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7.ª AULA

TUTELA DA NORMA JURÍDICA

Qual o aspeto mais saliente e visível do fenómeno jurídico e que o distingue das demais
normas (religiosas, cortesia, etc.)?

A coercibilidade. Por detrás da ordem jurídica está o aparelho coercitivo do


Estado.

E de que forma o Estado (ou o particular) pode exercer esta tutela?

A tutela desdobra-se numa pluralidade de reações que vão desde a simples


prevenção até à mais firme punição dos atos ilícitos.

Entretanto, antes de fazemos a análise das mais importantes, vamos apresentar a distinção
entre justiça privada e justiça pública.

Justiça privada e justiça pública123

Tutela privada ou autotutela » aquela que é realizada por particulares, em princípio, pelo
próprio titular do direito (violado), tendo em vista reparar essa violação.

Em vista disso, só é admitida pela lei a título excecional e subsidiário, conforme


prevê os arts. 1.º e 2.º do Código de Processo Civil, pois, como dissemos, é ao
Estado que cabe, em princípio, a realização dos atos de coerção tendentes a
prevenir ou a sancionar a violação das normas jurídicas.

Exemplos: Ação direta (art. 336.º do CC); legítima


defesa (art. 337.º do CC); direito de retenção (art. 754.º
do CC); estado de necessidade (art. 339.º do CC); etc. 4

1
A. SANTOS JUSTOS, Introdução ao Estudo do Direito, 14.ª ed. Coimbra: Petrony Editora, 2023. p. 147
e ss.
2
Sandra Lopes LUÍS, Introdução ao Estudo do Direito – Sumários das Aulas Práticas e Hipóteses
Resolvidas, 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022. p. 199 e ss..
3
Manuel Fernandes COSTA, Noções Fundamentais de Direito. Coimbra: Serviços de Acção Social da UC,
2000. p. 172.
4
Carlos José BATALHÃO, Direito Noções Fundamentais. Porto: Porto Editora, 2012. p. 29.
2

Tutela pública ou estadual (heterotutela) » efetivamente, é ao Estado, através do seu


aparelho, que cabe fazer cumprir as normas, pelo que a realização daqueles atos de
coerção visando a prevenção – tutela preventiva – ou punição – tutela compulsiva5 ou
tutela repressiva6 - das violações, deve competir-lhe em exclusividade. Porque está em
causa a tutela de direitos (subjetivos) alheios, esta tutela pública também se designa
heterotutela.

Tutela preventiva

Tutela preventiva » conjunto de medidas tendentes a impedir a violação da ordem jurídica


e a evitar a inobservância das normas jurídicas. Funciona antes da violação do direito e
procura evitá-la, dificultando-a ou tornando-a incoveniente.

E quais são as formas mais frequentes da tutela preventiva?

São as medidas de segurança e os procedimentos cautelares.

a) Medidas de segurança » são as que têm por objetivo essencial colocar certa(s)
categoria(s) de pessoas consideradas perigosas, especialmente aptas a praticar
crimes, em situação de não os praticar ou dissuadi-las de os praticar. Permitem
não só colocar certas categorias de pessoas particularmente perigosas em situação
de não atuarem como se receia, mas também, se possível, curar essa aptidão. 7

Exemplo: A autoridade pública, que fiscaliza, limita e sujeita a


autorização prévia certas atividades para evitar danos sociais a
que podiam conduzir. É especialmente a função das várias
polícias (de segurança, sanitária, económica, de viação, florestal,
fiscal, etc.).

Exemplo: A inabilitação do autor dum determinado delito para o


exercício de certa atividades ou profissão. É o caso, por exemplo,
da inibição do exercício das responsabilidades parentais, da

5
Visa evitar que a violação já verificada se prolongue.
6
Visa a aplicação da sanção prevista em virtude da violação da norma.
7
A. SANTOS JUSTOS, Introdução ao Estudo do Direito, 14.ª ed. Coimbra: Petrony Editora, 2023. p. 149.
3

tutela ou curatela aplicável a quem praticou crimes contra a


liberdade e autodeterminação sexual (arts. 163.º a 176.º e 179.º
do CP) em relação a quem, pela sua conduta, é de termer uma
mau exercício destas funções (arts. 1913.º, 1915.º, 1933.º, e
1970.º do CC); da interdição de determinadas atividades a quem
for condenado por crime com grave abuso da profissão, comércio
e indústria (art. 100.º do CP); da cessão da licença de condução
de veículo motorizado ao condutor condenado por crime na
condução ou com grosseira violaçõa dos deveres quem
incumbem a um condutor (art. 101.º do CP).

b) Procedimentos cautelares » são as medidas que podem ser tomadas pelo titular
de um direito com o objetivo de evitar a sua violação, a título subsidiário (têm,
geralmente, de ser acompanhadas por uma ação judicial principal).

Exemplos: Tais procedimentos permitem que seja fixada uma


quantia mensal a título de alimentos provisórios; que o credor,
com justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu
crédito, requeira a apreensão judicial (arresto) de bens do
devedor; que o ofendido no seu direito de propriedade em
consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou
ameace causar dano requeira a sua imediata suspensão; etc. Vide
art. 1276.º do CC (ação de prevenção); art. 619.º do CC (arresto
de bens); art. 397.º do CPC (embargo de obra nova); art. 403.º do
CPC (arrolamento); art. 322.º do CPC (cautelares não
especificadas); etc.

Tutela compulsiva (medidas compulsórias)

Tutela compulsiva » conjunto de medidas tendentes a atuar sobre o infrator de certa


norma jurídica, de forma a levá-lo a adotar determinado comportamento adequado que,
até ali, omitiu. Já há violação de uma norma, mas pretende-se que esse comportamento
não se prolongue.

Exemplo: Art. 829.º-A do CC (sanção pecuniária compulsória)

Exemplo: Art. 754.º do CC (direito de retenção).


4

Tutela repressiva

Tutela repressiva » conjunto de sanções que podem ser aplicáveis em consequência da


violação das normas jurídicas. Trata-se de reações de caráter reintegrativo ou
compensatório que intentam sanar o mal ou os danos advenientes da infração.

E quais são essas reações?

Podemos falar das sanções do despedimento, da multa, da repreensão, da


suspensão temporária de funções, da aposentação compulsiva, da demissão, do
divórcio (sanção), da inibição do poder paternal, da perda de certos benefícios,
etc.

A lista acima é meramente exemplificativa. 8

Vejamos, agora, algumas delas com mais detalhes.

1. Reconstitutivas » restabelecem a situação que existiria se a norma jurídica não


tivesse sido violada. A sanção reconstitutiva pode revestir os seguintes aspetos:

a) Reconstituição em espécie (ou in natura) » consistem na reconstituição


em espécie – in natura – da situação a que se teria chegado com a
observância da regra. Repõe a situação anterior à violação da norma, sem
o recurso a algum bem inexistente nesse momento. É a sanção que o
direito privilegia.

Exs. A construção, de má fé, duma obrta em terreno


alheiro: o dono do terreno pode exigir que seja desfeita e
o terreno restituído ao seu primitivo estado à custa do seu
autor; e a obrigação de o responsável mandar reparar o
veículo sinistrado num acidente de viação; etc.

b) Execução específica » traduz-se na realização da prestação imposta


pela norma ofendida.

8
A. SANTOS JUSTOS, Introdução ao Estudo do Direito, 14.ª ed. Coimbra: Petrony Editora, 2023. p. 139.
5

Exs.: Se A deve a B uma prestação de objeto fungível


(50.000 euros) e não a cumpre, é sempre possível, através
de procedimentos executivos, satisfazer em espécie o
interesse do credor. A apreensão de dinheiro ou de outros
bens (a vender, ulteriormente, por ordem do tribunal) do
devedor permitirá a entrega ao credor daquilo que lhe era
devido. Migaitas celebrou um contrato de compra e
venda com Joni Sound, segundo o qual este deveria
entregar-lhe um autorrádio. Acontece que Joni Sound
não o fez, violando, assim, uma norma jurídica, pelo que
Migaitas pode exigir em tribunal a apreensão do
autorrádio e a sua entrega. Vide art. 827.º do CC.

c) Indemnização específica » repõe a situação com um bem que, não


sendo o que foi danificado, permite desempenhar a mesma função.

Ex. O caso de algúem que é obrigado a restituir um


objeto igual ao que destruiu.

2. Compensatórias » funcionam quando a reconstituição não é, por alguma razão,


possível. Através delas não se repõe a situação anterior à violação da norma
jurídica, mas antes procura proporcionar-se ao lesado uma compensação, uma
contrapartida pela lesão sofrida. A tutela através destas sanções realiza-se sempre
por meio do pagamento de uma indenização pelos danos sofridos pelo lesado.

Ex.: Se em consequência de uma agressão, A sofre dores


ou se, em consequência de um homicídio, os familiares
da vítima padecem do desgosto do desaparecimento de
um ente querido.

Como avaliar pecuniariamente aquelas dores e estes desgostos?

Através de uma indenização por danos morais (art. 496.º do CC).

3. Sanções punitivas » aplicadas em caso de violações mais graves de normas


jurídicas. Ao seu autor, a ordem jurídica aplica-lhe uma pena, que se traduz num
sacrifício ou sofrimento, variável em função da sua culpa.
6

Podem ser:
a) Criminais » as mais graves (Direito Penal).
b) Civis » definida pelo Direito Civil, como a incapacidade sucessória
por motivo de indignidade, etc.
c) Disciplinares » infração de deveres de determinadas categorias
profissionais, como o despedimento, a supensão laboral, etc.
d) Contraordenacionais » punem certas condutas suscetíveis de lesarem
interesses fundamentais, como infrações de trânsito, etc.

4. Preventivas » visam afastar futuras violações, cujo receito é justificado pela


prática dum determinado ilícito.

Exs. Liberdade condicional que pode aplicar-se a quem


condenado a prisão, cumpriu metade da pena no mínimo
de 6 meses, teve bom comportamento prisional e
mostrou capacidade para se readaptar à vida social;
inabilitação para o desempenho de funções públicas, em
consequência da prática de determinados atos delituoso,
etc.

5. Compulsórias » procuram que, embora tardiamento, o infrator adote a conduta


devida e, portanto, que a violação não se prolongue.

Ex. A prisão em que incorre quem não cumprir a sua


obrigação de prestar alimentos, embora esteja em
condições de prestar, etc.

Ineficácia jurídica

Especial referência merece a ineficácia jurídica. Estamos perante uma reação da ordem
jurídica que impede que os atos jurídicos desconformes com a lei produzam todos ou
alguns efeitos jurídicos que, em condições normais produziriam.

Ineficácia jurídica » se as normas jurídicas forem violadas no domínio dos


negócios jurídicos, esta violação será sancionada através da decretação da
chamada ineficácia negocial.
7

E como se dá a concretização desta sanção?

Através das figuras da invalidade negocial (anulabilidade e nulidade) e da


inexistência.

Vejamos estas três: i) Anulabilidade; ii) Nulidade; e iii) Inexistência.

i) Anulabilidade » representa a forma menos severa de invalidade e


carateriza-se por um negócio anulável ser tido, em via de princípio, como
válido.

E porquê?

Se não for anulado dentro dos prazos legais e a pedido das pessoas
legitimadas, permanecerá válido, e, como tal, produzirá os seus efeitos
normais.

E onde está previsto?

No art. 287.º do CC: “1. Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade


as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano
subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento. 2.
Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade
ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por
via de excepção.”9

Exs.: Negócios jurídicos celebrados por menores (art.


122.º e ss. do CC), interditos (art. 138.º e ss. do CC) e
inabilitados (art. 152.º e ss. do CC). Vide arts. 125.º,

9
E o que isso quer dizer? 1) A anulabilidade só pode ser invocada pelas pessoas que titulam os interesses
protegidos (vítima, representante legal do interdito, etc.); 2) Não é permitido ao juiz tomar dela
conhecimento oficioso; 3) Deverá ser levantada no decurso do ano subsequente à cessação do vício (no
caso dos menores, quando atingirem a maioridade); 4) Pode ser sanada.
8

148.º e 156.º do CC, que prevê a anulabilidade destes


negócios jurídicos.10

Exs.: As declarações negociais viciadas por erro, dolo ou


coação (arts. 247.º a 252.º do CC.

Exs.: Venda a filhos ou netos (art. 877.º, n.º 2, do CC),


atos praticados pelos pais sobre os bens dos filhos (art.
1893.º do CC).

ii) Nulidade » é mais gravosa que a anulabilidade.

E porquê?

Isso deve-se, fundamentalmente, ao caráter público dos interesses


protegidos pelas nulidades.

E onde está prevista?

No art. 286.º do CC: “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer


interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”11

Exs.: Negócios simulados (arts. 240.º a 243.º do CC),


reserva mental conhecida do declaratário (art. 244.º do
CC), venda de bens alheios (art. 892.º do CC), doação de
bens alheios (art. 956.º do CC), quando o negócio
jurídica não observa a forma prevista em lei (art. 220.º
do CC), negócio impossível ou contrário à lei (art. 280.º
do CC), etc.

iii) Inexistência » não produz nenhum efeito jurídico.

E quando isso ocorre?

10
Manuel Fernandes COSTA, Noções Fundamentais de Direito. Coimbra: Serviços de Acção Social da
UC, 2000. p. 188.
11
O que isso quer dizer? 1) Que não precisa ser declarada judicialmente e o juiz, mesmo que a parte não
invoque, reconhecê-la. 2) Qualquer interessado por levantá-la. 3) o Decurso do tempo não sana a nulidade.
9

Nos casamentos inexistentes (art. 1628.º do CC) e na categoria geral


associada à expressão “a declaração não produz qualquer efeito”.

Ex.: As declarações, quando “o declarante não tiver a


consciência de fazer uma declaração negocial” – o
movimento de cabeça ou do braço é provocado por uma
convulsão epilética.

Ex.: As declarações, quando o declarante “for coagido


pela força física a emiti-la” – o declarante é convertido
em simples instrumento da vontade do coator, por ex.,
quando assina um documento por a sua mão ser
conduzida por outrem com força irresistível.

Ex.: Os negócios jurídicos concluídos sob o nome de


outrem, como a falsificação da assinatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BATALHÃO, Carlos José, Noções Fundamentais, 3.ª edição, Porto Editora, Porto, 2022.

A. SANTOS JUSTOS, Introdução ao Estudo do Direito, 14.ª ed. Coimbra: Petrony Editora, 2023.

Sandra Lopes LUÍS, Introdução ao Estudo do Direito – Sumários das Aulas Práticas e Hipóteses
Resolvidas, 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022. p. 23 a 26.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

Manuel Fernandes COSTA, Noções Fundamentais de Direito. Coimbra: Serviços de Acção


Social da UC, 2000.

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