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| CAPÍTULO 1

CARBOIDRATOS:
CONCEITOS
FUNDAMENTAIS
E EXEMPLOS DE
FUNÇÕES BIOLÓGICAS
EM ORGANISMOS
MARINHOS
Paulo A. S. Mourãoa
a
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO
Os carboidratos são as moléculas mais abundantes na natureza. Como exemplo
podemos citar a parede celular dos vegetais e o exoesqueleto dos insetos, cons-
tituídos respectivamente dos carboidratos celulose e quitina. O amido e o glico-
gênio são exemplos de polissacarídeos de reserva energética que ocorrem em
grande abundância em plantas e animais, somados à expressiva quantidade de
carboidratos na natureza. Apesar da sua ampla ocorrência como um composto
estrutural e energético, a estrutura e as funções biológicas dos carboidratos são
menos conhecidas quando comparadas com os ácidos nucleicos, as proteínas e
os lipídeos. Contudo, nas últimas décadas o desenvolvimento de novas técnicas
nessa área de conhecimento vem enfrentando essa defasagem, revelando que
carboidratos são responsáveis por regular complexos mecanismos biológicos.
Esta revisão tem o objetivo de revelar diferentes aspectos do estudo de carboi-
dratos, abordando desde o histórico de sua descoberta, à sua complexidade es-
trutural e a resultante atividade biológica. Dentro desse aspecto serão levantadas
as dificuldades para os estudos da estrutura e da função dos carboidratos; mas
também serão apresentados os recentes avanços metodológicos, usando como
exemplo o avanço no estudo da estrutura e função biológica de carboidratos de
organismos marinhos. Por fim, serão apontados os desafios a se enfrentar para
acelerar o desenvolvimento das pesquisas sobre os carboidratos.

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BIOTECNOLOGIA MARINHA

1 ASPECTOS HISTÓRICOS DOS CARBOIDRATOS

Em geral associamos o termo carboidrato com a palavra açúcar ou substância com sa-
bor doce. Entretanto, essa característica não é uma propriedade que nos permita definir esse
conjunto de substâncias: basta lembrarmos que o leite, um alimento rico em lactose, não é doce;
e as frutas, ricas em frutose, geralmente o são. Assim, a lactose e a frutose diferem significativa-
mente na sua doçura relativa (15 vs. 173, respectivamente). Além disso, outras substâncias com
sabor adocicado possuem estruturas muito distintas dos carboidratos.
Ademais, é costume associar carboidratos com substâncias que resultam no aumento
de peso. Porém, nem todos os carboidratos são utilizados no metabolismo; outras substâncias,
como os lipídeos, possuem maior potencial energético que os carboidratos.
Certamente o primeiro adoçante utilizado pelo homem foi o mel. Contudo, foi Alexandre,
o Grande, que levou a sacarose para a Europa, trazida do Oriente Médio. O fato da sacarose ter
a propriedade de ser facilmente cristalizada lhe garante uma vantagem quanto ao processo de
estocagem, comercialização e o seu uso na alimentação. Porém sua obtenção na Europa era
difícil, devido à impossibilidade do cultivo da cana de açúcar. Como alternativa, a beterraba foi
usada como fonte de produção de açúcar, embora esse vegetal contenha maior quantidade de
glucose, mais difícil de cristalizar.
Se o sabor não é uma propriedade característica de carboidratos, como então podemos
definir essas moléculas"?

2 ESTRUTURA QUÍMICA DE CARBOIDRATOS

Os carboidratos são caracterizados como moléculas que contêm um grupamento aldeí-


dico ou cetônico e múltiplas hidroxilas – número mínimo de dois grupamentos. Portanto, os dois
carboidratos mais simples possíveis são: o gliceraldeído e a di-hidroxicetona (Figura 1A). A partir
dessas duas moléculas deriva-se uma ampla série de outras contendo entre três a seis hidroxi-
las. A Figura 1B mostra os dois derivados mais conhecidos do gliceraldeído e di-hidroxicetona:
glucose e frutose, respectivamente.
A glucose é o carboidrato mais conhecido. Foi cristalizada por Maggrat (1747) e a sua
fórmula empírica CH2O deu origem ao termo hidratos de carbono, depois modificado para car-
boidratos. Seu peso molecular de 180 Da foi determinado por Tollens e Mayer (1888), permitindo
estabelecer sua fórmula verdadeira como C6H12O6. Franchiment (1879) mostrou que possuem cin-
co grupos hidroxilas, e Kiliani (1886), que possuem um grupamento aldeídico e seis átomos de
carbono em arranjo linear. Essas observações permitiram estabelecer a estrutura da glucose
como a conhecemos atualmente (Figura 1B).

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Figura 1. Estrutura do D-gliceroaldeído e da D-hi-


droxicetona (Painel A), os dois carboidratos com as
estruturas mais simples. Destes dois compostos
derivam os outros carboidratos com maior núme-
ro de hidroxilas, exemplificado para a D-glucose e
D-frutose no Painel B.

Todavia, essa estrutura básica e simples apresenta outros aspectos mais complexos
em comparação com as estruturas das outras moléculas biológicas. Muitos autores de livros-
-textos de bioquímica costumam omitir referências à estrutura dos carboidratos, temerosos de
que a aparente complexidade desestimule a leitura. Com finalidade didática abordaremos al-
guns conceitos de maneira clara e objetiva.
Fundamentalmente, três aspectos são importantes para a compreensão da estrutura
dos carboidratos e serão apresentados usando como exemplo a galactose: os estereoisômeros
D e L; a formação dos anéis de piranose e de furanose; e os isômeros α e β.
Desse modo, quanto à estrutura do gliceraldeído (Figura 1A), notamos a presença de um
carbono assimétrico. Naturalmente disso resulta a ocorrência dos estereoisômeros D e L, in-
clusive nas séries de carboidratos deles derivados. Exemplificamos, na Figura 2A, esse aspec-
to para a galactose. A maioria dos carboidratos encontrados na natureza pertencem à série D,
mas também encontramos o isômero L. Essa é outra diferença em relação aos aminoácidos que
ocorrem nas proteínas exclusivamente como o isômero L.
Outro aspecto peculiar da estrutura dos carboidratos é que eles formam anéis cíclicos
devido a uma reação de condensação intramolecular. Dois tipos de anéis podem ser formados:
um contendo quatro e outro cinco átomos de carbono, denominados respectivamente como fu-
ranose e piranose, por analogia com o furano e o pirano. A Figura 2B ilustra essas estruturas
para a galactose. Mas ao formar os anéis cíclicos a molécula apresenta um novo tipo de isomeria,
representada pelas hidroxilas acima e abaixo do plano. O α-isômero é aquele no qual o próton

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Figura 2. Estrutura dos dois


estereoisômeros da galactose
(Painel A) e as formas α/β, fura-
nose e piranose do isômero D
em solução, em equilíbrio atra-
vés do intermediário acíclico
(Painel B).

anomérico e a hidroxila da posição 6 estão em planos opostos do anel. Ao contrário, no β-isôme-


ro o próton anomérico e a hidroxila da posição 6 compartilham o mesmo plano do anel.
Naturalmente os estereoisômeros D e L não são interconversíveis. Já as formas α/β e
furanose/piranose dos açúcares livres se interconvertem, conforme mostrado no esquema da
Figura 2B, formando os anéis de piranose ou de furanose, cada um deles nas formas anoméricas
α ou β. Essas formas estão em equilíbrio pela mediação do intermediário acíclico.
Outro aspecto importante são os grupamentos substituídos na estrutura dos carboidra-
tos. Destacamos a ocorrência de grupamentos sulfato, fosfato, amino e éster metil, como mos-
tra a Figura 3. Também pode ocorrer a presença de grupamentos carboxílicos, como no caso dos
ácidos hexurônicos. Outros carboidratos comuns na natureza são os deoxi-açúcares, como a fu-
cose, contendo um grupamento metil em substituição ao CH2OH, na posição 6. Os carboidratos
também podem conter estruturas cíclicas, como o 3,6-anidro galactose ou conter anéis de ácido
pirúvico, com substituições nas posições 4 e 6 (ou 3 e 4) do açúcar, como mostrado na Figura 3.
Naturalmente a ocorrência desses grupamentos nas estruturas dos carboidratos irá impactar
nas suas propriedades físico-químicas e nos seus efeitos biológicos, por meio da interação com
outras moléculas.
Os carboidratos encontrados nos organismos marinhos são singulares por particular-
mente apresentarem expressiva ocorrência desses diferentes grupamentos, como veremos
posteriormente.

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CARBOIDRATOS: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E EXEMPLOS DE FUNÇÕES BIOLÓGICAS EM ORGANISMOS MARINHOS

Figura 3. Exemplos de
diferentes grupamen-
tos que podem estar
substituídos em carboi-
dratos, como fosfato,
sulfato e éter O-metil
ou carboidratos conten-
do grupamento amino
ou carboxílico ou ainda
deoxi-açúcares, com a
substituição de um gru-
pamento CH2OH por CH3.

3 A LIGAÇÃO GLICOSÍDICA DE CARBOIDRATOS


COMPLEXOS
Descrevemos algumas das principais características estruturais e físico-químicas das
unidades monossacarídicas de carboidratos encontrados nos organismos vivos. Mas a próxima
questão é a de como essas unidades se unem para constituir estruturas mais complexas. Pode-
mos traçar uma analogia com a formação das proteínas a partir dos aminoácidos. Eles se unem
por meio da ligação peptídica entre um α-amino-grupo e uma α-carboxila da outra unidade (Fi-
gura 4A). No caso dos carboidratos, estes se unem através da ligação glicosídica formada entre
o grupamento aldeídico ou cetônico e a hidroxila de um álcool. A Figura 4B mostra a formação da
ligação glicosídica entre a glucose e o álcool metílico.
Os carboidratos possuem múltiplos grupamentos hidroxilas, o que lhes faculta formar
uma grande variedade de ligação entre o grupamento anomérico e as hidroxilas das diferentes
posições. A Figura 4C mostra a formação da ligação glicosídica entre duas glucoses, pela ligação
com a hidroxila da posição 4. Mas essa mesma ligação poderia ocorrer com as hidroxilas das po-
sições 2, 3, 5 e 6. Em decorrência, podemos formar uma grande variedade de derivados a partir
de somente dois açúcares, enquanto que com dois aminoácidos, apenas um tipo de dipeptídeo.
Em síntese, podemos formar 11 tipos de dissacarídeos a partir de duas glucoses, consi-
derando apenas estruturas com isômero D e na forma de piranose. Com três glucoses podemos
formar 176 tipos de isômeros. Basta usar um cálculo combinatório para compreendermos essas
possibilidades. Assim, com um mesmo tipo de aminoácido podemos formar apenas um dipeptídeo

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Figura 4. Comparação entre a


ligação peptídica e glicosídica.
A ligação peptídica é formada
entre um α-amino grupo de
um aminoácido e α-carboxila
de outro (Painel A). A ligação
glicosídica é entre o grupa-
mento aldeído ou cetônico e a
hidroxila de um álcool. O Painel
B ilustra a formação da ligação
glicosídica entre a D-glucose e
a hidroxila do metanol, o álcool
mais simples. Os carboidratos
estão repletos de grupamen-
tos hidroxilas e a ligação glico-
sídica pode ser formada com
qualquer um deles, resultando
numa ampla variedade estru-
tural em comparação com os
peptídeos. O Painel C ilustra a
ligação glicosídica formada en-
tre uma D-glucose e a hidroxila
da posição 4 de outra D-gluco-
se.

ou um tripeptídeo.
Tamanha variedade de combinações estruturais cria um dos problemas mais comple-
xos para a determinação da estrutura de carboidratos, ou seja, a questão desafiadora de qual é
afinal a posição da ligação glicosídica. Esse tipo de questão pode ser resolvido por três tipos de
metodologias: oxidação com periodato; reação de metilação; e ressonância magnética nuclear
(RMN), como apresentado esquematicamente na Figura 5 para uma unidade de α-glucose unida
por ligações 1 → 4.
O ácido periódico quebra ligações C-C com hidroxilas vicinais. O único sítio de quebra
na estrutura da Figura 5 é a ligação C-C entre as posições 2 e 3. O produto formado contém qua-
tro átomos de carbono e é denominado eritritol (Figura 5A). Se a ligação fosse na posição 3 não
ocorreria oxidação pelo periodato; nas posições 2 e 3 geraria glicerol. Historicamente esse foi
o primeiro tipo de metodologia empregada para identificar a posição das ligações glicosídicas,
mas atualmente está em desuso em face de outros métodos mais efetivos.
Outro método envolve a reação de metilação, quando grupamentos metil são introduzi-
dos em todas as hidroxilas livres da molécula. Naturalmente o produto formado para uma gluco-
se unida por ligações α (1 → 4) é o derivado 2,3,6-tri-O-metil (Figura 5B). A posição envolvida na
ligação glicosídica não será metilada.
Por fim, o método mais empregado atualmente envolve o uso de RMN. Essa metodo-
lo gia permite assinalar todos os carbonos (13C) ou prótons (1H) encontrados no carboidrato. O
carbono envolvido na ligação glicosídica está caracteristicamente deslocado para campo baixo

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CARBOIDRATOS: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E EXEMPLOS DE FUNÇÕES BIOLÓGICAS EM ORGANISMOS MARINHOS

Figura 5. Metodologias que podem ser empregadas para determinar a posição da ligação glicosídica num
glicoconjugado. O Painel A ilustra a estrutura de uma unidade de glucose na estrutura de um glicoconju-
gado, unida por ligação α (1 → 4) . A posição da ligação pode ser determinada usando oxidação com ácido
periódico (IO4-), seguida da redução com boroidreto de sódio (NaBH4) e hidrólise ácida, seguida de nova
redução. O produto formado será eritritol se a substituição for na posição 4. Outra opção metodológica é a
reação de metilação, com a substituição das hidroxilas livres por grupamento metil. A posterior hidrólise
ácida da amostra resulta na formação de 2,3,6-tri-O-metil-glicose (Painel B). Outra metodologia é o uso
da espectrometria de ressonância nuclear magnética (RMN), ilustrada no Painel C. O 13C-carbono do sítio
de substituição (C4) é deslocado para campo baixo (para a esquerda) do espectro em comparação com os
demais carbonos do anel. O carbono anomérico (C1) e o C6 estão deslocados em campos opostos. Espec-
trometria de massa (eletrospray) também vem sendo utilizada para a caracterização de carboidratos, espe-
cialmente com massa molecular reduzida. O Painel D mostra esse tipo de espectro obtido com a glucose.

(para a esquerda) em comparação com os demais componentes do anel (Figura 5C). Outro as-
pecto claramente indicado pelo espectro de RMN é a configuração da ligação glicosídica. Os
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C α-anoméricos estão mais deslocados para campo baixo em comparação com os carbonos
β-anoméricos. Essa é a metodologia mais apropriada para estabelecer a configuração da ligação
glicosídica (α ou β).
Uma outra variedade de métodos está disponível para a determinação da estrutura dos
carboidratos. Em particular destacamos a espectrometria de massa (eletrospray), muito útil
para estabelecermos a estrutura de carboidratos com massa molecular mais reduzida (Figura
5D). Atualmente, podemos estabelecer um conjunto de estruturas num curto período de tempo.
Esse avanço vislumbra a era dos glicomas, facilitando a determinação da estrutura do conjunto
de carboidratos encontrados numa determinada estrutura ou organismo.

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4 CARBOIDRATOS EM ORGANISMOS MARINHOS

Os carboidratos são encontrados em grande quantidade e com muita variedade estru-


tural nos organismos marinhos. Dos vegetais marinhos, as algas são os que possuem concen-
trações mais elevadas de carboidratos. Muitas estimativas sugerem que os polissacarídeos de
algas marinhas são as moléculas biológicas mais abundantes na natureza.
É muito difícil uma descrição completa da variedade das moléculas de carboidratos en-
contradas nesses organismos. Com o objetivo de fornecer uma descrição didática, que estimule
a curiosidade do leitor no aprofundamento no tema, escolhemos três tipos de situações biológi-
cas em organismos marinhos: componentes da parede celular de algas marinhas; regulação da
fertilização em ouriços-do-mar; e moléculas que asseguram a espécie-especificidade na inte-
ração entre células de esponjas-do-mar.

4.1 POLISSACARÍDEOS SULFATADOS COM FUNÇÃO ESTRUTURAL

Polissacarídeos sulfatados são encontrados em altas concentrações nas algas mari-


nhas como componentes da parede celular de algas vermelhas, marrons e verdes. A Figura 6A

Figura 6. Polissacarídeos sulfatados en-


contrados na parede celular das algas mari-
nhas. Painel A: detecção de polissacarídeos
sulfatados na parede celular da alga verme-
lha Botryocladia occidentalis usando o co-
rante azul de toluidina. Os polissacarídeos
são observados com a típica coloração roxa
com o uso desse corante. O Painel B mos-
tra as estruturas das galactanas sulfatadas
(carragenanas) encontradas nas algas ver-
melhas, das fucanas sulfatadas (fucoidam)
nas algas marrons e das galactanas sulfata-
das nas algas verdes. Ver Pomin VH e Mou-
rão PAS (Glycobiology 18:1012-1027,2008).

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CARBOIDRATOS: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E EXEMPLOS DE FUNÇÕES BIOLÓGICAS EM ORGANISMOS MARINHOS

mostra um exemplo da distribuição desses polissacarídeos na parede celular de uma espécie


de alga vermelha estudada em nosso laboratório (Botryocladia occidentalis). A parede celular da
alga foi corada com azul de toluidina e apresentou a coloração roxa, devido ao fenômeno chama-
do metacromasia, que ocorre quando o corante entra em contato com polissacarídeos sulfata-
dos. Podemos observar a alta concentração e a extensa distribuição dos polissacarídeos sulfa-
tados na parede da alga. Isso permite que suas células se organizem, se mantenham integradas
e protegidas.
As algas vermelhas possuem polissacarídeos sulfatados formados por unidades alter-
nadas de galactose unidas por ligações α e β. Embora essa seja a estrutura básica, extensas
modificações ocorrem nesses dois componentes dependendo da espécie de alga vermelha (Fi-
gura 6). As unidades de β-galactose podem estar sulfatadas nas posições 2 ou 4. Por sua vez, as
unidades de α-galactose podem estar sulfatadas nas posições 2, 3 ou 6. Podem ocorrer também
na forma dos estereoisômeros D ou L (ver essas estruturas na Figura 2A). Podem ainda formar
um anel cíclico denominado 3,6-anidro-galactose (ver Figura 3).
Quimicamente esses polissacarídeos encontrados nas algas vermelhas deveriam ser
denominados como galactanas sulfatadas. Entretanto são chamados de carragenanas. A ori-
gem dessa denominação é histórica. Decorreu do fato de terem sido primeiramente isoladas da
alga Chondrus crispus, coletada numa pequena vila nas costas da Irlanda chamada Carragheen.
O fato é que cada espécie de alga vermelha possui uma carragenana com composição
particular. Esses diferentes componentes estruturais modificam significativamente as proprie-
dades físico-químicas das carragenanas, tais como: viscosidade, solubilidade em água, capa-
cidade para formar géis, etc. Esses polissacarídeos são amplamente utilizados na indústria de
alimentos como gelificante. As algas que contêm os polissacarídeos mais adequados para esse
fim comercial são as escolhidas para cultivo. Ainda não conhecemos o significado biológico des-
sas alterações estruturais, tampouco o seu sentido evolutivo para as algas vermelhas.
As algas marrons possuem na sua parede celular polissacarídeos constituídos principal-
mente por L-fucose sulfatada. Foram inicialmente descritos por Killing, em 1913, e denominados
como fucoidam. Esses compostos possuem uma estrutura muito heterogênea e poucas foram
integralmente decifradas. Em geral possuem unidades alternadas de α-fucose, unidas por liga-
ções 1 → 4 e 1 → 3, com sulfatações nas posições 2 e/ou 3. Muitas espécies possuem estruturas
com fucoses não sulfatadas em ramificações da molécula (Figura 6)
As algas verdes possuem polissacarídeos sulfatados com estruturas mais variáveis na
sua parede celular. Esse grupo é ainda muito pouco estudado. Em geral possuem galactanas
sulfatadas formadas por unidades de β-galactose 4 sulfatadas e unidas por ligações 1 → 3 (Figura
6D).

4.2 POLISSACARÍDEOS SULFATADOS NA FERTILIZAÇÃO

Outro grupo de organismos marinhos que possui fucanas sulfatadas são os ouriços-
-do-mar. Mas nesse caso os polissacarídeos sulfatados são encontrados no gel que envolve os
óvulos. As fucanas sulfatadas dos equinodermas possuem estruturas muito regulares, definidas
exclusivamente pelo padrão de sulfatação das unidades. Ainda mais singular, cada espécie de

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ouriço-do-mar possui uma fucana sulfatada com estrutura particular, como mostra a Figura 7.
Essas observações foram estabelecidas pelo trabalho do nosso laboratório realizado no período
de 1998-2002.
Essas fucanas sulfatadas são constituídas por unidades repetitivas formadas por um,
dois, três ou quatro açúcares. A posição da ligação glicosídica é sempre a mesma para cada es-
pécie, mas o padrão de sulfatação varia (Figura 7). Algumas espécies possuem polissacarídeos
formados por unidade de D- ou L-galactose, com ligações glicosídicas do tipo α ou β.
A localização particular dessas fucanas sulfatadas e as estruturas regulares repetiti-
vas, associadas à observação da variação espécie-específica, sugeriram função biológica mais
refinada. Realmente os estudos do nosso laboratório mostraram que essas fucanas sulfatadas
são indutoras espécie-específicas da reação acrossômica em ouriços-do-mar. A reação acros-
sômica é um evento essencial para a fertilização. Nos ouriços-do-mar envolve a exocitose da
vesícula acrossomal e a polimerização da actina, formando o denominado processo acrossomal,
projetando-se na cabeça do espermatozoide, com aproximadamente 1 µm de comprimento.
A Figura 8A mostra o processo acrossomal formado após a incubação do espermatozoide do
ouriço-do-mar com a fucana sulfatada isolada do gel que envolve o óvulo da mesma espécie.
Essas observações mostram um dos raros casos relatados na literatura de um car-

Figura 7. Estruturas das fucanas sulfatadas


encontradas no gel que envolve os óvulos dos
ouriços-do-mar. Esses polissacarídeos são
constituídos por unidades regulares definidas
exclusivamente pelo padrão de sulfatação. Cada
espécie de ouriço-do-mar possui fucana sulfa-
tada com uma estrutura particular. Ver Vilela-
-Silva e col. (J. Biol. Chem. 277:379-387,2002).

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boidrato puro induzindo a transdução de sinal em célula animal num evento diretamente re-
lacionado com a diferenciação das espécies em equinodermas. Dois tipos de eventos re-
gulam a espécie-especificidade na fertilização dos ouriços-do-mar. Um deles é baseado na
especificidade do reconhecimento da bindina; o outro depende da indução da reação acros-
sômica pelos polissacarídeos sulfatados (Figura 8B). Esses dois mecanismos conjugados são
responsáveis pela diferenciação das espécies de ouriços-do-mar, ora atuando em conjun-
to, ora cada um deles em particular, assegurando a especiação em outros casos (Figura 8C).
Certamente o maior desafio no estudo dessas fucanas sulfatadas dos ouriços-do-mar é
o de identificar as enzimas responsáveis pela biossíntese dessas estruturas particulares, assim
como os genes que regulam sua expressão. Essa é uma questão muito atraente sob o ponto de
vista dos carboidratos, mas também pode identificar em nível molecular os mecanismos de dife-
renciação de espécies entre os equinodermas, abrindo perspectivas para expansão para outros
grupos de animais.

4.3 POLISSACARÍDEOS SULFATADOS NA EVOLUÇÃO DE ORGANISMOS MULTICELU-


LARES

As esponjas marinhas foram os primeiros organismos utilizados como modelo para o


estudo da agregação celular. Os estudos pioneiros foram realizados por Wilson em 1907. Os seus
experimentos mostraram que podia remover as células do corpo do animal adulto e as células
dissociadas eram capazes de gerar um novo animal adulto. Em seguida Wilson pretendeu agre-
gar células de espécies distintas de esponjas visando gerar um organismo com as característi-
cas das duas espécies. Infelizmente, para sua decepção inicial, observou que as células de es-
ponja agregavam apenas de forma espécie-específica. Esses resultados tornaram-se clássicos
e são descritos atualmente na maioria dos livros de biologia.
A próxima etapa foi a da caracterização da molécula encontrada nas esponjas respon-
sável pela agregação espécie-específica. Os estudos realizados na década de 80 levaram à ca-
racterização de uma molécula denominada como “fator de agregação”, por ser responsável por
esse evento. Também ficou caracterizado que polissacarídeos encontrados nesse fator eram os
componentes responsáveis pela agregação, um evento mediado por cálcio.
A elevada complexidade dos polissacarídeos encontrados no fator de agregação limi-
tou a determinação da sua estrutura. Só recentemente conseguimos estabelecer a estrutura
do carboidrato do fator de agregação da espécie Desmapsamma anchorata usando RMN. O po-
lissacarídeo possui uma cadeia central de unidade de glucose, unida por ligações 1 → 3, algumas
sulfatadas nas posições 2 e 4. Esse polissacarídeo também possui ramificações com unidades
de fucose 2-sulfatada e de galactose contendo anéis de piruvato (ver essa estrutura na Figura
3). A Figura 9 mostra essa estrutura e a representação esquemática da interação da molécula
mediada por cálcio. Esse é outro exemplo impactante da importância dos carboidratos para um
evento biológico fundamental na geração dos animais multicelulares.

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Figura 8. Importância das fucanas sulfatadas, encontradas no gel que envolve os óvulos dos ouriços-do-
-mar, na indução espécie-específica da reação acrossômica nos espermatozoides. O Painel A mostra es-
permatozoides da espécie Strongylocentrotus purpuratus que sofreram reação acrossômica (indicada pela
seta) após a incubação com a fucana sulfatada homóloga, revelados pelo anticorpo anti-actina. Painel B:
representação esquemática dos dois passos hierárquicos de reconhecimento de gametas nos ouriços-do-
-mar. (a) Mecanismo baseado nos polissacarídeos sulfatados: a reação acrossômica é induzida quando um
receptor correto do espermatozoide reconhece o polissacarídeo sulfatado do gel que envolve o óvulo (tri-
ângulos). Essa reação expõe a proteína bindina (quadrados e círculos). (b) Mecanismo baseado na bindina.
A proteína bindina é exposta pela reação acrossômica e reconhece um receptor encontrado na membrana
do óvulo da própria espécie. Ver Biermann e col. (Evolution and Development, 6:353-361,2004). Painel C:
Relações filogenéticas e tempos de divergência de espécies de ouriços-do-mar e um resumo da estrutura
dos polissacarídeos encontrados no gel que envolve seus óvulos. O mecanismo mediado por polissacaríde-
os sulfatados para o reconhecimento dos gametas desempenhou um papel importante na separação entre
S. droebachiensis e S. pallidus. O mecanismo mediado pela bindina desempenhou um papel importante na
separação entre o ancestral comum dessas duas espécies e S. purpuratus. Myr = milhões de anos de diver-
gência evolutiva. Dados de Biermann e col. (Evolution and Development, 6:353-361,2004).

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Figura 9. Modelo representativo do mecanismo molecular


de adesão entre as células de esponja, mediado por polis-
sacarídeos sulfatados. O Painel A mostra dois fatores de
agregação ligados a duas células adjacentes de esponja
marinha. O Painel B mostra a interação entre os polissa-
carídeos sulfatados, componentes do fator de agregação.
Essa interação entre os ésteres sulfato do polissacarídeo
é mediada por cálcio. Dados de Vilanova e col. (J. Biol.
Chem. 291:9425-9437,2016).

5 CONCLUSÃO

Os carboidratos são moléculas essenciais aos seres vivos, exercendo uma grande va-
riedade de funções biológicas. Os carboidratos exerceram um papel central durante os mais de
três bilhões de anos de evolução da vida sobre a terra, regulando diversos eventos biológicos
cruciais e exercendo funções estruturais, de reserva energética e no aumento de complexidade
de organismos multicelulares, entre outras. Devido à sua alta complexidade estrutural conside-
ra-se que o estudo de carboidratos no passado ficou aquém das descobertas feitas com prote-
ínas, ácidos nucleicos e lipídeos Porém, recentes avanços de técnicas analíticas vêm demons-
trando crescentemente uma série de funções biológicas para carboidratos, que são reguladas
especificamente por elementos estruturais destas moléculas. O próximo desafio para o estudo
da função dos carboidratos deverá focar nos ainda muitas vezes desconhecidos processos de
biossíntese e sua regulação em diferentes eventos biológicos, utilizando uma estratégia meto-
dológica ampla. A partir de agora será necessária uma abordagem multidisciplinar para o estudo
da função detalhada dos carboidratos em diferentes organismos, combinando metodologias de
biológica molecular, enzimologia, metabolismo, entre outras. Neste capítulo mostramos alguns
conceitos básicos sobre os carboidratos, ressaltando sua importância biológica com exemplos
de organismos marinhos. Esperamos que o texto tenha desempenhado um estímulo para des-
pertar maior interesse para os estudos de carboidratos, assim ajudando a enfrentar os futuros
desafios dessa promissora linha de pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Os trabalhos desenvolvidos no Laboratório de Tecido Conjuntivo da UFRJ receberam


apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Agradecemos a contri-
buição de Rafael S. Aquino, Paulo A. G. Soares e Eduardo Vilanova na revisão do texto.

REFERÊNCIAS

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