particular. Contudo, se o gestor não disse que não tinha poderes, é
responsável por ter induzido confiança ao terceiro, mas vai indemnizar em virtude da
tutela da confiança. O terceiro só pode exigir do gestor os 1000€ que gastou com os
materiais que comprou, não podendo exigir dele os 2000€, porque ele não estava
vinculado ao contrato.) O próprio terceiro poderia pedir a prova da representação e
inclusivamente revogar o contrato que celebrou com o gestor, apercebendo-se da
falta de poder do dominus enquanto este não ratificar. Nos termos do artigo 260.º, se
uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro pode o terceiro
exigir que o representante faça prova dos seus poderes – é um ónus.
− Na gestão não representativa, o gestor atua em nome próprio, mesmo sendo por
interesse alheio. O contrato surte efeitos entre o gestor e o terceiro (1180.º).
Contudo, o gestor fica obrigado a transferir para o dominus todos os proveitos
decorrentes da gestão de negócios celebrada com terceiro. Em relação a obrigações, é
o gestor que as suporta, mas o dominus tem de o reembolsar. Porém, não pode o
terceiro exigir nada do dominus, pois foi o gestor, em nome próprio, que
assumiu a obrigação. Não haveria enriquecimento contra o dominus, pois embora o
terceiro saiba que o titular do interesse é o dominus, também sabe que só tem direitos
contra o gestor – o risco do contrato é seu e não deve ser transferido para o dominus.
Assim, o terceiro só tem direitos contra o gestor, sem prejuízo que o dominus se
possa substituir ao gestor na exigência das obrigações assumidas por terceiros. Nos
termos do artigo 471.º, se o gestor realizar o negócio em nome próprio, são
extensíveis as disposições aplicadas ao mandato sem representação, que nos dizem
que o mandatário/gestor, se agora em nome próprio, adquire os direitos e assume as
obrigações decorrentes dos atos que celebra. Por outro lado, o dominus pode
substituir-se ao gestor no exercício dos seus direitos contra terceiro, ou seja,
pode chamar a si os efeitos do negócio, através da substituição (1181.º/2). No artigo
472.º, trata-se a gestão de negócio alheio julgado próprio. Aqui só é aplicável o
regime da gestão de negócios se houver aprovação. Se o dono do negócio não
aprovar, são aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa e da responsabilidade
civil. Também se pode dar uma gestão de negócio alheio julgado alheio, o que o
Código Civil não prevê diretamente. (É o caso de alguém que extraiu areia de um
prédio confinante com o rio, para a vender, sendo que o sujeito sabia que a areia não
era sua, mas sim do proprietário do prédio – interveio na esfera jurídica alheia para
obter um proveito próprio. O sujeito que era dono do prédio não era comerciante de
areia, pelo que não tinha interesse na areia, e além disso, o prédio ficou nas mesmas
condições que tinha antes da extração da areia, porque o rio, quando enchia, repunha
a areia, mas o que é certo é que neste espaço de tempo houve alguém que enriqueceu.
Não podemos encontrar um dano juridicamente relevante, mas temos um
enriquecimento.) O sujeito tem de restituir aquilo que lucrou à custa da intervenção
na esfera jurídica alheia destinada a retirar utilidades para a própria esfera. Isto
remete-nos para a matéria do enriquecimento sem causa, não se trata de remover um
dano, mas remover um lucro.
Antes de mais, distinção da gestão de negócios do enriquecimento sem causa: nem sempre
as gestões de negócios são levadas em conformidade com o interesse e vontade real ou presumível
do dominus, embora objetivamente a gestão possa (e normalmente, o faça) implicar um benefício
para o dominus. Surge um problema que a ordem jurídica, também nestes casos, tem de resolver:
saber se deixa o dominus ficar com o produto/benefício da ação daquele que agiu em seu
benefício, ou se tem de entregar o enriquecimento derivado disso a esse gestor de negócios. Existe
uma conexão entre o regime da gestão de negócios e o regime do enriquecimento sem causa.
CARNEIRO DA FRADA diz que na gestão de negócios temos uma atividade cooperativa,
de uma pessoa relativamente à outra, há uma benevolência e um tratamento favorável da ordem
jurídica em relação a quem assim procede. Já no enriquecimento sem causa, nós temos um
instituto que tem uma preocupação muito diferente: corrigir deslocações patrimoniais que
implicam ou produzem para outrem um enriquecimento à custa de alguém. Quando alguém
enriquece à custa de outrem, deve restituir o seu enriquecimento, independentemente da forma
como esse enriquecimento opera, pode ser através de gestão de negócios ou de outra razão
qualquer.

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

Como o próprio nome indica, temos uma situação em que alguém enriquece à custa de
outrem. E por esse enriquecimento não ter justificação face à ordem jurídica, é obrigado a restituir
aquilo com que injustamente se locupletou – é o artigo 473.º do Código Civil que estabelece este
princípio geral.
A diferença em relação à responsabilidade civil é que no enriquecimento sem causa o que
está em jogo é remover um enriquecimento, enquanto que, na responsabilidade civil, trata-se de
alguém ficar obrigado a indemnizar um prejuízo que causou, ou que de alguma forma lhe é
imputável, tornar indemne, eliminar dano que outrem sofreu. No enriquecimento sem causa, está
em jogo a eliminação do enriquecimento que alguém obteve à custa do empobrecimento de
outrem, sem razão para tal.
As situações de enriquecimento sem causa são múltiplas e por isso o Código Civil previu
uma cláusula geral. Mas, historicamente, este pensamento do enriquecimento sem causa foi
construído a partir de um conjunto de situações-modelo (de condictiones), que correspondem a
modalidades legais do enriquecimento sem causa, que a Lei apresenta como expressões do
pensamento geral do enriquecimento sem causa, mas sem deixarmos de ter um sistema que
cobre com carácter de generalidade muitas situações para além dessas, ao abrigo de tal
cláusula geral.
De acordo com o artigo 473.º/2, a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tem
por modo especial, o que for indevidamente recebido. (Por exemplo, alguém que paga uma
divida inexistente, a receção de uma quantia que não é devida, na verdade.) Mas também tem por
modo de especial, o que for recebido em virtude de uma causa que deixou de existir (o
indivíduo paga uma mercadoria, sem saber que o barco em que ela vinha se tinha afundado; o
pagamento é feito por causa de uma mercadoria, que realmente estava já afundada, que é um
exemplo em que alguém faz uma prestação em virtude de uma causa que deixou de existir), ou
então, em vista de um efeito que não se verificou. A prestação é feita para obter um efeito,
satisfazer um determinado interesse do futuro, e este interesse acaba por não se verificar. (Por
exemplo, eu dou-te esta quantia, porque tu te vais casar e precisas de ter esta quantia. E ele não
casa. Há aqui uma prestação funcionalizada a uma determinada finalidade que acaba por não
acontecer.)

O instituto do enriquecimento sem causa é um instituto de grande amplitude no Direito


Civil. É um instituto que, sob a unidade aparente de uma designação e traços gerais, alberga
situações muito distintas.
Quando o enriquecimento é sem causa, ele tem de ser revertido, portanto dá lugar a uma
obrigação própria de restituição do enriquecimento sem causa. E é por causa disso que nós
estudamos o enriquecimento sem causa na nossa disciplina – porque dá lugar a uma obrigação de
restituição, mas é preciso dizer que este é um instituto geral do Direito – encontramos situações
de enriquecimento sem causa designadamente no Direito Público/Direito Administrativo que, à
falta de regulamentação especifica, têm de ser resolvidas como situações de enriquecimento sem
causa revertidas olhando para o regime do Direito comum, do Direito Privado, do Direito Civil.
É necessário haver um enriquecimento; é necessário haver um empobrecimento; é
necessário haver uma falta de causa para essa situação que pressupõe um nexo entre o
enriquecimento e o empobrecimento (se alguém enriquece, mas não em consequência do
empobrecimento doutrem, ou se alguém empobrece, mas não com ligação a um enriquecimento de
outrem, efetivamente não há lugar à obrigação de restituição) – a obrigação de restituir implica um
nexo entre o enriquecimento e o empobrecimento. Tem de haver uma falta de causa, se houver
uma justificação jurídica para esse enriquecimento à custa de outrem evidentemente que não há
lugar à obrigação de restituir.
A questão do nexo entre o enriquecimento e o empobrecimento precisa de ser encarada de
uma forma autónoma, porque nem sempre o enriquecimento que alguém experimenta é fruto
imediato do empobrecimento de outrem.
O que acontece é que, às vezes, as deslocações patrimoniais de uma esfera jurídica para
outra, que são o objeto do nosso instituto, que precisam de ser revertidas por falta de causa, são
indiretas. São deslocações patrimoniais indiretas, ou seja, entre o enriquecido e o
empobrecido há um património de permeio, pelo qual passa o fenómeno do enriquecimento.
Então, é preciso saber se realmente, nesses casos, há lugar à restituição do enriquecimento sem
causa? Quando o enriquecimento sai da esfera do empobrecido de alguma forma, mas só
mediatamente é que se vai fixar na esfera daquele de quem se discute se vai ser obrigado à
restituição (um terceiro).
[Exemplo de um acórdão do Supremo Tribunal Francês – Numa célebre decisão, instituiu
que podia haver enriquecimento sem causa, a obrigação de restituir, de um terceiro que
mediatamente enriqueceu à custa do sujeito. Um comerciante vendeu a crédito sementes a um
agricultor. Entregou- lhe as sementes para ele as plantar e, entregou-as a crédito, portanto sem que
essas sementes tivessem sido pagas imediatamente. Essas sementes foram deitadas à terra, a
cultura começou a desenvolver-se, mas antes da colheita o dono da terra (que não era o comprador
das sementes, porque o agricultor era um rendeiro, cultivava terra alheia) resolveu o contrato,
extinguiu-se assim a relação de arrendamento e, foi ele que fez a colheira. As sementes entregues
pelo comerciante ao agricultor, que, entretanto, deixou a terra e as plantações que houvera feito,
continuavam por pagar e, a questão que se colocou foi se, efetivamente, o vendedor das sementes
podia intentar uma ação de enriquecimento sem causa contra o terceiro, dono da terra que acabou
por beneficiar das plantações feitas com essas sementes. É uma questão que foi decidida
favoravelmente pelo tribunal supremo francês que considerou que havia essa pretensão de
enriquecimento. Por força do princípio da relatividade dos contratos, o contrato de compra e
venda só podia surtir efeitos entre o comerciante (vendedor das sementes) e o agricultor que lhas
tinha comprado e, portanto, a exigência do preço só podia ser feita a esse agricultor sendo que,
todavia, alguém, um terceiro tinha beneficiado dessa mesma prestação (sementes). Esta foi uma
situação em que o Tribunal francês considerou haver enriquecimento sem causa. A atribuição
patrimonial pode ser tida como indireta
– só indiretamente é que um terceiro acabou por beneficiar daquela prestação das sementes que foi
realizada.
De acordo com CARNEIRO DA FRADA, a decisão jurisprudencial francesa parece uma má
decisão porque, na verdade, quando o comerciante vende as sementes ao agricultor a crédito, é ele
quem assume o risco do crédito. O vendedor assume o risco de vender a crédito e, portanto, o
risco
do pagamento do preço vir a não ocorrer e, o credito ficar por ser satisfeito. O que é que tem o
terceiro a ver com isso, sobretudo estando ele de boa fé? Não tendo ele sido interveniente nessa
operação a que propósito é que vai o senhorio ter de pagar umas sementes que não comprou? Ter
de pagar o valor das sementes que não adquiriu? Parece que numa situação destas nada o justifica.
Portanto, a decisão do Tribunal francês não parece que essa tenha sido uma boa solução.

Outro caso: Um empreiteiro que, tendo de realizar uma obra, rouba materiais de outrem. Por
exemplo, um empreiteiro que tendo de fazer cimento, em que se usa areia, rouba areia a um prédio
ribeirinho que tem essa mesma areia, incorpora-a no prédio que está a realizar. Numa situação
destas temos que o dono da obra acaba por beneficiar da areia de um terceiro, que não foi obtida
legitimamente pelo empreiteiro, e podemos dizer que enriquece à custa de outrem.
Quid iuris?

De acordo com CARNEIRO DA FRADA, podemos falar de uma pretensão de


enriquecimento sem causa, porque o empobrecido nada fez que pudesse justificar ficar ele
onerado definitivamente com uma perda de um bem que pertencia ao seu património,
quando um terceiro vem a beneficiar de um furto da areia que alguém perpetrou. Não se quer dizer
com isto que o terceiro, dono da obra, tivesse de ser o autor do furto, ou tivesse de ser cúmplice,
até podia estar de boa fé, mas mesmo estando de boa fé justifica-se que tendo obtido um benefício
à custa de um bem alheio tenha de lho restituir pelo menos em valor uma vez que a restituição em
espécie já não é possível (a areia misturou-se com outros materiais e, portanto, perdeu a identidade
própria). A propriedade dos grãos de areia incorporados nas paredes de cimento tornou-se
propriedade do dono da obra à custa da esfera jurídica alheia.]

CARNEIRO DA FRADA diria que, nas atribuições patrimoniais indiretas, temos de


distinguir claramente entre:
− As hipóteses em que o empobrecido atua ao abrigo de um contrato, faz uma
prestação e assume os riscos inerentes ao incumprimento do contrato (o facto de vir
alguém a beneficiar disso se o contrato for incumprido com o prejuízo desse sujeito,
empobrecido, não o legitima a intentar uma relação de enriquecimento sem causa
contra terceiro): nestas hipóteses não há pretensão de enriquecimento sem causa, não
há atribuição patrimonial indireta justificativa de tal consequência.
− As hipóteses em que o sujeito efetivamente não fez absolutamente nada que
justificasse aquele enriquecimento, não há nenhum ato voluntario do empobrecido,
não há nenhum risco do crédito/risco contratual que possa caber suportar a ele uma
vez que ele foi contra a sua vontade, de forma ilícita, privado de um bem do qual um
terceiro veio a beneficiar. Nestes casos, em que não há um ato voluntario do
empobrecido, nenhum risco contratual a preservar e a manter dentro dos limites do
princípio da relatividade do contrato, compreende-se que nestas hipóteses haja lugar
a uma pretensão de enriquecimento quando o terceiro bem a beneficiar.
Esta distinção é relevante para efeitos de enriquecimento sem causa em relações que põem
em conexão dois sujeitos, em que a deslocação patrimonial da esfera jurídica do empobrecido para
a esfera jurídica do enriquecido se faz através de uma esfera jurídica que, de permeio, se situa, e
que se interpõe.

Situações específicas de enriquecimento por prestação

Abordamos a forma como a ordem jurídica trata, de modo especial, alguns casos de
enriquecimento sem causa, nos artigos 476.º a 478.º do Código Civil.
O artigo 476.º é uma disposição fundamental, dizendo respeito à repetição do indevido –
reaver aquilo que foi indevidamente pago. De acordo com o 476.º/1, sem prejuízo do disposto
acerca das obrigações naturais, o que for prestado com a intenção de cumprir uma obrigação
pode ser repetida, se esta não existia no momento da prestação – quem salda uma obrigação
inexistente tem o direito de reaver o que prestou nesse sentido; diferentemente do que acontece
com as obrigações naturais, que são verdadeiras e existentes obrigações que, apesar de não serem
exigíveis, não significa isso que elas não existam e que quem salde uma obrigação natural possa
reaver aquilo que prestou. O 476.º/2 refere-se a prestações feitas a terceiros, mencionando que
pode ser repetida pelo devedor enquanto não se tornar liberatória, nos termos do artigo 770.º – a
prestação pode ser feita a terceiro, nem sempre a prestação é feita ao credor (por exemplo, pode
ser feita a um representante seu, ou a alguém a que o credor possa chamar a si como ato do
cumprimento válido). Diz o 476.º/3 que a prestação feita por erro desculpável antes do
vencimento da obrigação só dá lugar à repetição daquilo com que o credor se enriqueceu, por
efeito do cumprimento antecipado (por exemplo, a obrigação até existe, mas só é exigível em
2020, contudo o indivíduo, no Natal de 2020, salda a obrigação) – não se tratará de reaver aquilo
que foi prestado, mas de fazer com que o sujeito seja ressarcido daquilo com que a outra parte se
enriqueceu, por efeito do cumprimento antecipado. (Por exemplo, se o indivíduo enriqueceu de
alguma maneira porque foram pagos juros antecipadamente, depois deve restituir esses mesmos
juros, mas não o capital da obrigação.)
O artigo 477.º dispõe sobre o cumprimento da obrigação alheia na convicção de que é
própria. Ora, aqui a obrigação existe, o sujeito, todavia, só cumpre porque a julga própria, quando
na verdade a mesma é alheia. Quando uma obrigação existe e um sujeito a salda, convicto de que
ela é própria e de que está obrigado a fazê-lo, temos de ponderar de uma forma mais atenta as
expectativas do credor. Numa obrigação inexistente, o credor não tem expectativas nenhumas,
portanto tem de restituir sempre o que lhe foi entregue, como vimos no artigo 476.º. No entanto,
quando a obrigação existe e um sujeito a cumpre (esta sendo-lhe alheia mas ele acreditando que é
própria), temos de aferir porque é que o credor a recebeu e em que medida é desculpável a conduta
deste, pois terá de restituir aquilo que recebeu ao abrigo do cumprimento de um crédito que existia
– existem, aqui, requisitos especiais. Vejamos o 477.º/2 – nas hipóteses em que não seja possível
repetir, o indivíduo que cumpre a obrigação alheia, na convicção de que é própria, fica no lugar
do credor, podendo exigir do verdadeiro obrigado o cumprimento da obrigação que o primeiro
saldou.
No artigo 478.º, temos uma outra situação de enriquecimento por prestação, que se afigura
menos favorável a quem realiza a prestação – estamos perante o cumprimento de obrigação
alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la, “na convicção errónea de estar obrigado
para com o devedor a cumpri-la”. No artigo 477.º, o que acontecia era que tínhamos uma
obrigação alheia que o sujeito julgava ser própria; neste caso, ele tem plena consciência de que a
dívida é alheia, mas cumpre-a porque está convencido que está obrigado a saldar uma dívida
alheia (por exemplo, a situação do fiador).
Este sujeito não pode exigir reaver aquilo que prestou, apenas tem o direito de exigir do
devedor exonerado aquilo com que este injustamente se locupletou, exceto se o credor conhecia o
erro ao receber a prestação – se o credor conhece o erro, não pode ser beneficiado, pois tem a
obrigação de o esclarecer, mas caso contrário, como a obrigação existe, o sujeito sabe que ela
existe, embora não seja própria, e a sua convicção de estar obrigado a cumpri-la, ainda que
errónea, não lhe dá legitimidade para reaver a prestação. O beneficiado nesta situação é o devedor,
pois vê a sua obrigação cumprida por outrem, que não tinha nada porque o fazer, e nessa medida
enriquece – é o devedor quem tem de restituir aquilo com que se locupletou (em princípio, o
valor do ato de cumprimento) àquele que realizou o cumprimento erroneamente, convencido de
que tinha de o fazer.

O enriquecimento por intervenção


Falamos em enriquecimento por prestação – até aqui pensamos sempre em prestações
patrimoniais realizadas (por exemplo, o indivíduo corrompe o funcionário da Câmara para lhe
aprovar uma obra, que não tem condições para tal; realizou uma prestação, o enriquecimento foi
proveniente desta, e decorreu de uma prestação não devida, cuja causa é imoral ou ilícita. Mas
importa-nos falar também do enriquecimento por intervenção.
Estas duas categorias doutrinárias são pacíficas, não têm necessariamente receção no sistema
legal, mas estão subjacentes e são conformes com o mesmo, ajudando até a percebê-lo. No artigo
473.º/2, o nosso Código Civil deu meros exemplos de enriquecimento por prestação, mas existem
outras modalidades de enriquecimento, como já mencionámos.
O enriquecimento por intervenção dá-se quando alguém intervém na esfera jurídica
alheia para desviar para a esfera jurídica própria utilidades que estavam destinadas pelo
direito a essa mesma esfera jurídica. (Um exemplo de enriquecimento por intervenção: na
década de 50, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu acerca de um problema do rio Dão. Um
conjunto de areeiros/negociantes de areia retirou de um prédio adjacente ao leito da água, uma
grande quantidade de areia para a qual não estavam autorizados. Retiraram de terreno alheio essa
mesma areia. Venderam a areia e fizeram um negócio. O dono do prédio ribeirinho não se pode
dizer que tenha tido uma diferença patrimonial relevante, porque ele não negociava em areia,
nunca pensou negociar em areia, não iria retirar qualquer proveito da areia, e no inverno seguinte,
o rio voltou a colocar a areia que de lá tinha sido. O património do dono do terreno de onde a areia
foi ilicitamente retirada, ficou exatamente na mesma. Portanto, a responsabilidade civil não
funciona aqui, porque de acordo com a teoria da diferença – o dano mede-se com a diferença
entre o património do lesado à data mais recente e o património que ele teria se não tivesse sido
produzida a lesão –, essa diferença neste caso é nula. Numa hipótese destas, pergunta-se se, não
sendo a responsabilidade civil apta para responder adequadamente, há ou não um enriquecimento
sem causa daquele que retira a areia que o possa obrigar a restituir o valor dessa areia ao dono do
terreno. A resposta é positiva, tanto pelo Tribunal como pela doutrina do enriquecimento sem
causa.)
Quando alguém, de forma não autorizada, mas ao contrário do que acontece com a gestão de
negócios [própria], retira da esfera jurídica alheia utilidades que pertencem, segundo a ordenação
substancial dos bens aprovada por direito, deve restituir o montante do locupletamento,
independentemente da diferença patrimonial, que pode até nem existir, na esfera jurídica do
empobrecido, que é o credor do enriquecimento.
Esta ideia só se pode materializar e justificar através da teoria do conteúdo da destinação
de direitos – diz que quando a ordem jurídica atribui um direito (de exclusivo) a alguém, também
lhe
confere o direito a todas as utilidades que esse mesmo direito é suscetível de atribuir ao seu titular,
independentemente de ele as querer aproveitar ou não, em princípio.
Esta situação é típica do enriquecimento por intervenção, que só se percebe através da ideia
de que cada direito subjetivo atribui ao seu titular um conjunto de poderes e vantagens que
se forem realizadas, lhe devem ser canalizadas ao titular dessa esfera jurídica. Os direitos
conferem aos seus titulares, para além dos poderes e faculdades que integram o seu conteúdo,
também as utilidades que o exercício desses mesmos direitos é suscetível de proporcionar ao seu
titular.
Esta teoria do enriquecimento por intervenção opera independentemente da produção de
prejuízos. (Por exemplo, um padeiro trabalhava numa padaria e que decidiu que, da quantidade de
massa que diariamente se fazia, retirava uma determinada quantidade que cozia à parte e vendia o
seu produto e encaixando o respetivo dinheiro. O patrão nunca se apercebeu, e diluída a falta
daquela pequena quantidade de massa, pelo conjunto total de pão que era produzido, nunca deixou
de se fabricar a quantidade de pães que era necessária, as pessoas pagavam tudo o que levavam, e
portanto, não se pode dizer que, deste furto da massa de pão tenham resultado prejuízos para o
dono da padaria, que não deixou de vender todo o pão que quis vender, com umas gramas a menos
cada um deles, mas num contexto geral, ninguém deu por nada, ninguém deixou de pagar aquilo
que o dono da padaria exigiu. A questão era saber se este padeiro infiel tinha ou não o dever de
restituir aquilo que injustamente se locupletou? Porque objetivamente apropriou-se de algo que era
da propriedade de outrem, para fazer o rendimento. O Tribunal alemão entendeu que sim, porque
de acordo com a tal teoria do conteúdo da destinação de direitos, ao dono da massa pertencem
também, de acordo com a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, as utilidades que
essa massa pode produzir respeitava ao dono da padaria. Uma dessas utilidades é poder ser
produzida e vendidos os pães respetivos. Temos aqui uma outra situação clara: dever de restituir o
enriquecimento, por intervenção, porque alguém intervém na esfera jurídica alheia, numa situação
oposta à gestória, aqui o sujeito intervém – não no interesse e por conta do titular da esfera jurídica
em que intervém – para retirar dela as utilidades que não lhe pertencem.)
Esta situação de enriquecimento por intervenção, por vezes (de acordo com a doutrina) toma
o nome de gestão impropria de negócios, porque há uma intervenção na esfera jurídica alheia,
mas com uma intenção oposta.
A gestão imprópria de negócios tem uma intenção oposta da gestão de negócios como a
aferimos; trata-se de uma intervenção não autorizada e que obriga à restituição (nos termos do
enriquecimento sem causa) , independentemente do dano que o titular da esfera jurídica atingida
possa ter sofrido, medida em termos de diferença patrimonial, porque há aqui um dano real,
foram retiradas utilidades que deveriam lá ser reconduzidas. Falamos de dano real, porque
houve uma interferência na esfera jurídica alheia. (Outro exemplo é o caso de um indivíduo que
tem uma marca que não usa, empresário têxtil, a sua empresa não está sequer em condições de
promover o uso da marca. Num país do extremo Oriente, se alguém usurpa uma marca e à custa
dessa marca faz um dano, tem de restituir aquilo com que injustamente se locupletou, o uso de
uma marca alheia ainda que, o titular dessa marca a não pudesse usar e nesse aspeto não haja
qualquer diferença patrimonial, no património do titular da marca, entre o que tem hoje e o que
teria se não fosse a intervenção da marca.)
Essa intervenção é oposta em relação ao que ocorre na gestão de negócios, e por isso é
diferente da solução do 472.º quando se fala da gestão de negócio alheio julgado próprio –
alguém gere um negócio alheio, não porque queira atuar no interesse e por conta de outrem, mas
porque julga que o negócio era próprio. Nos negócios próprios, nós procuramos obter
vantagens, e daí resulta objetivamente uma situação de benefício para outrem, mas não é
esta a nossa hipótese. A nossa hipótese de enriquecimento por intervenção, é de alguém que
gere negócio alheio, que intervém na esfera jurídica alheia, nesse sentido gera negócio alheio,
julgado alheio, consabidamente alheio. (Só há verdadeira gestão de negócios se o dominus
disser: “vamos aplicar as regras da gestão”, caso contrário, aplicam-se as regras do
enriquecimento sem causa e as regras da responsabilidade civil, da gestão de negócio alheio
julgado próprio. Limpa terreno alheio julgando próprio, cria um enriquecimento, e se o dominus
não quiser aplicar a esta situação o regime da gestão de negócios, só tem de restituir, nos termos
do enriquecimento sem causa, aquilo que com que se acha locupletado à custa do sujeito. Sendo
que também esse sujeito que interferiu na esfera jurídica alheia, embora julgando como própria,
também é responsável se causou por causa disso um prejuízo alheio.)

A medida da obrigação de restituir

Quando existe um regime específico, não há dúvida nenhuma do que se trata, é apenas
interpretar e aplicar – o problema surge quando o regime não é específico, ou seja, quando não há
soluções claras na nossa Lei. Trataremos, portanto, agora, o problema geral do enriquecimento
sem causa – que é saber qual é o objeto exato da obrigação de restituir o enriquecimento, qual
é a sua medida (como é que se mede a obrigação de restituir o enriquecimento sem causa)?
Para haver uma obrigação de restituição, quando há enriquecimento sem causa, temos de
pressupor a existência de um enriquecimento e de um empobrecimento, para além do nexo entre
tal, e ainda da falta de causa para a deslocação patrimonial.
O enriquecimento consiste na aquisição de um valor sobre o bem. De acordo com a teoria
do conteúdo da destinação de direitos, o enriquecimento surge através da aquisição de um
direito, mas às vezes pode ser através da extinção do direito (por exemplo, quando alguém salda
uma dívida alheia, convencido de que ela é própria, nos termos do artigo 477.º, desaparece
património do devedor, uma dívida e, portanto, não é que realmente haja aqui uma aquisição de
um direito por parte do devedor, mas o enriquecimento traduz-se no desaparecimento de uma
dívida, de um elemento do seu passivo patrimonial). Isto para dizer que o enriquecimento é
suscetível de se apresentar de diversas formas, normalmente através do surgimento de direitos
ou da extinção de obrigações, podendo também haver uma modificação de uma obrigação,
tornando-a mais pequena (no caso do cumprimento de dívida alheia ser parcial, a dívida não
desapareceu, mas tornou-se mais pequena e foi reduzida ao montante que resta saldar).
Quanto ao dano, para efeitos de enriquecimento em causa, este não tem de se traduzir
numa diferença no património do sujeito, entre aquilo que ele tem à data atual e entre aquilo
que teria se não tivesse havido a deslocação patrimonial, porque muitas vezes a situação hipotética
com a qual se compara a situação atual do empobrecido pode ser exatamente a mesma. (É o caso
de um indivíduo que é titular de uma marca em que houve uma usurpação da mesma, mas que não
está em condições de a usar para determinado destino de exportação – a posição patrimonial dele
não seria melhor hoje do que aquela que efetivamente é, porque ela não usaria a marca,
independentemente da usurpação.) Portanto, o dano em sede de enriquecimento sem causa pode
traduzir-se numa diminuição patrimonial (se alguém desembolsa 50 euros para pagar uma dívida
inexistente, fica 50 euros mais pobre), mas não tem de ser sempre medido nesses termos e basta,
às vezes, que certas utilidades que pertençam, segundo o conteúdo do direito, a determinado
sujeito, sejam desviadas para outra esfera jurídica, para que, efetivamente, se dê o
empobrecimento. Alguns consideram-no um dano abstrato, outros consideram tratar-se de um
dano real.
O dano no enriquecimento sem causa é um dano que só se pode compreender à luz da tal
teoria do conteúdo da destinação de direitos, que faz com que não seja relevante a diferença
patrimonial, mas com que o que importe seja saber qual é a ordenação substancial dos bens
aprovada pelo Direito (o indivíduo não usava a areia do seu terreno, mas as utilidades
pertenciam- lhe como proprietário que era dessa mesma areia). E são estas as coordenadas básicas
para a obrigação de restituir.
A obrigação de restituir está prevista no artigo 479.º do Código Civil – “(…) compreende
tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição não for possível, o valor
correspondente”. Há aqui a primazia da restituição em espécie, restituindo-se o valor quando
não seja possível a restituição do bem que, concretamente, se fixou na esfera jurídica do
enriquecido.
Mas encontramos, aqui, várias nuances – interessa-nos o enriquecimento em abstrato ou
o enriquecimento em concreto?
(Vamos supor, no caso da areia que foi retirada do rio Dão, que essa areia no mercado na
altura valia 5000 euros, mas o sujeito só a vendeu, por falta de perspicácia, por 2500 euros – o que
é que ele tem de restituir? O valor da areia em si mesma ou o enriquecimento concreto do sujeito?
Nestes casos de intervenção na esfera jurídica alheia o que se diz é que, à partida, aquilo que se
trata é de restituir aquilo com o que o sujeito se encontra realmente enriquecido e, portanto, se ele
só fez um lucro de 2500 euros, também só tem de entregar 2500 euros, ainda que a areia valesse
5000 euros.
E só não será assim se ele estiver de má-fé. Se estiver de má-fé, compreende-se que o valor
da areia tenha de ser reposto integralmente, mesmo que ele tenha conseguido fazer apenas uma
quantia menor com essa areia, como também tem de ser restituído o valor que ele obteve da areia,
ainda que seja superior ao valor do mercado, porque conseguiu negociar muito bem. Se está de
má- fé, todo o enriquecimento tem de ser restituído.
Se está de boa-fé, como, efetivamente, o enriquecimento sem causa visa fundamentalmente
corrigir enriquecimentos, parece que, apesar da areia valer 5000 euros, se estava convencido que a
areia era dele e só a vendeu por 2500 euros, só tem de restituir esse valor.)
Dentro da filosofia geral do enriquecimento sem causa, compreende-se que não se trata de
penalizar alguém, de censurar alguém – no enriquecimento sem causa, não estamos à procura de
culpados, isso é a responsabilidade civil. Antes, procuramos, no enriquecimento sem causa,
corrigir deslocações patrimoniais que são injustas, independentemente da censura ao
comportamento do agente – isso não significa que a censura não possa ser marginalmente
relevante para definirmos a obrigação de restituir, no entanto, não é esse o cerne da nossa
preocupação. Por isso é que se diz que o enriquecimento que deve ser restituído é o
enriquecimento concreto, aquele que concretamente o sujeito obteve e, que só pode ser um
enriquecimento superior no caso de deslocação patrimonial ser um valor abstrato/um valor de
mercado superior na medida em que o sujeito tenha agido de má-fé – se agiu de má-fé, tem de
restituir tudo aquilo com que injustamente se locupletou, por ventura, salvo aquilo que só ele e
mais ninguém poderia atribuir.
Outros aspetos que importam considerar: a ordem jurídica portuguesa dá também relevo
ao momento em que se constitui a obrigação de restituir.
O sujeito pode não ter noção de que o seu enriquecimento é um enriquecimento indevido,
que tem de ser restituído, porque estava a agir de boa-fé, suponhamos. (Por exemplo, o indivíduo
está convencido de que a areia é dele, vende a areia e estoura o dinheiro que fez com a venda da
mesma no casino. Pergunta-se se ele tem de restituir o enriquecimento atual – isto é, aquilo
que lhe resta do que ganhou com a venda da areia, imagine-se que a vendeu por 2500 euros e já
gastou 1000 euros no casino, então o enriquecimento atual é de 1500 euros – ou se ele tem de
restituir o montante do enriquecimento total, como ele se fixou originariamente, na sua
esfera jurídica – isto é, o enriquecimento que se fixa num determinado momento por cujo o
perecimento/destruição ele passa a ser responsável, a partir do momento em que o enriquecimento
se fixa na sua esfera?)
Quando perguntamos se o indivíduo que se locupletou tem de restituir o enriquecimento
atual ou o enriquecimento total, a nossa ordem jurídica considera que, à partida e em regra, deve
haver a restituição do enriquecimento atual, que é o enriquecimento concreto que o enriquecido
tem, à data da dedução da pretensão do enriquecimento. (Demorou-se a intentar a ação de
enriquecimento sem causa, não se sabia que havia a obrigação de restituição do enriquecimento,
delapidou tudo, já não há nada para restituir…)
Esta regra só se entende, no entanto, quando o enriquecido estiver de boa-fé; contrariamente,
se está de má-fé, se tiver o conhecimento da falta de causa do seu próprio enriquecimento,
ele passa a responder pela deterioração/delapidação da coisa, isto é, do seu enriquecimento, no
qual tenha tido culpa.
Lembrando a disposição do artigo 479.º/2, nos termos da qual a obrigação de restituir “não
pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de alguns factos referidos (…)”,
prova-se que a ordem jurídica tende a exigir a restituição do enriquecimento atual. No que toca ao
enriquecido de má-fé, temos o disposto no artigo 480.º.

Nota importante! O enriquecimento de alguém pode não coincidir com o


empobrecimento de outrem por força dos critérios aplicáveis ao enriquecimento e ao
empobrecimento respetivamente. (Por exemplo, o valor da areia é 30 euros, mas o indivíduo só fez
15 euros, ou fez até mais, 45 euros. Como é que medimos, aqui, o enriquecimento?)
O enriquecimento compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido, como
diz o 479.º. Há dois limites: não pode ultrapassar aquilo que o indivíduo obteve (se obteve 40
euros, não pode ser obrigado a restituir 45 euros, porque a deslocação patrimonial é de 40 e não
de 45);
por outro lado, a obrigação de restituir só existe na medida em que tenha sido obtida à custa
do empobrecido. (Se um enriqueceu 50 euros, mas o outro só empobreceu 40 euros, naturalmente
que a obrigação de restituição só pode ser de 40 euros, sob pena de o empobrecido estar a ficar
locupletado à custa do enriquecido.)
Quando se fala deste duplo limite, entende-se que é a menor das grandezas aquela que vai
permitir o fixar do montante do enriquecimento.

Outro preceito importante, relacionado com as hipóteses de atribuições patrimoniais


indiretas, é a obrigação de restituir no caso de haver uma alienação gratuita. O artigo 481.º/1
estabelece que tendo “o enriquecido alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, fica o
adquirente obrigado em lugar dele, mas só na medida do seu próprio enriquecimento”.
(No caso da areia, o individuo vendeu a areia, e fez um bom dinheiro com ela, ganhou 5000
euros e se, por causa disso, quiser beneficiar uma instituição qualquer, há um benefício que um
terceiro obtém à custa do titular inicial. Entregou para uma campanha dos Bombeiros locais a
quantia de 500 euros – há um terceiro que adquire uma parte desse enriquecimento e, então, diz a
Lei que o adquirente desse enriquecimento fica, de facto, também ele obrigado a restituir,
mas só na medida do seu próprio enriquecimento.
Portanto, os 500 euros que foram entregues têm de ser restituídos pelo corporação dos
Bombeiros se ainda lá estiverem, mas podem não estar porque comprou uma carrinha para
transportar doentes e, nessa hipótese, já não há enriquecimento atual do terceiro, portanto ele não
tem de restituir. Mas na medida em que o terceiro, que é alheio em si àquele fenómeno de
deslocação patrimonial, vai beneficiar e, enquanto beneficiar tem de restituir, só na medida do seu
próprio enriquecimento à altura da dedução da pretensão restitutória.
Agora, se a transmissão ao terceiro teve lugar depois de o enriquecido ter sido citado
judicialmente para a restituição, depois do enriquecido saber que não tem direito ao
enriquecimento, o adquirente se estiver de má-fé é responsável nos mesmos termos. Portanto, o
individuo apercebe-se que tem de restituir o valor da areia, descobriu a certa altura que aquela
areia não era dele, que as máquinas de extração de areia ultrapassaram pelos marcos divisórios e
ultrapassaram para o lado do vizinho sem autorização. Como fez dinheiro, vai ser obrigado a
restituir, então podia ter a tentação de fazer uma doação a um afilhado, ou então beneficiar a
corporação de Bombeiros. Nesses casos, o adquirente se estiver de má-fé fica obrigado nos
mesmos termos – norma para evitar conluios entre os sujeitos. O adquirente do produto do
enriquecimento fica sem qualquer interesse, nos termos do artigo 481.º, se conhecer a falta do
enriquecimento depois
de ser citado para a restituição; não tem qualquer interesse também em receber o enriquecimento
ou o seu produto ou então o dissipar.)

O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos a contar da data


em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável,
sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do prazo do
enriquecimento (artigo 482.º).
Tem 3 anos, a partir do momento em que o credor da restituição (dono do prédio do qual a
areia foi extraída, por exemplo) teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do
responsável. (Alguém tirou mas não sabe quem, então não começa a contra o prazo de prescrição,
mas sem prejuízo da prescrição ordinária, de 20 anos, dentro da qual, quer conheça ou não,
naquele momento, o responsável, deve resolver a situação, sob pena de lhe ficar precludida a
possibilidade de deduzir uma pretensão de restituição do enriquecimento sem causa.)

A natureza subsidiária da obrigação de restituição por enriquecimento sem causa

Não são assim tantas vezes que ouvimos falar no enriquecimento sem causa, em parte
porque é um instituto menos conhecido do que, por exemplo, o instituto da responsabilidade civil.
Uma das causas para que o papel do enriquecimento sem causa na nossa ordem jurídica seja pouco
conhecido é o artigo 474.º – que refere a chamada subsidiariedade da obrigação de restituir por
enriquecimento. “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao
empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou
atribuir outros efeitos ao enriquecimento.”
Quer isto dizer que o enriquecimento sem causa não pode invocar-se quando a ordem
jurídica tem outras valorações específicas que possam justificar a pretensão do enriquecido.
− Contratos nulos ou anulados. Quando um contrato é nulo ou anulado, as prestações
que tenham sido realizadas deixam de ter um título justificativo, deixam de ter uma
causa válida, porque o contrato é inválido. Numa situação de invalidade do contrato,
não se deve, todavia, chamar o instituto do enriquecimento sem causa, por causa da
sua subsidiariedade, visto que a ordem jurídica portuguesa prevê um regime próprio
aqui: o artigo 289.º, que determina a restituição daquilo que foi entregue em
cumprimento do contrato, seja restituição em espécie ou, na impossibilidade desta, a
restituição de valor correspondente. Essa norma deve ser aplicada sem que seja
necessário e, até face ao 474.º, sem que seja lícito recorrer ao enriquecimento sem
causa, porque há um regime específico. Se a ordem jurídica estabeleceu aquilo como
consequência da invalidade por nulidade ou por anulação, é isso que importa
observar. O enriquecimento sem causa só pode aplicar-se na medida em que não haja
valorações especificas ou contrárias da ordem jurídica a esse propósito. O exemplo
do 289.º é discutível, porque há boas razões para dizer que aquilo que está na base do
289.º é, de facto, o pensamento do enriquecimento sem causa. Verificando-se que a
causa é inválida, as atribuições patrimoniais teriam de ser revertidas. Como é querida
a integração na ordem jurídica do mecanismo restitutório do 289.º, temos uma norma
que não nos habilita a recorrermos diretamente aos princípios do enriquecimento sem
causa. Na Alemanha, não há norma equivalente ao 289.º e, por isso, o
enriquecimento sem causa é constantemente chamado para resolver problemas
relacionados com a invalidade dos contratos. Quando o contrato é inválido, tudo o
que tenha sido prestado é restituído através do enriquecimento sem causa, na
Alemanha; em Portugal, não precisamos de aqui apelar ao enriquecimento sem
causa, porque temos o artigo 289.º do Código Civil.
− Usucapião. A usucapião permite a alguém que não é possuidor adquirir a
propriedade à custa de outrem – gera ou não uma situação de enriquecimento sem
causa? Claro que aqui há razões de certeza e segurança jurídica que obstaculizam a
revisão de sentença e a revisão do processo aquisitivo através da usucapião.
A natureza subsidiaria da obrigação do enriquecimento sem causa não é tão esclarecedora
assim acerca do papel do instituto, nem relega o instituto para uma função marginal, porque saber
ao certo se a Lei faculta ou não ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído,
saber se a Lei nega ou não o direito à restituição, saber se a Lei atribuiu ou não outros efeitos ao
enriquecimento, depende de ponderações muito complexas que obrigam a pensar na ordenação
substancial dos bens aprovada pelo Direito e que obrigam a ter em consideração todo o espírito do
enriquecimento sem causa e, da sua função na ordem jurídica. Portanto, diz CARNEIRO DA
FRADA que este preceito que estabelece a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa
é de bem menor aplicação do que se pensa e de muito problemática aplicação, obrigando o
intérprete aplicador a grandes esforços para saber se, no caso concreto, há ou não lugar a
uma pretensão de enriquecimento sem causa.
2.º SEMESTRE

FONTES DAS OBRIGAÇÕES

A RESPONSABILIDADE CIVIL

“Casum sentit dominus”, isto é, quando se produz um efeito nefasto na esfera jurídica de
alguém, é em princípio essa pessoa que suporta essas consequências desvantajosas. Há um risco
inerente à vida que em princípio é suportado por cada um de nós. Para que nós possamos
responsabilizar alguém, nomeadamente ao abrigo da responsabilidade civil, é preciso que exista
um título (de responsabilização). Ou seja, a regra é que não exista responsabilidade.
O título primeiro e principal de responsabilização civil ainda é a culpa, é o da prática de um
ato ilícito e culposo (artigo 483.º/2 do Código Civil). Resulta deste artigo que só há
responsabilidade sem culpa nos casos previstos na Lei. Quando não esteja prevista uma
responsabilidade sem culpa (responsabilidade objetiva), temos responsabilidade subjetiva. Cada
vez mais encontramos um alargamento das áreas em que atua a responsabilidade objetiva.
Verificamos também o crescimento dos mecanismos de socialização do risco – cada vez
mais há riscos para os quais o ordenamento jurídico prevê outros mecanismos de resposta,
concorrentes, cumulativos (por exemplo, a Segurança Social, os seguros de responsabilidade
civil).
Tem ainda havido um crescimento tendencial da responsabilidade civil, no sentido do seu
âmbito – como provamos isto?, bem, dizendo que os litígios em que se discute uma pretensão
relativa à responsabilidade civil são os litígios que em maior número, na nossa área civil, ocupam
os Tribunais (além dos contratos). Isto tem várias explicações: 1) a crescente rejeição da fatalidade
(cada vez mais as pessoas procuram um responsável para aquilo que lhes acontece de mal); 2) o
aumento da consciencialização dos direitos; 3) o avanço da ciência e da técnica (as pessoas
comecem melhor os fenómenos e procuram responsabilizar aquele que entendem ser o causador
do dano).

É necessário fazer a distinção da responsabilidade civil de outras formas de responsabilidade


jurídica – a responsabilidade penal, a responsabilidade disciplinar, a responsabilidade laboral –,
que se impõem coercivamente.
A responsabilidade civil é uma reação jurídica que surge integrada no Direito Civil,
estando prevista, em primeira linha, como tutela dos cíveis, os cidadãos, os particulares.
Diferentemente da
responsabilidade penal, que em primeira linha protege valores estruturantes da sociedade, daí a sua
intervenção em ultima ratio. A responsabilidade civil serve os interesses da pessoa lesada e, por
isso, não pressupõe um ato doloso, como é exigência na responsabilidade penal. A
responsabilidade civil funciona quer perante a mera culpa/negligência quer perante o dolo. Há até
responsabilidade civil que prescinde de culpa, que é a responsabilidade objetiva. A
responsabilidade civil só existe se forem verificados danos (a responsabilidade penal, por
exemplo, não exige dano; pensemos no regime da tentativa).
A reação jurídica aplicável associada à verificação da responsabilidade civil é o nascimento
de uma obrigação de indemnização dos danos causados ao lesado (artigos 562.º e seguintes do
Código Civil). Nos termos de etimologia das palavras, “indemnizar” significa “eliminar o dano”.
A obrigação de indemnizar visa reconstituir a situação (hipotética) que existiria se o ato
lesivo não se tivesse verificado.

Função da responsabilidade civil

A responsabilidade civil tem, em primeira linha, principal e fundamentalmente, uma função


reparatória – vai reconstituir através de uma reconstituição in natura ou através de um montante
pecuniário (equivalente em dinheiro).
Mas a responsabilidade civil desempenha outras funções: desde logo, a função compensatória

– por exemplo, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização (que, em rigor, se chama
compensação) não pode passar pela reconstituição da situação hipotética que existiria caso o dano
não se tivesse verificado. Em alguns casos, a responsabilidade civil desempenha uma função
punitiva ou sancionatória (artigo 494.º do Código Civil, por exemplo). Pode ainda desempenhar
uma função preventiva (geral e especial), no sentido de, através do seu funcionamento, incentivar
a que não se pratiquem os factos que a geram.

Modalidades da responsabilidade civil

Em função da espécie de deveres jurídicos desrespeitados, distinguimos duas modalidades


de responsabilidade civil:
i. A responsabilidade contratual, negocial ou obrigacional, que resulta da violação de
deveres jurídicos específicos, que surgem no âmbito de um negócio ou diretamente da
Lei e que vinculam pessoas específicas. A responsabilidade obrigacional resulta da
violação de um direito de crédito ou de uma obrigação em sentido técnico.
ii. A responsabilidade extracontratual, extranegocial, extraobrigacional, delitual ou
aquiliana, que resulta da violação de deveres jurídicos genéricos, de vínculos jurídicos
gerais, de deveres de conduta, impostos a todas as pessoas – direitos absolutos. A
responsabilidade extraobrigacional pode mesmo resultar da prática de factos lícitos,
que nem sequer violam qualquer dever jurídico. Dentro deste tipo de responsabilidade,
temos de fazer uma distinção tripartida, assente no título de imputação: 1)
responsabilidade por factos ilícitos (que é a regra, e está prevista no artigo 483.º do
Código Civil), que pressupõe a prática de um facto ilícito e culposo; 2)
responsabilidade pelo risco (que é excecional, por força do artigo 483.º/2, e está
disciplinada nos artigos 499.º e seguintes do Código Civil), que são situações de
responsabilidade objetiva, em que se prescinde de culpa; 3) responsabilidade por factos
lícitos, mas que produzem danos (é também excecional no nosso ordenamento jurídico,
como já entendemos pelo artigo 483.º, e encontramo-la, por exemplo, nos artigos
339.º/2, 1322.º/1, ou até 1347.º/2/3 do Código Civil), que serve propósitos de justiça
comutativa, isto é, por vezes, apesar da licitude do ato, ele causa danos a outras
pessoas, que devem ser suportados pela pessoa que praticou o ato, a esta se imputam as
consequências nefastas da prática desse ato.
Independentemente da modalidade de que falamos, a obrigação de indemnizar é
unitariamente regulada nos artigos 562.º e seguintes.

Além disto, devemos ter em conta que um mesmo ato pode desencadear vários títulos de
imputação, várias espécies de responsabilidade civil.
(Por exemplo, alguém vai ao supermercado e uma estante cai sobre ele; pode desencadear-
se, aqui, responsabilidade contratual – no sentido dos deveres acessórios de conduta – e pode
desencadear-se também a responsabilidade extracontratual, por estar em casa um direito absoluto
– o direito à integridade física ou o direito à vida.)
Isto não significa que a existe mais de uma obrigação de indemnizar – quando existem
vários títulos de imputação, temos de saber qual se aplica em função de outro/s, se devemos
considerar todos, mas independentemente da posição adotada, não haverá o pagamento de mais de
uma indemnização.

Responsabilidade por factos ilícitos


O ponto de partida da responsabilidade por factos ilícitos é o artigo 483.º do Código Civil.

Diz o artigo 483.º/1: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a
indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

Do artigo 483.º/1 retiramos cinco pressupostos:

− Um facto voluntário do agente ou omitente, significando isto que é um facto


pensável como objetivamente controlável pela vontade humana. Não se exige aqui
que exista qualquer adesão da vontade, questão esta que será apreciada no terceiro
requisito (a culpa). Basta aqui que haja um facto que a pessoa poderia controlar.
(Atenção! Quando falamos em “controlo”, não nos referimos aqui à capacidade da
pessoa.) O facto voluntário pode ser positivo, quando seja uma ação, ou negativo,
quando seja uma omissão.
Quanto à omissão, o nosso legislador prevê requisitos adicionais: no artigo 486.º do Código
Civil diz-nos o legislador que a omissão só constitui um facto desvalioso, isto é, só desencadeia
responsabilidade civil, quando há o dever jurídico de adotar o ato que se omitiu, “por força da Lei
ou do negócio jurídico”.
Do negócio jurídico, em regra, decorre o dever de agir. Diz Almeida Costa que devem caber
aqui as relações contratuais de facto, portanto, o negócio jurídico aqui deve ser visto como um
vínculo especial de onde emerge uma posição de garante, para evitar a verificação do dano. Este
dever jurídico de atuar resulta mesmo que o negócio jurídico seja inválido, a invalidade não
excluindo a responsabilidade.
Quando o artigo refere “por força da Lei”, entende-se uma alusão genérica ao ordenamento
jurídico, querendo isto dizer que qualquer diretriz que resulte do ordenamento jurídico em sentido
amplo e que imponha um dever jurídico de atuar pode conduzir a que se conclua que a omissão é
ilícita. Aqui importa-nos, nomeadamente, o Direito Penal – a falta de adoção do comportamento
devido, que penalmente seja relevante, também o será civilmente.
A doutrina (MENEZES CORDEIRO) e a jurisprudência portuguesa acolhem, para efeitos da
devida interpretação do artigo 486.º, uma teoria desenvolvida na Alemanha – a teoria dos deveres
de segurança no tráfego ou teoria dos deveres de prevenção do perigo. Diz esta teoria que aquele
que cria ou mantém uma fonte de perigo no tráfego jurídico tem o dever de agir, tomando as
providências adequadas e necessárias para prevenir os danos relacionados com essa fonte de
perigo.
Ou seja, tem o dever de atuar para evitar que o perigo se transforme em dano. O agente em causa
tem o dever de atuar, através de deveres diretos, eliminando a fonte de perigo, ou deveres
indiretos, quando os primeiros não sejam possíveis, providências que não eliminam a fonte de
perigo, mas permitem que os potenciais lesados saibam lidar responsavelmente com a fonte de
perigo (deveres de aviso, deveres de instrução).
Na referência à Lei, entendem a doutrina e a jurisprudência portuguesa que deve ser esta
densificada com a aplicação da teoria dos deveres de prevenção do perigo. Esta teoria é encontrada
nos artigos 492.º e seguintes.
Em suma, a omissão será equiparada a uma ação, para efeitos de responsabilidade civil.

− A ilicitude, que é um juízo de desvalor, de reprovação, formulado pela ordem


jurídica em relação ao ato praticado ou omitido. (Os juízos de desvalor refletem-se
na ilicitude, sendo objetivos, na culpa, sendo subjetivos, ou em ambas.) Encontramo-
la desde logo no artigo 483.º, de onde extraímos duas modalidades da ilicitude: 1) a
violação de um direito de outrem ou 2) a violação de uma norma destinada a proteger
interesses alheios. Mas há ainda, no Código Civil, prevista outra modalidade de
ilicitude: 3) o abuso do direito (artigo 334.º). Nos artigos 484.º e 486.º, o legislador
prevê casos específicos de ilicitude – a ofensa ao crédito e ao bom nome, os casos
em que os conselhos, recomendações ou informações possam gerar responsabilidade
para quem os dá e as omissões.
Segundo a maioria da doutrina portuguesa, embora não seja pacífico, e excluindo a eficácia
externa das obrigações, a violação de um direito de outrem (a que o artigo 483.º pressupõe) é a
violação de um direito subjetivo absoluto (portanto, não se incluindo aqui a violação de direitos de
crédito, direitos relativos, à qual será aplicada a responsabilidade contratual ou obrigacional).
Portanto, direitos reais, direitos de personalidade, direitos de propriedade intelectual, direitos
familiares. No entanto, para quem aceite a eficácia externa das obrigações, na referência ao direito
de outrem também se incluirão os direitos de crédito.
A doutrina portuguesa, em relação à menção à violação de norma destinada a proteger
interesses alheios, refere-se a estas normas enquanto normas de proteção. Estes interesses alheios a
que a Lei se refere no artigo 483.º não pressupõem direitos, porque se assim for, incluímos os
mesmos na primeira modalidade. O ordenamento jurídico, por vezes, protege os interesses dos
particulares sem lhes atribuir direitos. Para que se verifique esta modalidade, é preciso que se
interprete e entenda qual é o fim da norma, e ainda que se verifiquem determinados requisitos
cumulativos: 1) à lesão dos interesses dos particulares corresponda a ofensa de uma norma legal
(entendida em termos amplos); 2) é necessário que a tutela dos interesses dos particulares
constitua um dos fins (direto) da norma violada; 3) é necessário que o dano que se produziu se
tenha registado no círculo de interesses privados que a Lei visa tutelar.
O juízo de desvalor no que respeita ao abuso de direito pode desencadear responsabilidade
civil, bem como de outras reações jurídicas (por exemplo, a paralisação do exercício do direito).
Para os autores que rejeitam a eficácia externa das obrigações, os comportamentos que poderiam
consubstanciar essa eficácia que é rejeitada, seria uma manifestação abusiva, que levaria à
responsabilidade civil do terceiro através dos artigos 334.º e 483.º do Código Civil. CARNEIRO
DA FRADA entende que o abuso de direito não deve ser convocado quando um terceiro interfere
com um negócio entre dois outros sujeitos, aplicando por analogia o artigo 334.º com a
densificação dos requisitos da intencionalidade (dolo) e da ofensa à moral.
Quando falamos da ofensa do crédito ou do bom nome (artigo 484.º), “crédito” equivalerá à
confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações e “bom nome”
equivalerá ao prestígio de que a pessoa goza no meio social. Surge aqui um problema: estão ou
não aqui abrangidos os factos verdadeiros? Quando alguém afirma ou divulga factos que atingem
o crédito ou bom nome da pessoa, mas que são factos verdadeiras, isso desencadeia ou não
responsabilidade? O legislador não distingue, portanto, vários autores consideram que relevam
também estes factos (ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA), não aceitando a exceptio
veritatis; PESSOA JORGE diz que só existe responsabilidade quando os factos não sejam
verdadeiros; RIBEIRO DE FARIA entende que a norma deveria distinguir, pelo que se o facto
fosse verdadeiro, o agente só deveria ser responsabilizado se agisse com dolo.
No que concerne à responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações (artigo
485.º), o princípio é o da irresponsabilização. Em princípio, quando é dado um mau conselho,
uma má recomendação, quando é prestada uma informação incorreta, mesmo que se atue com
mera culpa, com negligência da parte de quem o prestou, não há esta responsabilização, o que se
justifica com a obsequiosidade que, em regra, subjaz à prestação de conselhos, informações e
recomendações. Quem recebe estas informações e estes conselhos é quem tem o dever de ponderar
o asserto dos mesmos. No entanto, existem três situações, enunciadas no artigo 485.º/2, em que há
responsabilidade: 1. quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos (neste caso, alguém
presta um conselho ou fornece informação e, simultaneamente, assume a responsabilidade pelos
danos decorrentes da assunção jurídica deste conselho ou desta informação, assume juridicamente
a responsabilidade pelos danos); 2. quando havia o dever jurídico de dar o conselho,
recomendação
ou informação (neste caso, há o dever jurídico de dar o conselho ou a informação quando, por
exemplo, consultamos um médico ou um advogado, e estes nos aconselham a determinada
atuação, ou até mesmo no âmbito pré-contratual, veja-se o artigo 227.º, que nos dita haver um
dever de atuação de acordo com os ditames da boa-fé, de onde se extraem deveres como o dever
de informação, também presente durante a vida da relação obrigacional, veja-se o artigo 762.º/2); e
3. quando o procedimento do agente constitua facto punível, quando se tenha procedido com
negligência ou intenção de prejudicar (aqui, merecendo o comportamento adotado uma reação
criminal, suscetível à punição, refere-se a uma responsabilidade criminal, mas esse ilícito criminal
também será suscetível de desencadear a reação civil, referindo-se então a responsabilidade civil).
O artigo 486.º disciplina a responsabilidade extracontratual por omissões.

O ato pode preencher uma das modalidades de ilicitude que referimos, mas ainda assim não
ser qualificado como ilícito, por haver uma causa de exclusão da ilicitude, como já vimos
anteriormente na Unidade Curricular de Direito Penal. Quais as causas de exclusão de ilicitude
que funcionam no âmbito do Direito Civil?
Existem duas causas gerais: a colisão de direitos e o conflito de deveres. A colisão de
direitos dá-se quando há o exercício regular (não abusivo) de um direito superior àquele que é
violado, o que resulta do artigo 335.º do Código Civil – alguém pratica um ato que geraria, em
princípio, um juízo de ilicitude, mas a mesma pode ser afastada na medida em que o ato praticado
corresponda ao exercício regular de um direito superior ao direito violado. O conflito de deveres
surge quando há o cumprimento de um dever em detrimento de outro, dever este que, para ser
causa justificativa, deve ter valor igual ou superior ao dever sacrificado. Vejamos o artigo 36.º do
Código Penal – alguém pode adotar um comportamento que seria, em princípio, antijurídico,
consubstanciaria uma das modalidades de ilicitude, mas esse juízo será excluído porque a pessoa
cuja responsabilidade se está a equacionar só agiu ilicitamente, incumprindo esse dever, porque
estava a cumprir um outro dever de valor igual ou superior. (Por exemplo, um médico que tem
várias pessoas que carecem de atendimento de cuidados de saúde, e não podendo cuidar de todos,
tratará aquele em situação de mais urgente. A ilicitude face aos doentes que ele exclui é justificada
porque ele está a cumprir um dever de valor igual ou superior.)
Existem ainda causas particulares de justificação do ato e exclusão da ilicitude do mesmo:
falamos da ação direta (artigo 336.º), da legítima defesa (artigo 337.º), do estado de necessidade
(artigo 339.º) e do consentimento do lesado (artigo 340.º).
− A culpa, que é um juízo de reprovação, de censura, de antijuridicidade, que a ordem
jurídica formula. Na culpa, este juízo de reprovação é subjetivo (o da ilicitude é
objetivo, relativo ao ato em si), no sentido em que se dirige ao sujeito, ao agente,
omitente, considerando o seu comportamento, mas não de forma isolada, como
fazíamos na ilicitude. Na culpa, perspetiva-se o agente através do seu
comportamento, que será culposo se nós pudermos afirmar que aquela pessoa podia e
devia ter agido de outra forma. Seria exigível ao agente um outro comportamento?
Para isso, formulamos o juízo de culpa, para o qual é imprescindível que o sujeito
seja imputável.
A imputabilidade é a capacidade de entender e de querer por parte do agente. Abrange uma
capacidade intelectual e uma capacidade volitiva – capacidade de entender, de valorar a própria
conduta, de aferir os resultados e capacidade de querer, de se autodeterminar. De acordo com o
artigo 488.º/1, norma alterada em 2018, não responde pelas consequências do facto danoso quem,
no momento, estivesse incapacitado de compreender o ato, e de acordo com o 488.º/2 também é
presumida a falta de imputabilidade a menores de 7 anos. Aqui há uma presunção ilidível: quer
dizer que esta norma pode ser afastada caso haja prova do contrário, isto é, pode ser provado que
alguém menor de 7 anos é imputável pelo seu comportamento, o que dependerá do caso concreto.
Neste ponto, importa também dizer que, apesar do menor ser inimputável, em princípio tem um
vigilante
– em princípio, o menor não responde pelos seus atos, mas o vigilante pode responder por falha
na vigilância, nesse âmbito vigorando a presunção de culpa do artigo 491.º.
Atenção ao artigo 489.º – quando não seja possível obter uma indemnização, uma reparação
do ato e danos produzidos pelo mesmo, por parte dos vigilantes, o legislador admite que o próprio
inimputável possa responder. Por razões de equidade, o julgador aprecia todos os pormenores do
caso e pondera as circunstâncias, podendo condenar o inimputável a uma reparação ao lesado, no
entanto, atenção que só responderá pela reparação caso se averigue que, sendo ele imputável, ele
responderia. Não podemos colocar o inimputável numa situação mais gravosa do que aquela em
que ele estaria caso fosse imputável. No artigo 489.º/2, o legislador vem ainda prever limites a esta
responsabilização: o inimputável não pode ficar privado dos seus alimentos nem impossibilitado
de cumprir as suas obrigações de alimentos, sendo estes limites inultrapassáveis.
Vejamos as modalidades da culpa: começamos, desde logo, por distinguir o dolo e a
negligência. Em princípio, no Direito Penal, a responsabilidade criminal só intervém quando o
responsável atue com dolo. No Direito Civil, e por força do artigo 483.º, a situação não é bem
assim
– exige-se responsabilidade, independentemente da modalidade, seja dolo ou mera
culpa/negligência.
O dolo pode ser direto (a pessoa responsável atua querendo o resultado contrário ao Direito

– por exemplo, alguém coloca uma bomba na garagem do Xavier com a intenção de destruir a
garagem do Xavier, porque quer matar o cão de Xavier, quer as consequências desvaliosas do ato),
pode ser necessário (a pessoa, embora não querendo o resultado contrário ao Direito, entende-o
como consequência necessária da sua conduta e não deixa de atuar, isto é, a atuação não é dirigida
à prossecução daquele resultado, mas a pessoa responsável sabe que terá aquela consequência,
contrária ao Direito, associada à sua conduta, como um efeito necessário da mesma, não deixando
de atuar apesar de ter conhecimento disso – por exemplo, o agente quer apenas pôr a bomba na
garagem de Xavier para o assustar, e sabe que está lá o cão e que o pode ferir mas, mesmo assim,
não deixa de atuar), e pode ser eventual (a pessoa sabe que há a possibilidade de aquela
consequência surgir como um resultado da sua conduta e ainda assim não se abstém de atuar – o
agente sabe que o cão do Xavier está na garagem às vezes, sabe que o poderá vir a atingir se lá
estiver mas não deixa de atuar).
A negligência ou mera culpa dá-se quando há a violação ou o afastamento de uma
diligência exigível na atuação. A negligência pode ser consciente (quando o agente conhece o
resultado possível desvalioso da sua conduta, mas confia, por leviandade, por precipitação, que o
mesmo não se irá produzir, só por isso é que atua) ou inconsciente (traduz-se no estado de um
sujeito que não conhece sequer o resultado possível desvalioso da sua conduta).
O dolo eventual tem um problema de distinção quanto à negligência consciente. Quer numa,
quer noutra, o sujeito conhece da possibilidade do resultado desvalioso. Mas no dolo eventual há a
dupla negativa: o agente não confia que aquele resultado não se produzirá.
Qual é o padrão de aferição da culpa? Ora, utilizamos o padrão extraído do artigo 487.º/2,
que é conhecido como o critério do bom pai de família, nas circunstâncias de cada caso concreto.
O padrão valorativo para a aferição da diligência exigível é o padrão representado pelo bom pai de
família, quando colocado nas circunstâncias em que o responsável agiu (ou omitiu uma atuação).
Este padrão refere-se a uma pessoa média – esta pessoa média é aferida aqui à luz de uma mediana
ético-axiológica, ético-valorativa, aquilo que, à luz dos valores protegidos pelo Direito, uma
pessoa média faria. Aquilo que poderia ser exigido que a pessoa média fizesse.
Como se faz a prova da culpa? Na responsabilidade obrigacional vigora a presunção de
culpa prevista no artigo 799.º do Código Civil. Já na responsabilidade extracontratual, a culpa tem
de ser provada pelo lesado, como dita o artigo 487.º/1, isto é, tem de ser provada por aquele que
invoca o direito a ser indemnizado por determinados danos. Também a este incumbe a prova de
todos os elementos constitutivos do seu direito (342.º). No entanto, existem exceções,
nomeadamente previstos nos artigos 491.º a 493.º.
De acordo com o artigo 491.º recai sobre os vigilantes de uma pessoa incapaz uma
presunção de culpa. Quanto ao incapaz, esta norma não se aplica apenas a menores, porque
incapacidade natural pode ter várias causas, seja a menoridade ou outra fragilidade ou
vulnerabilidade. O artigo 491.º aplica-se a toda a pessoa que não tenha capacidade natural de
querer e de entender. Quanto ao vigilante, esta presunção de culpa e responsabilidade quanto ao
ato de um incapaz pode resultar da Lei ou de um negócio jurídico. (Por exemplo, uma criança
pode ter como vigilantes os pais, como resulta do artigo 1078.º, ou seja, da Lei, ou uma babysitter,
caso que já resulta de um contrato com os pais da criança). Os vigilantes, geralmente os pais, vão
responder ao abrigo do artigo 483.º, em articulação com o artigo 491.º. É importante ter em conta
que eles respondem por um ato próprio, isto é, a omissão do comportamento de vigilância que
sobre eles impendia. Este dever de vigilância é avaliado casuisticamente, a sua natureza e limites
aferidos com respeito pela liberdade que tem de ser dada pelos vigilantes ao vigiado. A
jurisprudência tem-se manifestado no sentido da ampliação do dever de vigilância, o que quer
dizer que cada vez mais se estende o leque de comportamentos devidos pelos vigilantes.
No artigo 492.º, encontramos a consagração da presunção de culpa do proprietário ou
possuidor de edifício ou de obra quando hajam danos provocados pela ruína do mesmo, seja em
totalidade ou em parte. Haverá lugar à aplicação do artigo 492.º se uma parede ou um muro ruir,
mas não haverá lugar à sua aplicação se, por exemplo, cair um vaso da varanda. Abrange-se o
edifício propriamente dito e os elementos que se liguem de forma fixa ao mesmo. Há aqui uma
responsabilidade presumida, em articulação com o artigo 483.º, que recai em primeira linha sobre
o proprietário ou possuidor em nome próprio; mas esta responsabilidade pode cair também sobre
aquele que se tenha obrigado à conservação do bem ou aquele a quem a conservação compete por
força da Lei (usufrutuário, por exemplo, vejamos o artigo 492.º/2).
Já o artigo 493.º respeita ao dever de vigilância de alguém sobre uma coisa ou animal, pelo
que, quando uma coisa ou animal provoquem danos, há presunção de culpa atribuída a esse titular.
O vigilante responde pelos danos provocados salvo se for provado que nenhuma culpa houve da
sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido se este não tivesse omitido o seu
comportamento, por exemplo.
Existem dois mecanismos de defesa por parte do lesante desta presunção de culpa: 1. o
lesante pode ilidir a presunção de culpa, demonstrando que atuou com a diligência exigível; e 2.
o lesante prova que, mesmo que não se tivesse atuado com culpa, mesmo que se tivesse atuado de
forma diligente, os danos se teriam produzido na mesma, havendo outra causa independente d
culpa para que o dano acontecesse, uma causa virtual (relevância negativa da causa virtual).
Distinguimos a causa real, causa que efetivamente causou o dano produzido, da causa virtual, um
outro encadeamento causal, que pode ser real ou hipotético, que conduziria à produção do mesmo
dano que, no entanto, foi produzido pela causa real. A causa virtual suscita dois problemas:
primeiro, o de saber se podemos fundar a responsabilização do autor da causa virtual – a resposta,
em princípio, é negativa, não respondendo o autor da causa virtual –; o outro problema é que, se a
causa virtual identificada permite excluir a responsabilidade do autor da causa real – entre nós, a
resposta em regra é negativa, ou seja, em princípio não é por isto excluída a responsabilidade do
autor da causa real, havendo, no entanto, exceções (artigos 491.º, 492.º, 493.º e 807.º).
Voltando às exceções do encargo probatório ao lesado, e também no artigo 493.º, mas no /2,
encontramos uma presunção de culpa que se distancia das outras porque, apesar de prever a
mesma, admitindo que esta possa ser afastada, não há cabimento à relevância negativa da causa. O
artigo 493.º/2, normalmente, é utilizado quando falamos da explosão de dispositivos (atividade
pirotécnica), quando estamos perante situações onde se usem substâncias radioativas, quando
estamos perante situações de queimadas, também no âmbito da construção civil, ou em atividades
que impliquem trabalhos no subsolo (abertura de buracos, por exemplo).

− Um dano, sendo o dano todo o prejuízo, toda a perda em bens juridicamente


tutelados. O dano pode ter carácter patrimonial ou não, mas tem sempre de abranger
bens que mereçam tutela jurídica. Pode existir responsabilidade penal sem que
existam danos; pode haver responsabilidade disciplinar quando não hajam danos; só
pode haver responsabilidade civil enquanto reação à existência de um dano,
procurando indemniza-lo, o seu objetivo sendo tornar indemne, reconstruir a situação
que existiria se não tivesse ocorrido uma lesão que tivesse provocado esses danos.
Há várias modalidades de dano. Diz-se existir dano real (perda que se produz in natura, em
espécie, no bem jurídico). Ao lado do dano real encontramos o dano de cálculo/dano patrimonial,
aquele que se traduz na repercussão patrimonial que o dano real provoca – é a diferença do estado
atual da pessoa prejudicada e o estado em que ela se encontraria no momento presente se não se
tivesse verificado a lesão. O dano real importa quando se considera a reparação in natura, que é a
regra (indemnizações, através do pagamento de um montante pecuniário, são a exceção, embora
frequentemente se pense o contrário, momento em qual importa o dano de cálculo).
Outra classificação que nos importa é a que distingue os danos patrimoniais dos danos não
patrimoniais. O dano patrimonial é aquele que se produz em bens que são suscetíveis de
avaliação pecuniária, e que, por isso mesmo, podem ser indemnizados ou por via da reconstituição
natural ou por via de uma indemnização por equivalência (pagamento de montante pecuniário). Os
danos patrimoniais podem ser, por sua vez, de duas modalidades: danos emergentes (que se
traduzem na diminuição no património do lesado) ou lucros cessantes (que se traduzem no não
aumento do património, na perda de um aumento que se verificaria se não fosse o facto em causa),
a responsabilidade civil abrangendo a reparação de ambos, como resulta dos artigos 562.º e
seguintes do Código Civil. Já os danos não patrimoniais são aqueles que se produzem em bens não
suscetíveis de avaliação pecuniária.
Serão estes danos não patrimoniais reparáveis, em regra ou excecionalmente? O que foi
consagrado no Código Civil de 1966, no seu artigo 496.º, veio a admitir expressamente a
ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, de forma expressa e genérica. O artigo 496.º/1 prevê a
possibilidade de reparação de danos não patrimoniais ou morais, mas desde logo há que salientar
que não é possível indemnizar pelos danos não patrimoniais – eles não são reparáveis, no máximo
pode existir uma compensação pelos mesmos. Ou seja, o dano não patrimonial não é, na maioria
das vezes, suscetível de eliminação, no entanto pode ser compensado através de uma quantia
pecuniária, que permita ao titular do bem lesado alcançar outras vantagens, satisfações, de índole
psicológico. O legislador demarca o critério da compensação dos danos não ressarcíveis – na
fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade,
mereçam a tutela do Direito. Os conceitos indeterminados no artigo 496.º permitem que haja um
critério flexível para que o julgador, casuisticamente, afira esta gravidade. O cálculo do quantum
repatatório faz-se através do disposto no artigo 496.º/4, complementado pelo disposto no artigo
494.º: há uma fixação equitativa da indemnização.
Outra questão que aqui surge é se, apesar do artigo 496.º se inserir, mesmo no Código Civil,
no âmbito da responsabilidade extracontratual, este se estende também à responsabilidade contratual
– é pacífico afirmar que há um princípio geral de ressarcibilidade que vale amplamente para a
responsabilidade extracontratual e para a responsabilidade contratual.
Existe, na previsão legal que conhecemos, um dano não patrimonial de particularmente
importante análise específica: o dano de perda de vida. O dano de perda de vida tem suscitado
uma maior discussão porque, tratando-se de um dano não patrimonial e como vimos, a maioria das
vezes é impossível uma reparação, apenas havendo a hipótese de compensação pelo dano; no
entanto, quando estamos perante o dano de perda de vida não há sequer a possibilidade de
compensação, porque o titular do bem afetado (a vida) não poderá fruir desta compensação
(porque morreu). Assim, considera-se que a compensação pela perda de vida não é reparatória
nem compensatória, podendo a responsabilidade civil, aqui, estar a servir apenas finalidades
sancionatórias. De acordo com o artigo 496.º/4, segunda parte, em caso de morte, diz que se
podem considerar os danos sofridos pela vítima como os danos sofridos por outras pessoas. Que
danos não patrimoniais podem existir, sofridos por aquele que morreu? Podem ser danos ocorridos
entre o momento da lesão e o momento da morte, quando a morte não seja imediata, sendo estes
danos apelidados de danos intercalares. O direito de compensação nasce na esfera jurídica da
vítima, transmitindo-se quando a mesma falece. Quando a pessoa morre, a sua esfera jurídica
extingue- se, a personalidade jurídica extingue-se, então como podemos afirmar que há um
direito de compensação na esfera jurídica do falecido? Existem alguns autores que se
posicionam contra a compensação do dano por perda de vida, embora seja uma posição
extremamente minoritária. Vários autores consideram que, extinguindo-se a personalidade jurídica
da vítima, estes danos não podem ser compensáveis. (Atenção que isto não abrange os danos
intercalares, que surgiram no momento em que a personalidade jurídica ainda existia e, portanto,
transmitem-se com a sua morte.) Aceitando-se que o dano de perda de vida é compensável, pela
maioria doutrinária, é agora discussão o saber quem é o titular do direito à compensação pelo dano
da perda de vida. Poderá aquele que faleceu ser considerado titular deste direito? Parte da
doutrina entende que o direito à compensação nasce diretamente na esfera jurídica das pessoas
indicadas no artigo 496.º/3/4 – o cônjuge/unido de facto, os descendentes, os pais ou outros
ascendentes, os irmãos ou sobrinhos. Este direito é um direito próprio destas pessoas, o direito a
ser compensados pelos danos não patrimoniais causados, neste caso a perda do ente querido. Esta
posição é importante porque, se este direito nasce diretamente na esfera jurídica destas pessoas,
não é objeto de sucessão, de transmissão sucessória – a implicação prática de tal é que não vai
responder pelos encargos da herança. Outros autores, por outro lado, adotaram posições distintas,
através de construções jurídicas que permitiam não só afirmar a compensação do dano de perda de
vida como justificar que o direito à compensação nascia na esfera jurídica do falecido. Uma das
construções defende que o direito à compensação pela perda de vida nasce na esfera jurídica da
pessoa que depois veio a falecer, nasce no momento da lesão, em que a pessoa ainda está viva,
sob condição de a perda de vida se vir a verificar. Este direito nasce sob condição e ganha eficácia
quando há a perda de vida. Outra construção entende que, tal como para certos efeitos se admite
que pode haver retroação da proteção dos bens pessoais a um momento anterior completo e com
vida, o momento da aquisição da personalidade (artigo 66.º), há a possibilidade de proteção de
certos bens pessoais antecipada a um momento anterior ao
da aquisição da personalidade; assim, entende-se que é semelhante, mas em vez de haver
antecipação da proteção de bens pessoais, há um prolongamento da proteção dos mesmos, isto é,
os bens pessoais continuam a ser protegidos mesmo depois da extinção da personalidade
jurídica. De acordo com esta segunda construção doutrinal, o direito à compensação pela perda da
vida nasce na esfera jurídica da pessoa que faleceu, mas tendo ela falecido, há novamente uma
divergência doutrinal sobre a quem é que o direito em causa se transmite: para parte da doutrina
envolvida nesta construção, ele transmite-se sucessoriamente, nos termos previstos no Livro V do
Código Civil, aplicando-se aos herdeiros legais (artigo 2133.º), e para a outra parte da doutrina
entende-se que a transmissão se dá ao elenco mencionado no artigo 496.º/3/4.
Uma última distinção quanto aos danos: podemos falar de danos diretos e danos indiretos.
Os danos diretos são aqueles que são causados imediatamente a determinado lesado, é a lesão da
vida daquele que morreu, da integridade física do que partiu uma perna, do direito de propriedade
sobre o computador que foi estragado, portanto, é um dano que se produz imediatamente. Os
danos indiretos são danos que se produzem numa esfera jurídica, mas como reflexo ou
consequência de outros danos produzidos numa outra esfera jurídica. Esta distinção é
particularmente importante na responsabilidade civil contratual, no cumprimento defeituoso, ou
chamada violação contratual positiva, consoante os danos decorram diretamente do efeito da coisa
os sejam mediatamente provocados pelo defeito. No âmbito extracontratual, importa-nos em
relação à titularidade do direito de indemnização, porque, em princípio, os titulares do direito à
indemnização são aqueles que são diretamente lesados, mas será que os indiretamente lesados não
podem ser também titulares desse direito?

− O nexo causal entre o facto e o dano, um requisito transversal a qualquer espécie de


responsabilidade civil. Desempenha uma dupla função: por um lado, é um
pressuposto que tem que se juntar aos demais para que nasça o direito à
indemnização, ou seja, a constituição do direito à indemnização depende deste
pressuposto; por outro lado, e além disso, dá-nos a medida da obrigação de
indemnização, demarcando os danos indemnizáveis e os não indemnizáveis. Ou seja,
o nexo causal não importa apenas para o “se” da responsabilidade, mas também
para o seu “quantum”.
De acordo com RIBEIRO DE FARIA, obrigado a reparar um dano está sempre quem o
causa; por sua vez, a reparação deve operar-se por via de uma reconstituição do estado em que o
lesado se encontraria não fosse a lesão. Encontramos um duplo problema: por um lado, saber quais
os danos que são causados, e por outro lado, fixar em que moldes ocorre a sua reparação.
Destacamos a ideia de que a indemnização vai reconstituir a situação que existiria se não se
tivesse verificado a lesão, e essa reconstituição em princípio é natural, e quando não seja possível
por equivalente. Temos de saber quais os danos causados pelo facto em causa, cerne do
problema do nexo causal.
No Direito, não podemos aceitar que a causalidade resulte da sucessão cronológica (ou
apenas desta) – teoria que secunda da expressão post hoc ergo propter hoc. Esta teoria retira de
uma sucessão cronológica um nexo de causalidade, mas para o Direito esta teoria deve ser
repudiada, porque um facto não é necessariamente a causa do outro só porque aconteceu antes do
segundo.
Outra teoria é a teoria da equivalência das condições – ou conditio sine qua non – que
procurou, no complexo das circunstâncias que se relacionam com determinado resultado,
distinguir aquelas circunstâncias que sejam indiferentes para a produção do resultado e aquelas
cuja falta impediria a produção do mesmo. Em que medida, se se retirar do encadeamento causal
uma determinada condição, o resultado se continua ou não a produzir? Se retirarmos uma
condição e o resultado se continuar a produzir, ela não é determinante, mas se o resultado deixar
de se produzir ela é determinante para o resultado. Todas as condições necessárias ao resultado
serão equivalentes. No entanto, a teoria da equivalência das condições é muito ampla, diz a crítica.
Se assim fosse, diz um autor que, sem qualquer filtro, no limite iríamos ter de responsabilizar, por
todos os resultados atuais, “Adão e Eva”. Recuamos a condições que sejam necessárias, mas não
poderão estas ser demasiados distantes daquele resultado, tornando a teoria impraticável. Outra
crítica feita a esta teoria é que não podemos ter só critérios empíricos a residir a esta
responsabilização.
Surgiram as teorias seletivas, dentro das condições necessárias, aquelas que são causas
jurídicas de determinado dano. Fazemos uma breve menção à teoria da última condição (que
seleciona a condição mais recente) e à teoria da condição mais eficiente (que joga com a condição
mais eficiente para a produção do resultado), que se baseiam em critérios empíricos, no entanto,
despidos de valoração jurídica, motivo pelo qual foram afastadas. O critério que ganhou peso entre
nós foi o da teoria da causalidade adequada, que consideramos explanada nos artigos 562.º e
563.º do Código Civil.
Esta teoria desdobra-se em dois momentos: num primeiro, é necessário formular um juízo
concreto, para averiguar se o facto que se discute ser a causa de determinado dano é ou não, no
caso concreto, uma condição sine non, necessária para que tenha ocorrido o dano. Se a falta do
facto determina que ele não se produz, o facto é uma condição necessária. O facto que estamos a
discutir é condição necessária do dano, é requisito necessário para afirmar a causalidade jurídica,
mas isto não é suficiente para que se prove o requisito.
Para ser causa jurídica, não basta que o facto seja condição necessária do dano. Num
segundo momento, formulamos um juízo em abstrato. Temos de averiguar se aquele facto, que é
condição necessária daquele dano, é ou não causa adequada à sua produção. Isto é, veremos se
ele é apto a produzir, atendendo à sua natureza, aquela espécie de danos. Um ponto importante
aqui é que o juízo de adequação é formulado em abstrato, reportando a categorias de eventos em
causa, vemos aquela espécie de facto e aquela espécie de dano. Para a formulação deste juízo de
adequação, temos duas possíveis formulações: uma formulada pela positiva (LARENZ), que nos
diz que a causa adequada de um dano é toda a condição apropriada à sua produção, segundo um
critério de normalidade, e não apenas por força de circunstâncias especialmente particulares,
improváveis e estranhas ao normal das coisas, isto é, tudo o que fuja ao normal curso das coisas
implica a interrupção do nexo causal; e uma formulada pela negativa (ENNECCERUS-
LEHMANN), que nos diz que um determinado facto só deixa de ser causa adequada de
determinado dano se, atendendo à sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a
verificação desse dano, que por isso só se produziu por circunstâncias excecionais ou
extraordinárias, sendo esta formulação menos restritiva e, por isso, conduzindo mais vezes à
afirmação do nexo causal. Segundo a formulação negativa, para que haja corte do nexo causal, é
preciso que haja total indiferença para a produção do dano.
A jurisprudência tem aplicado ambas as formulações, embora a formulação positiva seja
mais comum. A doutrina tem defendido uma aplicação diferenciada: a formulação negativa, por
ser mais ampla e abranger mais danos, aplica-se quando está em causa a responsabilidade civil
por factos ilícitos, seja contratual ou extracontratual, enquanto a formulação positiva se aplica
quando estão em causa factos lícitos. Quanto à responsabilidade pelo risco, a doutrina diverge:
ALMEIDA COSTA defende que se deve aplicar a formulação positiva, bem como ANTUNES
VARELA parece dar a entender. A docente RUTE PEDRO defende esta formulação também.
É ainda importante fazer algumas precisões quanto à causalidade: não é necessário, para
afirmar o nexo causal, que o facto provoque, por si, sem intervenção de outros, aquele dano; não é
necessário que o dano seja previsível para o autor do facto. A causalidade adequada não se afere
considerando apenas o facto e o dano, mas é aferida considerando todo o encadeamento causal
que, em concreto, produziu ou conduziu àquele dano. Não se exige que o facto produza direta e
imediatamente o dano, ou seja, o nexo causal não tem de ser direto, não tem que ser imediato;
no entanto, neste caso, é necessário que dos vários elementos do encadeamento causal se possa
formular o juízo entre todos.
Existe ainda uma outra teoria a que podemos aludir – a teoria do fim da proteção da
norma, defendida por MENEZES CORDEIRO. Esta teoria diz-nos que a aferição do nexo
causal se faz
tendo por referência os interesses ou finalidades que concretamente são protegidos ou pela
norma legal violada ou pelo contrato cumprido, consoante estejamos perante responsabilidade
civil extracontratual ou contratual. Aqui, importa perceber quais são os interesses que a norma ou
o contrato pretendem tutelar – é o critério de identificação dos danos que são ressarcíveis, dado
pela finalidade da norma, que pressupõe a interpretação da norma violada, seja legal ou
convencional. Para ANTUNES VARELA e CARNEIRO DA FRADA, esta teoria não serve
transversalmente. De acordo com CARNEIRO DA FRADA, esta teoria é importante na definição
do nexo causal, quando estamos perante um ato gerador de responsabilidade por violação de uma
norma de proteção, ou quando estejamos perante casos especiais de ilicitude. Contudo, não
considera que esta teoria seja suficiente quando estamos perante uma ilicitude que se traduza na
violação de um direito absoluto, por exemplo.

Obrigação de indemnizar

Reunidos os pressupostos (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal), nasce a obrigação de
indemnizar. É comum às várias espécies de responsabilidade, embora a analisemos no âmbito da
responsabilidade civil por factos ilícitos.
Esta obrigação é disciplinada nos artigos 552.º e seguintes do Código Civil, e é regulada
autonomamente, no âmbito da modalidade das obrigações. Em regra, a indemnização ocorre
através de reconstituição natural, reconstruindo a situação que existiria caso não tivesse ocorrido
o dano
– esta regra está proclamada no artigo 566.º/1. No entanto, é ainda admitida a reparação por
equivalente, sempre que se verifiquem as seguintes três situações:
− Quando a reconstituição natural não seja possível (por exemplo, no caso do dano de
perda de vida, ou o caso de destruição de um bem infungível).
− Quando a reconstituição natural, apesar de possível, seja insuficiente para reparar
todos os danos.
− Quando a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor (por
exemplo, por vezes o conserto de determinados objetos, embora possível, é muito
oneroso, sobretudo em objetos mais velhos, vejamos o caso em que fica mais caro
consertar um portátil de 2005, mas é possível comprar um portátil novo a melhor
preço).
Como é que se calcula a indemnização por equivalente? À luz da teoria da diferença,
expressa no artigo 566.º/2. O Tribunal fará um juízo atualista, vendo em que situação se encontrão
património do lesado naquele momento e em que situação se encontraria se não tivesse ocorrido a
lesão. Comparar a situação patrimonial real do lesado, na data mais recente que puder ser atendida,
e a situação hipotética que ele teria na mesma data se não fosse verificada a lesão, é a regra – mas
existem exceções em que o cálculo da indemnização não se dá desta forma (desvios à teoria da
diferença):
O primeiro desvio é o artigo 494.º. Esta norma aplica-se apenas se o responsável atuar com
mera culpa, não se aplicando quando o responsável atuar com dolo. Se o agente atuar com dolo, o
montante indemnizatório é dado pela teoria da diferença. Entre nós, não se acolhem aqui os danos
punitivos.
O segundo desvio é o artigo 570.º, que respeita à hipótese da culpa do lesado, ao concurso
da culpa do lesado. Para a produção dos danos ou agravamento dos danos, contribui a culpa do
lesado. Permite-se que se possa, neste caso, manter, reduzir, ou até mesmo excluir a indemnização,
quando a culpa do lesado seja a causa ou concausa da produção do dano. A Lei refere a expressão
“culpa do lesado”, mas podemos não falar de culpa em sentido técnico, mas sim em sentido de
omissão de um ónus, por exemplo. Se o responsável atuar com dolo, tem sido entendido que não
se deve dar relevância à culpa do lesado (embora a letra da Lei não indique nesse sentido). A
dificuldade está em aplicar este artigo à responsabilidade civil pelo risco: existem dúvidas porque,
no artigo 570.º, estamos a falar de culpa do lesado e não do risco que esteja em causa.
O terceiro desvio é dado pelas cláusulas de exclusão ou limitação dos danos ressarcíveis.
Estas cláusulas são especialmente relevantes no domínio contratual (surgindo no âmbito de
incumprimento). No âmbito extracontratual, qualquer cláusula desta espécie poderá ser admitido,
desde que não se ultrapassem os limites gerais que as impedem – relevam aqui o artigo 504.º/4 do
Código Civil (responsabilidade civil por acidentes de aviação, dentro da responsabilidade civil
pelo risco), que nos diz que são nulas as cláusulas que excluam ou limitem a responsabilidade;
também encontramos no artigo 800.º norma relativa à responsabilidade contratual, que vem
impedir que haja exclusão de responsabilidade quando estejam em causa princípios de ordem
pública.
Estas cláusulas também não poderão valer quando o lesante atuar com dolo.

Indemnização sobre a forma de renda

A indemnização sobre a forma de renda é uma espécie particular de indemnização – quando


os danos se prolongam no tempo, têm uma natureza duradoura e continuada. (Por exemplo,
alguém fica com uma incapacidade, que à partida se prolonga no tempo. Há uma dificuldade de
cálculo do
montante exato dos danos, exatamente pelo seu prolongamento no tempo, até porque a situação do
lesado pode alterar-se e a incapacidade pode ser atenuada.)
O nosso ordenamento, no seu artigo 567.º, admite que, considerando a natureza duradoura
e continuada dos danos, o Tribunal possa dar à indemnização, no todo ou em parte, a forma de
renda, que pode ser vitalícia (prevendo-se que a incapacidade seja permanente e tenha
implicações como, por exemplo, a perda da capacidade de trabalho) ou temporária.
Para tal, é necessário que haja o requerimento do lesado, não pode ser o julgador a declará-
lo oficiosamente. As circunstâncias que servem de base à indemnização podem variar e, por isso,
no artigo 567.º é admitido que a renda possa ser alterada – quer no seu montante, quer na sua
duração, caso haja uma alteração sensível das circunstâncias em que se baseou a decisão que deu
forma de renda à indemnização.
Ressalve-se ainda que, não só a situação do lesado pode alterar, como o próprio lesante pode
deixar de cumprir, o legislador prevendo então que o julgador possa exigir garantias de
cumprimento, resultando também do artigo 567.º que o julgador pode determinar as providências
que lhe pareçam adequadas para garantir a indemnização sob a forma de renda.

Titularidade do direito à indemnização

Quem são os beneficiários do direito à indemnização?

Em princípio, o titular do direito à indemnização é o lesado direto, a pessoa titular dos bens,
dos interesses, que o ato lesivo atinge direta e imediatamente. (Por exemplo, António atropela
Bernardo, é Bernardo quem tem direito a indemnização.)
O problema surge quando existem lesados indiretos, pessoas que mediatamente sofrem
danos, em consequência da lesão que atingiu imediatamente outra pessoa – este é o problema dos
danos indiretos, que também se chamam danos reflexos ou por ricochete. O nosso legislador
teve o cuidado de destacar determinados lesados mediatos, reconhecendo-lhes um direito ao
ressarcimento, à reparação, como podemos encontrar no artigo 495.º do Código Civil.
(Por exemplo, o artigo 495.º/3 – o António atropela o Bernardo, mas o Bernardo falece, e o
filho do Bernardo, que recebia pensão de alimentos deste, deixa de a receber. O artigo 495.º/3 vem
dizer-nos que o filho, que recebia esta pensão, é um lesado mediato, indireto. Vimos este artigo
ainda a propósito da eficácia externa das obrigações, há um ataque à pessoa do devedor e o
legislador reconhece eficácia externa que parece excecional.)
Quanto aos danos não patrimoniais indiretos, em caso de lesão fatal, de que decorra a morte
de uma pessoa, acontece que outras pessoas podem ter o direito a uma compensação, que estão
consagradas no artigo 496.º.
O artigo 496.º/2 reporta a casos em que o lesado direto sofre danos graves, mas não morre;
já o artigo 496.º/2 refere-se especificamente a casos em que o lesado direto morre. Vejamos, o
problema dos lesados indiretos aqui dá-se quando, no caso da existência de danos não
patrimoniais, se prevê que as pessoas, lesados indiretos, possam ser compensadas mesmo que não
se pressuponha a morte do lesado direto; isto é, podem estas pessoas obter compensação por
danos desde logo não patrimoniais? (Por exemplo, o Bernardo foi atropelado, não morreu, mas
ficou em estado vegetativo, implicando que a mulher trabalhe em part-time.)
Para a doutrina tradicional, e considerando a história dos artigos 495.º e 496.º, defende que
os danos reflexos, em princípio, não são ressarcíveis, apenas quando sejam previstos na Lei o
devem ser. Os autores clássicos dizem que estas pessoas não devem ser compensados, porque os
danos reflexos ou indiretos só existem nos casos previstos na Lei, e o legislador contemplou
apenas a hipótese de morte, não a situação grave que pressuporia a morte, mas que não a originou.
Atualmente, já foram tomadas decisões que admitem a reparação de danos reflexos ou
indiretos além dos expressamente previstos por Lei. Dada a contradição de julgados, suscitou o
Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014, de 9 de janeiro, em que o nosso
Supremo Tribunal de Justiça acolhe um entendimento atualista, admitindo a compensação de
danos não patrimoniais reflexos para além dos casos previstos pela Lei, em determinados casos:
aqui, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou de forma atualista os artigos 438.º/1 e 496.º/1,
acolhendo o entendimento de que estes dois artigos devem ser interpretados no sentido de
abrangerem os danos não patrimoniais particularmente graves, sofridos pelo cônjuge, de
vítima sobrevivente atingida de modo particularmente grave. Aqui importa fazer observações:
1. O Supremo Tribunal de Justiça só se referiu ao cônjuge, em obediência do pedido que
estava em causa. Mas deve isto estender-se aos filhos ou ao unido de facto?
2. O legislador exige aqui uma dupla gravidade – o lesado direto tem que ter sido atingido
de modo particularmente grave, e o lesado indireto tem que também ter sofrido danos
patrimoniais particularmente graves.

Num assunto distinto, o artigo 493.º-A, relativo a indemnizações em caso de lesão ou morte
de animal, prevê o ressarcimento de danos indiretos causados a um conjunto de pessoas
individuais
ou entidades que socorram o animal e também ao seu proprietário – ou seja, aqui há a previsão da
indemnização dos danos indiretos.

Prescrição da obrigação de indemnizar

A prescrição da obrigação de indemnizar está prevista no artigo 498.º. O prazo ordinário da


obrigação de indemnizar é de 20 anos, sendo que, no âmbito da responsabilidade civil
extracontratual, o legislador previu um prazo mais curto – de 3 anos.
A nossa Lei não faz depender o início da contagem do prazo nem do conhecimento da
pessoa do lesante nem do conhecimento da extensão do dano indemnizável. Não fez relevantes o
desconhecimento da pessoa do lesante, ou a extensão dos danos indemnizáveis. Quanto ao
desconhecimento da extensão dos danos, há a possibilidade de formulação do pedido genérico.
O artigo 321.º prevê ainda a suspensão do prazo prescricional, por motivos de força maior
ou de dolo do obrigado.
Decorrido o prazo, o direito de indemnização deixa de poder ser exercido. Ou seja, há um
facto que extingue este direito. Nunca pode ser ultrapassado o prazo ordinário de prescrição.

Responsabilidade pelo risco

A responsabilidade pelo risco é uma responsabilidade em que, para afirmar o direito


indemnizatório, se prescinde da prática de um ato culposo, não se exige a culpa, a
responsabilidade pelo risco é objetiva. Esta responsabilidade nasce mesmo que não exista culpa,
nem que esta seja provada positivamente ou presumida.
A responsabilidade pelo risco surgiu particularmente com a Revolução Industrial, quando se
passaram a utilizar máquinas cada vez mais produtivas, mas que, proporcionalmente, viam os seus
riscos aumentados. Foi uma questão que surgiu particularmente no âmbito laboral, em que os
trabalhadores sofriam acidentes ao manusear uma máquina. E se aplicássemos a responsabilidade
civil por factos ilícitos, teríamos que provar a culpa aqui, para que o empregador indemnizar o
trabalhador; ainda foi colocado como hipótese a utilização da presunção de culpa da entidade
empregadora, mas essa solução não resolveu o problema. Tinha de se tratar de uma
responsabilidade que prescindisse da figura da culpa, que fizesse com que aquela pessoa, que tira
as vantagens da utilização da máquina, fosse responsável pelos danos por esta causados. Ou
seja, a pessoa que
retira benefícios de determinada coisa deve ser aquela que arca com os prejuízos resultantes
da exploração dessa coisa – ubi commoda ibi incommoda.
A questão da responsabilidade pelo risco, que surge primeiramente no contexto laboral,
acentuou-se com a utilização crescente de veículos de circulação automóvel, com riscos acrescidos
e acidentes numerosos, que levantaram o problema de responsabilidade pelo risco
independentemente da culpa. A utilização do automóvel traz riscos que devem ser suportados por
quem o utiliza, e não por quem é atingido por este. Ou seja, os acidentes de circulação com
veículos automóveis também demonstraram que a responsabilidade fundada na culpa podia ser
insuficiente.
Tudo isto foi acompanhado por uma ideia de socialização dos riscos, através de
mecanismos que pudessem permitir a distribuição pela sociedade dos riscos, o que levou à
contratação de seguros, entretanto tornados obrigatórios em determinadas situações (veículos de
circulação terrestre são obrigados a ter seguro, por exemplo) e voluntários noutras (seguro de
vida, por exemplo). Outro meio de coletivização do risco é a Segurança Social.

As situações de responsabilidade pelo risco são excecionais e, no nosso ordenamento, só


existem nos casos previstos pela Lei, como dita o artigo 483.º/2. Os casos previstos na Lei de
responsabilidade sem culpa podem ser encontrados nos artigos 500.º e seguintes. Vejamos:

− Responsabilidade do comitente pelos atos do comissário (artigo 500.º). Esta


responsabilidade que recai sobre o comitente prescinde de culpa, este pode até provar
que não teve culpa, mas isso não exime o comitente de responder, por se tratar de
uma responsabilidade objetiva. O comitente responde solidariamente com o
comissário, respondem os dois perante o lesado, e o comitente fá-lo nos termos do
artigo 500.º.
Porque é que o comitente responde nestas situações? Ao utilizar outras pessoas para
desenvolver a sua atividade, está a alargar as suas possibilidades, a utilizar essas pessoas em seu
benefício, sendo, portanto, justo que responde pelas respetivas desvantagens.
Embora ele não se exima de responder mesmo que prove que não tem culpa, pode acontecer
que efetivamente tenha culpa (pode ter dado instruções erradas, pode ter escolhido erradamente o
comissário, pode não o ter vigiado, por exemplo, havendo culpa in elegendo, culpa in instruendo,
culpa in vigilando). Isto é importante nas relações internas, para efeitos do artigo 500.º/3. Se o
comitente não tem culpa, pode ser reembolsado de tudo o que tiver pago, solidariamente, com o
comissário, mas se tiver culpa, a indemnização paga ao lesado é dividida pelos dois.
O artigo 500.º exige três pressupostos, verificados cumulativamente, para que o comitente
responda:
1. Tem que existir uma comissão, isto é, um vínculo, uma ligação entre o comitente e o
comissário (a comissão caracteriza-se pela atuação de uma pessoa por conta e sob a
direção de outrem, podendo esta atuação traduzir-se no exercício de qualquer atividade,
que pode ser duradoura ou temporal, manual ou intelectual, gratuita ou onerosa), atuando
o comissário sob direção do comitente, isto é, o comitente tem que ter um poder que o
legitime a dar ordens ao comissário, e ele tem o dever de seguir essas ordens e
instruções, tem que haver uma relação de autoridade do comitente e de subordinação do
comissário. Normalmente, uma relação desta espécie surge de um contrato de trabalho,
que se distingue dos contratos de prestação de serviços, em que não há esta característica
do poder de direção e o dever de subordinação. Atenção! Não há relação de comissão
entre proprietário e empreiteiro, dono da obra e empreiteiro, entre dono da obra e
pessoas que o empreiteiro usa, não há comissão entre o cliente do táxi e o taxista, nem
entre o doente e medico, cliente e advogado, cliente e arquiteto, etc. Quando estão em
causa atividades que pressupõe o conhecimento de uma ciência particular, duvida-se que
possam ser comitentes dessas pessoas outras pessoas que não tenham essa mesma
formação, conhecimento, ciência, capacidade técnica.
2. É necessário que o facto que causou os danos, ainda que doloso e exorbitante das
instruções que tenham sido dadas pelo comitente ao comissário, tenha sido praticado no
exercício da função que o comitente confiou ao comissário (artigo 500.º/2). No
desempenho da função significa que não basta um nexo meramente espacial e temporal
com o exercício das funções, não basta que seja por ocasião das funções, tem que ser por
causa das funções, tem que ligar o facto danoso às mesmas.
3. Para que o comitente responda ao abrigo do artigo 500.º, é preciso que o comissário
também responda. O comitente não responde ao abrigo do artigo 500.º se o comissário
não for responsável pelos danos, só podendo, então, o comitente responder ao abrigo do
artigo 483.º, por responsabilidade civil e própria.
Problema: a Lei diz-nos que o comitente responde ao abrigo do artigo 500.º “desde que
sobre o comissário recaia também obrigação de indemnizar”, sendo que o comissário responde,
em regra, ao abrigo da responsabilidade por factos ilícitos, conforme prevê o artigo 483.º, regra no
domínio extracontratual. A questão aqui é saber se a responsabilidade que o artigo 500.º/1 exige só
é responsabilidade por factos ilícitos, ou se também pode ser responsabilidade pelo risco ou
ainda
responsabilidade por factos lícitos. ALMEIDA COSTA diz-nos que esta obrigação de indemnizar
pelo comissário pode ser fundada ou na responsabilidade por factos ilícitos ou na responsabilidade
objetiva pelo risco, ou ainda na responsabilidade por factos lícitos até. Mas há autores que
entendem que aqui o comissário só responde por factos ilícitos. Esta é a responsabilidade mais
comum, mas importa-nos aqui ter também em conta a possibilidade de haver outras
responsabilidades.
Verificados os três requisitos, o comitente responde objetivamente ao abrigo do artigo 500.º
O comissário também responderá ao abrigo do título de responsabilização pertinente que, em
regra, é o artigo 483.º A responsabilidade é solidária (artigo 500.º/3). O lesado pode exigir a
indemnização na sua totalidade a qualquer um deles, em princípio. Se o comitente responder, tem
o direito de regresso total, completo, sobre o comissário, nas relações internas. Só assim não será
se o comitente também tiver culpa, repartindo-se o valor conforme os termos do artigo 497.º/2.

− Responsabilidade do Estado e de outras pessoas coletivas públicas por atos de


gestão privada (artigo 501.º). Existe aqui uma fronteira entre o Direito Civil e o
Direito Administrativo. Distinguem-se atos de gestão pública e atos de gestão
privada
– se estamos perante um ato de gestão pública não vamos aplicar o Código Civil,
mas sim a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e demais entidades públicas). O regime do artigo 500.º,
que vimos anteriormente, aplicar-se-á quando estivermos perante atos de gestão
privada, sendo que o artigo 501.º para este remete. Se estivermos perante um ato de
gestão privada por parte de pessoas coletivas públicas, estas responderão desde que
estejam verificados os pressupostos do artigo 500.º, isto é, desde que haja comissão,
desde que o ato danoso seja praticado no exercício das funções e desde que sob o
comissário recaia uma obrigação de indemnização e um título de responsabilidade.
Verificados, quem responde? O Estado ou a entidade pública, e o agente ou titular do
órgão. Respondem solidariamente perante o lesado.
Como fazer a distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada? O critério dos
civilistas é o do exercício ou não de poderes de autoridade na prossecução de interesses públicos.
Se a pessoa coletiva pública estiver a exercer o ius impendi, se se apresentar perante o particular
como uma entidade superior, se a relação for desnivelada, estamos perante um ato de gestão
pública. Mas se o Estado aparecer ao particular despido desse poder de autoridade, se aparecer
num plano de igualdade face aos particulares, já estamos perante ato de gestão privada. (Por
exemplo, uma
Câmara Municipal compra papel a uma empresa, aqui estamos perante um ato de gestão privada,
ela faz a compra na qualidade de uma das partes do contrato de compra e venda.)
No entanto, o certo é que cada vez mais o Estado desempenha um conjunto de outras
atividades que não se traduzem numa relação de supra ou infra ordenação nos termos referidos. Há
muitos atos, que são Direito Público, que não representam o exercício de poder de soberania (é o
caso de um médico ou o caso de um professor numa instituição de ensino que possa ser
considerada pública). Esta evolução tem a ver com o aumento das funções do Estado. O Estado
antes era apenas protecionista, menos intervencionista, mas nas últimas décadas ganhou
intervenção acrescida na vida das pessoas que não apenas função de proteção ou segurança. Tem
incumbências no ensino, na habitação, etc. Então, parece mais acertada a posição defendida por
ANTUNES VARELA: estamos perante um ato de gestão pública quando a atividade do Estado
vise a satisfação de interesses coletivos, representando a prossecução de um fim típico, específico
do Estado, e com meios ou instrumentos também tipicamente de Direito Público. Tem a ver com
dois aspetos: com o exercício e desempenho de fins típicos, específicos do Estado, e por outro
lado, o recurso a instrumentos/meios tipicamente de Direito Público.

Atenção! Quando estão em causa casos sobre médicos, é preciso perceber se eles estão ao
serviço num hospital público ou privado, uma vez que isto vi ter consequências ao nível do regime
aplicado. No caso de um hospital público: o primeiro passo passa por caracterizarmos os atos
médicos é questionar se serão atos de gestão pública ou privada. A jurisprudência maioritária tem
entendido que se tratam de atos de gestão pública. Se entendermos que estamos perante atos de
gestão pública, o regime que se aplicará, porque se entende que a responsabilidade que emerge
destes atos reveste a natureza extracontratual, será o da Lei n.º 67/2007. Segundo este regime, o
hospital público responde exclusivamente pelos danos causados pelos médicos com culpa leve. Só
há lugar a responsabilidade solidária do hospital e dos médicos quando estes tenham procedido
com dolo ou negligência grosseira. Caso se entendesse que os atos são de gestão privada, aplicar-
se-ia o artigo 501.º do Código Civil. Há aqui uma remissão para o regime do artigo 500.º. O
hospital responderia objetiva e solidariamente pelos danos praticados pelos médicos, seus
comissários. Se, por sua vez, os médicos estiverem ao serviço num hospital privado, a
responsabilidade civil emergente do ato praticado por um medico tem natureza contratual, sendo a
unidade hospitalar privada responsável pelos atos dos seus auxiliares, nos termos do artigo 800.º.
− Responsabilidade por danos causados por animais (artigo 502.º). É preciso que
alguém utilize o animal no seu próximo interesse (que seja o detentor do animal),
porque quem responde ao abrigo do artigo 502.º é o detentor do animal, e é preciso
que os danos ocorram no círculo de danos correspondentes ao perigo especial que
envolve a sua utilização. Além disto, estão sempre previstos os requisitos do dano e
do nexo causal. Aqui a situação de imputação, em vez de ser constituída pelo ato,
pela culpa e pela ilicitude, é pela utilização do animal para seu interesse, havendo
riscos especiais dos animais.
Em regra, quem utiliza o animal no seu interesse é o dono, detentor do animal, tem o poder o
poder jurídico e de facto sobre o animal. Mas pode haver situações em que outras pessoas utilizem
o animal no seu próprio interesse, mesmo que não sejam donos deste. (Por exemplo, o
usufrutuário,
o locatário, e mesmo o simples possuidor, passarão a ser detentores de um animal para efeitos da
responsabilização pelo mesmo.)
O direito real de gozo máximo é a propriedade. Mas existem direitos reais como o usufruto
que, ao proporcionarem o gozo de uma coisa, se recaírem sobre o animal, levarão a que essa
pessoa seja detentora. Temos que ver quem utiliza o animal no seu interesse, quando estamos
perante estes casos, porque pode não ser o proprietário do mesmo.
Para que haja responsabilização da pessoa que utiliza o animal no seu interesse, os danos
têm que caber na zona de risco conexionada com a utilização do animal – os animais são seres
irracionais, que podem agir de determinada maneira perante um evento. (Por exemplo, os cães
reagem de forma assustada ao barulho de foguetes.)
Atenção!, é preciso que distinguemos este regime do regime previsto no artigo 493.º/1,
combinado com o artigo 483.º O artigo 502.º prevê a responsabilidade pelo risco, que recai sobre o
detentor do animal. Não é assim no artigo 493.º/1 – este diz respeito à responsabilidade do
vigilante do animal, e nesse caso não é responsabilidade objetiva, mas antes responsabilidade por
factos ilícitos, no caso de dano, havendo presunção de culpa que cabe ao vigilante ilidir. Esta
norma é uma manifestação dos deveres de segurança no tráfego jurídico. Em regra, o vigilante é
também o proprietário, e portanto, em regra, a presunção de culpa do artigo 493.º/1 cairá sobre o
proprietário do animal, mas pode cair sobre outras pessoas que sejam detentoras deste ou não
detentores até (por exemplo, o mero depositário do animal não utiliza o animal no seu interesse
mas tem o dever de vigilância do animal).
Aqui, pode haver responsabilidade cumulativa do detentor ao abrigo do artigo 502.º e do
vigilante ao abrigo dos artigos 491.º e 483.º. Há dois títulos de responsabilização, mas o
responsável não pagará duas indemnizações.

Importa ainda mencionar o Regime Jurídico de Detenção de Animais Perigosos como


Animais de Companhia, dado pelo Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e pela Portaria n.º
317/2015, de 30 de setembro. A Lei define o que são animais perigosos.

− Responsabilidade por danos causados por acidentes causados por veículos de


circulação terrestre (artigo 503.º). Como vimos anteriormente, o seguro é
obrigatório no caso de veículos terrestres, e atuará quando ocorram acidentes. Temos
de procurar saber quem responde civilmente para podermos aplicar o regime do
seguro, que responde e cobre. A responsabilidade derivada da utilização de veículos
de circulação terrestre, prevista no artigo 503.º, é dada enquanto responsabilidade
pelo risco, isto porque essa também pode ser responsabilidade por factos ilícitos.
A primeira questão que surge aqui é: qual o âmbito desta responsabilidade? Esta norma
abrange todo e qualquer veículo de circulação terreste. A noção de veículo é tão ampla que dá para
incluirmos aqui os carros não automatizados, mas além destes também os carros não
automatizados, as motas, as bicicletas, e quaisquer outros veículos de circulação terrestre. Aqui
cabem ainda os veículos ferroviários. O artigo 508.º dá-nos os limites máximos, que não existem
para a responsabilidade civil por factos ilícitos.
Quando às pessoas responsáveis, o legislador exige dois requisitos cumulativos: as pessoas
que respondem são as que têm direção efetiva do veículo e que utilizam o veículo no seu próprio
interesse. Ou seja, é necessário que, em primeiro lugar, a pessoa tenha direção efetiva, poder de
facto sobre o veículo, cabendo este àquele que goza e frui das vantagens do veículo e a quem, por
isso, cabe muito particularmente controlar o funcionamento deste. O poder de facto não tem de ser
jurídico, muitas vezes pode tratar-se do proprietário do veículo, mas nem sempre é assim. Esta
pessoa tem o dever de saber se está tudo bem com o carro, exigindo-se a esta uma espécie de dever
de vigilância. Em regra, o poder real sobre o veículo é acompanhado pelo poder jurídico, sendo ao
proprietário que se exige esse dever. Mas, por vezes, este poder recai também sobre outras
pessoas: o usufrutuário, o comodatário, o locatário, e até quem usa o veículo contra a vontade do
proprietário.
Vejamos os casos especiais:
1. Em casos onde exista locação ou comodato, quem é o detentor do veículo? Quem é que
assume a direção efetiva do veículo, que não é estar no volante, mas o assegurar do bom
funcionamento do veículo? Quem tem interesse no uso do veículo? Quando se reúnem os
dois requisitos, temos um detentor do veículo. ANTUNES VARELA diz que, na
locação, os detentores são o locador e o locatário, a ambos deve pertencer a direção
efetiva, e é de ambos o benefício e/ou o interesse na sua utilização, sendo que o locador
recebe o valor do aluguer, e o outro tem interesse em se deslocar. Em relação ao
comodato, o autor segue um caminho semelhante: defende que, em regra, devem ser
detentores o comodante e o comodatário, o interesse do comodante não sendo
económico, mas moral. No entanto, o autor ressalva que isso só se aplica isso se o
comodato for de tal modo longo que importe a transferência efetiva do comodante para o
comodatário. RIBEIRO DE FARIA E ALMEIDA COSTA têm uma posição diferente,
com que a docente RUTE PEDRO concorda: não devemos ter resposta em abstrato
quando a isto porque, em regra, será como diz VARELA ANTUNES, mas no caso
concreto temos de saber quem é que, efetivamente, tem o interesse na utilização do
veículo, e assume a sua direção por esse motivo. Quem é que cria o risco que esta
responsabilidade conforma? Além disso, existem aqui muitas nuances – por exemplo, na
locação falamos só do veículo ou de um contrato misto, em que o locador disponibiliza
um condutor para o veículo (além de ser disponibilizado um veículo para conduzir)?
2. A direção efetiva do veículo pode transferir-se para quem o utilize contra a vontade do
proprietário do veículo, quando utiliza abusivamente ou contra a vontade do proprietário.
(Por exemplo, imagine-se que uns assaltantes subtraem o veículo, estão a conduzi-lo e
têm um acidente – a direção efetiva cai sobre os assaltantes, que o utilizam no seu
interesse. A eles se associa o dever de vigiar o funcionamento do veículo, afastando-se,
por isso, a responsabilidade do proprietário.)
3. A situação especial mais complexa é a situação em que há uma comissão, ou seja, a
condução através de um comissário. Aqui, quem conduz é alguém que desenvolve uma
atividade por conta e sob direção de outrem. Ao abrigo do artigo 503.º/1, quem são os
responsáveis? O comitente pode responder pelos danos decorrentes do acidente causado
pelo veículo de circulação terrestre, pode responder por estes danos com base em dois
títulos diferentes, alternativamente:
a. O comitente pode responder enquanto detentor do veículo, portanto, reunindo os dois
requisitos previstos no artigo 503.º/1. Apesar de ser comitente, vai
responder porque tem direção efetiva e utiliza o veículo no seu interesse, ainda
que por intermédio do comissário. Se o comitente responde nos termos do artigo
503.º/1, responde objetivamente por causa do risco do veículo e, portanto, o
comissário não responderá. Não há, aqui, responsabilidade solidária do comitente
e do comissário.
b. O comitente pode responder como comitente, ao abrigo do artigo 500.º, e responderá
ao abrigo deste caso se reúnam os seus pressupostos, o que quer dizer que este responde,
objetivamente, sem culpa, pelos danos decorrentes da atuação do seu comissário. Para
esse efeito, um dos requisitos é o de que o comissário também responda, que tenha um
título de responsabilização pelos factos por si praticados e que levaram a determinado
dano, com nexo causal, e, portanto, respondem os dois, comissário e comitente,
solidariamente.
No âmbito da circulação automóvel, recai sobre o comissário, neste domínio, uma
presunção de culpa, prevista no artigo 503.º/3, primeira parte. Sublinhe-se o “salvo se”,
ou seja, quem conduzir veículo por conta de outrem (comissário) responde pelos danos
que causar salvo se provar que não houve culpa da sua parte. Das duas uma: ou o
comissário consegue ilidir a presunção que sobre ele recai e, nesse caso, o comissário
não responde, respondendo apenas o comitente como detentor do veículo, não na
qualidade de comitente ao abrigo do artigo 500.º, mas ao abrigo do artigo 503.º/1; ou o
comissário não consegue ilidir a presunção de culpa, respondendo por factos ilícitos e
por culpa presumida ao abrigo dos artigos 483.º e 503.º/3, primeira parte, e aqui o
comitente responderá ao abrigo do artigo 500.º, pelo que ambos responderão
solidariamente.
Mas pode ainda acontecer que o comissário circule no automóvel do comitente fora do
exercício das suas funções – se este for o caso, ainda que esteja no veículo do seu
comitente, o detentor do veículo passa a ser considerado ser o comissário, aplicando-se
aqui o artigo 503.º/3, segunda parte, que remete para o artigo 503.º/1, passando a
responder pelo risco, como detentor, independentemente da culpa.
No âmbito dos danos indemnizáveis ao abrigo do artigo 503.º/1, o detentor responde pelos
danos resultantes dos riscos próprios do veículo, acrescentando-se que esta responsabilização
acontece mesmo que o veículo se encontre parado/não se encontre em circulação – estando em
circulação, não tem que ser em via pública, podendo encontrar-se num parque de estacionamento
de um prédio, numa garagem, etc.
Importa aqui saber o que são os riscos próprios ou especiais do veículo, destacando-se três
grandes núcleos:
1. Os riscos relacionados com o funcionamento do veículo. O veículo é uma máquina,
com motor e estrutura mecânica, o que comporta diversos riscos, relacionados com o seu
peso, com a sua velocidade, com a possibilidade de travagem repentina, com o facto de
ser composto por um motor que pode explodir, com o facto de ter pneus que podem
furar, etc.
2. Os riscos que resultam da conjugação do funcionamento do veículo com o meio
exterior/ambiente em que este se encontra. Estes riscos resultam de uma ligação
circunstancial. (Por exemplo, o perigo relacionado com uma pedra que possa ser
projetada contra o pneu de um veículo. Outro exemplo são situações de derrapagem,
quando o piso está escorregadio.)
3. Os riscos relacionados com o condutor, que englobam os riscos relativos ao condutor,
ao sistema e à estrutura motora e de consciência intelectual do mesmo. (Por exemplo, se
o condutor desmaia a conduzir, e dá-se um acidente porque este perdeu a consciência; ou
se o mesmo tem uma paralisia súbita, se tem uma indisposição repentina, deixa de
conseguir ver a estrada.)
Não serão riscos próprios do veículo todos aqueles que não caibam nestas categorias. (Por
exemplo, alguém está a andar e não se apercebe de um carro estacionado, batendo contra este,
como bateria num poste ou num cão. Ou alguém que entala o dedo na porta. Estes riscos não são
específicos do veículo, mas do ambiente.)
No âmbito dos beneficiários desta responsabilidade objetiva, que se afirma no artigo
503.º/1, vemos o disposto no artigo 504.º – a responsabilidade pelos danos causados por veículos
aproveita a terceiros bem como a pessoas transportadas.
No que concerne aos terceiros, são terceiros para este efeito aquelas pessoas que não são
transportadas pelo veículo (por exemplo, um peão que está a atravessar a passadeira e sofre
embate no carro). (São ainda tratados como terceiros as pessoas que dentro do veículo exercem
uma atividade, como é o caso dos revisores.) Quanto a estes, o legislador não estabelece qualquer
limitação: serão ressarcidos por todos os danos que sofram, sejam pessoais ou patrimoniais (e
ainda por danos que sejam sofridos reflexamente por outras pessoas, como nos casos previstos nos
artigos 495.º, especificamente /3, e 496.º), Beneficiam desta responsabilidade por todos os danos
que sofram sem exclusões, sem prejuízo dos limites quantitativos estabelecidos no artigo 508.º.
Quanto às pessoas transportadas, a situação é diferente: o legislador, dando cumprimento
às regras europeias, traça limites. O legislador, desde logo, distingue transporte gratuito e
transporte
oneroso. Conforme diz o artigo 504.º/2, no caso de “transporte por virtude de contrato”, a
responsabilidade abrange apenas os “danos que atinjam a própria pessoa e as coisas por ela
transportadas”. Já no artigo 504.º/3, encontramos que no caso de “transporte gratuito”, a
responsabilidade abrange apenas os “danos pessoais da pessoa transportada”.
O que acontece quando estamos perante danos causados a pessoas transportadas em
virtude de um contrato/de forma onerosa? Estas pessoas podem fundar a sua pretensão
ressarcitória em vários títulos, depois sendo necessário perceber se existe cumulação de
responsabilidades ou não. As pessoas transportadas podem ser titulares de uma pretensão
ressarcitória com base em responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, caso exista um
ato ilícito e culposo, ou com base no incumprimento do contrato (de acordo com o artigo 798.º).
O legislador prevê ainda o que acontece relativamente a coisas que a pessoa transportada tenha
consigo. Essas coisas podem encontrar-se na bagageira, podem encontrar-se numa mala, podem
estar no colo ou ao seu lado, são coisas que transportamos naquela deslocação. Diz o artigo 504.º/4
que são nulas as cláusulas que excluam ou limitem a responsabilidade do transportador pelos
acidentes que atingem a pessoa transportada, mas podem existir cláusulas de exclusão da
responsabilidade quanto a acidentes que atinjam as coisas transportadas ou os danos causados
nestas.

O que acontece quando estamos perante danos causados a pessoas transportadas


gratuitamente? Estas pessoas são transportadas por contrato gratuito ou por mero ato de cortesia.
A doutrina entende que o transporte gratuito é aquele transporte ao qual não corresponde qualquer
correspetivo, da parte do transportado, não há qualquer pagamento pelo transporte oferecido ao
transportado.
De acordo com o artigo 504.º/3, só são abrangidos na responsabilidade previstos no /1 os
danos pessoais sofridos pela pessoa transportada, ou seja, ao contrário do caso do transporte
oneroso, a responsabilidade objetiva não abrange os danos causados nas coisas que a pessoa
transportada trazia.
Para resolver situações em que alguém é transportado por outro, o critério aplicado é, desde
logo, o de averiguar se o transportado paga ou não, como correspetivo dessa deslocação, o
transporte. Se há um pagamento, como correspetivo da deslocação, há transporte oneroso, e
no caso de acidente a responsabilidade objetiva vai abranger quer os danos causados à
pessoa transportada, quer os danos causados nas coisas que esta trazia. Se não há qualquer
correspetivo pela deslocação, a responsabilidade objetiva vai abranger apenas os danos
causados à pessoa, e não os causados nas coisas que esta trazia.
Causas de exclusão da responsabilidade pelo risco no âmbito dos artigos 503.º e seguintes

Há situações em que a responsabilidade pelo risco é excluída. Vejamos o disposto no artigo


505.º do Código Civil, aplicável aos casos previstos no artigo 503.º/1. O artigo 505.º ressalva o
disposto no artigo 570.º, que diz respeito aos casos em que há culpa do lesado – nestes casos, para
determinar a responsabilidade, vamos analisar o contributo do lesado e o contributo do risco do
veículo.
Do artigo 505.º/1, retiramos três causas de exclusão do risco:

− Existir um facto imputável ao próprio lesado. Quando aqui falamos de “imputável”,


não nos referimos ao seu sentido técnico (de acordo com os artigos 488.º e 489.º,
imputável significa um nexo de imputação ao agente, a título de culpa, pressupondo
que o agente tem a capacidade para querer e entender as consequências do seu ato,
pressupondo que lhe podemos dirigir um juízo de censura). O “imputável” do artigo
505.º significa antes “atribuível”: o que se vai apurar para efeitos do artigo 505.º é se
o ato do próprio lesado é a causa do acidente, por forma a interromper o nexo causal
entre os riscos próprios do veículo (de onde decorreria a responsabilidade objetiva) e
os danos do lesado. Não está em causa saber se o facto é ou não censurável ao
agente, mas se os atos do lesado, objetivamente considerados, devem interromper o
nexo causal que tentamos verificar nestas situações. Está em causa a causalidade.
Não tem que haver culpa do lesado, embora possa haver, bastando que haja
contribuição do seu ato para a produção dos danos. Não havendo culpa, entende-se
que a contribuição do lesado pode conduzir a uma mera limitação da
responsabilidade do detentor do veículo. Assim, haverá uma repartição: as
consequências do acidente são causadas pelo risco do veículo e pelo facto do lesado,
quando não praticado com culpa, ou seja, suportarão as mesmas tanto o detentor do
veículo como o lesado. Havendo culpa do lesado, temos de averiguar se essa culpa
exclui sempre a responsabilidade do detentor do veículo, ao abrigo do artigo 503.º/1.
Regra geral, os danos são suportados por quem tem culpa. Aqui surge uma querela:
quando há concurso de culpa do lesado e de risco do veículo, questionamo-nos se
há afastamento da responsabilidade objetiva, que neste caso é sem culpa, e por isso
surgem duas perspetivas – a doutrina do tudo ou nada e a doutrina do concurso da
culpa e do risco.
− De acordo com a doutrina do tudo ou nada, defendida por ANTUNES
VARELA, quando há concurso da culpa do lesado, por mínima ou reduzida
que seja essa culpa, a sua presença é suficiente para que se possa excluir a
responsabilidade objetiva do artigo 503.º/1, devendo existir a exclusão da
responsabilidade pelo risco. Neste caso, havendo culpa, há sempre
interrupção do nexo causal entre os riscos próprios do veículo e o dano
produzido ao lesado. Entende-se que a culpa do lesado absorve os outros
potenciais títulos de responsabilidade nestes casos, não se admitindo soluções
intermédias, ponderativas do risco e da culpa. Um dos argumentos a favor
desta teoria são o carácter excecional da responsabilidade pelo risco (de
acordo com o artigo 483.º/2), que é especialmente onerosa para o
responsável, pelo que, sendo excecional, devemos interpretar o artigo 505.º
no sentido de, havendo culpa do lesado, exclui-se a responsabilidade pelo
risco. Esta teoria consagra a solução que promove o cuidado por todos os
intervenientes no tráfego rodoviário, não podendo nós impor as
consequências do tráfego rodoviário apenas aos detentores dos veículos, isto
é, é importante promover a atuação cuidadosa por parte de todos os que
circulam na via pública. Outro argumento ainda é o facto de resultar de
várias normas do nosso Código Civil que, quando há culpa de alguém, é
essa pessoa que responde, também isso resultando do regime previsto nos
artigos 506.º e 507.º. No seguimento disto, resulta do nosso Código que só há
repartição de responsabilidade entre várias pessoas quando estas
respondem todas ou com base na culpa ou com base no risco
(responsabilidade solidária). Não há, em regra, concurso de responsabilidade
assente em vários títulos. ANTUNES VARELA reconhece a existência de
uma exceção: pode haver concurso de responsabilidade quanto a danos
causados por animais, sendo responsabilizados o detentor do animal e o
vigilante, de acordo com o disposto nos artigos 483.º e 493.º. Um último
argumento relevante para esta teoria é o argumento de maioria de razão,
retirado do artigo 570.º/2 – este artigo prevê que a culpa do lesado exclui a
responsabilidade do lesante quando a sua responsabilidade por factos ilícitos
e culposos assente ou se baseie numa presunção de culpa. Ora, se assim o é
quando é culpa presumida, então tem
também de o ser quando o responsável responde objetivamente/sem culpa,
isto é, se afasta a culpa presumida também afasta a ausência de culpa.
− Ao contrário de ANTUNES VARELA, diz-nos RIBEIRO DE FARIA que
deve haver uma solução concursal entre a culpa e o risco, defendendo
soluções ponderativas. Se, para o acidente, concorrerem o facto culposo do
lesado e o risco do veículo, deve ser ponderada qual a contribuição que cada
um desses fatores teve para a produção dos danos. Logo, só há exclusão da
responsabilidade pelo risco se o acidente se ficar a dever exclusivamente à
culpa do lesado, tendo de haver culpa grave do lesado, causa exclusiva do
acidente. Se a culpa do lesado for apenas concausa do dano, o detentor do
veículo não se pode exonerar. Em resposta a um dos argumentos utilizados na
defesa da teoria do tudo ou nada de ANTUNES VARELA diz-nos que,
embora a circulação automóvel comporte muitos riscos e perigos e, por isso,
se deva promover um maior cuidado de todos os intervenientes, não se pode
dar peso excessivamente gravoso a qualquer negligência por parte do
lesado, precisamente por se tratar de uma atividade que comporta muitos
riscos. Quanto à questão da excecionalidade e onerosidade da
responsabilidade objetiva, esta doutrina responde que a solução ponderativa
não impõe ao veículo a responsabilidade por todos os danos, sendo, portanto,
a responsabilidade imputada ao detentor do veículo reduzida em função da
contribuição da culpa do lesado. A responsabilidade pelo risco tem travões
explícitos no artigo 508.º, exatamente para não haver uma excessiva
onerosidade, são limites quantitativos. RIBEIRO DE FARIA altera, para o
início do artigo 505.º, a ressalva inicial do artigo, permitindo que se aplique o
artigo 570.º para chegar a soluções de repartição de responsabilidade em caso
de concurso de culpa e risco. Por fim, os autores defensores desta teoria
dizem ainda que a solução de concurso de dois títulos de responsabilidade
diversos não é inédita, existindo outras situações em que se admite este
concurso (por exemplo, nos artigos 493.º e 483.º). O artigo 505.º pode levar a
uma atenuação da responsabilidade, o juízo ponderativo pesando a
gravidade e o contributo do risco do veículo, e a gravidade e o contributo para
o acidente da culpa do lesado.
− Existir um facto imputável a terceiro. De acordo com o artigo 505.º, a
responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.º pode ainda ser excluída quando o
acidente seja imputável a um facto de um terceiro. Valem mutatis mutandis várias
das reflexões que vimos anteriormente. Novamente, o termo “imputável” aqui refere-
se ao facto que pode ser atribuído a um terceiro, é uma questão de causalidade.
Havendo culpa do terceiro, valem aqui os princípios que já vimos da
responsabilidade por factos ilícitos, podendo o terceiro responder ao abrigo do artigo
483.º, portanto, podendo cair sobre este um dever de indemnizar. Importa saber se o
facto culposo do terceiro exclui necessariamente a responsabilidade pelo risco
do detentor do veículo, ou se há concurso da culpa do terceiro e do risco em que
assenta a responsabilidade do detentor do veículo, o que arguimos de acordo com
as teorias anteriormente expostas. Podemos defender uma solução ponderativa, como
a segunda teoria expõe – assim, face ao lesado, respondem todos os responsáveis,
solidariamente. Nas relações externas, respondem todos, podendo o lesado exigir a
totalidade da indemnização a cada um deles. Nas relações internas, entende-se que
pode haver a repartição da indemnização, em função do contributo do risco e da
culpa no caso concreto, o que resulta da interpretação atualista do artigo 507.º.
− Existir um facto de força maior estranho ao funcionamento do veículo. (Supondo

que o detentor do veículo é aquele que conduz, se o condutor desmaia, se o pneu


rebenta por uma causa alheia, estamos perante factos de força maior, mas que não
são estranhos ao funcionamento do veículo, pelo que ainda enquadram os riscos
próprios do mesmo, que já vimos anteriormente.) Aqui aferimos factos exteriores à
coisa e àquele que a conduz. (Se há uma vaga de mar que empurra o veículo, é uma
força maior que é estranha ao funcionamento do veículo, se cai uma árvore em cima
do veículo, o mesmo.) Tem de ser um facto estranho aos três núcleos de danos
abrangidos pelos riscos próprios do veículo e que podem gerar responsabilidade –
riscos relacionados com a máquina, com o condutor ou com o funcionário e o
ambiente.

Responsabilidade por factos ilícitos, em acidentes de veículos

Temos, até agora, falado da responsabilidade pelo risco, mas é preciso destacar que pode
existir responsabilidade por factos ilícitos no que respeita aos danos causados por um acidente de
viação. Há aqui a possibilidade de se aplicar uma presunção de culpa.
Neste âmbito, no entanto, não falamos da aplicação da presunção de culpa que melhor
vimos, a que encontramos no artigo 493.º/2, relativo a danos provocados por atividades perigosas,
embora pareça ser a mais óbvia – a divergência entre a aplicação e não aplicação desta presunção
aos acidentes de automóvel chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, que através do Assento de 21
de novembro de 1979 declarou pela não aplicação dos artigos 483.º/2 e 493.º/2 à responsabilidade
civil emergente de acidentes de viação de circulação terrestre. O Supremo Tribunal de Justiça,
aqui, aderiu à tese de ANTUNES VARELA que diz que a responsabilidade fundada em acidentes
de viação já está especialmente prevista nos artigos 503.º e seguintes, que já correspondem à
especial perigosidade desta atividade. Exatamente o risco especial criado pela utilização de
veículos de circulação automóvel é que explica a responsabilidade objetiva que encontramos no
artigo 503.º/1. Assim, não faz sentido que a perigosidade que os veículos de circulação terrestre
comportam seja duplamente sancionada (pela responsabilidade pelo risco e pela presunção de
culpa). Alguns autores contrariam o Supremo Tribunal de Justiça, embora a jurisprudência
continue a seguir o disposto pelo mesmo. São normas diferentes, sendo que uma respeita a uma
presunção de culpa na responsabilidade por factos ilícitos e outra respeita à responsabilidade
objetiva. Podem ser cumuláveis, não havendo razão para que não possam conviver, não havendo
sobreposição, porque não estamos a valorar duplamente a mesma perigosidade sem que daí haja
uma utilidade em termos de proteção. Se a responsabilidade pelo risco é mais exigente porque
prescinde de culpa, confere também uma tutela menos intensa, menos forte, dados os limites do
artigo 508.º.
Assim, embora a presunção de culpa do artigo 493.º não se aplique aqui, há outra
presunção de culpa a que devemos atender no âmbito dos acidentes com veículos de
circulação terreste: a presunção de culpa que encontramos no artigo 503.º/3, primeira parte.
Esta presunção de culpa, que recai sobre o comissário quando este conduz o veículo na qualidade
de comissário, no exercício das suas funções.
A questão que se coloca é a de saber se esta presunção só vale nas relações internas
(entre comitente e comissário), ou se também vale nas relações externas (face ao lesado) –
hoje, é pacífico e foi acolhido o entendimento de que esta presunção de culpa vale nas relações
internas e externas.
Isso quer dizer que o lesado pode invocar esta presunção de culpa, de acordo com o
declarado no Assento de 14 de abril de 1983 do Supremo Tribunal de Justiça. O STJ acolheu este
entendimento, argumentando que, em primeiro lugar, estes condutores em nome de outrem são
profissionais, habilitados a afastar esta presunção, mas isso não pode valer em todas as situações;
em segundo lugar, a aplicação desta presunção também às relações externas permite promover o
cuidado, a vigilância por parte daquele que conduz por conta de outrem, isto porque, quando se
conduz por conta de outrem, destacam-se o fenómeno da diminuição do cuidado e o fenómeno do
aumento da fadiga (muitas vezes, porque o comitente quer que o comissário trabalhe determinado
número de horas seguidas), pelo que há todo o interesse em fazer funcionar a presunção de forma
a combater a falta de cuidado; em terceiro lugar, porque, com o funcionamento da presunção de
culpa aqui, com a consequência do artigo 500.º, responsabilizando-se o comitente, há um incentivo
à formação do seguro.
Outra questão que se colocou é a de saber se esta presunção de culpa pode valer no
âmbito da colisão de dois veículos (por exemplo, quando dois veículos colidem e um deles era
conduzido por um comissário). O regime do artigo 506.º varia em função da existência ou não
existência de culpa. Perguntou-se, então, se a culpa a que o artigo 506.º se refere é uma culpa
provada positivamente ou se pode também ser uma culpa presumida, nomeadamente do
comissário. O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no Assento de 26 de janeiro de 1994,
acolhendo o entendimento segundo o qual a presunção do artigo 503.º/3, primeira parte se
aplica também nos casos de colisão de veículos regulada pelo regime do artigo 506.º.

Colisão de veículos

Como dizíamos, o artigo 506.º refere-se a casos em que vários veículos colidem. Muitos dos
acidentes no tráfego rodoviário passam pela colisão de veículos. A previsão deste artigo abrange
tanto a colisão em que ambos os veículos estejam em andamento (choque) como a colisão em que
apenas um dos veículos esteja em andamento (abalroamento).
Podemos ainda diferenciar várias situações, consoante as variações da culpa, sendo que não
podemos esquecer que, havendo culpa, estamos desde logo no âmbito do artigo 483.º, respeitante à
responsabilidade civil por factos ilícitos.
− 1.ª situação: Se só um dos intervenientes do acidente tiver culpa, provada
positivamente ou presumida, é esse interveniente quem responde por todos os
danos, ao abrigo do artigo 483.º. Cumpre lembrar que, se houver um veículo
conduzido por um comissário, há uma presunção de culpa que recai sobre ele (artigo
503.º/3, primeira parte), que se ele não ilidir/afastar, faz com que seja este a
responder por todos os danos, ao abrigo dos artigos 483.º/1 e 503.º/3, o que faz com
que também responda o comitente, ao abrigo do artigo 500.º. A responsabilidade do
comissário,
caso este não consiga afastar a presunção de culpa, não tem os limites do artigo
508.º porque este não responderá pelo risco, mas antes por factos ilícitos.
− 2.ª situação: Se os dois intervenientes no acidente atuam com culpa, provada
positivamente ou havendo presunção de culpa, ambos respondem por factos ilícitos
nos termos do artigo 483.º, e aqui é preciso ter em conta que, nos termos do artigo
570.º, são ambos lesados e lesantes, pelo que há culpa do lesado. Se houver culpa dos
dois intervenientes e não se souber qual é a medida de culpa de cada um deles,
presume-se que é igual para ambos, de acordo com o artigo 506.º/2.
− 3.ª situação: Ninguém tem culpa, logo, só há imputação de responsabilidade a título
de risco. Não havendo culpa, não há a intervenção do regime da responsabilidade por
factos ilícitos. Os condutores respondem ao abrigo do artigo 503.º/1. E então, de
acordo com o artigo 506.º, averigua-se se apenas um dos veículos contribuiu para
todos os danos ou se há uma contribuição dos vários veículos para a produção de
danos, havendo responsabilidade objetiva atribuída ao detentor do veículo. Aqui,
encontramos duas subhipóteses para saber quem responde ao abrigo do artigo
503.º/1:
− Os danos produzidos devem-se apenas a um dos veículos, caso em que a
responsabilidade objetiva do artigo 503.º/1 é imputada apenas ao detentor do
veículo que causou os danos.
− Há uma concausalidade para a produção dos danos, isto é, ambos os veículos
contribuem para a produção dos danos e, por isso, respondem os detentores
dos dois veículos. Como respondem? Nestes casos, aplica-se o artigo 506.º/1:
eles respondem segundo a contribuição causal de cada um dos veículos. Aqui,
procede-se a uma operação tripla:
1. Têm de ser somados os montantes dos danos produzidos.

2. Tem de ser identificada a contribuição causal de cada um dos veículos


para os danos produzidos – para tal, atende-se a um conjunto de
características dos veículos (peso, velocidade, por exemplo).
3. Projeta-se o número a que se chegou no segundo momento sobre o
número que se encontrou na primeira fase. (Por exemplo, o valor dos
danos é de 600 euros, sendo que um dos veículos contribuiu ⅓, pelo
que pagará 200 euros e o outro veículo pagará 400.)

Pluralidade de responsáveis pelos danos causados por veículos de circulação terrestre


Tendo em conta os preceitos que definem a responsabilidade civil em matéria de acidentes
de viação, pode suceder que várias pessoas sejam responsáveis, perante os lesados, pelos danos
que estes sofreram. Resta saber em que termos se processa a responsabilidade, sendo certo que,
nestes casos, não há direito, por parte do lesado, a duas ou mais indemnizações, mas apenas a uma,
embora com diversos fundamentos.
− Pode haver responsabilidade objetiva de vários detentores de um só veículo, ou
seja, respondem sem culpa. Neste caso, eles respondem todos solidariamente face ao
lesado (artigo 507.º/1), mas nas relações internas (entre os codevedores solidários) a
indemnização paga vai repartir-se em função do interesse que cada uma dessas
pessoas tenha na utilização do veículo, ou seja, de acordo com o proveito ou as
vantagens que cada um deles retira da viatura (artigo 507.º/2). (Por exemplo, se a
viatura pertencer a dois coproprietários, um dos quais a utiliza só nos dois meses de
férias, enquanto o outro a usa durante o resto do ano, do total da indemnização
caberá, em princípio, ⅙ ao primeiro e os ⅚ restantes ao segundo.) Em caso de
dúvida, deve considerar-se igual o interesse de cada um dos responsáveis na
utilização do veículo, por analogia com o disposto no artigo 506.º/2.
− Pode haver também responsabilidade pelo risco de detentores de vários veículos e,
por força do artigo 507.º/1, a responsabilidade face ao lesado é uma
responsabilidade solidária. Nas relações internas, a indemnização reparte-se em
função do contributo causal do risco de cada um dos veículos para os danos.
− Por fim, podem haver vários responsáveis, uns objetivamente e outros
subjetivamente. Nestas situações, se todos eles responderem face ao lesado,
respondem todos solidariamente. Nas relações internas, quem tem culpa é que
suporta o risco, ou seja, se existir um culpado e for ele a pagar, não tem direito de
regresso face aos demais, mas se a indemnização for paga por alguém que é apenas
responsável pelo risco, que não tem culpa, essa pessoa tem direito de regresso contra
o culpado pela totalidade dos danos, de acordo com o artigo 507.º/2 em articulação
com o artigo 497.º/2.
− Pode haver simultaneamente responsabilidade por acidente de viação e
responsabilidade por acidente de trabalho. No artigo 283.º do Código de
Trabalho, a entidade empregadora responde independentemente de culpa, por
acidente de viação. A Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, regula o regime da
reparação dos danos por
acidentes de trabalho e doenças profissionais. Assim, pode acontecer que um
acidente de viação seja, simultaneamente, um acidente de viação e um acidente de
trabalho. O trabalhador pode exigir indemnização a qualquer um deles e se a
entidade empregadora pagar a indemnização pode sub-rogar-se no direito do seu
trabalhador quanto ao responsável pelo acidente de viação (artigo 17.º/4 da Lei
referida). Não é uma situação de direito de regresso, mas sim uma situação de sub-
rogação. Convém notar que a entidade empregadora tem o dever de contratar um
seguro.
Em suma, havendo mais do que um responsável, eles são solidariamente responsáveis –
mesmo que haja culpa de um deles. (Suponhamos que alguém empresta o carro à sua filha para ela
sair à noite com os amigos e que a filha, conduzindo em excesso de velocidade, acaba por
atropelar uma pessoa. Temos aqui um caso de comodato, e quanto a isto é relativamente pacífico
que a responsabilidade pelo risco abrange ambos. Não é afastada a responsabilidade pelo risco do
comodante, nos termos do artigo 509.º, que nos diz que mesmo que haja responsabilidade por
culpa de um dos detentores do veículo, isto não afasta a responsabilidade do outro, ou seja,
externamente, respondem solidariamente, sendo que depois, internamente, haverá que repartir
responsabilidades.)

Limites da responsabilidade objetiva por acidentes de viação

Reconhecendo os graves inconvenientes e as sérias dificuldades que as indemnizações para


além de certo montante podem causar ao detentor do veículo e a violência que podem representar,
quando não haja culpa a Lei estabeleceu limites máximos, no artigo 508.º do Código Civil, para o
montante da indemnização aquando da responsabilidade pelo risco.
Havendo dolo ou mera culpa do condutor, nenhum limite é estabelecido para o efeito. Estes
limites colocam a indemnização num patamar mais baixo e, por isso, um sujeito que sofresse um
dano e que só o pudesse imputar àquele que o provoca a título de responsabilidade pelo risco,
arriscava-se a receber uma indemnização muito baixa e daí que surja uma enorme vantagem em
recorrer antes ao artigo 483.º, que era mais exigente, mas que não tinha esta limitação. Esta regra,
do artigo 508.º, foi, no entanto, alterada, em grande parte por força da legislação da União
Europeia e, neste caso, o limite máximo que está consagrado neste momento é o do seguro da
responsabilidade civil automóvel que é bastante elevado e que permitiu, em grande parte, cobrir os
danos do bem.
Se estivermos perante um veículo que realiza transporte coletivo, a indemnização vai
ter como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório para os transportes
coletivos. Por
sua vez, se o acidente se ficar a dever a um transporte ferroviário, o limite máximo de
indemnização está fixado no regime especial relativo a esta matéria.
Surgiu a questão de saber se estes limites se aplicam à responsabilidade do comissário, na
qualidade de tal, pelos acidentes ocorridos no âmbito do exercício das suas funções – o Assento de
2 de março de 1994, do Supremo Tribunal de Justiça veio dizer que à responsabilidade do
comissário nos termos do artigo 503.º/3, primeira parte (por culpa presumida), não se aplicam os
limites previstos no artigo 508.º, pois esta é uma responsabilidade por factos ilícitos. Não valem
para aqueles que respondem ao abrigo do 493.º.
Ainda, pode o regime do artigo 494.º (que nos diz que, em caso de mera culpa, pode o juiz,
recorrendo à equidade, fixar o valor da indemnização abaixo do montante dos danos – causa de
redução da indemnização) aplicar-se na definição da indemnização a pagar quando a
responsabilidade é uma responsabilidade pelo risco fundada no artigo 503.º/1, que prescinde de
culpa? O legislador, no artigo 499.º (o primeiro da secção relativa à responsabilidade pelo risco),
veio dizer que as normas relativas à responsabilidade por factos ilícitos, onde consta o 494.º,
podem aplicar-se, na parte aplicável, aos casos de responsabilidade pelo risco. Parece assim que
podemos defender que o artigo 494.º se pode aplicar também no âmbito da responsabilidade pelo
risco, nomeadamente, aos veículos de circulação terrestre. Contudo, isto gerou controvérsia e na
nossa doutrina desenvolveram-se diferentes entendimentos sobre esta matéria:
− VAZ SERRA diz que o artigo 494.º não se aplica à luz da responsabilidade pelo
risco, pois para este autor a aplicação do artigo 494.º pressupõe que o agente
responsável atue com culpa. Este entendimento levou-o a detetar um problema:
compreendeu que, acolhendo esta via, o artigo 494.º tem que ser interpretado de um
modo restritivo, sob pena de tratamos melhor quem atua com culpa do que tratamos
aquele que atua sem culpa. Não pode admitir-se que quando os danos resultantes de
um acidente fiquem abaixo dos limites do artigo 508.º, a indemnização daquele que
atua com culpa possa ser reduzida e já não a indemnização daquele que atua sem
culpa. Assim, veio entender que dentro dos limites do artigo 508.º, ou seja, igual
ou inferior a eles, o artigo 494.º nunca se aplica, mesmo quando há culpa.
− No entanto, a maioria da doutrina acolhe o resultado interpretativo que se retira do
artigo 499.º, que é o de que o artigo 494.º se pode aplicar também à responsabilidade
pelo risco, nomeadamente aos acidentes de viação, na parte que é aplicável, ou seja,
na ponderação de outros fatores que não o grau de culpabilidade do agente. Temos o
caso de autores como ANTUNES VARELA. Aceitando-se esta via, é necessário
fazer
uma precisão indicada por RIBEIRO DE FARIA, que vem dizer que se é certo que o
artigo 494.º se pode aplicar quer à responsabilidade por factos ilícitos, quer à
responsabilidade pelo risco na parte aplicável, para não tratarmos mais
favoravelmente alguém que atua com culpa do que tratamos alguém que atua sem
culpa, sempre que estivermos dentro dos limites do artigo 508.º, só podem ser
atendidos os outros fatores que não a culpa para reduzir a indemnização, ou seja, se o
artigo 494.º se aplica a todos os acidentes, com ou sem culpa, quando os danos
fiquem aquém dos limites do artigo 508.º, em qualquer caso, só podemos ponderar os
outros fatores a que se refere o 494.º (este artigo só se aplicará na parte que não faz
referência à culpa).

Mecanismo do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel

Este mecanismo está previsto no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto. Analisemos


brevemente alguns dos artigos importantes deste diploma:
− Artigo 4.º: prevê-se a obrigação de contratação de um seguro de responsabilidade
civil.

− Artigo 6.º/1: refere sobre quem recai a obrigação de contratar o seguro.

− Artigo 11.º/1: estipula que o seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º
abrange, relativamente aos acidentes ocorridos em território nacional, a obrigação de
indemnizar estabelecida na Lei civil.
− O fundo de garantia automóvel está previsto nos artigos 47.º e seguintes do mesmo
Decreto-Lei e destina-se a efetivar a responsabilidade civil decorrente de acidentes
de viação em duas situações: quando o responsável pelo acidente é conhecido, mas
não beneficia de um seguro válido e eficaz; ou quando o responsável civil é
desconhecido. Ou seja, nestes casos, as ações devem ser formuladas contra o fundo
de garantia automóvel, segundo o artigo 62.º deste diploma. Este fundo visa garantir
que o lesado nunca fique sem reparação. Aqui opera a socialização do risco – todos
contribuímos para este fundo, que tem como fim garantir a indemnização do lesado.
− Artigo 64.º: quando haja um acidente de viação e exista um seguro, as ações
destinadas à efetivação da responsabilidade civil, quer se trate de ações de natureza
civil, quer se trate de ações de natureza penal, devem ser deduzidas obrigatoriamente
só contra a empresa de seguros, quando o pedido indemnizatório caiba dentro dos
limites do artigo 508.º do Código Civil e 12.º do Decreto-Lei; ou contra a empresa de
seguros e contra o responsável civilmente, quando o pedido formulado exceda esses
limites.
Quando há um acidente de viação e há danos provocados, pode haver a apresentação de uma
proposta razoável para a indemnização do dano corporal. Os critérios para fixação dessa
indemnização estão na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio.

− Responsabilidade por danos causados por instalações de energia elétrica ou de


gás (artigo 509.º) – Como a energia elétrica e o gás são coisas cuja utilização é
bastante perigosa, pelos riscos que envolve, compreende-se que também
relativamente a elas vigore o princípio da responsabilidade objetiva. Os danos
causados pela instalação (produção e armazenamento), condução (transporte) ou
entrega (distribuição) dessas fontes de energia correm por conta das empresas que
as exploram, como proprietárias, concessionárias, arrendatárias, entre outros.
Assim como auferem o principal proveito da sua utilização, é justo que elas
suportem os riscos correspondentes. Nos termos do artigo 509.º/1 do Código Civil,
esta responsabilização depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
− É preciso perceber quem é que tem a direção efetiva da instalação, um poder
real sobre a instalação. Aquele que tiver a direção efetiva de uma instalação
destinada à condução ou entrega de energia elétrica ou de gás, e a utilizar no
seu interesse, responde pelos danos decorrentes dessa atividade. Quanto ao
âmbito de aplicação do artigo 509.º surge, na nossa doutrina, uma discussão.
ANTUNES VARELA e ALMEIDA COSTA entendem que abrange todas as
atividades a que se destinam as instalações de energia, como tal, abrange a
armazenagem, condução ou transporte, entrega e distribuição, mas também a
própria produção. Contudo, esta solução é dificilmente compatível com o
elemento literal da lei, sendo que RIBEIRO DE FARIA e MENEZES
LEITÃO entendem que a letra do artigo não se refere a todas estas atividades,
entendendo que o legislador não quis abranger os danos resultantes da
produção e do armazenamento, apenas os causados pela condução e entrega,
precisamente porque a produção não comportará riscos superiores que
justifiquem a aplicação deste preceito.
− Depois, importa entender quem é que tem interesse na utilização dessa
instalação, quem é que dela retira vantagens.
As empresas respondem, não só pelos acidentes devidos a culpa dos seus órgãos, agentes ou
representantes ou dos seus comissários, mas também pelos devidos ao mau funcionamento do
sistema de condução ou entrega ou aos defeitos da própria instalação.
Quanto à instalação, porém, o legislador prevê uma causa de exclusão da responsabilidade
objetiva, no artigo 509.º/1, parte final, mediante a demonstração de que, ao tempo do acidente, a
instalação se encontrava a funcionar de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito
estado de conservação. Quer isto dizer que, independentemente dos riscos específicos desta
matéria, que se mantêm, se o detentor da instalação provar que funciona de acordo com as regras
técnicas e em perfeito estado de conservação, a responsabilidade é afastada, havendo aqui uma
diferença clara face à responsabilidade por acidentes de veículos de circulação terrestre. Por isto,
há quem duvide que estejamos aqui verdadeiramente perante uma responsabilidade pelo risco,
considerando que estamos perante uma responsabilidade por factos ilícitos, mas uma ilicitude
imperfeita, que tem particularidades.
Em termos gerais, esta responsabilidade também pode ser afastada quando se provar
que os danos ocorrem devido a uma causa de força maior, considerando-se esta como todo o
facto/causa exterior e independente do funcionamento e da utilização da coisa, podendo, por isso,
e de acordo com a opinião de ANTUNES VARELA, provir do lesado, de terceiro ou até ser um
facto natural (509.º/2), mas isto não é consensual.
Existem também limites da responsabilidade do artigo 509.º, sendo o legislador, nos
termos do /3, muito claro em excluir do âmbito de previsão desta norma os danos causados por
eletrodomésticos, os “utensílios de uso e energia” que “não são reparáveis” (por exemplo, se
alguém está na casa de outrem a manusear o seu microondas e há um acidente, não é de aplicar
este regime). Aplicam-se ainda a esta responsabilidade os limites do artigo 508.º, por força do
artigo 510.º. Estes limites aplicam-se em relação a cada lesado individualmente.
Atenção! Quanto aos danos causados pelos instrumentos que careçam de energia elétrica
para funcionar, não há responsabilidade pelo risco. Aquilo que sucede é que relativamente a esses
bens são celebrados contratos de compra e venda com o consumidor, aplicando-se um regime
específico
– a garantia. A Lei constrói uma figura durante o prazo de dois anos, em que se se manifestarem
alguns defeitos durante esse período, há uma garantia concedida pelos vendedores. Há ainda a
responsabilidade pelo risco do produtor pelos danos causados pelos produtos que põe em
circulação (o exemplo de um processador que explode).
Por fim, resta-nos mencionar que ao lado das que o Código Civil prevê e regula, outras
atividades há cujo exercício está sujeito também a responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, em
legislação avulsa – é o caso, por exemplo, do regime da responsabilidade civil pelos danos
causados no exercício da caça.

Responsabilidade por factos lícitos

É ainda uma modalidade da responsabilidade extracontratual. Há um direito de


indemnização que é conferido a quem veja os seus direitos ou interesses atingidos/sacrificados em
função de uma atuação lícita do lesante com vista a tutelar interesses superiores. Podemos ter uma
atuação lícita no âmbito público (por exemplo, o caso da expropriação pública do artigo 62.º da
Constituição) e no âmbito privado.
Nesta responsabilidade, o sujeito pode praticar aquele ato, na medida em que o ato em si
é lícito, ou seja, não há um juízo objetivo de censura por parte do ordenamento em relação à
prática daquele ato. No entanto, a prática de atos lícitos pode produzir danos na esfera
jurídica de outrem, pelo que, por razões de justifica comutativa, a Lei impõe ao sujeito que
pratica o ato, o dever de o indemnizar pelos danos que a ele se ligam causalmente
(indemnização por atos lícitos). É a chamada justa indemnização. No fundo, o legislador permite
que o sujeito atinja o património de outrem, porque ao fazê-lo a lei entende que o seu interesse tem
uma valoração superior, mas impõe depois o tal dever de indemnizar.
Ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, no nosso não há uma cláusula geral relativa à
responsabilidade por factos lícitos, mas sabemos que essa responsabilidade ocorrerá apenas a
título de exceção, de acordo com o artigo 483.º/2, e é necessário que exista uma norma que a
preveja, pelo que se o legislador não a previr nunca haverá uma compensação nestes casos, pois
são atos lícitos. Assim, são casos previstos na lei, não em termos genéricos, mas sim em diversos
casos específicos. Por exemplo, o caso do estado de necessidade (artigo 339.º/2), em que há a
possibilidade de destruição de uma coisa alheia para salvaguardar um interesse superior, havendo
uma obrigação de indemnizar que recai sobre quem causou os danos ou sobre quem beneficiou
desta atuação. Quem atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, atua licitamente,
mas isso não o exclui
de responder pelos danos causados.

De mencionar aqui os casos do artigo 81.º/2, em que é admissível a limitação de direitos de


personalidade desde que não vá contra a ordem pública. O titular do direito pode, a qualquer
momento, revogar a autorização. (Nesse caso, se A contratou com C a ser fotografado na sua casa,
temos um ato lícito, tendo que indemnizar as legítimas expectativas da outra parte caso não
cumpra o contrato.) Há um caso específico quanto aos direitos reais, no que diz respeito ao
direito de

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