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Lettie S.J.
Capítulo 1
Londres
Yusuf
— Por Allah,1 alguém me ajude!
A voz feminina soou bem próxima do meu ouvido,
como se a mulher estivesse ali mesmo, deitada na cama ao
meu lado.
Abri os olhos, sentindo-me totalmente desperto e com
os sentidos em alerta máximo, a adrenalina exigindo uma ação
imediata. Uma ação impossível de ser colocada em prática
assim que olhei para o teto do quarto na penumbra da
madrugada e percebi que estava no meu apartamento privado
de Londres, onde adormeci com Emily depois de uma noite
exaustiva de sexo.
O coração batia acelerado no peito como se estivesse
pronto para entrar em uma guerra, mas a frequência cardíaca
foi diminuindo à medida em que eu caía na real.
Que alívio! Foi apenas um sonho.
Com um suspiro de frustração, passei as mãos no
rosto, olhando para Emily ao meu lado, que dormia
pesadamente. Peguei o celular na mesa de cabeceira para ver
as horas. Eram cinco da manhã em Londres, o que significava
que eram oito horas da manhã em Tamrah.
Decidido, levantei-me com cuidado e fui ao banheiro
com o aparelho na mão. Assim que fechei a porta, liguei para
minha mãe.
— O que faz acordado às cinco da manhã, Yusuf? —
foi a primeira coisa que ela me perguntou com aquele jeito
direto de falar que eu tanto amava.
O alívio que senti ao comprovar que ela estava bem foi
tanto que o meu peito descomprimiu de imediato.
— Me acordei com uma sensação estranha. Fiquei com
a impressão de que estava precisando de mim para alguma
coisa e resolvi ligar. Está tudo bem por aí, mãe?
— Sim, estou ótima. Todos estamos bem.
— E a Sabirah?
— Também. Ela acabou de sair para a aula.
— Minhas outras irmãs?
— Perfeitamente bem.
— Fico mais tranquilo.
Ela riu, feliz.
— Deve ser a saudade, filho. Principalmente agora que
já está perto de voltar para casa.
— Sim, deve ser isso.
— Vá descansar mais um pouco e nos avise quando o
avião decolar.
— Avisarei, mãe. Fiquem todos com a paz.
— Você também, filho. Que a paz esteja com você
também.
Desliguei e voltei para a cama, deitando-me com o
coração mais leve. Achei que não fosse conseguir conciliar o
sono novamente, mas adormeci logo depois por mais duas
horas. Quando me acordei novamente e consultei o celular, já
eram sete.
Emily continuava dormindo e me levantei sem fazer
barulho para não a acordar.
— Você já vai embora?
A voz dela me fez parar no meio do caminho. Olhei
para a cama onde estava deitada, mas não adormecida como
achei que estivesse. Pelos vistos, o cuidado que tive ao me
levantar foi desnecessário, uma vez que Emily parecia mais
acordada do que eu.
— Está na minha hora de voltar para casa — expliquei
o óbvio só para não criar caso, mas aquilo de dar constantes
explicações estava se tornando cansativo.
Ela se levantou da cama e veio até onde eu estava,
muito à vontade com a própria nudez. Abraçou-me, colando-se
em mim.
— Depois de um ano inteiro juntos, pensei que as
coisas tinham mudado entre nós.
Já havíamos conversado sobre aquilo nos últimos
meses, mas ela insistia em não aceitar. Dei um beijo em sua
testa e coloquei as mãos na cintura esbelta, recuando e me
afastando dela.
— Nada mudou e você sabe disso. Agora preciso
mesmo ir.
Peguei minha roupa na poltrona ao lado da cama e fui
para o banheiro.
Emily sabia que eu precisava voltar para casa, assim
como sabia que o nosso relacionamento acabaria quando o
meu tempo em Londres terminasse. Agora que eu já tinha uma
formação militar na Academia de Sandhurst,2 além de um curso
de Economia e de uma especialização em política finalizados
na Universidade de Londres, havia chegado a hora de voltar
para Tamrah e ajudar o meu pai e os meus irmãos a
conduzirem o país.
Já não havia mais o que aprender fora de Tamrah,
fosse a nível militar ou intelectual. Eu ansiava por entrar em
ação no meu país. Nada em Londres deixaria saudades em
mim, muito menos a Emily. A cidade tinha o seu encanto e a
mulher que estava no quarto comigo era uma beldade, mas o
que eu realmente queria não estava ali. A minha alma era
árabe e eu ansiava por voltar ao meu país.
Conheci Emily em uma festa promovida por colegas da
universidade. Ela tinha vinte e sete anos e seguia a carreira de
modelo. Acabamos por ficar juntos na festa, depois nos
encontramos outra vez e passamos a nos ver com frequência.
Eu queria um relacionamento discreto, que não chamasse a
atenção dos paparazzis e dos tabloides, e Emily aceitou as
minhas condições.
Desde o início ela sabia que era tudo sem
compromisso.
— Você é um príncipe ou um sheik? — ela havia
perguntado quando nos conhecemos, deixando óbvio que
sabia estar diante de um príncipe árabe.
— Sou as duas coisas. Nem todo sheik é da família
real para também ser um príncipe, que é o meu caso. Da
mesma maneira como nem todo duque inglês é da família real
para também ser um príncipe.
Ela riu, enfim, entendendo.
— E como é lá no seu país? Me disseram que tem um
polo turístico luxuoso e ultramoderno e eu achando que só
existia deserto, poços de petróleo e tempestades de areia.
Nem perdi tempo tentando descobrir como ela ficou
sabendo daquilo. Acostumei-me, depois dos primeiros
relacionamentos que tive. Todas as mulheres com quem fiquei,
fosse em Londres ou em outro lugar, já sabiam quem eu era
antes mesmo do primeiro beijo acontecer. Elas tinham um
sistema de investigação que faria inveja a qualquer serviço
secreto governamental.
— É exatamente isso o que temos em Tamrah.
Deserto, tempestades de areia, um sol implacável, um vento
seco que resseca a pele e muito calor.
Destaquei os pontos mais radicais do meu país. A
intenção era mesmo de assustar uma britânica como ela,
acostumada com as facilidades de uma vida ocidental.
Propositadamente, deixei de fora o turismo de alto luxo e a
riqueza exorbitante em que vivíamos, que certamente a atrairia
muito mais.
Emily chegou a fazer uma cara de horror, mas mudou a
expressão logo a seguir. Devia estar pensando que ficar com
um príncipe valia o esforço de fingir normalidade.
— Que sorte que estamos aqui e não lá — ela disse e
o sorriso de alívio que me deu foi genuíno. — Cada um no seu
país parece ser um bom lema.
Talvez tenha sido aquele comentário que me
conquistou nela. Não foi a beleza do rosto, nem os cabelos
louros, muito menos os olhos azuis ou o corpo escultural.
Fisicamente ela era linda, mas não fazia o meu tipo preferido
de mulher. Era alta demais para o meu gosto, que me sentia
atraído por mulheres mais baixas. Os cabelos eram curtos,
quase brancos de tão louros, e eu gostava de cabelos
compridos e castanhos, escuros como a noite e que se
derramavam pelas costas femininas. Os olhos eram tão azuis
que pareciam safiras, mas eu me sentia atraído por olhos
amendoados, da cor das tâmaras da minha terra e do
aromático óleo de Oud.3
Emily também fazia questão de exibir o corpo em
público com roupas excessivamente colantes e decotes
pronunciados, atitude que eu não condenava nela, mas que
servia para nos distanciar ainda mais. Eu valorizava o recato e
o pudor das mulheres da minha cultura.
Lembrar de tudo aquilo só aumentou a minha saudade
de Tamrah e me vesti às pressas no banheiro.
Bem que Saqr me preveniu que o maior desafio seria a
saudade!
Ele era o segundo filho do meu pai e o meu irmão mais
velho depois de Majdan, o primogênito. Saqr e eu éramos
muito unidos desde criança. Mesmo com os telefonemas e as
férias em Tamrah, eu sentia falta da presença dele, dos meus
pais, da petulância da minha irmã mais nova, dos meus outros
irmãos. Enfim, da família inteira.
Chega de Londres! Está mais do que na hora de voltar
às minhas origens.
Assim que voltei ao quarto, encontrei Emily sentada na
cama com os olhos cheios de lágrimas. Senti-me culpado por
estar tão aliviado em terminar nosso relacionamento e voltar
para Tamrah, enquanto ela se ressentia com a minha partida.
— Desculpe-me pelo choro, Yusuf. — A voz dela
estava embargada. — Achei que ia ser fácil quando chegasse a
hora da despedida e que não me sentiria desse jeito, mas a
verdade é que não consigo me controlar. Sinto-me
estranhamente insegura ao me imaginar sem você.
Suspirando, sentei-me na cama ao lado dela e a
abracei.
— Não precisa se desculpar, Emily. Até as mulheres
mais fortes têm um lado emotivo e podem se sentir inseguras
— consolei-a, esperando que superasse bem o fim do
relacionamento. — Não precisa se preocupar em sair do
apartamento agora. Fique nele o tempo que precisar para
organizar a sua vida com calma. Aproveite aquela proposta de
trabalho que recebeu para morar em Nova York e invista na sua
carreira de modelo. Você é linda, profissional e tem tudo para
ter sucesso.
Ela me olhou por entre as lágrimas, surpresa.
— Posso mesmo ficar aqui no seu apartamento?
— Sim, pode e pelo tempo que precisar. O meu
assistente enviará um comunicado à administração do prédio
informando isso. Quando não precisar mais morar aqui, ligue
para Adnan e ele providenciará alguém para pegar as chaves.
Fui abraçado pelo pescoço com mais força ainda.
— Obrigada, Yusuf. Você é um homem honrado,
especial, único. Eu queria muito que tivesse se apaixonado por
mim como me apaixonei por você.
Aquela era a parte que eu mais detestava na hora de
terminar relacionamentos sem compromisso. As mulheres
sempre ficavam com esperanças de me verem apaixonado por
elas, mesmo sabendo desde o início que para mim era apenas
sexo.
— Um dia você vai encontrar o homem certo e ser feliz
com ele. Eu não sou esse homem, Emily.
Ela se afastou, limpando as lágrimas do rosto.
— Eu sei que a sua cultura é diferente da minha e que
a sua família espera que se case com uma mulher árabe, mas
se você realmente quisesse, podíamos continuar juntos.
— Você falou certo agora. Se eu realmente quisesse
podíamos continuar juntos, só que eu não quero — repeti
firmemente o que já havia dito para ela em uma conversa
parecida meses atrás. — E não tem nada a ver com você, mas
comigo. Tão cedo pretendo assumir um compromisso sério
com uma mulher. Não tenho pressa alguma de ficar noivo,
muito menos de me casar. Sou o terceiro filho e não há
exigência sobre mim para isso. Se eu quiser, posso ficar
solteiro para o resto da vida.
— Mas é isso o que não entendo! Se ninguém está
fazendo pressão em cima de você para assumir um
compromisso com uma mulher árabe, por que não podemos
continuar juntos do jeito que estamos? Posso ir para Tamrah
com você e viver em um apartamento que seja seu, igual como
fizemos aqui.
Vou ter de ser duro mesmo!
— Não vou chegar em Tamrah com uma amante na
bagagem quando tenho outras amantes lá, Emily. — Ela me
olhou, chocada. — Sinto muito, mas esta é a verdade. Respeito
a mulher que você é e acredito que saiba que pode contar
comigo se precisar de alguma ajuda, mas o que tivemos foi
apenas sexo para mim.
— Você está sendo muito duro comigo, Yusuf. Se um
dia se apaixonar e não for correspondido, vai entender o que
estou sentindo.
Por Allah, isso é uma praga?
— Se para entender é preciso me apaixonar, talvez
nunca entenda. Agora preciso mesmo ir.
Antes que o melodrama da despedida aumentasse,
levantei-me, peguei a chave do carro e saí do apartamento.
Sentei-me na direção do Bugatti com um suspiro de
alívio, acelerando pelas ruas de Londres até a mansão da
família Al Harbi em Kensington. Mal entrei nela, o meu
assistente apareceu no hall.
— Tudo pronto para partirmos?
— Sim, alteza. Podemos embarcar assim que autorizar
— Adnan respondeu sem disfarçar a satisfação.
Ele estava tão feliz quanto eu em regressar à Tamrah e
rever a família.
— Está autorizado. Quero ir embora o mais rápido
possível.
Capítulo 2
Fronteira entre Sadiz e Qasara
Malika
— Estamos perto agora — Hussam informou na
direção do carro, acelerando na rodovia que ligava Sadiz à
Qasara.4
— Allah seja louvado! — exclamei, sentada no banco
de trás e sendo acompanhada na oração por Badra e Hessa,
as duas outras mulheres dentro do veículo.
Apesar da fé que tínhamos na misericórdia de Allah,
nós quatro estávamos nervosos e contando os minutos para
ultrapassarmos a fronteira que separava Sadiz de Qasara.
Precisávamos pedir asilo político no país vizinho o mais rápido
possível ou seríamos as próximas vítimas da repressão
imposta pelo governo ditador do meu tio Suleiman. Quem ainda
não havia sido levado para a prisão, estava sendo preso
naquele exato momento, e tínhamos a certeza de que
estávamos na lista negra do rei e que seríamos os próximos.
Observei minhas duas amigas e companheiras de
ativismo. Igual a mim, Hessa tinha vinte e quatro anos. Eu a
conheci no curso de Serviço Social da Universidade de
Ciências Humanas5 de Sadiz e tive a grata satisfação de
descobrir que ela também era uma ativista que lutava pelos
direitos das mulheres. Sempre sorridente, naquele momento
estava séria, com o belo rosto tenso e o olhar angustiado.
Badra era uma mulher bem mais madura. Tinha
quarenta e seis anos e atuava há bastante tempo na ONG
Mulheres São Livres6. Ela era casada com Hussam, que agora
dirigia o carro em alta velocidade. Mesmo com toda a
experiência e maturidade que Badra tinha, era visível a
ansiedade nos olhos que cruzaram com os meus quando ela se
virou para trás.
— Vamos conseguir! — afirmei com convicção,
tentando dar força à Hessa, a mais frágil de nós três, cujas
mãos crispadas sobre o colo segurei em um gesto de conforto.
Badra entendeu a minha intenção.
— Allah vai nos ajudar — ela reforçou o que eu disse,
dando um sorriso encorajador para a amiga.
Trocamos um rápido olhar preocupado antes de ela se
virar novamente para a frente. Concentrado na direção, o
semblante carregado de Hussam não melhorava o clima tenso
dentro do carro.
Horas atrás, assim que ficamos sabendo da prisão de
outros membros da nossa ONG, fugimos para pedir asilo em
Qasara, o país mais próximo de onde estávamos. Ainda pensei
na possibilidade de irmos para Tamrah, um país com mais
liberdade de expressão e onde as mulheres haviam
conquistado muitos direitos nos últimos anos, mas a amizade
entre o meu primo Mubarak e Majdan, o príncipe herdeiro7 de
Tamrah, fez com que eu mudasse de ideia. Caso o meu tio
Suleiman descobrisse que estávamos lá, sem dúvida que
seríamos caçados, presos e extraditados para Sadiz em um
piscar de olhos. Majdan faria aquilo com o maior prazer, para
agradar ao amigo e ao rei do país aliado.
Em Sadiz, o nosso destino seria a temida prisão de
segurança máxima de Asuid8, na qual já estavam encarcerados
vários membros da família real, acusados de conspirarem
contra o governo.
Soltei um suspiro trêmulo, tentando não pensar nas
outras mulheres ativistas que foram presas naquela manhã na
sede da ONG, em uma ação secreta e implacável feita pela
guarda real. A irmã de uma delas havia entrado às pressas na
biblioteca do nosso curso, onde Hessa e eu fazíamos um
trabalho de teorias sociológicas. Quase não acreditei quando
Jumanah se sentou na nossa mesa usando uma burca9 e nos
contou o que tinha acontecido.
— Levaram todos sob a alegação de manterem
contatos internacionais que eram prejudiciais ao país e que iam
contra o governo. Encerraram todas as atividades do nosso
grupo e lacraram as portas da sede — ela havia dito em um
sussurro urgente, olhando diretamente para mim pela rede da
burca. — Badra me pediu para avisar vocês e dizer que já tem
um plano de fuga para saírem do país. Ela está esperando na
rua dos fundos.
Fiquei tão desnorteada que demorei a reagir. Ao meu
lado, Hessa parecia em um estado de choque pior do que o
meu.
— Fugir do país? — consegui balbuciar, sem acreditar
que precisaria chegar àquele cúmulo. — Não posso ir embora.
Tenho os meus pais e a minha família aqui.
— Eles nada poderão fazer para impedir que prendam
você, mesmo sendo uma princesa da família real. Vários
príncipes já estão atrás das grades e o seu nome está na lista
dos próximos. Não vão demorar para chegar aqui.
Bismillah!10
— Tem certeza disso?
— Infelizmente, tenho. Você sabe que o irmão de
Badra é amigo de um funcionário do governo ligado à guarda
real. Ele teve acesso à lista de pessoas que são consideradas
uma ameaça para o país e nos avisou em caráter confidencial.
— A voz dela ficou embargada de emoção naquele ponto do
relato. — Se tivéssemos recebido essa informação antes,
talvez a minha irmã não estivesse presa agora. Tem jornalistas
e ativistas de várias organizações de direitos humanos sendo
detidos neste exato momento e vocês não têm muito tempo
para fugir.
Saindo do estado de choque, peguei o meu celular na
bolsa.
— Preciso avisar aos meus pais.
— Não!!!
Rápida, ela colocou uma mão sobre o aparelho,
assustando-me com aquela negativa tão repentina.
— O seu número está grampeado! Estão nos vigiando
há meses sem sabermos. Eles têm conhecimento de cada
palavra que dissemos no celular, com quem falamos e de todos
os nossos passos.
— Mas eu não posso ir embora sem prevenir os meus
pais do que está acontecendo.
— Você vai é piorar a situação deles se contar alguma
coisa e os serviços secretos do seu tio ficarem sabendo depois.
A melhor proteção que você pode dar à sua família agora, é
eles ignorarem totalmente o que aconteceu com você ou o
destino que tomou.
— Eles podem ser presos também.
Ela negou com um meneio de cabeça.
— O nome deles não estava na lista. Só o seu.
Inspirei fundo, a realidade caindo com um peso
absurdo sobre mim. Foi difícil colocar o celular de volta na
bolsa e arrumar minhas coisas sobre a mesa, mas consegui.
— Yalla11, Hessa! — apressei-a.
Apesar do que eu disse, Hessa não se mexeu para
nada. Notei que estava mesmo em choque.
— Ajude-me a juntar as coisas dela, Jumanah!
Em poucos minutos arrumamos tudo e saímos da
biblioteca praticamente arrastando Hessa. Fomos para a rua
lateral, onde estava estacionado o carro de Hussam.
Badra desceu assim que nos viu chegar.
— Livrem-se dos celulares — ela preveniu com
urgência.
Fiz o que pediu e joguei os dois aparelhos na lata de
lixo mais próxima, tentando não lamentar aquele ato, nem
pensar em mais nada que não fosse sair logo do país. Eu daria
um jeito de falar com os meus pais quando estivesse em
segurança.
Entramos no carro em um silêncio fúnebre, enquanto
Jumanah ia embora às pressas pela rua.
— Para onde vamos?
— Qasara — Hussam respondeu com gravidade,
conduzindo o carro pelas ruas adjacentes da universidade.
Qasara era o país da falecida mãe de Kismet, que
também havia sido a primeira esposa do meu pai. Apesar de
sermos meias-irmãs de nascença, eu considerava Kismet como
uma irmã de verdade, a quem amava demais. Éramos muito
ligadas e me preocupei com o que acharia de tudo aquilo.
Quando falasse com a minha mãe, pediria que ligasse para o
Cairo, onde Kismet estudava, e explicasse tudo a ela.
Sim, Qasara é uma boa opção!
Malika
Não sei quantos dias fiquei presa naquela cela em
Asuid. Acho que não mais do que cinco dias. No máximo, uma
semana. Depois, fui transferida para uma outra prisão e só tive
a certeza daquilo porque entrei vendada em um carro, que
circulou por um longo tempo até chegar ao destino. Na ocasião
eu não sabia, mas estava sendo levada para Thueban, o pior
lugar do mundo. Dizer que era o inferno até parecia pouco.
Quando tiraram a venda dos meus olhos e as algemas
dos meus pulsos, tive um choque imenso. Eu estava dentro de
uma cela antiga, que parecia pertencer a uma masmorra da era
medieval. As paredes e o piso eram de uma pedra escura e
fria, não havia iluminação natural e o ambiente era úmido. Uma
lâmpada fraca e amarelada pendia precariamente do teto,
deixando-me ver uma cama suspeita ao fundo e mais nada. A
cela era bem maior do que a de Asuid, mas o tamanho não
compensava o horror de estar nela. Senti como se tivessem me
enterrado viva em uma tumba e era exatamente onde eu
estava. Uma prisão subterrânea aterrorizante, que dias depois
descobri se chamar Thueban.
No meu segundo dia ali, a luz precária diminuiu ainda
mais de intensidade, deixando tudo na penumbra. Assustada,
olhei ao redor com o coração disparado no peito.
O que viria a seguir? Que nova tortura eles estavam
preparando para mim?
A porta se abriu e pessoas entraram. Não tive tempo
de identificar quem ou quantos eram, pois colocaram logo um
capuz sobre a minha cabeça e me algemaram.
Vão me matar agora!
Eles me forçaram a andar. Sem enxergar nada, fui
sendo levada aos tropeções, caminhando para um destino
desconhecido, onde eu não tinha ilusões de encontrar piedade
alguma deles.
Rezei. Foi só o que pude fazer.
Entrego a minha alma a ti, poderoso Allah! Sê
misericordioso comigo nos meus últimos momentos!
Paramos de andar. Ouvi um ferrolho sendo
destrancado e uma porta aberta, para logo depois começarmos
a descer alguns degraus. O lugar era mais frio do que a minha
cela, com o som de água pingando em algum lugar. Mesmo
sem enxergar nada, a minha intuição dizia que haviam me
trazido para um lugar pior do que o inferno e que algo de muito
ruim ia acontecer ali.
Bismillah!31
O capuz foi retirado da minha cabeça e inspirei fundo
quando os meus olhos puderam ver o que havia ao redor. Era
uma sala cavernosa, com luzes amareladas, correntes nas
paredes, vários equipamentos estranhos distribuídos pelo
espaço e instrumentos suspeitos dispostos sobre mesas de
metal. Algumas manchas escuras no chão pareciam ser de
sangue e senti ânsia de vômito.
A minha respiração ficou errática, ofegante, enquanto o
medo contorcia as minhas entranhas. O esforço que fiz para
não gritar foi enorme, o esgotamento físico e psicológico dos
últimos dias cobrando o seu preço. Um pouco mais de pressão
e eu ia quebrar de vez.
Angustiada, olhei para os meus algozes,
surpreendendo-me ao ver que eram mulheres vestidas com
roupa militar. Achei que fossem homens, mas comigo estavam
apenas duas mulheres corpulentas, com os cabelos presos
escondidos por quepes e uma expressão dura no rosto.
Uma porta se abriu do outro lado da sala chamando a
minha atenção. Um outro grupo entrou trazendo uma
prisioneira encapuzada, igual como fui conduzida até ali, só
que ela estava acompanhada por três homens mascarados.
Eu não sabia, mas aquele dia ia ficar marcado na
minha memória. Ele seria o primeiro de uma série de dias
traumáticos, em que perdi brutalmente a minha inocência
diante da vida e vi o lado mais negro dos seres humanos.
Dar de cara com aqueles homens mascarados já fez o
meu coração disparar no peito, mas quando o capuz da mulher
foi retirado e eu vi quem era, um gemido de angústia escapou
da minha garganta.
Oh, poderoso Allah! É a Hessa!
Ela tremia visivelmente e chorava como uma
criancinha. Senti uma dor imensa ao vê-la naquele estado.
Quando, enfim, Hessa me viu, arregalou os olhos e chorou
mais ainda.
— Malika!
Tentou vir para onde eu estava, mas foi agarrada pelos
cabelos com crueldade por um dos homens e arrastada pela
sala.
— Não! Parem com isso — gritei, revoltada, puxando
as mãos algemadas da mulher que me segurava. — Parem!
Ninguém me ouviu, muito menos deram ouvidos aos
gritos dela. Hessa foi deitada em uma das mesas de metal,
onde teve as mãos e os pés presos por grilhões de ferro.
— Soltem-me! Soltem-me! Malika, me ajude!
Fiz força para me soltar, mas não consegui.
Impassíveis, os três homens rodearam Hessa e fui
obrigada a ver, chocada, ela ter a abaya rasgada com violência
de alto a baixo. Todas as roupas que ela usava foram
arrancadas do corpo, até a deixarem totalmente nua sobre a
mesa.
Com os olhos esbugalhados de terror, fiquei paralisada
diante daquela cena, sem acreditar no que estava vendo. Eu
estava presenciando uma das maiores afrontas à dignidade de
uma mulher, algo considerado um grande pecado pela nossa
fé.
— O que vocês estão fazendo? Não podem fazer isso
com ela! — Consegui encontrar voz para falar, mesmo com os
gritos de Hessa sendo mais altos. — Vistam-na de novo. Parem
com isso!
Olhei para as duas mulheres que me prendiam.
— Vocês são mulheres! Como podem permitir que isso
aconteça? Façam alguma coisa.
Elas continuaram indiferentes ao meu apelo e ao
sofrimento de Hessa, que passou a gritar mais alto ainda,
chamando a minha atenção. Quando a olhei novamente, foi
para quase vomitar com a cena.
Um dos homens tinha puxado Hessa pelos tornozelos
para a beirada da mesa, onde ela agora estava com as pernas
abertas que os outros dois seguravam com violência.
Eu não precisei de mais nada para adivinhar o que ia
acontecer.
— Por Allah, parem! Parem!
— Nãaaao!!! — Hessa gritava, desesperada. — Malika,
me ajude!
O homem que estava em frente a ela abriu o zíper da
calça de militar e desviei o olhar, sem querer vê-lo nu ou
presenciar aquele estupro.
— Você pode parar isso se quiser — uma das mulheres
disse calmamente, surpreendendo-me.
Virei-me às pressas para ela.
— Como? Eu quero que pare agora.
Ela olhou para os homens.
— Parem!
Eles pararam e até arquejei de tanto alívio.
Sentindo as pernas trêmulas, fui conduzida pelas duas
militares para uma mesa, onde me ofereceram uma cadeira
para me sentar. Ingenuamente, achei que aquilo fosse uma
gentileza ao perceberem o meu esgotamento depois de dias
sem dormir o suficiente, mas colocaram o conhecido bloco de
papel na minha frente com a caneta.
— A carta de confissão. Sua Majestade também quer o
nome de todos que estão ameaçando a soberania nacional,
incluindo os seus familiares e o líder da conspiração.
Perplexa, olhei para ela.
— Se já fui condenada pelo tribunal, por que insistem
nesta carta de confissão?
Imperturbável, a mulher cruzou os braços no peito.
— Tem exatamente dois minutos para escrever a
confissão de todos os atos terroristas que cometeu contra o
governo e dar os nomes dos outros integrantes ou não vai
conseguir salvar a sua amiga.
Do outro lado da sala, Hessa soluçou de desespero
quando ouviu a nossa conversa. Ela sabia que não fazíamos
nada daquilo na ONG Mulheres São Livres e que eu também
não conhecia outros ativistas além dos que já estavam presos.
Tanto eu quanto ela não éramos líderes de nada lá dentro,
apenas duas garotas cheias de ideais e que queriam um
mundo melhor para as mulheres árabes.
Ciente daquilo, Hessa percebeu que não escaparia.
Allah, o que faço? Não posso presenciar uma
atrocidade dessas sem fazer nada.
Enquanto a tortura era comigo, aguentei. Mas
aguentaria ver uma amiga sofrer?
O tempo passava rápido demais para a difícil decisão
que eu tinha de tomar. Fechei os olhos e entreguei o meu
destino nas mãos de Allah.
— Posso escrever uma confissão, mas não tenho
nomes para dar.
— A confissão, então. Eles decidirão depois se é o
suficiente.
Foi com a mão tremendo que peguei a caneta e
confessei coisas que nunca fiz, as lágrimas rolando pelo rosto.
Não citei o meu pai, nem as pessoas com as quais entrei em
contato no exterior para pedir que nos ajudassem a libertar
Fhatima. Aquilo eu jamais faria.
Quando terminei, a militar pegou e leu, passando para
a outra mulher, que também leu e fez um sinal para os homens.
Ansiosa, acompanhei o movimento de todos eles, até soltarem
Hessa e jogarem uma abaya preta para ela vestir.
— Posso conversar com ela?
— Dois minutos.
Levantei-me e caminhei para onde minha amiga
estava. Os homens mascarados se afastaram e nos abraçamos
apertado.
— Malika, obrigada! — ela sussurrou no meu ouvido
aos prantos, tremendo mais do que eu. — Sinto muito. Me
perdoe.
— Não precisa pedir perdão — sussurrei de volta. — A
culpa não foi sua.
— Me usaram para forçar você a confessar o que não
fez.
— Desconfio que encontrariam outra forma de
conseguir isso. — Suspirei cansadamente. — Tem notícias de
Hussam e de Badra?
Ela se afastou com o olhar triste e baixou ainda mais a
voz.
— Ele morreu naquele mesmo dia em que nos
prenderam. Não resistiu ao golpe na cabeça. Acho que teve
uma hemorragia — contou, deixando-me em choque. — Badra
morreu dias depois. Me disseram que teve uma parada
cardiorrespiratória na cela, mas desconfio que isso aconteceu
durante alguma sessão de tortura. Estão atrás dos nomes de
outros ativistas.
Aquilo era um pesadelo. Só podia ser! E eu estava
horrorizada que fosse o meu tio Suleiman fazendo aquilo.
“Só agora estou conseguindo colocar todos na prisão.”
Era o Mubarak e não o meu tio! Ele era o responsável
por todas aquelas prisões e mortes, e eu nem queria imaginar o
que seria capaz de fazer com aquela minha confissão nas
mãos.
— E você, foi torturada?
— Não. É a primeira vez que me trazem aqui e estou
tão feliz em ver você!
Ela voltou a me abraçar e chorei ainda mais, sem saber
até que ponto realmente havia conseguido salvar a minha
amiga de torturas e estupros ali dentro. A verdade era que eu
não sabia se conseguiria salvar nem a mim mesma, quanto
mais a ela.
O nosso tempo de conversa acabou e fomos
separadas. Aos prantos, ela teve a cabeça coberta com o
capuz e foi levada por eles, enquanto eu rezava para que fosse
poupada de abusos. As duas militares se aproximaram de mim
e senti o capuz ser colocado na minha cabeça, tirando da
minha visão o horror que era aquela sala.
Capítulo 8
Tamrah
Yusuf
Assumir o Serviço Secreto Nacional de Inteligência32
do meu país foi uma das melhores coisas que poderiam ter
acontecido comigo ao voltar para Tamrah. E não era apenas
por estar fazendo algo que eu amava, que estava no meu
sangue e que me motivava, mas também pelo fato de o órgão
estar subordinado ao Ministério da Defesa, o que significava
que eu trabalharia diretamente com o meu irmão Saqr.
Se tivessem me colocado para trabalhar com Majdan, o
meu outro irmão mais velho, eu seria capaz de rejeitar qualquer
cargo que fosse. Aquilo não queria dizer que eu não o amasse,
mas Majdan era tão arrogante na sua posição de príncipe
herdeiro quanto era incompetente como gestor, líder ou
governante. Eu sabia que o vício das drogas era o maior
responsável pelas atitudes do meu irmão, contudo, ainda assim
comemorei muito quando ele perdeu o título de príncipe
herdeiro para Saqr. A minha satisfação não foi apenas por ser o
mais justo, mas também por achar que Majdan precisava
descer do pedestal de sucessor intocável e enxergar a vida de
uma outra maneira. Durante a minha infância e adolescência,
cansei de vê-lo envolvido em escândalos que só causavam
desgosto aos meus pais, principalmente à minha mãe. E se
havia algo que me deixava realmente furioso, era que
mexessem com ela. A minha mãe era sagrada para mim.
O telefone tocando sobre a mesa do meu escritório em
Taj Almamlaka33 desviou a minha atenção para o trabalho. Era
Adnan, o meu assistente.
— O relatório sobre a família Al Kabeer de Sadiz já
está disponível no sistema, alteza.
— Ótimo! Vou ver agora. Saqr está ansioso por essas
informações.
Eu suspeitava que o meu irmão estava mais
apaixonado pela esposa do que deixava transparecer, apesar
de aquele ter sido um casamento político. Ele tinha me pedido
para fazer aquela investigação em caráter de urgência,
determinado a descobrir tudo sobre o que havia acontecido
com Kismet antes do casamento.
A minha cunhada vinha de uma família dividida em dois
grupos rivais que lutavam pelo poder, um conspirando contra o
outro. Na minha opinião, Sadiz era um barril de pólvora, cuja
explosão se aproximava rapidamente. A melhor coisa que
poderia acontecer com Kismet foi se casar com Saqr e vir para
a segurança de Tamrah. Infelizmente, o país vizinho estava nas
mãos de um governante perigoso, que em nada inspirava
confiança como aliado. Em reunião com o meu pai e com Saqr,
decidimos reforçar a vigilância em nossas fronteiras com Sadiz,
cientes de que, se eclodisse uma guerra civil lá, teríamos que
lidar com uma onda de refugiados tentando vir para Tamrah.
Poderíamos abrigar alguns, mas não um país inteiro.
Só espero que as coisas não cheguem a esse ponto.
Com o computador à minha frente, comecei a analisar
o relatório, anotando as informações que necessitavam de um
aprofundamento maior.
Eu já conhecia praticamente todos os homens que
faziam parte da família Al Kabeer, inclusive Mubarak, com
quem antipatizei desde a primeira vez em que o vi ao lado de
Majdan. Ambos eram amigos e se tornaram quase inseparáveis
durante o tempo em que estudaram juntos em Londres.
Mubarak era o filho mais velho e príncipe herdeiro do Rei
Suleiman de Sadiz. Igual ao pai, ele não me passava nem um
pingo de confiança, contudo, no caso dele, havia uma
dissimulação gritante, que, na minha opinião, escondia algo
duas vezes mais perigoso.
Saqr tinha um interesse especial nos irmãos de Kismet
e investiguei mais a fundo cada um deles, até me deparar com
a lista das irmãs. De início, achei que nenhuma delas teria
importância bastante para ser a responsável por algo de ruim
ter acontecido com Kismet, mas mudei de opinião quando li
sobre o desaparecimento de Malika Al Kabeer, a mais próxima
das irmãs da minha cunhada.
Nosso informante para aquele caso era um dos
empregados que trabalhavam para a família Al Kabeer dentro
do palácio do pai de Kismet. O clima de insatisfação, a divisão
política e a crise econômica do país ajudavam bastante a
venda de informações fosse para quem fosse. O homem deu
detalhes sobre Malika que me interessaram de uma maneira
imediata e estranhamente intensa.
Tamrah
Quando o trem de pouso tocou a pista do aeroporto
internacional de Jawhara, o meu coração exultou de felicidade.
Aquela era a minha terra e nenhum outro lugar do mundo era
melhor do que Tamrah. As saudades que senti do meu país
foram devastadoras, muito mais fortes do que durante os anos
em que estudei em Londres. Naquela época, a Malika não
existia na minha vida. Agora existia e estava a alguns minutos
de distância de mim.
Estou de volta ao meu país e disposto a defender com
unhas e dentes cada grão de areia desta terra e a mulher que
amo!
Não tive condições de avisar a ela sobre o meu retorno.
Avisei apenas ao meu pai, à minha mãe e à Saqr, mas pedi que
não contassem à Malika, justificando que queria lhe fazer uma
surpresa. Não era bem assim. Eu queria pegar Malika
desprevenida e ver qual seria a reação dela quando
estivéssemos frente a frente. Ainda tinha esperanças de ela se
entregar, de admitir que sentia algo mais forte por mim e
permitir que me aproximasse.
Que Allah me perdoe, mas vou quebrar todas as regras
que puder para convencer Malika a me dar uma chance de
provar que podemos ser felizes juntos.
Quando entrei no meu Bugatti que já me esperava ao
lado do avião, peguei o celular e liguei para Saqr.
— Já chegou? — ele perguntou com entusiasmo, feliz
com o meu retorno.
— Estou a caminho de Taj. Sabe dizer se Malika está
em casa? Não quero correr o risco de me encontrar com ela
antes de tomar um banho e trocar de roupa.
— Nossa mãe disse que Malika hoje foi trabalhar com
os refugiados na casa de acolhimento de Azra. Ela ainda tentou
dissuadi-la, para que estivesse aqui quando você chegasse,
mas a sua noiva é aquele tipo de mulher que quando quer uma
coisa, dificilmente alguém consegue fazê-la mudar de ideia.
— Igual à sua mulher, talvez.
Saqr riu, parecendo estar de muito bom humor.
— Igualzinha.
— Pode fazer um favor para mim? Quero um
helicóptero pronto para me levar até Azra. Assim proveito para
ver com os meus próprios olhos esta situação dos refugiados e
como estão as coisas na fronteira com Sadiz.
— Vou providenciar isso para você. Seja bem-vindo,
meu irmão. Estávamos com saudades.
— Shukran, Saqr. Eu também estava com saudades da
minha família e do meu país.
Depois de finalizar a conversa, joguei o celular no
banco do passageiro e liguei o som do carro, suspirando
profundamente quando Qsad Einy99 começou a tocar. A letra
daquela música parecia ter sido escrita especialmente para a
minha história com Malika.
Lembrei-me de como fiquei perplexo quando ela me
disse que também gostava da música. Naquela ocasião, eu
ainda não sabia do tamanho do amor que sentiria por aquela
mulher.
— Princesa, acorde!
Abri os olhos na escuridão do meu quarto, ainda
sentindo a dor nas costas me paralisar.
— Foi só um sonho ruim. Já passou. — Reconheci a
voz de Layla.
Virei o rosto e a vi sentada na beirada da minha cama.
— Não consigo me mexer — sussurrei, sentindo-me
quebrada com as lembranças tão vívidas do pesadelo.
— Consegue, sim. Só está tensa — tranquilizou-me
com a voz suave, mas firme. — Deite-se de bruços, princesa.
Vou fazer uma massagem e vai ver como se sentirá melhor
depois.
Ela me ajudou a mudar de posição e se levantou,
andando pelo quarto. Uma melodia agradável soou e o aroma
do óleo de Oud que ela costumava usar nas massagens se
espalhou pelo ambiente. Fechei os olhos quando Layla
começou a massagear as minhas costas com experiência,
tocando nos pontos certos de tensão que se acumulavam entre
as cicatrizes até me fazer relaxar.
— Quer conversar sobre o pesadelo? Às vezes faz
muito bem à alma.
Ela sempre me perguntava a mesma coisa, mas eu
jamais partilharia os horrores que sofri.
— Não, não quero.
— Sugiro então que esqueça e relaxe. Ontem foi um
dia de muita tensão e é normal que algumas lembranças
venham à tona em forma de pesadelo. O que importa é que
tudo isso é passado e a princesa agora está em segurança.
Relaxe.
Fiz o que ela disse e adormeci sem nem perceber, só
voltando a abrir os olhos quando o amanhecer já invadia o
quarto. Layla dormia na cama reserva ao lado da minha e olhei
com gratidão para a mulher que me ajudava durante as noites
em que os pesadelos voltavam.
Agarrada ao travesseiro, deitei-me em posição fetal e
fiquei olhando a luz do dia à medida que ela afastava a
escuridão.
Consegui sobreviver!
Capítulo 43
Malika
Ajeitei o hijab branco nos cabelos e fui para o vestíbulo
dos cômodos que eu ocupava na Ala do Falcão, onde Layla me
esperava para a caminhada matinal. Para minha surpresa —
uma agradável surpresa —, ela não estava sozinha, mas com o
Yusuf. Ambos conversavam tão concentrados que quase não
notaram a minha aproximação.
Ele foi o primeiro a me ver, a expressão preocupada
cedendo lugar a um sorriso e o meu coração disparou no peito,
feliz.
— Sabah al khair105, Yusuf — cumprimentei-o, um
pouco envergonhada ao me lembrar dos beijos que trocamos.
Nossos olhares se encontraram e ficou muito claro para
mim que ele estava se lembrando do mesmo.
— Sabah al nur106, Malika. Vim acompanhá-la no
passeio de hoje. — Ele se dirigiu à enfermeira. — Pode ir,
Layla.
Ela agradeceu e se retirou, deixando-nos sozinhos.
— Yalla107, Malika. O jardim nos espera — disse com
humor, fazendo-me rir.
Fomos para o jardim externo privativo da ala, onde já
estávamos acostumados a nos encontrar.
— Como foi a sua noite? — ele perguntou de repente.
Em momento algum achei que aquela fosse uma
pergunta casual. Até poderia ser, se eu não o tivesse visto com
Layla, ambos conversando com cara de preocupação.
— Pela pergunta, acho que Layla andou falando
alguma coisa.
Ele não negou.
— Ela comentou comigo que você teve um pesadelo,
mas foi só depois que perguntei se a noite tinha sido tranquila.
Não a culpe por partilhar isso comigo. Layla gosta muito de
você e de Kismet.
— Também gostamos muito dela.
— Posso saber que pesadelo foi esse?
Fora a doutora Bushra, Yusuf era a única pessoa que
sabia de grande parte do que sofri na prisão. Eu já havia
confidenciado muita coisa para ele, mas não sabia até que
ponto conseguiria falar da parte mais podre.
— Momentos dolorosos da prisão, só isso. Eles vão e
vêm na hora que querem. Não consigo prever nem ter controle
sobre eles.
— Normalmente são acionados por um gatilho que
muitas vezes nem sabemos qual é. No seu caso, acredito que
o gatilho tenha sido o atentado ou, mais certo ainda, foi ter visto
alguém parecido com o supervisor prisional entre os
refugiados.
Daquelas duas opções, eu não duvidava que a
segunda havia sido o meu gatilho.
— Eu fico com a segunda opção. E você? — Yusuf
insistiu, parecendo determinado a descobrir, como se assim
conseguisse eliminá-lo de vez e nunca mais eu ter pesadelos.
— Também.
Ele não pareceu surpreso. Era como se só quisesse
confirmar o que já sabia.
— Talvez falar seja melhor para você do que calar,
Malika. Não quer desabafar alguma coisa comigo? Se isso não
resolver o problema, pelo menos vai fazer com que se sinta
melhor.
— Não consigo falar tudo.
— E nem precisa. Fale apenas o que quiser. Posso
ajudar pedindo que me conte tudo o que sabe sobre este
Hisham Al Amari.
— Conseguiu descobrir alguma coisa sobre ele?
Eu tinha certeza de que Yusuf havia pedido uma
investigação sobre o homem, não apenas por ser um forte
suspeito dos atentados, mas também pela ligação com
Thueban.
— Nem precisei fazer uma investigação. Conversei
com Assad sobre o que você me contou e ele me passou todas
as informações que eu precisava — disse, surpreendendo-me.
— Tivemos mesmo muita sorte ao contratar o Assad. Ele tem
sido uma peça fundamental para lidar com os problemas
relacionados à Sadiz.
Falar de Assad me fez ficar preocupada com ele.
— E como ele está? Se feriu muito? Era para eu ter
perguntado ontem à noite, mas me esqueci.
Não precisei dizer o motivo que me fez esquecer de
perguntar por Assad. Recebi um olhar profundo de Yusuf que já
dizia tudo.
— Fique tranquila, Assad só teve ferimentos leves.
Ficou preso em uma parte dos dormitórios com cerca de vinte
pessoas quando a bomba explodiu. Conseguimos resgatar
todos com vida depois de algumas horas, mas ele já estava
liderando um grupo de homens lá dentro para começarem a
tirar os escombros.
— Allah seja louvado!
— Que seja eternamente abençoado. Considerando
que foram três bombas explodindo em sequência, tivemos até
poucas baixas entre os civis. Foram cinco vidas perdidas, uma
delas de um militar.
Fiquei arrasada quando o ouvi.
— Oh, eu não sabia dessas mortes, Yusuf! Não saiu
nada nos noticiários ontem à noite.
— Ainda não tinha sido divulgado o número de mortos.
Saqr e eu só saímos de lá quando o trabalho de busca e
resgate foi concluído. Entre os civis, dois eram funcionários do
centro de acolhimento e os outros dois eram refugiados.
Uma tristeza imensa se abateu sobre mim.
— Nunca pensei que viveria isso na minha vida.
Ele me olhou muito sério.
— Tenho certeza de que também nunca imaginou ser
encarcerada pelo seu tio em uma prisão como Thueban.
Yusuf tinha razão e voltei a suspirar diante da maldade
de alguns homens. Admirei a beleza do jardim, o brilho do sol
iluminando o palácio, a maravilha que era a vida.
— O mundo seria um lugar melhor se não houvesse
tanta maldade no ser humano.
— São minoria, garanto. A grande maioria da
população mundial não é assim. — Ele se aproximou mais e
segurou discretamente a minha mão enquanto caminhávamos
lentamente. — Não fique triste nem perca a esperança no
mundo, Malika. Só Allah sabe, em sua grande sabedoria, o
motivo por trás de tudo.
Ele acariciou a minha mão em um gesto de conforto e
depois entrelaçou os dedos nos meus. Senti uma comunhão
única com ele e suspirei, feliz.
Fizemos parte do percurso em silêncio, apenas
aproveitando a companhia um do outro. Eu havia encontrado o
homem do meu destino e orei em gratidão por aquilo.
— Quase não acreditei quando vi você ontem em Azra.
Por que não me avisou que estava voltando de Nova York?
— Quis pegar você de surpresa e ver a sua reação.
Esperava que deixasse transparecer o que sentia por mim. —
Um meio sorriso curvou os lábios dele. —Acabei descobrindo
da melhor maneira, quando conversamos à noite.
Ele apertou a minha mão em um gesto significativo e o
olhei discretamente, admirando o perfil tão masculinamente
belo. Eu queria ser feliz com Yusuf e tinha noção de que só
superando o passado é que conseguiria. Esperava apenas
alcançar aquela superação.
— Não sei muita coisa sobre Hisham que possa ajudar
— comecei a falar, recebendo um olhar surpreso dele ao me
ver tocar no assunto que parecia ter ficado esquecido. — Fiquei
sabendo que ele era o supervisor prisional assim que cheguei
no quartel-general para onde fui levada após a prisão em
Qasara. Foi para ele que Mubarak deu ordens de me levarem
para Asuid. Passei um tempo lá, que não faço ideia de quanto
foi, e depois me transferiram para Thueban. Hisham sempre
estava acompanhando tudo, fosse em Asuid ou em Thueban.
Não sei se ele era o supervisor prisional de todas as prisões de
Sadiz ou apenas de Thueban, mas entendi que tinha sido
designado como o responsável por mim.
— Assad me contou que Hisham é supervisor apenas
de Thueban, mas é o homem de confiança do seu tio para lidar
com os presos políticos que o governo tem mais interesse —
Yusuf esclareceu. — Pouquíssimas pessoas sabem da
existência daquela prisão. É um projeto secreto de Suleiman e
ele designou o seu homem de maior confiança para comandar
aquilo. Assad já tinha ouvido falar de Thueban, pois os rumores
circulavam entre os oficiais, mas ninguém sabia onde ficava,
exceto quem trabalhava lá. Segundo ele, havia um código de
silêncio que mantinha tudo em segredo. Quem o quebrasse, ia
parar no último andar do subsolo de Thueban e nunca mais
saía de lá.
Estremeci, apesar do sol que me aquecia.
— Se já sofri horrores naquele lugar, nem quero
imaginar o que acontecia no último andar daquele inferno.
Yusuf me surpreendeu ao passar um braço confortador
pelos meus ombros, aconchegando-me na lateral do seu corpo.
— Não podemos!
Ergui o rosto para ele com os olhos arregalados de
espanto.
— Há coisas que só um príncipe pode fazer. Desta vez
vou usufruir do privilégio que tenho e abraçar a minha noiva no
jardim privativo do meu irmão. Aqui não há câmeras de
vigilância. Se alguém nos vir, será o próprio Saqr, a Kismet ou a
Layla. Agora relaxe e esqueça Thueban. Eu não devia nem ter
tocado no assunto.
Relaxei, aproveitando a sensação maravilhosa que era
estar abraçada com ele daquela forma. Continuamos a passear
pelo jardim.
— Você também pode usufruir do privilégio de ser uma
princesa e me abraçar pela cintura, Malika — ele sugeriu em
tom de riso.
Não pude deixar de rir também e ousei quebrar a regra,
passando um braço pela cintura dele. A sensação foi muito boa
e fechei os olhos enquanto caminhávamos abraçados, sentindo
o sol ameno da manhã tocando o meu rosto.
Quando os abri, notei que Yusuf me observava e
trocamos um olhar apaixonado.
— Case-se comigo.
Arquejei ao ser pega desprevenida com o pedido
repentino. A perplexidade foi tanta que até diminuí os passos.
Ele está me pedindo em casamento!
A felicidade explodiu no meu peito quando aquela
certeza entrou no meu cérebro.
— Quero que seja minha esposa. Quero cuidar de
você, quero amar você, quero ter filhos e construir uma família
ao seu lado.
Filhos! Família!
Aquilo significava sexo e o meu corpo gelou na hora.
Ao me entregar ao amor que sentia nos braços dele, esqueci
completamente que amor implicava em sexo entre o casal e eu
não sabia se estava preparada para aquilo.
A bolha do meu sonho estourou com a mesma força
das bombas que explodiram no dia anterior e a imagem odiosa
de Hisham voltou a surgir na minha frente, destruindo tudo.
Pela primeira vez desde que o conheci, analisei Yusuf
sob um ponto de vista diferente do homem protetor, amigo e
honrado com quem me senti em segurança logo no resgate e
por quem me apaixonei pouco tempo depois. Eu precisava vê-
lo como um homem que também sentia desejo sexual como
qualquer outro.
Na noite anterior, eu mesma havia sentido a força que
havia naqueles braços musculosos e não era difícil imaginar
que o restante do corpo fosse igualmente forte, uma máquina
de guerra. Forte, saudável e, sem dúvida alguma, sexualmente
ativo.
À minha mente veio a imagem de Rana, provavelmente
apenas uma das várias amantes belíssimas que Yusuf teve
durante todo aquele tempo em que ficamos falsamente noivos.
Tentei não pensar no fato de que atualmente ele devia ter uma
amante.
Não havia o que questionar da minha parte, uma vez
que o noivado tinha sido apenas um acordo, uma farsa para
manter o meu tio longe de mim. Contudo, agora que surgiu
aquele pedido de casamento, não havia como fugir da
realidade. Uma realidade que caiu de uma única vez na minha
cabeça e que me deixou devastada.
Além daquelas prováveis amantes, havia o contexto
sexual do casamento. Apesar do amor que sentia por Yusuf, eu
não fazia a mínima ideia de qual seria a minha reação na hora
do sexo. E se eu não conseguisse ir até o fim? Continuaríamos
casados por obrigação e ele permaneceria com as amantes?
A minha mente traiçoeira trouxe de volta o horror da
sala de tortura sexual de Thueban, o mais hediondo contato
que tive com o assustador poder que o desejo sexual exercia
sobre os homens.
A lembrança de Hisham com o genital exposto depois
de estuprar Hessa surgiu com força total na minha mente. Sem
que eu pudesse controlar, os demônios que me assombravam
colocaram Yusuf também nu à minha frente, igualmente
excitado. Era como se quisessem me dizer que não havia
diferença entre um e outro quando estavam dominados pelo
instinto sexual.
Não, o Yusuf não é assim!!!
Tentei tirar aquele pensamento da minha mente, mas a
incerteza já estava plantada quando me afastei dele e Yusuf
percebeu.
— Você está se sentindo bem, Malika? Ficou pálida de
repente.
— Eu... eu não sei se conseguirei ser sua esposa por
completo.
Ele ficou sério ao entender o que eu disse.
— Confio que o nosso amor será mais forte do que
qualquer trauma que você tenha. Eu confio nisso!
— Você não entende, Yusuf. Isso são duas coisas
totalmente diferentes para mim. Amo você, mas não sei se
conseguiria ter... a intimidade que um casamento exige.
— Não é uma exigência do casamento. É algo que
surge naturalmente com o aprofundar dos sentimentos, do
amor — ele explicou com paciência.
— Ainda assim há a possibilidade de eu não conseguir
e essa incerteza pode no futuro destruir o sentimento que
temos hoje. Prefiro não aceitar o seu pedido.
Ele inspirou profundamente, as narinas se dilatando e o
peito amplo se expandindo ainda mais diante da minha
negativa.
— Não negue sem pensar com calma no meu pedido.
Você ainda está muito abalada com tudo o que aconteceu
ontem.
Neguei veementemente com a cabeça, a imagem de
Hisham dominando a minha mente.
— Tudo o que aconteceu em Thueban foi tão horrível e
nojento! — desabafei, alterada, afastando-me ainda mais dele.
— Não consigo ver aquilo como algo vindo de Allah e nunca
mais quero me submeter a nada parecido.
As feições de Yusuf endureceram ainda mais.
— O que aconteceu? Se submeter ao quê? —
perguntou de maneira incisiva. — Se não me contar, nunca vou
saber contra o que devo lutar, nem o que devo fazer para que
se sinta segura comigo, muito menos o que “não” devo fazer
para manter você comigo. Estou lutando há anos contra um
inimigo que não posso abater porque não sei nem o que é.
Virei-me de costas para ele, incapaz de falar. A
vergonha e a humilhação que eu sentia eram grandes demais
até para o olhar de frente.
— Um estupro jamais será uma obra de Allah, Malika
— ele sussurrou às minhas costas em um tom de voz mais
controlado. — O que um casal que se ama faz é amor. Amor! E
é isso o que nós dois faremos quando nos casarmos. Aceite o
meu pedido, por favor.
— Não sei se conseguirei.
— Só saberá se tentar. Eu estou disposto a tentar. Se
você não conseguir, prometo que não insistirei até que se sinta
pronta para isso.
Virei-me de frente para ele, ganhando coragem para o
encarar.
— Posso nunca me sentir pronta e não vou prender
você a uma promessa dessas, Yusuf! Não é justo que fique
preso à uma esposa que nunca poderá tocar, uma esposa que
pode nunca conseguir... satisfazê-lo na cama. A sua vida vai
ser um inferno e a minha também. Estaremos nos destruindo.
Destruindo um sentimento lindo que temos hoje.
— Pare de se sacrificar pelos outros pelo menos uma
vez na vida e pense em si mesma. Eu estou disposto a arriscar
tudo o que for preciso para ficar com você. Aceite isso e não
pense em mim. Agarre essa chance de ser feliz.
— Como é que posso não pensar em você? Serei a
responsável pela sua infelicidade se for egoísta o suficiente
para aceitar algo sem levar em consideração as consequências
futuras. — Resolvi ir mais a fundo, mesmo sendo aquele um
assunto que doía em mim. — Sei das suas amantes, mas uma
coisa é aceitar isso sendo uma falsa noiva e outra é aceitar
sendo sua esposa. Vamos supor que eu nunca consiga superar
o trauma que tenho comigo, você vai procurar uma segunda
esposa? Eu jamais vou aceitar que o meu marido tenha outra
esposa além de mim, muito menos amantes.
Ele comprimiu os lábios e um músculo pulsou na
mandíbula barbada.
— Nunca tive a intenção de ter uma segunda esposa.
Será só você.
— E o que vai fazer quando sentir vontade de... de ter
prazer? — obriguei-me a perguntar.
— Satisfaço-me sozinho! Cansei de ir para a cama com
outras mulheres fingindo que elas são você — respondeu com
raiva, chocando-me, e depois soltou um suspiro de
arrependimento. — Peço desculpas pela maneira grosseira
como falei, mas essa é a pura verdade. Estou cansado de ficar
com outras mulheres pensando em você, fantasiando com
você, Malika. Sonho com você há anos, seja me pedindo ajuda,
seja se entregando a mim. Nada do que me disse até agora
mudou a minha decisão de fazer com que seja minha esposa.
Apesar de estar impressionada com o que ele disse,
havia um outro motivo muito forte para não nos casarmos.
— Acho que deveria pensar melhor na sua decisão,
Yusuf. Até quando você acha que o Sheik Rashid vai ficar de
braços cruzados esperando um neto que nunca vai chegar?
Você também quer ter filhos.
Notei logo que atingi o ponto fraco de Yusuf ao falar de
filhos e mordi o canto da boca. Eu sabia que não havia me
enganado com a expressão no rosto dele ao ter Zayn nos
braços.
— Não faça isso com nós dois — ele pediu, fechando
os olhos e senti o conflito que o dilacerava.
— Eu preciso fazer isso e é por nós dois. Se eu me
casar com você, não passarei de uma esposa intocada. Prefiro
no futuro ter ao meu lado um amigo que amo muito do que um
marido amargurado, cujo amor não resistiu à insatisfação.
Ele abriu os olhos e vi o amor brilhando neles.
— Considero você como a minha melhor amiga, mas
este não é o sentimento mais forte que existe dentro de mim. A
amizade é secundária. O principal é o amor. Sinto por você o
que um homem sente por uma mulher por quem está
apaixonado, pela mulher que ama com desespero, pela única
que o satisfaz só com a sua presença. Eu amo você, Malika, e
não vou desistir da mulher que amo.
Inspirei fundo e soltei o ar lentamente ao ouvir aquela
declaração. O meu amor só crescia mais a cada minuto de
conversa e doía ter que renunciar a algo tão lindo. Contudo,
Yusuf nem imaginava o tamanho do trauma que me
atormentava e do problema com o qual teria de lidar.
Em uma cultura onde a virgindade era tão valorizada
por todos os homens, não havia espaço para uma mulher como
eu.
Yusuf se aproximou mais de mim.
— Me ajude a ajudar você, Malika. Tente me contar
alguma das coisas que aconteceram na prisão. Aos poucos
conseguiremos superar isso juntos — falou como se tivesse
lido os meus pensamentos.
Eu nunca teria coragem de contar nada do que
aconteceu comigo, quanto mais tudo, mas havia alguém que
poderia fazer aquilo por mim.
Decidida, resolvi que estava na hora de Yusuf enfrentar
a realidade de se casar com uma mulher como eu. Talvez
então ele visse que a minha decisão de recusar o pedido de
casamento era a mais acertada.
— Posso pedir que converse com a doutora Bushra
sobre isso?
Ele foi pego totalmente de surpresa com aquela
pergunta. Notei que não esperava mesmo que eu sugerisse
uma conversa dele com a médica que me atendeu logo após o
resgate.
— Ela não vai me contar nada se eu perguntar, nem eu
exigiria que o fizesse.
— Vou ligar para ela e autorizar que conte.
Yusuf assentiu com uma expressão que não consegui
decifrar.
— Quando? — perguntou, sem transparecer nada do
que estava sentindo.
— Farei isso hoje mesmo e pedirei que ligue para
marcar com você o melhor horário.
Apesar de a minha voz estar firme, eu me sentia
insegura por dentro. Só esperava que ao saber de tudo, ele
não desistisse até de ser meu amigo.
Capítulo 44
Yusuf
Eu não queria conversar com a doutora Bushra sobre o
que Malika sofreu na prisão. Queria que fosse a própria Malika
a me contar. Na minha concepção, aquela conversa ia nos unir
ainda mais como casal, fortalecendo os laços de confiança e
solidificando o nosso amor.
Acabei por ir ao consultório da médica no hospital
muito mais para atender ao pedido de Malika do que por
vontade própria. Conformei-me, dizendo a mim mesmo que
pelo menos aquilo serviria como motivo para termos uma nova
conversa sobre o assunto.
Sentei-me na cadeira em frente à mesa da doutora
Bushra após os cumprimentos habituais e aguardei.
— Como vossa alteza já sabe, a princesa Malika me
autorizou a partilhar as informações que me forneceu quando
deu entrada no hospital após o resgate. Só queria dizer que
são informações confidenciais, muitas delas nem fazem parte
do dossiê médico que consta no nosso arquivo. Guardei-as
para mim mesma, com o intuito de proteger a princesa.
Eu entendia a atitude da médica, mas achei melhor
esclarecer o que eu achava de tudo aquilo.
— Agradeço que tenha mantido e que continue
mantendo este assunto em sigilo absoluto. A única coisa que
quero ao saber destas informações, é encontrar uma maneira
de ajudar Malika a superar qualquer trauma que ainda tenha
com o que passou na prisão. Sinto que ela não vai superar o
que a aflige enquanto não conversar abertamente comigo. Eu
sei o que acontece nas prisões ao redor do mundo, doutora.
Não foi difícil para mim deduzir que Malika foi vítima de
estupro. Pela reação dela todas as vezes em que toco no
assunto, isso ficou mais do que óbvio, mas saber o que fizeram
com ela não muda nada do que sinto pela minha noiva.
Agradeço muito mais a sua ajuda se puder falar com a Malika e
dizer que se abra comigo. Que seja ela a me contar o que
passou.
A médica fez um gesto de assentimento e
compreensão, ajeitando melhor os óculos sobre o nariz.
— Eu entendo, mas peço que me perdoe por discordar,
alteza. — Ela foi sincera e corajosa ao assumir que não
concordava com o que eu disse. — Apesar de entender os
motivos do príncipe, também entendo os motivos da princesa.
Não me refiro à virgindade, mas do quanto é difícil para uma
mulher que sofreu qualquer tipo de assédio ou abuso sexual ter
que falar sobre o assunto com outra pessoa. Se for com um
homem então, será mais difícil ainda, mesmo ele sendo o seu
noivo. É compreensível demais que a princesa prefira que seja
eu a contar, do que contar ela mesma. Há muita vergonha,
humilhação, medo e desvalorização em causa.
Respirei fundo, o meu instinto protetor se aguçando
cada vez mais a cada palavra que a médica dizia. Pela minha
vontade, eu estaria agora ao lado de Malika para a abraçar
junto ao peito e não mais largar.
— Shukran, doutora. Acho que eu estava precisando
ouvir isso — admiti o meu erro. — A única justificativa que
posso dar é que quero muito ajudar Malika a ultrapassar logo
esta fase. Sei que parece que estou pressionando para que
seja algo rápido, mas a verdade é que já se passaram três
anos desde que ela chegou em Tamrah e sinto que o trauma
ainda persiste. Acho muito tempo para ela ainda não ter
conseguido superá-lo.
— É mais certo eu afirmar que uma mulher nunca vai
superar este tipo de trauma do que dizer o contrário, alteza.
Lógico que há exceções, mas são muito raras e sempre ficará
um resquício do trauma no subconsciente. Não temos como
determinar um tempo certo para ser superado.
Suspirei, sentindo-me derrotado.
— O que me aconselha a fazer para lidar com uma
noiva vítima de estupro?
Recebi um outro olhar de compreensão dela.
— A princesa Malika não foi estuprada da maneira
como o príncipe deve estar pensando — a médica disse,
pegando-me de surpresa com aquela informação. — Permita-
me ser mais explícita e falar de alguns detalhes sexuais,
apesar de saber que este é um assunto que vossa alteza
normalmente conversaria com um médico como o doutor Fadel
e não comigo, uma médica.
Eu já estava quase mandando as convenções à merda,
diante da urgência que sentia em saber o que realmente havia
acontecido com Malika. Algo me dizia que eu ia sair daquela
sala querendo esmurrar a cara de muito filho da puta, a
começar por Suleiman e Mubarak, que a colocaram na prisão.
Apesar de querer acabar com a raça dos dois, quem eu
realmente queria era o homem que a estuprou.
— Fale, doutora — autorizei, controlando a raiva.
— A princesa me contou que foi obrigada a participar
de um ato sexual com um homem na prisão, mas não houve
nenhum tipo de penetração. Para ser mais direta, não foi um
estupro da maneira tradicional como estamos acostumados,
com penetração vaginal ou anal.
Cerrei os punhos ao ouvir aquilo, sem querer imaginar
nenhuma das duas situações citadas pela médica.
— Pude comprovar isso nos exames que ela permitiu
que eu fizesse durante os dias em que ficou internada aqui.
Quando conversamos na primeira consulta, a princesa estava
muito abalada e confusa. Sequer sabia se ainda era virgem, o
que é compreensível, considerando a falta de informações
sexuais que muitas mulheres têm, além do trauma pelo qual ela
passou. Pedi permissão para fazer um exame ginecológico
completo que me desse a certeza das reais condições físicas
que ela tinha quando deu entrada no hospital. Eu precisava
saber se houve algum tipo de contato sexual, pois era preciso
tomar uma série de providências importantes e imediatas, fazer
exames específicos, incluindo o de gravidez, além de
prescrever a medicação certa caso houvesse HIV ou outras
infecções sexualmente transmissíveis. As análises deram
negativas para tudo que fosse de cunho sexual.
Nem que eu quisesse interromper a doutora Bushra
naquele momento, conseguiria. Sentia-me abalado até os
ossos com aquela enxurrada de informações que a médica
estava me dando sobre a mulher que eu amava. Só conseguia
me lembrar da aparência frágil, doentia e assustada de Malika
quando a deixei aos cuidados da doutora Bushra três anos
atrás.
— Depois dos exames que fiz nela, posso afirmar que
a princesa chegou aqui virgem, se considerarmos que
virgindade é a ausência de penetração e a existência do hímen
— a médica continuou, sem fazer a mínima ideia de como eu
me sentia. — Segundo a princesa Malika me contou, foi
preservada por ordens do tio, que a queria virgem para
negociar um casamento futuro. Tanto foi assim, que foram
destacadas duas mulheres guardas prisionais para fazerem a
vigilância dela.
Duas guardas?
Eu não esperava por aquilo. Sempre achei que ela
havia ficado sob a supervisão direta de Hisham.
— E onde se encaixa o homem que abusou dela?
— Não sei como ele conseguiu ter acesso à cela da
princesa. Ela não me contou detalhes sobre isso. Também não
sei se era uma espécie de técnica de tortura psicológica deles,
mas ela me contou que no começo eram apenas toques
íntimos nos seios, nas nádegas e insinuações de estupro.
Nunca houve nenhuma tentativa, até o dia em que ele entrou
na cela e tentou que lhe fizesse sexo oral. — A doutora
meneou a cabeça com tristeza e reprovação, enquanto eu só
queria sair dali e socar até à morte o desgraçado que fez aquilo
com Malika. — Eu estou afirmando que foi sexo oral por
dedução, porque a princesa me disse que não sabia o que ele
queria quando aproximou o genital da boca dela.
Ibn sharmouta!!!108
Furioso, só agora eu entendia as palavras de Malika.
“Tudo o que aconteceu em Thueban foi tão horrível e
nojento. Não consigo ver aquilo como algo vindo de Allah e
nunca mais quero me submeter a nada parecido.”
Os meus músculos até doíam de tão contraídos de
tensão que estavam. Quando saí de casa para aquela
conversa com a médica, nunca pensei que ela seria tão difícil
assim. Achei que ouviria apenas o que já sabia, sem muitos
detalhes, e que depois poderia voltar para casa, dizer à Malika
que já havia conversado com a médica e pedir novamente que
se casasse comigo. Jamais imaginei que ficaria no limite de
perder o controle daquele jeito.
— Perguntei o que aconteceu depois. Ela disse que
lutou para se libertar e conseguiu, mas desmaiou quando foi
golpeada com um soco. Senti orgulho dela quando me contou
isso. Temos uma princesa muito corajosa — a doutora disse
com um olhar de aprovação.
— E o que aconteceu depois? — foi a minha vez
perguntar o que havia acontecido, ansioso para saber o que
mais Malika confidenciou à médica.
— A princesa disse que estava sozinha na cela quando
voltou à consciência e não sabe se ele fez alguma coisa com
ela durante o tempo em que ficou desacordada, daí a dúvida se
ainda era virgem. Perguntei se havia notado sangue entre as
pernas, se sentiu dor ou notou algum tipo de secreção na
região genital e ela disse que não. A única coisa que notou foi
que sentia muitas dores nos hematomas dos braços por causa
da luta e no rosto inchado do soco que levou. Apenas a abaya
estava suja na altura dos seios com “algo pegajoso”. O homem
não chegou a despi-la, a intenção era mesmo o sexo oral.
Deduzi que se masturbou quando ela perdeu a consciência e
foi embora, já que não podia fazer outra coisa com ela sem que
lhe tirasse a virgindade.
Soltei a respiração que estava presa quando ela
finalizou.
— Ele voltou depois?
— Perguntei a mesma coisa e a princesa negou. Disse
que assim que conseguiu falar com as guardas contou o que
tinha acontecido, dizendo que ele tentou estuprá-la e que o tio
ia ficar furioso se aquilo acontecesse. Não havia prova maior
do que o rosto inchado. O homem não voltou. Segundo ela,
nunca mais o viu na prisão até o dia em que foi resgatada e
veio para cá.
— Ela falou algo sobre a identidade desse homem?
— Não, apenas comentou que os homens que
participavam das torturas sexuais estavam sempre
mascarados.
Analisei tudo em silêncio por alguns instantes.
— Por tudo o que me contou agora sobre o que
aconteceu na cela de Malika, fiquei com a impressão de que
ela sabe quem é ele.
— Sim, também fiquei com essa impressão, alteza. Ela
falava como se o conhecesse.
Restava saber se Malika um dia me contaria quem era
ele.
— Apesar da certeza que dei para a princesa de que
continuava virgem, ela me disse que não se sentia mais virgem
depois de tudo o que viu e de todos os abusos que sofreu, o
que é compreensível. Foi por isso que falei no início da nossa
conversa que é muito vergonhoso e humilhante para ela ter de
contar esses detalhes para um homem, mesmo sendo um
noivo que ama. É normal que também sinta um certo receio da
reação que as pessoas vão ter ao saberem do que passou e
qual será a maneira como a vão tratar. Ainda haverá respeito,
principalmente dos homens? Por mais que tente, a mulher
sempre se sente desvalorizada, ainda mais em uma cultura que
valoriza tanto a pureza e a virgindade.
Eu tinha consciência da verdade daquelas palavras,
que me ajudaram a entender melhor os motivos de Malika.
— Shukran, doutora — agradeci, emocionado com a
consideração dela por Malika. — Há mais alguma coisa que eu
precise saber?
— Não, alteza. Já contei tudo o que sei sobre o que a
princesa sofreu na prisão e só espero ter ajudado os dois de
alguma forma.
— Ajudou muito.
Despedi-me dela e saí de lá determinado a falar com
Malika. Entrei no Bugatti e liguei logo para ela, mas a chamada
caiu sem que atendesse. Fiz imediatamente outra ligação,
daquela vez para Layla.
— Liguei para Malika, mas ela não atendeu. Você está
com ela?
— Sim, alteza. A princesa estava com dor de cabeça e
foi descansar. Agora está dormindo.
— Quando ela acordar, peça que me ligue.
— Farei isso.
Frustrado por não poder falar com ela naquele instante,
joguei o celular no banco e liguei o carro, dirigindo
pensativamente pelas ruas de Jawhara.
Desde que soube que Kismet tinha uma irmã que
estava presa, deduzi que ela não escaparia dos abusos
sexuais na prisão. Durante todo aquele tempo que conhecia
Malika, achei que o estupro tivesse acontecido com ela
também e não apenas com a amiga ativista chamada Hessa.
Agora que eu sabia da verdade, fui dominado por uma mistura
de alívio por ela não ter sofrido uma atrocidade daquelas, e de
raiva por ter sido forçada sexualmente de uma outra maneira.
Eu entendia que Malika sentisse vergonha de me
contar aquilo ou que se sentisse insegura com a minha reação,
mas nada do que eu havia acabado de saber mudou o que
sentia por ela.
Achei que não fosse possível amar Malika mais do que
já amava, mas eu estava enganado. O meu amor só aumentou
depois da conversa com a médica.
Capítulo 45
Yusuf
Tentei falar com Malika duas vezes naquele dia e não
consegui. Era sempre a Layla quem me atendia dizendo que
ela continuava dormindo. Na segunda vez, cheguei à conclusão
de que Malika estava evitando falar comigo.
Eu já não aguentava mais andar de um lado para o
outro no meu quarto, incapaz de me concentrar no trabalho ou
em qualquer coisa que fosse. Determinado, saí de lá e fui para
a Ala do Falcão falar com ela.
Quando estava no corredor que conduzia à ala, cruzei
com Saqr que vinha saindo de lá, concentrado no celular.
Cumprimentei-o rapidamente e já ia seguir o meu caminho
quando ele me segurou pelo braço com firmeza.
— Ei, para onde vai com esta cara?
Tentei disfarçar a tensão.
— Vou falar com Malika.
Ele me olhou com atenção e segurou o meu braço com
mais força.
— Não, não vai. Primeiro vai me contar o que está
acontecendo.
— Não se preocupe, está tudo bem.
— Se está tudo bem, por que essa cara antes de falar
com ela?
Suspirei pesadamente e soltei a verdade.
— Estou apenas chateado porque ela está evitando
falar comigo.
— Se ela não quer falar agora, não insista. Dê um
tempo até que Malika esteja pronta para ouvir o que tem a
dizer.
— Você não entende o que está acontecendo.
— Então me explique, porque não vou deixar você
invadir o apartamento dela alterado do jeito que está.
— Não vou invadir!
— Mas vai insistir, o que dá no mesmo. Ou me explica,
ou não vai. Sou seu irmão e quero ajudar se estiver precisando,
mas não se esqueça que ela é irmã de Kismet. Tudo o que
afeta a minha esposa, afeta duas vezes mais a mim e tenho
certeza que você entende como isso funciona. Quem mexe
com a nossa mulher está começando uma guerra.
Respirei fundo para me acalmar, ciente de que ele tinha
razão. Eu seria capaz de matar muita gente por causa de
Malika.
Saqr soltou o meu braço e guardou o celular no bolso,
aguardando que eu dissesse alguma coisa.
— Eu a pedi em casamento hoje de manhã e ela
negou, alegando que não vai conseguir ter uma vida sexual
comigo. É isso!
O meu irmão me olhou com preocupação.
— Você está apaixonado — afirmou com convicção.
— Estou. — Já não havia o que esconder e admiti o
que sentia por ela. — No início achei que fosse só amizade.
Tentei ser apenas um amigo, por saber que ela consideraria
qualquer outro tipo de aproximação como uma ameaça, mas fui
me envolvendo e hoje estou apaixonado.
— Eu avisei na cúpula que o casamento estava fora de
cogitação para Malika. Ela não quer. Agora vai acontecer o que
eu temia, que é você sofrer com esta situação.
— Mas ela também me ama! Malika admitiu isso para
mim ontem à noite, só que hoje de manhã se assustou com o
pedido de casamento. Agora está me evitando.
— Isso significa que a situação só tende a piorar. Além
de você estar sofrendo, ela também está, algo que eu e Kismet
não queríamos que acontecesse.
Dei um soco no ar, enraivecido e frustrado. Tudo o que
eu queria naquele instante era ter na minha frente o homem
que deixou tantos traumas em Malika.
— Eu quero explodir Thueban!
Saqr me olhou com firmeza, mas também com
preocupação.
— Com a graça de Allah ainda faremos isso um dia.
Agora se acalme, meu irmão. Dê tempo para ela. Desconfio
que tudo tenha de acontecer aos poucos com Malika, muito
lentamente. — Ele me abraçou pelos ombros. — Pense com
calma, raciocine. Hoje é o seu segundo dia em Tamrah depois
que voltou de Nova York e olhe como você está? Como vai
conseguir lidar com esta situação nos próximos dias se já está
perdendo o controle agora?
Allah me perdoe, ele tem razão!
Abracei-o, a desistência doendo no meu peito, mesmo
sabendo que o mais certo a se fazer naquele momento era
desistir de falar com ela.
Saqr me conduziu para fora da Ala do Falcão.
— Nosso pai está nos aguardando no majlis para uma
reunião em trinta minutos. Dá tempo para um passeio rápido
pelo jardim para você se acalmar. Não se esqueça que temos
um bombista para deter e um país inteiro para proteger.
Depois de vinte minutos de caminhada ao lado de Saqr,
senti que estava mais calmo. Ele me puxou pela razão e foi a
melhor coisa que podia acontecer. Se eu fizesse muita pressão
sobre Malika, talvez ela se afastasse mais ainda de mim.
Quando entramos no majlis eu já me sentia
completamente controlado. O que estranhei foi ver a cara de
preocupação do nosso pai.
— Tudo bem, pai? — Saqr perguntou ao notar o
mesmo que eu.
— É só bronca em cima de bronca. — Olhou para mim.
— Temos um assunto sério para resolver, mas vamos aguardar
que sua mãe chegue com a Malika.
Com a Malika?
Troquei um olhar com Saqr, os dois sem entender
nada.
— Por que a Malika precisa estar presente? —
perguntei, desconfiado.
— Deixe que ela chegue. Não estou com disposição
para repetir a mesma coisa duas vezes.
Não demorou nem dois minutos para minha mãe entrar
acompanhada por Malika. Percebi a surpresa no rosto dela
quando me viu, mas que foi logo substituída por uma
expressão de normalidade.
Ficamos os dois lado a lado na frente do meu pai.
— Acabei de receber um ofício com uma solicitação
formal de Suleiman exigindo, repito, exigindo, o retorno
imediato de Malika para Sadiz.
Malika soltou um arquejo de susto que fez o meu
instinto de proteção subir ao nível máximo.
— O quê?! — Dei um passo na frente dela. —
Suleiman não pode exigir isso.
— Sim, pode! — o meu pai afirmou de mau humor. —
No documento ele alega, e com razão, que há três anos você
assumiu um noivado com a sobrinha dele e até hoje não
honrou a sua palavra com o casamento, manchando a
reputação da princesa, desrespeitando a família Al Kabeer e
impedindo que ela se casasse com um outro pretendente. É
quase uma exigência para que ela volte.
— Suleiman não havia adoecido? — Saqr citou aquele
detalhe. — É estranho que agora chegue um ofício dele com
essa exigência. Isso deve ser obra de Mubarak.
— Mesmo que seja obra de Mubarak, Suleiman ainda
não morreu e continua sendo o governante máximo de Sadiz.
O documento está assinado por ele — o meu pai esclareceu
em tom autoritário, visivelmente irritado. — A questão aqui não
é a veracidade do documento, pois sabemos que levar Malika
era algo que Suleiman sempre quis fazer. O estranho foi ele
nunca ter exigido o casamento antes, considerando o tempo
que este noivado de vocês dois se prolongou. O costume é
durar no máximo alguns meses e não três anos! Todos nós
sabemos que o noivado perde a validade quando o casamento
não é realizado depois desse tempo, a menos que seja refeito,
mas há um limite para estas renovações. Suleiman tem nas
mãos tudo para invalidar este noivado de vocês. Ou se casam
agora ou teremos dois grandes problemas para resolver com
Sadiz: os refugiados e Malika.
Não era assim que eu queria conseguir que Malika se
casasse comigo. Tudo estava colaborando para transformar o
nosso relacionamento em um verdadeiro caos e eu sentia que
estava chegando no meu limite.
— Então, o que decidem? — a voz autoritária do meu
pai retumbou no majlis.
— E tem que ser agora? — revoltei-me com aquela
exigência. — Não posso antes conversar sozinho com a
Malika?
— O que mais vocês dois precisam conversar sobre o
casamento que não conversaram nos últimos três anos? — o
meu pai rugiu, perdendo a paciência de vez.
— Calma, pai — Saqr pediu. — Podemos discutir o
assunto sem criar um conflito familiar.
— O senhor sabe que passei os últimos meses em
Nova York e que só voltei agora.
— Se tivessem se casado antes, teriam ido juntos para
Nova York como marido e mulher em vez de arrastarem esse
noivado.
Aquilo era tudo o que eu queria que tivesse acontecido
e a frustração que já me acompanhava há anos explodiu com
tudo.
— Malika não sai de Taj e ponto final! — determinei
com seriedade.
— Isso significa que vão se casar? — o meu pai
pressionou. — Sua mãe pode começar a preparar o
casamento?
Al’ama!109 O que vou responder agora?
— Sim, pode. — A voz suave de Malika soou às
minhas costas, deixando-me em choque.
Senti o olhar de Saqr em mim, mas me mantive
encarando firmemente o meu pai, que olhou para Malika e,
claro, suavizou a expressão. A irritação dele era dirigida só a
mim, que coloquei em causa a honra do nome Al Harbi.
— Aceita se casar com o Yusuf? — perguntou em tom
mais brando.
— Sim, senhor. Aceito.
O meu pai voltou a me olhar e nem estranhei que fosse
novamente com autoridade. Ele estava realmente irritado
comigo.
— E você, Yusuf? Aceita se casar com a Malika?
Ela estava sendo forçada a um casamento que não
queria, que já tinha negado, mas que as circunstâncias agora a
obrigavam a aceitar. Eu queria que ela me aceitasse pelos
motivos certos, só que jamais a deixaria desprotegida.
— Aceito.
— As comemorações do casamento começam amanhã
mesmo e vão durar três dias! — Decretou com a autoridade de
um rei e não de um pai. — Não vai ser Suleiman ou Mubarak
que vão desonrar o nome da família Al Harbi. Quando eu
responder a este ofício, vai ser para dizer que Malika já é
esposa do meu filho Yusuf. Farah, prepare tudo para a
cerimônia em caráter de urgência. Saqr, providencie o registro
civil imediatamente, pois é com ele que vou calar a boca dos
governantes de Sadiz.
Capítulo 46
Malika
Eu já tive muitos sonhos com o dia do meu casamento
e também muitos pesadelos que me impediam de realizar
aqueles sonhos, mas nada do que imaginei se parecia com o
que realmente aconteceu: um casamento por decreto real.
Kismet ficou entusiasmada, mesmo sabendo que eu só
estava me casando para não cair novamente nas mãos dos
homens da nossa família.
— A vontade de Allah às vezes é um mistério para nós,
mas é cheia de sabedoria e não devemos duvidar desta
sabedoria — ela disse com um sorriso de felicidade assim que
soube. — Você nunca falou nada para mim, mas sinto que ama
o Yusuf. Eu nunca conversei com o Yusuf sobre isso, mas Saqr
confidenciou comigo que o irmão ama você, e que você sabe
disso. Acho que o motivo do casamento não importa se há
amor entre os dois.
Kismet tinha razão, mas até que ponto só o amor seria
suficiente quando o desejo sexual falasse mais alto em Yusuf?
Incapaz de mudar o que o destino havia traçado,
aceitei a vontade de Allah, participando dos preparativos para o
casamento. Um casamento que, pelo longo tempo de noivado,
era realmente para já ter acontecido, como bem falou o Sheik
Rashid. Eu tinha de reconhecer que me acomodei com o
noivado prolongado, mas foi mesmo pela falta de exigência do
meu tio para o casamento acontecer. Os meses foram
passando e se transformaram em anos sem que ninguém em
Sadiz se lembrasse de questionar sobre o casamento. Cheguei
mesmo a achar que haviam desistido de mim, concentrados na
luta pelo poder e nos problemas internos do país, que só
cresciam com o passar dos anos.
Agora, com aquela doença do meu tio e com Mubarak
assumindo no lugar dele, não demorou para o meu primo se
lembrar de mim. Eu desconfiava que ele estava por trás
daquela exigência muito mais do que o meu tio Suleiman.
No dia anterior à cerimônia, passei pela tradicional
massagem corporal com um creme à base de açafrão, sândalo
e óleo de jasmim. Por causa das minhas cicatrizes nas costas,
pedi que fosse Layla a fazer a massagem.
O ritual de pintura dos pés e das mãos com as
tatuagens de henna para atrair sorte e fertilidade foi um
momento alegre entre as mulheres. Acabei por me divertir mais
do que pensei, principalmente com Sabirah. Apesar de ela
estar cursando Direito em Londres, veio especialmente para o
casamento. Como só as mulheres solteiras podiam aplicar a
henna na noiva, foi ela quem liderou o ritual.
Seguindo o costume da nossa cultura, não vi mais o
Yusuf até o momento em que ficamos diante do sacerdote. Ele
estava lindo com a vestimenta tradicional, mas o rosto
permanecia tão sério quanto no dia em que nos encontramos
no majlis do Sheik Rashid e fomos confrontados com a
exigência do meu tio para que eu retornasse à Sadiz. Yusuf
exalava revolta e raiva naquele dia com a imposição do
casamento e cheguei a vacilar na hora de dizer que podiam dar
andamento à cerimônia.
Na hora, o medo de ser obrigada a voltar para Sadiz
me fez aceitar, mas depois, sozinha no meu quarto, duvidei da
minha decisão. Pela reação negativa de Yusuf diante do pai,
ele provavelmente havia mesmo desistido de se casar comigo
depois da conversa com a doutora Bushra. Quando aceitei o
casamento, nem me lembrei daquele detalhe, mas depois
pensei bem e vi que era uma possibilidade. Uma grande
possibilidade.
Não tive outra opção além de seguir em frente com o
casamento. Era para ser um dia feliz, e até que foi, mas só
durante o tempo em que fiquei com as mulheres. Quando entrei
no local da cerimônia e vi a fisionomia séria de Yusuf, senti logo
um baque no coração. Ficou muito claro para mim que ele não
estava feliz.
Apenas na hora de dizer os votos de casamento foi que
ele se pareceu com o antigo Yusuf que eu conhecia.
— Aceito Malika bint Abdullah bin Zayed Al Kabeer
como minha esposa. Ela permanece para sempre sob os meus
cuidados e a minha proteção.
O olhar estava profundo quando proferiu aquelas
palavras e as mãos apertaram as minhas em um gesto
confortador, como se ele quisesse reforçar o que havia
acabado de dizer.
Fosse o que fosse que estivesse acontecendo dentro
do íntimo dele, não havia mais como voltar atrás. O casamento
estava oficializado e a comemoração de todos os presentes foi
grande. Não pude deixar de sorrir diante da alegria dos
familiares e dos convidados, que atiraram confetes e moedas
depois que o sacerdote nos declarou casados.
Mubarak
Sorri com satisfação quando o meu celular tocou e vi
quem era. Atendi confiante de que agora poderia voltar a
estreitar mais os laços de amizade com Majdan.
Se ele estava me ligando, só podia ser por já ter
voltado de viagem e estar em Tamrah. O meu serviço de
espionagem já havia me informado que foi Majdan quem
assumiu o lugar de Yusuf nas negociações da Global Harbi em
Nova York, o que era ótimo para mim. Aquilo significava que o
meu amigo estava reconquistando aos poucos a antiga posição
de liderança no governo do pai, podendo vir a me favorecer
futuramente.
Eu precisava manter a nossa amizade a qualquer
custo.
— Salaam Aleikum, meu amigo! Que satisfação voltar a
falar com você.
— Alaikum As-Salaam, Mubarak — o cumprimento foi
educado, mas frio. — O que Hisham Al Amari faz em Tamrah?
A pergunta ríspida e direta me pegou desprevenido.
Fiquei alarmado ao vê-lo citar o nome do homem que eu tinha
enviado à Tamrah para trazer Malika de volta. O meu susto
tinha a ver com o fato de já ter mandado Hisham Al Amari
voltar para Sadiz assim que soube do casamento de Malika
com Yusuf. Aquilo foi algo que fiz com a maior raiva do mundo,
mas que tinha de ser feito. Eu não podia sequestrar uma
mulher casada com um dos príncipes de Tamrah, ainda que a
mulher em causa fosse uma prima que eu queria para mim.
O que eu não estava entendendo era como Hisham
agora estava preso, se havia recebido ordens para voltar.
Não era para ninguém ficar sabendo da presença do
ex-militar em Tamrah, muito menos o Sheik Rashid e os seus
filhos.
Que grande merda!
Eu precisava contornar urgentemente aquela situação.
— Hisham Al Amari? Pelo nome não me lembro de
conhecer — respondi com seriedade, decidido a tentar
descobrir o que o filho da puta do homem havia feito de errado
para ser descoberto.
— Ele é um ex-militar do seu exército. Você pode até
não o conhecer pessoalmente, mas algum dos seus generais
conhece e o designou para esse trabalho, atendendo às suas
ordens.
— Não me acuse sem provas, meu amigo. Este
homem está em Tamrah?
— Ele agora está na prisão e eu avisei a você que não
fizesse nada contra a minha família — lembrou-me com uma
voz grave e ameaçadora.
— E não fiz! Dou a minha palavra que não fiz nada —
afirmei categoricamente.
De certa maneira eu estava sendo sincero, afinal,
suspendi a missão que havia destinado a Hisham. O homem
disse que demoraria um pouco para conseguir sair de Tamrah
sem chamar a atenção da força militar que patrulhava as
fronteiras, mas nunca sequer imaginei que ele continuava
tentando pegar Malika.
— Não foi o que ele disse quando tentou matar a
esposa do meu irmão.
Gelei ao ouvir aquilo.
Mas que filho da puta!
— Ele tentou matar a Malika?
— Exatamente isso.
— Você sabe que eu sempre a quis para mim e não
vou negar isso agora, mas nunca mandaria alguém matar a
Malika.
— Mandar que a torturassem na prisão é o mesmo que
mandar matar.
Sentei-me rigidamente na cadeira.
— Ela foi torturada? Eu não sabia disso!
— Imagino que não, assim como não sabia das outras
coisas. — A ironia dele foi dura e severa.
— Estou falando a verdade! Sempre quis Malika para
mim e não ia autorizar que a torturassem. Isso foi obra do meu
pai. Ele mudou Malika de prisão sem me informar nada e deve
ter dado ordens para que a torturassem. Pergunte a ela se não
a enviei para Asuid e dei ordens para que ninguém a tocasse.
Não fui eu quem a transferi para Thueban.
— Então, afinal, você sabe de alguma coisa, já que
conhece Thueban.
— Fiquei sabendo há pouco tempo. Até isso o velho
escondeu de mim — desabafei a verdade com ele. — Afirmo
que não mandei Hisham Al Amari matar Malika em Tamrah.
— Mesmo que ela tivesse se casado com outro?
— Aí é que não faria nada mesmo, ainda mais sendo o
seu irmão o marido dela. Desisti completamente da minha
prima quando soube do casamento.
— Não tente me enganar! Hisham já estava aqui bem
antes do casamento acontecer e você sabe disso, já que o
mandou. Ele foi visto em Azra durante o atentado à bomba e
estou sem acreditar que você também ousou fazer isso com o
meu país.
— Mas que droga, Majdan! Eu não fiz isso!
— E quem fez, porra? — ele gritou do outro lado,
furioso. — Por acaso vai dizer que foi o seu pai, que está
hospitalizado e afastado do governo? Tenha muito cuidado,
Mubarak. Com as provas que temos, podemos esmagar Sadiz
como se fosse um inseto e ter todos os aliados da região a
nosso favor.
Khara! Al’ama!154
— Reafirmo que não ordenei nenhum atentado à
bomba em Tamrah, muito menos que matassem a Malika. Exijo
que esse homem seja extraditado para Sadiz, onde será
sumariamente executado.
Eu seria capaz de matar Hisham com as minhas
próprias mãos! Só agora eu entendia que o afastamento por
insubordinação era justificado.
— Você não está em condições de exigir nada — ele
disse com uma calma preocupante. — Talvez devesse pedir
misericórdia à Allah para que não seja a sua cabeça a rolar.
Majdan desligou logo depois, deixando-me furioso. Eu
quase não acreditava que ia perder um grande aliado por
causa de um ex-militar insubordinado.
Ah, se eu colocasse as mãos em Hisham Al Amari
quem ia implorar por misericórdia seria ele!
Ayreh feek!155
Passei uma mensagem para o celular de Majdan.
“Quando você se acalmar conversamos melhor. Prezo
muito a nossa amizade e jamais agiria contra os Al Harbi.”
Capítulo 63
Tamrah
Yusuf
— Hisham ainda não confessou nada sobre a
existência de outros agentes secretos de Sadiz no país? —
perguntei à Assad, sentado à minha frente no meu escritório da
Global Harbi.
— Absolutamente nada. Continua afirmando que só
trabalha sozinho.
— Desde o atentado de Azra, não aconteceu mais
nada no país depois que Hisham foi preso, mas não consigo
me tranquilizar com isso.
— Sinto o mesmo, mas às vezes fico pensando se isso
não é mal de soldado. Parece que não nos acostumamos com
a calmaria. Ficamos desconfiados com períodos de paz,
sempre à espera de acontecer um conflito qualquer. — Ele riu,
algo raro no homem sempre sério e compenetrado no trabalho.
— Acho que somos aves agourentas da paz.
Relaxei sobre a cadeira, rindo também.
— Você falou tudo. Lutamos pela paz, mas quando ela
chega e dura muito tempo, ficamos desconfiados. Isso não tem
lógica nenhuma. — Observei-o com atenção. — E como se
sente com a solenidade de condecoração acontecendo
amanhã?
Eu o havia indicado para ser condecorado com a
Medalha de Mérito Militar de Tamrah156 pelo trabalho que fez
durante o atentado de Azra. Graças a ele, as centenas de
pessoas que estavam nos dormitórios foram salvas com vida.
— Sinto-me honrado, alteza. Fiz apenas o meu
trabalho, mas agradeço este reconhecimento. — Ele colocou a
mão no peito e fez uma reverência.
— É merecido, garanto. O meu país só teve a ganhar
com a sua vinda para cá, Assad. É vergonhoso o que Sadiz
obriga os seus melhores oficiais a fazerem.
A fisionomia dele ficou carregada ao ouvir falar do seu
país, algo que eu entendia demais. Ainda que não fosse por ver
a tristeza de Malika a cada notícia trágica que vinha de Sadiz,
eu mesmo me revoltava com o sofrimento que os civis estavam
passando lá.
Estávamos conversando sobre a crise política de Sadiz
quando o meu celular tocou sobre a mesa. Sorri ao ver que era
a Sabirah, mas depois fiquei preocupado ao ver que ela estava
me ligando às cinco da manhã de Londres. Desde que o
horário de verão havia acabado na Inglaterra que estávamos
com quatro horas de diferença e estranhei aquela ligação tão
cedo.
— É a Sabirah — comentei, pegando o aparelho.
Assad franziu a testa.
— Ainda é cedo lá.
— Foi o que pensei.
— Quer que eu saia? — ele perguntou querendo me
dar privacidade para falar com ela.
— Por enquanto não. — Algo me dizia que talvez
precisasse dele e atendi logo a ligação. — Acordou cedo hoje,
Sabirah. O que tirou você da cama às cinco da manhã?
Ela riu, mas achei que foi um riso nervoso.
— Você nem me deixou falar e já está pegando no meu
pé, Yusuf.
— Não estou pegando no seu pé, estou apenas
preocupado com uma possível insônia, o que é diferente. Está
tudo bem por aí?
Sabirah suspirou de um jeito que até consegui imaginar
o rosto lindo com uma expressão de tristeza, o que me deixou
mais preocupado ainda.
— Você parece que adivinha o que sinto.
— Tenho uma intuição muito forte para as mulheres da
minha vida. Agora me diga o que a deixou acordada a essa
hora.
— Não sei como explicar.
— Claro que sabe. Não me lembro de uma única vez
em que você ficou calada quando queria falar alguma coisa.
— Você tem razão. — Ela riu e aquele pareceu ser um
riso mais espontâneo. — Estou tendo problemas com uma
pessoa aqui em Londres e não sei como lidar com a situação.
Aquilo era mais incrível ainda. Sabirah era do tipo que
sabia lidar muito bem com pessoas que causavam problemas,
sempre confiante e assertiva.
— Me conte o que está acontecendo.
— Tem um rapaz aqui na faculdade que nunca me
aceitou muito bem por causa das minhas origens árabes. —
Ela começou e já fiquei tenso ao saber que era algo que
envolvia um homem com a minha irmã.
— Você já veio várias vezes para Tamrah de férias e
nunca comentou isso comigo. Falou com a nossa mãe?
— Nunca falei antes porque no início era só uma
antipatia mútua e nada mais. Piorou depois dos atentados à
bomba de Azra. Ele agora vive me chamando de nomes
pejorativos na frente dos meus colegas. Deixei de ser a Sabirah
e passei a ser a bombista, a terrorista, a extremista. Algumas
amigas de curso vieram me dizer que ele criou uma trend em
uma rede social com o meu nome, onde falam mal de todos os
países árabes, dizendo que em Tamrah somos tão terroristas
como qualquer outro. Eu já vinha sentindo alguns olhares
hostis sobre mim, mas não sabia o motivo. Fiquei sabendo
hoje.
A seriedade daquilo me deixou rígido de raiva.
— Falou com o chefe dos seguranças de Londres?
Ela hesitou, mas desabafou depois.
— Ainda não falei, porque existe uma outra situação
que me preocupa nisso tudo, mas que é algo muito de mulher,
sabe? Não me senti confortável para tocar no assunto com ele.
— Pelo menos falou com a nossa mãe sobre essa
parte?
— Também não. Cheguei a ligar para contar, mas ela
estava tão preocupada com os problemas dos refugiados, do
atentado, da guerra iminente em Sadiz, que acabei desistindo.
O papai e Saqr estão mais envolvidos ainda com esses
problemas e é por isso que estou falando com você agora.
Sempre foi o mais próximo de mim, o mais preocupado, e achei
que me entenderia.
— E entendo. Agora me conte tudo.
Levantei-me da cadeira e Assad fez o mesmo, como se
achasse que deveria se retirar da sala. Fiz um gesto para que
se sentasse de novo e caminhei até o outro lado do escritório,
parando em frente à parede de vidro que dava para o centro
financeiro de Jawhara. Algo me dizia que eu seria incapaz de
permanecer calmamente sentado durante aquela conversa.
— Esse rapaz que falei, ele... ele se interessou por mim
no início desse ano. Eu o conheci através de uma colega do
meu curso durante um seminário promovido pela faculdade.
— E você se interessou por ele? — Era importante
saber até que ponto os dois se envolveram um com o outro.
— Não, de jeito nenhum! — ela negou de imediato e
senti sinceridade na minha irmã. — Quero me casar com um
homem árabe, da minha cultura e que eu ame. Só sinto nojo de
Simon.
— Ele desrespeitou você de alguma forma?
— Pelos padrões ingleses, não. Mas pelos nossos, sim
— ela desabafou e apertei com mais força o celular, já
querendo ir a Londres resolver o assunto. — Ele tentou me
beijar à força e fui obrigada a esbofeteá-lo no meio da festa de
aniversário de uma amiga que estuda comigo, tendo várias
pessoas como testemunha. Desde esse dia que ele se tornou o
meu pior inimigo aqui em Londres.
Enrijeci ao entender o que realmente estava
acontecendo.
— Uma pessoa rejeitada pode se transformar em um
inimigo perigoso, Sabirah — falei, lembrando-me de Rana.
— Hoje sei disso e estou sem saber o que fazer. Sinto-
me ameaçada até dentro da faculdade, não só por ele, como
também por outras pessoas preconceituosas, principalmente os
rapazes. Já ouvi piadinhas sobre... sobre as mulheres árabes
serem piores do que... putas por baixo do véu — ela gaguejou,
envergonhada por falar aquilo para mim. — Perdi todo o gosto
de estar aqui em Londres, mas quero pelo menos terminar
esse ano de estudo antes de decidir se finalizo o curso aqui ou
em outro lugar, Yusuf. Só faltam três meses para o fim das
aulas.
— Você vai terminar, Sabirah — afirmei em tom
categórico. — Não vai ser um qualquer que vai tirar isso de
você.
— Ele não é um qualquer. Simon é da nobreza e filho
de um parlamentar da Câmara dos Lordes.
— E você é uma princesa da dinastia Al Harbi, uma das
mais antigas do mundo árabe. Pouco me importa quem ele é.
Quero o nome completo desse Simon e do pai dele. Vou
resolver isso e você vai terminar o seu curso.
— Ah, Yusuf! Se eu soubesse que ia me sentir tão bem
depois de contar tudo para você, teria contado antes.
— Errou em não me contar, mas ainda foi a tempo de
evitar algo pior. Vou reforçar o seu esquema de segurança e
você não vai reclamar de nada desta vez.
— Prometo que não reclamo.
— Vou enviar um profissional para lidar com essa
situação e ficar ao seu lado vinte e quatro horas por dia, até
que você termine as aulas e volte para Tamrah. Este Simon
também vai ter a lição que merece.
— Você podia enviar a Dina? Gostei muito dela na
época em que fez a segurança de Malika.
Pensei na possibilidade, mas depois mudei de ideia.
Para certos casos um homem era melhor, ainda mais quando
havia ameaça sexual envolvida. Sabirah também estava em um
país estrangeiro, diferentemente de Malika, que teve a proteção
de Dina estando em Tamrah e só durante o tempo em que
ainda estava aprendendo a dirigir um carro.
— Você já tem a Najila aí como sua acompanhante.
Dina não é a pessoa ideal para essa situação. — Olhei para o
homem que aguardava sentado em frente à minha mesa. —
Quem vai é o Assad.
— Assad? Não sei quem é.
Só então me lembrei que Sabirah o conhecia como
Hakim Numan.
— Errei o nome. Quem vai é o Hakim.
— O Hakim? — ela repetiu em tom de reclamação. —
Mas justamente ele, Yusuf? Você sabe que não nos damos
bem.
— Você não se dá bem — corrigi, pois sabia que ele
nunca havia reclamado de nada com relação à Sabirah, apesar
de ela ter reclamado muito dele. — Achei ter ouvido você
prometer que não ia reclamar de nada.
— Oh, isso é tão injusto! — Eu conhecia aquele tom de
voz impertinente e gostei de ver que ela não estava mais triste
ou amedrontada.
— Sente-se protegida ao lado dele? Isso é
fundamental. Se disser que não, envio outro, mas quero deixar
bem claro que o importante agora é ter o melhor ao seu lado.
A resposta não veio de imediato, como se ela estivesse
pensando.
— Me sinto — admitiu com franqueza.
— Se for assediada novamente, vai se sentir mais à
vontade para contar o que aconteceu para ele ou para outro
segurança? Lembre-se que pode não conseguir falar comigo
de imediato e o profissional que estiver ao seu lado precisa
saber de tudo na hora exata para poder agir.
— Não tenho nada contra os seguranças daqui de
Londres, mas sinto como se eles fossem pessoas estranhas.
Se eu comparar o Hakim com eles, é claro que vou preferir o
Hakim, que me protegeu quando eu estava em Taj e que
sempre esteve muito próximo da minha família. A Malika o
adora também, confiando cem por cento nele. É claro que vou
preferir falar com o Hakim e não com outro segurança.
— Então está decido. Será ele quem vai resolver esse
assunto. — Voltei para a mesa, sentando-me com Assad à
minha frente. — Você vai se prejudicar muito nas aulas se faltar
durante três dias? É o tempo que ele precisa para se organizar
e chegar em Londres.
— Posso estudar em casa esses dias.
— Ótimo! Fique tranquila e tente dormir novamente. Se
a minha presença for necessária em Londres, irei sem dúvida
alguma.
— Se vier, traz a Malika.
— Não tenha dúvida disso.
Desliguei, olhando com preocupação para Assad, cuja
fisionomia não estava menos preocupada do que a minha.
— Afinal, nem precisamos ser aves agourentas. Os
problemas surgem quando menos esperamos.
— Tem razão, alteza. Pelo pouco que ouvi, posso dizer
que a princesa está em apuros.
Coloquei-o a par de todos os detalhes que Sabirah
havia me contado para que soubesse da gravidade do que teria
de enfrentar em Londres.
— Minha irmã mostrou ser uma verdadeira Al Harbi.
Aguentou o quanto pôde sozinha para não nos preocupar, mas
agora a situação ganhou uma proporção que está acima do
que ela consegue lidar. Se não tivermos cuidado, um problema
diplomático vai se criar entre os dois países, porque não vamos
ficar de braços cruzados diante dessa ofensa a um membro da
família real e à toda uma nação.
— Eles também ofenderam as nossas mulheres e a
nossa cultura como um todo.
— Vou começar resolvendo isso pelos meios
diplomáticos. Temos contatos importantes na Câmara dos
Lordes e este Simon não perde por esperar. — Trocamos um
olhar sério. — Quero que seja você a cuidar da segurança de
Sabirah até que ela termine as aulas e volte para Tamrah. Você
cuidou de Malika durante o tempo em que estive nos Estados
Unidos e confio que fará o mesmo excelente trabalho com a
minha irmã.
— Agradeço a confiança, alteza. Garanto que farei o
mesmo ou melhor.
Capítulo 64
Malika
— Tia Lika! Tia Lika!
Zayn e Náder saíram correndo para me abraçar assim
que me viram entrar na sala de estudos, o local preferido deles.
Era lá que os dois passavam a maior parte do dia, entre
brinquedos educativos, desenhos animados na televisão e
livros que contavam histórias de bichinhos, de príncipes e de
princesas da nossa cultura.
Agachei-me no chão para os abraçar, quase sendo
derrubada com o ímpeto deles ao se atirarem nos meus
braços.
— Fiz um desenho, tia Lika! — Zayn contou, eufórico.
— O meu! — Náder correu logo para pegar o dele e me
mostrar antes do irmão mais velho.
Achei uma graça aquilo e comecei a rir.
Deitada de lado sobre as almofadas no tapete, Kismet
observava tudo com um sorriso nos lábios. O notebook estava
esquecido sobre a mesa de trabalho, como se ela tivesse se
cansado e resolvido se deitar.
— Chego já por aí — avisei-a, indo primeiro dar
atenção aos meus sobrinhos.
A babá trocou um olhar cúmplice comigo quando
entregou à Náder o desenho que ele fez. Quando o caçula me
entregou para ver, Zayn chegou com o dele, colocando por
cima do desenho do irmão.
— Vou ver o de Náder primeiro e depois o seu, já que
foi o segundo a me entregar — expliquei, segurando o riso
quando ele cruzou os bracinhos no peito imitando o pai.
— Ele fez trapaça.
— Não. Ele apenas foi mais rápido na hora de correr
para pegar o desenho e me entregar.
Zayn se conformou e o beijei na bochecha.
Passei cerca de vinte minutos com eles dois até
conseguir me sentar no tapete ao lado de Kismet. As crianças
agora assistiam a um desenho na televisão e o som da
animação enchia a sala, proporcionando alguma privacidade
para a minha conversa com Kismet.
— Eles estão crescendo rápido ou é impressão minha?
Ela riu, olhando com amor para os filhos.
— Penso nisso todos os dias. — Passou a mão sobre a
barriga de grávida. — Fhatima também está crescendo rápido.
Eu sabia que aquela terceira gravidez não havia sido
planejada por Saqr e Kismet e entendia a preocupação
constante dele com a esposa. Ambos decidiram dar uma longa
pausa depois do nascimento de Fhatima, no que eu
concordava.
Ela me olhou com um sorriso nos lábios e um olhar
provocador.
— E você, quando vai engravidar?
A pergunta me pegou desprevenida, para não dizer que
me chocou completamente.
— Eu, grávida?!
Da mesma maneira que eu havia desistido do
casamento depois da prisão, também desisti de ser mãe.
Apesar de ter me casado com Yusuf e de estarmos cada dia
mais felizes e apaixonados um pelo outro, a maternidade era
algo que ficou esquecido.
Kismet riu ainda mais.
— Sim, você! Ou não estão fazendo amor? Achei que
sim, pela maneira apaixonada como se olham e se tocam
sempre que podem, mesmo na nossa frente.
Entre chocada e subitamente insegura, olhei para a
minha barriga.
— Estamos fazendo amor — admiti, sentindo o rosto
enrubescer de vergonha. — Mas isso nem passou pela minha
cabeça.
Kismet soltou uma risada, mas a expressão dos olhos
verdes era de compreensão.
— Sei como é isso. O desejo e a paixão fazem com
que nos esqueçamos de todo o resto, até das consequências.
— Apontou para a própria barriga. — Fhatima é a maior prova
disso. Mesmo com a nossa decisão de darmos um tempo para
uma nova gravidez, fizemos esta princesinha aqui. Você vai
engravidar, com certeza. Se prepare.
Cobri o rosto ardente com as duas mãos, emocionada.
— Se acontecer, será uma benção. Fiquei tão triste
quando pensei que teria de desistir de ser mãe.
Kismet se sentou para me abraçar com o amor de irmã.
— Vocês dois serão abençoados com filhos e você
será uma mãe maravilhosa. Tem a maternidade na alma, minha
irmã.
— InshAllah!157
— Consigo até imaginar nossos filhos crescendo juntos
e nós duas felizes com nossos maridos — Kismet disse,
suspirando com um sorriso radiante. — Um sonho de vida
realizado.
Rimos muito, abraçadas, até o celular dela tocar em
cima da mesa de trabalho, chamando a nossa atenção.
— Vou pegar para você.
Levantei-me e o peguei, levando para ela.
— É Farah — avisei, identificando a ligação.
Kismet pegou e falou rapidamente com a sogra, o rosto
ficando sério. Quando terminou, levantou-se, puxando-me
junto.
— Farah disse que foi chamada para uma reunião de
urgência no majlis do Sheik Rashid e que nós duas temos de
estar presentes também. Ele quer que estejamos as três lá.
— Ela adiantou o assunto?
— Não. Disse que ainda não sabe de nada.
Trocamos um olhar preocupado.
— Que estranho isso. Vou avisar o Yusuf.
— Nem perca o seu tempo. O sheik está com todos os
filhos no majlis.
Parei no ato.
— Então é sério mesmo.
— Não tenho dúvida. Vamos nos despedir das crianças
e ir rápido para lá.
Zayn e Náder choramingaram quando a mãe disse que
ia sair para conversar com o vovô, querendo ir junto. Ela foi
firme ao dizer que poderiam ir em uma outra ocasião, mas não
naquela.
Com habilidade, a babá desviou a atenção deles para o
filme e fomos momentaneamente esquecidas.
Levamos cerca de dez minutos para chegar ao majlis
do Sheik Rashid. A última vez em que entrei nele foi por causa
da exigência do meu tio Suleiman para que eu voltasse à
Sadiz. Naquele dia, aceitei o casamento com Yusuf, que
mostrou ser a melhor decisão da minha vida.
Mas o que vai acontecer hoje?
— A minha intuição me diz que tem algo a ver com a
nossa família — comentei, preocupada. — Parece que tudo de
ruim vem de Sadiz.
— Penso o mesmo — Kismet concordou tensamente.
Os guardas abriram as portas duplas do grande salão
de reuniões do Sheik Rashid e entramos. Lá dentro todos já
estavam sentados nos aguardando, exceto Saqr e Yusuf, que
estavam de pé e vieram nos receber com as fisionomias sérias.
Na verdade, a fisionomia de todos os presentes estava tão
séria que a minha intuição ficou mais forte ainda.
Farah estava sentada ao lado do marido e Majdan
dividia um sofá com Jamal, o mais novo dos irmãos Al Harbi.
O silêncio era tão pesado lá dentro que resolvi não o
quebrar perguntando a Yusuf o que estava acontecendo. Ele
parou à minha frente e segurou a minha mão, levando-me para
um sofá de dois lugares onde pediu que me sentasse. Achei
que ele fosse se sentar comigo, mas ocupou uma poltrona que
havia sido colocada ao meu lado. Quem dividiu o sofá comigo
foi Kismet, trazida pela mão de Saqr. Igual ao irmão, ele
também se sentou em uma poltrona ao lado dela.
Sem outra alternativa além de aguardar, olhei para o
Sheik Rashid em expectativa.
— Aconteceu nesta manhã o que mais temíamos. A
guerra civil acabou de explodir em Sadiz. Agora é oficial.
A informação triste era para todos os presentes, mas
senti que apenas nós duas ainda não sabíamos daquilo. Pela
expressão dos outros, fiquei com a impressão de que foram
informados antes da nossa chegada.
Senti um arrepio percorrer o meu corpo e
imediatamente segurei a mão de Kismet, que a agarrou com
força, compartilhando comigo a angústia de ver nosso país em
uma guerra civil declarada.
Olhei para Yusuf, ainda sem acreditar que aquilo fosse
mesmo verdade.
— Infelizmente é verdade — ele confirmou sem que eu
precisasse formular a pergunta.
— Acabamos de ser informados — Saqr comunicou
para Kismet. — Nosso serviço secreto já vinha monitorando a
situação e hoje nos deu o alerta vermelho. Não vai demorar
para sair nos noticiários.
— Mas o que realmente aconteceu? — perguntei,
olhando diretamente para o Sheik Rashid. — Nosso pai se
opôs abertamente ao governo de tio Suleiman? Ele nunca fez
isso antes.
— Realmente nunca o fez, mas antes era o próprio
irmão quem estava no poder. Agora é um sobrinho que
assumiu arbitrariamente, aproveitando-se da doença do pai.
Apesar de Suleiman ainda estar vivo, foi afastado do governo e
o país está nas mãos de um governante pior do que ele.
Acredito que esta foi a gota d’água que transbordou o copo. O
descontentamento de parte da população já existia há meses e
não foi isso o que fez eclodir a guerra justamente agora. A
grande verdade é que parte do exército se insurgiu contra
Mubarak. Alguns generais fizeram pressão em cima de
Abdullah e ele teve de agir rápido, antes que fossem os
militares a assumirem o poder e destituírem a família real.
Atualmente, o país está dividido em dois lados. No Norte estão
os apoiantes do pai de vocês, que deram um golpe de Estado
liderado por Abdullah — ele explicou, deixando-me abismada
com a coragem do meu pai. — Mubarak se retirou para o Sul
com parte do exército. Foi uma retirada estratégica dele, pois
ficou próximo da fronteira com Omarih, o único país que até
agora se declarou a favor do príncipe herdeiro. Mubarak
conseguiu receber o apoio do Sheik Farid Al Badawi.
Até me senti mal ao ouvir o nome do meu antigo
pretendente a marido, com quem o meu tio Suleiman queria me
forçar a casar. Ao meu lado, Yusuf ficou mais tenso do que já
estava e segurei discretamente a mão dele.
— E o que vai acontecer agora? — Kismet perguntou,
apreensiva, olhando para o marido. — Vão se matar uns aos
outros pelo poder?
— Os bombardeios de Mubarak a bases estratégicas
do exército aliado do seu pai já começaram há poucas horas.
— E como vão ficar os civis? — Preocupei-me com o
nosso povo. — Há informações de civis atingidos pelos
bombardeios?
— Por enquanto os alvos são militares — Yusuf
respondeu ao meu lado. — Mas não sabemos até onde
Mubarak pode chegar.
— Mubarak é capaz de tudo. — A voz grave de Majdan
soou no majlis pela primeira vez. — Ele aguardou por muitos
anos para ter o controle do país nas mãos e não vai desistir
facilmente. Antes de entrarmos nesta reunião, ele me ligou, por
isso cheguei atrasado pai.
Olhei para Majdan, surpreendida com aquela
informação, mesmo sabendo que o meu primo e ele foram
muito amigos no passado.
Pela expressão de surpresa genuína no semblante de
todos os outros presentes, percebi que não era a única a
estranhar aquela ligação.
— Ele ligou para você? — o Sheik Rashid perguntou
com a testa franzida.
— Sim, ligou. Mubarak veio me pedir ajuda para
combater Abdullah. Ele quer o apoio de Tamrah para reassumir
o governo de Sadiz. Alega que Omarih não tem o nosso
poderio militar para acabar de vez com os rebeldes, que é
como chama o lado da família que apoia Abdullah.
Se Tamrah apoiar Mubarak, o meu pai será aniquilado!
Mesmo com tudo o que sofri ao saber que ele nada fez
para me libertar da prisão e do que fez contra Kismet, eu não
queria que aquilo acontecesse com o meu pai, nem com os
meus irmãos ou com o restante da minha família. Isso sem
falar dos aliados dele e do povo de Sadiz que o apoiava. Ia ser
uma carnificina!
Kismet apertou a minha mão com força, provavelmente
pensando o mesmo que eu. Do meu outro lado, Yusuf acariciou
a minha outra mão em um gesto de conforto, como se sentisse
a minha inquietação e quisesse que me acalmasse.
Em meio a tudo aquilo, notei o olhar preocupado que o
Sheik Rashid trocou com Saqr e Yusuf.
Eles sabem de alguma coisa!
A minha suspeita foi confirmada logo depois.
— Saqr também foi procurado com a mesma finalidade,
mas por Abdullah.
Parecia que uma bomba havia acabado de explodir
dentro do majlis. Quem não sabia daquilo ficou boquiaberto e
preocupado. Tamrah estava no meio de uma disputa paralela à
guerra civil de Sadiz.
Kismet se virou para o marido com os olhos
arregalados.
— O meu pai ligou para você?
— Ligou para me pedir o mesmo que Mubarak pediu à
Majdan, o que nos coloca em uma posição delicada no meio
dessa guerra. Desde o começo das tensões internas em Sadiz
que venho dizendo ao meu pai que não deveríamos nos
envolver caso a guerra eclodisse. Ajudar diplomaticamente,
sim. Apoiar militarmente, não. Esta é a minha opinião.
— Que eu compartilho — Yusuf disse ao meu lado.
— Eu também — Jamal se pronunciou pela primeira
vez, participando ativamente das decisões do país.
— Apoio os meus irmãos — Majdan concordou
igualmente. — E foi exatamente isso o que disse à Mubarak.
— Falei algo parecido para Abdullah — Saqr informou.
— É claro que ele citou o fato de ser sogro de dois príncipes Al
Harbi, ressaltando as ligações familiares que unem os dois
países, sem se lembrar do que fez com as filhas. Insistiu que o
nosso apoio vai fazer com que Mubarak abdique mais
rapidamente do poder.
Um silêncio tenso se seguiu ao que ele disse.
— Acho que não precisamos tomar decisões por
enquanto — Farah deu a opinião dela, olhando para o marido.
— Já conversou com os líderes dos outros países da
coligação?
— Várias vezes antes dessa guerra estourar. Os mais
representativos são da mesma opinião de Saqr, por enquanto.
Omarih nos pegou de surpresa com esse apoio imediato, mas
acredito que seja por causa do casamento de Malika com
Yusuf. Al Badawi deve ter achado que Abdullah o rejeitou como
genro em favor do nosso filho e agora quer revidar.
Ou seja, indiretamente a culpa é minha?
— A responsabilidade é inteiramente minha — Yusuf
assumiu de imediato com irritação na voz. — Al Badawi devia
ser homem o bastante para admitir isso a si mesmo, sem
querer revidar em cima de Abdullah. Ele sabe que não pode
fazer nada contra mim ou contra Tamrah e vai atacar alguém
menor.
— Vejo o dedo de Mubarak aí — Majdan disse,
taciturno. — Ele deve ter distorcido os fatos para manipular Al
Badawi.
— Concordo com os meus filhos em não tomarmos
partido de ninguém — Farah deu a opinião final dela, que eu
sabia pesar muito nas decisões do Sheik Rashid. — Vamos nos
concentrar nos refugiados. Se antes já estavam vindo em
grande número, agora vai ser muito pior.
Ele ficou pensativo por um longo tempo, enquanto
todos nós aguardávamos a decisão que ia tomar.
— Saqr fica encarregado de aconselhar Abdullah na
gestão política da guerra, tentando fazer com que ele negocie a
paz com Mubarak. Abdullah é o mais velho e experiente dos
dois, deve partir dele a diplomacia — o sheik decidiu com
autoridade. — Majdan vai fazer o mesmo com Mubarak,
tentando colocar juízo na cabeça dele. Quero que vocês dois
trabalhem juntos para pôr um fim a essa guerra, deixando bem
claro para os envolvidos que não entraremos com apoio militar,
só diplomático.
Não deixei de admirar a sabedoria do Sheik Rashid,
que ia colocar o antigo príncipe herdeiro para trabalhar com o
atual, unindo os irmãos ainda mais. Notei o olhar satisfeito dos
dois, como se tivessem gostado de estarem juntos naquela
missão.
— Quero até aproveitar a oportunidade para falar de
uma conversa que tive com Mubarak sobre Hisham — Majdan
disse, voltando a ficar com o rosto muito sério ao olhar para
mim. — Ele me garantiu que não mandou Hisham matar você,
Malika. Por tudo o que conheço dele, acreditei nisso, assim
como acreditei que não é o responsável pelos atentados à
bomba. Já o tinha avisado quanto a isso e quero crer que
considerou o que eu disse. A única coisa que ele não me
convenceu, foi da sua inocência quanto a ter enviado Hisham
para sequestrar você e levar de volta à Sadiz. Isso eu acredito
que ele realmente fez, mas também acreditei quando me disse
que desistiu de você depois que soube do seu casamento. —
Olhou para todos os familiares presentes. — Lógico que posso
estar enganado com relação às outras coisas em que julgo que
ele seja inocente, mas quis deixar vocês a par dessa conversa.
Espero que ajude de alguma maneira a descobrirmos de vez
tudo o que aconteceu.
— Hisham admitiu que queria se vingar de mim e que
estava desobedecendo às ordens que recebeu. Acredito que o
meu primo realmente não soubesse das verdadeiras intenções
do homem que mandou para cá, só não posso afirmar nada
com relação ao atentado à bomba.
— Hisham continua negando que é o responsável —
Yusuf informou. — Insiste que só trabalha sozinho.
— Temos refugiados demais de Sadiz em Tamrah.
Qualquer um deles pode ser um outro agente infiltrado — Saqr
deduziu, lembrando-nos do que parecia ser o mais certo.
— Não vamos descartar nenhuma possibilidade.
Continuem trabalhando nas duas hipóteses: ter sido Hisham ou
outro agente — O sheik definiu o assunto. — Esse homem é
perigoso demais para acreditarmos no que diz.
— A única coisa boa dessa guerra civil em Sadiz é que
os presos políticos que estavam nas prisões do Norte já foram
libertados e agora se juntam à Abdullah contra Mubarak —
Yusuf me informou com um sorriso, sabendo o quanto o
assunto dos presos políticos era importante para mim.
— Que Allah seja louvado! — exclamei, emocionada.
— É uma pena que foi preciso acontecer uma guerra para que
fossem libertados, mas estou feliz por eles.
— Isso me lembrou de outra coisa interessante — Saqr
falou, atraindo a atenção de todos. — Abdullah me contou que
Mubarak deixou o pai para trás quando fugiu com suas tropas
para o Sul do país. Suleiman foi encontrado acamado no seu
palácio da capital, cercado por servos fiéis que não o
abandonaram. Abdullah foi conversar com o irmão, a quem
parece não querer tão mal quanto pensávamos. Ele disse que
Suleiman admitiu ter enviado a carta exigindo a volta de Malika,
em uma tentativa de forçar vocês dois a se casarem, assim
acabava de vez com o desejo de Mubarak ter a prima de volta.
Ouvi a inspiração profunda de Yusuf ao meu lado, no
mesmo instante em que ele apertou mais a minha mão em um
gesto possessivo. Da minha parte, agradeci intimamente ao
meu tio por aquele raro gesto nobre, que me salvou de cair nas
garras do meu primo ou do sheik decrépito de Omarih.
— Estou surpreso com Suleiman — o Sheik Rashid
disse, rindo. — Ainda me lembro do quanto fiquei furioso
quando li aquela exigência.
— Mubarak vivia pressionando o pai para que
trouxesse Malika de volta, mas Suleiman não tinha mais
interesse nisso — Saqr continuou, surpreendendo-nos cada
vez mais. — Ele contou para Abdullah que houve momentos
em que chegou a desconfiar que o filho estava planejando
tomar o poder dele.
— Ouvindo tudo isso, até duvido que você esteja
falando da minha família — Kismet disse, meneando a cabeça
com incredulidade. — Estou desnorteada com tantas
descobertas ao mesmo tempo. E você, Malika?
— Deduzo de tudo isso que nesta sala está o melhor
dos Al Kabeer. Você e eu — comentei, controlando o riso.
Yusuf e Saqr caíram na risada, sendo acompanhados
pelo restante da família.
Capítulo 65
Malika
A minha amizade com Thara se fortaleceu ainda mais
depois que ficamos reféns de Hisham. Os momentos de tensão
e a perspectiva de uma morte iminente solidificaram o apreço
que tínhamos uma pela outra.
A prisão de Hisham também serviu para trazer paz ao
meu coração e tranquilidade para Yusuf. Ele relaxou
visivelmente ao ter na prisão o responsável pelo meu
sofrimento em Thueban.
Dias depois daquela data fatídica, eu estava
novamente sozinha com Tamiris no quarto que ela ocupava na
casa de acolhimento das mulheres refugiadas de Sadiz, que
agora se chamava Casa de Acolhimento Malika Al Kabeer.
Quando Farah me contou que tinha resolvido mudar o
nome da instituição para me homenagear, eu quase não
acreditei.
— É uma homenagem mais do que justa — ela me
disse na ocasião, abraçando-me com seu costumeiro carinho
de mãe. — Você tem se dedicado àquelas mulheres com uma
abnegação admirável e acho até pouco esta homenagem.
Chorei, emocionada.
— Shukran, Farah. Me sinto tão honrada que nem
tenho palavras para me expressar.
— Não diga nada então, minha querida. Sou eu quem
agradeço à Allah por ter conduzido você à Taj. Nunca vi o meu
filho tão feliz nem o meu povo tão bem assistido como estão
desde que você chegou.
— Sou muito feliz também com ele e com todos vocês.
Aquela era a mais pura verdade. Yusuf me fazia tão
feliz que eu quase não me lembrava mais do período negro da
minha vida em Thueban. Parecia um passado tão longínquo
que só comprovava o quando o amor conseguia curar todas as
feridas e apagar totalmente a tristeza.
E um dos motivos da minha felicidade estava agora à
minha frente. Tamiris acabava de me informar sobre as
condições de saúde de Zaíra.
— Fiquei muito preocupada com as reações da
quimioterapia, mas não foram tão terríveis como eu achava que
seriam, alteza. Zaíra foi forte e ultrapassou bem os sintomas.
Segurei a mão dela com carinho, feliz por tudo estar se
encaminhando bem.
— Falei com a doutora Bushra, que tem acompanhado
o tratamento de Zaíra com o oncologista, e fiquei muito otimista
também. Nossas orações estão alcançando as graças de Allah!
Ela limpou as lágrimas dos olhos, mas sorria,
emocionada.
— Que Allah seja louvado e a princesa abençoada!
Naquele momento, Zaíra chegou da escola que havia
dentro do complexo da casa de acolhimento. Segurava a mão
de Thara, que tinha ido pegá-la na sala de aula para que
Tamiris pudesse conversar comigo.
A menina correu para mim, feliz.
— Princesa Malika!
Ela se jogou nos meus braços e coloquei-a sentada no
colo, recebendo um beijo no rosto, que retribuí com muito amor.
Thara e eu ainda ficamos um bom tempo com elas, antes de
irmos visitar as outras mulheres que estavam na lista do dia.
No final da manhã, estávamos caminhando pelo pátio
em direção ao refeitório quando me senti subitamente mal.
Uma vertigem fez o mundo girar ao meu redor e me segurei
com força no braço de Thara.
Pega de surpresa, ela olhou para mim e parou
imediatamente de andar, amparando-me com firmeza.
— Sente-se bem, princesa? Está tão pálida!
— Tive uma tontura repentina, mas já está passando.
Thara envolveu a minha cintura com um braço e me
levou para um dos bancos que existiam no pátio.
— É melhor ficar sentada até se recuperar desse mal-
estar.
Ela nem precisava dizer aquilo. Sentei-me com um
suspiro de alívio, respirando fundo até me sentir melhor.
— Acho que exagerei no trabalho.
— Perdemos o horário do almoço também. Deve ser
fraqueza de fome — ela deduziu com razão. — Eu mesma
estou com o estômago roncando.
— Vamos almoçar, então. — Fiz menção de me
levantar, mas ela me impediu com um gesto.
— Já se sente bem para caminhar?
— Só vou saber se me levantar.
E foi o que fiz com a ajuda dela. Não senti nenhuma
tontura ou mal-estar e sorri, aliviada.
— Acho que passou. É melhor irmos mesmo almoçar.
Fomos direto para o refeitório, onde nos servimos de
tudo o que tínhamos direito. De repente senti uma fome muito
grande e comi com gosto. Conversamos bastante durante a
refeição, a ponto de me esquecer completamente da
indisposição quando terminamos.
Fomos para o escritório após o almoço, mas não
aguentei trabalhar a tarde inteira.
— Acho que exagerei na comida, Thara — falei,
escondendo mais um bocejo. — Fiquei com sono e só consigo
pensar em descansar.
— Este já é o quinto bocejo em menos de uma hora. —
Ela riu, desligando o notebook. — Vamos para casa. Amanhã
terminamos de lançar as informações no sistema.
Fechamos o escritório e fomos para o estacionamento.
Quando chegamos ao lado do carro e eu já ia abrir a porta para
me sentar na direção, Thara me segurou pelo braço.
— Talvez seja melhor pedir a um dos seguranças para
dirigir o carro, alteza. Sei que o mal-estar passou, mas acho
mais prudente não arriscar.
Pensei bem e vi que ela tinha razão.
— Concordo com você. Vamos chamar um deles.
Ela foi até o veículo dos seguranças que estava
estacionado atrás do meu carro e voltou logo depois com um
deles. O homem se sentou na direção e fomos para o banco de
trás.
Saímos do centro de acolhimento e fui conversando
com Thara sobre o trabalho. Estávamos quase perto da
entrada privativa que levava à Taj quando vimos vários carros
da polícia passando em alta velocidade no sentido contrário,
seguidos por várias ambulâncias.
— Céus, o que será que aconteceu? — Thara
perguntou e olhamos para trás para ver o comboio seguindo
pela longa avenida.
— Isso é tão incomum — comentei, estranhando aquilo
tudo.
Fiquei mais inquieta ainda quando o veículo dos
seguranças que seguia atrás do meu carro nos ultrapassou e
se pôs à frente. No instante seguinte, os dois carros
aumentaram a velocidade rumo à Taj, com o da frente abrindo
caminho.
Virei-me para o segurança.
— O que está acontecendo?
Ele demorou a responder e só então percebi que
estava concentrado em algo que lhe diziam pelo fone de
ouvido. Só depois ele olhou para mim pelo espelho retrovisor
com o rosto mais sério do que o normal.
— Ainda não sabemos, alteza. Mas acabamos de
receber ordens para levá-la o mais rápido possível para o
palácio.
Olhei para Thara, que estava tão chocada quanto eu.
Preocupada, abri a minha bolsa e peguei o celular, ligando para
Yusuf. Ele não atendeu, o que era mais estranho ainda.
Voltei a olhar para o segurança, que me observava pelo
retrovisor.
— O príncipe já sabe que estamos a caminho do
palácio, alteza. Se não atendeu, é porque deve estar muito
ocupado agora — tranquilizou-me.
— Shukran.
Thara segurou a minha mão em um gesto de conforto e
me agarrei a ela.
— Estou preocupada — sussurrei.
— Não há de ser nada muito grave. Alguém no palácio
saberá dizer alguma coisa.
Ela tinha razão e só não liguei para Kismet ou para
Farah porque tínhamos acabado de entrar na longa via
privativa que levava à Taj. Contudo, notei o excesso de
veículos militares que bloqueavam o acesso ao palácio.
— Deixe-nos na Ala do Falcão — orientei o segurança,
que assentiu.
Eu estava decidida a falar pessoalmente com Kismet.
Sem dúvida alguma ela deveria saber o que estava
acontecendo.
Pouco tempo depois, Thara e eu descíamos na entrada
da Ala do Falcão e percorríamos os corredores às pressas.
Encontrei a minha irmã nos aguardando à porta da suíte com a
testa franzida de preocupação.
— Kismet, o que está acontecendo?
Ela me segurou pela mão, cumprimentou Thara e
depois nos levou para dentro.
— Venham, vamos entrar.
Só quando estávamos sentadas na sala foi que ela
voltou a falar.
— Aconteceu um outro atentado à bomba, Malika —
minha irmã disse com o rosto entristecido.
— Eu não acredito! — exclamei, trocando um olhar
horrorizado com Thara. — Mas..., mas quem fez isso? Hisham
já está preso e nunca mais houve nada em Tamrah.
— Pelo jeito o homem mentiu mesmo quando disse
que veio sozinho à Tamrah. O certo é que tem um terrorista
solto lá fora e voltamos a entrar em alerta vermelho.
— Onde foi o atentado dessa vez?
Kismet inspirou fundo antes de responder e uma
sensação desagradável me dominou.
— Infelizmente foi na sua casa de acolhimento.
Senti o meu corpo tremer e a vista escureceu. Ao meu
lado, Thara abafou uma exclamação de susto com as mãos
quando ouviu a notícia.
Ainda sem acreditar naquilo, meneei a cabeça,
sentindo dificuldades em respirar.
— Na minha... casa de acolhimento? — sussurrei,
arrasada e com lágrimas subindo aos olhos. — Mas... eu
estava lá... e deixei tudo bem quando saí.
— Aconteceu alguns minutos depois da sua saída.
Saqr me disse que Yusuf só não enlouqueceu de preocupação
porque já tinha sido informado da sua saída de lá. Os
seguranças estão sempre em comunicação constante e avisam
à central quando vocês estão chegando ou saindo de algum
lugar. Yusuf é informado de imediato.
Olhei para minha irmã com o coração sangrando ao me
lembrar das mulheres e crianças de Sadiz que se encontravam
lá.
— Por Allah, as nossas mulheres e crianças, Kismet! —
solucei, inconsolável.
Ela contraiu os lábios com força, sem conseguir conter
o choro também. Thara já chorava copiosamente.
— Zaíra! Tamiris! — gritei ao me lembrar delas. — As
minhas outras crianças! Oh, eu não vou aguentar isso.
Curvei-me sobre os joelhos, soluçando de angústia e
tristeza. Fui abraçada por Kismet e por Thara, nós três
compartilhando da mesma dor.
— Eu me desesperei quando soube, achando que você
estava lá, mas Saqr me garantiu que não — Kismet contou
entre lágrimas. — Depois me lembrei das crianças e das mães,
todas inocentes. Vieram para cá achando que estariam
protegidas da violência e só encontraram mais violência ainda.
— Eu quero ir para lá! Quero ficar com elas, ajudar.
Devem estar assustadas. — Levantei-me, decidida.
Kismet se levantou também.
— Não, Malika! Não podemos ir. Yusuf e Majdan já
estão à frente de tudo no local do atentado. O Sheik Rashid e
Saqr estão em uma reunião de emergência com os
comandantes das forças armadas. Não temos como ir para lá.
— Eu vou de qualquer jeito!
— É impossível, minha irmã. O palácio está
completamente cercado. Ninguém sai, e só entra quem está
autorizado.
— Eu não vou conseguir ficar de braços cruzados sem
fazer nada.
— Podemos rezar, alteza — Thara disse em um
sussurro sofrido. — Quando não podemos fazer nada, Allah faz
por nós.
Limpei as lágrimas do rosto.
— Sei disso, mas está sendo difícil aceitar essa
situação.
— Ainda não sabemos qual foi a área atingida nem
quantas bombas explodiram. Deixe que Yusuf trabalhe
tranquilo sabendo que você está aqui em segurança. Ele sabe
o quanto a casa de acolhimento é importante para você e vai
fazer de tudo para salvar o máximo de pessoas.
Coloquei as mãos na cabeça, respirando fundo e
fechando os olhos. O mundo voltou a girar ao meu redor e caí
na escuridão segundos depois.
Capítulo 66
Malika
Quando voltei à consciência estava deitada no sofá da
sala de Kismet, com Layla ao meu lado.
— Com se sente, princesa?
— Estou bem.
Tentei me sentar, mas ela me impediu, colocando uma
mão sobre o meu ombro.
— Ainda não, por favor. Aguarde só mais um pouco.
— Ela tem razão, Malika — Kismet disse, aparecendo
na minha linha de visão. — Você ficou pálida de repente e
desmaiou na nossa frente. Por sorte Thara conseguiu segurar
você ou teria sido uma queda feia.
— Foi o choque com o que aconteceu.
— Acho que não foi só isso. A princesa teve uma
vertigem hoje quando estávamos no trabalho — Thara informou
à Layla algo que eu já nem me lembrava mais, de tão
preocupada que fiquei com o novo atentado na minha casa de
acolhimento. — Foi por isso que viemos mais cedo para casa.
— O que sentiu, princesa? — Layla perguntou,
preocupada.
— Foi apenas uma vertigem que passou depois que
me sentei um pouco. Tínhamos passado da hora do almoço e
acho que foi uma fraqueza momentânea.
A expressão do rosto dela suavizou quando terminei de
falar.
— Muito bem. Vou fazer um exame de sangue rápido
para ver se está tudo sob controle.
— Pode fazer. — Olhei para Kismet. — Tem alguma
notícia? Eles ligaram?
— Ainda não, minha irmã. Nem espere que Yusuf ligue
agora. Ele sabe que você está em segurança no palácio e vai
se concentrar só no atentado.
Fechei os olhos e inspirei fundo. Nada mais me restava
além de rezar por Zaíra, Tamiris e todas as outras mulheres,
crianças e funcionários que estavam na casa de acolhimento.
Kismet praticamente me mandou tomar um banho e
trocar de roupa ali mesmo na Ala do Falcão.
— Quero estar em casa quando Yusuf chegar.
— Ele deve saber que estamos juntas, mas passe uma
mensagem avisando que está aqui comigo. Assim que puder
ver o celular, ele vai ler a sua mensagem e virá buscá-la
quando chegar. Não quero que fique sozinha — ela decidiu
com firmeza, olhando depois para Thara. — Faça o mesmo e
fique aqui. O apartamento que Malika ocupava antes do
casamento está à disposição de vocês.
Fomos para lá, tomamos um banho e voltamos depois
para onde Kismet estava com as crianças. Os meus sobrinhos
me ajudaram a relaxar um pouco, apesar de o meu
pensamento estar constantemente indo para Yusuf e a casa de
acolhimento.
As notícias na televisão não falavam de mortos, apenas
de feridos, assegurando que as forças especiais do exército já
tinham tudo sob controle. Eu me sentia revivendo o atentado de
Azra e aquilo me angustiava.
— Não paro de rezar para que estejam todos vivos.
— Eu também — Thara me olhou com tristeza.
— Quem será que está por trás disso? — Kismet
comentou no final da reportagem. — Aquele homem horrível
está preso.
— Essa pergunta não sai da minha cabeça.
— Pode ser alguém que esteja inconformado com a
entrada dos refugiados de Sadiz no país. — Thara deu a
opinião dela. — Nem todo mundo está gostando disso.
— Yusuf comentou comigo que eles estão investigando
todas as possibilidades, sem descartar nenhuma, mesmo as
mais improváveis.
— Se o terrorismo fosse fácil de combater, não existiria
mais no mundo e sabemos que não é bem assim que
acontece. — Kismet tirou as palavras da minha boca. — Até os
países do ocidente são pegos de surpresa com atentados.
Eu já não aguentava mais olhar o meu celular para ver
se Yusuf respondia à minha mensagem. Avisei que estava com
Kismet, mas também pedi que me informasse se as crianças e
mulheres estavam bem, principalmente Zaíra e Tamiris.
Layla veio se juntar a nós três no momento exato em
que o meu celular e o de Kismet tocaram ao mesmo tempo.
Soube no instante seguinte que eram eles.
Peguei o meu e fui para um canto afastado falar com
Yusuf.
— Fique tranquila, não houve mortos. — Foi a primeira
coisa que ele disse. — Zaíra e a mãe estão bem, apesar de
assustadas.
— Que Allah seja louvado! — Comecei a chorar de
puro alívio. — Eu estava tão angustiada.
— Me perdoe por não ter ligado antes para tranquilizar
você. Por favor, não chore, habibti.
— É de alívio e felicidade. — Eu me sentia tremer e me
sentei na poltrona mais próxima. — Eu entendo que você não
tivesse como me ligar antes que tudo estivesse sob controle aí.
Tem alguma previsão de quando vem para casa?
— Ainda não, por isso acho melhor que fique com
Kismet. Eu pego você aí.
Estranhei a demora, considerando que não houve
vítimas mortais.
— Há algum problema?
— Vamos para uma reunião de emergência com os
comandantes da unidade de contraterrorismo.
Tinha toda a lógica, mas um alerta disparou dentro de
mim ao saber daquela reunião.
— Onde colocaram a bomba?
Yusuf não respondeu de imediato e aquela hesitação,
mesmo rápida, foi o suficiente para que eu adivinhasse a
resposta.
— Na sua sala — ele informou em um tom de voz
controlado, mas que não escondeu de mim a raiva que sentia.
— Se você não tivesse vindo para casa antes da hora, estaria
dentro do escritório com Thara quando ela explodiu.
Coloquei as pernas em cima da poltrona e abracei os
joelhos, assustada. Agora já não existia mais nenhuma dúvida
de que o alvo era eu.
— Então alguém quer mesmo me matar?
— Ninguém vai matar você, Malika. Eu não vou deixar!
— ele disse com firmeza, a raiva tornando sua voz
ameaçadora. — Vamos descobrir quem está por trás disso,
fique tranquila.
— Tenha cuidado, Yusuf.
— Terei. Pego você aí quando chegar. — Ele baixou o
tom de voz. — Ana bamoot fiky.158
— Ana bhebak, habibi albi.159
Malika
— Você podia vir aqui? — perguntei à Kismet por
telefone. — Não tenho certeza, mas acho que estou em
trabalho de parto.
— Chego já e não se preocupe que levarei Layla
comigo — ela garantiu, desligando logo depois.
Permaneci deitada no sofá da antessala, pensando se
estava enganada e aquelas dores não eram do parto.
Eu não queria preocupar o Yusuf à toa. Ele estava em
uma reunião com o pai e os irmãos no majlis, discutindo sobre
a guerra em Sadiz, que tudo indicava que seria longa. A
diplomacia não avançava e eventualmente havia bombardeios
de ambos os lados. Yusuf já havia me dito que conflitos como
aquele na maioria das vezes se arrastavam por anos. Eu
conhecia os dois adversários daquela guerra e podia dizer que
seria exatamente aquilo que aconteceria com Sadiz. Nem o
meu pai cederia, nem o Mubarak.
A mesma dor de antes voltou e inspirei fundo para
aguentar, preocupada que não fosse o trabalho de parto, mas
sim um problema qualquer com o meu bebê. Tentei não ficar
ansiosa, pois sabia que aquilo não me ajudaria em nada.
Resolvi colocar em prática as técnicas de relaxamento que
havia adquirido no curso de gestante, até que Kismet e Layla
chegassem.
Não demorou mais do que dez minutos para as duas
entrarem no meu quarto, com Kismet à frente, o corpo esbelto
e elegante salientado pela abaya em tons de vermelho que
usava. Ela tinha voltado rapidamente à antiga forma física
depois do nascimento de Fhatima.
— Será que chegou a hora? — ela comemorou,
sorridente. — A titia aqui está ansiosa.
— Sinto tantas dores que nem consigo sorrir.
Layla se aproximou da cama com um olhar experiente.
— Contou o tempo entre as contrações?
— O que estou sentindo já são as contrações?
A pergunta soou boba até para mim mesma, mas a
verdade é que não tinha certeza.
— Provavelmente são, mas vamos comprovar nos
próximos minutos.
Foi o que fizemos, contando o tempo a cada vez que a
dor voltava.
— Eu aposto no trabalho de parto — Kismet opinou
depois de observar a minha barriga. — Está durinha e muito
baixa. Já rompeu a bolsa?
— Fora essas dores durante a madrugada inteira, não
senti mais nada de diferente.
— É que às vezes ela rompe tão pouco que só saem
gotas e não uma quantidade abundante. Tive os dois casos no
parto dos meus filhos — minha irmã disse com a experiência
de quem já tinha três filhos.
— Fiquei com a calcinha molhada ontem no final da
tarde, mas achei que fosse de urina. Tanto, que fui depois no
banheiro e urinei.
— É comum as gestantes de primeira gravidez não
identificarem bem o momento do rompimento da bolsa quando
isso acontece a conta gotas — Layla esclareceu depois de
contar o tempo. — Agora, deite-se, por favor, princesa. Quero
fazer um exame rápido para comprovar se há dilatação e
auscultar o coração do seu bebê.
Levantei-me do sofá com dificuldade, recebendo a
ajuda de Kismet, enquanto Layla já abria a maleta médica
sobre a mesa e tirava o doppler fetal portátil.
Mal dei dois passos em direção à cama, senti um
líquido quente escorrendo pelas minhas pernas. Olhei para
baixo, admirada, e depois para elas.
— Escorreu algo agora.
— Aí está a confirmação que precisávamos — Kismet
disse, segurando-me com mais força. — Chegou o grande dia.
Fiquei subitamente nervosa e cheia de expectativa.
Apesar de desejar muito a chegada daquele momento, havia
também uma certa insegurança com o desenrolar de todo o
trabalho de parto. Pensei em Yusuf e quis que ele estivesse ali
ao meu lado.
Layla foi rápida nas providências seguintes. Fui
examinada e o coraçãozinho auscultado, que batia forte e
ritmadamente. Fiquei mais tranquila com a presença das duas
ao meu lado.
— Hora de ir para a maternidade, se não quiser ter o
parto em casa.
Arregalei os olhos, surpresa.
— Chegou mesmo a hora? Vai ser hoje?
Ela sorriu com a tranquilidade de sempre. Já Kismet,
bateu palmas de alegria.
— Sim, a princesa já está em trabalho de parto —
Layla confirmou.
Eu já ia pegar o celular para avisar o Yusuf quando
uma nova onda de dor chegou e inspirei fundo para aguentar. A
cada vez que se repetia ela demorava mais a passar e só
agora eu entendia que havia sentido contrações durante a
madrugada inteira sem saber que eram elas.
Naquela manhã, deixei que Yusuf fosse para a reunião
sem contar nada para ele ou com certeza deixaria de ir para
ficar ao meu lado. Se fosse um alarme falso, ele teria perdido
uma reunião importante à toa. Como Yusuf raramente estava
saindo de Taj naquelas últimas semanas de gravidez, achei
melhor primeiro saber de Kismet e de Layla o que era aquilo
que estava sentindo.
Agora já podia contar tudo para ele com a certeza de
que o nosso bebê estava mesmo chegando.
— Me dá o meu celular. Quero avisar o Yusuf — pedi à
Kismet. — Ele quer ficar comigo na sala de parto.
— E faz muito bem. Desde que Yusuf não desmaie e
dê mais trabalho do que ajude, Farah vai aprovar.
— Ele me garantiu que vai aguentar.
— Muito bem — Kismet disse com aprovação,
entregando-me o celular. — Vou avisar à Farah para ela se
preparar também.
Liguei para Yusuf, que atendeu logo no primeiro toque.
— Tudo bem com vocês? — Foi a primeira coisa que
ele me perguntou.
— Está na hora — avisei, ouvindo o som de uma
cadeira sendo arrastada para trás. — Entrei em trabalho de
parto.
— Estou indo para aí agora!
Ele desligou e larguei o celular sobre a cama quando
uma nova contração chegou. Inspirei fundo para aguentar,
enquanto as duas tomavam cada uma as suas providências.
Layla falou com a médica e alertou a maternidade. Kismet
avisou à Farah, que colocou a família inteira de prontidão.
Yusuf chegou minutos depois com uma ruga de
preocupação no meio da testa, que só desapareceu quando
ouviu de Layla que estávamos bem. Sentado ao meu lado na
cama, ele colocou uma mão sobre a minha barriga.
— Está tudo bem mesmo? — Quis uma confirmação
minha.
— Com exceção das dores horríveis das contrações,
sinto-me bem.
Ele olhou para Kismet e Layla.
— O que posso fazer para ajudar?
Elas nem tiveram tempo de responder. Farah entrou no
quarto naquele exato momento e foi ela quem respondeu ao
filho.
— Se não desmaiar nem atrapalhar, já ajuda muito.
— Sem exageros, mãe. Não sou o meu pai.
— Só saberemos disso na hora. — Apesar do tom duro
na voz, ela sorria quando olhou para mim. — E por falar em
hora, até que enfim o novo membro da família vai chegar. Que
Allah seja louvado por esta benção!
Com os quatro ao meu lado, sem dúvida não havia o
que temer. Todas as minhas inseguranças de gestante de
primeira viagem se diluíram com a presença deles ao meu
redor, principalmente a de Yusuf. Ele foi uma força presente,
dando-me a ajuda que eu precisava. Só se afastou de mim na
maternidade para se preparar. Depois, se sentou em um banco
ao meu lado dentro da sala de parto, segurando a minha mão
enquanto eu exauria as minhas forças para trazer o nosso bebê
ao mundo.
Ele me olhava, preocupado, mas não deixava de falar
palavras confortadoras ou de sussurrar no meu ouvido o
quanto me amava.
— Força, habibti. Só um pouco mais e saberemos se
Allah nos abençoou com uma princesa rebelde ou com um
príncipe aventureiro.
Igual a ele, eu estava ansiosa por aquela surpresa, o
meu coração ansiando por ter um ou outro nos meus braços.
— Está quase! — Farah alertou, em pé atrás da
médica.
— Empurre agora, princesa! — Layla orientou, dando
assistência à obstetra. — Força!
Foi o que fiz. Coloquei a minha alma na força de
empurrar, empurrar e empurrar. Se aquilo não fosse o
suficiente, eu não saberia mais o que fazer.
De repente, um choro se fez ouvir dentro da sala de
parto e chorei também ao ouvi-lo. Yusuf e eu nos olhamos, sem
acreditarmos que o nosso milagre havia acontecido. Ele engoliu
em seco e inspirou fundo, a expectativa grande para saber se
seria Zahara ou Sharif.
Farah comemorou o nascimento, Kismet também e
Layla deu um sorriso de aprovação pelo meu esforço. Todas
elas passaram diante dos meus olhos como se fosse um
borrão, porque apenas uma pessoa me interessava ali dentro.
Era a médica com o meu filho nas mãos, que o colocou sobre
os meus seios mal saiu de dentro de mim.
— É um príncipe forte e saudável! Parabéns, altezas!
Abracei-o contra o peito, chorando tanto quanto ele.
Era lindo, mesmo todo coberto das secreções do parto. Assim
que o aconcheguei contra os seios, ele se acalmou um
pouquinho, o rostinho virado para o lado de Yusuf.
Olhei para o meu marido, que permanecia estático, os
olhos vidrados fixos no filho. Ele soltou uma exclamação
emocionada e cobriu o rosto com as duas mãos, meneando a
cabeça como se não acreditasse no que estava acontecendo.
— Não vá desmaiar — Farah avisou.
Ele baixou as mãos, mostrando os olhos
avermelhados, onde as lágrimas brilhavam.
— Não vou — negou com a voz embargada de emoção
e engolindo duro, mas o tom era firme. — Sharif não vai ver o
pai dele desmaiar.
Àquela altura, nosso filho já tinha se acalmado e
apenas resmungava, a mãozinha perto da boca, que abria e
fechava como se quisesse chupar o dedo.
Layla se aproximou e o envolveu com uma toalha,
começando a limpá-lo.
— Pode oferecer o seio a ele, alteza. Mesmo que não
mame, este contato é importante.
— Como faço?
— Vou ajudar.
Com habilidade, ela o posicionou e me emocionei
demais quando a boquinha começou a mamar, Sharif agarrado
ao meu seio. Cruzei o olhar com o de Yusuf, que estava tão
emocionado quanto eu.
Ele se inclinou, beijando-me na testa.
— Você me fez o homem mais feliz do mundo hoje —
murmurou no meu ouvido.
— E você me transformou na mulher mais feliz do
mundo.
Yusuf acariciou os cabelos escuros do filho com um
dedo, deslizando depois para o corpinho enrodilhado sobre
mim, em um primeiro contato físico com ele.
— Olhem os dois para mim — Kismet pediu e bateu
uma foto nossa com o celular, sorrindo depois. — Já tirei várias
e filmei também. Não se preocupem que são todas discretas.
Vocês vão ter a lembrança mais linda da vida de vocês para
guardar.
As nossas lembranças mais lindas estavam muito bem
guardadas dentro de nós dois, mas as fotos e os filmes ficariam
para Sharif e nossos outros filhos verem quando crescessem.
Epílogo
FIM
Ú
O Desaparecimento de Mary Anne — Livro Único:
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