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TEORIA GERAL DA RELAÇÃO JURÍDICA

Exame final (época especial) | 11 de setembro de 2020

Advertências:
As perguntas devem ser lidas cuidadosamente e as respostas devem ser concisas, objetivas e devidamente
justificadas, sempre que possível com recurso à lei. A ordem de resposta às perguntas pode ser alterada, desde
que as respostas identifiquem claramente a questão a que se referem. É permitida a consulta de quaisquer
diplomas legais.
O tempo disponível é de 2h30m.
Cotação das perguntas: I – 6,5 v., II – 7,5 v. e III – 6v.

Gonçalo, interessado na compra de um saco-cama resistente a baixas temperaturas, enviou em 1 de Junho


de 2008 um e-mail para uma loja onde dizia: “Estou interessado na compra de um saco-cama modelo Everest
500 (que vi no vosso catálogo on-line), mas só se a temperatura de conforto do mesmo se estender até -20º C
(vinte graus Celsius negativos), ou temperatura ainda mais baixa, e se o preço não ultrapassar os € 300”.
Da loja, no dia seguinte, recebeu o seguinte e-mail: “Confirmamos que temos esse modelo em stock e que o
limite da temperatura de conforto é de -25º C; porém, o saco custa € 319, devendo este valor ser pago aquando
da receção do produto”.
No dia 4 de Junho, Gonçalo respondeu: “Obrigado pela resposta. Queria então encomendar o saco-cama
em questão”. A resposta foi de imediato recebida pelo destinatário.
Só no dia 12 de Junho recebeu nova resposta, do seguinte teor: “Pedimos desculpa pela demora, mas
verificámos que, afinal, não tínhamos o modelo encomendado em stock. Neste momento já temos a
possibilidade de o entregar em 48 horas, e, caso continue interessado, faremos um desconto de € 15 no preço
como compensação pela demora”.
No dia 13, pelas 13h, Gonçalo respondeu: “Obrigado pelo vosso e-mail. Continuo interessado e agradeço o
desconto. Fico a aguardar a entrega.”. A mensagem foi recebida às 13h02m.
Diga se ficou concluído algum contrato, e quando, qualificando todas as fases da negociação.
Tópicos:
A primeira comunicação de Gonçalo (1/6/2008) é um mero pedido de informação, que, por isso, não traduz qualquer vontade
de vinculação jurídica – 0,5 v.
A comunicação da loja (2/6/2008), ainda que precisa (porque descreve o produto em que Gonçalo está interessado), também
é uma mera resposta ao pedido de informação de Gonçalo, e, também esta, não revela qualquer vontade de vinculação jurídica – 0,5
v.
A comunicação de Gonçalo de 4/6 já configura uma proposta contratual, pois revela uma vontade firme e precisa de contratar,
ou seja, uma vontade imediata de vinculação jurídica através da celebração de um contrato de compra e venda, e está formulada em
termos tais que basta um simples “sim” ou expressão equivalente por parte do proprietário da loja para que o contrato fique celebrado
(de notar que o objeto e demais condições do contrato estão definidos por referência à troca de comunicações anterior) (1,0)
Esta proposta é uma declaração que tem um destinatário determinado e, por isso, ganhou eficácia no momento em que foi
recebida pelo mesmo destinatário, de acordo com o art. 224.º, n.º 1, 1.ª parte, CC – 0,5 v

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A proposta manteve-se eficaz pelo prazo de cinco dias, nos termos do art. 228.º, n.º 1, alínea c) (proposta dirigida a pessoa
ausente) a contar da data em que a mesma foi expedida (4/6), pelo que caducou no dia 9/6, uma vez que não foi aceite – 0,5
A comunicação do proprietário da loja, do dia 12, configura nova proposta contratual, pois revela uma vontade firme e precisa
de contratar, ou seja, uma vontade imediata de vinculação jurídica através da celebração de um contrato de compra e venda, e está
formulada em termos tais que basta um simples “sim” ou expressão equivalente por parte do proprietário da loja para que o contrato
fique celebrado (de notar que o objeto e demais condições do contrato estão definidos por referência à troca de comunicações anterior)
– 1,0 v.
Esta proposta é uma declaração que tem um destinatário determinado e, por isso, ganhou eficácia no momento em que foi
recebida pelo mesmo destinatário, de acordo com o art. 224.º, n.º 1, 1.ª parte, CC – 0,5 v
A proposta manter-se-ia eficaz pelo prazo de cinco dias, nos termos do art. 228.º, n.º 1, alínea c) (proposta dirigida a pessoa
ausente) a contar da data em que a mesma foi expedida (12/6) – 0,5
A resposta de Gonçalo do dia 13 revela uma adesão incondicional aos termos da proposta, ou seja, traduz uma aceitação da
mesma – 0,5 v.
Esta aceitação é uma declaração que tem um destinatário determinado e, por isso, ganhou eficácia no momento em que foi
recebida pelo mesmo destinatário, às 13.02 horas do dia 13, de acordo com o art. 224.º, n.º 1, 1.ª parte, CC (0,5 v.), momento
em que o contrato ficou concluído – 0,5 v.

António é casado com Berta e tem dois filhos, Carla e Duarte (de 42 e 44 anos, respetivamente). António é
empresário (detém 90% das ações de uma sociedade de construção civil — Mar de Betão SA) e tem um grande
desgosto no facto de nenhum dos seus filhos pretender continuar a exercer a sua atividade.
Tirando partido desse desgosto, o seu sobrinho, Ernesto, tem vindo a insinuar-se junto de António,
convencendo-o de que ele, Ernesto, pretende continuar a atividade do tio.
Confortado com esta possibilidade, António decidiu retirar-se, e perante as garantias de Ernesto de que este
continuaria a gerir a empresa, António resolveu doar-lhe uma parte das ações por si detidas (750.000 ações
correspondendo a 75% do capital social). Todavia, para não magoar os filhos de António, este e Ernesto
fingiram celebrar uma compra e venda.
Assim, em 30 de Junho de 2007, António e Ernesto celebraram uma compra e venda de 750.000 ações
representativas do capital da Mar de Betão SA pelo valor de € 750.000,00. Na verdade, as ações foram
transmitidas e entregues a Ernesto sem que este pagasse qualquer quantia a António.
Em Setembro do mesmo ano, porém, Ernesto (que nunca tinha tido qualquer intenção de se dedicar à
construção civil) vendeu as mesmas ações a Francisco por € 3.000.000,00, o qual desconhecia tudo o que se
tinha passado antes.
Em face desta venda, António confessou o que tinha feito aos seus filhos, os quais, em Outubro, propuseram
uma ação visando reaver as ações.
a) Os filhos de António terão êxito na sua pretensão?

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R.: negócio simulado; requisitos da simulação (explicar – não basta transcrever a lei!) (240.º/1) [1v.]; simulação relativa
objectiva quanto à natureza do negócio [0,5v.]; simulação inocente* [0,25v.]; nulidade do negócio simulado (240.º, n.º 2) [0,5v.];
apreciação autónoma do negócio dissimulado (241.º), que é válido, quer no plano substantivo, quer no plano formal (até porque, a
ser aplicável o artigo 947.º, n.º 2, o enunciado refere ter havido lugar à entrega das acções, i.e., dos títulos representativos das mesmas)
[0,75v.]; validade da compra e venda entre E e F [0,5v.]; filhos de A não têm legitimidade para arguir a nulidade do negócio
simulado, por um lado porque, em vida do pai, não são «interessados» (artigo 286.º), por outro porque, embora sejam herdeiros
legitimários (cf. artigo 2157.º) e «pretendam agir em vida do autor da sucessão», a compra e venda simulada não teve «o intuito de
os prejudicar» (artigo 242.º, n.º 2) [1v.]. De resto, e ainda que tivessem legitimidade, concluiu-se já que o negócio dissimulado e a
ulterior venda a F são válidas, pelo que a pretensão dos filhos de A estaria condenada ao insucesso. [0,75v.]
* Nota: caso se entendesse que basta o prejuízo efectivo, não sendo necessário o intuito de prejudicar (Carvalho Fernandes) ou
que o intuito de prejudicar se verifica «quer quando haja uma intenção directa de os [herdeiros legitimários] de os prejudicar quer
quando haja uma simples indiferença» (A. Barreto Menezes Cordeiro), os filhos de A teriam legitimidade para arguir a nulidade
do negócio simulado, mantendo-se, porém, a conclusão referida no final do parágrafo anterior.
b) Imagine que, na mesma altura, foi proposta uma outra ação com o mesmo objetivo por Gonçalo, credor
de António. Qual será o êxito desta ação?
R.: G é credor; legitimidade para arguir a nulidade proveniente da simulação (286.º, ressalvado também pelo 242.º/1/1.ª p.,
e 605.º/1) [1v.]. Artigo 243.º não é aplicável, dado a nulidade proveniente da simulação ser invocada por um credor (de um
simulador) e não por um simulador [0,25v.]. Quanto ao artigo 291.º, e muito embora não estejam preenchidos os requisitos de
que depende a sua aplicação (basta ver que não decorreram ainda 3 anos da conclusão do primeiro negócio: cf. artigo 291.º, n.º 2),
a questão (da oponibilidade da nulidade resultante da simulação ao terceiro) é irrelevante [0,25v.]: como acima se referiu, o negócio
dissimulado é válido, pelo que a venda feita a F é também válida. [0,75v.]

Ivan, profissional de Windsurf, necessita de comprar uma nova prancha Free Wave destinada a ondas
particularmente revoltas para um campeonato da atividade que terá lugar em Espinho.
Aproximando-se a data de aniversário de Ivan, a sua namorada Isolda, que nunca praticou Windsurf, decide
oferecer-lhe a referida prancha. Para o efeito, dirige-se ao estabelecimento comercial onde Ivan normalmente
adquire o seu equipamento desportivo e escolhe uma prancha cuja cor lhe agradou especialmente, pensando
que se tratava de uma prancha Free Wave.
No entanto, quando entregou a prancha a Ivan, este, surpreendido, disse-lhe que aquela era uma prancha
Slalom, própria para águas sem ondas, e que, portanto, não era adequada para o campeonato.
a) Isolda pretende desvincular-se do negócio; pode fazê-lo?
R.: Isolda adquiriu a prancha convencida de que se tratava de uma prancha de Free Wave quando, na realidade, isso não se
verificava, ou seja, Isolda fundou a sua vontade de contratar num facto, circunstância ou pressuposto inexistente (ou fundou a sua
vontade de contratar numa representação intelectual inexata da realidade). Estamos perante um erro sobre os motivos. (1 v.)
Em regra, o erro sobre os motivos é irrelevante. Porém, existem exceções. (0,5 v.)

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No caso em análise estamos perante uma dessas exceções, mais concretamente, perante um erro sobre os motivos relativo às
qualidades essenciais (para a declarante, Isolda) do objeto sobre o qual recaiu o negócio (art. 251.º CC), uma vez que o erro incide
sobre uma caraterística do objeto que determina a sua utilidade (a sua suposta aptidão para águas revoltas). (1v.)
Assim, ao abrigo do art. 251.º CC, o erro torna o negócio anulável nos termos do art. 247.º CC, desde que o declaratário (o
vendedor) conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante (Isolda) do elemento sobre o qual incidiu o erro. (1v.)
No caso em apreço, este requisito parece não se verificar, pelo que o negócio é válido. (0,5v.)
b) A resposta seria a mesma caso Isolda tivesse perguntado ao vendedor se aquela prancha era adequada
para ondas revoltas e o vendedor tivesse respondido afirmativamente?
R.: nesta segunda hipótese estamos perante uma situação de dolo (art. 253.º CC). (0,5v.) O vendedor utilizou uma sugestão
(afirmou que a prancha era adequada para ondas revoltas) com a intenção de induzir em erro Isolda, pelo que se trata de dolo
positivo. (0,5v.)
Além disso, trata-se de dolo ilícito pois não estão em causa os denominados artifícios usuais do comércio jurídico (o vendedor
atribui uma qualidade ao objeto que ele manifestamente não tem e que prejudica a sua aptidão para o fim a que se destina),
proveniente do declaratário. (0,5v.)
Assim, o negócio seria anulável nos termos do art. 254.º, n.º 1 CC, e Isolda poderia arguir a anulabilidade do negócio no
prazo de um ano a contar da cessação do vício (art. 287.º, n.º 1 e n.º 2 CC). (0,5v.)
FIM

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