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PSICOPATOLOGIA GERAL

TEXTO COMPLEMENTAR

EXAME PSÍQUICO1

O exame psíquico ou exame do estado mental atual insere-se no contexto da avaliação clínica global do
paciente. Tradicionalmente, o campo da avaliação clínica é coberto pela semiologia médica e, no caso em
particular dos transtornos mentais, pela semiologia psiquiátrica. Por semiologia entende-se o estudo dos
sintomas e sinais das doenças, estudo este que permite ao profissional de saúde identificar alterações físicas
e mentais, ordenar os fenômenos observados, formular diagnósticos e empreender terapêuticas (Sá Júnior,
1988). Os signos e sinais mais importantes para a psicopatologia são os sinais comportamentais objetivos,
verificáveis pela observação direta do paciente, e os sintomas, isto é, as vivências subjetivas relatadas pelos
pacientes, suas queixas, aquilo que o indivíduo experimenta e, de alguma forma, comunica a alguém (Delgado,
1969). A coleta desses sinais e sintomas requer habilidade sutil em formular perguntas adequadas para o
estabelecimento de relação produtiva e a consequente identificação dos signos da doença mental. Neste
sentido, é fundamental o “como” e o “quando” fazer as perguntas, assim como o modo de interpretar as
respostas e a decorrente formulação de novas indagações. De grande importância também é a observação
minuciosa, atenta e perspicaz do comportamento do paciente, o conteúdo de seu discurso e seu modo de falar,
sua mímica, postura, vestimenta, a forma como reage, seu estilo de relacionamento com o entrevistador, assim
como com outros pacientes e com seus familiares.

FORMA E CONTEÚDO DOS SINTOMAS


Em geral, são focados dois aspectos básicos no estudo dos sintomas psicopatológicos: a forma dos sintomas,
isto é, sua estrutura básica, relativamente semelhante nos diversos pacientes, nas diferentes culturas e
momentos históricos (alucinação, delírio, ideia obsessiva, labilidade afetiva 2, etc.), e seu conteúdo, ou seja,
aquilo que preenche a alteração estrutural (conteúdo de culpa, religioso, de perseguição, etc.) (Jaspers, 1979).
O conteúdo é, geralmente, mais pessoal, dependendo da história de vida do paciente, do seu universo cultural
e da personalidade prévia ao adoecimento (Pereyra, 1973). De modo geral, os conteúdos dos sintomas estão
relacionados aos temas centrais da existência humana, tais como a sobrevivência e a segurança, a
sexualidade, os temores básicos (morte, doença, miséria, etc.), a religiosidade, etc. Esses temas representam
uma espécie de “base”, que entra como ingrediente fundamental na constituição da experiência psicopatológica
(Jaspers, 1979).

1 LOUZÃ NETO, Mario Rodrigues; ELKIS, Hélio (org). 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 122-127. (TEXTO ADAPTADO).

2 Dificuldade em controlar as emoções ou pela "flutuação" rápida de humor. Inconstância afetiva.


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AS FUNÇÕES PSÍQUICAS ELEMENTARES E SUAS ALTERAÇÕES
Apesar de ser necessário o estudo analítico das funções psíquicas isoladas e suas alterações, nunca é demais
ressaltar que a separação da vida e da atividade mental em “áreas” distintas ou “funções psíquicas” é um
procedimento essencialmente artificial. Trata-se apenas de estratégia de abordagem da vida mental, que por
um lado é bastante útil, mas, por outro, algo arriscada, pois pode suscitar enganos e simplificações
inadequadas. É útil, porque nos permite o estudo mais detalhado e aprofundado de determinados fatos da vida
psíquica normal e patológica; e é arriscada, pois facilmente passamos a acreditar na autonomia desses
fenômenos, como se fossem “objetos” naturais (Jaspers, 1979).
Com o passar do tempo, na prática clínica diária, passamos inadvertidamente a crer que a memória, a
percepção sensorial, a consciência do eu, a vontade, a afetividade, etc. são áreas autônomas e naturais,
separadas umas das outras e com vida própria. Deixamos de lembrar o que elas realmente são, isto é,
constructos aproximativos da psicologia e da psicopatologia, que permitem a comunicação mais fácil e o melhor
entendimento dos fatos. Que fique claro para o aluno: não existem funções psíquicas isoladas e alterações
psicopatológicas compartimentalizadas desta ou daquela função. É sempre a pessoa, na sua totalidade, que
adoece (Jaspers, 1979). Nas síndromes e transtornos psiquiátricos não se trata apenas de agrupamentos de
sintomas que coexistem com regularidade e revelam, assim, sua origem comum. Os sintomas que os compõem
são ligados estruturalmente entre si. A psicopatologia, na medida que é centrada na pessoa humana, não se
desenvolve a não ser partindo de determinadas síndromes (psicopatologia sindrômica). A psicopatologia
sintomática, enquanto estudo dos sintomas isolados, não passaria de semiologia psiquiátrica rudimentar. As
alterações de funções isoladas constituiriam, em última análise, objeto da neurologia, da neuropsicologia ou da
neurofisiologia, e não da psicopatologia (Minkiwsky, 1966).

AS FUNÇÕES PSÍQUICAS QUE DEVEM SER AVALIADAS


Em relação às funções psíquicas a serem avaliadas no exame do estado mental, vários autores apresentam
diferentes propostas. Neste capítulo, optamos por fazer uma síntese de alguns autores (Delgado, 1969; Nobre
de Melo, 1979; Jaspers, 1979; Sá Júnior, 1988; Bastos, 1997; Dalgalarrondo, 2000) que julgamos terem
organizado tais funções de modo clinicamente útil e relevante.
1. Aspecto geral: verificar atentamente aspectos do cuidado pessoal do paciente, higiene, trajes, postura geral,
mímica, atitude global durante a entrevista (atitude calma, hostil, desconfiada, assustada, apática, desinibida,
indiferente, etc.).
2. Nível de consciência: Estado normal: vigil ou desperto. Alterações quantitativas da consciência:
obnubilação, torpor, sopor, coma. Alterações qualitativas: estado crepuscular (estreitamento súbito e transitório
do campo da consciência), estado dissociativo (desequilíbrio psicológico, havendo alterações na consciência,
memória, identidade, emoção, percepção do ambiente, controle dos movimentos e comportamento), transe
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(Espécie de sono acordado, mas com a presença de atividade motora automática e estereotipada, com a
suspensão parcial dos movimentos voluntários), estado hipnótico. Verificar se há algum rebaixamento do nível
de consciência (torpor ou obnubilação da consciência). Pacientes aparentemente despertos, mas perplexos e
com dificuldade de apreensão do ambiente, podem estar apresentando delirium.
3. Orientação: Verificar a orientação alopsíquica (quanto ao tempo e quanto ao espaço) e a autopsíquica
(quanto a si mesmo). Os pacientes com desorientação temporal ou temporoespacial apresentam
frequentemente quadros de delirium (delirium = estado de confusão mental ou síndrome orgânico cerebral
aguda (delirium é latim para "estar fora de si") é uma síndrome orgânica caracterizada por um rápido deterioro
na atenção, consciência e cognição. O início é rápido variando de algumas horas até poucos dias. Geralmente
o paciente em delirium apresenta sonolência diurna e agitação noturna, causando prejuízos a seu ciclo de sono
e vigília). A desorientação geralmente está associada à diminuição do nível de consciência, a condições de
apatia intensa (nas depressões graves), a quadros demenciais ou de desorganização mental grave
(desagregação esquizofrenia, quadros maníacos intensos, etc.) Questionar o paciente quanto ao tempo – dia
da semana, do mês, mês do ano, ano; quanto ao espaço – cidade em que estamos, bairro, distância da
residência ao hospital; e autopsíquica – nome, quem é o pai e a mãe, profissão, amigos, etc.
4. Atenção: Normoprosexia (funcionamento normal), hipoprosexia (diminuição global da atenção e
concentração). Capacidade de concentração e manutenção da atenção sobre determinado objeto (tenacidade)
e capacidade de mudar de forma flexível de objeto para objeto (vigilância). Verificar se há diminuição global da
atenção e dificuldade de concentração. Distraibilidade e diminuição da capacidade de fixar a atenção são típicos
da síndrome maníaca (hipotenacidade e hipervigilância).
5. Memória: Memória imediata, recente e remota; memória de fixação (que implica percepção, registro e
fixação) e memória de evocação. Amnésias orgânicas (menos seletivas psicologicamente, mais prejudicados
os mecanismos de fixação do que de evocação), amnésias psicogênicas (mais seletivas psicologicamente,
mais conteúdos autobiográficos). Pacientes com quadros demênciais devem sempre, por definição, apresentar
algum grau de dificuldade mnêmica.
6. Sensopercepção: Ilusão (percepção deformada de um objeto real), alucinação (percepção sem a presença
de objeto estimulante, estímulo percebido como vindo de fora do corpo, de forma nítida e corpórea). As ilusões
e alucinações visuais são mais frequentemente de etiologia orgânica, enquanto as auditivas estão mais
associadas às psicoses funcionais (esquizofrenia, mania e depressão psicóticas).
7. Pensamento: Verificar o curso (velocidade e modo de fluir), a forma (estrutura do pensamento e o conteúdo
[temas principais]) do pensamento do paciente. Verificar se o pensamento está lentificado (síndromes
depressivas, delirium, demências) ou acelerado (síndromes maníacas). Verificar se o pensamento está
desorganizado, incoerente ou de difícil compreensão (fuga de ideias, descarrilhamento, desagregação,
pensamento confusional, etc.).

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8. Linguagem: Alterações orgânicas da linguagem: afasias, alexias, agrafias. Nas afasias de expressão, há
diminuição da fluência verbal e frequentes erros gramaticais, sendo a compreensão preservada. Nas afasias
de compreensão, há fluência normal ou aumentada, a fala é incompreensível e o paciente não entende o que
lhe dizem. Alterações psiquiátricas da linguagem: inibição da linguagem, mutismo, loquacidade (aumento do
fluxo sem incoerência), logorréia (aumento do fluxo com incoerência), perseverações verbais, ecolalia,
mussitação, neologismos.
9. Juízo de realidade: Identificar se o juízo falso é ideia prevalente por importância afetiva, crença cultural ou
verdadeiro delírio. Descrever as características do delírio: simples – um tema único, ou complexo – vários temas
entrelaçados; sistematizado – organizado, ou não sistematizado. Verificar o grau de convicção, a extensão do
delírio (em relação às várias esferas da vida), a incompatibilidade com a realidade, a pressão (para agir) e a
resposta afetiva do paciente ao seu delírio.
10. Afetividade: Estado de humor basal, emoções e sentimentos predominantes. Descrever o humor
(depressivo, eufórico, irritado, exaltado, pueril, ansioso, apático). Verificar se o paciente tem fobias simples (de
pequenos animais, objetos cortantes, etc.), fobias sociais (falar em público, falar com pessoas “mais
importantes”, ir a festas, etc.), ou agorafobia (fobia de conglomerações, supermercados, estádios,
congestionamentos, etc.). Verificar se o paciente já teve crises de pânico.
11. Volição: Processo volitivo: fase de intenção ou propósito, deliberação, decisão e execução. Verificar se o
paciente realiza atos volitivos normais ou apresenta atos impulsivos (“curto circuito” do ato volitivo). Verificar se
há redução da vontade (hipobulia = diminuição ou abulia = incapacidade). Diferenciar os atos impulsivos
(descontrole, faltam as fases de deliberação e a decisão) dos atos ou rituais compulsivos (“obrigação” de
realizar o ato). Observar se há negativismo (recusa automática em interagir com as pessoas, com o ambiente).
12. Psicomotricidade: Lentificação ou aceleração, estereotipias motoras (ações repetitivas ou ritualísticas
vindas do movimento, da postura ou da fala), maneirismos (gesticulação artificial, exagerada ou ritualística de
movimentos corporais), ecopraxias (repetição involuntária ou a imitação dos movimentos de outras pessoas).
Se houver agitação psicomotora tentar caracterizar (agitação maníaca, confusional, paranoide, epilética, etc.),
assim como se houver quadro de estupor (falta de resposta em que a pessoa somente pode ser despertada
com estímulo físico vigoroso), tentar caracterizar o seu tipo (estupor depressivo, esquizofrênico catatônico,
psicogênico ou orgânico).
13. Inteligência: Verificar se há retardo mental leve ou “limítrofe” (pode estudar até 6ª ou 7ª série, pode ser
independente, mas tem problemas com leitura e escrita, dificuldades com conceitos abstratos); retardo mental
moderado: consegue estudar apenas até 1ª ou 2ª série e consegue realizar, no máximo, tarefas práticas simples
estruturadas.
14. Personalidade: Descrever a personalidade ao longo da vida. Lembrar que a personalidade caracteriza-se
por ser estável, duradoura e corresponde ao modo de ser do indivíduo após a adolescência, nas suas relações

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interpessoais e nas formas de reagir ao ambiente. Os traços e alterações devem estar presentes mesmo fora
dos episódios psiquiátricos.
15. Vivencia do tempo e do espaço 3: Pacientes com esquizofrenia, sobretudo em surtos agudos, apresentam
importantes alterações da vivência do tempo. Pode-se descrever tais alterações como fundadas na
desarticulação e quebra do aspecto natural, pré-reflexivo, que caracteriza a vivência normal do tempo. A
experiência temporal em pessoas com esquizofrenia, sobretudo nos períodos de agudização, é marcada pela
fragmentação, que se verifica pela alteração da percepção do fluir do tempo, bem como por vivências anormais,
como déjà vu (estranha sensação desencadeada num indivíduo que faz com que ele sinta que já presenciara
ou estivera naquela mesma específica situação em que se encontra agora pela primeira vez) e déjà vecu (já
vivido) e estranhamento do tempo passado e futuro, relacionados a delírios e alucinações (Stanghellini et al.,
2016). Alguns pacientes com esquizofrenia experimentam certa passividade em relação ao fluir do tempo;
sentem que sua percepção temporal é controlada por uma instância exterior ao seu Eu. Outros, geralmente
mais graves, sofrem verdadeira desintegração da sensação do tempo e do espaço. As alterações das vivências
do tempo, de modo geral, estão associadas a alterações da experiência do self, marcantes na esquizofrenia
(Stanghellini et al., 2016). A vivência do espaço no indivíduo em estado maníaco é a de um espaço
extremamente dilatado e amplo, que invade o das outras pessoas. O paciente desconhece as fronteiras
espaciais e vive como se todo o espaço exterior fosse seu. Esse espaço não oferece resistências ao seu eu.
Nos quadros depressivos, o espaço exterior pode ser vivenciado como muito encolhido, contraído, escuro e
pouco penetrável pelo indivíduo e pelos outros. Já o paciente com quadro paranoide vivencia seu espaço
interior como invadido por aspectos ameaçadores, perigosos e hostis do mundo. O espaço exterior é, em
princípio, invasivo, fonte de perigos e ameaças. No caso do indivíduo com agorafobia, o espaço exterior é
percebido como sufocante, pesado, perigoso e potencialmente aniquilador.
16. Finalmente, deve-se descrever as impressões subjetivas e os sentimentos despertados no entrevistador
pelo paciente e seus familiares (sentimentos contratransferenciais), se o paciente é crítico em relação aos seus
sintomas e se ele identifica-os como algo anormal ou patológico. Também avaliar se há desejo de ser ajudado
ou se o paciente rejeita o profissional de saúde mental.
17. Súmula do exame: Ao final, o exame psíquico (assim como toda a anamnese) deve ser redigido com
linguagem clara, simples, precisa e compreensível.

3 DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019, p.100.
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AGRUPAMENTO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS
De forma prática, pode-se ordenar as funções psíquicas observadas no exame do estado mental em três
grupos. Cada um desses grupos seria, grosso modo, mais indicativo de que tipo de alteração pode estar
envolvida no quadro clínico. Assim, alterações de consciência, orientação e memória costumam ocorrem em
quadros psico-orgânicos. Entretanto, alterações do humor, dos sentimentos e da vontade ocorrem quase
sempre nos transtornos neuróticos, da personalidade e somatoformes. Já alterações do pensamento, da
percepção sensorial e do juízo de realidade tendem a ocorrem mais visivelmente nos quadros psicóticos.
Obviamente, essa “ordenação” aqui proposta é imperfeita e só se justifica por seus fins práticos.

AGRUPAMENTO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS SEGUNDO O TIPO DE TRANSTORNO MENTAL


QUE COSTUMA IMPLICAR

Funções psíquicas no exame do estado mental atual

Funções mais afetadas nos transtornos psico-orgânicos:


• Consciência • Atenção* • Orientação • Memória • Inteligência • Linguagem**

Funções mais afetadas nos transtornos do humor, neuróticos e da personalidade:


• Afetividade • Vontade • Psicomotricidade • Personalidade

Funções mais afetadas nos transtornos psicóticos:


• Sensopercepção • Pensamento • Vivência do tempo e do espaço • Juízo de realidade • Vivência do
eu

*Também nos quadros do humor (mania, principalmente).


**Também nas psicoses.

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