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Displasia do desenvolvimento do quadril - Maria Luiza Zentgraf

Embriologia de definição:
● A cabeça do fêmur e o acetábulo têm a mesma origem embriológica, que são as
células primitivas mesenquimais.
● Por volta de 7 semanas de gestação, há a formação de uma fenda nessas células que
dará origem a dois grupos celulares, que irão formar a cabeça do fêmur e o
acetábulo.
● A cabeça femoral e o acetábulo cartilaginosos se formam na 11a semana de
gestação.
● O formato côncavo do acetábulo é determinado pela presença da cabeça femoral.
Para que o quadril se desenvolva de forma saudável e normal na vida adulta, é
necessário que a cabeça do fêmur esteja contida no acetábulo, o que não ocorre na
DDQ.
● A maior parte do desenvolvimento do formato acetabular é determinado até os 8
anos de idade.
● Isso gera alterações anatômicas progressivas, que podem ser reversíveis se tratadas
de forma precoce.
OBS: a luxação teratológica do quadril é uma condição diferente da DDQ, em que a
criança já tem o quadril luxado antes do nascimento, ADM limitado e não há como
reduzir durante o exame. Geralmente está associada a outras síndromes
neuromusculares, especialmente artrogripose e mielodisplasia.
Epidemiologia:
● A incidência é de 1 a 1,5 em 1000 nascidos vivos, porém isso varia de acordo com a
área geográfica (ex: crianças nativo americanas têm alta incidência de DDQ,
enquanto que chineses e africanos bantu têm baixa incidência).
● Acomete mais comumente o sexo feminino, principalemente devido à lassidão
ligamentar.
● É bilateral em 20% dos casos e tem uma predileção pelo lado esquerdo, pois
geralmente esse é o lado forçado contra o sacro na posição intrauterina (posição
OAE - occipito-anterior-esquerda).
OBS: quando é bilateral, tem pior prognóstico.
Etiologia/fatores de risco:
● Lassidão ligamentar:
○ O excesso de lassidão da cápsula articular do quadril gera uma falha em
manter a cabeça femoral dentro do acetábulo (a cápsula articular tem mais
importância do que a estrutura óssea no RN).
○ Relaxina é um hormônio que produz lassidão ligamentar, necessária para a
expansão pélvica materna durante a gestação. Esse hormônio atravessa a
placenta e causa efeitos na criança, o que ocorre de forma mais intensa no
sexo feminino.
○ Além disso, os RN com DDQ parecem ter maior nível de colágeno III em
relação ao colágeno I, do que crianças sem DDQ.
● Posição intrauterina e neonatal:
○ 16% das crianças com DDQ nascem em apresentação pélvica. Determinadas
posições intrauterinas são mais associadas à DDQ do que outras, sobretudo
com hiperflexão do quadril e joelhos estendidos.
○ Após o nascimento, crianças que ficam em posição de extensão de quadril
(como os nativo americanos Navajo) têm uma incidência muito maior de
DDQ.

● Restrição intra-útero:
○ Qualquer condição que restrinja o movimento do feto dentro do útero pode
predispor ao desenvolvimento de DDQ. Algumas dessas condições são:
■ Primeira gestação;
■ Oligodramnia;
■ Gemelaridade
○ Alguns achados no exame físico do RN podem sugerir a restrição intrauterina,
como:
■ Metatarso aduto: 1 a 10% de associação com DDQ.
■ Torcicolo congênito: 5-20% de associação com DDQ.
OBS: pé torto congênito não parece ter relação significativa com DDQ.
● História familiar positiva: foi analisado num estudo que o risco de desenvolver DDQ
era de 34% em gêmeos idênticos e apenas 3% em irmãos não gêmeos.
● Hipotireoidismo
Clínica:
● Até 6 meses:
○ Manobra de Barlow: o examinador tenta luxar a cabeça femoral para fora do
acetábulo. O quadril é aduzido e é feita uma pressão de anterior para
posterior o quadril posteriormente. Os dedos do examinador são
posicionados sobre o trocanter maior.
○ Manobra de Ortolani: o examinador tenta reduzir um quadril luxado. Ele
segura a coxa da criança entre o polegar e o indicador, e, com o 4° e 5° dedos,
levanta o grande trocanter ao mesmo tempo que abduz o quadril. Quando o
teste é positivo, a cabeça femoral desliza para dentro do acetábulo, gerando
um clunk palpável, mas não audível.

○ Sinal de Klisic: o examinador coloca um dedo na EIAS e outro no trocanter


maior. No paciente normal, esses dois pontos seguem uma linha que cruza a
cicatriz umbilical. No paciente com DDQ, essa linha segue abaixo do umbigo.
Isso ocorre, pois o trocanter maior fica mais proximal. Esse sinal é mais
confiável para DDQ bilateral.

● Após 6 meses:
○ Sinal de Hart: é a limitação da abdução do quadril afetado. Isso é melhor
visto tentando abduzir os dois quadris ao mesmo tempo (é o sinal mais
confiável).
○ Sinal de Galeazzi: é o encurtamento aparente da coxa, que é melhor visto ao
se flexionar os dois quadris em 90°, comparando a altura dos dois joelhos.

○ Sinal de Peter Bade: compara as pregas glúteas de cada lado. No lado


subluxado ou luxado, como a coxa está “diminuída”, vemos mais pregas do
lado afetado.

○ Hiperlordose lombar: é um dos sinais presentes na DDQ bilateral. Essa


lordose é resultado da contratura em flexão do quadril, que geralmente está
presente. A abdução é limitada mas simétrica.
● Criança deambuladora:
○ Estudos recentes mostraram que não há atraso no início da marcha dessas
crianças.
○ O lado afetado fica encurtado e a criança anda na ponta dos pés. A cada
passo, a pelve cai, à medida que o quadril deslocado aduz. É a marcha de
Trendelenburg.
○ Quando a criança tenta se apoiar sobre o lado afetado, ela inclina para o lado
afetado (sinal de Trendelenburg).
○ Quadris displásicos sem subluxação costumam causar dor e desenvolver
alterações degenerativas ao longo do tempo. Estima-se que 20 a 50% dos
casos de artrose degenerativa do quadril sejam resultado de subluxação ou
displasia acetabular residual.
○ O quadril subluxado gera dor progressiva em um ou nos dois quadris. A
subluxação severa causa sintomas na 2a década de vida; os casos moderados
geram dor na 3a e 4a décadas de vida e os mais leves, entre a 5a e 6a décadas
de vida.
○ O quadril totalmente luxado causa sintomas mais tardiamente do que o
subluxado.
○ Dores no quadril, joelho e costas são notadas em metade dos pacientes com
DDQ.

Fisiopatologia:
● Quando há DDQ, o fêmur afetado desliza para dentro e para fora do acetábulo
espontaneamente.
● Para que isso ocorra, o labrum posterossuperior torna-se evertido e hipertrófico,
perdendo sua margem afiada na área por onde a cabeça femoral desliza (essa
transformação é chamada de neolimbus). A cápsula fica hiperelástica e alongada e o
ligamento redondo fica alongado.
● Nos quadris que permanecem luxados, novas barreiras para a redução se
desenvolvem.
○ O tecido adiposo profundamente ao acetábulo conhecido como pulvinar
aumenta em espessura e pode impedir a redução.
○ O ligamento redondo também fica espessado e alongado, ocupando um
maior espaço no acetábulo.
○ O ligamento transverso do acetábulo também torna-se hipertrofiado,
podendo impedir a redução.
○ A cápsula inferior do quadril assume forma de ampulheta, podendo,
eventualmente, apresentar uma abertura menor do que o diâmetro da
cabeça femoral. O iliopsoas, que passa por esse istmo, contribui para esse
estreitamento.
● Após a redução da cabeça femoral, o acetábulo se remodela gradualmente,
aumentando sua profundidade e o ângulo acetabular torna-se mais horizontal.
● Se o quadril permanece deslocado, outras alterações ocorrem, como:
○ O teto acetabular torna-se mais oblíquo;
○ A concavidade torna-se achatada;
○ A parede medial do acetábulo fica espessada (pode ser visto como uma
alteração na lágrima acetabular no RX);
○ A cabeça femoral luxada fica oval e achatada (mais na idade adulta);
○ O acetábulo passa a ser preenchido por tecido fibroso;
○ Os músculos que se inserem no fêmur proximal estão encurtados e
orientados mais horizontalmente.

● Quadris com DDQ têm o acetábulo excessivamente antevertido.


● Achados radiográficos tardios são esclerose subcondral, formação de cistos no
acetábulo e na cabeça femoral, osteófitos e perda da cartilagem articular.
Diagnóstico:
● RN:
○ Se o exame físico tiver os testes de Barlow e Ortolani positivos, já está
indicada a realização de USG e iniciar o tratamento com suspensório de
Pavlik.
○ Se o exame físico for normal, porém houver fatores de risco presentes, está
indicado o USG para avaliar os parâmetros para acompanhamento.
OBS: no RN, a radiografia pode não mostrar alterações significativas, pois o
núcleo de ossificação secundário da cabeça femoral só aparece entre 4 e 6
meses.
● Crianças mais velhas: se temos sinais sugestivos de DDQ em crianças mais velhas,
devemos complementar o diagnóstico com radiografia (> 4 a 6 meses).
USG - método de Graf:
● O paciente fica em decúbito lateral, com quadris fletidos em 45°, rodados
internamente em 15° e o USG é colocado na região do trocanter maior.
● Primeiro identificamos o ílio e traçamos uma linha que o tangencia, bissectando a
cabeça femoral - essa é a baseline.
● Em seguida, traçamos mais duas linhas: uma que tangencia o ísquio e outra que
tangencia a musculatura abdutora.
● Ângulo alfa: é formado entre a baseline e a linha que tangencia o ísquio. Esse ângulo
mede o teto ósseo, que tende a estar diminuído na DDQ (< 60°).
● Ângulo beta: é formado entre a baseline e a linha que tangencia a musculatura
abdutora. Esse ângulo mede o teto cartilaginoso, que tende a estar aumentado na
DDQ (> 55°).

Classificação de Graf:
● Baseada nos achados ultrassonográficos dos ângulos alfa e beta.
● Divide os pacientes em 5 classes progressivas em relação à gravidade.
● Posteriormente, a classe 2 foi subdividida em 4 tipos.

Classe Alfa Beta Descrição Tratamento

1 > 60° < 55° Normal Acompanhar

2 43-60° 55-77° Displasia? Varia*

3 < 43° > 77° Subluxado Pavlik

4 Imensurável Imensurável Luxado Pavlik


*
● 2a: é uma criança com < 3 meses, em que podemos fazer apenas o
acompanhamento com imagens.
● 2b: é uma crianças > 3 meses, em que já é necessário instituir o tratamento com
suspensório de Pavlik.
● 2c: há uma deficiência acetabular (eminência de deslocamento), também sendo
necessário o tratamento com Pavlik.
● 2d: há uma eversão do labrum, também sendo necessário o tratamento com Pavlik.
Radiografia:
● No RN com DDQ típica, o quadril instável pode aparecer radiograficamente normal.
● Quando a criança tem entre 3 e 6 meses de idade, alguns marcos da pelve imatura
ajudam a avaliar a presença de luxação:

○ Linha de Hilgenreiner: é a linha que passa pela cartilagem trirradiada,


paralela ao solo.
○ Linha de Perkin: é perpendicular à linha de Hilgenreiner e passa através da
margem lateral do acetábulo.
OBS: as linhas de Hilgenreiner e de Perkins definem os quadrantes de
Ombredane. No quadril normal, o canto metafisário medial do colo femoral
deve ficar no quadrante ínfero-medial de Ombredane. Na DDQ, esse
parâmetro se altera.
○ Linha de Shenton: é uma curva que começa no trocanter menor, passa pelo
colo femoral e se continua com o teto do forame obturatório. Esse arco fica
quebrado na DDQ.
○ Índice acetabular: é o ângulo formado entre a linha de Hilgenreiner e a linha
ao longo da superfície acetabular. O valor normal é de 25-30° e ele aumenta
na DDQ, indicando que o acetábulo está mais verticalizado.
○ Ângulo de Wiberg (centro-borda): deve ser avaliado na criança mais velha.
Esse ângulo é formado pela junção da linha de Perkin com a linha que
conecta a margem lateral do acetábulo ao centro da cabeça femoral. Em
crianças entre 6 e 13 anos, o valor de referência é de 25-40°, estando
diminuído na DDQ.

● Tríade de Putti: é a luxação do quadril + hipoplasia da cabeça femoral + displasia


acetabular.
Tratamento:
● Suspensório de Pavlik: indicado para pacientes recém nascidos até 6 meses de
idade. Devemos ter alguns cuidados na colocação desse suspensório:

○ Tira intermamilar: é a primeira a ser colocada.


○ Tira anterior dos MMII: tem a função de limitar a extensão do quadril.
○ Tira posterior dos MMII: tem a função de limitar a adução do quadril.
○ Posição ideal: o quadril deve ser mantido em 90-120° de flexão e 30-40° de
abdução.
■ Se a flexão for < 90° não ocorre a redução e se for > 120°, aumenta o
risco de paralisia do nervo femoral.
■ Se a abdução for > 40°, aumenta-se o risco de necrose avascular da
cabeça femoral.
○ Tempo de uso: não é consenso, porém costuma-se indicar o uso durante 23 a
24h por dia, durante 6 a 12 semanas.
● Imobilização gessada: indicada para pacientes de 6 meses a 2 anos e para aqueles
com doenças neuromusculares, em que o Pavlik não é indicado. O objetivo da
imobilização é manter a redução, que pode ser feita de forma fechada ou aberta,
dependendo do caso. A posição ideal de redução é de 95° de flexão e 45° de
abdução. As principais estruturas que impedem a redução fechada por interposição
são:
○ Cápsula medial (principal);
○ Pulvinar;
○ Ligamento redondo;
○ Iliopsoas;
○ Labrum invertido e
○ Ligamento transverso do acetábulo
● Tração: uma das formas de auxiliar a redução fechada é a realização de tração, que
permite uma redução mais suave e com menor risco de necrose avascular da cabeça
femoral.
● Redução aberta: indicada principalmente para pacientes > 2 anos, em que já há um
encurtamento importante da musculatura, o que impediria a redução fechada e
aumentaria o risco de NAV, devido ao aumento de pressão sobre a cabeça femoral
reduzida bruscamente. Muitas vezes, além da redução aberta, é necessário o
encurtamento femoral.
● Osteotomias acetabulares de reconstrução: indicadas para pacientes < 8 anos em
que é possível fazer a redução concêntrica da articulação.
○ Redirecionamento:
■ Salter: é uma osteotomia que faz um fulcro na sínfise púbica, indicada
para menores de 8 anos. É retirado um enxerto da crista ilíaca, que é
colocado na osteotomia para aumentar a cobertura acetabular e
fixado com 2 fios de K. Ela aumenta a cobertura acetabular
anterolateral, porém perde cobertura posterior.
■ Tripla de Steel: é uma osteotomia que faz um fulcro na cartilagem
trirradiada aberta, em que é o ilíaco e os dois ramos púbicos são
cortados.
■ Tripla de Tonnis: é uma osteotomia que faz um fulcro na cartilagem
trirradiada aberta, em que o púbis, o ílio e o ísquio são cortados.

■ Ganz: é indicada nos pacientes > 15 anos, com cartilagem trirradiada


já fechada, sendo fixada com parafusos. É uma osteotomia mais
complexa, de difícil realização técnica.

○ Diminuição do volume acetabular:


■ Pemberton: semelhante à osteotomia de Salter, porém o enxerto tem
formato semilunar.
■ Dega: é uma osteotomia que faz um fulcro na cartilagem trirradiada
aberta.

● Osteotomias acetabulares de salvamento: indicadas para pacientes mais velhos com


incapacidade de obter uma redução concêntrica da articulação. Existem duas
principais:
○ Chiari: é feito um corte para medializar o acetábulo.

○ Shelf: é feita uma janela na crista ilíaca que é rebatida para formar uma
cobertura sobre a cabeça femoral.

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