Você está na página 1de 834

lettiesj.

com
Instagram: lettie.sj
Página Facebook: lettiesj
Newsletter

___________________________________

Copyright © 2021 Lettie S.J.


1ª Edição | Dezembro/2021
Obra registrada no AVCTORIS
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de
qualquer parte desse livro, por quaisquer meios existentes, sem a prévia autorização por
escrito da autora.
Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes, personagens e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos
reais é mera coincidência.
Edição Digital | Brasil
___________________________________
Sumário
Sinopse
Playlist
Nota da Autora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Epílogo
Biografia e Redes Sociais
Sinopse
O Sheik Yusuf Al Harbi sempre soube que não havia
exigência alguma para que se casasse, afinal, era o terceiro
filho na linha de sucessão de Tamrah, o país árabe líder da
região. Militar apaixonado por velocidade, perigo e exímio
lutador de artes marciais, ele assume os serviços secretos do
país e recebe a missão de descobrir onde está a princesa
Malika Al Kabeer.
Yusuf não pensava em tão cedo assumir um
compromisso sério com alguém, mas não era bem isso o que o
destino havia escrito para ele. Para proteger Malika, ele
assume um noivado que nunca existiu, transformando-a em
sua falsa noiva. Será esta princesa rebelde do país vizinho, que
foi encarcerada injustamente pelo próprio tio por lutar pelos
direitos das mulheres, que vai mudar os conceitos, as
prioridades e a vida inteira do terceiro príncipe de Tamrah. O
veloz Guepardo de Tamrah será rápido o suficiente para fugir
das garras do amor?
A princesa Malika Al Kabeer é uma ativista que luta
pelos direitos das mulheres em um país opressor, governado
pelo tio ditador. Envolvida na disputa de poder dos homens da
família, ela é detida e levada para uma prisão secreta, onde
conhece horrores inimagináveis para uma princesa virgem e
cheia de ideais, que se tornou uma ativista por acreditar na
igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Diante de tudo o que sofreu, Malika renuncia ao sonho
de um dia se casar e ter filhos, mas também não era isso o que
o destino havia escrito para ela. Para se proteger, ela aceita um
noivado falso com o príncipe Yusuf Al Harbi.
Uma ligação única surge entre os dois e o que estava
escrito, acontece!
Maktub!
Playlist
Qsad Einy — Amr Diab
Sadaani Khalas – Amr Diab
Hold On — Chord Overstreet
Sia — Unstoppable
I’ll Stand By You — The Pretenders
That I Would Be Good — Alanis Morrisette
Let Me Down Slowly — Alec Benjamin
Help — Tina Turner
El Alem Allah — Amir Diab

Ouça no Youtube e siga o meu canal:

Ouça no Spotify clicando no ícone ou posicionando o seu celular no


código abaixo dentro da App. Siga o meu perfil:

Faça parte da minha Newsletter e receba todas as novidades dos


meus livros em primeira mão:
Newsletter
Nota da Autora
Maktub! Mais uma história de amor que tinha de ser
escrita vai ser contada agora para vocês. Desta vez, vamos
conhecer tudo o que aconteceu com o Príncipe Sheik Yusuf Al
Harbi e a princesa Malika Al Kabeer.
Este é um livro único e independente, o que significa
que a história foi escrita para ser entendida como um todo, do
início ao fim.
Diferentemente do que aconteceu com Kismet (A Única
Esposa do Sheik), que já estava casada com Saqr quando
ficaram sozinhos pela primeira vez, Malika não tinha nenhum
compromisso com Yusuf no início da história. Esta diferença de
“estado civil”, se é que podemos chamar assim, não permitia
uma aproximação física imediata dos dois. Isso sem falar que
Malika tinha traumas da prisão que Kismet nunca teve. Sendo
assim, no caso de Malika, a convivência e o aprofundamento
dos sentimentos levaram mais tempo do que no caso da irmã.
Vocês vão acompanhar todo o envolvimento do casal desde o
primeiro momento em que se viram até o noivado. O restante
não vou contar, mas convidar vocês a lerem.
É importante salientar que esta é uma cultura em que
namoro, noivado e casamento acontecem de uma maneira
muito diferente da nossa. Aconselho que não leiam com
pressa, mas que degustem, saboreiem e sintam cada momento
de aproximação entre Yusuf & Malika.
Malika é um nome forte e ligado ao poder, por ter
origem a partir do termo árabe malikah, que tem o significado
de “rainha”. É o feminino de Malik/Malyk, que significa rei.
Escrevi a história como ela veio para mim, sem alterar
nada, confiante de que era assim que tinha de ser desde o
início, porque era assim que já estava escrito que tinha de
acontecer. Maktub! Cumpri o que o destino determinou para
Yusuf & Malika. Sinto-me de missão cumprida com eles dois.
Amei cada linha, cada frase, cada capítulo, o livro inteiro. E
espero de coração que vocês também amem.
O livro tem gatilhos? Sim, por causa de tudo o que
Malika viveu na prisão. Há algumas cenas de tortura física e
psicológica, de violência sexual e de suicídio. Ainda assim,
tentei ser o menos descritiva possível, mas sem deixar de
narrar a essência do que Malika passou, para que vocês
entendessem em profundidade os traumas que ela levou para o
relacionamento com Yusuf.
O foco da história é o amor do casal, como em todos os
meus livros. A minha essência é romântica e escrevo sobre
romances, sobre o amor, e é isto o que vocês vão encontrar
nesta história, ou seja, cenas descritivas do amor de Malika,
que tem a força de uma verdadeira rainha em sua essência
interior, e de Yusuf, o seu protetor.
Para as histórias dos Príncipes de Tamrah, criei países
fictícios no Oriente Médio, mas mantive os hábitos, os
costumes e as crenças do povo árabe que encontrei nas várias
pesquisas que fiz. Ressalto também o fato de não haver muito
consenso na transliteração do árabe para o português, o que
faz com que uma mesma palavra seja escrita de maneiras
diferentes. Além disso, o árabe do Egito, do Líbano, da Turquia
etc., também possuem algumas diferenças, inclusive do árabe
clássico.
Ao abordar temas importantes, como a luta pelos
direitos das mulheres, a poligamia e alguns aspectos da crença
deles, não houve qualquer intenção da minha parte de politizar,
de polemizar ou de criticar o assunto. Todas as culturas, países
e pessoas têm o seu lado positivo e negativo, e ninguém deve
apontar o dedo para o outro. Ao contrário, devemos nos
respeitar mutuamente. A cultura árabe é rica, antiga, mágica e
continua me encantando cada vez mais.
Agora, subam no tapete voador e se preparem para
conhecer mais uma história de amor inesquecível, que já
estava escrita pelo destino, que tinha de acontecer e que vocês
precisam ler. Em outras palavras, entrego para vocês agora O
Guepardo de Tamrah e a sua rainha em A ESPOSA
INTOCADA DO SHEIK.
Beijinho no coração de vocês, aproveitem a leitura e
avaliem no final.

Lettie S.J.
Capítulo 1

Londres

Yusuf
— Por Allah,1 alguém me ajude!
A voz feminina soou bem próxima do meu ouvido,
como se a mulher estivesse ali mesmo, deitada na cama ao
meu lado.
Abri os olhos, sentindo-me totalmente desperto e com
os sentidos em alerta máximo, a adrenalina exigindo uma ação
imediata. Uma ação impossível de ser colocada em prática
assim que olhei para o teto do quarto na penumbra da
madrugada e percebi que estava no meu apartamento privado
de Londres, onde adormeci com Emily depois de uma noite
exaustiva de sexo.
O coração batia acelerado no peito como se estivesse
pronto para entrar em uma guerra, mas a frequência cardíaca
foi diminuindo à medida em que eu caía na real.
Que alívio! Foi apenas um sonho.
Com um suspiro de frustração, passei as mãos no
rosto, olhando para Emily ao meu lado, que dormia
pesadamente. Peguei o celular na mesa de cabeceira para ver
as horas. Eram cinco da manhã em Londres, o que significava
que eram oito horas da manhã em Tamrah.
Decidido, levantei-me com cuidado e fui ao banheiro
com o aparelho na mão. Assim que fechei a porta, liguei para
minha mãe.
— O que faz acordado às cinco da manhã, Yusuf? —
foi a primeira coisa que ela me perguntou com aquele jeito
direto de falar que eu tanto amava.
O alívio que senti ao comprovar que ela estava bem foi
tanto que o meu peito descomprimiu de imediato.
— Me acordei com uma sensação estranha. Fiquei com
a impressão de que estava precisando de mim para alguma
coisa e resolvi ligar. Está tudo bem por aí, mãe?
— Sim, estou ótima. Todos estamos bem.
— E a Sabirah?
— Também. Ela acabou de sair para a aula.
— Minhas outras irmãs?
— Perfeitamente bem.
— Fico mais tranquilo.
Ela riu, feliz.
— Deve ser a saudade, filho. Principalmente agora que
já está perto de voltar para casa.
— Sim, deve ser isso.
— Vá descansar mais um pouco e nos avise quando o
avião decolar.
— Avisarei, mãe. Fiquem todos com a paz.
— Você também, filho. Que a paz esteja com você
também.
Desliguei e voltei para a cama, deitando-me com o
coração mais leve. Achei que não fosse conseguir conciliar o
sono novamente, mas adormeci logo depois por mais duas
horas. Quando me acordei novamente e consultei o celular, já
eram sete.
Emily continuava dormindo e me levantei sem fazer
barulho para não a acordar.
— Você já vai embora?
A voz dela me fez parar no meio do caminho. Olhei
para a cama onde estava deitada, mas não adormecida como
achei que estivesse. Pelos vistos, o cuidado que tive ao me
levantar foi desnecessário, uma vez que Emily parecia mais
acordada do que eu.
— Está na minha hora de voltar para casa — expliquei
o óbvio só para não criar caso, mas aquilo de dar constantes
explicações estava se tornando cansativo.
Ela se levantou da cama e veio até onde eu estava,
muito à vontade com a própria nudez. Abraçou-me, colando-se
em mim.
— Depois de um ano inteiro juntos, pensei que as
coisas tinham mudado entre nós.
Já havíamos conversado sobre aquilo nos últimos
meses, mas ela insistia em não aceitar. Dei um beijo em sua
testa e coloquei as mãos na cintura esbelta, recuando e me
afastando dela.
— Nada mudou e você sabe disso. Agora preciso
mesmo ir.
Peguei minha roupa na poltrona ao lado da cama e fui
para o banheiro.
Emily sabia que eu precisava voltar para casa, assim
como sabia que o nosso relacionamento acabaria quando o
meu tempo em Londres terminasse. Agora que eu já tinha uma
formação militar na Academia de Sandhurst,2 além de um curso
de Economia e de uma especialização em política finalizados
na Universidade de Londres, havia chegado a hora de voltar
para Tamrah e ajudar o meu pai e os meus irmãos a
conduzirem o país.
Já não havia mais o que aprender fora de Tamrah,
fosse a nível militar ou intelectual. Eu ansiava por entrar em
ação no meu país. Nada em Londres deixaria saudades em
mim, muito menos a Emily. A cidade tinha o seu encanto e a
mulher que estava no quarto comigo era uma beldade, mas o
que eu realmente queria não estava ali. A minha alma era
árabe e eu ansiava por voltar ao meu país.
Conheci Emily em uma festa promovida por colegas da
universidade. Ela tinha vinte e sete anos e seguia a carreira de
modelo. Acabamos por ficar juntos na festa, depois nos
encontramos outra vez e passamos a nos ver com frequência.
Eu queria um relacionamento discreto, que não chamasse a
atenção dos paparazzis e dos tabloides, e Emily aceitou as
minhas condições.
Desde o início ela sabia que era tudo sem
compromisso.
— Você é um príncipe ou um sheik? — ela havia
perguntado quando nos conhecemos, deixando óbvio que
sabia estar diante de um príncipe árabe.
— Sou as duas coisas. Nem todo sheik é da família
real para também ser um príncipe, que é o meu caso. Da
mesma maneira como nem todo duque inglês é da família real
para também ser um príncipe.
Ela riu, enfim, entendendo.
— E como é lá no seu país? Me disseram que tem um
polo turístico luxuoso e ultramoderno e eu achando que só
existia deserto, poços de petróleo e tempestades de areia.
Nem perdi tempo tentando descobrir como ela ficou
sabendo daquilo. Acostumei-me, depois dos primeiros
relacionamentos que tive. Todas as mulheres com quem fiquei,
fosse em Londres ou em outro lugar, já sabiam quem eu era
antes mesmo do primeiro beijo acontecer. Elas tinham um
sistema de investigação que faria inveja a qualquer serviço
secreto governamental.
— É exatamente isso o que temos em Tamrah.
Deserto, tempestades de areia, um sol implacável, um vento
seco que resseca a pele e muito calor.
Destaquei os pontos mais radicais do meu país. A
intenção era mesmo de assustar uma britânica como ela,
acostumada com as facilidades de uma vida ocidental.
Propositadamente, deixei de fora o turismo de alto luxo e a
riqueza exorbitante em que vivíamos, que certamente a atrairia
muito mais.
Emily chegou a fazer uma cara de horror, mas mudou a
expressão logo a seguir. Devia estar pensando que ficar com
um príncipe valia o esforço de fingir normalidade.
— Que sorte que estamos aqui e não lá — ela disse e
o sorriso de alívio que me deu foi genuíno. — Cada um no seu
país parece ser um bom lema.
Talvez tenha sido aquele comentário que me
conquistou nela. Não foi a beleza do rosto, nem os cabelos
louros, muito menos os olhos azuis ou o corpo escultural.
Fisicamente ela era linda, mas não fazia o meu tipo preferido
de mulher. Era alta demais para o meu gosto, que me sentia
atraído por mulheres mais baixas. Os cabelos eram curtos,
quase brancos de tão louros, e eu gostava de cabelos
compridos e castanhos, escuros como a noite e que se
derramavam pelas costas femininas. Os olhos eram tão azuis
que pareciam safiras, mas eu me sentia atraído por olhos
amendoados, da cor das tâmaras da minha terra e do
aromático óleo de Oud.3
Emily também fazia questão de exibir o corpo em
público com roupas excessivamente colantes e decotes
pronunciados, atitude que eu não condenava nela, mas que
servia para nos distanciar ainda mais. Eu valorizava o recato e
o pudor das mulheres da minha cultura.
Lembrar de tudo aquilo só aumentou a minha saudade
de Tamrah e me vesti às pressas no banheiro.
Bem que Saqr me preveniu que o maior desafio seria a
saudade!
Ele era o segundo filho do meu pai e o meu irmão mais
velho depois de Majdan, o primogênito. Saqr e eu éramos
muito unidos desde criança. Mesmo com os telefonemas e as
férias em Tamrah, eu sentia falta da presença dele, dos meus
pais, da petulância da minha irmã mais nova, dos meus outros
irmãos. Enfim, da família inteira.
Chega de Londres! Está mais do que na hora de voltar
às minhas origens.
Assim que voltei ao quarto, encontrei Emily sentada na
cama com os olhos cheios de lágrimas. Senti-me culpado por
estar tão aliviado em terminar nosso relacionamento e voltar
para Tamrah, enquanto ela se ressentia com a minha partida.
— Desculpe-me pelo choro, Yusuf. — A voz dela
estava embargada. — Achei que ia ser fácil quando chegasse a
hora da despedida e que não me sentiria desse jeito, mas a
verdade é que não consigo me controlar. Sinto-me
estranhamente insegura ao me imaginar sem você.
Suspirando, sentei-me na cama ao lado dela e a
abracei.
— Não precisa se desculpar, Emily. Até as mulheres
mais fortes têm um lado emotivo e podem se sentir inseguras
— consolei-a, esperando que superasse bem o fim do
relacionamento. — Não precisa se preocupar em sair do
apartamento agora. Fique nele o tempo que precisar para
organizar a sua vida com calma. Aproveite aquela proposta de
trabalho que recebeu para morar em Nova York e invista na sua
carreira de modelo. Você é linda, profissional e tem tudo para
ter sucesso.
Ela me olhou por entre as lágrimas, surpresa.
— Posso mesmo ficar aqui no seu apartamento?
— Sim, pode e pelo tempo que precisar. O meu
assistente enviará um comunicado à administração do prédio
informando isso. Quando não precisar mais morar aqui, ligue
para Adnan e ele providenciará alguém para pegar as chaves.
Fui abraçado pelo pescoço com mais força ainda.
— Obrigada, Yusuf. Você é um homem honrado,
especial, único. Eu queria muito que tivesse se apaixonado por
mim como me apaixonei por você.
Aquela era a parte que eu mais detestava na hora de
terminar relacionamentos sem compromisso. As mulheres
sempre ficavam com esperanças de me verem apaixonado por
elas, mesmo sabendo desde o início que para mim era apenas
sexo.
— Um dia você vai encontrar o homem certo e ser feliz
com ele. Eu não sou esse homem, Emily.
Ela se afastou, limpando as lágrimas do rosto.
— Eu sei que a sua cultura é diferente da minha e que
a sua família espera que se case com uma mulher árabe, mas
se você realmente quisesse, podíamos continuar juntos.
— Você falou certo agora. Se eu realmente quisesse
podíamos continuar juntos, só que eu não quero — repeti
firmemente o que já havia dito para ela em uma conversa
parecida meses atrás. — E não tem nada a ver com você, mas
comigo. Tão cedo pretendo assumir um compromisso sério
com uma mulher. Não tenho pressa alguma de ficar noivo,
muito menos de me casar. Sou o terceiro filho e não há
exigência sobre mim para isso. Se eu quiser, posso ficar
solteiro para o resto da vida.
— Mas é isso o que não entendo! Se ninguém está
fazendo pressão em cima de você para assumir um
compromisso com uma mulher árabe, por que não podemos
continuar juntos do jeito que estamos? Posso ir para Tamrah
com você e viver em um apartamento que seja seu, igual como
fizemos aqui.
Vou ter de ser duro mesmo!
— Não vou chegar em Tamrah com uma amante na
bagagem quando tenho outras amantes lá, Emily. — Ela me
olhou, chocada. — Sinto muito, mas esta é a verdade. Respeito
a mulher que você é e acredito que saiba que pode contar
comigo se precisar de alguma ajuda, mas o que tivemos foi
apenas sexo para mim.
— Você está sendo muito duro comigo, Yusuf. Se um
dia se apaixonar e não for correspondido, vai entender o que
estou sentindo.
Por Allah, isso é uma praga?
— Se para entender é preciso me apaixonar, talvez
nunca entenda. Agora preciso mesmo ir.
Antes que o melodrama da despedida aumentasse,
levantei-me, peguei a chave do carro e saí do apartamento.
Sentei-me na direção do Bugatti com um suspiro de
alívio, acelerando pelas ruas de Londres até a mansão da
família Al Harbi em Kensington. Mal entrei nela, o meu
assistente apareceu no hall.
— Tudo pronto para partirmos?
— Sim, alteza. Podemos embarcar assim que autorizar
— Adnan respondeu sem disfarçar a satisfação.
Ele estava tão feliz quanto eu em regressar à Tamrah e
rever a família.
— Está autorizado. Quero ir embora o mais rápido
possível.
Capítulo 2
Fronteira entre Sadiz e Qasara

Malika
— Estamos perto agora — Hussam informou na
direção do carro, acelerando na rodovia que ligava Sadiz à
Qasara.4
— Allah seja louvado! — exclamei, sentada no banco
de trás e sendo acompanhada na oração por Badra e Hessa,
as duas outras mulheres dentro do veículo.
Apesar da fé que tínhamos na misericórdia de Allah,
nós quatro estávamos nervosos e contando os minutos para
ultrapassarmos a fronteira que separava Sadiz de Qasara.
Precisávamos pedir asilo político no país vizinho o mais rápido
possível ou seríamos as próximas vítimas da repressão
imposta pelo governo ditador do meu tio Suleiman. Quem ainda
não havia sido levado para a prisão, estava sendo preso
naquele exato momento, e tínhamos a certeza de que
estávamos na lista negra do rei e que seríamos os próximos.
Observei minhas duas amigas e companheiras de
ativismo. Igual a mim, Hessa tinha vinte e quatro anos. Eu a
conheci no curso de Serviço Social da Universidade de
Ciências Humanas5 de Sadiz e tive a grata satisfação de
descobrir que ela também era uma ativista que lutava pelos
direitos das mulheres. Sempre sorridente, naquele momento
estava séria, com o belo rosto tenso e o olhar angustiado.
Badra era uma mulher bem mais madura. Tinha
quarenta e seis anos e atuava há bastante tempo na ONG
Mulheres São Livres6. Ela era casada com Hussam, que agora
dirigia o carro em alta velocidade. Mesmo com toda a
experiência e maturidade que Badra tinha, era visível a
ansiedade nos olhos que cruzaram com os meus quando ela se
virou para trás.
— Vamos conseguir! — afirmei com convicção,
tentando dar força à Hessa, a mais frágil de nós três, cujas
mãos crispadas sobre o colo segurei em um gesto de conforto.
Badra entendeu a minha intenção.
— Allah vai nos ajudar — ela reforçou o que eu disse,
dando um sorriso encorajador para a amiga.
Trocamos um rápido olhar preocupado antes de ela se
virar novamente para a frente. Concentrado na direção, o
semblante carregado de Hussam não melhorava o clima tenso
dentro do carro.
Horas atrás, assim que ficamos sabendo da prisão de
outros membros da nossa ONG, fugimos para pedir asilo em
Qasara, o país mais próximo de onde estávamos. Ainda pensei
na possibilidade de irmos para Tamrah, um país com mais
liberdade de expressão e onde as mulheres haviam
conquistado muitos direitos nos últimos anos, mas a amizade
entre o meu primo Mubarak e Majdan, o príncipe herdeiro7 de
Tamrah, fez com que eu mudasse de ideia. Caso o meu tio
Suleiman descobrisse que estávamos lá, sem dúvida que
seríamos caçados, presos e extraditados para Sadiz em um
piscar de olhos. Majdan faria aquilo com o maior prazer, para
agradar ao amigo e ao rei do país aliado.
Em Sadiz, o nosso destino seria a temida prisão de
segurança máxima de Asuid8, na qual já estavam encarcerados
vários membros da família real, acusados de conspirarem
contra o governo.
Soltei um suspiro trêmulo, tentando não pensar nas
outras mulheres ativistas que foram presas naquela manhã na
sede da ONG, em uma ação secreta e implacável feita pela
guarda real. A irmã de uma delas havia entrado às pressas na
biblioteca do nosso curso, onde Hessa e eu fazíamos um
trabalho de teorias sociológicas. Quase não acreditei quando
Jumanah se sentou na nossa mesa usando uma burca9 e nos
contou o que tinha acontecido.
— Levaram todos sob a alegação de manterem
contatos internacionais que eram prejudiciais ao país e que iam
contra o governo. Encerraram todas as atividades do nosso
grupo e lacraram as portas da sede — ela havia dito em um
sussurro urgente, olhando diretamente para mim pela rede da
burca. — Badra me pediu para avisar vocês e dizer que já tem
um plano de fuga para saírem do país. Ela está esperando na
rua dos fundos.
Fiquei tão desnorteada que demorei a reagir. Ao meu
lado, Hessa parecia em um estado de choque pior do que o
meu.
— Fugir do país? — consegui balbuciar, sem acreditar
que precisaria chegar àquele cúmulo. — Não posso ir embora.
Tenho os meus pais e a minha família aqui.
— Eles nada poderão fazer para impedir que prendam
você, mesmo sendo uma princesa da família real. Vários
príncipes já estão atrás das grades e o seu nome está na lista
dos próximos. Não vão demorar para chegar aqui.
Bismillah!10
— Tem certeza disso?
— Infelizmente, tenho. Você sabe que o irmão de
Badra é amigo de um funcionário do governo ligado à guarda
real. Ele teve acesso à lista de pessoas que são consideradas
uma ameaça para o país e nos avisou em caráter confidencial.
— A voz dela ficou embargada de emoção naquele ponto do
relato. — Se tivéssemos recebido essa informação antes,
talvez a minha irmã não estivesse presa agora. Tem jornalistas
e ativistas de várias organizações de direitos humanos sendo
detidos neste exato momento e vocês não têm muito tempo
para fugir.
Saindo do estado de choque, peguei o meu celular na
bolsa.
— Preciso avisar aos meus pais.
— Não!!!
Rápida, ela colocou uma mão sobre o aparelho,
assustando-me com aquela negativa tão repentina.
— O seu número está grampeado! Estão nos vigiando
há meses sem sabermos. Eles têm conhecimento de cada
palavra que dissemos no celular, com quem falamos e de todos
os nossos passos.
— Mas eu não posso ir embora sem prevenir os meus
pais do que está acontecendo.
— Você vai é piorar a situação deles se contar alguma
coisa e os serviços secretos do seu tio ficarem sabendo depois.
A melhor proteção que você pode dar à sua família agora, é
eles ignorarem totalmente o que aconteceu com você ou o
destino que tomou.
— Eles podem ser presos também.
Ela negou com um meneio de cabeça.
— O nome deles não estava na lista. Só o seu.
Inspirei fundo, a realidade caindo com um peso
absurdo sobre mim. Foi difícil colocar o celular de volta na
bolsa e arrumar minhas coisas sobre a mesa, mas consegui.
— Yalla11, Hessa! — apressei-a.
Apesar do que eu disse, Hessa não se mexeu para
nada. Notei que estava mesmo em choque.
— Ajude-me a juntar as coisas dela, Jumanah!
Em poucos minutos arrumamos tudo e saímos da
biblioteca praticamente arrastando Hessa. Fomos para a rua
lateral, onde estava estacionado o carro de Hussam.
Badra desceu assim que nos viu chegar.
— Livrem-se dos celulares — ela preveniu com
urgência.
Fiz o que pediu e joguei os dois aparelhos na lata de
lixo mais próxima, tentando não lamentar aquele ato, nem
pensar em mais nada que não fosse sair logo do país. Eu daria
um jeito de falar com os meus pais quando estivesse em
segurança.
Entramos no carro em um silêncio fúnebre, enquanto
Jumanah ia embora às pressas pela rua.
— Para onde vamos?
— Qasara — Hussam respondeu com gravidade,
conduzindo o carro pelas ruas adjacentes da universidade.
Qasara era o país da falecida mãe de Kismet, que
também havia sido a primeira esposa do meu pai. Apesar de
sermos meias-irmãs de nascença, eu considerava Kismet como
uma irmã de verdade, a quem amava demais. Éramos muito
ligadas e me preocupei com o que acharia de tudo aquilo.
Quando falasse com a minha mãe, pediria que ligasse para o
Cairo, onde Kismet estudava, e explicasse tudo a ela.
Sim, Qasara é uma boa opção!

Hussam fez um percurso mais longo até a fronteira,


porém necessário para fugirmos dos pontos mais vigiados
entre os dois países. Até onde o carro podia ir sem
impedimentos, ele usou caminhos fora da estrada principal,
vencendo terrenos pedregosos e desérticos. A intenção era
entrar em Qasara pelas áreas mais abandonadas e sem
vigilância constante.
— Entramos em Qasara! — Hussam disse de repente,
pegando-nos desprevenidas.
— Oh, glorioso Allah! — Badra cobriu o rosto com as
mãos, deixando transparecer pela primeira vez o quanto havia
estado tensa durante aquele tempo todo.
Apertei a mão de Hessa, que começou a chorar de
puro alívio. Da minha parte, inspirei fundo e agradeci à Allah
por nos ter abençoado com a liberdade.
Hessa me abraçou e comemoramos os quatro aquela
vitória.
— O que faremos agora? — perguntei à Hussam.
— Teremos de ir até a cidade mais próxima e falar com
as autoridades locais para pedir asilo político. Qasara faz parte
da Coligação Árabe12 e há uma convenção que os países-
membros assinaram em uma das cúpulas que protege os
asilados políticos. O governo de Sadiz faz parte da coligação e
não poderá fazer nada contra nós.
Inshallah!13
Aliviados com aquela certeza, continuamos
percorrendo a estrada local que nos levava rumo à liberdade.
Em um determinado ponto, Hussam diminuiu a velocidade e
parou.
— Preciso ver o mapa da região. Sem o GPS do celular
fica difícil ter certeza do caminho para a cidade mais próxima.
Estávamos os quatro concentrados no mapa, tentando
nos orientar sobre o caminho a tomar, quando o som de um
motor vindo pela estrada chamou nossa atenção.
Acho que fui a primeira a ver o SUV branco vindo em
alta velocidade pela estrada às nossas costas, mas assim que
Hussam também o viu, fechou o mapa às pressas e o
escondeu debaixo do banco.
— Vamos esperar que nos ultrapassem. Finjam que
estão conversando naturalmente até que tenham ido embora.
Ainda não pedimos asilo e todo cuidado é pouco.
Hussam ligou o carro e tentamos fingir naturalidade,
mas paramos o fingimento assim que o SUV nos ultrapassou e
diminuiu a velocidade, impedindo-nos de acelerar na estrada.
— Quem são eles? — Hessa perguntou, voltando a
ficar nervosa. — Por que estão fazendo isso?
— Calma! Não vamos nos desesperar.
Tentei acalmá-la, mas foi inútil. Àquela altura, ela já
chorava copiosamente.
— Controle-se, Hessa! — Badra usou um tom duro. —
Vão desconfiar se virem você chorando desse jeito. Pode ser
alguma patrulha de Qasara.
Algo me dizia que não era uma patrulha, mas também
não era a hora de dizer aquilo. Se não fossem guerrilheiros ou
assaltantes, só podiam ser guardas de Sadiz à nossa caça.
Um calafrio percorreu o meu corpo diante daquela
possibilidade, mas enchi o peito de ar e me preparei para lutar
pela nossa liberdade. Estávamos em Qasara e não podíamos
ser arrastados dali de volta para Sadiz.
Hussam ainda tentou ultrapassar o SUV, mas não
conseguiu. Acabamos parados bem no meio da estrada,
impedindo a passagem de qualquer outro carro que viesse nas
duas direções. Contudo, tratando-se de uma estrada
praticamente deserta, aquilo não causaria problema algum para
eles, apenas para nós, que ficamos à mercê dos quatro
homens armados que desceram do SUV.
Tão logo os vi, não tive dúvidas de que eram de Sadiz.
Os meus companheiros também perceberam o mesmo que eu
e um clima de fatalidade inevitável tomou conta do carro.
— Desça com as mãos para cima! — ordenou um dos
guardas para Hussam, apontando-lhe uma pistola, enquanto os
outros cercavam o carro com rifles ameaçadores, como se
fôssemos criminosos perigosos. — As mulheres aguardem no
carro.
Hussam desceu como pediram, tentando conversar
com eles.
— Não entendo por que interromperam a nossa
viagem. O que está acontecendo?
Ele não recebeu resposta. Foi empurrado com violência
contra o capô do carro e tentou resistir ao ser algemado, sendo
duramente golpeado com uma coronhada na cabeça.
Hessa gritou, desesperada. Badra gritou, angustiada
pelo marido. Já eu, senti-me tão revoltada que desci do carro
sem pensar em mais nada.
— Parem! — gritei, ignorando as armas apontadas
para mim. — Ele não fez nada para ser tratado desse jeito!
Todos me olharam.
— É a princesa — um deles disse, reconhecendo-me.
O guarda que golpeou Hussam se aproximou depois de
o largar ao chão, algemado.
— Ele é um fugitivo do governo de Sadiz — disse com
autoridade.
— Ele é um homem em território de Qasara e vocês
não podem prender ninguém aqui.
O homem riu na minha cara.
— E quem vai nos impedir de fazer o que quisermos?
Infelizmente, ninguém. Pegamos um caminho pouco
movimentado justamente para ficarmos protegidos, mas aquele
isolamento agora estava sendo a nossa perdição. Não havia
absolutamente ninguém há quilômetros de distância de onde
estávamos, exceto se algum carro surgisse de repente naquela
rodovia deserta.
— A lei e os direitos adquiridos com esta lei nos
protegem fora de Sadiz. O que estão fazendo é uma
ilegalidade.
O homem se aproximou de mim mais ainda em uma
atitude ameaçadora.
— Nós somos a única lei aqui e vocês estão todos
presos, acusados de conspirar contra Sua Majestade o Rei
Suleiman Al Kabeer.
Quase cuspi na cara dele ao ouvir o nome do meu tio,
mas aquele gesto, além de ser gravemente insultuoso, selaria
de vez a minha morte imediata e dos meus amigos.
— Falarei com Sua Majestade o rei por telefone e
explicarei tudo — disse com coragem, apesar de saber que
dificilmente o meu tio me atenderia. — Enquanto isso, solte-o.
Ele precisa de cuidados médicos.
Eu estava preocupada com Hussam. Prostrado ao
chão, ele não se mexia e uma mancha de sangue escorria do
golpe na cabeça.
— Tenho ordens para levar os quatro de volta à Sadiz e
é isso o que vai acontecer agora. Sem direito a ligações de
espécie alguma — ele comunicou com autoridade, deixando
óbvio para mim que era o líder, a quem tinha sido passada a
missão de encontrar e prender o meu grupo. — Vocês poderão
cuidar do prisioneiro no caminho. Agora entre no carro, “alteza”.
Notei o tom de ironia e o brilho caçoísta no olhar ao me
chamar de alteza, algo que ele jamais faria em qualquer outra
situação. Aquilo poderia custar a vida dele se as circunstâncias
fossem outras. Só que, atualmente, eu não passava de presa
política.
Capítulo 3
Sadiz
Malika
Agarrada em mim no banco de trás do SUV branco da
guarda real, Hessa tremia tanto que eu nem sabia mais o que
fazer para ajudá-la. Seguindo o SUV vinha o carro de Hussam,
onde ele e Brada estavam com dois outros guardas. Um deles
na direção e o outro a vigiá-los.
Eu só esperava que o meu amigo estivesse bem.
Hussam tinha sido arrastado para dentro do carro ainda
inconsciente, deixando-nos preocupadas. A única coisa que
pude fazer por ele foi rezar e a única coisa que podia fazer por
nós quatro daquele momento em diante era rezar também.
Nada mais.
O retorno para Sadiz oprimiu o meu peito. Ver
novamente as ruas da capital na condição de prisioneira era
terrível. Eu só conseguia pensar que aquela provavelmente era
a última vez que via os prédios com o sol refletido nos vidros
das janelas, as pessoas andando pelas ruas, o souk14 lotado e
os carros circulando nas vias, sempre conduzidos por homens,
nunca por mulheres.
Fomos levados direto para a prisão de Asuid como eu
já previa. Contudo, para minha grande surpresa, apenas meus
amigos ficaram lá. Quando fui descer do carro, um dos guardas
me impediu com um gesto de mão.
— Não, a princesa fica — ordenou, mas havia respeito
na voz, diferentemente do líder, que agora se dirigia para o
carro de Hussam parado atrás do nosso.
Em pé do lado de fora do SUV, Hessa arregalou os
olhos de medo ao perceber que estávamos sendo separadas.
Fiquei com pena dela, pois sabia o quanto se sentia mais
segura e confiante comigo ao lado, mas nada pude fazer para
impedir que a porta do carro onde fiquei fosse trancada comigo
lá dentro.
Nós duas trocamos um olhar de despedida e não
consegui conter as lágrimas. Qual seria o nosso destino? O
que nos aconteceria dali em diante? Nos veríamos de novo?
Os gritos de dor de Brada desviaram a nossa atenção
para o carro de Hussam, de onde a minha amiga estava sendo
retirada à força e aos prantos, mas sozinha. Ela foi levada para
o lado de Hessa, que a abraçou, consolando-a.
Misericordioso, Allah! E o Hussam?
Bati na janela do carro, tentando chamar a atenção das
duas para saber notícias dele, mas ambas foram levadas pelos
guardas sem que percebessem o meu gesto. O carro de
Hussam seguiu para um destino desconhecido e fiquei só,
sentindo-me desamparada como nunca antes em minha vida.
Eu não podia lutar por eles, ajudá-los, protegê-los. Ainda que
fosse uma princesa, talvez não conseguisse fazer nada nem
por mim mesma, quanto mais por eles.
Por outro lado, também me sentia culpada. Será que a
guarda de repressão política teria se arriscado a agir dentro do
território de Qasara para prender apenas três ativistas com
pouca representatividade dentro do grupo? Se eu não
estivesse no carro com eles, teriam sido deixados em paz?
Provavelmente sim. A minha intuição — ou o sentimento de
culpa — me dizia que o governo queria a mim, por ser da
família real. Certamente o meu tio Suleiman ia usar a minha
liberdade para chantagear o meu pai de alguma forma.
Foi com uma preocupação cada vez maior que
observei o líder voltar a entrar no SUV onde eu estava e se
sentar no banco do passageiro. Um outro guarda se sentou na
direção e saímos da prisão de Asuid.
Para onde vão me levar?
Só Allah sabia do meu destino!

Pareceram se passar horas até que a porta da sala


minúscula onde me deixaram à espera se abriu. O prédio era
desconhecido para mim, mas deduzi que fosse uma espécie de
quartel general do governo e que aquela era uma sala de
interrogatórios. Lá dentro não havia nada mais além de uma
mesa quadrada com duas cadeiras de madeira, uma de frente
para a outra. As paredes estavam livres de qualquer adorno e
todo o restante do cômodo se encontrava vazio.
Sentada em uma das cadeiras, observei o homem que
entrou vestido com um thobe15 branco, acompanhado do
mesmo guarda que liderou a minha busca. A calça e a túnica
castanhas com aparência envelhecida que o guarda usava
destoavam da brancura da vestimenta tradicional do outro, feita
de um tecido de qualidade.
Ele tinha uma baixa estatura, o rosto era redondo e o
corpo ligeiramente gordo, diferenciando-o ainda mais do
guarda que efetuou a minha prisão, muito mais alto e
encorpado, para não dizer ameaçador. E foi justamente o
guarda que se posicionou ao lado da porta com a fisionomia
endurecida, onde brilhavam aqueles olhos caçoístas que eu
estava começando a odiar.
— Salaam Aleikum16, princesa Malika — o homem de
thobe disse, surpreendendo-me com a educação e o respeito
com que me cumprimentou antes de se sentar à minha frente.
— Sou Kaleb Al Sabbah, o encarregado do seu caso.
— Alaikum As-Salaam17 — respondi com a mesma
educação, mas sem deixar que transparecesse no meu rosto a
desconfiança que sentia com a presença dele ali.
Encarregado do meu caso em qual sentido?
Mantendo-me em silêncio, aguardei que dissesse algo,
o que ele fez logo a seguir.
— Sua Majestade o Rei Suleiman Al Kabeer me
encarregou de conversar pessoalmente com a princesa e
contamos que colabore fornecendo as informações que
precisamos. Quero que me dê o nome das pessoas de fora de
Sadiz com quem tem entrado em contato e que estejam
relacionadas a assuntos políticos do nosso país. Assuntos
estes que vão contra à soberania nacional.
Foi difícil continuar impassível diante daquele discurso
intimidante sobre contatos políticos internacionais e soberania
nacional.
— Não mantenho contato de natureza política com
ninguém de fora de Sadiz. Não posso passar informações que
não tenho.
O olhar frio dele me deixou apreensiva, mas não
desviei a vista, mantendo o contato visual. Eu não tinha nada a
esconder.
— Há registro de ligações efetuadas para pessoas de
vários países. Sabemos que vem mantendo contato com
anarquistas e instituições que promovem manifestações e
tumultos sob a bandeira dos direitos humanos, mas que, no
fundo, não passam de ataques políticos para enfraquecer a
força governamental. Além disso, a princesa tem repassado
informações políticas internas para jornalistas e entidades da
comunicação social destes países, que, por sua vez, têm
divulgado notícias internacionais que desabonam o governo de
Sua Majestade o Rei Suleiman.
Ele parecia um juiz lendo a sentença de um julgamento
e não um simples encarregado conversando com uma princesa
detida por participar de uma ONG que lutava pelos direitos das
mulheres de Sadiz.
— Estas alegações são falsas. Nunca fiz nada disso —
neguei sem vacilar, encarando-o muito diretamente, mesmo
sabendo que as mulheres deviam baixar os olhos diante dos
homens e jamais replicar perante eles.
Kaleb Al Sabbah estreitou os olhos com um ar de
ofendido.
— Está insinuando que estou mentindo, princesa
Malika Al Kabeer? — perguntou em tom de indignação.
Notei a estratégia de me colocar em uma posição
delicada e comprometedora. Ele era muito inteligente e tudo
tinha sido premeditadamente planejado. O homem estava
conduzindo o interrogatório para o desfecho que queria, com
acusações falsas que me fariam negar e ser punida por aquilo.
— Estou apenas colaborando para esclarecer os fatos.
Não entrei em contato com pessoas de outros países para
desestabilizar o governo do meu tio Suleiman — insisti na
verdade usando o tom de voz mais ameno que consegui.
— Se quer realmente colaborar, me passe os contatos
que manteve desde que Fhatima Al Kabeer foi detida por
conspirar contra a monarquia.
Que absurdo isso!
— Minha prima Fhatima não estava conspirando contra
a monarquia, apenas defendia o direito das mulheres do nosso
país.
— Com isso está querendo dizer que era cúmplice
dela? — o homenzinho odioso manipulou a minha resposta. —
O que vocês ativistas chamam de defesa dos direitos das
mulheres é, na verdade, um ato que vai contra as leis do nosso
país. Portanto, um crime nacional.
Dizer que fiquei horrorizada demais com a capacidade
dele de deturpar tudo o que eu dizia era pouco. O homem veio
disposto a me comprometer e não a esclarecer os fatos.
— Não considero um crime nacional pedir que as
mulheres possam dirigir, por exemplo.
— Se está na lei que elas não podem, é um crime
exigir isso.
— Não exigimos nada, apenas pedimos — corrigi o que
ele disse.
— Vocês estão influenciando negativamente as
mulheres do país a “exigirem” direitos que elas legalmente não
têm. Com isso, desestabilizam a nossa sociedade e ameaçam
o Estado. — O homem alterou o tom de voz, falando alto o
suficiente dentro da sala minúscula para que suas palavras
fossem ouvidas até além das paredes. — Declaro diante do
testemunho do supervisor prisional, que a princesa Malika Al
Kabeer é um perigo para a soberania nacional. Deverá
permanecer encarcerada até que assine uma confissão de
todos os seus crimes, que nos passe o nome das pessoas da
sua família que estão envolvidas, dos contatos que tem no
exterior e que cumpra o período de prisão que será decretado
por Sua Majestade o rei. Daqui deverá ser encaminhada para
Asuid, onde aguardará a referida sentença.
Estarrecida, inspirei fundo diante daquela
arbitrariedade.
— Mas isso é um absurdo! Não posso ser condenada
sem um julgamento.
Ele me olhou com frieza.
— Acabou de ter o seu julgamento, princesa Malika.
Quando quiser assinar a confissão de culpa de todos os seus
atos contra o governo, avise e voltarei.
Kaleb Al Sabbah se levantou e começou a sair da sala,
enquanto eu o observava, o choque me deixando emudecida.
Só quando o guarda abriu a porta para ele foi que me lembrei
de Hussam, de Badra e de Hessa.
— E os meus amigos, o que vai acontecer com eles?
— Encontrei voz para perguntar antes que o homem saísse da
sala.
— Não tardará para saber do destino deles.
A resposta foi dita com satisfação antes que ele saísse.
Fiquei sozinha com o guarda que me prendeu, que agora eu
sabia ser o supervisor prisional.
Ele se aproximou de mim com o costumeiro olhar
zombador. Definitivamente, aquele homem devia desprezar a
realeza ou as mulheres. Para a minha desgraça, eu era as
duas coisas.
— Sou Hisham Al Amari — ele se apresentou, imitando
Kaleb Al Sabbah e falando com evidente prazer. — Sou o
encarregado de fazer com que confesse todos os seus crimes,
“alteza”.
Oh, bismillah!18
Capítulo 4
Malika
Apesar do que disse, Hisham Al Amari me deixou
sozinha na sala durante o que me pareceu ser uma hora
inteira. Quando voltou, foi para me conduzir à uma outra sala
no último andar do prédio onde estávamos. Assim que entrei
nela, notei logo o luxo do lugar, com uma decoração primorosa
que era muito mais adequada a um palácio do que a um quartel
general. Tudo ali era de extrema qualidade e alto preço.
A antessala precedia um escritório igualmente elegante
para onde fui levada, no qual havia uma mesa de trabalho
ampla e uma poltrona de espaldar alto digna de um rei.
Um homem estava de costas para nós dois,
observando a paisagem pelo janelão que tomava quase a
parede inteira. Usava um caro e elegante thobe cinzento. O
ghutrah19 branco, preso com o agal20 preto, escondiam
qualquer indício do seu rosto que pudesse me ajudar a
identificá-lo. Ainda assim, pelo porte orgulhoso dos ombros e
da cabeça, notei logo se tratar de alguém importante.
Restava saber que poder aquele homem teria para
melhorar ou piorar o meu destino.
— A princesa Malika Al Kabeer, alteza — Hisham disse
com respeito na voz, o que me surpreendeu, não apenas por
ele desprezar completamente a minha condição de princesa,
mas, principalmente, por estar tratando o homem como sendo
alguém da realeza.
Curiosa em descobrir quem era, olhei-o com mais
atenção, franzindo a testa ao não conseguir reconhecê-lo
naquela posição.
— Deixe-nos a sós e aguarde lá fora — ele ordenou ao
guarda, a voz fazendo soar um alarme dentro de mim.
— Sim, alteza.
Assim que a porta da sala se fechou, o homem se virou
lentamente e foi quando pude identificá-lo. O meu coração deu
um nó de angústia no instante seguinte.
Mubarak! Mas o que ele faz aqui?
Os olhos escuros como o carvão se fixaram em mim,
que eu sabia ser da mesma cor dos cabelos que estão
cobertos pelo ghutrah.
— Ora, ora, ora, se não estou diante da filha mais
orgulhosa e rebelde do meu caro tio Abdullah.
A ironia era uma característica intrínseca do meu primo
e ignorei a provocação.
— Estou surpresa de encontrá-lo aqui, Mubarak.
— E por que estaria? Afinal, sou o Todo-Poderoso de
Sadiz. Sei absolutamente de tudo o que acontece em nosso
amado país. Inclusive, fiquei muito triste quando soube que
você estava participando deste grupo de ativistas políticos que
estão passando informações confidenciais do governo para
fora do país. Como pôde fazer isso, Malika?
— Não fizemos nada disso. Lutamos apenas para que
as mulheres tenham mais direitos, e nada mais.
— Não é isso o que consta no relatório que recebi de
Kaleb Al Sabbah horas atrás. Assim que o li e vi a gravidade do
que fez, vim imediatamente para cá conversar com você.
Não acreditei em uma única palavra do que ele disse.
Mubarak era perverso e astuto demais para ter sido pego
desprevenido com a notícia das minhas atividades na ONG ou
da minha prisão. Se eu estava ali agora, era por obra dele.
— Veio para me libertar, então? — Entrei no jogo de
fingir não saber de nada.
— O que você andou fazendo contra Sadiz foi muito
sério. Por menos do que isso, infelizmente muita gente já
morreu. — Ele usou um tom de voz solene, como se as vidas
que mandou tirar importassem alguma coisa para um homem
impiedoso como ele. — Mas eu tenho uma proposta que
poderá ajudar você, Malika.
Escondi a desconfiança, sabendo que nada do que
viesse do meu primo seria realmente para me ajudar. Contudo,
eu não estava em condições de mandar Mubarak e a proposta
dele para o inferno sem antes saber do que se tratava.
— Qual é a proposta?
— Ser a minha segunda esposa.
O quê?!
— Me casar com você? — Aquilo era algo tão absurdo
na minha cabeça que comecei a rir. — Mas de onde você tirou
essa ideia de repente, Mubarak? Se quer me ajudar a não ir
para a prisão, é só me libertar.
O olhar dele ficou tão sério e intenso que um arrepio de
medo percorreu o meu corpo.
— Eu sempre quis você, Malika. — Até pisquei ao ouvi-
lo, perplexa. — Mas o seu pai orgulhoso se negou a permitir o
nosso casamento, alegando que você já estava comprometida
com Dabir desde pequena. Você teria sido a minha primeira
esposa se ele tivesse permitido.
Olhei-o, tão chocada que achei estar delirando. Na
verdade, tudo naquele dia fatídico era tão absurdo que parecia
irreal. Um pesadelo.
— O meu pai nunca me falou nada disso. — Meneei a
cabeça, aturdida.
— Claro que ele não falou. Abdullah sempre foi um
opositor ferrenho do meu pai, uma pedra no meu sapato, assim
como todos os outros membros da família que o apoiam. —
Havia tanto ódio na voz dele que quase não o reconheci. — Só
agora estou conseguindo colocar todos na prisão.
Mubarak falou como se toda aquela perseguição que
parte da família real estava sofrendo fosse obra dele e não do
meu tio Suleiman.
— Você?!
— Sim, Malika, eu mesmo. Por mim, apodreceriam
todos na prisão. Afinal de contas, quem é o príncipe herdeiro
de Sadiz? Sou eu! Eu sou o sucessor, o futuro rei e governante
deste país — falou com um brilho prepotente no olhar. — Mas o
meu pai ainda não está totalmente convencido que o melhor é
prender todo mundo de uma vez.
Não consegui sentir nenhum tipo de contentamento
com aquele suposto lado menos ruim do meu tio. Ele era tão
cruel quanto o filho.
— Eu nunca me casaria com você, Mubarak. Amo o
Dabir. Estamos noivos e é com ele que vou me casar. Você se
esqueceu disso?
Mubarak gargalhou ao me ouvir.
— Acha mesmo que o pomposo do Dabir vai se casar
com uma prima que caiu em desgraça e que está presa sob a
acusação de conspirar contra o Estado? — Ele riu ainda mais,
confiante. — Nem precisarei ameaçá-lo com a prisão. Dabir é
um covarde! Ele sairia correndo só de imaginar onde a noiva
passaria os próximos anos. Claro que a prisão só acontecerá
se você não aceitar a minha proposta.
Que Allah me ajude!
— Eu não acredito que você vai ignorar a nossa fé e
desrespeitar a vontade de Allah. Estou noiva de um homem
que é seu primo também. Somos uma única família e
respeitamos os compromissos assumidos. Dabir me ama e não
vai desistir do noivado!
— Ah, não vai? — Ele se virou e foi até a mesa,
pegando uma folha de papel e começando a ler.— “Estou
decepcionado com os atos praticados por Malika contra o
nosso governo. Sempre soube que ela queria ajudar as
mulheres de Sadiz, mas achei que fosse trabalhando na
assistência social e não agindo contra nós, os Al Kabeer.
Falarei com o meu tio Abdullah para desfazer o compromisso
assumido com ela. É inconcebível para mim um casamento
nestas condições. Sou leal à Sua Majestade o Rei Suleiman.”
Gelei na hora, sem acreditar que Dabir tivesse mesmo
escrito aquelas palavras.
— Ele jamais diria isso!
Mubarak me ofereceu o papel.
— Leia você mesma.
Peguei-o com um puxão, lendo ansiosamente o que
havia nele. Reconheci a letra de Dabir e as palavras escritas
eram as mesmas que Mubarak tinha lido, mas, ainda assim,
não quis acreditar. Aquela carta devia ser uma montagem.
Surpresa, notei que a data dela era de três dias atrás.
Três dias atrás?
Eu ainda estava livre quando Dabir supostamente
escreveu aquela carta para Mubarak! Como aquilo era
possível?
— Você deve estar se perguntando como foi que ele
ficou sabendo da sua prisão antes mesmo que ela
acontecesse, mas a resposta é simples. Planejei tudo nos
mínimos detalhes. Pedi que ele ainda não falasse nada sobre o
fim do noivado com o seu pai. Disse-lhe que já seria um duro
golpe para o nosso tio saber o que a filha fez contra o governo.
Convenci Dabir que comunicar o término do noivado depois
faria com que Abdullah entendesse melhor a decisão dele.
Com lágrimas nos olhos, vi todos os meus sonhos de
amor se desmancharem à minha frente. Os planos de ter filhos
e construir uma família com Dabir já não existiam mais.
— E como justificaria para Dabir um casamento comigo
logo depois?
Ele se aproximou mais de mim.
— E desde quando eu preciso justificar alguma coisa
para Dabir? Ele que se mantenha calado se não quiser
apodrecer na prisão também. — Dizendo aquilo, Mubarak me
agarrou com força pela cintura, embrulhando o meu estômago
de nojo ao tentar me beijar. — Esperei muito tempo por uma
oportunidade de ter você para mim.
— Largue-me, Mubarak! Como ousa me tocar desse
jeito?
Virei o rosto para o lado para evitar o beijo, a repulsa
me dando forças para o empurrar, mas em questão de
segundos percebi que era impossível lutar contra a força física
dele.
— Ouso porque posso tudo, Malika! Absolutamente
tudo! — ele rosnou no meu ouvido, a mão pesada apertando o
meu seio. — Ainda que não haja casamento, vou possuir você
de qualquer jeito!
Mesmo lutando ferozmente, fui agarrada pelos cabelos
e obrigada a suportar a boca dele no meu rosto, tentando beijar
a minha boca. Trinquei os lábios com força diante daquela
brutalidade, fazendo de tudo para o impedir. Vi estrelas quando
Mubarak torceu os meus cabelos para me fazer abrir a boca,
mas a mantive firmemente fechada.
Aquilo de nada adiantou para evitar que continuasse
abusando do meu corpo. Fui arrastada para o sofá que havia
no meio da sala e deitada nele sem que nenhum dos meus
esforços tivesse resultado.
— Pare, Mubarak! Você está cometendo um grande
pecado e vai receber o castigo de Allah!
Horrorizada, senti minha abaya21 sendo erguida até a
cintura, expondo as minhas pernas, que foram separadas com
violência. Ele se colocou no meio delas e me olhou com
lascívia.
— Você é o meu pecado, Malika. Vai ser um grande
haraam22 o que vou cometer agora!
Ele me soltou e ergueu o thobe para se despir. Vi
naquele gesto uma oportunidade e não a perdi. Consegui puxar
uma das pernas que estava debaixo do corpo dele e o golpeei
no meio do estômago, empurrando-o. Pego de surpresa,
Mubarak caiu para trás, mas se recuperou rápido, agarrando o
meu tornozelo. Lutei com a força nascida do desespero,
libertando a outra perna e continuando a golpeá-lo em qualquer
lugar que encontrasse. No meio da luta, ele soltou um gemido
de dor e só então me dei conta de que o atingi na virilha. Mas
aquilo não significou a minha liberdade nem a desistência dele.
No instante seguinte recebi uma bofetada no rosto que
escureceu a minha vista. Antes que eu me recuperasse, recebi
outro tapa e mais outro.
Perdi a consciência por segundos que pareceram durar
tempo demais. Mesmo caindo na escuridão, ainda consegui
pensar que era melhor ser estuprada inconsciente do que
vivenciar aquele momento degradante com lucidez.
Infelizmente para mim, recuperei o fôlego rápido e logo voltei à
consciência.
— Ía sharmouta!23 — ele me xingou alto com uma voz
de grande dor.
Pelo menos isso, Allah!
Em meio ao torpor e ao medo de novas agressões, o
som de um celular tocando invadiu a sala.
— Khara!24
Apesar do xingamento raivoso, Mubarak saiu de cima
de mim e pegou o celular no bolso do thobe. Assim que
atendeu e começou a falar, notei o respeito com que se dirigiu
à pessoa do outro lado da linha e deduzi no mesmo instante
que só podia ser o meu tio Suleiman.
Sentindo-me nauseada, encontrei forças para baixar
minha abaya e me sentar no sofá, respirando fundo para
controlar a tontura. O meu rosto ardia das bofetadas que ele
me deu e o sabor de sangue aumentava o enjoo. Desconfiei de
ter deslocado a mandíbula quando tentei abrir a boca para falar
e não consegui. Coloquei a mão no queixo e o movimentei com
cuidado. Só depois de um pequeno estalo do osso foi que senti
que estava encaixado de novo.
— Já lhe contaram? — Mubarak perguntou à pessoa
com quem falava, uma mistura de receio e indignação no tom
de voz. — Sei que são de sua inteira confiança e que lhe
devem respeito, mas eu sou o príncipe herdeiro!
Ele contraiu o rosto com irritação ao prestar atenção ao
que ouvia, mas o olhar estava preso em mim, enfurecido.
— Sei que a decisão é sua, mas quis lhe poupar esse
trabalho. Resolvi eu mesmo conversar com ela.
Era o meu tio sem dúvida alguma e uma última
esperança encheu o meu peito. Arrisquei tudo.
— Tio, ele tentou me estuprar! — gritei dentro da sala
para ser ouvida por ele.
— Cale-se! — Mubarak exigiu com raiva.
Os minutos seguintes foram de total silêncio de
Mubarak enquanto continuava a ouvir o pai. O olhar duro
parecia querer me matar ali mesmo.
— Claro que não fiz isso! Ela está mentindo para não
ser punida por agir contra nós.
— É verdade, tio! — gritei novamente, encarando
Mubarak com coragem. — Quer me forçar a casar com ele.
Com uma rapidez impressionante para a distância que
nos separava, Mubarak se aproximou com o punho fechado.
Curvei-me e protegi a cabeça com os braços, onde recebi um
soco que me fez gemer alto.
— Ele está me batendo! Vai me matar!
Continuei gritando. Afinal, se era para morrer, que
fosse lutando.
A reprimenda do meu tio deve ter sido grande, já que
Mubarak se afastou de mim e foi para o outro lado da sala.
— Não vou fazer isso, mas ela precisava ser castigada.
Ambos conversaram por mais alguns minutos, tempo
em que rezei fervorosamente à Allah para que o meu tio fosse
mais piedoso comigo do que o meu primo estava sendo.
Ajude-me, poderoso Allah! Que hoje não seja o meu
último dia de vida e que os próximos não sejam piores do que
este.
Repeti aquelas palavras vezes seguidas,
acompanhando de longe Mubarak decidir o meu destino com o
pai. Quando ele desligou o celular, o meu coração se apertou
de angústia.
E agora, o que vai acontecer comigo?
Levantei-me, controlando o tremor das pernas. De pé
eu me sentia mais pronta para lutar do que sentada naquele
sofá que só facilitaria um estupro.
Mubarak parecia ter dominado seus instintos durante a
conversa com o meu tio Suleiman, a luxúria sendo substituída
pela frieza.
— Você agora provou que é capaz de tudo, Malika.
Provou que é mesmo uma ameaça para a nossa sociedade
organizada e capaz de desestabilizar o governo quando resolve
falar o que quer. Tem de ser detida.
Apesar do que disse em tom ameaçador, vi que o brilho
de interesse ainda permanecia no olhar dele. Tanto, que um
meio sorriso cruel curvou seus lábios.
— A prisão ou o casamento.
Afastei-me para longe do sofá antes de responder.
— Nunca me casarei com você.
Ele ergueu o queixo com orgulho diante da rejeição, os
olhos brilhando perigosamente.
— Pois saiba que, se não for eu, será Farid Al Badawi
de Omarih25. Caso não o conheça, ele tem sessenta e nove
anos, adora deflorar virgens com requintes de crueldade e você
será a sua terceira esposa. O meu pai já tem o pedido de
casamento dele em mãos. Só falta a confirmação, mas eu
consigo fazê-lo mudar de ideia se disser que você aceitou ser
minha esposa.
Eu não via diferença alguma entre um e outro, exceto a
idade. Mubarak era dono da mesma fama cruel com as
mulheres que Farid Al Badawi tinha.
— Eu não vou me casar com nenhum dos dois! —
Apesar de estar em lágrimas com aquela tragédia que se
abatia sobre mim, a minha voz soou firme e cheia de raiva. —
Nem com você, nem com ele!
Ficamos nos encarando em silêncio por longos
instantes, a tensão alcançando níveis alarmantes dentro do
escritório ricamente decorado. A expressão enfurecida no olhar
de Mubarak era tão grande que pensei se ele ia me esganar ali
mesmo no meio da sala ou me tomar à força, mesmo depois da
conversa com o pai.
— A outra opção é apodrecer em Asuid — sentenciou
com voz ameaçadora.
Allah tenha piedade de mim!
— Prefiro morrer lá com dignidade, do que aceitar esta
proposta. Allah salvará a minha alma.
— Morrer com dignidade? — Ele gargalhou com
maldade, os olhos escuros brilhando cruelmente. — Dignidade
é tudo o que você não vai ter a partir de agora, Malika.
Engoli em seco.
— Mas terei a misericórdia de Allah quando morrer. Já
você, não terá a piedade dele quando chegar a sua hora.
Pela primeira vez vi o medo no olhar sempre maldoso,
mas foi rápido. A essência maligna, o poder e a arrogância da
posição de príncipe herdeiro subiram novamente à cabeça
dele, fazendo-o se esquecer que o poder verdadeiro era o de
Allah.
— Se não fossem as ordens do meu pai para manter a
sua virgindade, eu ia calar a sua boca agora com isso aqui. —
Ele segurou o membro por cima da roupa em um gesto
obsceno, deixando bem claro o que faria comigo. — Mas
Badawi quer receber uma noiva totalmente virgem, que nunca
tenha visto como é um homem de verdade. Com quase setenta
anos, só uma virgem mesmo para fazer subir o que já caiu há
muito tempo. O meu pai está empenhado nesta aliança com
Badawi, por isso vou me contentar em castigar você de outra
forma. Vamos ver até quando vai durar a sua rebeldia, Malika.
Você vai se arrepender amargamente de ter me rejeitado.
Mubarak foi até a mesa e pegou o telefone.
— Entre! — ordenou com a voz irada assim que o
atenderam.
Em questão de segundos Hisham Al Amari entrou,
fazendo uma continência e aguardando as ordens.
— Leve a prisioneira para Asuid. Ninguém toca nela,
ninguém fala com ela. Isolamento total até que eu dê novas
ordens!
Capítulo 5
Mubarak
— Ía majnun!26 — o meu pai gritou dentro da sala
assim que entrei. — O que deu na sua cabeça para tentar
estuprar sua prima?
Rangi os dentes, furioso, mas tentando me controlar.
— Eu não ia fazer isso!
Ele riu com escárnio.
— Ah, não? E o que ela gritou para mim ao telefone foi
o quê?
— Uma tentativa de se livrar da prisão.
— Chega de mentiras, Mubarak! — ele gritou,
aproximando-se de mim em dois passos e me segurando com
força pela lapela do thobe. — Não coloque os meus acordos
políticos em risco por causa das suas perversões!
Controlei-me para não me livrar dele com um violento
safanão.
Até parece que ele também não tem perversões!
— Eu só queria conversar com Malika para propor o
casamento no lugar da prisão.
O meu pai bufou com irritação, soltando-me com o
safanão que eu queria dar nele.
— Quando é que você vai desistir dessa ideia maluca
de se casar com ela?
Nunca!
Afastei-me e fui me sentar tranquilamente em um dos
sofás de brocado.
— Você desistiria se estivesse no meu lugar?
— Pode ter certeza que sim! Mulher para me satisfazer
é o que não falta, mas um acordo político vantajoso é algo
difícil de conseguir. Um bom governante deve pensar com a
cabeça de cima e não com a de baixo.
Quando chegar a minha vez de governar, vou pensar
com a cabeça que eu quiser!
— Concordo que um acordo político é mais importante,
desde que o acordo em questão seja realmente vantajoso. Não
vejo isso nas negociações com Al Badawi. Aquele velho está
para morrer e devíamos nos preocupar com o sucessor dele,
que pode anular todos os contratos que ele fizer agora.
Mal terminei de falar e já vi a merda que fiz. Citar
velhice, morte e sucessão agora não era algo inteligente de se
fazer e comprovei aquilo quando o meu pai me lançou um olhar
desconfiado, o que me fez pensar se tinha estragado tudo. Ele
não podia desconfiar dos meus planos ou tão cedo eu
conseguiria assumir o governo de Sadiz.
— Al Badawi não tem a sua sabedoria e visão, meu
pai. — Tentei contornar a situação. — Omarih pode até ser um
país próspero, mas não tem a dimensão e a importância de
Tamrah. É com os Al Harbi que temos de nos aproximar e o
casamento de Kismet com Saqr vai servir para isso.
— A aproximação com Tamrah tem sido um verdadeiro
desastre. Abdullah se negou a casar Kismet com Majdan e
provavelmente vai se negar também ao casamento dela com
Saqr. A prisão de Malika vai me trazer muitas vantagens. Vou
ter Abdullah nas minhas mãos, vou conseguir que Kismet se
case com o príncipe herdeiro de Tamrah e ainda firmar um
acordo vantajoso de casamento entre Malika e o Sheik Al
Badawi. Entendeu tudo agora, ía hemar?27 Malika é o meu
coringa!
Aguentei firme a ofensa, confiando que o meu dia de
assumir tudo estava perto. Infelizmente, o meu amigo Majdan
havia perdido o título de príncipe herdeiro de Tamrah para o
irmão, o que me fez perder também o crédito diante do meu
pai. Era através de Majdan que tínhamos planejado controlar o
poderoso país vizinho.
O meu pai parece que adivinhou os meus
pensamentos, pois começou a falar justamente sobre Tamrah.
— É difícil lutar contra três homens fortes ao mesmo
tempo. Rashid, Saqr e Yusuf são três homens com a mesma
linha de conduta, que pensam de maneira igual. A pior coisa
que podia ter acontecido foi Majdan ser colocado de lado.
— Ele ainda pode ter alguma influência sobre os
outros.
— Mesmo que tenha, Majdan já não é o mesmo com
você desde que perdeu o título.
Rangi os dentes de raiva.
— Mas vai voltar a ser!
Ele fez um gesto de pouco caso com a mão que me
enfureceu ainda mais.
— Al Badawi será um grande aliado caso nossos
planos com Tamrah realmente não funcionem, que é o que já
está acontecendo.
— Mande Badawi para a merda! Não precisamos dele.
Recebi um olhar sério do meu pai que me fez refrear a
raiva.
— Então me convença que será mais vantajoso para
mim permitir que Malika se case com você e não com ele. Se
pensa que a sua prima vai achar que você será um melhor
marido do que Al Badawi, é porque se esquece que ela sempre
foi apaixonada por Dabir.
Dabir de novo! Se hoje ouvir o nome daquele kalb28
outra vez, sou capaz de mandar que o prendam também!
— A maior vantagem do meu casamento com Malika é
que vamos calar os opositores da família que estão tentando
tomar o poder há anos, sendo o mais importante deles o tio
Abdullah, que, coincidentemente, é o amado pai de Malika. —
Tentei convencer o velho. — Por outro lado, o povo de Sadiz
vai ver que a minha segunda esposa é uma ex-ativista política
que criticava o rei a mando do pai, pois era ele quem queria
desestabilizar o governo. Agora, livre do domínio dele e casada
com o príncipe herdeiro, por quem era realmente apaixonada, a
jovem princesa pode ser ela mesma e defender o governante
do seu país, ou seja, o senhor meu pai.
Ele ficou calado por um longo tempo, pensativo. Deixei-
o assimilar bem o que eu havia dito, esperando tê-lo
convencido a me permitir agir no caso de Malika.
— É um bom plano, mas não é melhor do que o meu.
Posso tirar Abdullah do meu caminho sem precisar renunciar a
um acordo com Al Badawi. Já prometi Malika a ele e não vou
quebrar a minha palavra.
— Você mesmo acabou de dizer que ela sempre foi
apaixonada por Dabir. Malika tem uma personalidade forte e
rebelde. Ela vai acabar com Al Badawi antes que ele encoste a
mão nela. Quando isso acontecer, você terá um problema
enorme para resolver, meu pai. O homem pode ficar tão furioso
por ter recebido uma noiva incontrolável que chegue ao ponto
de a devolver. Feito isso, adeus contratos, acordos e alianças.
— Badawi vai saber lidar com ela.
Eu tinha certeza de que sim, mas queria ser eu a
dominar a rebeldia de Malika e não outro homem. Eu a
desejava para mim desde que ela deixou de ser criança e se
transformou em uma mulher com um corpo exuberante, mas tio
Abdullah só não me detestava mais do que ao meu pai e
desconsiderou todas as propostas que fiz. Fui obrigado a ver
Dabir sendo o escolhido no meu lugar e Malika se derretendo
de amores por ele.
Por que é que eu não mandei matar o Dabir antes? Já
deveria ter feito isso!
— Mantenha-se longe de Malika. Esse assunto sou eu
quem trato — o meu pai ordenou com aquele tom de voz
autoritário que eu não suportava mais e que me trouxe de volta
à realidade.
Olhei-o, contendo-me a custo. Ele havia me
envergonhado ao colocar homens me vigiando.
— Por que a vigilância? Não confia mais em mim, pai?
— perguntei em um tom forçosamente natural.
Ele me olhou como um rei olharia para um súdito
inconveniente e não como um pai olharia para o seu filho e
sucessor.
— Você já me deu trabalho suficiente na vida para eu
ter certeza de que iria atrás de Malika assim que soubesse que
ela foi detida — ele falou com autoridade e frieza. — Ela só tem
valor se permanecer virgem até o casamento e você sabe
disso, mas ainda assim foi colocar em risco uma negociação
importante para o país. Você agiu contra o seu governante,
passando por cima de mim para satisfazer suas paixões, e
ainda vem me perguntar o porquê da vigilância? Muitos já
morreram por menos do que isso!
Não era a primeira vez que o meu pai ficava furioso
comigo, mas notei que aquela era, sem dúvida alguma, a
primeira em que a raiva dele era fria, insensível, como se não
estivesse falando com o filho primogênito, mas com uma
pessoa qualquer. Lembrei-me do que aconteceu com Majdan e
resolvi ser mais cauteloso. Talvez a troca de príncipes
herdeiros que aconteceu em Tamrah tivesse influenciado o meu
pai de alguma forma.
Não vou perder o título para nenhum dos meus irmãos,
nem que eu tenha de matar todos!
— Peço desculpas, meu pai. Perdoe-me por essa
insensatez — pedi com o máximo de humildade que consegui
fingir naquele momento. — Deixei-me levar pela paixão e me
culpo por isso. Não vai se repetir!
— Para onde a mandou? Não quero ser obrigado a
humilhar mais ainda o meu filho perguntando isso no quartel-
general.
Fiquei desconfiado das intenções dele, mas não
questionei nada antes de responder.
— Eu a mandei para Asuid, onde todos da família estão
presos. Vai mudar o local?
Ele me olhou de cara feia.
— Não lhe interessa. — Foi duro na resposta. — De
tudo o que você me disse desde que entrou aqui, a única coisa
que vale a pena considerar é fazer com que Malika diga que
agiu a mando do pai para desestabilizar o meu governo, com a
intenção de me substituir por ele. Isso me agrada.
— Por que simplesmente não o prende também?
— Ainda não. No tempo certo farei isso e Malika pode
me ajudar muito.
— Então vai desistir do acordo de casamento com
Badawi?
Ele voltou a me olhar com uma carranca no rosto.
— Não lhe interessa o futuro dela, Mubarak. A partir de
hoje, Malika é um assunto secreto do governo que só diz
respeito a mim.
Kol khara!29
Se o meu pai pensava que ele era o único a ter
informantes, estava muito enganado. Eu tinha a minha própria
rede de agentes secretos que descobriria o paradeiro de
Malika.
A minha satisfação estava na certeza de que toda a
velharia que era leal ao meu pai cairia no dia em que ele caísse
também.
Capítulo 6
Prisão de Asuid
Malika
Hisham Al Amari foi o meu algoz nas duas prisões para
onde fui levada. Primeiro em Asuid, depois em Thueban30.
Enquanto eu respirasse e ainda tivesse algum sopro de vida no
corpo, provavelmente nunca me esqueceria dele.
A pior das duas prisões era, sem dúvida alguma,
Thueban. A prisão de Asuid poderia ser considerada um hotel
de luxo se comparada com Thueban. Nesta última, existiam
celas de isolamento, salas de tortura física e salas de abuso
sexual. Eu passei por todas elas durante os dias incontáveis
em que estive lá. Quantos foram? Eu não fazia ideia. Era
impossível ter noção do tempo quando se estava encarcerado
dentro de uma prisão, passando quase que diariamente por
experiências aterrorizantes. Até o fim da minha vida aquele
trauma faria parte de mim.
Que Allah tivesse piedade de todos os que estavam
presos! Hisham e o grupo especial que ele liderava eram tudo,
menos humanos. Era impossível para mim entender como
podiam existir homens com um grau tão grande de animalidade
dentro de si mesmos. O prazer que eles tinham em nos torturar
era algo que ia além da compreensão de qualquer pessoa
normal.
Allah, só Allah para me manter ainda viva lá dentro!
Quanto à minha sanidade mental, muitas vezes duvidei de que
ainda a tivesse.
Seguindo à risca o que foi ordenado por Mubarak,
passei os meus primeiros dias dentro de uma cela de
isolamento em Asuid. Fui levada para lá com uma venda nos
olhos durante todo o trajeto de carro, que demorou muito para
chegar. Duas horas talvez, ou até mais. Como saber o tempo
exato? Se me perguntassem, eu não saberia dizer onde ficava
o presídio.
A cela tinha as paredes brancas e quatro lâmpadas
fortes embutidas no teto, que emitiam uma claridade tão grande
que até doía nos olhos, principalmente para alguém que tinha
passado horas com uma venda neles. Para o tamanho
minúsculo do espaço, a claridade era excessiva. Só vim
entender o motivo minutos depois que a porta foi trancada,
quando uma música alta começou a tocar dentro da cela. Era
uma música eletrônica irritante, raramente ouvida em nosso
país. O susto que levei foi grande e olhei para o teto à procura
das caixas de som, mas fui duramente ofuscada pela luz.
Horas depois, a junção de claridade excessiva com
música alta acabou com o meu psicológico. Eu ainda me deitei
no colchão fino que ficava sobre a cama de concreto para
tentar descansar, mas não consegui. Dormir, então, impossível.
A música não permitia nem um minuto de paz mental e pensei
se enlouqueceria logo no meu primeiro dia de prisão.
O único luxo que existia ali dentro era um tapete para
orações, mas eu não fazia ideia de qual direção estava a
cidade de Meca para poder orar de acordo com a minha fé.
Acabei por me ajoelhar sobre o tapete em qualquer direção
mesmo, orando fervorosamente à Allah para ter misericórdia de
mim.
Em um determinado momento daquele dia traumático,
o silêncio foi total dentro da cela e até levei um susto. Apesar
de a música ter parado, ela ainda parecia estar tocando dentro
da minha cabeça. Os ouvidos zumbiam e os tapei, respirando
fundo para me controlar.
Logo entendi o motivo. Uma bandeja de metal foi
passada para dentro da cela através de uma abertura que
havia na parte inferior da porta. O alimento tinha um aspecto
duvidoso e veio junto com uma folha de papel e caneta.
— Escreva uma carta de confissão de todos os seus
atos terroristas contra o governo de Sua Majestade, afirmando
que fez tudo a mando do seu pai, com a intenção de
desestabilizar o governante de Sadiz e de dar um golpe de
Estado, citando o nome dos seus outros familiares que
participaram da conspiração e dos ativistas políticos com quem
entrou em contato, dentro e fora do país. — Uma voz dura de
homem soou do outro lado da porta e não a reconheci como
sendo a de Hisham.
A cela girou ao meu redor quando ouvi aquilo. Tonta,
inspirei fundo para aguentar a pressão.
— Uma confissão de atos terroristas? Mas eu não fiz
nada disso, nem o meu pai jamais me obrigaria a tal coisa!
— Tem até a próxima refeição para nos entregar a
carta.
Dito aquilo, a abertura foi fechada e a música alta
voltou a tocar, fazendo-me pular de susto. Fechei os olhos e
me obriguei a não enlouquecer. Quando os abri novamente,
olhei para o papel e a caneta ao lado do prato.
Não vou confessar o que não fiz nem acusar o meu pai!
Tomada aquela decisão, tentei comer, mas era difícil
sentir o mínimo de fome com tanta pressão psicológica, além
do desgaste físico e mental. Pensei em afastar o prato para
longe, mas me lembrei a tempo de que precisaria de forças
para suportar o que estava por vir. Forcei-me a engolir tudo,
mesmo com vontade de vomitar depois.
Assim que terminei, arrumei tudo e deixei a bandeja
pronta para ser devolvida, mas sem nenhuma carta de
confissão. Revoltada com o que estavam querendo me forçar a
fazer, peguei a folha e a caneta e escrevi:
“Sou inocente de tudo o que me acusam.”
“Sou inocente de tudo o que me acusam.”
“Sou inocente de tudo o que me acusam.”
Repeti a mesma frase na frente e no verso do papel
inteiro, o que foi extremamente relaxante para mim. Não sobrou
um único espaço em branco. Depois, dobrei o papel e coloquei
ao lado do prato.
Pronto, está feito! Esta é a única carta que vão
conseguir de mim.
Guardei a caneta discretamente embaixo do colchão,
esperando que não sentissem falta dela. Eu pretendia escrever
quando precisasse me distrair, nem que fosse nas paredes.
Depois, olhei desconsoladamente ao meu redor,
controlando-me para não gritar mais alto do que a música.
Inspirei fundo quando uma nota mais estridente quase estourou
os meus ouvidos. Se eu não ficasse surda naquele primeiro
dia, ficaria em algum momento dos dias seguintes.
A única maneira de permanecer lúcida com aquela
barulheira toda era rezando e foi o que fiz praticamente o dia
inteiro.
Sem ter noção alguma do tempo, assustei-me quando
a música foi desligada. Deduzi que havia chegado a hora da
refeição seguinte, o que foi confirmado quando uma nova
bandeja entrou pela abertura da porta.
— Me dê a outra bandeja! — a mesma voz masculina
ordenou.
Peguei-a e entreguei com a minha “carta de confissão”
ao lado do prato. Voltei a me sentar e comecei a comer
lentamente, pensando nas consequências do que fiz. O que
aconteceria comigo?
Dai-me força, poderoso Allah!
A fé foi a minha salvação nos dias seguintes. Sem ela,
eu teria sucumbido totalmente diante das punições que
prepararam para mim. A cela onde eu estava tinha sido
construída para destruir completamente o ser humano que
tivesse a desgraça de ficar preso nela. E a desgraçada da vez
era eu!
Fiquei naquela cela com as luzes acesas e o som
tocando alto, sem parar nem por um minuto, fosse dia ou fosse
noite. Eu adormecia de puro cansaço, mas devia ter uma
câmera escondida lá dentro, pois o som sempre aumentava
quando eu pegava no sono, até se tornar insuportável, só
voltando a baixar quando eu me acordava. A mensagem estava
clara: eu não podia dormir. Estavam me torturando com a
privação do sono.
Por várias vezes adormeci encurvada sobre o tapete de
orações, esperando que achassem que eu estava rezando e
não dormindo, para escapar do aumento do som. A música não
parava em momento algum.
Gritar para quê? O som era mais alto do que os meus
gritos.
Eu só usava o banheiro quando já estava no limite,
esperando que pelo menos naquela parte da cela não
houvesse câmeras, caso as minhas desconfianças tivessem
fundamento.
A mudança de situação chegou dias depois. Começou
com a música parando repentinamente de tocar e as luzes se
apagando por completo. Eu estava rezando de joelhos sobre o
tapete quando o silêncio e a escuridão me pegaram de
surpresa. Arrastei-me em direção à cama sem enxergar nada à
minha frente, tateando o chão até chegar lá. Sentei-me no
canto da parede, esperando a porta se abrir a qualquer
momento e fazerem algo contra mim.
Eu sabia que aquilo era uma punição, só não
conseguia imaginar de que tipo.
O tempo passou e nada aconteceu. Tentei ficar alerta,
mas o cansaço, o silêncio e a escuridão me venceram.
Adormeci sem nem perceber. Não sei por quanto tempo dormi,
mas me acordei sentindo muito calor, com o corpo suado e
respirando com dificuldade. Só então notei que o ar que
circulava dentro da cela era quente, como se tivessem ligado
um aquecedor. O tamanho dela era pequeno e não demorou
muito para o ambiente ficar insuportável. Era pior do que estar
no meio do deserto com o sol a pino.
Com as luzes apagadas em um ambiente pequeno,
fechado e quente como aquele, eu me sentia como se tivesse
sido enterrada viva dentro de um caixão. Sentia-me arder, tinha
sede e a respiração foi se tornando difícil. Faltava oxigênio
dentro da cela. A sensação era terrível e me agarrei novamente
em Allah para resistir.
Não sei durante quanto tempo fiquei naquela situação.
Algumas horas ou um dia inteiro? Impossível saber, mas não
deve ter sido muito, pois as luzes voltaram a se acender para a
entrada da bandeja de comida.
A claridade doeu nos meus olhos, mas pelo menos eu
não estava no escuro. Quanto ao calor, continuou. Eles não
desligaram o aquecedor.
— Tem papel e caneta para a sua confissão — o
homem repetiu antes de ir embora.
Daquela vez nem me dei ao trabalho de escrever nada.
Quase sem forças, olhei ansiosamente para a bandeja com a
comida, pegando a água. Bebi tudo de uma única vez,
sentindo-me sedenta. Ela acabou rápido demais para a minha
sede.
Desesperada, fui com o copo até o cubículo que eles
chamavam de banheiro e abri a torneira da pia, mas a água
saiu fervendo de tão quente que estava. Ainda assim enchi o
copo, decidida a esperar que esfriasse de algum jeito antes de
a tomar.
Na hora de devolver a bandeja, ela voltou com o papel
em branco. Depois, sentei-me sobre a cama, suspirando
pesadamente e pensando o que viria a seguir.
Não houve música alta nem calor excessivo, mas um
frio de doer na alma. O aquecedor foi substituído por um ar-
condicionado na potência máxima, capaz de resfriar um
frigorífico. O tecido da minha abaya não era suficiente para me
aquecer, muito menos o lençol da cama. Usei o colchão fino
como cobertor, embrulhando-me nele para aguentar o frio.
E foi assim que os meus dias continuaram. Ora era a
música altíssima a ponto de estourar os ouvidos, ou o calor
sufocante, ou o frio de congelar os ossos. Não demorou para
eu me sentir doente, com febre e sem forças até para rezar
sobre o tapete. As minhas orações passaram a ser feitas
deitada na cama.
A cada refeição, a folha de papel e a caneta estavam
ao lado do prato, em uma mensagem clara do que eles
queriam que eu fizesse. A bandeja de comida era entregue e
recolhida em silêncio, sem que ninguém precisasse me dizer
nada. Queriam a minha confissão e as privações continuariam
até que eu cedesse.
Não vou confessar o que não fiz nem incriminar o meu
pai.
O que eu não entendia era qual a necessidade do meu
tio e de Mubarak terem aquela confissão. Há anos que o meu
pai não conseguia fazer nada contra os desmandos do
governo, e eu já estava presa. O que fariam com ela em mãos?
Me matariam de vez? Para quê, se eu já estava morrendo?
Sem ter ideia alguma de quanto tempo já estava
naquela prisão, certo dia um papel diferente veio junto com a
bandeja. Ele estava dobrado ao meio e quase não acreditei
quando o li.

“Considerando que a princesa Malika


bint Abdullah bin Zayed Al Kabeer não
colaborou com a comissão de inquérito, o
Tribunal de Segurança Interna declara que a
prisioneira é culpada de conspirar contra o
governo de Sua Majestade e deve cumprir pena
de dez anos de prisão em um estabelecimento
prisional de segurança máxima. Durante o
primeiro ano, receberá cinco chicotadas a cada
mês, até que se chegue ao total de sessenta.
Que se cumpra de imediato.”
Fiquei enjoada, tonta e a ponto de desmaiar ali mesmo.
Ainda consegui me sentar na cama, sem acreditar que fui
julgada daquela maneira arbitrária por um tribunal manipulado
por Mubarak. Eu não duvidava de que aquilo era obra dele e de
ninguém mais.
Em choque, inspirei fundo para aguentar aquela
sentença hedionda.
Dez anos e sessenta chibatadas? Vou morrer aqui,
Allah!
Capítulo 7
Prisão de Thueban

Malika
Não sei quantos dias fiquei presa naquela cela em
Asuid. Acho que não mais do que cinco dias. No máximo, uma
semana. Depois, fui transferida para uma outra prisão e só tive
a certeza daquilo porque entrei vendada em um carro, que
circulou por um longo tempo até chegar ao destino. Na ocasião
eu não sabia, mas estava sendo levada para Thueban, o pior
lugar do mundo. Dizer que era o inferno até parecia pouco.
Quando tiraram a venda dos meus olhos e as algemas
dos meus pulsos, tive um choque imenso. Eu estava dentro de
uma cela antiga, que parecia pertencer a uma masmorra da era
medieval. As paredes e o piso eram de uma pedra escura e
fria, não havia iluminação natural e o ambiente era úmido. Uma
lâmpada fraca e amarelada pendia precariamente do teto,
deixando-me ver uma cama suspeita ao fundo e mais nada. A
cela era bem maior do que a de Asuid, mas o tamanho não
compensava o horror de estar nela. Senti como se tivessem me
enterrado viva em uma tumba e era exatamente onde eu
estava. Uma prisão subterrânea aterrorizante, que dias depois
descobri se chamar Thueban.
No meu segundo dia ali, a luz precária diminuiu ainda
mais de intensidade, deixando tudo na penumbra. Assustada,
olhei ao redor com o coração disparado no peito.
O que viria a seguir? Que nova tortura eles estavam
preparando para mim?
A porta se abriu e pessoas entraram. Não tive tempo
de identificar quem ou quantos eram, pois colocaram logo um
capuz sobre a minha cabeça e me algemaram.
Vão me matar agora!
Eles me forçaram a andar. Sem enxergar nada, fui
sendo levada aos tropeções, caminhando para um destino
desconhecido, onde eu não tinha ilusões de encontrar piedade
alguma deles.
Rezei. Foi só o que pude fazer.
Entrego a minha alma a ti, poderoso Allah! Sê
misericordioso comigo nos meus últimos momentos!
Paramos de andar. Ouvi um ferrolho sendo
destrancado e uma porta aberta, para logo depois começarmos
a descer alguns degraus. O lugar era mais frio do que a minha
cela, com o som de água pingando em algum lugar. Mesmo
sem enxergar nada, a minha intuição dizia que haviam me
trazido para um lugar pior do que o inferno e que algo de muito
ruim ia acontecer ali.
Bismillah!31
O capuz foi retirado da minha cabeça e inspirei fundo
quando os meus olhos puderam ver o que havia ao redor. Era
uma sala cavernosa, com luzes amareladas, correntes nas
paredes, vários equipamentos estranhos distribuídos pelo
espaço e instrumentos suspeitos dispostos sobre mesas de
metal. Algumas manchas escuras no chão pareciam ser de
sangue e senti ânsia de vômito.
A minha respiração ficou errática, ofegante, enquanto o
medo contorcia as minhas entranhas. O esforço que fiz para
não gritar foi enorme, o esgotamento físico e psicológico dos
últimos dias cobrando o seu preço. Um pouco mais de pressão
e eu ia quebrar de vez.
Angustiada, olhei para os meus algozes,
surpreendendo-me ao ver que eram mulheres vestidas com
roupa militar. Achei que fossem homens, mas comigo estavam
apenas duas mulheres corpulentas, com os cabelos presos
escondidos por quepes e uma expressão dura no rosto.
Uma porta se abriu do outro lado da sala chamando a
minha atenção. Um outro grupo entrou trazendo uma
prisioneira encapuzada, igual como fui conduzida até ali, só
que ela estava acompanhada por três homens mascarados.
Eu não sabia, mas aquele dia ia ficar marcado na
minha memória. Ele seria o primeiro de uma série de dias
traumáticos, em que perdi brutalmente a minha inocência
diante da vida e vi o lado mais negro dos seres humanos.
Dar de cara com aqueles homens mascarados já fez o
meu coração disparar no peito, mas quando o capuz da mulher
foi retirado e eu vi quem era, um gemido de angústia escapou
da minha garganta.
Oh, poderoso Allah! É a Hessa!
Ela tremia visivelmente e chorava como uma
criancinha. Senti uma dor imensa ao vê-la naquele estado.
Quando, enfim, Hessa me viu, arregalou os olhos e chorou
mais ainda.
— Malika!
Tentou vir para onde eu estava, mas foi agarrada pelos
cabelos com crueldade por um dos homens e arrastada pela
sala.
— Não! Parem com isso — gritei, revoltada, puxando
as mãos algemadas da mulher que me segurava. — Parem!
Ninguém me ouviu, muito menos deram ouvidos aos
gritos dela. Hessa foi deitada em uma das mesas de metal,
onde teve as mãos e os pés presos por grilhões de ferro.
— Soltem-me! Soltem-me! Malika, me ajude!
Fiz força para me soltar, mas não consegui.
Impassíveis, os três homens rodearam Hessa e fui
obrigada a ver, chocada, ela ter a abaya rasgada com violência
de alto a baixo. Todas as roupas que ela usava foram
arrancadas do corpo, até a deixarem totalmente nua sobre a
mesa.
Com os olhos esbugalhados de terror, fiquei paralisada
diante daquela cena, sem acreditar no que estava vendo. Eu
estava presenciando uma das maiores afrontas à dignidade de
uma mulher, algo considerado um grande pecado pela nossa
fé.
— O que vocês estão fazendo? Não podem fazer isso
com ela! — Consegui encontrar voz para falar, mesmo com os
gritos de Hessa sendo mais altos. — Vistam-na de novo. Parem
com isso!
Olhei para as duas mulheres que me prendiam.
— Vocês são mulheres! Como podem permitir que isso
aconteça? Façam alguma coisa.
Elas continuaram indiferentes ao meu apelo e ao
sofrimento de Hessa, que passou a gritar mais alto ainda,
chamando a minha atenção. Quando a olhei novamente, foi
para quase vomitar com a cena.
Um dos homens tinha puxado Hessa pelos tornozelos
para a beirada da mesa, onde ela agora estava com as pernas
abertas que os outros dois seguravam com violência.
Eu não precisei de mais nada para adivinhar o que ia
acontecer.
— Por Allah, parem! Parem!
— Nãaaao!!! — Hessa gritava, desesperada. — Malika,
me ajude!
O homem que estava em frente a ela abriu o zíper da
calça de militar e desviei o olhar, sem querer vê-lo nu ou
presenciar aquele estupro.
— Você pode parar isso se quiser — uma das mulheres
disse calmamente, surpreendendo-me.
Virei-me às pressas para ela.
— Como? Eu quero que pare agora.
Ela olhou para os homens.
— Parem!
Eles pararam e até arquejei de tanto alívio.
Sentindo as pernas trêmulas, fui conduzida pelas duas
militares para uma mesa, onde me ofereceram uma cadeira
para me sentar. Ingenuamente, achei que aquilo fosse uma
gentileza ao perceberem o meu esgotamento depois de dias
sem dormir o suficiente, mas colocaram o conhecido bloco de
papel na minha frente com a caneta.
— A carta de confissão. Sua Majestade também quer o
nome de todos que estão ameaçando a soberania nacional,
incluindo os seus familiares e o líder da conspiração.
Perplexa, olhei para ela.
— Se já fui condenada pelo tribunal, por que insistem
nesta carta de confissão?
Imperturbável, a mulher cruzou os braços no peito.
— Tem exatamente dois minutos para escrever a
confissão de todos os atos terroristas que cometeu contra o
governo e dar os nomes dos outros integrantes ou não vai
conseguir salvar a sua amiga.
Do outro lado da sala, Hessa soluçou de desespero
quando ouviu a nossa conversa. Ela sabia que não fazíamos
nada daquilo na ONG Mulheres São Livres e que eu também
não conhecia outros ativistas além dos que já estavam presos.
Tanto eu quanto ela não éramos líderes de nada lá dentro,
apenas duas garotas cheias de ideais e que queriam um
mundo melhor para as mulheres árabes.
Ciente daquilo, Hessa percebeu que não escaparia.
Allah, o que faço? Não posso presenciar uma
atrocidade dessas sem fazer nada.
Enquanto a tortura era comigo, aguentei. Mas
aguentaria ver uma amiga sofrer?
O tempo passava rápido demais para a difícil decisão
que eu tinha de tomar. Fechei os olhos e entreguei o meu
destino nas mãos de Allah.
— Posso escrever uma confissão, mas não tenho
nomes para dar.
— A confissão, então. Eles decidirão depois se é o
suficiente.
Foi com a mão tremendo que peguei a caneta e
confessei coisas que nunca fiz, as lágrimas rolando pelo rosto.
Não citei o meu pai, nem as pessoas com as quais entrei em
contato no exterior para pedir que nos ajudassem a libertar
Fhatima. Aquilo eu jamais faria.
Quando terminei, a militar pegou e leu, passando para
a outra mulher, que também leu e fez um sinal para os homens.
Ansiosa, acompanhei o movimento de todos eles, até soltarem
Hessa e jogarem uma abaya preta para ela vestir.
— Posso conversar com ela?
— Dois minutos.
Levantei-me e caminhei para onde minha amiga
estava. Os homens mascarados se afastaram e nos abraçamos
apertado.
— Malika, obrigada! — ela sussurrou no meu ouvido
aos prantos, tremendo mais do que eu. — Sinto muito. Me
perdoe.
— Não precisa pedir perdão — sussurrei de volta. — A
culpa não foi sua.
— Me usaram para forçar você a confessar o que não
fez.
— Desconfio que encontrariam outra forma de
conseguir isso. — Suspirei cansadamente. — Tem notícias de
Hussam e de Badra?
Ela se afastou com o olhar triste e baixou ainda mais a
voz.
— Ele morreu naquele mesmo dia em que nos
prenderam. Não resistiu ao golpe na cabeça. Acho que teve
uma hemorragia — contou, deixando-me em choque. — Badra
morreu dias depois. Me disseram que teve uma parada
cardiorrespiratória na cela, mas desconfio que isso aconteceu
durante alguma sessão de tortura. Estão atrás dos nomes de
outros ativistas.
Aquilo era um pesadelo. Só podia ser! E eu estava
horrorizada que fosse o meu tio Suleiman fazendo aquilo.
“Só agora estou conseguindo colocar todos na prisão.”
Era o Mubarak e não o meu tio! Ele era o responsável
por todas aquelas prisões e mortes, e eu nem queria imaginar o
que seria capaz de fazer com aquela minha confissão nas
mãos.
— E você, foi torturada?
— Não. É a primeira vez que me trazem aqui e estou
tão feliz em ver você!
Ela voltou a me abraçar e chorei ainda mais, sem saber
até que ponto realmente havia conseguido salvar a minha
amiga de torturas e estupros ali dentro. A verdade era que eu
não sabia se conseguiria salvar nem a mim mesma, quanto
mais a ela.
O nosso tempo de conversa acabou e fomos
separadas. Aos prantos, ela teve a cabeça coberta com o
capuz e foi levada por eles, enquanto eu rezava para que fosse
poupada de abusos. As duas militares se aproximaram de mim
e senti o capuz ser colocado na minha cabeça, tirando da
minha visão o horror que era aquela sala.
Capítulo 8
Tamrah
Yusuf
Assumir o Serviço Secreto Nacional de Inteligência32
do meu país foi uma das melhores coisas que poderiam ter
acontecido comigo ao voltar para Tamrah. E não era apenas
por estar fazendo algo que eu amava, que estava no meu
sangue e que me motivava, mas também pelo fato de o órgão
estar subordinado ao Ministério da Defesa, o que significava
que eu trabalharia diretamente com o meu irmão Saqr.
Se tivessem me colocado para trabalhar com Majdan, o
meu outro irmão mais velho, eu seria capaz de rejeitar qualquer
cargo que fosse. Aquilo não queria dizer que eu não o amasse,
mas Majdan era tão arrogante na sua posição de príncipe
herdeiro quanto era incompetente como gestor, líder ou
governante. Eu sabia que o vício das drogas era o maior
responsável pelas atitudes do meu irmão, contudo, ainda assim
comemorei muito quando ele perdeu o título de príncipe
herdeiro para Saqr. A minha satisfação não foi apenas por ser o
mais justo, mas também por achar que Majdan precisava
descer do pedestal de sucessor intocável e enxergar a vida de
uma outra maneira. Durante a minha infância e adolescência,
cansei de vê-lo envolvido em escândalos que só causavam
desgosto aos meus pais, principalmente à minha mãe. E se
havia algo que me deixava realmente furioso, era que
mexessem com ela. A minha mãe era sagrada para mim.
O telefone tocando sobre a mesa do meu escritório em
Taj Almamlaka33 desviou a minha atenção para o trabalho. Era
Adnan, o meu assistente.
— O relatório sobre a família Al Kabeer de Sadiz já
está disponível no sistema, alteza.
— Ótimo! Vou ver agora. Saqr está ansioso por essas
informações.
Eu suspeitava que o meu irmão estava mais
apaixonado pela esposa do que deixava transparecer, apesar
de aquele ter sido um casamento político. Ele tinha me pedido
para fazer aquela investigação em caráter de urgência,
determinado a descobrir tudo sobre o que havia acontecido
com Kismet antes do casamento.
A minha cunhada vinha de uma família dividida em dois
grupos rivais que lutavam pelo poder, um conspirando contra o
outro. Na minha opinião, Sadiz era um barril de pólvora, cuja
explosão se aproximava rapidamente. A melhor coisa que
poderia acontecer com Kismet foi se casar com Saqr e vir para
a segurança de Tamrah. Infelizmente, o país vizinho estava nas
mãos de um governante perigoso, que em nada inspirava
confiança como aliado. Em reunião com o meu pai e com Saqr,
decidimos reforçar a vigilância em nossas fronteiras com Sadiz,
cientes de que, se eclodisse uma guerra civil lá, teríamos que
lidar com uma onda de refugiados tentando vir para Tamrah.
Poderíamos abrigar alguns, mas não um país inteiro.
Só espero que as coisas não cheguem a esse ponto.
Com o computador à minha frente, comecei a analisar
o relatório, anotando as informações que necessitavam de um
aprofundamento maior.
Eu já conhecia praticamente todos os homens que
faziam parte da família Al Kabeer, inclusive Mubarak, com
quem antipatizei desde a primeira vez em que o vi ao lado de
Majdan. Ambos eram amigos e se tornaram quase inseparáveis
durante o tempo em que estudaram juntos em Londres.
Mubarak era o filho mais velho e príncipe herdeiro do Rei
Suleiman de Sadiz. Igual ao pai, ele não me passava nem um
pingo de confiança, contudo, no caso dele, havia uma
dissimulação gritante, que, na minha opinião, escondia algo
duas vezes mais perigoso.
Saqr tinha um interesse especial nos irmãos de Kismet
e investiguei mais a fundo cada um deles, até me deparar com
a lista das irmãs. De início, achei que nenhuma delas teria
importância bastante para ser a responsável por algo de ruim
ter acontecido com Kismet, mas mudei de opinião quando li
sobre o desaparecimento de Malika Al Kabeer, a mais próxima
das irmãs da minha cunhada.
Nosso informante para aquele caso era um dos
empregados que trabalhavam para a família Al Kabeer dentro
do palácio do pai de Kismet. O clima de insatisfação, a divisão
política e a crise econômica do país ajudavam bastante a
venda de informações fosse para quem fosse. O homem deu
detalhes sobre Malika que me interessaram de uma maneira
imediata e estranhamente intensa.

“As princesas Kismet e Malika são


meias-irmãs e sempre foram muito unidas desde
criança. Malika tem apenas quatro anos a mais
do que Kismet, mas cuidou dela como se fosse
uma filha depois que a menina ficou órfã. Das
mulheres da família, Malika sempre foi a mais
atenciosa com os empregados, preocupada com
o bem-estar de todos, principalmente das
mulheres. Era muito ligada à princesa Fhatima
Al Kabeer, conhecida ativista dos direitos
humanos de Sadiz, que foi detida no ano
passado e está desaparecida até hoje.
Malika seguiu os passos de Fhatima,
não apenas na luta pelos direitos das mulheres,
mas também no trágico destino. Há rumores
dentro do palácio de que foi presa por ordens de
Sua Majestade o Rei Suleiman, acusada de
conspirar contra o governo. Desde então,
ninguém tem notícias dela nem sabe onde está.
Seu paradeiro é um segredo de Estado.
Estava noiva de Dabir Al Kabeer, um
primo que estuda em Paris. Se realmente a
princesa estiver na prisão, provavelmente o
noivado será desfeito, pois o lado da família de
Dabir apoia o Rei Suleiman. Sempre se
questionou entre os empregados como duas
pessoas com ideais tão diferentes podiam estar
comprometidos.
Os familiares não tocam no assunto
na frente dos empregados, mas os boatos
circulam entre eles, que estão tristes com o
destino da jovem princesa, muito querida por
todos os serviçais do palácio.”

Parei naquela parte da leitura, lembrando-me da minha


mãe e do quanto ela lutou para modernizar o nosso país e
garantir que as mulheres de Tamrah tivessem seus direitos
assegurados. Novas leis foram criadas, outras foram abolidas e
muitas mais estavam sendo implementadas aos poucos. Saber
que uma princesa tão jovem estava encarcerada por ter os
mesmos ideais da minha mãe me revoltou de uma maneira
absurda. Fui dominado por uma necessidade premente de
descobrir onde ela estava e de tirá-la das garras de Suleiman.
Será que ainda está viva?
Eu sabia muito bem o que acontecia dentro das prisões
ao redor do mundo, mas tinha certeza de que as prisões de
Sadiz faziam parte das piores. A única coisa que poderia
proteger Malika era o fato de ser uma princesa e fazer parte da
família real. Ela era uma sobrinha direta do próprio rei e isso
ajudaria a que não fosse tratada como uma prisioneira comum.
Ainda assim, uma mulher encarcerada em uma prisão era
sempre uma situação preocupante.
Eu não tinha dúvida alguma de que ela devia estar em
uma prisão de segurança máxima, provavelmente a mesma
para onde estavam sendo levados todos os outros presos
políticos da família real.
Determinado, peguei o telefone e liguei para o chefe do
setor de investigação internacional.
— Quero uma lista de todas as prisões de Sadiz, desde
as comuns até as de segurança máxima, sejam oficiais ou
secretas. Quero todas.
— Farei isso, mas é do nosso conhecimento que Sadiz
tem construído novas prisões secretas, alteza. Esse fluxo
aumentou ainda mais com o clima de guerra civil que domina o
país. A maioria das prisões está com a lotação máxima de
presos e a nossa lista pode não estar cem por cento atualizada.
Khara!34
— Me envie o que temos e providencie uma
investigação para descobrir que outras prisões surgiram de lá
para cá.
— Farei isso, alteza. Em alguns minutos vai aparecer
no sistema.
Desliguei, recostando-me contra a poltrona e olhando
pensativamente para o relatório sobre a família de Kismet. Eu
esperava que Saqr me autorizasse a fazer uma investigação
sobre o paradeiro de Malika, caso contrário eu seria capaz de
abrir uma investigação por conta própria. Eu estava
hierarquicamente subordinado a ele, que era o Ministro da
Defesa, mas nem aquilo me impediria de descobrir o que havia
acontecido com ela.
Decidido, terminei a leitura do relatório e analisei as
fotos da família Al Kabeer que foram enviadas junto. Passei-as
rápido, até parar em uma delas, que mostrava uma garota com
um sorriso contagiante de felicidade. Ela estava abraçada à
uma outra garota mais nova, cujo sorriso era tímido, quase
inexistente. Reconheci logo a beleza extraordinária da esposa
de Saqr na jovem tímida. A outra que sorria era a Malika,
segundo as informações no rodapé do relatório.
As duas usavam hijab35 e observei-a com atenção.
Malika não era tão bonita quanto Kismet. Na verdade,
era até injusto colocar as duas lado a lado, pois a beleza
incontestável da meia-irmã ofuscava a dela. No entanto, aos
meus olhos, Malika possuía uma luz própria que a fazia brilhar
muito mais, emanando uma aura de grandeza interior na
expressão do rosto que chamou imediatamente a minha
atenção. Era como se a bondade existente nela irradiasse do
seu interior e ganhasse proporções gigantescas no exterior,
encantando a todos.
Se eu pudesse descrever a essência de um anjo, diria
que era o que estava vendo agora em Malika Al Kabeer.
Foi impossível não me sentir tocado com aquela
essência tão pura, com o rosto de traços delicados, cujo nariz
arrebitado ela erguia de uma maneira ligeiramente atrevida,
como se desafiasse o mundo com os seus ideais. Sentada
como estava, não se via muito do corpo, exceto que era
esbelto, mas a abaya que usava não conseguia esconder a
curva ampla dos seios. Apesar do hijab, também era possível
ver parte dos cabelos castanhos. Contudo, foram os olhos
amendoados que me conquistaram, pois eram da cor exata que
eu mais gostava e deixavam transparecer uma alma grandiosa.
Inspirei fundo ao me dar conta de que Malika Al Kabeer
era o meu tipo de mulher. Além de ter as características físicas
que mais me atraíam, tudo indicava que ela possuía também a
essência interior que eu mais admirava em uma mulher, algo
que inconscientemente sempre procurei, mas que nunca
encontrei.
Sentindo-me perturbado com aquela descoberta, olhei
as demais fotos da família, em busca de outras onde ela
estivesse. Encontrei uma com o pai e com várias mulheres da
família, provavelmente tirada na ala feminina do palácio.
Mesmo no meio de tantas mulheres, era Malika quem atraía o
meu olhar.
Pelo poder de Allah, o que está acontecendo?
Lembrei-me do sonho que tive no meu último dia em
Londres e fechei os olhos, sem entender a mensagem de Allah.
Teria sido ela a mulher que me pedia ajuda?
Eu não fazia a mínima ideia, mas, fosse o que fosse
que Allah queria me dizer, uma certeza muito grande tomou
conta de mim. Apesar de não a conhecer pessoalmente, o
pouco que vi e senti ao analisar aquelas fotos era o suficiente
para mim. Com ou sem autorização superior, eu ia descobrir
onde Malika Al Kabeer estava e lhe devolver a liberdade.
Capítulo 9
Prisão de Thueban — Sadiz
Malika
A porta da cela se abriu, mas não foi de maneira
ruidosa, como sempre acontecia quando as duas guardas
prisionais entravam. Daquela vez, ela foi aberta com muito
cuidado, como se a pessoa não quisesse fazer nenhum
barulho.
Independentemente da maneira como a porta estivesse
sendo aberta, um calafrio de medo percorreu o meu corpo
enfraquecido. Não sei de onde tirei forças para me levantar da
cama encostada à parede e recuar instintivamente para o canto
mais escuro da cela, afastando-me da porta. Sem dúvida que a
força veio do medo e da adrenalina diante do perigo.
Tremendo muito, pressionei-me contra a parede
encardida, querendo ter o poder de me fundir nela e escapar
dos meus algozes. Mais um dia de chicotadas e eu não
aguentaria. A minha morte seria certa.
Com a respiração entrecortada, vi um homem alto
aparecer no vão da porta e entrar na cela. Estava mascarado, o
que não me surpreendeu, mas que também me desesperou.
Sempre que a tortura era sexual, eles usavam máscaras para
não serem identificados.
Engoli um gemido angustiante e cobri a boca com a
mão, como se assim pudesse evitar que o som doloroso saísse
por ela.
A porta foi fechada tão silenciosamente quanto havia
sido aberta e o homem se aproximou de mim. Era mais alto e
mais forte do que todos os outros que vinham frequentemente
à minha cela e o medo me paralisou.
— Malika Al Kabeer?
Estranhei a pergunta feita com um timbre de voz
autoritário, mas não opressor. Todos os guardas prisionais
sabiam muito bem quem ocupava a cela especial no final do
corredor e a pergunta dele disparou um alerta dentro de mim.
— Sim, sou eu — confirmei com a voz mais firme que
consegui. — Quem é você?
Os olhos azuis que me fitaram pela abertura da
balaclava36 preta eram confiantes.
— Sou o homem que vai tirar você daqui agora.
Estarrecida demais para reagir de outra forma,
continuei colada à parede durante o tempo em que a minha
mente confusa tentava entender o que ele havia dito.
— Sair daqui? — repeti, com medo de me iludir e no
fundo aquilo ser uma nova maneira de me torturarem
psicologicamente. — Para onde vai me levar?
— Enquanto estivermos aqui dentro não posso citar
nomes ou lugares. — Ele lançou um rápido olhar ao redor da
cela. — Tem algo que queira levar? Precisamos sair agora.
Se eu ainda soubesse o que era rir, teria rido muito da
pergunta dele. Não havia absolutamente nada que eu quisesse
levar daquele lugar hediondo. Já bastavam as lembranças do
que passei ali. Lembranças terríveis que iam me acompanhar
para o resto da vida.
— Nada. — Foi a única resposta que dei.
O homem observou a roupa que eu estava usando,
uma imitação de abaya que eles chamavam de farda das
presidiárias, feita de um tecido grosseiro e cinzento, e um hijab
do mesmo tecido.
— Está bem agasalhada com esta roupa. Agora
vamos.
Dei um passo vacilante para longe da parede, mas o
trauma de tantas torturas me fez parar. Ele bem podia ter sido
enviado pelo meu tio Suleiman e tudo aquilo não passar de
uma armadilha, com a intenção de me acusarem depois de
tentativa de fuga e a minha situação ficar pior do que já estava.
— Por que está me tirando daqui?
— Fui contratado. — Ele foi curto e grosso na resposta,
dirigindo-se para a porta.
— Por quem? — insisti, indo atrás dele.
— Já disse que não posso citar nomes aqui dentro.
Parei, indecisa.
— Não vou com você até saber se isto é ou não mais
uma tentativa de acabarem comigo.
Ele segurou a maçaneta da porta e se virou para me
lançar um olhar impaciente.
— Nunca deixo um trabalho inacabado e fui muito bem
pago para fazer este. Vou levar você de qualquer jeito, queira
ou não. Isso significa que não tem outra alternativa além de
confiar em mim. — Os olhos azuis ficaram duros. — Se gritar,
vai colocar nossas vidas em risco. Quero acreditar que esteja
ansiosa para sair da prisão e não o contrário. Ou prefere
continuar aqui até morrer?
Ele tinha razão. Não me restava outra alternativa além
de confiar nele.
— Eu confio.
— Então me siga.
Aquela foi a primeira vez que saí da cela sem estar
escoltada por uma das guardas prisionais. Ultrapassamos
corredores escuros e mórbidos que eu nunca tinha visto antes,
pois só saía da cela encapuzada, mas eram tão horrendos que
eu realmente esperava estar vendo-os pela primeira e última
vez.
Eu estava indo embora, mas deixava ali as últimas
lembranças da amiga e companheira de luta que foi presa no
mesmo dia e que não resistiu às torturas. Torturas que fui
obrigada a presenciar e que jamais esqueceria.
Que Allah misericordioso tenha piedade de mim,
porque jamais vou esquecer o que vi aqui!
Eu me sentia fraca e cansada. Contudo, agora que a
esperança de liberdade havia sido plantada dentro de mim,
uma energia desconhecida me dava forças para prosseguir.
Continuei andando atrás dele, cujas passadas largas
eram difíceis de serem acompanhadas, mas nada me faria ficar
para trás. Se estava escrito que eu tinha de sair dali, era
porque a minha luta pelos direitos das mulheres precisava
continuar. Eu não sabia como faria aquilo, mas descobriria no
tempo certo, se realmente saísse de Thueban.
Eles tentaram calar a minha voz, mas só Allah tinha o
poder de fazer aquilo.
Entramos em uma parte da prisão que era diferente do
que eu conhecia, ou que achava conhecer. Tudo ali era mais
estreito, úmido e parecia adentrar cada vez mais o interior da
terra. Tentei não me deixar dominar pelo desespero de ter
realmente caído em uma armadilha e estar sendo levada para
uma experiência pior do que todas as outras que já havia
passado naquele lugar.
Ofegante e quase sem enxergar nada naquela
escuridão, continuei caminhando atrás dele, que eventualmente
se virava para me olhar e confirmar se ainda o seguia.
Os corredores pareciam nunca mais ter fim diante da
minha ansiedade e cansaço. Eu certamente me perderia neles
se estivesse sozinha, mas o homem misterioso que veio me
libertar parecia conhecer com familiaridade cada canto daquele
inferno e foi aquilo que começou a me preocupar. Como ele
podia conhecer tão bem aquela prisão, exceto pelo fato de
trabalhar ali e fazer parte dos algozes que destruíam vidas
dentro daquelas celas?
Seria ele um carrasco, um executor, e não um
salvador?
Com o coração na mão, comecei a rezar
fervorosamente para estar enganada. Se ele fosse o que eu
temia, agora não havia mais escapatória.
Entre orações, medo e muito autocontrole, continuei
seguindo-o, até que paramos abruptamente em frente a uma
porta velha de madeira pesada, tão antiga que parecia da
época medieval. Eu estava tão aterrorizada que nem consegui
reagir quando ele blasfemou furiosamente ao dar de cara com
ela.
— Al’ama!37 Não me disseram que esta merda era
assim! — rosnou, segurando a base de metal da fechadura
enferrujada.
Depois de duas tentativas frustradas e muita força
física, ele conseguiu forçar a fechadura a se abrir. As
dobradiças da porta pareciam estar em pior situação de
ferrugem, pois rangeram horrivelmente ao serem forçadas. O
som agourento se espalhou pelo corredor às nossas costas,
tão alto que prendi a respiração.
Assustada, olhei para trás, esperando ver os guardas
prisionais surgirem a qualquer momento, prendendo-nos antes
que conseguíssemos fugir. No entanto, pela misericórdia de
Allah, aquilo não aconteceu.
Ultrapassamos a porta e me vi diante de um túnel
íngreme.
Silencioso como sempre, o homem não perdeu tempo
com explicações ou conversas, fechando a porta de novo e
começando a percorrer o caminho com passadas decididas.
Bem menos confiante do que ele, continuei seguindo
atrás. O terreno íngreme era ascendente e desconfiei que
estávamos subindo gradativamente para a superfície. Senti as
lágrimas inundando os meus olhos diante da expectativa de
aquilo acontecer. Enfim, depois de semanas, se não meses,
presa no fundo da terra, eu agora poderia ver a luz do sol.
E foi exatamente aquilo que aconteceu minutos depois.
Mesmo sem fôlego, com o corpo massacrado e a ponto de
desmaiar de exaustão, nada tiraria de mim o prazer e a
emoção de ver o mundo outra vez. O mundo, porque até
minutos atrás eu estava no submundo.
A claridade foi se aproximando à medida que
chegávamos ao fim do túnel, onde havia uma espécie de
claraboia no teto que deixava entrar a luminosidade do sol.
— Vá para o canto — ele ordenou e não hesitei em
obedecer.
O homem pegou uma barra de metal que estava
encostada à parede e empurrou a grade que tapava a abertura
no teto, soltando-a. Depois, com uma agilidade e força
surpreendentes para mim, que me encontrava a ponto de
desmaiar de exaustão, ele saltou, segurando-se na borda da
claraboia e içando o corpo para fora com facilidade.
Eu jamais conseguiria fazer aquilo, não apenas por ser
bem mais baixa, mas, principalmente, por não ter nem um por
cento da força física dele.
Tudo ficou silencioso dentro do túnel e lá fora também.
Preocupada que o homem tivesse me abandonado ali,
aproximei-me da claraboia aberta, olhando para o alto. A luz
me ofuscou e recuei, no exato instante em que o rosto
mascarado dele surgiu.
— Vou descer — avisou e voltei a recuar para o canto
da parede.
Assim que ele pulou com agilidade dentro do túnel,
virou-se para mim.
— O perímetro está limpo. Venha, vou ajudar você a
subir.
Não me agradava a ideia de ser tocada por ele, mas a
situação era drástica e exigia atitudes drásticas. Aproximei-me,
aguardando suas instruções.
Ele pegou uma corda que estava enrolada no cinturão
militar e olhou com firmeza para mim.
— Vai ter que me deixar amarrar isso em sua cintura.
Depois, vou subir e puxar você lá de cima.
Respirei fundo, decidida a sair dali o mais rápido que
pudesse.
— Pode fazer — disse com coragem.
Apesar do rosto mascarado, senti a aprovação no olhar
azul. Sem perder tempo e com uma habilidade incrível, ele
passou a corda pela minha cintura de uma maneira que me
deixou firmemente presa, mas sem apertar demais. Depois,
prendeu novamente a outra ponta da corda no próprio cinturão.
— Vou subir agora.
Com a mesma agilidade de antes, o homem voltou a
sair pela abertura e me posicionei para ser puxada a seguir.
Assim que os meus pés saíram do chão, agarrei-me com força
na corda enquanto era içada para a liberdade. O mais difícil foi
soltar a corda e me segurar na borda da claraboia. Faltava-me
o vigor necessário para sair sozinha.
— Força, Malika! — A voz autoritária soou à minha
frente.
Eu me senti um soldado no campo de treino com um
superior me incentivando a não desistir apesar de estar no
limite de um esgotamento. E funcionou! Consegui sair do
buraco, fechando os olhos para proteger a vista de tanta
claridade. Uma mistura de choro, alívio e fraqueza me dominou
e fiquei deitada no chão arenoso enquanto me recuperava do
esforço físico e emocional daquela fuga.
O homem soltou a corda e se aproximou do buraco,
fechando-o outra vez com a grade do alçapão. Ao nosso redor,
só havia rochas íngremes, um sol causticante que encandeava
os meus olhos desacostumados com tanta luz e um silêncio
assustador.
Em pé ao meu lado, o homem analisou com atenção
tudo ao nosso redor.
Fiz um esforço para me levantar, protegendo os olhos
com a mão para tentar diminuir a claridade do sol e ficando de
frente para ele.
Estava na hora da verdade.
— Quem é você? — insisti na pergunta.
Ele me olhou de uma maneira muito direta, mas o rosto
mascarado não me deixava ver nada da sua expressão.
— Agora que estamos aqui fora, pode me chamar de
Assad. Me chamo Zaid Assad.
O nome dele não me dizia nada.
— Quem o contratou para me libertar?
— Não tenho autorização para falar — ele disse,
deixando-me frustrada. — Precisamos seguir nosso caminho o
mais rápido possível. Não podemos ficar aqui parados
esperando que descubram a nossa fuga antes que o resgate
chegue.
Antes que o resgate chegue.
Mas quem estava me resgatando? A pergunta não saía
da minha cabeça, mas antes que pudesse insistir em uma
resposta, o homem chamado Zaid Assad começou a caminhar
para longe da saída subterrânea da prisão e não me restou
outra alternativa que não fosse a de seguir atrás dele.
Começamos a andar por entre as rochas, o terreno
pedregoso fazendo doer os meus pés calçados com uma
sandália inadequada para uma fuga naquela região, ao
contrário de Assad, que usava botas militares resistentes. Eu
estava tão concentrada em não pisar nas pedras mais
pontiagudas, que me assustei quando ele falou, a voz abafada
pela máscara.
— O caminho é longo e difícil até o local do resgate e
temos pouco tempo para isso — ele esclareceu, olhando-me
com preocupação. — Se sentir que não aguenta o ritmo, terei
de carregá-la.
Isso não!
Se em condições normais eu jamais permitiria que um
desconhecido me tocasse, o que era proibido na minha crença,
quanto mais depois de tudo o que vi e vivi dentro de Thueban.
Zaid Assad podia estar me salvando da prisão, mas eu não
pretendia deixar que me tocasse àquele ponto.
— Eu aguento.
Ele não comentou nada, apenas andou rápido até
umas rochas mais à frente e tirou de lá uma espécie de mochila
militar que estava escondida entre as pedras. Abriu-a e tirou
um lenço verde escuro de tecido grosso que ofereceu para
mim.
— Coloque por cima do hijab para proteger mais a
cabeça do sol.
Foi com um suspiro de alívio que peguei o lenço,
colocando-o e protegendo-me do sol. Assad me estendeu uma
garrafa de água, pôs a mochila às costas e fez sinal para o
Norte.
— Agora precisamos ir.
O começo da caminhada foi suportável. Contudo, a
minha energia foi diminuindo a uma velocidade assustadora à
medida que os quilômetros iam sendo vencidos. Achei que
conseguiria fazer todo o percurso sem precisar de ajuda, mas
tudo indicava que precisaria. Em um determinado ponto do
caminho, tropecei em uma pedra e quase caí de cara no chão.
Sustentei-me a tempo na parede rochosa ao meu lado,
esperando que Assad não percebesse nada, mas ele se virou
para mim quase que de imediato.
— Estou bem — disse logo, para evitar que me
carregasse.
— Não me parece.
— Mas estou — insisti, determinada. — Ainda falta
muito?
— Precisamos chegar em campo aberto, onde o
helicóptero poderá pousar. Fica do outro lado desta parede
rochosa. Falta cerca de dois quilômetros.
Oh, bismillah!38
Eu nem sabia se conseguiria andar mais dois metros,
quanto mais dois quilômetros.
Engolindo um gemido de desespero, olhei firme para
Assad.
— Então vamos logo.
Capítulo 10
Deserto de Namur — Sadiz
Malika
Daquele momento em diante, cada passada se tornou
um martírio para mim. O que me fez seguir em frente foi a
minha fé em Allah Todo-Poderoso. Ele me devolveu a liberdade
e eu precisava fazer a minha parte, sendo forte. Sofrimento
algum daquela caminhada se comparava ao que passei na
prisão. Se para ser livre eu tivesse que andar sobre fogo, eu
andaria, quanto mais sobre pedras.
Apesar de estar consciente daquilo tudo, colocar um pé
na frente do outro passou a exigir uma concentração enorme
de mim. Por várias vezes o mundo girou ao meu redor e achei
que fosse desmaiar de exaustão.
Sentindo-me às portas de perder a consciência, quase
não acreditei quando o deserto árido surgiu à nossa frente.
Pisquei diversas vezes para ter a certeza de que os dois
quilômetros que faltavam tinham realmente acabado e
estávamos no local do resgate.
Vacilando sobre as pernas, virei-me para Assad, cujo
olhar preocupado observava o céu límpido à procura de
qualquer indício do helicóptero.
E se eles não vierem?
Seria o meu fim, sem dúvida. Agora que eu havia
parado de andar, já não me sentia em condições de dar mais
um único passo que fosse, quanto mais de andar naquela
imensidão de deserto que se descortinava à nossa frente.
— Al’ama!39 — ele blasfemou entredentes. — Não
estão mais aqui!
Olhei-o, chocada.
— Foram embora?
— Ultrapassamos o tempo e devem ter ido para o outro
ponto de resgate. Teremos de voltar cerca de um quilômetro do
caminho que fizemos e pegar uma saída que dá para o
Sudoeste, onde a aeronave fica menos visível.
Voltar? Eu não aguento!
— Não pode ligar para eles e dizer que estamos aqui?
— Não trago celular para missões como essa. Se for
pego, posso não ter como proteger a identidade de quem me
contratou.
Apesar de entender a lógica daquilo, eu sabia que
talvez não conseguisse caminhar sozinha o restante do
percurso até o segundo ponto de resgate.
Ainda assim confirmei com ele.
— Se é para voltar, então vamos logo.
Foi com lágrimas nos olhos que fiz o percurso.
Voltamos por onde tínhamos vindo e só Allah mesmo para me
dar forças. Eram as últimas que eu tinha e aquilo ficou
comprovado quando chegamos ao local e vimos a aeronave
pousada à nossa espera, um helicóptero de guerra preto
enorme.
Nem tive energia para erguer as mãos ao céu e
agradecer à Allah. Eu só conseguia respirar fundo várias vezes,
tentando fazer com que o mundo parasse de girar ao meu
redor.
Fraca e quase desfalecendo, vi três homens descerem
do helicóptero fortemente armados com rifles militares e
correrem com passadas firmes para onde estávamos. O
homem do centro era mais alto e encorpado do que os outros
dois, deixando-me realmente amedrontada.
Igualmente à Assad, os três usavam balaclavas,
impossibilitando que fossem identificados, o que era muito
assustador. Apesar de ser um resgate, eu não conseguia me
sentir segura e confiante com tantos homens mascarados e
ameaçadores ao meu lado. A semelhança com Hisham e seus
homens era gritante.
O nervosismo se juntou à fraqueza e pensei se ia
desmaiar no pior momento.
Foi em completo estado de atordoamento que senti
sobre mim o olhar intenso do homem que estava no centro. Ele
não pareceu prestar atenção em Assad ou em qualquer outra
coisa ao nosso redor, apenas em mim. Veio direto para onde eu
estava, colocando o rifle para trás das costas e me pegando ao
colo sem pedir permissão alguma.
— Confie em mim. Está segura comigo. — Foi a única
coisa que disse.
Antes mesmo que eu pudesse esboçar alguma reação,
ele começou a andar em passos rápidos para o helicóptero.
Não sei se foi o cansaço ou o alívio de estar sendo finalmente
resgatada que me fez aceitar o contato físico com ele sem me
sentir mal com aquilo.
Fui levada para o helicóptero, enquanto ele dava
ordens aos homens para sairmos rápido dali. Depois de ser
colocada em um banco no fundo do aparelho, os outros
entraram e se sentaram próximos ao piloto. Assad estava entre
eles.
Logo a seguir, a aeronave levantou voo, deixando para
trás o deserto e a prisão onde estive encarcerada. Foi quando
senti as lágrimas correndo pelo meu rosto.
— Você agora está livre e em segurança — o segundo
homem misterioso que conheci naquele dia assegurou com a
voz grave abafada pela máscara, os olhos escuros presos aos
meus.
Ele tinha um olhar caloroso, que transmitia para mim
uma sensação de segurança, de confiança, de honradez. Era
como se me dissesse com aquele olhar que eu tinha nele um
protetor, um defensor, um aliado.
— Quem é você? — perguntei, confusa com todas as
impressões que estava sentindo com relação a ele. — Quem
mandou me libertar?
— Sou Yusuf Al Harbi da família real de Tamrah. — Ele
meneou a cabeça em uma leve reverência. — Tem em mim um
protetor, Malika Al Kabeer.
Fiquei tão estarrecida ao saber da identidade dele que
me senti mais atordoada ainda.
Eu sabia quem ele era. Já havia pesquisado tudo sobre
a família real de Tamrah, não apenas por causa do pedido de
casamento de Majdan para Kismet, mas principalmente por ser
um dos países árabes onde as mulheres mais tinham direitos, o
que muito me interessava.
Por tudo o que me lembrava sobre Yusuf Al Harbi,
sabia que era o terceiro filho do monarca de Tamrah e que se
formou em Sandhurst igual aos irmãos mais velhos. Fora
aquilo, quase nada mais se falava dele na imprensa. Quem
monopolizava as manchetes era Majdan, o príncipe herdeiro.
O que um dos príncipes de Tamrah fazia no meu
resgate era uma pergunta que eu até tinha medo de fazer.
Fiquei devastada com o significado da presença dele ali.
Por longos segundos tentei fixar a vista no rosto
mascarado, mas não consegui. Perdi o foco e a noção de tudo
ao meu redor.
Acho que vou desmaiar!
— Sou também cunhado da sua irmã Kismet. — Ele
piorou o meu estado ao dar aquela informação. — O meu irmão
me encarregou de descobrir onde você estava para que fosse
libertada.
— Kismet está casada com Majdan? — Consegui
encontrar voz para perguntar.
Eu não queria acreditar naquela desgraça, muito
menos conseguia entender como era possível que Majdan
estivesse preocupado em me resgatar, sendo tão amigo de
Mubarak, o responsável por todo o meu martírio.
A simples lembrança de Mubarak fez um calafrio
percorrer o meu corpo e uma ânsia de vômito me dominar.
Agora era impossível para mim ver Yusuf como um protetor
sabendo que Majdan estava por trás do meu resgate.
— Kismet não se casou com Majdan. Ela é a esposa
do meu irmão Saqr, que assumiu como príncipe herdeiro de
Tamrah — Yusuf explicou com evidente satisfação no tom de
voz e no brilho do olhar.
Por Allah! Kismet se casou com o Falcão de Tamrah e
não com Majdan!
Sem saber se comemorava ou se me preocupava
ainda mais, fiquei olhando para Yusuf com estupefação.
Saqr Al Harbi não tinha a fama de devasso do irmão,
mas era conhecido por ser um militar rigoroso, que comandava
o exército do país com mão de ferro. Eu não conseguia
imaginar a minha irmã tão ansiosa por liberdade e
independência casada com um militar temido em todo o mundo
árabe.
Infelizmente, eu não podia perguntar à Yusuf se ela era
feliz com o irmão dele, mas aquela seria a primeira coisa que
eu perguntaria à Kismet. Já era um ponto positivo para Saqr Al
Harbi ter se preocupado em me resgatar daquele inferno.
Kismet! Quase não acredito que vou ficar com ela!
— Agradeço muito a vocês por terem me libertado.
Shukran40, Yusuf!
Uma expressão indecifrável brilhou no olhar dele. Yusuf
aceitou o agradecimento com outro meneio de cabeça, virando-
se depois para os soldados na parte da frente do helicóptero.
— Me informem quando entrarmos em nosso espaço
aéreo — ordenou, usando um tom de voz de comando que era
totalmente diferente do que havia usado para falar comigo.
— Sim, alteza — o soldado confirmou imediatamente
em tom de respeito.
Só então me dei conta do estranho que era um dos
príncipes de Tamrah estar participando ativamente do meu
resgate, em vez de apenas ditar ordens em segurança dentro
do palácio real.
Olhei disfarçadamente para ele, que agora consultava
o relógio no pulso e observava com atenção a região que o
helicóptero atravessava.
— Em breve estaremos em Tamrah — garantiu com
segurança.
Não comentei nada, ainda tentando assimilar tudo o
que havia acontecido desde que Zaid Assad entrou na minha
cela. Eram muitas informações de uma única vez, muita coisa
se sucedendo em uma velocidade rápida demais para quem
viveu os últimos meses sem noção alguma do passar do
tempo.
Permaneci calada. Agora que a adrenalina da fuga
havia passado e eu me sentia em segurança, as dores no
corpo e a exaustão começaram a ganhar um peso de chumbo
dentro de mim. Apoiei a cabeça contra o encosto do banco e
fechei os olhos. Eu me sentia quebrada, partida, desconstruída.
Só Allah para saber da minha dor.
Ao meu lado, Yusuf também permaneceu em silêncio,
como se soubesse como eu me sentia e respeitasse aquilo,
atitude que agradeci mentalmente.
Imersa no meu mundo interior, espantei-me quando o
soldado voltou a falar com ele.
— Acabamos de entrar em nosso espaço aéreo, alteza.
Abri os olhos quando Yusuf se levantou e foi para a
parte da frente, sentando-se ao lado dos homens. Só então
notei dois outros helicópteros que se juntaram ao nosso, cada
um se posicionando de um dos lados e nos escoltando pelo
restante do caminho. Não demorou para pousarmos na pista do
aeroporto de uma base militar.
— Consegue andar? — Yusuf perguntou, voltando a se
sentar ao meu lado.
Eu esperava que sim.
— Sim, consigo — confirmei sem hesitar, apesar da
dúvida que tinha quanto àquilo. Pelo menos assim evitava que
ele me pegasse ao colo de novo.
Só não consegui evitar que me ajudasse a descer do
aparelho, mas depois Yusuf se afastou, mantendo uma
distância respeitável. Ele me levou para um carro que
aguardava na pista, onde entramos para deixar o aeroporto.
Só quando me sentei no banco de trás junto com ele e
o carro começou a andar foi que me lembrei de Assad. Olhei
para trás a tempo de ver os homens que fizeram parte do meu
resgate entrando em um caminhão militar que os levaria
provavelmente para um quartel.
— Eu me esqueci de agradecer à Assad — comentei,
sentindo-me mal por aquilo.
— Agradecerei em seu nome depois — ele disse,
tirando a balaclava e passando a mão sobre o cabelo.
Inspirei fundo quando o vi verdadeiramente pela
primeira vez. Até aquele momento, Yusuf Al Harbi era apenas
um par de olhos castanhos escuros que me fitavam calorosos,
mas agora o homem ganhava um rosto másculo, cabelos lisos
igualmente castanhos, uma barba bem aparada que destacava
os lábios na boca sensual, sobrancelhas grossas e uma
aparência geral extremamente atraente.
Pega desprevenida com aquela descoberta, voltei a
aprumar o corpo no banco, sentando-me rigidamente com o
olhar fixo para a frente. Eu ia agradecer a consideração dele
em falar com Assad em meu nome, mas acabei emudecendo.
Baixei os olhos para as minhas mãos cruzadas sobre o
colo, esqueléticas, cheias de feridas, sujas e com as unhas
quebradas. Tão quebradas quanto eu. Analisei o tecido
grosseiro da abaya de presidiária, que escondia um corpo
torturado, marcado, destruído. Tão destruído como eu me
sentia.
Ainda assim levantei o queixo, ergui o olhar e voltei a
fixá-lo para a frente. Eu podia não ter mais sonhos de amor, de
casamento, de filhos. Podia estar cheia de traumas, de dores
que nunca passariam, mas estava viva, graças à Allah. Só
restava saber o porquê de Ele ter me tirado com vida de
Thueban.
Capítulo 11
Tamrah
Malika
— Preciso ir ao palácio para avisar que o seu resgate
foi um sucesso e que já está em Tamrah — Yusuf me informou
ainda no carro. — Vou deixar você no hospital, mas voltarei
assim que puder. Não tenha receio, todos lá são de confiança.
Você também terá um esquema de segurança para ficar
protegida na minha ausência.
Fiquei surpresa com a leve insegurança que senti ao
saber que ficaria sozinha, mesmo com todas as garantias que
ele me deu. O medo de perder a minha recém-conquistada
liberdade era enorme e foi quando percebi que o trauma da
prisão dentro de mim era bem maior do que eu imaginava.
Talvez seja por tudo ainda ser muito recente. Até horas
atrás, eu era uma prisioneira sem esperança alguma no futuro.
— Quando verei Kismet?
Senti a leve hesitação de Yusuf antes de ele me
responder e fiquei logo desconfiada com o casamento dela.
— Meu irmão é quem decidirá quando a esposa poderá
vir, mas acredito que será ainda hoje. Provavelmente ambos
estarão comigo quando voltar mais tarde para ver você.
Não comentei nada, guardando minhas impressões
para mais tarde, quando estivesse frente a frente com Kismet.
Sentindo-me no limite das minhas forças, fiquei dividida
quando chegamos ao hospital. Uma parte de mim agradeceu à
Allah por saber que agora receberia ajuda para não sentir tanta
dor, mas a outra parte foi dominada pela ansiedade. Eu sabia
que precisava de cuidados médicos, só esperava não ter que
dar detalhes do que havia acontecido comigo na prisão.
Desci sozinha do carro e caminhei como pude para
dentro do hospital, mas notei o olhar atento de Yusuf a cada um
dos meus movimentos. Minutos depois, ele me apresentava à
doutora Bushra Nabih, uma médica que me inspirou confiança
assim que nos cumprimentamos. O olhar compreensivo dela
me conquistou. Era como se soubesse exatamente tudo o que
eu havia passado sem que precisasse dizer uma única palavra,
o que agradeci em silêncio. Contar o que aconteceu era algo
que eu não faria para ninguém.
A médica nos conduziu para uma sala que deveria ser
o consultório dela.
— Pode nos deixar um minuto a sós, doutora? — Yusuf
perguntou, pegando-me de surpresa.
— Claro que sim, alteza — ela concordou com um
sorriso. — Aguardarei na sala ao lado.
Bem mais alto do que eu, ergui a cabeça e o olhei em
expectativa assim que ela saiu.
— Sente-se segura em ficar sozinha aqui hospital?
Até fiquei sem saber o que dizer com a preocupação
dele.
— Sim.
Diante da minha afirmativa curta, ele fixou os olhos
escuros nos meus, como se a verdadeira resposta estivesse no
meu olhar e não na única palavra que proferi. Não desviei a
vista, apesar de sentir as batidas do meu coração acelerarem
diante da intensidade com a qual me observou.
O resultado da análise pareceu deixá-lo satisfeito,
mesmo mantendo a mesma expressão séria.
— Não vou demorar para voltar. Se precisar falar
comigo por algum motivo, peça à doutora Bushra e ela me
ligará de imediato. Este andar do hospital é reservado para a
família real e não haverá estranhos circulando por aqui. Além
disso, os meus homens estão a postos em todo lugar.
Eu já ia dizer que não era necessário tanto trabalho por
minha causa, até me lembrar de Mubarak e mudar de ideia. Ele
não ia se conformar facilmente com a minha fuga da prisão.
Assim que descobrisse onde eu estava, com certeza tentaria
me levar de volta para Sadiz.
Eu precisava avisar ao meu pai também. Ele e a minha
mãe iam ficar muito felizes quando soubessem que eu estava
livre.
Preciso conversar com Kismet!
— Shukran, Yusuf — apenas agradeci.
Ele ainda ficou me olhando por alguns instantes antes
de menear a cabeça pensativamente e abrir a porta, indo
chamar a doutora.
Com a partida de Yusuf, fiquei sozinha com a médica,
preparando-me psicologicamente para enfrentar um possível
interrogatório da parte dela.
— Vejo o quanto está exausta. É melhor que se deite
logo aqui. — Observou com experiência, indicando uma maca
no canto da sala.
— Estou tão suja. Devo estar cheirando mal também —
comentei, envergonhada, lembrando-me de que Yusuf devia ter
percebido aquilo também.
— Nada disso é importante. Por favor, deite-se,
princesa.
Aceitei sem dizer mais nada, ansiosa para realmente
me deitar. Não consegui evitar um gemido de dor e de alívio ao
estirar o corpo sobre a maca.
Será que vou conseguir me levantar daqui depois?
— Não se preocupe. Você vai poder tomar um banho
daqui a pouco, mas antes preciso coletar o seu sangue para
algumas análises. Depois conversaremos com calma e faremos
os outros exames.
Foi exatamente aquilo o que aconteceu. Tiraram o meu
sangue, deram-me uma injeção com medicamentos e depois
fui levada para um quarto cheirando à limpeza, onde pude
tomar um banho. Nunca um ato diário tão simples quanto me
lavar foi tão significativo para mim. Fiquei com a sensação de
voltar a ser um pouco a antiga Malika, mesmo usando uma
bata hospitalar e não uma de minhas roupas. Saber que já não
estava imunda nem cheirando mal fez com que parte da minha
autoestima fosse resgatada.
As dores no corpo diminuíram, o que atribuí ao remédio
que me deram. Contudo, o cansaço ainda era enorme. Eu
sentia vontade de dormir por horas, dias seguidos, de tão
esgotada que estava.
Fui transportada em uma cadeira de rodas pelos
corredores do hospital para fazer vários tipos de exames.
Segundo a doutora Bushra, eu ia passar por um check-up geral
para terem certeza do meu estado de saúde.
Deixei-me ser levada de um lado para o outro, fazendo
todos os exames necessários. Eu sabia que eram importantes,
mas sabia também que a minha saúde mental estava muito
pior do que a física e não iam ser aqueles exames que iam
detectar aquilo.
A doutora Bushra esteve ao meu lado o tempo todo,
fosse onde fosse que eu estivesse sendo examinada. Quando
terminamos o que ela chamou de primeira fase, voltamos à sua
sala para uma conversa.
— Agora vou pedir permissão para tocar em um
assunto delicado, mas que não pode ser ignorado, princesa. Os
únicos exames que faltam são os ginecológicos e para isso
preciso que me diga se continua virgem ou se sofreu alguma
violência sexual na prisão. Se sofreu, é importante que me diga
de que tipo foi. — Ela me olhou diretamente e com a fisionomia
séria, mas o olhar continuava com a mesma compreensão de
antes. — Sei que este não é um assunto fácil de conversar com
outra pessoa, mas peço que faça um esforço. Preciso dessas
informações para prescrever o tratamento mais adequado. Dou
a minha palavra que nada do que conversarmos sairá desta
sala. Tudo ficará apenas entre nós duas.
Ela estava sendo muito transparente e confiável, mas
ainda assim olhei para a médica com uma certa desconfiança.
Que garantias eu tinha de que aquela conversa não ia fazer
parte de um relatório que seria entregue à família real, mais
especificamente à Yusuf? Eu me sentia mal só de imaginar que
ele soubesse de tudo o que vi e vivi na prisão.
— Se a família real exigir estas informações, a doutora
será obrigada a dar — afirmei calmamente, pois aquilo era algo
que ambas sabíamos ser verdade.
— Se for uma imposição, terei de dar, mas não acredito
que façam isso. Posso dizer que conheço cada um deles o
suficiente para garantir que não seriam capazes de exigir que
eu fosse contra a minha ética profissional. Sempre respeitaram
muito o nosso trabalho aqui em Tamrah. — Ela continuou
sendo franca ao falar comigo. — Aconselho que não pense
neles, mas em si mesma. Se foi obrigada a manter relações
sexuais, precisa de exames específicos e de tratamento
adequado o mais rápido possível. Há vários riscos, desde as
infecções sexualmente transmissíveis até uma possível
gravidez.
Ela tinha total razão e eu concordava com tudo o que
disse, mas falar sobre aquilo era difícil demais para mim,
mesmo sendo uma mulher que lutou pelos direitos das outras
mulheres. Se o sexo já era um assunto proibido e raramente
falado entre as mulheres na nossa cultura, em Sadiz era muito
mais. Para piorar, no meu caso ainda havia o trauma adquirido
na prisão.
— Não preciso perguntar se foi torturada, pois tem
marcas visíveis pelo corpo, mas não posso ter certeza de algo
que não vejo. Essa parte sexual tem que ser a princesa a me
dizer.
Por um momento fechei os olhos, lembrando-me de
cenas que eu queria esquecer, mas que não conseguia. Era
doloroso demais reviver o que aconteceu e inspirei fundo para
conter a angústia que sempre oprimia o meu coração quando o
assunto eram as torturas que passei, fossem físicas,
psicológicas ou sexuais.
Abri os olhos e fitei a médica, que aguardava com um
olhar encorajador.
— Eu não sei se ainda sou virgem depois de tudo o
que vi e vivi na prisão — respondi com sinceridade. — Não me
sinto mais uma virgem, doutora.
Ela franziu a testa, deixando evidente não ter entendido
o que eu disse e não tirei a razão dela de estar confusa com a
minha resposta.
— Houve estupro?
Ouvir aquela palavra fez um mal enorme em mim,
como se fosse um gatilho mental que me esmagasse por
dentro.
— Eu... eu não consigo falar sobre este assunto. Não
consigo e nem quero. Sinto-me sufocar! — expliquei, voltando
a respirar fundo várias vezes para controlar o pânico, mas
acabei chorando, os soluços escapando sem que eu
conseguisse segurar.
— Calma, princesa! Fique calma — ela pediu com a
voz suave e o olhar gentil, fazendo um gesto de tranquilidade
com as mãos.
Levantou-se da poltrona e se agachou ao lado da
minha cadeira, colocando uma mão confortadora no meu
ombro.
— É normal que um assunto traumático como esse
cause ansiedade e medo. Respire fundo e tente se acalmar.
Quando se sentir assim, tente se lembrar de que não está mais
presa em uma cela à mercê de violência e brutalidade. Aqui em
Tamrah está protegida, em segurança e terá liberdade para ser
quem é.
Caí para trás contra o encosto da cadeira, enterrando o
rosto nas mãos trêmulas. Eu deveria saber que em algum
momento fora da prisão iam me pedir para falar sobre o que
passei lá dentro e deveria já estar preparada para aquilo, mas a
verdade era que não estava.
— Podemos conversar sobre isso quando a princesa
se sentir mais calma e confiante. Por agora, se me autorizar,
farei um exame ginecológico rápido e confirmarei a virgindade
sem que precisemos tocar no assunto.
Baixei as mãos e olhei para ela com gratidão por não
me forçar a falar sobre os horrores que passei em Thueban.
— Eu autorizo.
Capítulo 12
Yusuf
Assim que deixei Malika sob os cuidados da doutora
Bushra, fui para a sala do doutor Fadel Ayad, o diretor e
proprietário do hospital, com quem precisava conversar sobre o
estado de saúde dela. O que ouvi do médico era o que eu já
esperava, o que não tornava a situação menos preocupante.
— Uma experiência desse tipo já é traumatizante para
um homem, quanto mais para uma mulher. É melhor contar
com sintomas de estresse pós-traumático durante algum
tempo. Podemos minimizá-los ao máximo com medicamentos
nos casos de dificuldades em dormir e hipervigilância.
— Talvez seja difícil responder ao que vou perguntar,
mas durante quanto tempo ela poderá ter esses sintomas?
— As sequelas podem surgir a qualquer momento,
muitas vezes até anos depois do ocorrido. Quando lidamos
com o psicológico, nada é exato — ele esclareceu, falando
depois com um tom de voz paternal. — A princesa vai precisar
de muita ajuda, de se sentir segura e cercada por pessoas de
confiança para poder ultrapassar o que sofreu. Esse período
inicial fora da prisão será fundamental para o sucesso do
tratamento. De resto, é deixar o tempo agir dentro da vontade
de Allah.
— Shukran, doutor. Farei todo o possível para que ela
se recupere.
Saí do hospital com a raiva explodindo no peito,
sentindo-me enfurecido como não me lembrava de ter estado
antes na minha vida.
Malika Al Kabeer esmagou o meu coração com a sua
aparência abatida e esquálida. Ela não se parecia em nada
com a garota sorridente que me acostumei a ver todos os dias
nas fotos do relatório de investigação. Não havia nela nenhum
traço da antiga Malika. Se não fosse pelos olhos amendoados,
eu diria que quem entrou no helicóptero era uma outra mulher e
não ela. Ainda assim, aqueles olhos já não eram os mesmos.
Faltava a luz que tanto me conquistou.
Eu só esperava que não tivessem conseguido destruir
a essência dela que vi nas fotos, que a luz continuasse
existindo lá dentro, mesmo que ínfima. Se existisse, eu ia lutar
para fazê-la brilhar novamente.
Fiz sinal para o oficial militar que ficaria encarregado da
vigilância do hospital e ele me respondeu com uma continência
afirmativa. Eu havia montado um rigoroso esquema de
segurança para protegê-la, determinado a evitar que qualquer
pessoa de Sadiz chegasse perto dela.
Furioso, entrei no carro e o motorista saiu dirigindo
pelas ruas de Jawhara41, a nossa capital ultramoderna e cheia
de espigões que se projetavam contra o céu, em nada se
parecendo com o deserto que nos cercava por todos os lados.
Da minha mente não saía a imagem do rosto encovado
de Malika, do seu olhar triste e sério, dos pulsos marcados por
cortes finos, notadamente de algemas, e do corpo
exageradamente emagrecido. Passei dias com as fotos dela no
meu celular, que olhei várias vezes durante as últimas semanas
de investigação, ansioso para receber as informações que me
permitiriam encontrá-la, libertá-la e ficar frente a frente com a
mulher que não saía da minha cabeça — e dos meus sonhos
— desde que fiquei sabendo de sua existência.
Achei que o motorista estava dirigindo muito devagar,
mas eu sabia que era a minha necessidade de velocidade que
estava me deixando impaciente. Em momentos de tensão
como aquele, dirigir o meu Bugatti Veyron pelas longas
estradas em linha reta do meu país me acalmava mais do que
tudo.
Assim que chegamos em Taj Almamlaka, fui direto para
o majlis42 do meu pai. Apesar de eu já ter ligado para confirmar
que o resgate havia sido um sucesso, ele e Saqr estavam me
esperando para saber dos detalhes.
Eu seria obrigado a fingir que não participei do resgate
de Malika ou o meu pai cairia em cima de mim com um sermão
por ter desobedecido às ordens dele. Só que nada me
impediria de estar presente nesta missão de salvamento. Foi
algo a que me propus fazer e que faria de qualquer jeito,
passando por cima de qualquer ordem real. Se no futuro eles
descobrissem o que fiz, assumiria sem problema algum.
— Como ela está? — Foi a primeira coisa que Saqr me
perguntou. — Não quero que Kismet seja pega de surpresa
com as condições da irmã.
— Está muito magra, enfraquecida, com feridas mal
cicatrizadas nos pulsos, mas bastante lúcida. Conversou
comigo normalmente no hospital e depois ficou sob os
cuidados da doutora Bushra. Me comprometi a voltar mais
tarde para ver como estava.
— Iremos os dois com Kismet. Ela está se arrumando
para ver a irmã.
— Já avisaram em Sadiz sobre a chegada de Malika?
Havíamos combinado dizer para eles que Malika tinha
chegado sozinha em Tamrah à procura da irmã, logo depois de
fugir de Londres, local onde Abdullah disse que a filha estava,
para não ter de admitir que ela havia sido presa por Suleiman43.
— Já avisei o meu sogro e o nosso pai comunicou o
fato a Suleiman — Saqr confirmou. — Agora ambos estão
sabendo que Malika está aqui sob a nossa proteção e terão de
aceitar que ela está fora do alcance deles.
Olhei para o meu pai, que aparentava estar tranquilo
com a situação.
— Suleiman fingiu estar muito satisfeito com a chegada
de Malika aqui. Como esperado, foi esperto o suficiente para
dizer que a fuga dela de Londres deixou a família muito
devastada. Ele não pode e nem vai admitir que mandou
prender a sobrinha em uma prisão subterrânea, onde
provavelmente ela foi torturada.
— Abdullah pediu que eu a mandasse de volta para
Sadiz, mas neguei, obviamente — Saqr informou em um tom
de desprezo. — Acredito que criamos uma boa estratégia para
manter Malika protegida e longe da família.

Horas depois, saí do hospital e fui para o centro


operacional dos serviços secretos, onde Assad se encontrava.
Queria falar pessoalmente com ele e agradecer em nome de
Malika, como me comprometi. Fora aquilo, queria lhe fazer uma
proposta, pois o homem valia cada centavo que pagamos.
Encontrei-o de banho tomado e descansando em um
dos quartos destinados aos soldados em missão. Ele me
atendeu prontamente quando bati na porta.
Sem usar a balaclava, eu podia dizer que aquela era a
primeira vez que o via pessoalmente. Assad era um homem da
minha altura, com o corpo robusto de um militar e expressão
séria.
— Trouxe um pedido de agradecimento de Malika para
você — disse-lhe depois que nos cumprimentamos e me sentei
na cadeira que ele me ofereceu, sentando-se depois na cama.
— Ela se esqueceu de agradecer quando chegamos no
aeroporto, mas me comprometi a fazer isso no lugar dela.
Aproveito também para agradecer em nome da minha família
por ter conseguido tirá-la de Thueban. Shukran.
— Não é preciso agradecer, alteza. É gratificante para
mim libertar alguém daquele inferno, ainda mais se for uma
mulher. A princesa é forte, apesar de aparentar fragilidade. Fico
feliz em ter sido contratado para libertá-la.
Gostei da atitude dele e senti que Assad era realmente
um homem de confiança. Muitas vezes era preciso um contato
frente a frente com alguém para termos total certeza do caráter
da pessoa, e aquilo era uma verdade com relação a ele.
— Vim também para lhe fazer uma proposta. Fiquei
muito satisfeito com o seu trabalho e gostaria que se juntasse
ao nosso serviço de inteligência. Sei que abandonou as forças
armadas de Sadiz e que era um oficial muito respeitado lá.
Temos espaço aqui para profissionais como você, caso queira
algo mais estável do que o trabalho de mercenário que tem
feito.
Ele ficou visivelmente surpreso. Pensei que fosse pedir
um tempo para aceitar ou então negar de imediato, mas me
enganei.
— Eu aceito, alteza. Sempre admirei as forças armadas
de Tamrah e me sinto honrado em trabalhar aqui. Só me tornei
um mercenário pela força das circunstâncias.
— Eu entendo. — Levantei-me e fechamos o acordo
com um aperto de mãos. — Seja bem-vindo aos serviços
secretos de Tamrah.
Capítulo 13
Sadiz
Mubarak
— Venha ao meu escritório — o meu pai me chamou
mal-humorado pelo celular.
Ele só usava aquele tom de voz quando algo de muito
ruim havia acontecido.
— Estou indo.
Minutos depois eu já entrava no escritório dele,
encontrando-o de pé em frente à janela.
— Recebi uma ligação agora do Sheik Rashid me
avisando que Malika apareceu em Tamrah à procura de Kismet,
depois de fugir de Londres.
O choque foi tanto que demorei a reagir, até a
gravidade da situação cair de uma vez em cima de mim.
— Deixa eu entender primeiro! Malika está em Tamrah
depois de fugir de Londres? — perguntei, confuso. — Foi para
Londres que você a mandou?
Meses atrás, eu havia descoberto que Malika não
estava mais em Asuid, para onde mandei que fosse levada. Os
meus informantes me disseram que o meu pai havia ordenado
a transferência dela para outro lugar, logicamente que sem o
meu conhecimento. Falei com ele na ocasião, mas a única
coisa que me respondeu foi que Malika estava em um local
seguro, onde ficaria até aceitar o casamento com Al Badawi.
— Malika nunca esteve em Londres. Esta foi a mentira
que Abdullah inventou para Saqr quando ele quase ordenou
que ela fosse visitar Kismet em Jawhara. Malika estava em
uma prisão secreta aqui mesmo em Sadiz, mas conseguiu fugir
de alguma maneira.
Explodi de vez ao ouvir aquilo.
— Mas que merda, pai! Eu não estava sabendo de
nada disso!
Ele se enfureceu comigo.
— Cuidado ao falar comigo neste tom, Mubarak! Sou o
seu pai, o seu rei, o seu governante.
Rangi os dentes de raiva e quase fazia a merda de
dizer que não seria por muito tempo mais que ele seria o meu
rei e governante.
— Como posso não ficar exaltado com uma notícia
dessas? Está mais do que claro que Malika foi resgatada. E se
ela está agora em Tamrah, é porque alguém de lá a ajudou.
— Não temos certeza se foi mesmo isso o que
aconteceu. Ela pode ter recebido ajuda para fugir, mas não
necessariamente de alguém de Tamrah. O mundo inteiro sabe
do casamento de Saqr com Kismet. Não ia ser difícil para
Malika descobrir que a irmã estava morando em Taj Almamlaka
com o marido e ir atrás dela quando escapasse da prisão.
— Ou o senhor é muito ingênuo ou está com medo de
enfrentar o Sheik Rashid.
Ele se enfureceu tanto, que pensei que fosse me dar
um tapa na cara.
— E vou enfrentar o Rashid para quê? — gritou
comigo. — Para admitir que prendemos Malika? Só os
familiares dela sabiam disso, mais ninguém. Obviamente que
Kismet contou para Saqr, mas eles fingiram não saber de nada.
Vou fazer a mesma coisa e fingir que não a prendi.
— Fingir não vai resolver o problema. Malika sabe de
muita coisa. Se ela resolver falar algo, vamos ficar mal.
Preocupei-me com a confissão incriminando o meu tio
Abdullah.
— Saberemos se vamos ficar mal pela reação dos Al
Harbi. Se continuarem agindo normalmente, mesmo depois que
ela contar tudo, faremos o mesmo.
— Insisto que é preciso trazer Malika de volta!
— Só poderei fazer alguma exigência durante a cúpula
da Coligação Árabe44 que vai acontecer este ano em Jawhara.
Será um dos temas que vou tratar com Rashid nas reuniões
que tivermos com ele, mas você se manterá calado quando eu
tocar no assunto. É algo delicado demais e você não tem jeito
nenhum para isso. Só faz merda na vida, principalmente se
houver mulher no meio. Esqueça a sua prima.
Nunca!
Capítulo 14
Tamrah
Malika
A sensação de ver Kismet entrar no quarto do hospital
onde eu aguardava para fazer o último exame foi indescritível.
Ela trouxe uma lufada de ar fresco à sensação de sufocamento
que eu sentia sempre que estava sozinha com os meus
pensamentos.
— Malika!
Ver o seu rosto lindo com o olhar esverdeado cheio de
lágrimas, sentir 0 amor que brilhava neles e receber o abraço
saudoso que ela me deu, foram demais para mim. Chorei de
emoção.
Gratidão, poderoso Allah! Kismet está bem e é feliz!
Tentei abraçá-la, mas não consegui. Estava
enfraquecida demais e acho que ela percebeu, pois me apertou
mais nos braços. O tempo em que ficamos agarradas uma à
outra foi pouco para o tamanho da saudade que eu sentia. De
olhos fechados, só conseguia agradecer vezes e vezes
seguidas à Allah por aquela bênção.
— Allah misericordioso seja louvado! — ela exclamou
em lágrimas.
— Pensei que nunca mais fosse ver você.
— Eu também, mas Allah nos abençoou e agora
estamos juntas novamente.
Kismet parecia diferente, mais madura do que eu me
lembrava e até mais bonita também. Ela ainda lembrava a
menina tímida e carente que cuidei quando ficou órfã aos sete
anos, mas algo havia mudado nela e para melhor.
— Você ainda vai fazer alguns exames antes de irmos
para casa — ela explicou o que eu já sabia, mas não a
interrompi. — O meu marido está aqui e vai providenciar tudo.
Era justamente sobre o marido dela que eu tinha
urgência de falar.
— Você está feliz com ele? Assad não me disse nada
sobre quem o tinha contratado para me libertar.
— Quem é Assad?
— É o homem que me resgatou da prisão. Só fiquei
sabendo dos detalhes quando entramos no helicóptero e já
estávamos a caminho de Tamrah. Foi quando Yusuf me
informou que o seu marido estava me resgatando a seu pedido.
— O Yusuf? — ela perguntou, franzindo a testa.
— Sim. Era ele que comandava os homens do
helicóptero militar que me trouxe para cá. Foi o Yusuf quem me
disse que você não se casou com Majdan, mas com o Falcão,
irmão dele. É mesmo verdade?
— Sim, é verdade. Estou casada com Saqr Al Harbi.
Ele assumiu como príncipe herdeiro no lugar de Majdan.
— Você é feliz com ele, Kismet? — perguntei com
ansiedade. — Ele é um bom marido?
— Sim, ele é perfeito para mim em tudo.
A resposta foi dita com tanto amor brilhando nos olhos
dela que não tive dúvida alguma de que a minha irmã estava
apaixonada pelo marido.
— Allah seja louvado! Você merece toda a felicidade do
mundo.
— Você também, minha irmã. Quero saber tudo o que
aconteceu desde que prenderam você. Fiquei tão desesperada.
Engoli com dificuldade para tirar a sensação de
sufocamento da garganta. Mais uma vez eu me via encurralada
com questões sobre o que passei na prisão e não estava
pronta para aquele tipo de conversa. Talvez nunca estivesse.
Allah foi misericordioso e interveio no momento exato,
enviando a doutora Bushra naquele instante. A porta do quarto
se abriu e ela entrou, fazendo-me suspirar de alívio.
— Precisamos levar sua irmã para mais alguns
exames, princesa.
Kismet olhou para mim com um sorriso tranquilizador.
— Conversaremos em casa. Vá fazer os exames.
Ficarei aguardando aqui até que volte.
Apesar do que ela disse, só voltamos a conversar dias
depois. A doutora Bushra achou melhor que eu ficasse
internada durante quarenta e oito horas no hospital e Kismet foi
embora com o marido, que a situação não me permitiu
conhecer naquele dia. Seria impróprio um homem que não era
meu parente próximo entrar no quarto onde eu estava
internada. Em Sadiz, apenas as mulheres da família podiam
visitar outras mulheres hospitalizadas. Raramente um pai ou
um irmão era permitido. Apesar de Tamrah ser um país mais
moderno do que o meu, percebi que muitos dos costumes da
nossa cultura se mantinham lá, inclusive aquele.
Foi justamente por causa daquela regra que só voltei a
ver o Yusuf no dia em que recebi alta. Foi ele quem veio me
pegar no hospital e levar para o palácio da família real.
Naquele dia, deram-me roupas de verdade para vestir.
Troquei o jaleco hospitalar por uma abaya linda em tons de
azul, feita com um tecido tão macio ao toque que até suspirei
quando o senti. Depois de meses usando a abaya grosseira de
presidiária, senti como se estivesse prestes a vestir a primeira
roupa de qualidade da minha vida. Mesmo nos meus tempos
de princesa em Sadiz, as abayas que eu tinha não se
comparavam com aquela.
O hijab azulado era delicado, servindo mais como
enfeite do que como um acessório indispensável para cobrir os
cabelos dos olhares masculinos.
A única coisa que não gostei foi da maneira como o
tecido da abaya marcava o meu corpo. Mesmo magra como
estava, o volume dos seios se destacava e me senti levemente
incomodada. Aquele sentimento não tinha nada a ver com a
antiga Malika, mas com os traumas que a nova Malika havia
adquirido na prisão.
Eu me sujeitaria até a andar de burca se isso servisse
para não chamar a atenção de nenhum homem para o meu
corpo.
O radicalismo daquele pensamento me deixou
horrorizada comigo mesma. Justamente eu, que tanto lutei para
as mulheres terem mais liberdade, estava agora querendo me
esconder atrás de um traje que sempre vi como um sinônimo
de opressão.
— Está pronta, princesa? — a enfermeira me
perguntou do lado de fora do banheiro.
— Sim, estou — respondi, abrindo a porta e saindo
para o quarto.
Ela me olhou com um sorriso de admiração.
— MashAllah!45 A roupa ficou perfeita na princesa. Está
linda!
Eu não me sentia nem um pouco entusiasmada com a
minha aparência, mas agradeci com o melhor sorriso que
consegui.
— Shukran.
— O príncipe Yusuf está aguardando na sala junto com
a doutora Bushra.
Mantive a expressão neutra ao ouvir o nome dele.
— Kismet não quis entrar?
— Eu não a vi com o príncipe, mas ele poderá
confirmar isso.
Saímos do quarto, passamos pelo corredor e logo
estávamos na sala da suíte que ocupei no hospital. O meu
olhar foi atraído imediatamente para o homem alto que
conversava com a médica. Em vez do uniforme militar com
calças que Yusuf usava no dia em que o conheci, agora ele
estava elegantemente trajado com um thobe branco que
destacava a largura dos ombros e não deixava dúvidas sobre a
sua origem real.
À minha frente estava um verdadeiro príncipe árabe e
foi impossível não o admirar em silêncio.
— Sabah al khair46 — cumprimentei-os ao me
aproximar. — Salaam Aleikum47.
Senti o olhar masculino me envolver com intensidade e
me surpreendi ao encontrar nele a mesma expressão da
primeira vez em que o vi no helicóptero. Nunca mais nos
encontramos depois que ele me deixou aos cuidados da
doutora Bushra, logo após o meu resgate. De lá para cá, até
duvidei do que havia sentido quando o conheci, mas agora que
o tinha novamente à minha frente, não havia dúvida alguma.
Yusuf Al Harbi me inspirava confiança e proteção. Eu estava
segura com ele.
— Alaikum As-Salaam48, Malika. Sabah al nur49. — O
sorriso dele era genuíno e sem pretensão alguma além de me
fazer sentir bem-vinda. — Está pronta para conhecer Taj
Almamlaka?
— Sim, estou. Kismet não veio?
— Ela ficou em casa preparando tudo para a sua
chegada. Você terá de se contentar comigo mesmo —
respondeu com bom humor, conseguindo arrancar um sorriso
de mim. — A doutora Bushra estava me passando informações
sobre o seu estado de saúde e já sei o quanto precisa de
descanso, por isso acho melhor irmos logo.
Olhei com gratidão para a médica que me conquistou
com a sua empatia e compreensão.
— Shukran, doutora. Eu não podia ter tido melhor
médica para cuidar de mim.
— Foi um prazer, princesa. — Ela segurou as minhas
mãos, apertando-as em um gesto de conforto. — Estarei
aguardando que volte para as consultas de acompanhamento,
mas se precisar de qualquer ajuda antes disso é só me
procurar.
Aquela última frase foi dita olhando também para
Yusuf, que confirmou sem hesitação alguma na voz.
— Eu mesmo a trarei, doutora — comprometeu-se,
surpreendendo-me. Afinal, ele devia ter coisas mais
importantes para fazer do que servir de chofer para mim.
Preferi não dizer nada, apenas me despedi da médica
e segui Yusuf pelo corredor até o elevador.
— Acho que não houve tempo para Kismet conversar
com você sobre o palácio, por isso vou contar um pouco da
história dele para você ir conhecendo melhor o lugar onde vai
morar — ele disse, apertando o botão do térreo assim que as
portas do elevador privativo se fecharam e ficamos sozinhos lá
dentro.
Tentei relaxar no espaço exíguo, mas não consegui.
Fiquei tensa ao me ver presa no elevador e respirei fundo para
me controlar.
— Relaxe. Está em segurança comigo — ele disse ao
perceber o meu estado de ansiedade.
Incrivelmente, o tom firme e calmo conseguiu me deixar
mais relaxada, mas não o olhei, fixando a vista nas minhas
mãos cruzadas à frente do corpo.
O elevador parou no térreo do hospital e ele saiu à
minha frente, olhando com atenção ao redor. Saí logo depois e
o acompanhei, notando os dois seguranças que nos seguiram
de perto até o estacionamento.
Três carros nos esperavam do lado de fora, mas foi o
brilho do sol que realmente atraiu o meu olhar. Para alguém
que havia saído recentemente de uma prisão subterrânea, o
dia ensolarado e de céu azul era de tirar o fôlego.
Fomos para o carro do meio e Yusuf abriu a porta do
passageiro para mim. Enquanto ele dava a volta para se sentar
na direção, observei os seguranças entrando no carro da
frente. O de trás provavelmente já estava com mais homens
nele, formando uma escolta que nos acompanharia até o
palácio.
Estávamos em um SUV amplo e luxuoso, com um
painel central separando os dois bancos. Ainda assim, mesmo
o carro sendo tão espaçoso, a presença de Yusuf parecia
encher o ambiente. Eu já havia notado o quanto ele era alto e
aquilo não tinha nada a ver com o fato de eu ser baixinha. Até o
mais alto dos meus irmãos, que tinha um metro e oitenta, era
mais baixo do que ele. Eu deduzia que Yusuf tivesse por volta
de um metro e noventa.
— Taj Almamlaka pode impressionar pelo tamanho em
um primeiro momento, mas com o tempo você vai começar a
vê-lo como sua casa — ele disse de repente, começando a
falar do palácio. — O meu irmão tem uma ala inteira onde mora
com Kismet e será nela que você vai ficar.
— Já ouvi falar do palácio real dos Al Harbi. Dizem que
é enorme e majestoso.
Ele riu, mas não era um sorriso arrogante de membro
da família real. Ao contrário, parecia mais um pedido de
desculpas.
— Ele é realmente majestoso, mas também é
acolhedor na minha opinião.
Nos minutos seguintes, Yusuf falou um pouco da
história do palácio, da cidade e até do país, enquanto o SUV
percorria as ruas de Jawhara. Tudo ali era lindo, grande e
deslumbrante. Vi mulheres dirigindo carros que cruzaram com o
nosso e tive vontade de chorar ao me lembrar que no meu país
aquilo era motivo de um castigo severo, ou de prisão, ou até
mesmo de morte. Um sonho distante, mas muito distante
mesmo.
Não demorou muito para entrarmos em uma via
exclusiva, ampla e arborizada que levava ao palácio bem mais
ao fundo, cujas quatro torres já se tornavam visíveis para mim.
À primeira vista, achei que ele era exatamente tudo o que
falavam. Majestoso, imponente e luxuoso, extremamente
luxuoso.
Os três carros estacionaram em um amplo pátio em
formato quadrado que ficava bem no centro da construção. Era
tão grande que dificilmente não impressionaria alguém.
— Esta é a ala do meu irmão e Kismet deve estar nos
aguardando logo na entrada — Yusuf informou, descendo do
carro e vindo abrir a porta para mim.
Desci, observando tudo em silêncio. Ele me conduziu
para uma entrada em arco onde havia um hall enorme. Foi lá
que avistei a minha irmã sentada em um dos sofás de brocado.
— Malika! — Ela se levantou e veio me receber com
um sorriso nos lábios e os olhos esverdeados brilhando de
emoção.
Abraçamo-nos com força, novamente juntas. Quando
nos separamos, ela olhou para Yusuf com gratidão, que nos
observava alguns passos atrás de mim.
— Fico muito agradecida por ter trazido Malika para cá,
Yusuf. Shukran!
— Foi um prazer, Kismet. — Olhou então para mim. —
Foi um prazer trazê-la, Malika. Estou à disposição para o que
precisar.
— Shukran — agradeci com a mão sobre o coração. —
Por tudo.
Ele sabia o que era aquele tudo.
Depois de uma leve reverência de despedida para nós
duas, ele se afastou em direção aos carros, prendendo o meu
olhar. Pensei quando o veria de novo.
Capítulo 15
Malika
Em
Taj Almamlaka, fui acomodada em um quarto no
que eles chamavam de Ala do Falcão. Considerando a
grandeza do palácio, só pude agradecer por ficar perto de
Kismet.
Designaram uma enfermeira para me acompanhar o
tempo todo, que minha irmã garantiu ser profissionalmente
muito competente, mas também amiga.
— Foi Layla quem cuidou de mim quando precisei.
Saqr a contratou para ficar exclusivamente à minha disposição
— Kismet explicou quando entramos no quarto que eu ia
ocupar. — Agora será ela quem vai cuidar de você aqui, o que
me deixa muito aliviada.
— E o Yusuf, onde mora?
A pergunta saiu sem que eu conseguisse controlar, o
que surpreendeu até a mim mesma. Entretanto, Kismet agiu
normalmente.
— Cada filho homem do Sheik Rashid com Farah tem
uma ala própria dentro do palácio. Esta é a de Saqr e o Yusuf
tem a dele também. Acho que você vai adorar a mãe deles. É
uma mulher maravilhosa, que realmente me trata como a uma
filha — Kismet esclareceu, sentando-se ao meu lado na cama.
— Farah é a primeira esposa do Sheik Rashid, com quem teve
oito filhos. São quatro homens e quatro mulheres, que você vai
conhecer com o tempo. O importante agora é que descanse
bastante e se recupere.
— São todos casados?
— Dos homens, apenas Majdan e Saqr são casados.
Das mulheres, a única solteira é a mais nova, a Sabirah, uma
menina doce, mas muito cheia de personalidade. Tenho certeza
que você vai gostar dela assim que a conhecer.
Eu não estava com muita disposição para socializar
com ninguém, apesar de saber que teria de conhecer a família
inteira em algum momento. Depois de tanto tempo vivendo em
isolamento total na cela de Thueban, não me sentia preparada
para interagir com outras pessoas em um ambiente social,
sendo forçada a conversar frivolidades e a sorrir com os lábios,
mas não com os olhos nem com o coração.
Acho que deixei transparecer alguma coisa no meu
rosto, pois Kismet mudou logo o discurso, tranquilizando-me.
— Não se preocupe, minha irmã. Ninguém vai forçar
você a fazer nada que não queira aqui em Taj. Eu mesma não
permitirei — garantiu com firmeza, segurando a minha mão. —
Preocupe-se apenas em se recuperar. Agora descanse.
Conversamos melhor depois.
Descansar era o que eu mais queria, mas como
conseguir adormecer despreocupadamente depois de passar
tanto tempo em constante estado de alerta, sempre vigilante,
com receio de a porta da cela se abrir durante a madrugada
para mais uma sessão de horror começar?
Para minha sorte, aquilo foi resolvido quando Kismet
me apresentou à Layla, a enfermeira que ficaria cuidando de
mim e com quem simpatizei assim que entrou no quarto. Ela
não aparentava ser muito mais velha do que eu com os meus
vinte e quatro anos. Se Layla tivesse trinta, seria muito. Usava
uma túnica branca que ia até o meio das pernas e uma calça
larga da mesma cor por baixo. Para completar o que eu achava
fosse uma espécie de farda de enfermeira, ela usava um hijab
também branco, que cobria adequadamente seus cabelos,
ressaltando os traços do rosto bonito. Era sorridente e
emanava bondade, o que muito me agradou.
— Já falei com a doutora Bushra e tenho comigo todo o
tratamento médico que lhe indicaram e os remédios que deverá
tomar — ela disse quando ficamos sozinhas. — Um deles é
para ajudar a princesa a dormir nestes primeiros meses de
recuperação.
Agradeci mentalmente à médica por ter cuidado
daquilo. Apesar de todas as conversas que tivemos, não me
lembrei de pedir nada que me ajudasse a dormir. Graças a ela,
agora eu tinha.
Foi com um suspiro de alívio que me deitei na cama
minutos depois sob o olhar atento de Layla. A última coisa que
pensei antes de cair em um sono profundo induzido pelo
medicamento foi que Kismet tinha razão quando disse que
Layla era uma boa amiga e não apenas uma enfermeira. Eu me
sentia bem ao lado dela.
Layla não sabia, mas acabava de entrar na lista restrita
de pessoas que me inspiravam confiança em Tamrah. Uma
lista que só tinha três nomes até agora. O de Kismet, o de
Yusuf e o dela.

Passei os dias seguintes isolada no quarto, tendo como


companhia apenas a minha irmã e Layla. Os banhos de sol
indicados pela doutora Bushra eram tomados em um jardim
belíssimo que havia na Ala do Falcão. Kismet e eu nos
sentávamos confortavelmente em um dos bancos e
conversávamos durante horas. No entanto, foi no quarto que
tivemos nossa primeira conversa, ocasião em que soube coisas
da minha família que me deixaram arrasada.
Tentei não demonstrar nada na frente de Kismet, mas a
impressão que eu tinha era que o mundo que conheci antes de
ser detida na fronteira com Qasara era mais bonito do que esse
atual que eu via depois de meses de prisão. A minha visão de
tudo havia mudado muito, deixando de ser idealista e passando
a ser fatalista. Para mim, o mundo havia se transformado em
um lugar horrível, onde nada do que eu havia idealizado antes
existia, muito menos as pessoas que eu amava e admirava
eram dignas do meu amor e admiração. Os meus pais, os
meus irmãos, o meu noivo. Nenhum deles havia lutado por
mim, apenas Kismet.
Ninguém mais!
Como se não bastasse a desilusão que tive com a
rejeição de Dabir, agora eu tinha que lidar também com o total
desinteresse do meu pai em me tirar da prisão. Onde estava o
amor? O que eles tinham no lugar do coração? O egoísmo do
meu pai, que só pensou em salvar a si mesmo, era muito
doloroso, ainda mais se eu considerasse que fui torturada além
do normal por ter me negado a incriminá-lo. Nem o Bassam, o
irmão que sempre teve mais consideração por mim, fez algo
para me ajudar.
Desgosto, dor, abandono, revolta, raiva. Foram aqueles
os sentimentos que me dominaram quando Kismet me contou
tudo o que ela havia passado nas mãos de Adib com o
consentimento do nosso pai.
E a minha mãe? Como era possível que ela tivesse
apoiado que Kismet fosse dopada e que viajasse para Tamrah
com uma enfermeira extremista que quase a matou?
— Se não fosse o Saqr, acho que eu teria morrido
naquela noite — Kismet disse, finalizando aquela narrativa de
horror.
Foi com lágrimas correndo pelo rosto que nos
abraçamos com força, chorando muito e nos consolando
mutuamente. Allah podia ter me tirado uma família inteira, mas
tinha deixado comigo a melhor parte dela, que era Kismet. Uma
irmã completa, que me amava incondicionalmente e que era o
único membro que fez questão de me encontrar.
— Eu preciso agradecer ao seu marido por salvar você
e por salvar a mim também.
A oportunidade surgiu semanas depois, quando, enfim,
consegui me recuperar o suficiente para sair do quarto e
interagir com outras pessoas.
O meu primeiro contato com o restante da família Al
Harbi aconteceu em um jantar. Segundo Kismet, eles se
reuniam em refeições familiares pelo menos cinco vezes por
semana, intercalando entre almoço e jantar. Nos outros dias,
cada um fazia sua refeição na ala onde morava, possuindo sua
própria cozinha e funcionários. Era como se fossem cinco
palácios dentro de um só. Quatro dos filhos homens, o quinto
do rei e de sua primeira esposa. Era neste último que Sabirah
também vivia, a única filha solteira do Sheik Rashid.
Saqr foi o primeiro que conheci já na Ala do Falcão,
quando saí do meu quarto com Kismet e fui para a sala de
estar dos aposentos deles. Um homem tão alto quanto Yusuf
nos aguardava e com um corpo tão forte quanto o dele. Ambos
eram fisicamente muito parecidos, exceto pelo rosto e
expressão dos olhos. Saqr era muito sério, o que o tornava
bem mais amedrontador, pelo menos para mim, que me sentia
mais segura e à vontade na presença de Yusuf. O olhar do
Falcão de Tamrah era incisivo e penetrante, beirando a dureza,
algo que não existia no olhar de Yusuf, que era caloroso e me
inspirava confiança.
— Ahlan50, Malika. Tasharafna51.
— Shukran, Saqr. Não só pela hospitalidade em me
receber aqui, mas também por ter me libertado da prisão.
— Teria feito antes, se soubesse. Sinta-se em casa
aqui em Taj.
Apesar de as minhas primeiras impressões com
relação à Saqr Al Harbi terem sido inquietantes, notei como ele
mudava quando se dirigia à minha irmã. O olhar afiado
suavizava e aquecia, assim como a expressão do rosto e o tom
de voz. Ele parecia outro quando o assunto era Kismet e aquilo
me tranquilizou um pouco mais.
Fomos de carro para uma outra parte do palácio. Taj
Almamlaka era tão grande que percorrê-lo pelo interior
demorava mais tempo do que se fôssemos de carro pelos
pátios externos.
O jantar aconteceu em um salão amplo, mas
aconchegante, onde várias pessoas já se encontravam quando
entramos. Tentei não deixar que a ansiedade me dominasse,
mas a verdade era que estava ali forçada e não por vontade
própria. Por mim, continuaria isolada na Ala do Falcão.
Observei todos os que estavam reunidos, até encontrar
o olhar acolhedor de Yusuf. Relaxei quando o vi entre os
presentes, sentindo-me mais segura. Ele sorriu discretamente
quando cruzamos o olhar, fazendo um gesto imperceptível com
a cabeça, como se dissesse que estava ali para me ajudar se
eu precisasse.
Agradeci com o olhar e me concentrei em conhecer os
outros familiares dele, a começar pela mãe. Farah era uma
mulher vibrante, que me abraçou afetuosamente.
— Que prazer nós temos em receber você em nossa
casa! Sinta-se como um membro da família, minha querida.
— Shukran, senhora.
— Venha comigo. Vou apresentar o meu marido e as
outras mulheres para você.
Farah saiu me conduzindo pelo salão e olhei para trás,
à procura de Kismet. Ela veio comigo sem que eu precisasse
dizer nada e tive a certeza de que não me deixaria sozinha
durante o jantar.
O Sheik Rashid Al Harbi era tão imponente quanto eu
achava que seria, com um porte altivo que impressionava.
Entendi então o porquê de os filhos serem igualmente
impressionantes. Apesar de toda sua majestade, era também
amistoso e me cumprimentou com a mesma consideração da
esposa.
Ao lado dele estava Sabirah, a filha mais nova do
casal. Ela era encantadora e emanava simpatia no olhar. O
sorriso era autêntico e a alegria contagiante. Parecia uma flor
embelezando um jardim inteiro. Notei o quanto ela gostava de
Kismet pela maneira como se pendurou no braço da minha
irmã, acompanhando-nos enquanto eu era apresentada às
demais mulheres que estavam no salão. Três eram filhas de
Farah, as outras eram primas próximas.
Kismet se sentou em um sofá de três lugares e fez
sinal para eu me sentar ao lado dela. Sabirah ocupou o outro
lado e respirei aliviada quando me acomodei no sofá. Graças à
Allah não precisaria ser apresentada a mais ninguém,
principalmente aos homens, de quem eu queria distância.
O jantar foi até agradável, mas eu não pretendia tão
cedo participar de outro. Apesar de todos terem sido amáveis
comigo, eu ainda precisava de um tempo para voltar a
socializar como antigamente, se é que um dia voltaria a ser
como antes.
Por duas ou três vezes cruzei o olhar com o de Yusuf.
Ele não forçou uma aproximação, mas senti que estava atento,
como se fosse intervir caso eu precisasse de ajuda. No meu
íntimo, crescia a sensação de poder contar com ele se
realmente precisasse.
Ainda assim, quando Kismet me chamou para
participar do jantar seguinte, neguei, preferindo jantar sozinha
nos meus aposentos. Decidi que uma vez por semana era o
suficiente. Mais do que aquilo eu ainda não conseguia.
Cansei de quantas vezes minha irmã me pediu para
contar o que havia acontecido comigo na prisão, mas em todas
me recusei a falar.
— Sinto-me sufocada só de me lembrar, quanto mais
de falar. Se você puder me ajudar nisso e não perguntar mais,
vou ficar muito feliz, minha irmã.
Amorosa, ela me abraçou junto ao peito.
— Claro que posso! Faço tudo o que puder para ver
você feliz.
Capítulo 16
Yusuf
— Por que não a convida para trabalhar no Ministério
da Mulher? — perguntei à minha mãe.
Ela me olhou com excessivo interesse, mas não me
abalei com aquilo.
— Por incrível que pareça, eu já tinha pensado nisso.
Surpreende-me que você também tenha pensado a mesma
coisa.
Estávamos sozinhos no meu escritório em Taj, para
onde a chamei a fim de termos aquela conversa privada.
— E por que a surpresa?
Minha mãe fez cara de inocente, como se eu não
soubesse a mulher perspicaz que ela era.
— Não sei. Talvez por achar que você tivesse um
batalhão inteiro de agentes secretos com que se preocupar e
que não ia ter tempo para uma jovem princesa que tenta
passar despercebida dos homens em todo lugar para onde vá.
Aquela descrição de Malika era tão perfeita que
mostrava o quanto a minha mãe estava atenta a todos da
família.
— Apesar de ter um batalhão de agentes secretos sob
a minha responsabilidade, não preciso me preocupar com
homens feitos. Já no caso de Malika é difícil ficar indiferente e
não querer ajudar — justifiquei-me com a verdade do que
sentia, sem ver motivo algum para esconder aquilo da minha
mãe. — Tenho à minha frente a pessoa ideal para fazer com
que Malika se interesse novamente pela vida. Apesar de
Kismet ser irmã dela e de se darem muito bem, acho que
Malika precisa de alguém com mais maturidade e experiência
de vida para essa missão. Por coincidência, o Ministério da
Mulher está sob a sua responsabilidade e nós dois sabemos
que lá tem tudo o que Malika gosta de fazer.
— Ou gostava. Não sabemos até que ponto ela
também perdeu o interesse nisso.
— Só saberemos se tentarmos.
— Tem razão, filho. Como eu já vinha pensando nisso,
é claro que vou falar com ela sobre o assunto, mas acho
melhor esperar por uma boa oportunidade. Não quero forçá-la
demais. Sei que Malika é uma mulher forte, ou não teria
sobrevivido à prisão, mas também me parece tão frágil às
vezes que deixa o meu coração de mãe apertadinho.
— Tenho certeza que saberá o melhor momento, mãe.
O importante é ajudarmos à Malika. Se não fizermos nada, ela
pode se isolar cada vez mais do convívio com as outras
pessoas e desperdiçar um talento natural de prestar apoio e
solidariedade aos menos favorecidos. O Ministério da Mulher
vai ser perfeito para ela.
Minha mãe voltou a me olhar com curiosidade.
— E como sabe que Malika tem esse talento natural de
ajudar os outros? Só por ter sido uma ativista em Sadiz? Bem
sabemos que nem todos erguem a bandeira dos direitos
humanos por serem caridosos ou bondosos. Há muito interesse
político por trás também.
— No caso dela, é uma bondade natural. Nota-se pelo
olhar.
Ela ficou me olhando pensativamente por longos
instantes, até concordar comigo.
— Também notei isso, o que me deixa mais surpresa
ainda com a sua percepção com relação à Malika. Talvez
estejam faltando missões secretas no serviço de inteligência.
A última frase me fez rir muito.
— Nunca pensei que veria a minha própria mãe me
mandando para missões secretas de alto risco. Quem diria.
Nós dois tínhamos um relacionamento muito bom, o
melhor possível entre mãe e filho, o que fez o nosso olhar ser
de cumplicidade.
— Isso já diz tudo do meu total estado de perplexidade
com este seu interesse por ela.
Parei de rir, voltando a ficar sério.
— Tem algo nela que me toca de um jeito que não sei
explicar. Pode ter a ver com o conhecimento que tenho dos
métodos de interrogatório existente nas prisões ou das torturas
que são aplicadas aos presos. Talvez seja a diferença absurda
que vejo entre a garota sorridente das fotos e a mulher triste
que chegou aqui em Tamrah. Muitas vezes o olhar dela reflete
o horror vivido na prisão, em vez da alegria e do idealismo que
vi antes. Sinto-me furioso com o que fizeram com ela, essa é a
verdade. Algo em mim quer ajudá-la a superar tudo.
A expressão da minha mãe se tornou compreensiva.
— Eu entendo perfeitamente o que você sente, pois é o
mesmo que sinto. Vamos tentar ajudar Malika de todas as
formas que pudermos, filho. Mas dependerá dela a superação
do passado e também da vontade de Allah.
Eu sabia daquilo e só esperava que ela conseguisse e
que Allah permitisse. Para quem tanto lutou pelos outros,
estava na hora de lutar por si mesma.

Semanas depois daquela conversa, minha mãe


confirmou comigo que havia conseguido convencer Malika a
visitar com ela o Ministério da Mulher. Aquilo era promissor e
agradeci à Allah pela intervenção a nosso favor.
Eu raramente via Malika, exceto quando ela decidia
comparecer a alguma das refeições em que todos da família
que moravam em Taj se reuniam. Com o passar dos dias, fui
notando o quanto ela estava mudando fisicamente, deixando
de ter o rosto encovado e o corpo excessivamente magro. A
fisionomia já não refletia dores físicas, mas os olhos
continuavam expressando dores psicológicas e morais.
Ela evitava o contato com os homens da família, com
quem raramente falava algo. De início, achei que me ignoraria
também, mas, para minha surpresa e alívio, Malika parecia se
sentir segura comigo, pois não repelia a minha aproximação.
Ao contrário. Se estivéssemos em uma sala cheia de homens e
mulheres, ela me procurava com o olhar e eu sentia que
relaxava quando me localizava entre eles. Nestas ocasiões,
quando nossos olhares se cruzavam, ela dava um sorriso tão
discreto e leve que mal se notava, mas que eu sentia.
Apesar de em Taj os homens e as mulheres poderem
circular livremente em quase todos os ambientes, sem
separação de ala masculina e feminina, culturalmente
acabávamos nos reunindo na sala em grupos distintos de
conversas. Ainda assim, sempre que a situação permitia, eu
me aproximava dela para saber como estava.
— Tem se adaptado bem em Taj? — perguntei em uma
das primeiras vezes que ela participou de um jantar em família
e pudemos conversar.
Malika estava sentada em um sofá ao lado de Sabirah,
que conversava animadamente com Kismet no sofá logo à
frente. Puxei uma das cadeiras para perto dela e me sentei,
observando os olhos amendoados me fixarem com surpresa.
Sem dúvida achava que eu não tinha interesse algum em saber
como estava, mas era exatamente o oposto que acontecia.
— Sim, estou gostando muito do palácio. É imponente,
mas também acolhedor.
— Minha mãe é a responsável por este ambiente
acolhedor. Se não fosse por ela, esta grandiosidade toda
tornaria nossa vida impessoal demais.
Malika usava um hijab branco que cobria os cabelos
castanhos. Apesar de esconder os fios, o tecido era fino e
transparente, deixando visível o comprimento da longa trança
que o prendia. Apenas ela e Kismet usavam o hijab na sala,
mostrando bem como a cultura de Sadiz ainda estava
entranhada nas duas.
— Está tomando os banhos de sol indicados pela
médica?
Ela sorriu. Era um sorriso discreto, mas ainda assim
era um sorriso.
— Rigorosamente todos os dias — respondeu com
bom humor. — Kismet e Layla não me dão folga disso.
— E estão certas. Faz parte do seu tratamento e não
deve ser tão difícil assim. Os jardins de Taj são magníficos.
— São lindos! Nunca vi igual — ela concordou,
conversando comigo sem colocar nenhum tipo de barreira, o
que encheu o meu peito de uma emoção indecifrável até
mesmo para mim. — Kismet me contou que Farah é a
responsável pela existência deles.
— A minha mãe é a responsável por tudo aqui. Não me
admiraria se tivesse participado até da construção da base.
Gosto de provocar o meu pai dizendo que ela é que é a
governante de Tamrah e não ele.
Malika riu, um riso baixo, que foi abafado pela mão na
boca, mas que chamou a atenção de Kismet, que me olhou
com gratidão.
— Quando eu estava em Londres, uma das coisas que
mais sentia falta era dos jardins de Taj. Criei o hábito de me
acordar cedo e correr por eles para me exercitar. Lá eu não
tinha isso.
Ela me olhou com interesse.
— Você morou muito tempo em Londres?
— Estudei lá durante anos, mas sempre voltava para
cá quando podia. Você já esteve lá?
— Não, nunca.
— Sei que Kismet estudou Gestão no Cairo. Você
também estudou fora?
Eu sabia que Malika havia terminado um curso de
Serviço Social em Sadiz. Aquela informação constava no
relatório de investigação que mandei fazer sobre a vida dela,
mas eu queria que ela conversasse mais comigo e fingi não
saber de nada.
— Não, eu me formei em Sadiz. Fiz o curso de Serviço
Social.
— Combina com você.
— Acha? — duvidou, como se eu estivesse sendo
apenas educado.
— Acho, não. Tenho certeza. Sinto que gosta
verdadeiramente de ajudar os outros. É generosa com as
pessoas, altruísta e muito humana. Tudo isso faz parte da sua
essência.
Ela me olhou em silêncio por um instante, analisando-
me.
— Você mal me conhece. Como pode ver tudo isso em
mim?
— Vejo isso em seus olhos e é essa a mensagem que
você me passa. Sou muito intuitivo e raramente erro ao fazer a
leitura de uma pessoa. — Fixei o meu olhar no dela. — Errei ao
decifrar você?
— Não, acertou. Mas me fez sentir muito ingênua, uma
sonhadora que imagina um mundo que não existe nem nunca
vai existir.
— Não penso assim. Se não houvesse pessoas como
você, não haveria bondade neste mundo, nem esperança,
muito menos igualdade para todos. Alguém precisa lutar pelos
motivos certos.
— Mesmo que essas pessoas que lutem sejam
mulheres?
— Eu entendo que somos todos iguais. Não existe
homem sem mulher, nem mulher sem homem. Allah fez os dois
para se completarem.
Ela me olhou com atenção.
— E você luta pelo quê?
— Apesar de ser um militar treinado para a guerra, luto
pela paz. Luto para defender pessoas como você, que se
dedicam a criar uma sociedade melhor e trabalham para isso.
Luto para que governantes como o meu pai e Saqr possam
construir um mundo com mais igualdade e justiça para o nosso
povo. Acho que lutamos pelos mesmos ideais, só que de
maneiras diferentes, cada um com as suas qualidades próprias.
Ela baixou a vista para as mãos cruzadas no colo,
pensativa, e notei as cicatrizes muito sutis das algemas nos
pulsos finos que a manga longa da abaya não escondia.
Malika ergueu os olhos de novo e os fixou em mim.
Primeiro me senti perdido neles, depois fiquei com a sensação
de que, enfim, havia me encontrado. Me encontrado nela!
Aquele sentimento era tão inusitado quanto surreal.
— Vocês são mesmo muito diferentes aqui em Tamrah
— ela disse, sem sequer imaginar o que estava acontecendo
comigo.
— Somos iguais à grande maioria do mundo.
Diferentes são as pessoas de Sadiz.
Ela deu um sorriso triste.
— Você tem razão. Os diferentes somos nós.
Eu já ia dizer que, fosse ela diferente ou não, eu
gostava do jeito que ela era, quando Sabirah nos interrompeu.
— Quem é diferente?
— É muito feio interromper a conversa dos outros —
repreendi Sabirah, que fez uma careta de desculpas.
— Eu sou mesmo terrível nisso! Falo as coisas sem
pensar antes.
Malika olhou para a minha irmã com compreensão.
— Não se culpe por ser espontânea. À medida que
amadurecer vai aprender a controlar a impulsividade.
Sabirah olhou para mim com um sorriso de satisfação.
— Ouviu isso, Yusuf? Malika me entende.
— Ela ainda não conhece você como todos nós
conhecemos — provoquei-a, rindo quando Sabirah cruzou os
braços no peito e bufou, como se ainda fosse uma menina.
Malika riu com a atitude dela e decidi que estava na
hora de ir.
— Agora vou deixar vocês em paz e voltar para onde
está o meu pai. — Cruzei o olhar com o de Malika. — Se
precisar de qualquer coisa, já sabe que pode me chamar.
Ela meneou a cabeça em uma afirmativa e me levantei,
indo para onde o meu pai e Saqr estavam. O momento da
minha conversa com Malika naquela noite havia passado, mas
eu pretendia aproveitar outras ocasiões para me aproximar
mais dela e ajudar na sua recuperação.
Capítulo 17
Malika
A pior parte da minha situação em Taj era ter todo
mundo me tratando como se eu fosse feita de porcelana. No
início, Kismet deixou de me contar muita coisa. Só fiquei
sabendo dos problemas sérios que aconteceram com ela nos
meus primeiros tempos no palácio quando tudo já estava
resolvido.
Eu não a culpava totalmente por ter agido daquela
maneira comigo, escondendo o que realmente estava
acontecendo, afinal, eu me encontrava em um mundo sombrio
de onde raramente saía. Às vezes, tinha a impressão de que
continuava presa dentro das quatro paredes úmidas, imundas e
opressivas da minha cela em Thueban. Por causa daquilo e
como era de se esperar, Kismet decidiu me proteger e manteve
silêncio sobre os seus problemas, inclusive sobre a tentativa de
homicídio da qual foi vítima.
Dos filhos de Farah, Majdan foi o último que conheci e
eu ainda não sabia o que pensar dele. Na minha cabeça,
deveria ser um homem tão horrível quanto Mubarak, mas não
foi essa a impressão que o antigo príncipe herdeiro de Tamrah
me passou quando o conheci pessoalmente. O primogênito do
poderoso Sheik Rashid Al Harbi me pareceu tão perdido no
mundo quanto eu mesma me sentia, olhando ao redor e
encontrando raros motivos para sorrir e ser feliz. Ainda assim, o
instinto fez com que me mantivesse afastada dele o máximo
que podia. Mentalmente, eu só conseguia vê-lo como um
grande amigo de Mubarak e aquilo me bloqueava.
A descoberta da gravidez de Kismet nas minhas
primeiras semanas em Taj foi uma das poucas coisas que
realmente me deixaram feliz. Eu quase não conseguia acreditar
que a irmã que criei como uma filha ia me dar um sobrinho.
Foi a insistência de Kismet e de Layla que me fizeram
aceitar o primeiro convite para participar da reunião de
mulheres no majlis52 da matriarca da família. Acabei indo mais
para satisfazer a minha irmã do que por vontade própria, mas
aquela foi uma das melhores decisões que tomei, apesar de ter
sido inicialmente forçada a fazer aquilo. Conviver mais
proximamente com Farah foi maravilhoso, não só por ela ser
uma mulher de personalidade forte e carismática, que
comandava os homens da família de maneira sutil, mas firme,
como também por ter sido a responsável por várias das
mudanças nas leis do país que favoreciam as mulheres. Ela
fazia em Tamrah o trabalho que a minha prima Fhatima quis
fazer em Sadiz e não conseguiu.
Sabedora das minhas atividades como ativista, Farah
conseguiu me trazer de volta à vida ao conversar comigo sobre
o trabalho que era realizado no Ministério da Mulher, com
conselhos localizados em cidades estratégicas para abranger
todo o país.
— Cada conselho é composto por um grupo de
mulheres locais, que passam por um processo seletivo para
trabalharem diretamente para o governo. Mensalmente,
recebemos relatórios de como estão sendo implementadas as
novas leis que resguardam os direitos das nossas mulheres —
ela me explicou certo dia. — Elas atuam como fiscais, mas
também como conselheiras, orientando a população feminina,
mas também os homens. Queremos que o processo de
mudança seja cultural e não radical.
— Não tem homens trabalhando no Ministério da
Mulher? — perguntei, interessada.
Farah sorriu e notei o brilho provocativo no olhar.
— E quem ia fazer o trabalho sujo para nós? — ela
brincou e acabei rindo também, sem perceber que era a minha
primeira risada genuína em semanas. — Temos homens sim,
mas estão subordinados ao conselho de mulheres. Se você
tiver interesse em conhecer mais sobre a hierarquia que montei
para o sistema de monitoramento das leis que resguardam os
nossos direitos, podemos ir um dia ao Ministério da Mulher.
Gostaria de conhecê-lo?
O entusiasmo e o medo se digladiaram dentro de mim
em uma guerra injusta, pois o medo adquirido na prisão ainda
era muito maior, mais forte e por demais assustador. Foi por
causa da minha luta que vivi horrores, que fui psicologicamente
massacrada e fisicamente torturada.
E se em Tamrah acontecesse a mesma coisa que em
Sadiz? E se um dia aquelas mulheres todas fossem
perseguidas, presas e massacradas por ousarem querer um
lugar ao sol? Será que o meu psicológico estava pronto para
lidar novamente com toda aquela situação?
— Aqui não é Sadiz, Malika. — A voz suave, mas firme,
de Farah entrou na minha mente.
Pisquei, voltando à realidade e olhando para ela, cuja
expressão era compreensiva. Foi quando percebi que havia
deixado transparecer o meu medo.
— Rashid é um homem justo, que não hesitou em fazer
as mudanças que pedi para as mulheres de Tamrah. Foi fácil?
Claro que não! Lutamos contra os religiosos que queriam
manter a circuncisão feminina. Lutamos contra os homens que
não queriam suas filhas estudando nem fazendo faculdade
depois, ou suas mulheres saindo de casa sem um guardião
masculino. Lutamos até contra as próprias mulheres, pois
muitas não aceitavam que outras usassem roupas mais leves,
coloridas, modernas e bonitas. Com o tempo, a maioria deixou
de usar a burca53 e o niqab54, preferindo apenas um modelo de
hijab mais fashion.
— Peço desculpas pelo que vou dizer agora, mas
quem garante que tudo permanecerá assim quando outro
governante assumir?
O olhar de Farah continuou confiante.
— Saqr seguirá os passos do pai. Isso se não ousar
mais ainda, porque é corajoso e está um passo à frente em
matéria de modernização do nosso país.
— E se fosse o Majdan, ainda seria assim?
Ela suspirou com tristeza, mas notei que havia
entendido até onde eu queria chegar.
— Você tem razão, minha querida. Se fosse o Majdan,
talvez houvesse uma mudança no futuro, caso ele fosse muito
pressionado a isso. Saqr tem pulso firme e ninguém sequer
ousaria sugerir uma mudança, mas reconheço que o mesmo
não aconteceria se fosse o Majdan que assumisse o país.
— Entende então o meu receio?
— Entendo, mas é um medo que não se justifica, já
que Saqr e Kismet serão melhores monarcas do que Rashid e
eu. Fora eles, ainda tem o Yusuf, que jamais permitirá que algo
que implementei nesse país seja revogado. — Naquele ponto
ela voltou a sorrir e foi um sorriso mais largo do que o anterior.
— Quando você conhecer melhor o meu filho Yusuf vai
entender o que estou dizendo. Se eu disser que o céu é verde,
ele é capaz de matar quem disser o contrário. Pode parecer
exagero, mas ele é assim comigo.
Baixei a vista para minhas mãos ao ouvir falar de
Yusuf. Eu agora raramente o via, exceto nos poucos jantares
em família que participei, durante os quais senti o olhar dele em
mim. Apesar daquilo, não era algo que me incomodasse. Ao
contrário, sentia-me bem em saber que ainda havia aquela
ligação entre nós dois.
— Gostaria de ir comigo conhecer o Ministério da
Mulher?
— Sim, Farah. Gostaria muito.
O Ministério da Mulher de Tamrah ficava em um prédio
monumental no centro financeiro de Jawhara. Aquele devia ser
o prédio mais alto e imponente da capital. Era ultramoderno,
refletindo sucesso e progresso em suas paredes de vidro. Logo
na entrada estava escrito Global Harbi55, que depois vim a
saber se tratar da sede das empresas da família.
— Pensei que o ministério ficasse em um local junto
com outros órgãos do governo.
— A única exigência que Rashid fez quando pedi que
criasse um ministério exclusivo para as mulheres, foi que ele
ficasse aqui bem debaixo das vistas dele, onde o sistema de
vigilância é maior e onde ninguém se atreveria a agir. Na
época, não sabíamos até que ponto haveria represálias às
mudanças que estávamos implementando. Eu também fiz
questão de ser um exemplo para as outras mulheres, ao dirigir
um carro e modernizar a minha maneira de vestir, por exemplo.
— Você foi muito corajosa, Farah. Se hoje em dia já é
difícil esta aceitação, imagino que décadas atrás tenha sido
muito pior.
— A minha posição como primeira esposa do
governante do país foi fundamental, assim como receber o
apoio dele. Tenho consciência de que não teria conseguido
nem metade disso se tivesse tentado fazer sozinha tudo o que
pretendia. O meu próprio pai seria contra.
Percorremos o andar inteiro do prédio que era
destinado ao ministério. Fiquei impressionada com a
organização das salas, com a distribuição dos trabalhos e com
os projetos em andamento. Conheci as funcionárias, conversei
com algumas delas e vi ali um verdadeiro sistema de apoio
para as mulheres do país.
Terminamos a visita na presidência do ministério, onde
Farah trabalhava. O espaço amplo havia sido decorado para ter
dois cômodos: uma sala com sofás confortáveis de um lado e o
escritório do outro.
— Gostaria de trabalhar aqui comigo, Malika? — ela
perguntou quando já estávamos sentadas lado a lado em um
sofá. — Estou precisando de uma assessora para ser o meu
braço direito no ministério.
Olhei para Farah, sem conseguir disfarçar a
perplexidade e duvidando dos meus ouvidos.
Devo ter ficado mesmo surda na prisão!
— Não entendi.
— Quer ser a minha assessora no Ministério da
Mulher?
— Eu, trabalhando aqui?
— Sim, você mesma! É perfeita para o cargo — ela
confirmou com a fisionomia muito serena de quem havia
pensado no assunto e tomado a decisão mais acertada. — É
formada em Serviço Social, já trabalhou ao lado de Fhatima Al
Kabeer, tem conhecimento das leis e experiência ao lidar com
outros órgãos de direitos humanos. A única diferença é que
aqui você não vai precisar lutar para conseguir que as
mulheres tenham direitos, porque isso elas já têm por lei. O que
precisamos fazer é fiscalizar se a lei está sendo aplicada, se
ela está sendo respeitada até nos confins de Tamrah e garantir
que as verbas cheguem ao destino certo, proporcionando
educação, trabalho e saúde para as nossas mulheres e
crianças. Temos vários programas de apoio em andamento,
mas existem muitos outros que eu gostaria de criar. Aceita a
minha proposta de trabalho?
Aquele era o meu sonho, mas me senti insegura de
uma maneira inexplicável. Qual era a experiência que eu tinha
diante da grandiosidade do projeto que Farah havia criado?
— Eu não me acho capaz de tudo isso. Sou recém-
formada e em Sadiz mal pude aplicar o que aprendi na
faculdade. Apesar de ter trabalhado com Fhatima, não
podíamos fazer quase nada lá. Na verdade, pouco fizemos
além de lutar contra o sistema imposto pelo governo.
Farah segurou as minhas mãos entre as dela.
— Você tem um potencial enorme, além de uma paixão
muito grande por tudo o que fazemos aqui. Eu vejo isso nos
seus olhos, mas também sinto no meu coração. São mulheres
como você que eu preciso à frente do ministério. Pense em
quantas mães, jovens e crianças poderá ajudar se permitir a si
mesma esta oportunidade — ela falou com a sua peculiar
sabedoria. — Claro que não vou forçar você a nada, Malika.
Esta é uma decisão sua, mas gostaria muito que pensasse com
carinho na possibilidade de vir trabalhar comigo. Promete que
vai pensar?
Respirei fundo, ciente de que ela tinha razão. Ajudar as
mulheres a terem mais oportunidades de vida era uma grande
paixão que eu tinha. Trabalhar ali seria a realização de um
sonho.
— Prometo que vou pensar.
— Ótimo! Não é um sim, mas também não é um não.
— Ela riu, satisfeita, brincando com a situação e acabei rindo
também. — Agora, vou pedir que a levem de volta para Taj.
Tenho uma reunião importante dentro de uma hora e não vou
prender você aqui comigo esse tempo todo.
Por Allah, vou voltar sozinha com o motorista?
Eu não sabia se estava preparada para ficar sozinha
em um carro com um homem, ainda que fosse com um
motorista de confiança da família.
— Se quiser posso esperar, Farah. Não quero
incomodar ninguém.
— Não é incômodo algum, minha querida. — Ela abriu
a bolsa que havia pousado sobre uma mesinha em frente e
pegou o celular. — A essa hora o Yusuf deve estar voltando
para casa e levará você.
O Yusuf?
O alívio que senti foi imediato.
— Ele está aqui? — perguntei bobamente, lembrando-
me depois que aquele era o prédio das empresas da família e
não seria estranho que ele estivesse por lá.
— Sim, ele tem uma empresa de tecnologia que fica
em um dos andares e dá expediente aqui hoje, o que é uma
coincidência maravilhosa. Fico mais tranquila sabendo que vai
voltar com ele, mas se você preferir voltar com o motorista é só
me dizer.
— Prefiro voltar com o Yusuf. Se ele não se incomodar,
claro!
— Ele não vai se incomodar. O que ele tem de durão
com os homens, tem de cavalheiro com as mulheres. Ainda
mais se for com uma mulher da família.
Fiquei emocionada ao ver que ela me colocava entre
as mulheres da família, mesmo sem eu ter nenhum parentesco
de sangue com os Al Harbi e sendo apenas a meia-irmã de
Kismet.
— Shukran56, Farah.
— Tekrami57, minha querida.
Recebi um abraço tão cheio de amor que eu poderia
chamar facilmente de um “abraço de mãe”. Farah era mais
amorosa e preocupada comigo do que a minha mãe jamais
havia sido. Kismet tinha razão quando dizia que ela era uma
mulher excepcional, que a tratava como a uma filha. Para
minha sorte, eu estava recebendo o mesmo tratamento.
— Você e Kismet são como filhas para mim — ela
afirmou como se tivesse lido os meus pensamentos, dando-me
um beijo na testa. — Agora preciso ligar para o meu filho antes
que ele vá embora.
Senti-me reconfortada com o carinho dela, mas
principalmente com o fato de voltar com Yusuf.
Espero que ele ainda esteja no prédio.
Tentando entender os meus próprios sentimentos,
cruzei as mãos em frente ao corpo e fiquei observando Farah
falar ao celular com o filho em uma conversa rápida, que
terminou com a confirmação dele em me levar.
— Pronto, está resolvido — ela disse com satisfação.
— Yusuf vai levar você.
Capítulo 18
Yusuf
Assim que entrei na sala da presidência do Ministério
da Mulher, a primeira coisa que notei foi o quanto Malika estava
linda usando uma abaya estampada em tons de verde. Além de
ser a cor que eu mais gostava, aos meus olhos realçava ainda
mais o encanto dela. Malika tinha um corpo sensual, que as
abayas moldavam de uma maneira tentadora.
O habitual hijab cobria seus cabelos e fiquei pensando
quando ela adotaria o costume de não o usar em todas as
ocasiões, como as mulheres de Tamrah faziam.
— Salaam Aleikum58 — cumprimentei-as, fechando a
porta atrás de mim.
— Alaikum As-Salaam59 — as duas responderam em
uníssono, mas a voz de Malika foi abafada pelo tom mais forte
da minha mãe, a quem fui dar um beijo no rosto.
Elas se levantaram do sofá onde estavam sentadas
assim que me aproximei.
— Foi mesmo obra de Allah que você estivesse aqui
hoje, filho. Assim deixo Malika aos seus cuidados.
— Fez bem em me chamar, mãe. — Beijei-a, virando-
me depois para Malika. — Então, o que achou do Ministério da
Mulher?
— Achei tudo maravilhoso e muito organizado. Quem
me dera que em Sadiz tivéssemos conseguido criar algo
semelhante.
— Talvez um dia. Ninguém sabe o real desejo de Allah.
— InshAllah!60 — ela respondeu com os olhos brilhando
de esperança.
— Podemos ir ou ainda tem algo que gostaria de
mostrar à Malika? — perguntei à minha mãe.
— Podem ir, filho. Acho que por hoje é o suficiente para
ela. Foi até bom eu ter esta reunião agora à tarde ou seria
capaz de me entusiasmar e prender Malika o dia inteiro comigo
aqui no ministério. — Ela riu de si mesma.
— Eu ia adorar, Farah — Malika disse prontamente, o
que mostrava o quanto realmente havia gostado da visita.
Ela vai aceitar o convite!
Tudo indicava que sim e também vi aquela certeza no
olhar da minha mãe quando nos despedimos. Era questão de
tempo.

Sabendo de antemão que Malika ia conhecer o


ministério naquele dia, optei por usar o SUV em vez do Bugatti.
O interior mais espaçoso faria com que ela se sentisse mais
confortável na minha presença do que se estivéssemos no
espaço mais reduzido do carro esportivo.
Eu não tinha pressa para voltar à Taj, por isso conduzi
lentamente pelas ruas de Jawhara.
— Senti que minha mãe gostou muito da sua visita.
Esse ministério é um sonho realizado para ela. Sempre fala
dele com muito orgulho, e com razão.
— Farah tem mesmo que se orgulhar do que fez.
Admiro muito o fato de ter conseguido implementar tantas
mudanças a favor das mulheres de Tamrah. Querendo ou não,
o país faz parte do mundo árabe, cujos costumes são quase os
mesmos para todos. Mas aqui vocês conseguiram equilibrar as
mudanças de um jeito que o moderno e o tradicional caminhem
juntos. É muito motivador isso.
Controlei o meu prazer ao ver o quanto ela estava
entusiasmada. Até o tom de voz era diferente. Mais forte, mais
vibrante. Aquela era a verdadeira Malika.
— Já pensou em trabalhar no ministério e nos ajudar a
melhorar ainda mais tudo isso? — perguntei, reforçando a
intenção daquela visita, mas fingindo não saber que o convite
já havia sido feito.
— Farah me convidou hoje para trabalhar com ela.
— Isso é ótimo. E você aceitou?
Olhei-a, querendo ver a expressão que havia no seu
rosto.
— Vou pensar, ainda não decidi.
Senti a tristeza na resposta dela, assim como a dúvida
e a insegurança. Percebi que se não a influenciasse
positivamente para tomar a decisão certa, Malika desistiria,
permanecendo presa aos traumas da prisão. Lembrei-me logo
do que o doutor Fadel disse sobre as consequências funestas
do estresse pós-traumático e decidi que não a deixaria se
afundar naquilo.
Já sei o que fazer!
— Posso mostrar uma coisa para você que talvez ajude
na sua decisão?
— Sim, pode.
Gostei da resposta imediata dela, pois mostrava o
quanto eu lhe inspirava confiança. Eu só esperava que fosse
por realmente gostar de mim e não por ter me rotulado como
um homem “confiável”, apenas porque fui o comandante do seu
resgate. Apesar de ainda não querer analisar a fundo os meus
sentimentos por Malika, de uma coisa eu tinha certeza: não
queria ser visto apenas como o homem que a resgatara.
Mudei a direção do SUV e fui para outro destino.
— Não vai demorar muito para chegarmos lá —
informei, ligando o som do carro para passar o tempo.
Eu costumava ouvir a minha seleção preferida de
músicas quando estava dirigindo sozinho e a primeira que
começou a tocar foi a que eu mais gostava. Aquela seleção de
músicas normalmente tocava em uma sequência aleatória e um
pressentimento estranho me dominou quando justamente Qsad
Einy61 começou a tocar, como se não fosse por acaso que ela
estivesse tocando no momento em que Malika estava no carro
comigo.
Estranhei aquela sensação e achei melhor mudar para
outra música. Aquela era romântica demais.
— Por que mudou? — Malika perguntou assim que
uma melodia mais animada soou dentro do carro.
— Achei que você não fosse gostar.
— Gosto muito. É uma das minhas preferidas.
Perplexo, olhei para ela.
— É mesmo?
— É, mas se você quiser pode mudar.
— Não. Podemos ouvir aquela.
Coloquei a música de volta, estranhando ainda mais a
coincidência.

“Estamos destinados a ficar juntos.


Mesmo que estejamos longe um do
outro
Com certeza, voltaremos.
Mesmo que haja uma longa distância
entre nós,
Você está diante dos meus olhos,
Em todos os lugares.”

Foi respirando profundamente que deixei a música


tocar enquanto percorríamos as ruas de Jawhara. Minutos
depois surgiu o prédio da Casa de Acolhimento Farah Al-Jaber.
Achei melhor não ligar para avisar a eles da minha
chegada, ciente de que tudo deveria funcionar bem na
instituição, independentemente de ter um membro da família
real em suas instalações. Mesmo confiando na competência e
seriedade dos funcionários que geriam os vários órgãos do
governo, era sempre bom testar a confiabilidade das pessoas.
Assim que parei o carro em frente ao portão, um dos
seguranças responsáveis me identificou de imediato, abrindo-o
para mim. Os carros da família real tinham placas especiais
com uma numeração própria que os distinguiam de quaisquer
outros veículos que circulavam no país.
Enquanto o portão se abria lentamente, o homem
desceu da guarita e postou-se ao lado dele, fazendo uma
continência à nossa passagem. Cumprimentei-o com um gesto
de mão e segui em frente, parando no local do estacionamento
reservado à família real.
À nossa frente erguia-se um amplo prédio em formato
quadrado, em cujo centro existia um pátio com jardins tão belos
quanto os de Taj. A minha própria mãe havia desenhado a
estrutura dele, assim como fez em nosso palácio.
Desliguei o som do carro e me virei para Malika.
— Esta é a Casa de Acolhimento Farah Al-Jaber, em
homenagem à minha mãe, que idealizou esta instituição, assim
como todas as outras que você vai encontrar em Tamrah e que
são fruto dos vários projetos do Ministério da Mulher —
informei, notando como ela observava tudo com grande
interesse. — Aqui recebemos mulheres vítimas dos mais
diversos tipos de violência, sejam dos pais, dos maridos, de
familiares ou de qualquer outra pessoa. Os únicos funcionários
homens são os seguranças da área externa. Todo o restante
são mulheres. Os seguranças até seriam dispensáveis, pois
este é um órgão do governo e ninguém ousaria invadir suas
dependências, fosse qual fosse o parentesco que tivesse com
alguma das mulheres acolhidas aqui dentro. Mas concordo que
manter um sistema de vigilância ajuda a que elas se sintam
mais seguras, principalmente quando chegam aqui e ainda
estão traumatizadas com tudo o que sofreram.
Malika baixou os olhos para as mãos cruzadas ao colo,
sem dúvida lembrando de si mesma. Ela, mais do que
ninguém, sabia o que era carregar traumas de violência
infligida por homens.
— É assim que funciona na maioria dos órgãos do
ministério — continuei a explicação, tentando agir com
naturalidade e controlar a raiva que sentia toda vez que
pensava no que ela havia sofrido. — Contratando só mulheres
para lidar com mulheres, damos também empregabilidade a
elas, mesmo sendo raro acolhermos uma que tenha formação
superior.
— Elas moram aqui?
— A grande maioria, sim. Algumas conseguem refazer
a vida fora da instituição, mas temos também quem está aqui
há anos. Vou apresentar você à diretora. Ela é a tia de Layla, a
enfermeira que tem cuidado de você. — Vi a surpresa na
fisionomia de Malika quando falei aquilo. — Gostaria de
conhecer todas elas, Malika?
— Sim, muito!
— Yalla!62
Descemos e entramos no prédio principal. Logo na
recepção, a diretora já nos aguardava, devidamente avisada
pelo segurança do portão.
— Masa al Khair!63 — ela nos cumprimentou com uma
reverência.
— Masa al nur64 — respondemos e a seguir fiz as
apresentações. — Malika, esta é Adiva Al Madini, a diretora da
casa de acolhimento. Madiva, trouxe a princesa Malika Al
Kabeer para conhecer as instalações da instituição.
A diretora abriu um sorriso caloroso para Malika.
— É uma honra conhecê-la, princesa. Seja bem-vinda
à nossa casa.
— Shukran, Adiva. O prazer é meu em conhecer
alguém que dirige uma instituição desse porte. É muita
responsabilidade.
— Sim, é verdade, principalmente por causa da
importância do trabalho que desenvolvemos aqui. Tudo graças
à nossa benfeitora, Farah Al-Jaber. — Ela olhou para mim em
gratidão ao citar a minha mãe.
— Malika acabou de vir do Ministério da Mulher, onde
já conheceu parte dos projetos que desenvolvemos. Achei que
a principal casa de acolhimento do país seria uma excelente
maneira de alargar a visão inicial que ela teve.
— Fez bem, alteza. — Ela sorriu, dirigindo-se depois à
Malika. — Acho que não há lugar melhor do que este para
servir de referência do trabalho que fazemos para ajudar
nossas mulheres.
Notei a expressão de expectativa no olhar de Malika e
agradeci à Allah por ter me inspirado a mostrar a casa de
acolhimento para ela.
Seguimos a diretora pelo corredor amplo que levava ao
interior do prédio. Eu já conhecia tudo ali dentro, o que permitiu
que eu focasse toda a minha atenção apenas nas reações de
Malika, à medida que ela ouvia Adiva explicando como tudo
funcionava. Pude, então, ver uma pequena centelha da
essência de Malika, de como ela era antes da prisão. O brilho
no olhar, o tom de voz, as perguntas muito objetivas que fazia e
que mostravam o conhecimento que tinha na área do serviço
social. Aquela era a verdadeira Malika e não a mulher de olhar
sofrido que lutava constantemente contra demônios interiores.
Notei a surpresa de Adiva ao perceber que estava
diante de uma mulher com competências na área, e não
apenas de uma princesa. Por várias vezes ela trocou olhares
admirados comigo, como a dizer que estava agradavelmente
surpreendida com os conhecimentos de Malika.
Em um determinado momento da visita, notei que
havíamos chegado no limite onde eu podia entrar. Mesmo
sendo um príncipe, tinha consciência de que não deveria seguir
adiante.
Dirigi-me às duas.
— Aguardarei na sala da minha mãe enquanto vocês
continuam a visita. — Virei-me para Malika, a fim de explicar a
minha decisão. — Mais à frente fica a área reservada às
mulheres acolhidas, onde homens não entram, exceto em
caráter de urgência. Continue a visita sem mim. Poderá
conhecer as médicas, enfermeiras, advogadas, psicólogas,
educadoras e todas as profissionais que trabalham para dar
assistência às mulheres.
— Não vai ser cansativo para você esperar? Podemos
ir embora, se quiser.
Sorri, tranquilizando-a.
— Estarei bem na sala da minha mãe. A melhor parte
da visita vai começar agora para você.
Ela sorriu de volta. Ainda era um sorriso que nem
chegava perto do antigo sorriso das fotos que vi, mas já era
alguma coisa.
Olhei significativamente para a diretora Adiva, que
interveio logo a seguir.
— Venha, princesa. Quero apresentá-la à nossa equipe
de trabalho e também que conheça as mulheres que estão
aqui. Algumas vivem com seus filhos pequenos e residem em
uma ala especial, onde as crianças podem brincar e estudar
juntas.
Com aquelas palavras, Adiva conseguiu prender
novamente a atenção de Malika, que foi sendo levada pelo
corredor sem nem sentir, deixando-me para trás. Fiquei
observando-a se afastar, tão formosa quanto uma das flores
dos jardins da minha mãe, o corpo esguio se destacando na
abaya que moldava suas formas, atualmente mais
arredondadas do que quando chegou em Taj.
Senti o coração acelerar de maneira inusitada, sem
entender ainda os sentimentos que ela despertava em mim.
Malika parou de andar antes de virar o corredor e olhou
para trás, cruzando o olhar com o meu. Perdi o fôlego diante do
meio sorriso discreto, mas feliz, que ela me deu. Havia gratidão
naquele olhar, além de carinho, apreço, admiração.
Ela desapareceu e engoli com dificuldade o travo na
garganta, subitamente emocionado com um simples olhar.
Capítulo 19
Yusuf
— Ela ainda continua tendo pesadelos. Eles vêm e
vão. Desconfio que algo funcione como um gatilho, fazendo
com que voltem — Layla informou, sentada na cadeira à frente
da minha mesa no meu escritório em Taj. — Atualmente, a
princesa Malika está na fase dos pesadelos e isso pode ser um
indício de que o estresse pós-traumático ainda não passou,
mesmo que ela não se queixe de nada comigo nem com a
princesa Kismet. Às vezes acorda chorando, outras com falta
de ar, mas consegue voltar a dormir logo depois.
Semanalmente, Layla me passava informações sobre a
recuperação de Malika, algo do qual eu não abria mão, mesmo
já tendo se passado seis meses desde a chegada dela em
Tamrah.
— Nas análises clínicas recentes que fez, já ficou
comprovado que vencemos a subnutrição. Ela já não tem mais
anemia e a capacidade respiratória foi totalmente recuperada,
assim como a deficiência de vitamina D. A alimentação
adequada, os suplementos e as caminhadas ao ar livre nos
horários em que o sol está favorável, foram fundamentais para
isso. A perda auditiva regrediu consideravelmente, mas ela
ainda apresenta dificuldades no ouvido direito, apesar de ser
em um nível muito baixo. O que pode acontecer é isso se
agravar com o avançar da idade, mas seria algo muito mais à
frente. Infelizmente, a exposição ao som alto ocorreu por um
período bastante longo, o suficiente para deixar estas sequelas
para os anos vindouros da meia-idade.
Trinquei os dentes ao ouvir Layla, tentando não me
frustrar tanto por não conseguir esmagar quem fez aquilo com
Malika.
— A médica disse durante quanto tempo ela ainda vai
ficar tomando o remédio para dormir?
— Até completar um ano de tratamento. As consultas
mensais passaram agora a ser bimestrais.
— Quero que me avise de imediato se houver alguma
alteração na recuperação dela. É melhor continuar poupando
Kismet desses detalhes, ainda mais agora que está nos últimos
meses de gravidez. Ela e o meu irmão já passaram por muita
tensão desde que se casaram. É uma benção de Allah que a
gestação dela esteja sendo saudável até agora.
Kismet quase havia sido assassinada meses atrás,
tudo por causa do desejo de poder de pessoas gananciosas.
Por obra de Allah, o Todo-Poderoso, Saqr conseguiu chegar a
tempo de salvar a esposa e a si mesmo.
Agora, com a cúpula da Coligação Árabe prestes a
acontecer em Tamrah, meu irmão estava preocupado com a
segurança dos líderes árabes que estariam presentes, com a
pauta das reuniões que aconteceriam e com todas as
negociações importantes que ele e o meu pai precisariam fazer.
Uma delas era forçar Sadiz a respeitar mais os direitos
humanos e libertar os presos políticos encarcerados nos
últimos meses sob a acusação de conspirarem contra
Suleiman.
Da minha parte, a minha maior preocupação era
justamente com Suleiman e Mubarak, que estariam presentes.
Eu os considerava uma ameaça à permanência de Malika em
Tamrah. A minha intuição me dizia que iam aproveitar a cúpula
para tentar vê-la e coagi-la de alguma maneira a voltar para
Sadiz com eles.
Não vou permitir isso, doa a quem doer!
— Acha que consegue descobrir que gatilho é esse
que faz com que os pesadelos de Malika voltem? — perguntei
à Layla. — Se descobrirmos, poderemos eliminar ou evitar que
ela entre em contato com eles.
A enfermeira sorriu com sabedoria.
— Já venho tentando descobrir isso, mas ainda não
consegui. A princesa Malika mantém tudo o que aconteceu na
prisão trancado a sete chaves dentro de si mesma. Não há
terapia que a faça falar.
— Não vamos perder a esperança. Para Allah nada é
impossível.
— Concordo, alteza.
— Se descobrir alguma pista do que causa esta reação
nela, por mínima que seja, me avise.
— Avisarei.
— Shukran, Layla. Agora, pode ir.
Assim que ela saiu, olhei pensativamente para a caneta
que tinha nas mãos, girando-a entre os dedos.
Lembrei-me do quanto Malika havia mudado desde que
começou a trabalhar no Ministério da Mulher como assessora
da minha mãe. Eu poderia dizer que, hoje, ela se assemelhava
muito mais à garota das fotos que vi quando a investiguei a
pedido de Saqr. Com uma personalidade forte e ideias firmes,
Malika era sempre bem-humorada, espirituosa e encantadora
quando estava comigo. A beleza suave foi surgindo cada vez
mais à medida que o corpo se recuperava das privações que
passou na prisão. O olhar não refletia mais tanta dor
psicológica quanto antes, transmitindo calor humano e
generosidade para com os outros. Havia um pequeno traço de
rebeldia que aflorava de vez em quando, mas que eu sentia
que ela refreava, como se a experiência que viveu tivesse lhe
ensinado a pensar bastante antes de se rebelar.
Eram pequenas coisas, detalhes muito ínfimos dela,
mas que eu notava como se fosse algo gritante. Tudo nela me
interessava, atraía e encantava.
Por Allah! Acho que estou me apaixonando seriamente
por Malika!
Eu só não entendia o porquê de me sentir assim tão
ligado, uma vez que Malika me tratava como um amigo em
quem confiasse totalmente, como um irmão muito querido. E
nada mais.
Com exceção do dia do resgate, em que a peguei ao
colo para levar ao helicóptero, nunca mais houve nenhum
contato físico entre nós dois. Conversávamos em Taj,
voltávamos juntos do Ministério da Mulher nas terças-feiras,
nos encontrávamos nos jardins da Ala do Falcão para caminhar
durante os banhos de sol dela, trocávamos ideias sobre os
projetos que ela estava acompanhando, ríamos, nos
divertíamos, mas não havia nada mais além daquilo. Tudo era
amizade. Uma amizade que eu prezava muito, mas que
também me deixava frustrado, ainda que não soubesse o
porquê.
Afinal, o que eu podia esperar de uma mulher que fugia
do contato com os homens? Com exceção de mim, Malika não
tomava a iniciativa de falar com nenhum outro homem, fosse o
meu pai, fosse o Saqr, ou o meu assistente Adnan ou quem
mais fosse.
Dias depois de aceitar o convite para trabalhar no
ministério, uma das primeiras coisas que ela pediu à minha
mãe foi para aprender a dirigir um carro. Diferentemente de
Sadiz, onde as mulheres eram proibidas de conduzir um
veículo, em Tamrah aquilo era permitido e Malika usufruiu logo
daquele direito.
Quando a minha mãe veio me contar, fiquei surpreso,
mas também satisfeito. Afinal, aquela era uma atitude esperada
da antiga Malika, uma ativista que lutava pelos direitos das
mulheres. Significava também que ela estava voltando a ser a
mesma de antes da prisão.
— Pode deixar que vou providenciar tudo —
tranquilizei-a. — Falarei com Malika para marcarmos as
primeiras aulas de condução.
— Ela me pediu também um carro, dizendo que
pagaria com o salário que vai ganhar. Neguei, é claro! Disse
logo que tínhamos uma frota de carros enferrujando nas
garagens e que ia lhe dar um de presente.
Não consegui deixar de rir ao ouvir aquilo.
— Fez bem, mãe. Ela tem todo o direito de ser
independente, mas ainda é muito cedo para querer comprar o
próprio carro.
— Eu desconfio que não é só uma questão de
independência, mas de ir para o trabalho sozinha com o
motorista nos dias em que não vou ao ministério com ela.
A minha mãe me surpreendeu ao dizer aquilo,
deixando-me imediatamente tenso.
— Ele andou faltando ao respeito com Malika? — rugi
seriamente.
— Não, filho. Não tem nada a ver com isso. Acho que é
ela que não se sente à vontade na presença de homens, ainda
mais estando sozinha. No segundo dia em que Malika foi
sozinha com ele, já estava me pedindo para aprender a dirigir.
Inspirei fundo para me acalmar, sem saber como lidar
com aquela informação. Tudo o que dizia respeito à Malika me
tocava profundamente e imaginar o motivo dos traumas dela
era algo que me enfurecia demais.
— Tem toda a lógica e é compreensível essa reação
dela. Eu devia ter pensado nisso antes — recriminei-me pela
minha falta de sensibilidade. — Vou resolver esse assunto hoje
mesmo.
Naquele mesmo dia, designei uma das funcionárias do
serviço de inteligência para ser a motorista de Malika até que
ela aprendesse a conduzir um carro. Apesar de Tamrah ter um
nível baixíssimo de criminalidade, eu já havia montado um
esquema de segurança para Malika. Além do motorista, que
era um segurança treinado, dois outros seguranças seguiriam
atrás em um carro de apoio. Agora, com a substituição do
motorista pela funcionária, ficariam apenas os dois seguranças
na escolta, mas já era suficiente.
As aulas de condução também seriam com uma
mulher. Quando contei para Malika sobre as providências que
havia tomado, ela nem conseguiu disfarçar o alívio. Só então
tive a certeza de que a minha mãe tinha razão.
— Shukran, Yusuf! Que Allah o abençoe sempre.
— E a você também, Malika — desejei-lhe o mesmo,
continuando a caminhar com ela pelos jardins. — Quando já
estiver dirigindo, seguirá sozinha no seu carro, mas a escolta
vai acompanhá-la para onde for.
— Não me importo com isso. Estou entusiasmada para
aprender a dirigir e andar no meu próprio carro.
— Terá tudo isso, mas com uma condição — falei em
um tom propositadamente sério.
Bem mais baixa do que eu, Malika ergueu a cabeça
para me olhar, interessada em saber o que era. Eu poderia
muito bem fazer alguma exigência descabida, mas a expressão
dela era de inteira confiança em mim, como se não duvidasse
que eu pediria algo justo.
— E qual é a condição?
— Antes de sair dirigindo sozinha por aí, você vai ter de
me levar para um passeio pela cidade. E garanto que sou um
passageiro muito exigente.
Ela soltou uma risada ao saber da minha exigência, os
olhos da cor do óleo de Oud65 brilhando de felicidade.
— Prometo que vou aprender tudo direitinho e dirigir
muito bem.
Capítulo 20
Malika
Prisão de Thueban — Sadiz

Assim que as duas militares que faziam a minha


guarda na prisão de Thueban tiraram o capuz da minha
cabeça, preparei-me para o pior. Era sempre assim que
acontecia quando eu era levada para fora da cela. Nunca sabia
o que ia encontrar e já me preparava psicologicamente para
aquele ser o meu último dia de vida.
Estremeci ao ver que estava na sala de tortura sexual.
As minhas lembranças daquele lugar eram aterrorizantes,
quando Hessa quase havia sido estuprada na minha frente.
Comecei a orar para que nada parecido se repetisse, até
perceber a ingenuidade das minhas orações. Afinal, o que
esperar de uma sala de tortura sexual? Se não fosse a Hessa,
seria eu, mas certamente que algo horrendo aconteceria.
Como da vez anterior, a porta do outro lado se abriu e
os três homens usando balaclavas pretas entraram com uma
mulher encapuzada. Do rosto mascarado deles, apenas os
olhos eram visíveis, o que tornava a situação ainda mais
apavorante.
Estremeci, triste. Eu já não tinha dúvida alguma do que
ia acontecer, e, pelo jeito, nem a Hessa tinha. Quando o capuz
dela foi levantado, notei a expressão de fatalismo no seu rosto,
uma expressão mais desesperadora do que se ela estivesse
gritando e chorando apavorada. Era como se já soubesse o
que ia acontecer e se resignasse com algo que não poderia
evitar.
Olhei ao meu redor, à procura da mesa com o bloco de
papel e a caneta, mas não estavam ali. Apesar das várias
tentativas que eles fizeram para me forçar a incriminar o meu
pai, eu havia me negado a fazer aquilo todas as vezes. A
confissão que fui obrigada a escrever quando ameaçaram
estuprar Hessa, foi, na verdade, a única que fiz desde que
havia sido levada para aquele inferno chamado Thueban.
Sem entender a ausência do material para uma nova
carta de confissão, virei-me para as duas guardas atrás de
mim.
— O que querem dessa vez?
Não havia necessidade de fingir que aquilo não era
uma maneira de me forçarem a fazer alguma coisa, muito
menos de acreditar que nada de mal aconteceria com a Hessa
se eu me negasse. Para evitar o sofrimento desnecessário
dela, eu preferia saber logo do que se tratava.
As duas militares permaneceram em silêncio, sem
expressão alguma no rosto, olhando fixamente para a frente,
como se até elas se resignassem com o que ia acontecer.
Desesperei-me com aquela atitude delas, mas,
principalmente, com a atitude de Hessa, que foi despida e
colocada sobre a mesa sem soltar nenhum grito, choro ou
lágrimas. Também não olhou em momento algum para mim,
ignorando a minha presença, como se eu nem estivesse na
sala.
— Parem! — gritei, mas ninguém pareceu me ouvir,
muito menos ela.
Os gritos, choros e lágrimas que ressoaram na lúgubre
sala de tortura sexual foram de Hessa, mas também meus, ao
ser obrigada a assistir o ato mais hediondo da minha vida.
Apenas um dos homens estuprou a minha amiga, que gritou de
dor do início ao fim, ficando com os olhos fixos no teto quando
tudo acabou. Hessa parecia ausente, enquanto eu me
dilacerava por dentro e me sentia tão estuprada quanto ela.
O estuprador emitiu rosnados animalescos quando
terminou, virando-se de frente para mim para que o visse nu,
com a intenção de me chocar ainda mais. E chocou. O nojo
subiu pela minha garganta e vomitei tudo o que tinha no
estômago.
Ele gargalhou, deixando-me paralisada. Olhei para o
rosto mascarado que escondia sua identidade, mas aquela
risada e os olhos irônicos o denunciaram para mim.
O estuprador de Hessa era Hisham Al Amari!
Fiquei duplamente chocada. Senti que ele percebeu
que o reconheci, mas pouco se importou. Talvez tivesse feito
até de propósito, sendo aquela uma outra maneira de me
torturar. Ele possuía a mente doentia de um carrasco e sentia
verdadeiro prazer com as torturas que infligia aos outros.
Hisham se arrumou na minha frente, fechou a calça
preta militar e se virou de costas para mim, voltando para a
mesa onde Hessa estava, estoica. Ela foi desamarrada e se
sentou na mesa parecendo um robô, sem emoção alguma
transparecendo no rosto, sem expressar o que estava sentindo.
O diabo em forma de gente pegou uma faca
pontiaguda em uma outra mesa e se aproximou dela. Prendi a
respiração, sem acreditar que ele ia ferir ou matar a minha
amiga.
“Não, Allah! Não permita!”
Hisham não fez nada mais além de colocar
tranquilamente a faca ao lado de Hessa, bem próxima da mão
dela. Depois foi para perto dos outros dois homens mascarados
e cruzou os braços no peito.
Confusa, só entendi quais eram as intenções dele
quando Hessa olhou para a faca e a segurou com a mão firme,
aproximando-a da própria garganta.
— Não, Hessa! Por favor, não faça isso! — gritei,
desesperada.
Tentei me soltar da corrente que estava presa às
minhas algemas e que uma das guardas segurava com
firmeza, mas não consegui dar mais do que um passo à frente.
— Por Allah, soltem-me! — implorei, voltando a olhar
para Hessa. — Não faça isso, por favor!
Hessa olhou para mim pela primeira vez. Havia uma
firme decisão naquele olhar, além de amizade e carinho.
— Allahu Akbar66 — murmurou.
Fechei os olhos no momento em que ela fez o gesto
que tiraria a própria vida. Eu jamais conseguiria olhar aquilo.
“Recebe-a em Teus braços misericordiosos, Allah. Que
seja perdoada e jamais punida pelo que fez.”

Foi com lágrimas caindo dos olhos que me acordei do


pesadelo e foi com o coração destroçado que me levantei,
acendendo a luz do abajur e me ajoelhando no tapete de
orações.
Perdoe-me, minha amiga, por não ter conseguido
salvar você. Tende piedade de nós, misericordioso Allah.
Mesmo sabendo que o destino de cada um era Allah
quem decidia, o sentimento de culpa me corroía por dentro
toda vez que me lembrava de Hessa. Na verdade, não apenas
dela, mas de Hussam e Badra também.
Que triste sina a deles de terem sido meus amigos e de
estarem naquele carro. Foram caçados e presos por estarem
junto comigo, uma princesa de Sadiz. Sempre foi a mim que a
guarda real perseguia implacavelmente, arriscando-se até
dentro do território de Qasara.
Foi naquela posição de oração ao lado da cama que
Layla me encontrou minutos depois, provavelmente alertada
pela luz acesa.
— Princesa, sente-se bem?
Ajoelhou-se ao meu lado, tocando-me no ombro.
— Sim.
— Já está quase amanhecendo. Venha, deite-se um
pouco na cama para descansar.
Deixei-me ser levada e me deitei novamente. Nos
minutos seguintes, Layla cuidou de mim e voltei a dormir
pesadamente, sem sonhos aterrorizantes.
Mas só Allah sabia até quando.
Capítulo 21
Yusuf
Apesar de ter pedido à Layla que tentasse descobrir
qual era o gatilho que fazia com que os pesadelos de Malika
voltassem, acabei por ser eu mesmo a desconfiar do que seria.
Decifrar tudo o que havia acontecido com ela se tornou
quase uma obsessão para mim. Passei a registrar qualquer
indício, por mínimo que fosse. Nos dias que antecederam à
cúpula da Coligação Árabe, notei que Malika estava
particularmente tensa, com a expressão mais carregada e o
olhar refletindo aquela antiga angústia de quando chegou em
Tamrah.
De início, achei que fosse uma reação normal à vinda
de Suleiman e de Mubarak à Jawhara para as reuniões da
cúpula. Afinal, até Kismet estava mais séria do que o normal
desde que Saqr havia lhe contado que o tio e o primo estariam
tão próximo delas.
O meu irmão também mantinha o semblante fechado
todas as vezes que falava da comitiva de Sadiz.
— Vamos reforçar a vigilância dentro de Taj para que
ninguém tenha acesso às nossas dependências,
principalmente à minha — Saqr disse em uma conversa que
tivemos com o nosso pai no majlis, dias antes do evento. —
Quero Kismet e Malika bem protegidas durante o tempo em
que Suleiman e Mubarak estiverem na cidade.
— Eu já tinha pensado nisso — informei, recebendo um
olhar de aprovação dele e do meu pai. — Montei um esquema
especial de vigilância que vai entrar em ação na véspera da
chegada das comitivas. Escolhi pessoalmente a equipe que vai
atuar na Ala do Falcão e adjacências. As salas de Taj onde vão
acontecer as reuniões e as conferências da cúpula vão ficar
dentro de um cordão de isolamento. Nenhum participante vai
conseguir sair dele, garanto.
Eu não ia dizer a eles que a minha preocupação com
Malika foi o que me levou a antecipar aquele esquema de
segurança, mas foi exatamente o que aconteceu. Mesmo
sabendo que ela estaria protegida dentro da Ala do Falcão na
companhia de Kismet, quis me assegurar de que seria
realmente impossível que alguém chegasse até ela.
— Perfeito! — Saqr olhou para o meu pai. — Agora só
precisamos nos preparar para mostrar à Suleiman quem é que
tem o poder dentro da coligação.
Naquele ano, apenas Saqr e eu estaríamos com o
nosso pai, já que Majdan se encontrava em Nova York. Aquela
seria a primeira vez que o meu irmão mais velho não estaria
presente em um evento tão importante quanto era a Cúpula da
Coligação Árabe. Antes, ele nunca havia faltado, marcando
presença ao lado do meu pai, de Saqr e de mim. Só que
Majdan havia decidido fazer um tratamento de desintoxicação
contra a dependência química que já o acompanhava há anos.
Ele estava internado em uma clínica privada de renome,
conhecida por ter os melhores profissionais e uma alta taxa de
sucesso na recuperação dos pacientes, na sua totalidade
composto por ricos e famosos. Todos os dias orávamos à Allah
para que Majdan fosse um dos que saíam curados e não
precisavam mais voltar.
Foi no mesmo dia da solenidade de abertura da cúpula
que Suleiman tocou no nome de Malika e de Kismet. O homem
devia estar mesmo ansioso para tratar do assunto, uma vez
que nem teve o bom senso de aguardar a reunião agendada
que teria com o meu pai durante o evento.
Não era fácil ficar frente a frente com dois homens
execráveis e não poder meter um bom soco na cara deles.
Apesar de eu desprezar Suleiman por tiranizar o povo de
Sadiz, era o Mubarak quem eu realmente odiava. Ele foi o
responsável por destruir a vida do meu irmão Majdan, que se
tornou um dependente químico por influência dele.
Era preciso muito autocontrole para se cumprimentar
um homem odiável como aquele com um aperto de mãos.
Quando ambos se aproximaram de nós três no final da
solenidade de abertura, não tive dúvida alguma de que falariam
de Malika e de Kismet. E não errei.
— Como está a minha sobrinha Kismet? Na verdade,
como estão as minhas duas sobrinhas? Apesar de ter
entendido tudo sobre a fuga de Malika de Londres para ficar
aqui com Kismet, o Sheik Rashid sabe da minha consternação
ao tomar conhecimento do acontecido. Foi algo que pegou a
todos da família de surpresa. Uma triste surpresa.
A minha raiva foi tanta que enfiei as mãos nos bolsos
do thobe para esconder os punhos cerrados. Pedi à Allah que
me mantivesse calmo e controlado diante de tanta
dissimulação. O meu único consolo era saber que Saqr
também estava sentindo a mesma dificuldade. Vi a hora de ele
tomar a dianteira e fazer o que eu tanto queria, que era socar
bastante os dois.
Em vários momentos da conversa, foi o meu pai que
interveio diplomaticamente, inclusive afirmando que Malika e
Kismet estavam fora de Tamrah, em uma viagem a passeio
pelo mediterrâneo.
Observei-os com atenção, estranhando o silêncio de
Mubarak. Em momento algum ele se pronunciou,
permanecendo calado ao lado pai, o único a falar e a insistir em
ver as duas. Aquele era um comportamento muito incomum do
príncipe herdeiro de Sadiz, normalmente falador e arrogante,
agindo sempre como se fosse o dono do mundo.
Intrigado, analisei-o com discrição, notando a postura
tensa dele, que desmentia a aparente concordância com tudo o
que o pai dizia. Fiquei com a impressão de que ele estava se
controlando tanto quanto eu para manter a diplomacia, quando
na verdade queria mesmo era agir com violência e exigir... o
quê?
Inspirei fundo, tentando entender o que a minha
intuição estava querendo me dizer.
Tanto Suleiman quanto Mubarak sabiam que Kismet
estava totalmente fora do alcance deles. Ela não era mais a
sobrinha querida nem a filha mais amada. Era agora a esposa
de Saqr Al Harbi, um homem com mais poder do que qualquer
governante que Sadiz viesse a ter. Restava a Malika, o que
significava que o verdadeiro interesse deles estava nela e não
em Kismet. Malika era a única que ainda poderiam reivindicar
com base no direito de homens da família.
A percepção daquilo me deixou mais preocupado do
que estive nos últimos dias, ainda mais com aquela tensão toda
vinda de Mubarak.
— Precisamos conversar sobre Malika, meu caro
Rashid — Suleiman disse naquele exato momento, desviando
a minha atenção do filho para o pai. — Recebi uma proposta de
casamento para ela e gostaria de dar andamento ao acordo
com o pretendente. Ele está aguardando ansioso por isso.
Como é que é?! Mas o que este kalb67 está dizendo?
— Casamento para Malika? — perguntei antes mesmo
que o meu pai e Saqr se recuperassem da surpresa. — Com
quem?
O filho da mãe sorriu com evidente satisfação e só
aumentou a minha vontade de lhe quebrar os dentes.
— Com o Sheik Farid Al Badawi de Omarih68.
Só de imaginar Malika nas mãos de um sheik que tinha
idade para ser avô dela, a raiva entrou forte no meu sangue e
se espalhou pelo meu corpo como pólvora acesa.
Não, não era só com Al Badawi que eu não conseguia
imaginar Malika, mas com qualquer outro homem. Ela mal
conseguia relaxar na presença do meu próprio pai e dos meus
irmãos, quanto mais se submeter a um casamento arranjado
com um desconhecido, que teria todos os direitos sobre ela.
Jamais vou permitir isso!
A decisão que tomei foi instantânea. Era primordial tirar
Malika do alcance deles.
— Ela não pode se casar com ele se já é minha noiva.
Mal terminei de falar, um silêncio tenso se fez entre
nós. A primeira coisa que notei foi a rigidez de Mubarak, que
parecia estar em estado de choque. Por sua vez, Suleiman
emudeceu. Já o meu pai e Saqr disfarçaram bem a
perplexidade com o meu súbito noivado.
— Mas eu não sabia disso! — Suleiman conseguiu
falar em tom indignado. — Ninguém me comunicou nada sobre
esse noivado.
— É recente — informei, com a certeza de que aquela
decisão foi a melhor que tomei na minha vida. — Nós dois só
decidimos contar há alguns dias para os meus pais e para Saqr
e Kismet. Com a cúpula prestes a acontecer e tantas
providências ainda para serem tomadas, acabamos por não ter
tempo de comunicar o nosso noivado para a família de Sadiz.
— Espero que entenda, Suleiman — o meu pai disse,
apoiando-me. — Este era, inclusive, um dos assuntos que eu ia
tratar em particular com você ao longo da cúpula.
Agradeci mentalmente pela presença de espírito dele
ao contornar a situação, porque o meu desejo mesmo era de
mandar Suleiman e Mubarak para o inferno caso
questionassem alguma coisa do meu noivado.
— Claro que entendo e fico muito satisfeito com este
noivado. Terei duas sobrinhas, e não apenas uma, reforçando a
aliança entre Sadiz e Tamrah. Eu não poderia estar mais feliz e
Abdullah também ficará.
Foi naquele momento que cruzei o olhar com o de
Mubarak. Ao contrário do pai, que se dizia satisfeito com o
noivado, ele sequer conseguia disfarçar a raiva e fiquei
imediatamente desconfiado.
Que envolvimento ele tem no que aconteceu com
Malika na prisão?
Se tivesse algum, existia a possibilidade de ele ter sido
a causa do retorno dos pesadelos de Malika. Foi pensando
naquilo que o encarei de maneira incisiva, deixando bem claro
que ela estava, definitivamente, fora do alcance de qualquer
um deles.
Diferentemente do filho, Suleiman não cabia em si de
tanta satisfação, cobrindo o meu pai de elogios e bajulação. O
rumo da conversa mudou para as negociações e acordos que
seriam tratados durante a cúpula, e a solenidade continuou.
Minutos depois, Saqr encontrou um jeito de conversar a
sós comigo.
— Desde quando vocês estão noivos?
Sentindo-me muito consciente e tranquilo com a minha
decisão, consultei o relógio no meu pulso.
— Desde há exatamente vinte e dois minutos —
respondi, imperturbável.
Saqr meneou a cabeça em um gesto de incredulidade.
— E se ele exigir que o casamento seja realizado, você
vai assumir?
Se ela quiser, eu assumo!
Eu tinha total noção de que já estava suficientemente
apaixonado por Malika para que um casamento entre nós dois
fosse algo que eu desejasse. Tínhamos uma cumplicidade
única, uma ligação especial que nunca tive com outra mulher,
além de me sentir muito atraído por ela.
— Se for preciso, assumirei. Podemos fingir um
noivado durante o tempo que for necessário para Suleiman
esquecer que a sobrinha existe. Se ele insistir no casamento,
estará tudo nas mãos de Malika. Ela sempre poderá dizer que
mudou de ideia. O importante é Suleiman perder o poder de
ficar arranjando maridos para ela agora ou de atrair a sobrinha
para Sadiz e dar um fim de vez nela, antes desse casamento
com Al Badawi se realizar.
Ele não pareceu convencido de que aquela era a
melhor solução para o caso. O olhar do meu irmão era de
preocupação.
— Pelo que Kismet me falou, Malika não quer saber de
homens ou de casamento. Ainda está cheia de traumas do que
aconteceu. Até hoje nunca falou nada sobre a prisão e a última
coisa que quer é um marido. Acredito que vá se negar ao
casamento com você.
Eu não esperava nada por aquilo. Se Malika
confidenciou com a irmã que não queria saber de homens,
muito menos de casamento, era porque realmente não queria,
nem comigo.
O que faço agora? Desistir não é uma opção.
— Se ela se negar e Suleiman souber, ele vai fazer
pressão novamente. Conversarei com Malika. Ela é livre para
fazer suas escolhas.
— E se ela aceitar? Você terá uma esposa que não
poderá tocar, que não lhe dará filhos e que dificilmente vai
gostar que tenha uma segunda esposa. É uma situação
inconcebível.
Tentei não parecer tão frustrado quanto realmente me
sentia.
— Vamos com calma. Primeiro vou conversar com ela
— tranquilizei-o, pois sabia que ele também estava preocupado
com a reação de Kismet ao saber que assumi um noivado
súbito com a irmã dela. — Eu só não podia deixar que
Suleiman a levasse. Homens como ele só tenho vontade de
esmagar.
— Pelo menos esmagamos o Adib.
Ouvir aquilo me fez sorrir.
— Ele foi só o primeiro. A lista daquela família é
grande.
— Suleiman que se cuide, pois a qualquer momento
poderá ser o próximo a ser esmagado.
E o Mubarak também!
Capítulo 22
Yusuf
— Tem preferência por alguma pedra em especial? —
Adnan perguntou durante o intervalo da reunião da cúpula.
— Não, peça apenas que me enviem o mostruário de
tudo o que tiverem. Eu mesmo quero escolher as alianças e o
anel de noivado, mas preciso que me entreguem ainda hoje.
— Providenciarei isso, alteza.
— Quero sigilo absoluto sobre o assunto. Ninguém
pode saber.
— Sim, senhor. Avisarei assim que o mostruário
exclusivo estiver disponível.
Quando ele se retirou, fui pegar um café, analisando o
grande salão lotado de pessoas. Consultei o celular para
confirmar se havia alguma mensagem dos agentes
encarregados do sistema de segurança. Não havia nada, o que
significava que tudo estava tranquilo.
Eu estava tomando um gole do meu qahua69 quando
notei Mubarak me observando do outro lado do salão. Apesar
de o pai dele estar em uma conversa animada com alguns
governantes, o filho não parecia estar concentrado no assunto,
mas em mim.
Aquela não era a primeira vez que eu sentia o olhar de
Mubarak me acompanhando e estranhei o súbito interesse
dele. Nunca conversamos muito ou nos demos bem no
passado, quando ele era presença constante ao lado de
Majdan, contudo, também nunca nos estranhamos um com o
outro, o que tornava muito incomum aquela atitude dele.
Registrei o fato, mas também não lhe dei demasiada
importância. Saqr se aproximou de mim com um café nas mãos
e acabei me esquecendo de Mubarak ao conversar com o meu
irmão.
Com o rosto muito sério, Saqr me deu um alerta sobre
o noivado com Malika.
— Pense bem no que vai fazer. Malika é a irmã querida
de Kismet e minha esposa vai ficar furiosa se souber que você
andou magoando a irmã dela. Lógico que vou ficar também.
— Você sabe que eu jamais faria isso!
— Eu sei, mas Kismet não sabe.
— Então lhe diga.
— Direi, claro. Mas isso não me impede de pensar bem
sobre o assunto e achar que você pode não estar totalmente
preparado para o que vem pela frente com este noivado. Já
cogitou a possibilidade de Malika realmente ter sido estuprada
na prisão? Está pronto para lidar com isso? — ele perguntou
com um olhar sério, deixando-me igualmente sério. —
Sabemos que é algo que pode ter acontecido. Se você se
envolver emocionalmente com ela, terá de aceitar que pode
não ser mais virgem. Não vamos ser hipócritas. Sabemos que
nem todo homem árabe aceita isso. Malika vai precisar de
ajuda e não de um homem que não saiba lidar com a situação
e transforme a vida dos dois em um inferno.
— Apesar de ser um homem árabe, não dou tanto valor
assim à virgindade quanto você pensa, ainda mais quando a
mulher é especial. Você sabe muito bem que existem virgens
mais experientes em preliminares do que nós dois juntos. Não
vai ser um hímen que vai dar valor à mulher que eu escolher
para ser minha esposa.
— Ainda bem que você pensa assim, porque a
probabilidade é grande de Malika ter sofrido abuso sexual na
prisão.
Contraí a mandíbula ao ouvir aquilo.
— Isso é o que mais me preocupa. Quero saber o que
aconteceu com ela na prisão para ter certeza de que Allah a
livrou de um ato hediondo desses. Só assim poderei entender a
gravidade do trauma que ela tem. Sinto que só poderei ajudar
Malika da melhor maneira se souber tudo o que fizeram com
ela lá dentro.
Saqr meneou a cabeça em dúvida.
— Ela nunca desabafou nada com Kismet nem com
Layla. Mesmo que tenha contado para a doutora Bushra, nunca
saberemos o que aconteceu. Acho difícil que você consiga esta
confirmação.
— Qualquer dia ainda pergunto a ela — falei mais para
mim mesmo do que para Saqr.
Recebi uma palmada de apoio nas costas.
— Foi um gesto muito nobre o seu de anunciar um
noivado que nunca existiu apenas para proteger Malika. Estou
muito orgulhoso de você, meu irmão.
A única coisa que eu sabia era que faria muito mais por
ela.
— Shukran, Saqr.

Só tive oportunidade de conversar com Malika no dia


seguinte, antes do início das reuniões da cúpula. Não houve
condições depois da solenidade de abertura em que assumi o
noivado, muito menos durante a tarde com as primeiras
reuniões acontecendo. À noite, o jantar com os líderes árabes
se prolongou até quase à meia-noite e já era tarde demais para
a procurar quando terminou.
Assim que me acordei no dia seguinte, fui para os
jardins da Ala do Falcão, onde eu sabia que Malika tomava
banho de sol de manhã cedo. Como a gravidez fazia com que
Kismet se levantasse sempre mais tarde, àquela hora eu
encontraria Malika sozinha ou com Layla, uma pessoa mais
fácil de ser dispensada do que a esposa do meu irmão.
Mal entrei no jardim, já a vi caminhando ao longe em
passo lento no meio das flores. Como esperado, estava
acompanhada por Layla.
— Sabah al khair!70 — cumprimentei-as assim que me
aproximei.
Malika se virou tão logo ouviu a minha voz.
— Ahlan, Yusuf. Sabah al nur71.
— Sabah al nur, alteza. — Layla foi mais formal na
resposta.
Dirigi-me a ela.
— Pode ir, Layla. Farei companhia à Malika hoje.
Assim que a enfermeira se afastou, recebi um olhar
ansioso de Malika.
— Aconteceu alguma coisa muito séria na solenidade
de ontem?
Escondi a surpresa com aquela pergunta certeira dela.
— E por que acha que aconteceu alguma coisa?
— É estranho que queira falar comigo em particular no
dia seguinte à abertura. Estou com a sensação de que tem algo
de ruim para me dizer, por isso me procurou logo de manhã
cedo.
Eu não deveria me surpreender com a percepção dela.
Malika já tinha mostrado em várias ocasiões o quanto era
atenta e perceptiva. Ela não era o tipo de mulher fútil, que só se
preocupava com banalidades e não percebia os assuntos
sérios.
— Você tem razão — confirmei, indicando um dos
bancos que havia ao longo do jardim. — É melhor
conversarmos sentados.
Com a expressão compenetrada, ela me acompanhou
até o banco mais próximo e nos sentamos. Acomodada ao meu
lado, olhou-me com preocupação.
— Não me esconda nada, Yusuf. Min fadlak72.
— Sempre fomos sinceros um com o outro e esta é
uma das coisas que mais valorizo no nosso relacionamento.
Não será agora que agirei de maneira diferente.
Trocamos um olhar de cumplicidade que encheu o meu
peito de um calor único, que só Malika me transmitia.
— Sinto o mesmo — ela disse, fazendo-me inspirar
fundo de emoção. — Pode me contar tudo.
Aquela última frase foi dita como se estivesse
preparada para qualquer nova desgraça que se abatesse sobre
ela. Malika era uma mulher forte, admiravelmente forte.
— Seu tio ontem praticamente exigiu vê-la, com a
intenção óbvia de levá-la de volta para Sadiz, mas negamos.
Foi quando nos informou de um casamento que está
negociando para você.
Malika soltou um arquejo de angústia, comprimindo os
lábios com força.
— Com quem? — perguntou, desconfiada.
— Com o Sheik Farid Al Badawi, governante de
Omarih.
Ela fechou os olhos e soltou um suspiro de alívio que
me deixou atônito. Fiquei sem ação ao ver que Malika não
parecia horrorizada com um possível casamento com Al
Badawi.
— Você já sabia desse acordo de casamento com ele?
— Sim, já sabia — confirmou, ainda de olhos fechados.
— E concorda? — perguntei, sem acreditar naquilo.
Não era possível que eu tivesse me enganado tanto
com relação a ela e Malika não se importasse com aquele
casamento.
— Claro que não concordo! — negou em tom
categórico, abrindo os olhos.
Observei-a profundamente.
— Você me deu a impressão de ter ficado aliviada ao
saber que era ele.
— Pensei que fosse uma nova proposta de casamento.
Essa eu já sabia e rejeitei.
— Pelo jeito o seu tio não levou sua negativa em
consideração.
Ela deu um sorriso triste.
— Tio Suleiman vai ser obrigado a aceitar que não
quero. Já não sou a filha do meu pai, nem a sobrinha dele, e
muito menos cidadã de Sadiz.
Infelizmente, Malika estava enganada.
— Não é assim tão simples. Você ainda é filha de
Abdullah e lhe deve obediência, caso ele exija oficialmente o
seu retorno. Suleiman continua sendo o seu tio e governante
de Sadiz, tendo poderes para fazer até pior, como recorrer ao
tratado de extradição existente entre os países membros da
Coligação Árabe.
Ela arregalou os olhos.
— Mas extradição é para quem cometeu algum tipo de
crime e não fiz nada disso.
— Sabemos que não e temos como provar isso em
tribunal, mas criaria um incidente diplomático sério que poderia
dividir a coligação. Acredito até que Suleiman veio à cúpula
disposto a isso. O lado bom, é que se ele agir neste sentido,
poderemos liquidar de vez com o seu tio, por se utilizar de fatos
inverídicos para nos coagir a devolver uma ativista inocente
que pediu asilo político em Tamrah. Neste caso, a própria
coligação se uniria contra ele, encarregando-se de impor fortes
sanções ou de expulsá-los de vez.
Insegura, ela me olhou com esperança.
— Existe mesmo essa possibilidade?
— Sim, o tribunal da coligação julgaria o caso e
ganharíamos, com certeza. Suleiman precisaria apresentar
provas documentais inquestionáveis que comprovassem os
crimes que você supostamente cometeu.
Malika ficou pálida de repente e cobriu o rosto com as
mãos trêmulas. Estarrecido, eu a vi se levantar abruptamente
do banco e se ajoelhar no chão, curvando-se em posição de
oração. A voz suave murmurava palavras desconexas, difíceis
de compreender.
Tudo aconteceu tão rápido e a minha perplexidade foi
tanta que demorei a reagir. Cheguei mesmo a achar que ela
estava orando em gratidão à Allah por ter encontrado uma
maneira de não ser devolvida para Sadiz e por estar se livrando
definitivamente dos homens da família, mas depois percebi que
me enganei. Mesmo com as mãos cobrindo o rosto, tive a
certeza de que Malika estava chorando. A voz que repetia a
mesma frase era de desespero e não de alegria.
No segundo seguinte eu já estava me agachando ao
lado dela, tão perto que consegui ouvir o que dizia.
— Livrai-me dele, poderoso Allah! Livrai-me dele,
poderoso Allah! Livrai-me dele, poderoso Allah!
— Malika?! — Segurei-a pelos ombros, mesmo
sabendo que poderia ser rechaçado por estar tocando-a, algo
que não era permitido entre um homem e uma mulher como
nós dois, mesmo estando noivos aos olhos dos outros. — Não
fique assim nem tenha medo. Não vou permitir que seja
devolvida ou que lhe façam mal.
— Eles têm a minha confissão, Yusuf! — ela sussurrou,
o corpo frágil sendo sacudido por soluços. — Eu assinei uma
confissão. Eles vão usar isso contra vocês para me terem de
volta.
Gelei na hora, ciente da seriedade do que ela havia
dito.
Khara!73
Capítulo 23
Yusuf
Uma confissão de Malika era algo com o qual eu não
contava.
— Calma, nem tudo está perdido. Preciso dos detalhes
desta confissão. Só assim poderei proteger você. — Toquei a
longa trança caída nas costas dela, sentindo a maciez dos fios.
— Agora se levante e venha me contar tudo aqui no banco.
Aos prantos, ela veio sem opor resistência. Sentada,
limpou o rosto com a ponta do véu castanho e respirou
profundamente para conter o choro.
A vontade que eu tinha era de abraçar Malika com
força junto ao peito até que se acalmasse, mas me contentei
com o que Allah ainda permitia que acontecesse entre nós.
Talvez, um dia, houvesse permissão divina para muito mais do
que apenas aquilo.
Dei o tempo que ela precisava para se controlar, até
que olhou para mim, envergonhada.
— Me desculpe por tudo isso.
— Não precisa pedir desculpas, mas estão aceitas.
Agora preciso que me conte sobre esta confissão.
— Ela foi o meu grande tormento dentro da prisão.
Desde o primeiro dia em que fui detida, já me exigiram que
escrevesse uma carta confessando todos os meus crimes
contra o governo do meu tio, assumindo que entrei em contato
com dirigentes de organizações internacionais que lutam pelos
direitos humanos, além de jornalistas e órgãos governamentais
de outros países, tudo a mando do meu pai. Queriam os nomes
dessas pessoas, as datas em que supostamente falei com elas
e as informações que passei para fora do país. — Ela ergueu
os olhos para mim e vi neles aquela dor que eu tão bem
conhecia, de tanto que já a tinha visto no olhar de Malika. —
Neguei todas as vezes, até que um dia não aguentei mais e
cedi, confessando coisas que nunca fiz.
Eu me sentia tão tenso que os músculos até doíam da
força que estava fazendo para me controlar.
Que Allah me dê capacidade de resistir à tentação de
socar Suleiman durante a cúpula!
Virado de frente para ela e com o braço sobre o
encosto do banco onde estávamos sentados, agarrei com força
a madeira dele para conter a minha raiva, pois estava óbvio
para mim que Malika só podia ter cedido durante uma sessão
de tortura.
— O que aconteceu neste dia que a fez assinar a
confissão? — perguntei no tom mais calmo que consegui.
Ela baixou a cabeça e voltou a inspirar fundo, mas o
gesto se transformou em um arquejo desesperado por
oxigênio. Malika parecia sufocar bem à minha frente e não
hesitei em soltar o encosto do banco e acariciar a base da
trança na altura da nuca delicada.
— Fique calma. Você está comigo em Tamrah,
protegida, e não em uma prisão de Sadiz. É preciso que tenha
consciência disso, para não deixar que a sua mente a
transporte para lá sempre que se lembrar de algo. Lembre-se
de que está aqui e comigo. — Fui firme no meu tom de voz,
esperando que ela não se afundasse de novo na depressão. —
Você é forte, Malika. Não destrua a sua vida por causa deles.
Allah lhe deu uma missão linda de ajudar mulheres e crianças.
Muitas pessoas aqui em Tamrah precisam de você.
Eu sou uma delas.
Malika me ouviu em silêncio e senti que foi ficando
mais calma. Não fugiu do contato com a minha mão em seus
cabelos, permanecendo quieta como um animal ferido ficaria
ao receber ajuda para a dor que sentia.
— Se você assinou a confissão sob tortura, ela não
será válida no tribunal da coligação. Basta que conte a verdade
diante do juiz e este documento será invalidado.
Ela me olhou ao ouvir aquilo.
— Eu não estava sendo torturada neste dia. Uma
amiga minha, também ativista, estava sendo... torturada na
minha frente e me disseram que parariam se eu assinasse uma
confissão.
Soltei os cabelos dela e voltei a agarrar com raiva o
encosto de madeira do banco. Fiquei calado por longos
instantes, imaginando a cena. Era preciso não ter sangue
correndo nas veias para saber daquilo e não querer esmagar
homens tiranos como Suleiman.
Se havia algo pior do que torturar um preso, era torturar
na frente dele alguém que ele amava. Apesar de Malika dizer
que não foi torturada neste dia, mas sim a amiga, ela foi
igualmente torturada. Fosse tortura física, psicológica ou
emocional, o efeito avassalador era o mesmo.
Considerando que eram duas mulheres e amigas
sendo torturadas juntas, não foi difícil adivinhar o que havia
acontecido.
Eu ia arriscar muito com Malika para confirmar a minha
teoria, mas não hesitei em esclarecer de vez aquela situação.
Era uma benção de Allah que ela estivesse me contando tanta
coisa que manteve guardada dentro de si mesma e eu
precisava tirar o máximo de informações antes que desistisse
de falar.
— Tortura sexual? — perguntei sem amenizar as
palavras. — Estupro?
Ela foi corajosa ao não desviar os olhos dos meus,
apesar da dor, da vergonha e da humilhação que se refletiram
neles. Ficou rígida sobre o banco, tensa, com os lábios
contraídos e a respiração pesada.
— Sim.
Uma única palavra dita em um sussurro, mas com a
força de um grito estridente. Fiquei tão rígido e tenso quanto
ela, um ódio mortal tomando conta do meu peito. Mesmo
sabendo que estava criando um inferno pessoal para mim
mesmo, fui mais a fundo.
— Fizeram o mesmo com você?
Ela desviou o olhar, sentou-se de frente para o jardim e
passou tanto tempo calada que pensei que nunca mais fosse
falar comigo. Eu já estava me recriminando pela merda que fiz,
quando a resposta veio.
— Se você tem alguma consideração por mim, nunca
mais me pergunte isso ou deixaremos de ser amigos.
Levantei-me e fui caminhar atrás do banco. Dei um
soco no ar com força para extravasar a raiva e a frustração que
estava sentindo. Eu queria gritar toda a fúria presa na minha
garganta, mas não podia. Queria matar o homem que havia
tocado nela, mas não sabia nem quem tinha sido.
Aplaca a minha sede de vingança, poderoso Allah!
Caminhei por não sei quanto tempo pelo jardim atrás
do banco onde Malika continuou sentada. Incrivelmente, ela
não foi embora como pensei que faria. A oportunidade existiu,
em que poderia se retirar e nunca mais falar comigo, deixando-
me sozinho, mas ela ficou.
Observei o corpo delicado, com a longa trança de fios
castanhos jogada sobre um dos ombros, a postura ainda rígida,
o olhar parecendo perdido no nada.
O meu coração explodiu com um sentimento tão forte
por ela que me deixou sem fôlego. Olhei para o céu e inspirei
profundamente o ar puro e aromático das rosas do jardim,
tentando entender o que sentia por aquela mulher forte, mas
também tão frágil.
Baixei a cabeça, ciente de que não queria ir tão fundo
assim dentro de mim mesmo. Ainda não tinha coragem para
tanto.
Mais calmo, voltei para o banco, sentando-me
novamente ao lado dela. Malika não me olhou, mas senti sua
insegurança quando mordeu o canto do lábio.
— Tenho muita consideração e respeito por você,
nunca duvide disso — falei com seriedade. — Nada do que
tenha acontecido com você, mas nada mesmo, vai mudar o
que sinto.
Ela fechou os olhos. Quando os abriu, olhou
diretamente para mim. Além da beleza deles, vi gratidão e um
sentimento tão indefinível quanto era o que eu sentia por ela.
— Shukran, Yusuf.
Um nó apertou a minha garganta, de tão intensa que foi
a emoção que me dominou diante do que vi espelhado naquele
olhar. Malika não sabia, mas tinha um poder muito grande
sobre mim. Aquilo era tão inexplicável e maravilhoso quanto
assustador, e nada mais me restou além de colocar os nossos
destinos nas mãos poderosas de Allah.
— Essa sua amiga estava em Thueban? Se ainda
estiver lá, podemos tentar libertá-la.
Ia ser difícil, já que a segurança da prisão
provavelmente foi reforçada depois da fuga de Malika, mas
também não era impossível. Eu tentaria!
Malika voltou a cobrir o rosto com as mãos, mas ainda
tive tempo de ver o brilho de sofrimento nos olhos
amendoados. Ela negou com a cabeça.
— Hessa se suicidou na minha frente, Yusuf. Não
aguentou o que fizeram com ela e se matou.
Oh, khara!74
Sempre quis conversar com Malika sobre tudo o que
havia acontecido com ela na prisão, sempre quis que me
contasse os detalhes do que sofreu, mas nunca pensei que
seria uma conversa tão difícil quanto aquela. Eu estava
demasiadamente envolvido para agir friamente, como um
militar experiente faria.
— Eu sinto muito, muito mesmo.
Malika baixou as mãos e limpou as lágrimas do rosto,
respirando fundo.
— Nunca vou me perdoar por isso. Eles a torturaram
para me forçar a escrever aquela carta de confissão. Abusaram
dela na minha frente para me punir. A morte dela é culpa
minha.
— Não, não, não! — neguei categoricamente. — Não
faça isso consigo mesma! Não se sinta culpada por atos
hediondos de homens que são animais.
— Como posso não me sentir culpada? — ela
perguntou com o rosto contraído de dor, mas também de raiva.
— Hussam, Badra e Hessa estariam vivos agora em Qasara se
eu não estivesse no carro com eles. Foram presos junto
comigo, mas era a mim que a guarda real queria. A mim! Os
três foram agredidos, torturados e morreram por minha culpa,
entendeu? Minha culpa!!!
Trinquei os dentes, furioso com o que fizeram com
Malika. Eles a massacraram psicologicamente. Não era à toa
que até hoje ainda tinha sintomas de estresse pós-traumático.
Se militares, que eram homens forjados para a guerra, eram
acometidos de crises de estresse pós-traumático quando
voltavam de missões, o que dizer de uma mulher de vinte e
quatro anos que viveu horrores em uma prisão subterrânea?
— Eu entendo que se sinta assim, mas não vejo as
coisas dessa forma. Coloque o sentimento de culpa de lado e
tente ver a situação sob o meu ponto de vista. Se houvesse
uma guerra e vários soldados morressem sob o meu comando,
eu poderia ser considerado culpado pela morte de todos eles?
— perguntei, tentando fazê-la pensar. — A menos que eu
tivesse tomado uma decisão errada que os colocasse em
perigo, não poderia ser considerado culpado. Eles estavam no
exército porque decidiram servir ao país. Não os obrigamos a
seguir a carreira militar. Decidiram por escolha própria,
sabendo que poderiam morrer em uma missão. Quando um
soldado vai para a guerra, ele sabe que pode morrer. Do
mesmo jeito aconteceu com seus amigos. Quando eles
decidiram ser ativistas e lutar pelos direitos humanos em um
país governado por um ditador que estava prendendo todo
mundo, sabiam que corriam o risco de serem os próximos.
Seus amigos tomaram as próprias decisões, não foi você quem
decidiu por eles.
Malika ficou calada, estática, observando-me. A
respiração ofegante foi se normalizando. O rosto perdeu a
expressão de raiva, de culpa e de dor, para se tornar
conformada.
— Você tem razão, mas é difícil não me sentir culpada
— justificou com a voz firme, mas muito triste. — A verdade é
que Hussam e Badra já eram ativistas experientes e atuavam
há anos na organização. Hessa os conhecia e foi quem me
apresentou a eles quando descobrimos na faculdade que
tínhamos os mesmos ideais. Os três já trabalhavam na luta
pelos direitos humanos. Do grupo que foi preso em Qasara, eu
fui a última a entrar na ONG Mulheres São Livres. Fiquei um
pouco perdida com a ausência de Fhatima e com o fechamento
da ONG onde ela trabalhava. Achei que me filiar a uma nova
ONG seria uma maneira de dar continuidade ao trabalho dela.
— E não estava errada, apenas estava no país errado
para fazer isso. Atualmente, Sadiz é o pior lugar do mundo para
uma ativista como você. Quanto à confissão que assinou, seja
ela válida ou não, ontem encontrei uma maneira de proteger
você e foi por isso que a procurei hoje de manhã. — A
curiosidade tomou conta do rosto dela e eu só esperava que
aceitasse o nosso noivado. — Quando Suleiman falou das
negociações que vem mantendo com Farid Al Badawi para o
seu casamento, eu disse que você não podia se casar com
ninguém, porque já era minha noiva.
A surpresa dela se transformou em choque.
Boquiaberta, Malika me olhou sem acreditar no que fiz e fiquei
subitamente inseguro.
Capítulo 24
Yusuf
— Noivos?! — Malika balbuciou, olhando-me com
espanto. — Você disse que estávamos noivos?
— Sim, disse — confirmei, tentando dar um tom normal
ao assunto. — Lógico que é tudo uma farsa para impedir que
ele a leve e obrigue a se casar. Peço desculpas por ter tomado
esta decisão sozinho e feito isso sem consultar você, mas fui
pego de surpresa ontem. A única coisa que pensei na hora foi
que precisava protegê-la. Estando comprometida em
casamento comigo, ninguém vai conseguir tirar você daqui.
Malika parecia realmente não estar acreditando no que
tinha acabado de ouvir.
— Você fez isso por mim?
— Fiz e faria muito mais — respondi sem titubear,
esperando não transparecer no olhar que sentia atualmente por
ela muito mais do que apenas amizade. — Repetiria mil vezes
as palavras que disse ontem para o seu tio. Mubarak só faltou
explodir de tanta raiva.
Ela ficou tão pálida que pensei que fosse desmaiar.
— Malika, você está bem? — Preocupei-me com a
palidez dela. — Peço perdão se não gostou de ser minha
noiva. Se quiser, desfaço hoje mesmo o que disse!
— Não! Por Allah, não desfaça o noivado! — pediu com
urgência na voz, colocando a mão na testa. — Eu estou bem.
Acho que levei sol demais e fiquei atordoada.
Censurei-me por não ter percebido aquilo antes.
— Peço desculpas por ter forçado você a ficar aqui por
tanto tempo. Venha, vamos entrar.
— Ainda não! — voltou a pedir, fazendo um gesto com
a mão para me deter. — Preciso dizer uma coisa muito
importante com relação à Mubarak e é melhor que seja aqui. É
algo que não deve ser ouvido por mais ninguém.
O tom de secretismo com que ela falou e sobre quem
estava falando já me deixou imediatamente alerta. Mubarak era
um homem de quem eu nunca havia gostado e se Malika tinha
uma coisa séria para dizer sobre ele, só podia ser algo que me
faria detestá-lo ainda mais.
— O que é?
— Tenha muito cuidado com ele. Mubarak é mais
ardiloso do que aparenta ser e muito mais responsável pelas
prisões que estão acontecendo com a minha família do que o
meu próprio tio. Ele quer tirar todos do caminho dele, para que
ninguém o impeça de assumir o poder no futuro.
— Seu tio ainda é jovem o suficiente para governar
Sadiz por décadas. Mubarak tão cedo vai assumir o poder, a
menos que Suleiman abdique em favor do filho, o que não
acredito que faça.
— Eu sei disso, mas da maneira como ele falou para
mim, fiquei com a impressão de estar tramando alguma coisa
para assumir o poder antes da hora.
Aquilo era surreal demais e pensei se Malika não
estaria exagerando. Contudo, um detalhe do que ela falou
chamou a minha atenção.
— Quando foi que ele falou isso para você?
Ela piscou e fiquei com a impressão de que não
contava com aquela pergunta. Soltou um longo suspiro, como
se precisasse de tempo para pensar antes de falar.
— Mubarak estava no quartel-general para onde me
levaram quando fui presa. Ele mesmo me disse que, se fosse
pela vontade dele, todos da família que ameaçavam a sua
posição como sucessor do pai já teriam sido presos ou mortos
há mais tempo. Parece que o meu tio não queria fazer isso e só
nos últimos meses foi que concordou.
Apesar da seriedade daquela informação, percebi algo
de estranho naquilo tudo. Malika era apenas uma das filhas de
Abdullah, uma mulher sem poder algum dentro da família ou
fora dela. O normal seria Abdullah ser o alvo número um de
Mubarak, ou até mesmo os filhos homens dele, não a Malika.
Que interesse ele tinha em se deslocar para um
quartel-general apenas para contar isso para ela?
— Ele foi para o quartel-general só para dizer isso a
você?
Ela franziu a testa e soltou um outro suspiro, que era
uma mistura de resignação e cansaço. Parecia em dúvida se
respondia ou não e fiquei ainda mais desconfiado daquela
reação.
— Ele foi para me fazer uma proposta absurda de
casamento, mas com ele e não com o Sheik Farid — ela
contou com o rosto contraído, deixando-me completamente
pasmo.
— Você se casar com Mubarak? — rugi com raiva, a
imagem odiosa dele surgindo na minha mente. — Mas como
isso é possível?
— Sei que parece uma loucura o que estou dizendo,
mas é a pura verdade. Não vou negar que já duvidei muito da
minha própria sanidade mental, ruminando se imaginei tudo o
que aconteceu naquele quartel-general, de tão surreal que as
coisas foram. Eu até queria que fosse algum delírio da minha
mente perturbada, só que não é. O Mubarak realmente disse
que só não me tornei a primeira esposa dele, porque o meu pai
recusou várias propostas que ele fez para se casar comigo.
Segundo me disse, foi recusado porque o meu pai nunca se
deu bem com o meu tio.
Agora estava explicado o motivo que fez Mubarak
reagir tão mal quando anunciei que estava noivo de Malika.
Ele a quer!
A raiva que eu já sentia pelo príncipe herdeiro de Sadiz
só aumentou ao tomar consciência daquilo.
Olhei-a, com a certeza muito grande dentro de mim de
ter tomado a melhor decisão no dia anterior ao assumir aquele
noivado. Pouco me importava agora todos os motivos que
deveriam me fazer mudar de ideia. Eu só me preocuparia com
eles no futuro, e o futuro só a Allah pertencia.
— Mubarak forçou você a alguma coisa nesse dia?
Ela olhou para as próprias mãos, que estavam
crispadas no tecido da abaya. Foi quando tive a certeza de que
Mubarak era o gatilho que trouxe de volta os pesadelos de
Malika. Ela sabia que ele estaria em Taj para a cúpula e não
conseguiu evitar a crise pós-traumática.
— Ele tentou, mas não conseguiu. Acho que o meu tio
foi avisado por alguém, porque ligou no momento exato e me
salvou. — Ela riu com ironia e tristeza. — Provavelmente queria
me preservar para o Sheik Farid.
Disso eu não tenho dúvida alguma. Farid Al Badawi
não aceitaria nada menos do que uma noiva virgem.
Observei Malika, pensando se o Sheik Farid,
indiretamente, não havia sido o responsável por evitar que ela
fosse estuprada na prisão.
— E Suleiman conseguiu preservar você depois do
assédio de Mubarak? — perguntei, incapaz de me controlar. —
Sei que me pediu para não tocar mais no assunto e que corro o
risco de você nunca mais falar comigo, mas nunca foi tão difícil
para mim cumprir um pedido feito por alguém. Estou aqui me
segurando para não fazer nada contra eles dois neste exato
momento. Nunca suportei o Mubarak e agora entendo o
porquê. É dos homens mais desprezíveis que já conheci na
minha vida.
De olhos arregalados, Malika me ouviu meneando a
cabeça várias vezes, visivelmente horrorizada. Havia tanta dor
naquele olhar que paralisei ao vê-lo.
— Por Allah, não faça nada contra eles! Não quero
colocar a sua família no meio de uma guerra contra Sadiz —
ela pediu com urgência e desespero na voz. — Já tenho
sentimento de culpa suficiente no meu coração para agora
acrescentar mais este. Por misericórdia, Yusuf! Prometa-me
que não vai fazer nada! Me dê a sua palavra de honra que não
vai causar um incidente diplomático que poderá destruir muito
mais vidas do que apenas a minha!
Khara! Mil vezes khara!
Mais uma vez, Malika estava pensando mais nos
outros do que em si mesma.
Cerrei os punhos com tanta força que até estremeci, os
músculos rígidos. Eu queria entrar em ação naquele exato
momento, mas fui vencido pelo toque inesperado das mãos de
Malika nas minhas. Ela envolveu os meus punhos cerrados
com a maciez das mãos pequenas e delicadas, deixando-me
embasbacado.
Toda a raiva que eu sentia foi substituída no mesmo
instante por uma emoção tão grande que inspirei fundo para
suportar a força com que ela me dominou. Foi como se um raio
de sol surgisse entre as nuvens em um dia de tempestade e
me banhasse com a sua luz, o seu calor, a sua paz.
— Min fadlak75. Prometa-me!
Eu não me encontrava em condições de negar
absolutamente nada a ela naquele momento. Ter voz para falar
já parecia ser um esforço sobre-humano diante do estado de
emudecimento em que eu me encontrava.
— Prometo — disse roucamente e vi a expressão de
alívio que tomou conta do rosto de traços suaves.
Depois que arrancou aquela promessa de mim, Malika
afastou as mãos das minhas e até senti frio no local onde havia
me tocado. Eu a queria de volta. Queria mais, muito mais.
— Shukran, Yusuf.
— Faria muito mais por você — repeti o que já havia
dito no início da nossa conversa.
Ela ficou levemente ruborizada, o que me encantou
ainda mais. Ficamos em silêncio enquanto os ponteiros do
relógio avançavam, olhando um para o outro.
— Aceita ser minha noiva? — perguntei de repente,
pegando-a desprevenida.
Malika arquejou, inspirando fundo, os olhos admirados
fixos nos meus.
Fiz o pedido pelos motivos certos, com base no
sentimento profundo que nutria por ela. Não havia ali ameaças
de familiares ou de casamentos forçados com outro homem,
apenas a emoção indefinível que sentia por aquela mulher, que
era um misto de rebeldia e rendição, de luta e doação.
— Como faremos se exigirem o nosso casamento? —
ela perguntou em um sussurro. — Um noivado pode resolver a
situação por um determinado tempo, mas não para sempre.
Aquela também era a minha preocupação, desde que
Saqr havia me dito que Malika tinha confidenciado para Kismet
que não queria mais saber de casamento.
— Acho que só devemos nos preocupar com isso mais
à frente. Só Allah sabe o que vai acontecer no dia de amanhã.
É perda de tempo tentarmos adivinhar até quando
conseguiremos usar o noivado como uma forma de manter
você em segurança aqui em Tamrah. Pode ser um ano, podem
ser dois anos ou até mais. Se o destino mudar o rumo das
coisas e houver uma exigência de casamento, pensaremos no
que fazer.
Ela me olhou em dúvida.
— Eu não quero me casar, Yusuf. Prefiro dizer isso
agora do que lá na frente.
Mesmo sem saber, Malika havia acabado de jogar um
balde de água fria sobre mim, dissolvendo a esperança que eu
tinha de Saqr estar errado.
— Não me sinto bem em prender você a um
compromisso dessa natureza por um tempo indefinido. — Ela
continuou sendo sincera até doer. — Os seus pais devem estar
à espera que se case e tenha filhos, o que é compreensível na
sua idade e posição.
— Tão cedo quero me casar, Malika. Você me faz até
um favor se aceitar ser minha noiva de mentira, assim ninguém
faz pressão em cima de mim.
— Mas eles vão saber que é um noivado de mentira e
farão pressão sobre você de qualquer jeito.
Eu desconfiava que a minha mãe suspeitava dos meus
sentimentos por Malika, mas não o meu pai. Ele provavelmente
nunca havia percebido nada, assim como o restante da família.
— A única pessoa que sabe que este é um noivado de
mentira é o Saqr. Acredito que ele comente alguma coisa com
Kismet, pois são muito cúmplices e partilham tudo, mas duvido
que os dois contem para mais alguém. O nosso noivado seria
visto com naturalidade pelo restante da família, se dissermos
que resolvemos manter segredo sobre as nossas intenções
durante um tempo antes do anúncio. Para o meu pai, direi que
a situação exigiu que eu me antecipasse e assumisse o
compromisso antes de comunicar a ele e à minha mãe. O que
pode acontecer com o passar do tempo, é o meu pai fazer
pressão para nos casarmos, já que estamos noivos, mas se o
noivado não existisse, garanto que ainda demoraria uns bons
anos até ele me pressionar para eu me casar com outra.
Ela me olhou de um jeito estranho.
— E você não tem uma namorada com quem queira se
casar, nem uma prometida aguardando um pedido de
casamento? É que não quero de jeito nenhum atrapalhar a sua
vida.
Era golpe atrás de golpe. Malika realmente não sentia
por mim o mesmo interesse e atração que eu sentia por ela.
Via-me apenas como um amigo ou um irmão.
— Não existe mulher alguma esperando um pedido de
casamento meu e você não vai atrapalhar a minha vida se
aceitar ser a minha noiva. Desfaremos o noivado na hora que
você quiser.
Malika ficou sem argumentos e se calou, olhando
pensativamente para o jardim. Aquele era o momento em que
ela tomaria uma decisão, sem dúvida alguma considerando
muito mais a mim do que a si mesma. Eu já a conhecia o
suficiente para saber que pensava primeiro nos outros e por
último nela.
Muito seguro do que estava fazendo, tirei a caixinha
com as alianças e o anel de noivado do bolso. Abri e mostrei
para ela.
— Aceita ser minha noiva, Malika Al Kabeer? —
perguntei mais uma vez.
Ela arfou quando viu as joias.
— Você já pensou em tudo.
— Sim, pensei, e vou me sentir honrado se aceitar o
meu pedido. — Sorri para ela. — Aceita ou vai deixar este
pobre homem desiludido?
Ela se rendeu, rindo também.
— Você é muito persistente.
— E você é muito resistente — brinquei, oferecendo-
lhe a minha mão com a palma aberta. — Me dê a sua mão,
Malika.
Hesitante, ela colocou a mão sobre a minha, que
segurei com o coração acelerado no peito. Senti a textura
macia da pele, a constituição delicada e o calor que emanava
para mim.
Foi com emoção que peguei a aliança e o anel de
noivado na caixinha e coloquei ambos no dedo dela. Coube à
perfeição e nunca me senti tão orgulhoso, realizado e satisfeito
ao ver uma mulher usando uma joia que comprei. Jamais
pensei que me sentiria assim ao ter uma noiva usando a minha
aliança.
— É a sua vez agora. — Tentei disfarçar a emoção com
um tom leve, mas a rouquidão tornou a minha voz grave
demais.
Malika pegou a outra aliança maior e segurou a minha
mão, colocando-a no meu dedo. Aquele gesto foi tão
significativo que me senti mais do que comprometido com ela.
A sensação era de pertencer àquela mulher para sempre e não
apenas por um determinado tempo.
Envolvido por aquele sentimento inexplicável, mas
profundo como nunca senti antes, apertei a mão pequena com
a minha, acariciando-a, deixando-me levar pelo prazer de estar
tocando a mulher que conquistou o meu coração. Acariciei
discretamente as cicatrizes nos pulsos dela, o que só reafirmou
a minha determinação de protegê-la de tudo.
— Vou cuidar de você e proteger com a minha vida.
Ela ruborizou, parecendo subitamente tímida, mas não
desviou os olhos dos meus.
— Obrigada por me ajudar tanto, Yusuf!
— Não precisa me agradecer. Você também está me
ajudando muito. — — Levantei-me e ela fez o mesmo. — É
melhor entrarmos agora. Você já levou muito sol.
Começamos a andar lentamente pelo jardim. Só
quando a deixei em segurança dentro da Ala do Falcão foi que
percebi que Malika havia conseguido, por duas vezes, não me
contar se também foi estuprada na prisão como aconteceu com
Hessa.
Capítulo 25
Yusuf
— Isso que Malika contou é muito grave! — o meu pai
disse com uma ruga de preocupação no meio da testa. — E o
pior é que não podemos fazer nada.
— Concordo. — Saqr deu a opinião dele. — Não
podemos falar com Suleiman e dizer que desconfiamos que o
próprio filho dele planeja algo para tomar o poder antes da
hora.
Estávamos os três no majlis do meu pai antes do início
das reuniões da cúpula daquele dia.
O meu pai meneou a cabeça com a reprovação
estampada no rosto.
— Fico pensando o que mais Mubarak vai fazer de
errado na vida, além de tudo o que já fez. Como me arrependo
de não ter visto a tempo o mau-caráter que ele era e a péssima
influência que estava sendo para Majdan. Em vez de melhorar
com a idade, o caráter dele só piorou com o passar do tempo.
— Pau que nasce torto, morre torto — lembrei o ditado
popular. — Sempre o detestei e agora simplesmente o odeio.
Recebi um olhar de compreensão de Saqr, que
espelhava a mesma raiva que eu sentia.
— É impossível não odiar homens como Mubarak,
ainda mais quando fazem mal a alguém da nossa família, como
ele fez com Majdan e com Malika. — A voz de Saqr estava
dura, assim como o semblante dele. — Apesar de ter o meu
sogro em baixíssima conta, pelo menos Abdullah agiu certo em
não aceitar nenhuma das propostas de casamento que
Mubarak fez para Malika.
— Por agora, vamos apenas manter um olhar atento
sobre Sadiz e acompanhar de perto os movimentos políticos e
as ações de Mubarak — o meu pai decidiu. — É o máximo que
podemos fazer no momento.
— Infelizmente também concordo, mas precisava
deixar os dois a par do que Malika me contou. — Olhei para
Saqr. — Não se preocupe com relação à Kismet. Malika não vai
contar nada disso para ela. Desde que chegou em Tamrah, ela
vem poupando a irmã de saber da parte podre da família, não
só pelo hábito de proteger Kismet desde pequena, mas
principalmente quando descobriu que ela estava grávida.
O meu irmão vinha fazendo de tudo para evitar que a
esposa se preocupasse com muitos problemas, ainda mais se
fossem problemas relacionados com a família de Sadiz. Ela
estava nos últimos meses de gravidez e Saqr era capaz de
tudo para proteger a ela e ao filho.
E com razão. Eu também faria o mesmo.
— Se tem uma coisa que admiro muito em Malika é o
cuidado que ela tem com Kismet — o meu irmão disse, dando
um dos seus raros sorrisos. — Gosto muito dela e fico feliz que
vocês tenham oficializado o noivado.
Antes daquela reunião de emergência com o meu pai,
nós dois conversamos e combinamos que a farsa do noivado
seria um segredo bem guardado entre ele, Kismet, Malika e eu.
— Você me pegou de surpresa ontem com aquele
anúncio, mas fiquei mesmo muito satisfeito com a sua escolha,
meu filho — o meu pai disse, abraçando-me pelo ombro.
— Shukran, pai.
Saqr trocou um olhar sério comigo, como a dizer que
eu tivesse cuidado para não transformar aquele noivado em um
motivo de desavenças familiares futuras.
O meu pai consultou o relógio no pulso.
— Está na hora de irmos. A primeira reunião do dia vai
começar e precisamos chegar antes de todos.
Ele se levantou e fizemos o mesmo. Foi quando me
olhou com autoridade.
— Controle-se quando ver o Mubarak. Tenha ele feito
ou não algum mal à Malika, não será no meio de uma cúpula
cheia de líderes árabes que você vai resolver isso.
Travei a mandíbula, vendo-me obrigado a não agir da
maneira como queria.
— Fique descansado, meu pai. Vou me controlar.
O meu pai não ficou satisfeito apenas com a minha
palavra, dirigindo-se da mesma maneira para Saqr.
— Isso serve para você também. Sei que Kismet e
Malika têm uma família dos infernos, mas não nos cabe
resolver todos os problemas do mundo. Vamos fazer o que for
possível no momento certo, mas é preciso que se lembrem que
acima de nós está o povo de Tamrah.
— Sim, meu pai — Saqr respondeu com gravidade,
provavelmente engolindo a raiva como eu fiz.
— Agora vamos. Temos assuntos importantes para
tratar na reunião de hoje e quero os dois concentrados nisso.
Em mais nada! Precisamos fazer com que a nossa proposta de
anistia para os presos políticos seja aprovada pela maioria.
Suleiman e Mubarak vão voltar para Sadiz com uma grande
derrota nas costas e serão obrigados a fazer muitas mudanças
internas se quiserem continuar na coligação. Há várias
maneiras de se derrubar um homem e nem sempre é com os
punhos. Não se esqueçam disso.
Saqr e eu trocamos um olhar de frustração. Nós dois
sabíamos que o nosso pai tinha razão, mas nada tirava o
prazer de dar um bom soco na cara de um filho da puta.

Horas depois, eu estava tão concentrado nos assuntos


da cúpula que até me esqueci da vontade que tinha de socar o
Mubarak. O problema era que bastava vê-lo para a vontade
voltar e a minha luta interior continuou manhã adentro.
Quando chegou o intervalo do almoço, fomos todos
para o salão principal onde ia ser servida a refeição para os
presentes. Entre conversas com um e com outro, tive o
desprazer de ver Mubarak à minha frente.
Igual a todos os outros líderes presentes, ele usava o
tradicional thobe branco, com o ghutrah76 e o agal77. Ele era
bem mais baixo do que eu, mas tinha o corpo robusto, que a
gordura tornava avantajado. Tentei não o imaginar tentando
estuprar Malika ou me esqueceria das ordens do meu pai.
— É muito estranho estar na cúpula e não encontrar
aqui o meu grande amigo Majdan — ele disse com uma
expressão de pesar. — Ele sempre foi um homem tão forte que
tenho dificuldades em imaginá-lo com problemas de saúde.
Como ele está? Nunca mais nos falamos.
O tratamento de desintoxicação das drogas que o meu
irmão estava fazendo em Nova York era algo que só a família
sabia. O que divulgamos oficialmente foi que Majdan estava
precisando se ausentar de suas funções para se recuperar de
uma fadiga crônica. Obviamente que as notícias chegaram em
Sadiz.
— Meu irmão está bem. — Foi a única coisa que
respondi, tentando não deixar evidente a raiva que sentia dele.
Não era nada fácil estar diante de um dos responsáveis
pelo sofrimento de Malika e conseguir agir diplomaticamente.
— Tranquilizo-me em saber disso. Considero Majdan
como alguém da família, como um irmão. E por falar em
família, ontem não tive condições de parabenizá-lo pelo
noivado com Malika.
— Não fale o nome dela — exigi, fosse ele um príncipe
herdeiro ou não.
Pego de surpresa, Mubarak até piscou desnorteado
com a minha falta de diplomacia, para não dizer falta de
capacidade de ser dissimulado como ele estava sendo.
— Como?! Não entendi.
— Entendeu, sim. Foi isso mesmo o que ouviu. Não
fale o nome dela — repeti, encarando-o com severidade. —
Como noivo e futuro marido, não autorizo que sequer a
mencione.
Sabíamos da raiva que sentíamos um pelo outro e eu
não estava disposto a fingir o contrário. Ele não havia me
procurado para saber de Majdan, mas para falar de Malika e
aquilo eu não ia permitir.
Contudo, lembrei-me da promessa que fiz a ela de não
criar um incidente diplomático ou de iniciar uma guerra contra
Sadiz por causa do que lhe aconteceu. Foi aquilo que me fez
usar a diplomacia, mas a “minha diplomacia”.
— Acho que somos homens o suficiente para
mantermos isso apenas entre nós dois. Agora me dê licença.
Deixei-o sozinho e saí andando calmamente.
Quase não acredito que meses atrás aconselhei Saqr a
não iniciar uma guerra contra Sadiz por causa de Kismet e
agora sou eu quem estou querendo fazer isso por causa de
Malika.
Suspirando de irritação, aproximei-me do meu irmão.
— Você está com cara de quem quer matar alguém —
ele comentou assim que me viu chegar à mesa onde faríamos
a refeição.
— Garanto que ele ainda está vivo.
Saqr olhou para o outro lado do salão em direção à
Mubarak.
— Estou vendo. É uma pena mesmo!
Acabamos rindo e nos sentamos para o almoço.

Não foi só o meu pai que ficou satisfeito com o noivado,


mas principalmente a minha mãe. Assim que ela soube, ficou
radiante.
— Allah seja louvado! — ela disse, dando-me um
abraço apertado. — Você é o homem ideal para Malika e ela é
a mulher ideal para você. Nasceram um para o outro!
— É importante para mim a aprovação de vocês.
Malika merece todo o amor que pudermos dar para ela.
— Vou preparar um jantar para comemorarmos o
noivado e comunicá-lo para o restante da família.
Abracei-a de volta, realmente feliz com a aprovação
dos meus pais. Pensei que eles me recriminariam pelo noivado
inesperado e fora do comum, uma vez que não seguimos os
trâmites normais de um noivado tradicional. Ainda assim, os
meus pais estavam aceitando com entusiasmo a noiva
escolhida por mim.
O único problema era o meu sentimento de culpa por
não estar sendo totalmente sincero com eles. Mesmo tendo
consciência de que me casaria com Malika se ela quisesse,
também sabia que aquele não era o caso.
O compromisso era uma farsa e não haveria
casamento.
Capítulo 26
Malika
— Eu adoro o Yusuf, mas agora que sei que ele não
pensou duas vezes em assumir um noivado só para proteger
você, adoro muito mais — Kismet disse, caminhando comigo
pelo jardim principal da Ala do Falcão.
Fazia exatamente vinte e quatro horas que eu estava
noiva de Yusuf Al Harbi, o homem que admirei em silêncio
durante meses, que me despertava sentimentos desconhecidos
e intensos demais, além de ser o único com quem eu me sentia
totalmente à vontade e protegida. O problema era que eu tinha
desistido por completo da ideia de me casar. Casamento
estava fora de questão para mim. Mesmo que ainda
acalentasse aquele sonho, a última coisa que eu queria era um
noivo que só assumiu o compromisso comigo por obrigação,
pelo carinho por uma mulher que ele havia passado a
considerar como uma amiga, como uma irmã, como alguém da
família.
Honrado do jeito que ele era, obviamente que faria
qualquer coisa para me salvar das artimanhas do meu tio
Suleiman.
Do meu tio ou de Mubarak?
Eu ainda não havia descartado a possibilidade de
aquele casamento com o Sheik Farid Al Badawi ser apenas
uma desculpa para me levarem de volta à Sadiz e me
manterem aprisionada para o resto da vida.
Suspirei, pensativa. Mesmo sendo aquele um falso
noivado, emocionei-me com o pedido de Yusuf. Eu me sentia
fortemente ligada a ele e, muitas vezes, chegava até a achar
que ele sentia o mesmo, como se um elo invisível nos ligasse
de alguma forma.
— Você está tão calada hoje — Kismet comentou,
alisando a barriga protuberante.
Ela estava uma grávida linda, se é que era possível a
minha irmã ficar mais bela do que era. Não era à toa que o
marido praticamente beijasse o chão onde ela pisava.
— Resolvi poupar os ouvidos do meu sobrinho das
minhas lamúrias — justifiquei o meu silêncio com uma
brincadeira.
Kismet riu, dando uma tapinha no meu braço.
— Ora, deixe disso! Zayn adora ouvir a tia.
Fomos interrompidas pela chegada intempestiva de
Sabirah, que apareceu correndo pelo jardim.
— Malika! Malika! — chamou-me, parando ofegante ao
nosso lado. — Fiquei sabendo agora do noivado. É verdade
mesmo?
Foi impossível não rir do entusiasmo dela.
— Sim, é verdade — respondi, rindo ainda mais do
entusiasmo com que ela começou a dançar no meio das rosas.
— Aaah, que maravilha! — Veio me abraçar com força.
— Vocês dois formam um casal lindo. Tenho certeza de que
nasceram um para o outro.
Preferi não dizer nada quanto àquilo, mas ela nem
notou o meu silêncio. Segurou a minha mão para olhar a
aliança e o anel de noivado.
— MashAllah!78 Como são lindos! O meu irmão tem
bom gosto e acertou em cheio.
— Sim, são lindos! Eu amei — falei a verdade do que
senti no momento em que os vi.
— Parece que foram feitos sob encomenda para você.
São a sua cara! — Kismet disse com um sorriso satisfeito.
— Um dia eu também vou ganhar um assim do meu
noivo! — Sabirah suspirou, sonhadora.
— E já tem alguém em vista? — perguntei, olhando
com carinho para ela.
— Sabirah ainda é muito nova — Kismet deu a opinião
dela. — Deve primeiro estudar e se formar, para só depois
pensar em noivado e casamento.
— Eu já tenho dezoito anos — ela disse com rebeldia e
escondi um sorriso diante da personalidade forte da garota.
— Sabirah pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo
— contemporizei, vendo razão em ambos os lados. — Eu fiquei
noiva pela primeira vez muito cedo, mas não pensei em deixar
os estudos em momento algum. Dá para conciliar os dois.
Logicamente, se você se apaixonar por alguém.
— Só vou me casar por amor, como Saqr e Yusuf estão
fazendo.
Baixei a vista para o chão, impossibilitada de dizer que
Yusuf não estava apaixonado por mim e que o noivado era uma
farsa.
— Isso mesmo! — Kismet concordou com ela,
desviando a atenção de Sabirah para outro assunto. — Você
nunca me disse o curso que pretende fazer quando for para a
faculdade.
Os olhos da garota brilharam.
— Vou fazer Direito — disse com orgulho. — Quero ser
advogada e depois juíza, para defender as mulheres do meu
país e do mundo inteiro. Desde que a minha mãe me levou
pela primeira vez ao Ministério da Mulher, quando eu tinha dez
anos, soube logo o que queria ser na vida.
Das filhas de Farah, Sabirah era a única engajada no
Ministério da Mulher, ajudando a mãe nos projetos sociais para
as mulheres e crianças. As outras irmãs dela viviam
exclusivamente para os maridos e para os seus próprios filhos.
— É isso mesmo, Sabirah — motivei-a. — Vamos
mudar o rumo da história desse país.
— Você falou agora como uma ativista — Kismet me
provocou.
Soltei uma risada, feliz por estar com as duas.
— Está no meu sangue.
Fizemos a curva do jardim para o lado Sul e paramos,
espantadas com o que vimos.
Havia um enorme carro preto estacionado na parte
pavimentada do pátio mais à frente. Ao lado dele, estava um
veículo militar que parecia um verdadeiro tanque de guerra.
Soldados uniformizados se misturavam com homens vestidos
de preto, cada um concentrado em sua função.
— Que susto! — Kismet levou a mão à barriga. —
Nunca vi disso por aqui.
Sabirah riu, muito à vontade com aquele aparato de
segurança.
— É porque vocês nunca estiveram em Taj quando há
reunião de cúpula ou recebemos algum chefe de Estado
desses muito importantes. Tem sempre esse cuidado excessivo
com a segurança, mas dessa vez exageraram mesmo. Saqr e
Yusuf não brincam em serviço.
— Estou vendo que não — comentei, observando os
homens ao longe.
Continuamos a andar pelo jardim, conversando sobre o
curso que Sabirah queria tirar em Londres e os vários projetos
do Ministério da Mulher. Acho que fui a primeira a ver um dos
homens de preto se afastar dos outros e caminhar em nossa
direção.
— Tem um deles vindo para cá — chamei a atenção
das duas.
Elas olharam na direção de onde vinha o homem alto,
de porte intimidante e andar determinado. Paramos nosso
passeio e aguardamos, pois estava óbvio que ele vinha falar
alguma coisa para nós três.
O hábito de proteger Kismet me fez ficar à frente dela,
ainda mais estando ela grávida. Mesmo sabendo que não
corríamos perigo, o instinto foi mais forte e a deixei atrás de
mim.
Por sua vez, Sabirah adiantou-se para falar com ele.
Mesmo sendo a mais nova das três, a jovem princesa estava
no seu palácio e agia com a mesma autoridade da mãe.
O homem enorme parou a poucos metros dela,
fazendo uma reverência para todas nós.
— Salaam Aleikum79, altezas.
— Alaikum As-Salaam80 — respondemos, ficando na
expectativa do que ele ia falar.
— Peço que não continuem o passeio por esta área do
jardim. Ela está fora do perímetro de segurança definido para
as princesas.
Algo nele me intrigou e o olhei com mais interesse. Era
muito bonito, com cabelos pretos lisos e uma barba volumosa,
mas bem aparada.
— Não vejo problema algum que continuemos nosso
passeio pelo jardim. — Sabirah desviou a minha atenção dele
ao responder com um leve franzido de sobrancelhas. — Há
tantos seguranças aqui que é impossível corrermos algum
risco.
Ele meneou a cabeça em um gesto de concordância e
respeito, mas notei um leve divertimento no brilho do olhar azul
que dirigiu à Sabirah. Foi naquele momento que a realidade
caiu sobre mim.
— Tem razão, princesa. E é justamente para que não
haja nenhum risco que peço que voltem.
— Meus irmãos realmente exageraram dessa vez —
ela bufou, olhando para nós duas como se fôssemos as
culpadas daquilo, o que era verdade.
— É melhor voltarmos, Sabirah. — Amenizei a irritação
dela com um sorriso. — Eles estão apenas cumprindo ordens e
já nos afastamos muito mesmo. Se formos mais longe do que
isso será demais para Kismet.
O homem lançou um olhar de gratidão para mim.
— Malika tem razão, nem percebi que andamos tanto
— Kismet interveio, apoiando-se no braço de Sabirah, que
prontamente se dispôs a voltar.
As duas se viraram para ir embora, mas permaneci
onde estava.
— Shukran, princesa — o segurança agradeceu.
— Qual é o seu nome?
Ele pareceu vacilar ligeiramente. Foi algo tão rápido
que até passaria despercebido se eu já não estivesse
desconfiada.
— Hakim Numan, às suas ordens — apresentou-se
com uma nova reverência, baixando a cabeça e olhando para o
chão em sinal de respeito.
Contive um sorriso diante da tática dele para fugir do
meu escrutínio.
— Não. Você é o Assad — afirmei com convicção.
Ele ergueu a cabeça e voltou a aprumar o corpo,
mantendo o olhar inexpressivo.
— Sinto muito, mas está me confundindo com outra
pessoa, alteza. O meu nome é Hakim Numan.
Fiquei bem de frente para ele, observando-o com mais
atenção e não tive dúvidas. Eu jamais me esqueceria dos olhos
azuis do homem que entrou naquela cela horrível de Thueban
e me tirou de lá. A altura dele era a mesma também.
— Tenho certeza do que digo, mas entendo que deve
haver um motivo justo para você adotar outro nome aqui ou ter
me dado um nome falso lá. — Juntei as mãos em um gesto de
gratidão à frente do peito e meneei a cabeça em
agradecimento. — Me esqueci de agradecer naquele dia por ter
me salvado, mas Allah me deu uma outra oportunidade de
fazer isso. Shukran, Zaid Assad, por ter me tirado daquele
inferno. Fico feliz em saber que trabalha para os Al Harbi aqui
em Taj.
— Não precisa agradecer, princesa. — Ele se deu por
vencido, admitindo quem era. — Fiz apenas o meu trabalho.
Sim, eu sabia que Assad havia sido pago para me
libertar, e muito bem pago, como ele mesmo me disse, mas
aquilo não tirava o mérito do que fez por mim.
— E foi um excelente trabalho o que fez.
— Shukran, princesa Malika. — Foi a vez de ele
agradecer. — Mas peço que mantenha este assunto em
segredo. Apenas o rei, o príncipe herdeiro e o Sheik Yusuf
sabem quem sou.
— Guardarei o seu segredo, fique tranquilo.
— Malika, você não vem? — A voz de Sabirah nos
interrompeu.
Só então me dei conta de que as duas estavam
paradas a alguns metros de distância me aguardando. Kismet
acompanhava tudo com curiosidade, mas Sabirah olhava para
Assad com irritação.
— Já vou! — avisei a elas, virando-me em seguida
para Assad. — Tenha um bom dia de trabalho.
Fui para perto delas e começamos a voltar.
— Que homem insuportável! — Sabirah desabafou
assim que nos afastamos.
Fiquei tão espantada com o que ela disse que até
vacilei nos passos.
— Quem? O Assa... o Hakim? — corrigi o nome a
tempo.
— Sei que eles estão apenas fazendo o trabalho para o
qual foram contratados e normalmente tenho paciência com
todos, mas esse em especial eu não suporto.
Justamente o Assad?
— E por que não o suporta?
— Um dia desses o Yusuf o designou para fazer a
minha segurança. Vocês acreditam que o homem cismou que
eu estava correndo perigo e chegou ao cúmulo de travar as
portas do carro para me impedir de descer?
Cruzei o olhar com o de Kismet, que arqueou as
sobrancelhas.
— E você tentou descer mesmo assim? — ela
perguntou à Sabirah.
— Claro que sim! Não vi perigo algum ali onde
estávamos.
— Eu acho que quem sabe dos perigos são eles e não
nós — a minha irmã disse sabiamente.
Decidi intervir a favor de Assad.
— Concordo com Kismet. Eles são treinados para isso.
Se acharem que há algum perigo, não somos nós que vamos
dizer o contrário.
Sabirah soltou um suspiro impaciente.
— Tudo bem, também concordo, mas há várias formas
de se dizer isso. Me irrita o jeito autoritário com que ele fala. Os
outros não são assim.
Na minha opinião, os outros não eram o Zaid Assad.
Era preciso ter uma coragem diferente para um homem entrar
naquela prisão de Thueban e resgatar uma desconhecida,
ainda que fosse por dinheiro.
— Em situações de perigo é até compreensível que
sejam mais autoritários. Digo isso por causa de Saqr, que age
assim mesmo quando há alguma ameaça. Deve ser instintivo
neles — Kismet se adiantou no que eu pretendia dizer.
— Eles têm a obrigação de salvar as nossas vidas —
reforcei a defesa dele. — Se fracassarem nisso, adeus
princesas.
Incrivelmente, Sabirah riu.
— Os meus irmãos iam matá-los se isso acontecesse.
Lembrei-me de Yusuf e não duvidei daquilo.
— O que aumenta a responsabilidade dos seguranças
ao nos protegerem. Não custa nada ajudar fazendo o que eles
pedem em uma situação de risco.
— Por Allah, que conversa mais mórbida sobre morte
de princesas — Kismet reclamou, dando um beliscão em nós
duas. — Vamos mudar de assunto e falar de coisas boas, como
o dia em que Zayn estiver correndo aqui pelo jardim enquanto
passeamos.
— Vou correr atrás dele até cansar — Sabirah colocou
a mão sobre a barriga de Kismet. — Está ouvindo, Zayn?
Vamos brincar muito.
— Só você? O que não vai faltar são tias para cuidar
deste principezinho.
Continuamos falando sobre a chegada do meu
sobrinho e Assad foi esquecido por elas, mas não por mim.
Fiquei pensando o que fez com que ele adotasse outro nome
em Tamrah.
Capítulo 27
Malika
No dia seguinte, tive a oportunidade de falar com Yusuf
sobre Assad, mas apenas porque ele me procurou no jardim da
Ala do Falcão durante a minha caminhada matinal. Assim que o
vi chegar, trajando o thobe que usaria naquele dia na cúpula,
senti o peito aquecer com uma emoção única que só ele me
despertava.
Igual como fez na vez anterior, ele nos cumprimentou e
dispensou Layla, fazendo-me companhia. Depois que
combinamos o noivado, aquela era a primeira vez que eu
caminhava com Yusuf pelos jardins na condição de noiva dele.
Eu me sentia estranha, agradavelmente estranha, ao me
lembrar que estava comprometida com ele. Ainda que fosse
apenas um noivado de aparências, a sensação era tão boa que
me fez desejar que fosse verdade.
— Como se sente sendo minha noiva, Malika?
Atônita, virei-me para ele.
— Eu estava pensando justamente nisso! — confessei,
rindo.
Ele riu também e admirei a beleza máscula com o
coração aos saltos.
— Adivinhei, então. Como se sente?
Apesar do tom leve com que repetiu a pergunta, fiquei
com a impressão de que aguardava a minha resposta com uma
certa ansiedade.
Será que aconteceu alguma coisa? Estará arrependido
do que fez?
Fiquei insegura, mas fui sincera. Desde que o conheci,
não houve um único momento em que não me sentisse à
vontade com ele para falar o que sentia. Não ia agir diferente
daquela vez apenas por estarmos falando do nosso noivado.
— Eu me sinto honrada, orgulhosa e feliz em usar a
sua aliança, em receber os parabéns da família pelo noivado,
em saber que sou sua noiva. São muitas emoções ao mesmo
tempo, mas todas boas, garanto.
Atenta à reação dele, notei o peitoral amplo se expandir
ainda mais quando inspirou fundo. O olhar que me dirigiu foi
tão profundo quanto a inspiração que deu.
Será que ele sente por mim algo mais além de amizade
e consideração por tudo o que sofri na prisão?
— Também me sinto honrado em saber que aceitou o
meu pedido e orgulhoso que seja minha noiva. — Ele sorriu,
mas parecia estar rindo de si mesmo. — Acordei pensando que
você podia estar arrependida e querendo mudar de ideia.
Soltei uma risada de puro alívio diante daquela
coincidência.
— Pensei a mesma coisa quando você me perguntou
isso.
Subitamente aliviados, rimos juntos da nossa
insegurança em comum.
— Confesso que essa foi a primeira vez na minha vida
que fiquei tão inseguro com algo. Tinha que ser uma rainha81
para fazer isso comigo — brincou com o significado do meu
nome.
Nunca me senti tão feliz na vida ao lado de um homem.
Allah era testemunha de que nem com Dabir me senti daquele
jeito. O meu antigo noivo era um homem atraente, mas não
possuía aquela energia masculina tão poderosa de Yusuf, que
me envolvia de uma maneira diferente e muito mais intensa.
Comparando os dois, Yusuf ganhava de longe em
masculinidade e carisma.
— Tenho uma curiosidade há um certo tempo, mas a
oportunidade de perguntar passou nas outras vezes. Por que a
sua ala do palácio se chama Ala do Guepardo? É por que você
tem algum deles como animal selvagem de estimação?
Ele ficou sério e negou de pronto.
— Não, eu jamais manteria um animal selvagem em
cativeiro, tratando-o como se fosse de estimação. Abomino
essa prática que infelizmente ainda existe em muitos países da
região. Aqui em Tamrah criamos uma lei que proíbe a compra e
venda de qualquer animal selvagem para estimação. Eles são
usados apenas para ostentação dos ricos.
— Fico aliviada com isso. Um primo meu de Sadiz tinha
um leão e dois tigres no palácio dele e eu ficava revoltada.
Tinha pena dos animais, isso sem falar do medo que tinha de ir
lá. — Virei-me para ele, insistindo. — Então, por que o
guepardo?
Ele riu, relaxando o semblante.
— Coisas do meu excêntrico avô. Ele era um
apaixonado por animais e também um dos que lutavam para
impedir que felinos selvagens de grande porte fossem criados
como de estimação. Foi ele quem me apelidou de guepardo.
Na verdade, ele gostava de comparar as pessoas com animais,
tanto no sentido positivo quanto no negativo, mas era um bom
homem. — O tom final foi de saudades e entendi que o avô
teve um excelente relacionamento com o neto. — No meu
caso, virei o guepardo ainda criança, quando ele me viu correr
mais rápido do que os outros meninos nas areias de NarAllah.
Eu não perdia uma aposta de corrida. Primeiro a pé, depois de
carro. Quando comecei a dirigir, me apaixonei por carros
velozes e ele apenas ria, dizendo que o apelido era perfeito.
— Se foi por isso, tenho de concordar que sim.
— A única coisa que ele não viu foram as medalhas
que ganhei no karatê e no krav maga, porque já tinha falecido.
Ele teria gostado de me ver lutar — falou e senti a emoção na
voz dele. — Você sabia que o guepardo é o animal terrestre
mais rápido do mundo?
A pergunta era para disfarçar a emoção e o amei ainda
mais por ser tão sensível à lembrança do avô.
— Sabia que era rápido na caça, mas não o mais
rápido do mundo.
— Ele alcança uma velocidade extraordinária na caça.
Já o falcão peregrino é o mais rápido do mundo no ar e o Saqr
ficou com este apelido. O meu avô era apaixonado por falcoaria
e o Saqr sempre teve a mesma paixão que ele. Quando Taj foi
construído e designaram as quatro alas para os filhos homens
da minha mãe, cada uma delas ganhou o nome do animal que
nos representava, por ordem do meu avô.
— Acho que eu ia gostar muito do seu avô, mesmo que
ele me apelidasse de lagartixa do deserto.
Yusuf soltou uma risada, ficando arrasadoramente
lindo.
— Garanto que você não se parece nada com uma.
— E qual apelido acha que ele me daria?
Yusuf me olhou de um jeito estranho, mas intenso, que
não consegui decifrar.
— Gazela do deserto.
Torci o nariz, em dúvida.
— Não sei se gostei. Elas são muito elegantes, bonitas
e resistentes, mas também são presas fáceis.
— É a presa favorita do guepardo — falou em tom de
riso.
Olhei-o, chocada, mas ele já ria com mais gosto ainda.
— Oh, você está me provocando.
Ele não negou nem afirmou e continuamos caminhando
e conversando pelo jardim, até que me lembrei de Assad.
— Ontem reconheci o Zaid Assad entre os seguranças
do palácio. Fiquei muito feliz ao ter a oportunidade de o
agradecer pessoalmente pelo que fez por mim.
Yusuf ergueu uma sobrancelha.
— Você o reconheceu? Ele esteve mascarado o tempo
todo naquele dia.
— Foi pela voz e pelos olhos. A altura também
coincidia com o que eu me lembrava e não tive dúvidas. Ele
ainda tentou manter a identidade em segredo, mas admitiu
depois que o confrontei.
Yusuf riu muito quando terminei de falar.
— Coitado do Assad. Acho que ele nunca enfrentou
uma situação de tanto risco na vida quanto a de ontem.
Foi impossível não rir, mas a curiosidade só cresceu.
— Ele me pediu segredo e dei a minha palavra que não
contaria para ninguém, mas fiquei curiosa. Por que ele está
com outra identidade?
— O nome verdadeiro dele não é Zaid Assad nem
Hakim Numan. O primeiro é uma espécie de codinome82 que
ele adotou ao abandonar o exército do seu tio. Assad é um
oficial militar dissidente que cansou dos desmandos de
Suleiman e passou a ser um mercenário. Como ele conhece
muito bem o território de Sadiz e as prisões do seu tio,
contratei-o para descobrir onde você estava.
Fiquei tão chocada que parei de andar.
— Ele é de Sadiz? Achei que fosse um dos homens do
seu grupo de elite. Que fosse mesmo de Tamrah.
— Não. Ele é do seu país, um conterrâneo seu.
— Ah, Yusuf. Se eu já gostava dele, agora gosto muito
mais — disse, fazendo-o rir.
— Eu imaginava que sim.
— E entendo perfeitamente que ele tenha abandonado
o exército do meu tio.
Infelizmente, lembrei-me de Hisham, o oposto de
Assad.
— Ele não é o único e nem será o último militar
dissidente de Sadiz. O seu tio está perdendo bons homens ao
impor aquela ditadura.
Yusuf arrancou uma das flores da planta mais próxima,
cujas pétalas ele beijou, entregando-a depois para mim. Era
uma flor de rosa do deserto83, pequena e delicada.
— Para a minha noiva.
Perdi o fôlego ao ver os lábios dele tocarem a flor que
agora estava entre os meus dedos. Esqueci-me no mesmo
instante de Hisham, de Thueban, do meu tio e de Sadiz.
Desviei a vista dos lábios dele e olhei para a flor,
sentindo-me corar.
— Shukran, Yusuf.
— Incomoda a você que eu apareça neste horário para
lhe fazer companhia?
— De jeito nenhum! Eu adoro ficar com você.
Fui tão espontânea ao falar que só depois me dei conta
do que fiz. Não queria me expor tanto assim, mas o sorriso de
prazer de Yusuf valeu o risco.
— Fico muito feliz com isso. Virei sempre que puder.
O sempre que puder passou a ser quase todos os dias.
Só quando ele precisava se ausentar de Taj ou do país é que
Yusuf não aparecia nas minhas caminhadas matinais.
Guardei aquela flor comigo, colocando-a entre as
folhas do meu livro de orações depois que ela secou.
Naquela manhã, assim que voltei para o meu quarto,
sentei-me na cama e olhei as pétalas rosadas que tinham sido
tocadas pelos lábios dele. Aproximei-a do meu rosto, cheirei-a
como se contivesse o perfume dele e não o dela. Depois,
temerosa e até me sentindo em pecado, fechei os olhos e
beijei-a exatamente como Yusuf havia beijado, imaginando
estar beijando o homem e não a flor.

Zayn nasceu um mês depois da cúpula. O nascimento


dele foi a experiência mais linda da minha vida. Kismet já havia
conversado comigo semanas antes para perguntar se eu me
incomodaria de estar presente na sala de parto.
— Não é que não confie na equipe da doutora Bushra
ou em Farah, que vai estar lá no dia, mas é que você é a minha
irmã. A única que está comigo desde que nasci e que
considero meio como uma mãe, apesar de só ter quatro anos a
mais do que eu. Vou me sentir mais segura com você ao meu
lado.
Abracei-a com todo o amor que sentia por ela.
— Claro que vou estar presente. Faço questão de ver o
meu sobrinho nascer.
O que eu não esperava era me emocionar tanto com o
momento em que vi Zayn saindo de dentro da minha irmã e
vindo ao mundo. Aquilo era a obra mais divina de Allah e o
instinto materno que existia em mim aflorou como nunca antes.
Kismet tinha razão quando dizia que eu cuidava dela como se
fosse uma mãe, porque era exatamente assim que eu me
sentia desde que ela ficou órfã de mãe aos sete anos.
Agora, ao colocar o meu sobrinho recém-nascido nos
braços depois do banho na maternidade, eu me via em
lágrimas, de tão emocionada que estava.
— Como você é abençoado e lindo, pequeno Zayn!
Chorei, não só por ter um milagre de Allah nos braços,
mas ao perceber que nunca seria mãe de verdade. Ao
renunciar ao casamento, que era a única maneira através da
qual eu poderia realizar o sonho de ser mãe, eu também estava
renunciado à maternidade.
Que sina a minha!
Apesar de me sentir triste com aquilo, conformei-me.
Allah tinha me salvado da prisão para me dar uma missão
maior ao lado de mulheres e crianças oprimidas, tão
maltratadas pela vida quanto eu. O meu instinto materno seria
dedicado a elas, e eram muitas.
A felicidade com o nascimento do meu sobrinho foi
muito maior do que a tristeza com a percepção de que nunca
poderia engravidar e ter o meu próprio filho. Com Zayn nos
braços, não pensei em mais nada, exceto em ajudar a minha
irmã a criar o filho.
Foi Saqr quem mostrou Zayn para os homens da
família que aguardavam na sala da suíte real que Kismet
ocupava na maternidade do hospital do doutor Fadel. Os
únicos que estavam presentes eram o Sheik Rashid e Yusuf.
Majdan estava nos Estados Unidos, para onde tinha ido fazer
um tratamento médico, e Jamal continuava estudando em
Londres.
O Sheik Rashid e Yusuf rodearam Saqr para admirar o
mais novo sucessor do trono de Sadiz.
— Ele é lindo! Puxou mesmo à mãe — Yusuf disse
assim que o viu.
Saqr olhou de cara feia para o irmão.
— Ele é mais parecido comigo do que com ela.
— Impossível. É bonito demais e você não é.
Parada discretamente ao lado da porta da sala, vi o
Sheik Rashid rindo com a discussão deles e não pude deixar
de rir também. O rei de Tamrah pegou o neto nos braços com a
experiência de quem já tinha muitos filhos de suas quatro
esposas.
— Calem-se, vocês dois! Ele é parecido com o avô e
isso é um decreto real. Que ninguém diga o contrário em
Tamrah.
— Era só o que me faltava! — Saqr resmungou de bom
humor, acariciando os cabelos pretos do filho.
Deixei que os três ficassem mais alguns minutos
admirando Zayn, que passou dos braços do rei para os de
Yusuf. No início ele foi meio desastrado ao segurar o sobrinho,
mas depois pegou o jeito e aninhou Zayn ao colo direitinho.
Observei os dois, mordendo o lábio ao ver aquela cena. Eu
conseguia imaginá-lo com o próprio filho nos braços e o meu
coração se apertou ao saber que não seria a mãe de um filho
dele.
Engoli em seco e respirei fundo, decidindo interrompê-
los quando o principezinho passou de novo para os braços do
pai. Aproximei-me para o levar de volta para Kismet.
O primeiro que notou a minha aproximação foi o Yusuf,
que me envolveu em um olhar tão significativo que vacilei nas
pernas. Não tive dúvidas de que pensava o mesmo que pensei
quando vi Zayn. O instinto paterno havia aflorado nele da
mesma maneira como o materno aflorou em mim ao segurar o
meu sobrinho.
Desviei a vista e me foquei em Saqr.
— Está na hora, preciso levá-lo para Kismet.
Saqr soltou um suspiro de resignação e beijou o cabelo
do filho antes de o passar para mim. Retirei-me sem olhar
novamente para Yusuf ou ainda cairia em lágrimas na frente
deles.
Capítulo 28
Yusuf
Passei a ver menos Malika depois do nascimento de
Zayn. Em uma das raras ocasiões em que a encontrei no
jardim aguardando Layla chegar para o passeio, perguntei-lhe
o motivo da ausência.
— Tenho ajudado Kismet a cuidar de Zayn — ela
respondeu com um sorriso de tia que estava encantada com o
sobrinho. — Mesmo tendo Layla e a babá, minha irmã gosta
que eu esteja por perto. Sempre cuidei de Kismet e nós duas
ainda não conseguimos largar esse hábito.
A resposta foi dada com muito bom humor, o que
mostrava o quanto as duas eram realmente unidas. A
semelhança do que sofreram nas mãos dos homens da família
só fez com que se unissem ainda mais.
— Senti a sua falta — confessei, atento à reação dela.
Malika me olhou com cautela. Estava encantadora
naquele dia, vestida com uma abaya de corte simples e sem
enfeite algum, mas que marcava o corpo pequeno e esbelto
como uma segunda pele. Se ela soubesse o quanto estava
sensual com aquela roupa, provavelmente correria para trocar
por outra mais convencional.
— Também senti a sua falta — admitiu em voz baixa,
como se fosse algo errado que ninguém pudesse ouvir.
Aquelas palavras causaram uma reação inesperada no
meu corpo, que meses atrás eu jamais imaginaria que fosse
sentir com relação à Malika. Fui dominado pela vontade de a
abraçar apertado junto ao peito e de beijar sofregamente
aqueles lábios rosados que não saíam do meu pensamento.
Contudo, agi o mais naturalmente que consegui.
Pigarreei para disfarçar o que sentia.
— E por que não me procurou? Sabe que é só me ligar
e venho me encontrar com você.
— Não quis incomodar. Sei que tem muito trabalho a
fazer nas empresas e no serviço de inteligência.
— Ainda assim, eu teria tempo para nós dois. — Dei
mesmo a entender que éramos um casal.
Senti que ela gostou, o que já era um avanço. Só
esperava que não houvesse um recuo mais tarde.
O sentimento que Malika despertava em mim era algo
que eu ainda não conseguia definir por completo, mas sabia
que era forte, intenso e sólido. A única certeza que eu tinha era
de que sentia falta dela quando estávamos longe um do outro e
que me sentia completo quando estávamos juntos.
— Hoje não vou poder demorar muito no passeio — ela
comentou logo depois. — Vim mais por insistência de Layla.
O comentário parecia mais uma desculpa para ir
embora ficar com a irmã assim que pudesse e achei melhor
não forçar a situação.
— Eu também tenho um compromisso agora de manhã
e não poderei ficar. Passei aqui apenas para ver se a
encontrava e saber como estava.
Ficamos parados, olhos nos olhos, até Malika desviar
os dela para as próprias mãos. Senti que ela estava em uma
fase de recuo e me obriguei a aceitar as condições que
impunha ao relacionamento.
Layla surgiu no arco que levava ao jardim e hesitou ao
me ver, como se achasse que ia ser dispensada.
Cumprimentei-a, mas não a dispensei. Ao contrário, despedi-
me das duas e fui embora, tentando não me sentir frustrado.

Terminei o ghusl janabat84 com um sentimento estranho


no peito. Sentia-me inquieto e preocupado com o que estava
acontecendo comigo, algo tão incomum quanto perturbador,
por não ser a primeira vez nos últimos meses. Sendo bem
sincero comigo mesmo, passou a acontecer quando o que eu
sentia por Malika mudou, deixando de ser apenas uma
amizade.
Tudo começou com o meu interesse sexual por outras
mulheres caindo drasticamente com o decorrer do tempo,
inclusive por Rana, a amante que eu havia acabado de deixar
na cama. Passei a sentir um desinteresse gradativo por ela, até
chegar ao ponto de não conseguir me excitar o suficiente para
ter uma ereção decente na hora do sexo, o que era
preocupante. Aquilo nunca havia acontecido comigo antes e
fiquei assustadíssimo. Mil coisas tenebrosas passaram pela
minha cabeça, desde uma doença grave qualquer à impotência
total.
Hoje eu tinha me acordado de manhã decidido a fazer
duas coisas. A primeira era tentar com Rana pela última vez
antes de procurar uma outra mulher, raciocinando que talvez o
meu problema fosse específico com ela. A minha segunda
decisão era conversar com o doutor Fadel para que ele me
indicasse um especialista que descobrisse o que estava
acontecendo de errado comigo.
No entanto, algo mais assustador ainda aconteceu
naquele dia. No meio de um ato sexual quase mecânico da
minha parte, em que eu já me via sem conseguir me excitar o
suficiente para colocar um preservativo, tive uma ereção
impressionante, mas só porque a Malika veio de repente à
minha cabeça. Sem explicação coerente nenhuma, fantasiei
que era ela quem eu estava beijando, que eram as mãos dela
que me acariciavam, que foram os seios delas que suguei com
paixão e que foi o corpo pequeno e cheio de curvas que
penetrei depois de colocar um preservativo às pressas, o meu
pau duro como uma rocha. Quando o orgasmo chegou, foi nela
que me vi gozando e não em Rana.
Quando abri os olhos e enxerguei quem realmente
estava nos meus braços, a sensação foi amarga.
— Fazia tempo que você não me amava assim com
tanta paixão, Yusuf — Rana disse, extasiada. — Foi tão bom.
Caí para o lado e tirei o preservativo, sem acreditar no
que havia acontecido comigo. Preocupadíssimo, fiquei olhando
para o teto do quarto, ciente de que só consegui uma boa
performance porque fantasiei com uma mulher que me via
como um amigo, que jamais deixaria que eu tocasse nela e que
nunca seria minha mulher de verdade.
Frustrado e enfurecido, levantei-me e fui direto para o
banheiro, esmagando o preservativo na mão.
Não havia mais como me enganar. O que antes era
apenas uma desconfiança da minha parte, agora era uma
realidade. Eu estava mesmo completamente apaixonado por
Malika. Não existia outra explicação para ela ter vindo à minha
cabeça na hora do sexo, deixando-me tão excitado daquele
jeito e me proporcionando um orgasmo tão forte.
Khara! Se Malika souber que acabei de gozar
pensando nela, nunca mais vai se aproximar de mim!
Eu não fazia a mínima ideia de quando foi que passei a
desenvolver um desejo tão grande por ela, uma mulher que
nunca fez nada para me seduzir ou me conquistar. Malika era
totalmente desprovida de intenções amorosas ou sexuais,
confiando em mim como em um amigo, em um irmão.
Enquanto isso, eu estava fantasiando com ela as cenas mais
eroticamente loucas na cama.
Foi com um gosto amargo na boca que terminei o
banho e me enxuguei, indo para o closet depois. Comecei a me
vestir, estranhando a súbita vontade de ir embora dali o mais
rápido possível.
Olhei com seriedade a minha imagem no espelho,
incomodado com a insatisfação que me dominava. Foi com um
suspiro cansado que fui para o quarto, quase no mesmo
instante em que Rana saía do closet dela, já vestida com uma
abaya amarela que marcava o corpo insinuante. Os cabelos
castanhos já estavam secos do banho e soltos no meio das
costas.
Desviei o olhar e fui pegar o meu celular sobre a mesa
de cabeceira para ver se havia alguma ligação ou mensagem.
— Meu querido, largue esse celular só por mais algum
tempo e vamos tomar um qahua85 na varanda. Se ele tocar,
ouviremos de lá.
Ela se aproximou, abraçando-me pela cintura e
erguendo o rosto para me olhar. Depois de ter o desejo sexual
satisfeito, a última coisa que eu queria agora era permanecer
naquela casa. Mesmo sendo minha, eu só a usava para os
meus encontros sexuais e até aquilo não me dava mais o
mesmo prazer de antes.
— Tenho um compromisso e não posso me atrasar.
Mesmo sorrindo, ela não ocultou o desagrado.
— Ultimamente tem sido sempre assim. Você vai
embora logo depois e quase não ficamos mais tempo juntos
como antigamente.
Rana era uma viúva muito bonita de trinta e cinco anos,
cujo falecido marido havia sido um diplomata com o dobro da
idade dela que não resistiu a um câncer de pulmão. Ela não se
casou novamente depois da viuvez, mas eu desconfiava que
teve vários amantes antes de mim. Eu a conhecia há quase
uma década, quando ela ainda era uma mulher casada.
Frequentávamos os mesmos círculos sociais da política, mas
nunca houve absolutamente nada entre nós. Só nos tornamos
amantes depois que ela ficou viúva e deixou claro o interesse
por mim. Mesmo estudando em Londres, sempre nos
encontrávamos quando eu retornava para Jawhara ou quando
ela viajava para a capital inglesa. Era um acordo que satisfazia
a ambos, sem compromisso e agradável, mas que parecia
estar com os dias contados.
Já não era a primeira vez que eu me levantava da
cama depois de uma sessão de sexo com Rana sentindo
aquele gosto amargo na boca. O vazio parecia crescer no meu
peito sempre que tudo acabava.
Foi o sentimento de culpa que me fez sentar com ela
na mesa da varanda para tomar um café. Conversamos sobre
banalidades, mas eu me sentia distraído, prestando pouca
atenção ao que dizia.
— É verdade que você ficou noivo da garota Al
Kabeer?
Ela mudou de assunto repentinamente e não gostei
que se referisse à Malika daquela maneira.
— Não é “a garota Al Kabeer”. É princesa Malika Al
Kabeer.
Rana sorriu, tocando o meu braço.
— Sim, claro! Mas você entendeu o que eu quis dizer.
Ela é muito novinha, parece uma adolescente de dezoito anos.
— Mas não é. Malika tem vinte e quatro, apesar de
aparentar bem menos.
Eu entendia o engano de Rana. Malika era baixinha e
tinha um rosto de menina, além de um olhar meigo e sem
maldade alguma. Podia ser facilmente confundida com uma
adolescente de dezoito anos.
— Então é verdade? — Rana insistiu.
— Sim, é verdade. Estamos noivos.
Ela meneou a cabeça com um sorriso presunçoso.
— Eu sei que deve ser um noivado de conveniência
política, mas os seus pais podiam ter escolhido uma esposa
mais do seu gosto.
Franzi a testa, perguntando-me aonde ela queria
chegar com aquele comentário.
— O que quer dizer com isso?
— Oh, meu querido. Não quero ofender a sua noiva,
mas olhe para mim e olhe para ela. Você gosta de mulheres
lindas e deslumbrantes. Ela é só bonitinha e nada mais.
Olhei com desprezo para Rana. Diante de tanta
arrogância e convencimento da própria beleza, o meu instinto
protetor veio à tona de imediato em defesa de Malika.
— Para mim, a princesa Malika é muito mais bela do
que você em todos os aspectos, tanto físicos quanto interiores.
E é esta beleza que ela tem que realmente me deslumbra e
não a sua. — Ignorei o choque no rosto de Rana, continuando
tranquilamente. — Para sua informação, fui eu quem a escolhi
e não os meus pais.
Rana ficou paralisada, sem conseguir reagir, o que era
bem feito. Quando se recuperou, não perdeu tempo em se
retratar do que havia dito.
— Peço mil perdões pela maneira como falei da
princesa. Foi desrespeitoso da minha parte. Só posso justificar
dizendo que nunca ia imaginar que você mesmo a tivesse
escolhido. Lembre-se que já comentou comigo por diversas
vezes que só assumiria um compromisso depois dos trinta e
cinco e que tão cedo pensava em se casar. Reconheço que
tirei conclusões erradas e estou arrependida.
Pousei a xícara de café sobre a mesa, encarando-a. Eu
nem ia perder tempo perguntando como ela ficou sabendo do
meu noivado, pois era óbvio que a notícia já havia se
espalhado, mas me interessava saber onde ela tinha visto
Malika.
— Onde a viu?
— Estive em um evento beneficente promovido pelo
Ministério da Mulher e a princesa Malika estava presente,
representando a família real — ela informou, referindo-se à
Malika da maneira correta. — Uma amiga comentou comigo na
ocasião que ela era sua noiva e foi quando reparei no anel e na
aliança no dedo dela. Agi normalmente na hora, mas não vou
negar que fiquei ressentida por você não ter contado nada para
mim.
— Este é um assunto pessoal meu. Por que deveria
contar para você?
Ela não escondeu a surpresa com o meu comentário.
— Somos namorados, habibi.
Ouvir aquele habibi dela nunca me soou tão mal.
— Amantes — corrigi friamente. — Somos amantes
sem compromisso algum. Ou já se esqueceu disso?
— Pensei que já tivéssemos ultrapassado essa fase e
fôssemos mais do que apenas amantes. Estamos juntos há
tanto tempo.
Respirei fundo para conter a impaciência.
— De onde você tirou essa ideia? O que tivemos desde
o início foram encontros estritamente sexuais entre quatro
paredes, sem compromisso algum de ambas as partes. Desde
quando isso é namoro? — Levantei-me para ir embora,
definitivamente irritado de estar na presença dela.
— Calma, Yusuf. — Rana se levantou também,
segurando-me pelo braço. — Não se chateie comigo por causa
disso.
Chateado era pouco! Como se não bastasse a falta de
prazer genuíno que já vinha sentindo com ela na cama, aquela
conversa sobre Malika havia tirado completamente a minha
vontade de continuar mantendo qualquer tipo de contato com
Rana.
— Estou atrasado para o meu compromisso —
justifiquei, disposto a sair imediatamente dali, mas algo no olhar
dela me fez parar e deixar uma advertência antes de ir embora.
— Caso um dia volte a estar no mesmo evento que Malika, não
se aproxime dela para nada, nem lhe dirija a palavra. De
preferência, retire-se.
Ela inspirou fundo.
— Você está me ofendendo, Yusuf! Eu jamais falaria
alguma coisa para ela sobre nós dois.
Não gostei nada do que ouvi.
— Esse “nós dois” a que se refere nunca existiu, exceto
na sua cabeça. E se para deixar de existir é preciso que não
haja mais nada, este fica sendo o nosso último encontro
sexual. — Deixei bem claro o que os encontros com ela
significavam para mim. — Você está proibida de se aproximar
da princesa Malika Al Kabeer e isso é uma ordem real.
Rana arregalou os olhos, abismada.
— Não é preciso ser tão duro comigo nem acabar com
os nossos encontros. Aceito o fato de ser sua amante, tanto
agora quanto depois do seu casamento com a princesa. Se não
quer que me aproxime dela, farei exatamente isso, fique
tranquilo.
— A minha decisão já está tomada. Tudo se acaba
agora.
Saí da varanda, peguei o meu celular e a chave do
carro na mesa de cabeceira do quarto e fui embora. Minutos
depois, dirigindo o Bugatti pelas ruas de Jawhara, a minha
cabeça não parava de pensar em tudo o que havia acontecido.
Não, não é possível que eu esteja realmente
apaixonado por Malika! Não posso estar amando uma mulher
que nunca será minha.
Eu nunca havia me apaixonado antes na vida por
mulher nenhuma. Na verdade, eu nem sabia o que era aquilo
de estar apaixonado. Eu via Saqr e Kismet juntos e sentia que
havia um amor verdadeiro entre os dois, mas eles eram o único
casal apaixonado com quem convivi e, mesmo assim, só
recentemente. O que existia entre o meu pai e a minha mãe
não era o mesmo que existia entre o meu irmão e a esposa. O
que havia entre os meus pais era companheirismo e amizade.
Entre Saqr e Kismet era amor, era paixão.
E é exatamente isso o que estou sentindo por Malika.
Só agora eu percebia que estava apaixonado por ela
há muito tempo e não sabia. Apesar de ter demorado a
identificar o que sentia, eu já não tinha mais dúvida alguma de
que era amor.
O que de início achei ser apenas uma vontade muito
grande de ajudar, de ser amigo, de proteger uma mulher frágil,
era na verdade algo mais forte e completo.
Era amor!
Capítulo 29
Malika
Depois do nascimento de Zayn, Yusuf passou a
assumir grande parte dos compromissos de Saqr, para que o
irmão tivesse mais tempo livre para ficar com o filho e com
Kismet. Deixamos de nos ver com a frequência de antes e as
caminhadas matinais que fazíamos se tornaram cada vez mais
raras. Era para eu ter ficado feliz com aquela situação, já que
havia decidido me afastar para não me apegar tanto a ele, mas
a verdade é que fiquei triste, saudosa, sentindo falta da
presença marcante de Yusuf ao meu lado. Toda vez que ia para
o jardim com Layla, ficava com a esperança de ele aparecer,
mas era em vão. Acabei por me conformar com o passar dos
dias.
Eu achava que tudo voltaria ao normal à medida que o
tempo passasse e Zayn crescesse, mas não foi aquilo o que
aconteceu. Seis meses depois, continuávamos nos vendo
apenas durante as refeições em família, ocasiões em que
conversávamos rapidamente, mas nunca sozinhos. Eu tinha
consciência de que aquilo era até muito normal para um casal
de noivos da nossa cultura, que muitas vezes passavam meses
sem se ver, mas eu sentia falta de um contato maior com
Yusuf, de ter mais oportunidades de estar sozinha com ele,
como acontecia antes durante as caminhadas matinais que nos
habituamos a fazer juntos.
Mesmo quando eu ia ao Ministério da Mulher no prédio
da Global Harbi, ele parecia nunca estar por lá. Eu passava a
maior parte do meu tempo na casa de acolhimento das
mulheres ou na Ala do Falcão, ajudando Kismet a cuidar de
Zayn.
— Você nunca mais apareceu no jardim — comentei
certo dia durante um dos jantares semanais em que a família
inteira que morava em Taj estava presente.
Yusuf passou a mão na barba, dando-me a impressão
de estar cansado.
— Os últimos meses foram muito cheios de trabalho. A
agenda de Saqr teve de ser adaptada para sobrar mais tempo
em Taj, assim ele fica mais perto da esposa e do filho. Vários
dos compromissos que ele tinha fora de Taj, de Jawhara ou de
Tamrah passaram para mim, para que o meu irmão se ausente
o mínimo possível do palácio.
Eu entendia e até concordava, se aquilo não
significasse um afastamento maior de Yusuf.
— Sim, claro. — Foi a única coisa que consegui dizer e
depois me calei.
Sentado em uma poltrona ao lado do sofá que eu
ocupava, ele me olhou com atenção.
— Você está bem?
O que falar sobre mim? Que estava com saudades de
um noivo que nunca seria o meu marido e que queria passar
mais tempo com ele? Aquilo soaria ridículo, considerando que
deixamos bem claro um para o outro que não queríamos o
casamento. O noivado nada mais era do que um acordo para
me proteger.
— Estou bem, Yusuf. E você? Parece cansado.
Ele sorriu, mas não era o mesmo sorriso leve de antes.
Era mais sério, conformado, como se algo pesasse sobre ele e
aquilo lhe tirasse a paz de espírito.
— Eu não sabia que estava com essa aparência
cansada, mas garanto que estou bem.
Eu tinha certeza de que ele não estava bem e fiquei na
dúvida se insistia. Talvez o problema dele fosse comigo, ao
perceber que havia cometido um erro ao me pedir em noivado.
Comecei a desconfiar que Yusuf estava me evitando.
— Sempre fomos sinceros um com o outro. Se chegar
o dia em que precise da sua liberdade de volta como homem
solteiro, é só me dizer e desfazemos o noivado. Acredito que o
meu tio Suleiman até já se esqueceu de mim depois de tanto
tempo e não vai mais causar problemas.
Ele franziu a testa.
— O noivado vai continuar — afirmou em tom
categórico. — Você continua sendo minha noiva. Não tenho
necessidade de ser livre agora.
Agora, não. Mas um dia, sim.
Yusuf era um homem extremamente atraente, que
emanava masculinidade por todos os poros, além de ter um
jeito especial de tratar as mulheres que conquistava até as
mais reticentes como eu. Apesar de doer no meu coração
pensar naquilo, um dia ele poderia se apaixonar e querer ser
livre para assumir a mulher que amava.
Eu não sabia se estava preparada para aquele
momento, mas teria de aceitar.
— No dia em que precisar da sua liberdade,
desfazemos o noivado sem problema algum da minha parte.
Ele me olhou com uma expressão indecifrável.
— Sei disso.
A conversa terminou por ali, com ele pedindo licença
para ir conversar com o pai e o irmão. Fiquei sozinha e logo
Sabirah se sentou ao meu lado.
No final da noite, quando fiz minhas orações antes de
me deitar para dormir, foi com uma sensação dolorosa no peito.
— Não vou perguntar por que me foi dado este destino
tão sofrido aqui na Terra, poderoso Allah. Vou apenas continuar
pedindo misericórdia e forças para cumpri-lo.

Majdan voltou de Nova York depois de seis meses de


tratamento. Ninguém da família falava muito sobre os
problemas do primogênito Al Harbi com as drogas. Se não
fosse a Kismet me contar, eu provavelmente continuaria sem
saber de muita coisa.
— Isso só mostra o quanto Mubarak é mesmo uma
pessoa nociva. Nem para amigo presta — ela disse com
desagrado enquanto amamentava Zayn.
— Eu sempre soube das orgias que ele promovia em
Sadiz. Diziam que rolava muito sexo, bebidas e drogas. Acho
que todos da família ouviram falar dos escândalos em que ele
se envolveu quando estudava em Londres, mas nunca pensei
que Majdan tinha ficado viciado. Agora começo a achar que
Mubarak também é, mas talvez em um grau mais controlado.
Kismet acariciou os cabelos de Zayn, que já fechava os
olhinhos de sono.
— Não deve ter sido nada fácil para o Sheik Rashid e
Farah lidarem com esse vício de Majdan. Que sofrimento para
os pais! Só espero que ele volte curado.
Aquilo era o que a família inteira queria e o dia da
chegada de Majdan foi comemorado por todos. Eu o vi apenas
no jantar de recepção que Farah preparou, cercado pelos três
filhos. Hud era o primogênito com dez anos. O segundo filho
era Imad, com nove anos, seguido pela única menina, a Abia,
com sete anos.
Farah não cabia em si de tanta felicidade. Já o Sheik,
estava visivelmente emocionado ao ver o filho mais velho em
casa de novo. Saqr e Yusuf conversaram bastante com Majdan
durante o jantar e senti que todos estavam aliviados ao ver que
o tratamento de desintoxicação havia surtido efeito nele.
A única que parecia mais reticente era Sabirah.
— Eu espero que ele esteja mesmo curado ou será
uma decepção para todo mundo — ela confidenciou
discretamente para mim no fim do jantar. — Dos meus irmãos,
ele é o único com quem não tenho muita aproximação.
Confesso até que tenho um certo medo. Ele já fez coisas que
me assustam.
— É compreensível que sinta isso. Também tenho
irmãos com quem não sentia muita afinidade. Bassam sempre
foi o meu preferido, o que mais me ajudava.
Ela sorriu, os olhos brilhando.
— Sinto isso por Yusuf. Dos meus irmãos, ele é o mais
preocupado comigo. Está sempre querendo saber como estou,
se preciso de algo. Também é com ele que me sinto mais à
vontade para falar das coisas.
Era exatamente daquela forma que ele me tratava
também e fiquei pensando se me via como uma irmã mais nova
igual à Sabirah.
Provavelmente!
Achei que a chegada de Majdan ia fazer com que Yusuf
ficasse menos sobrecarregado de trabalho, dividindo com o
irmão mais velho os compromissos que havia assumido de
Saqr, mas aquilo não aconteceu. Farah comentou comigo que
Majdan pediu que não lhe passassem nada por enquanto, pois
não se sentia preparado ainda para voltar à ativa com os
assuntos do governo ou das empresas.
— Rashid e eu nos reunimos com Saqr e Yusuf para
conversar sobre Majdan e decidimos deixá-lo de fora dos
problemas do país. Pelo menos até que ele esteja pronto. Não
sabemos até que ponto o forçar seja o ideal. — Ela suspirou
cansadamente e me solidarizei com o seu sofrimento de mãe.
— Meu filho parece tão emocionalmente fragilizado. Tento não
achar que esse tratamento foi em vão.
— Vamos manter a fé e acreditar que Allah o curou de
vez.
— InshAllah.86
Eu não podia fazer mais nada além de me juntar a ela
nas orações por Majdan e ajudar no Ministério da Mulher. E foi
o que fiz. Passei a dedicar todo o meu tempo aos projetos da
instituição, visitando frequentemente a casa de acolhimento.
Farah quase não ia mais lá, deixando a meu encargo a
supervisão do trabalho desenvolvido por eles, o que eu
adorava fazer.
O tempo foi passando e a rotina dos Al Harbi seguia
bem até o dia em que a calmaria se acabou.
Aconteceu depois de um dos jantares em família,
quando todos estavam conversando após a refeição. Como de
hábito, eu tinha Sabirah de um lado e Kismet do outro. Yusuf
estava com o pai e com Saqr no outro lado da sala. Zayn tinha
ficado dormindo na Ala do Falcão sob os cuidados de Layla e
as únicas crianças na sala eram os filhos de Majdan, que
estavam sentados à nossa frente, concentrados em um jogo no
celular. O pai estava ausente em um evento de carros para o
qual havia sido convidado.
Eu conversava com Kismet e Sabirah, mas a minha
atenção estava presa em Yusuf. Não conseguia deixar de o
admirar em silêncio, observando cada gesto que fazia, cada
expressão do rosto, deixando-me embalar pelo som da voz
dele que às vezes chegava até onde eu estava.
Eventualmente, nossos olhares se cruzavam e eu perdia o
fôlego, mas sorria para ele como se nada de mais tivesse
acontecido.
Em um determinado momento da tranquila reunião
familiar, a porta da sala se abriu e Majdan entrou, chamando a
atenção de todos.
— Meu filho, que bom que chegou mais cedo! — Farah
comentou, levantando-se para o receber.
— Não vou demorar, mãe. Vim só pegar os meus filhos.
Eu não sei se foi o tom de voz ou a expressão dos
olhos de Majdan que me alertaram para o fato de ele não estar
bem. Olhei imediatamente para Yusuf e o vi franzindo a testa
ao acompanhar o irmão caminhando para o lado da sala onde
estavam as mulheres.
Fiquei com a impressão de que Farah também notou
ao ir ao encontro dele.
— Você está bem, filho? — perguntou em um tom de
voz baixo, como se não quisesse que os filhos dele ouvissem.
— Estou, mãe.
Apesar da resposta, o timbre era tenso demais, como
se ele estivesse se controlando a muito custo. Havia uma
energia de caos ao redor de Majdan e aquilo me deixou
preocupada com os filhos dele, que iriam embora com o pai
naquele estado.
— Hud, Imad e Abia, vamos!
Os dois meninos se levantaram para ir com o pai, mas
a pequena Abia continuou sentada, olhando receosa para ele.
Não devia ser fácil para uma criança tão pequenina
acompanhar as oscilações de humor do pai. A meu ver, o
tratamento que ele havia feito em Nova York não foi o suficiente
para uma cura completa. Eu já tinha estudado sobre a
dependência de drogas no meu curso e fiquei com receio de
Majdan estar sofrendo de alguma crise de abstinência. Pior
seria se tivesse consumido alguma coisa. Bastava um pouco
de álcool para desencadear no cérebro a necessidade das
drogas.
Aparentemente Kismet não notou nada, mas o mesmo
não aconteceu com Sabirah, que trocou um olhar significativo
comigo.
— É melhor deixar as crianças aqui hoje, filho — Farah
disse com firmeza. — Ficarão comigo esta noite.
— Não. Eles vão comigo.
Resoluto, Majdan se aproximou de onde estávamos
para pegar os filhos. Foi quando Abia se levantou e correu para
o sofá onde estávamos, escondendo-se entre Sabirah e eu. A
reação dela me pegou de surpresa, mas não pensei duas
vezes em abraçar a menina. Ela tremia de medo e se agarrou
com força no meu pescoço, o que era compreensível, ainda
mais quando Majdan parou à nossa frente. Até eu me assustei
com a atitude ameaçadora dele, e não duvidava que Kismet e
Sabirah também estivessem assustadas.
— Solte a minha filha — exigiu.
— Ela quer ficar com a avó.
Tentei ser diplomática, mas a verdade era que a
menina estava com medo do pai, e com razão.
— Solte-a!
Pensei que ele fosse arrancar Abia dos meus braços,
mas se Majdan pensou naquilo, não teve tempo. Yusuf foi
rápido em se colocar entre nós quatro e o irmão, impedindo
que Majdan se aproximasse.
— Cuidado como fala com a Malika — avisou com
seriedade e muita calma. — Pense bem no que pretende fazer.
Saqr apareceu logo depois, segurando no braço de
Majdan.
— Afaste-se delas.
A tensão se instalou na sala e pensei se Majdan ia
investir contra os irmãos.
— Filho, mas o que é isso? — o Sheik Rashid
perguntou com autoridade, aproximando-se também e ficando
de frente para Majdan. — Você está assustando as mulheres
da família e isso eu não admito. Se Abia quisesse ir com você,
estava agora nos seus braços. Se ela não está, é porque quer
ficar. Não acho que você esteja em condições de cuidar de
nenhum dos seus filhos hoje. Os três vão ficar com a sua mãe
até que eu ache que você está em condições de ficar perto
deles.
Com tantos homens à nossa frente, eu não podia ver a
expressão de Majdan, mas imaginava que não devia ser das
melhores. A maior prova daquilo foi o palavrão que ele soltou.
— Cuidem bem dos meus filhos — disse, saindo
bruscamente da sala logo depois.
Yusuf se virou de imediato para mim, olhando-me com
atenção.
— Você está bem?
Assenti com um meneio de cabeça.
— Estou.
Ele olhou para o pai, que observava com preocupação
a porta por onde Majdan havia saído.
— Acho que devíamos ir falar com ele — Yusuf opinou
com a fisionomia tão preocupada quanto a do pai. — Algo não
está bem.
Saqr colocou uma mão no ombro de Kismet em um
gesto de conforto, que ela segurou, respirando fundo. No meu
colo, a pequena Abia se mantinha calada, enquanto Farah
abraçava os outros dois filhos de Majdan.
— Vamos nós três falar com ele — o sheik decidiu.
E foi o que fizeram, deixando-nos sozinhas com as
crianças. Senti que Farah estava devastada com o que
aconteceu, mas se manteve firme e tranquila, para não
assustar ainda mais os netos.
— Vamos crianças. Vocês vão ficar com a avó hoje —
falou para eles com um sorriso. — Sabirah, traga Abia. Kismet,
vá para casa com Malika. Saqr pode demorar a voltar e é
melhor que vocês duas já estejam lá.
Fizemos o que ela mandou e voltamos para casa.
— Eu só espero que tudo se resolva bem — Kismet
disse quando entramos na Ala do Falcão.
— Eu também. Confesso que ele me assustou.
— A mim também. Se estivéssemos sozinhas com as
crianças, ele teria arrancado Abia do seu colo.
— Pensei a mesma coisa na hora.
— Amanhã saberemos o resultado disso.
O resultado foi o retorno de Majdan naquela mesma
semana a Nova York para fazer um novo tratamento em uma
clínica diferente. Ele admitiu que teve uma recaída e que
consumiu na festa que aconteceu depois do evento de carros.
Parece que ele tinha uma sina de só frequentar festas onde
havia ricos e famosos que bebiam além da conta e consumiam
drogas.
Segundo Kismet me contou no dia seguinte, Saqr
estava preocupadíssimo com o irmão, que chorou muito
dizendo que não aguentava mais aquela vida. A grande
realidade era que a família inteira estava preocupada,
desconfiando que ele estivesse com ideias de atentar contra si
mesmo. Decidiram que alguém o acompanharia até Nova York
e só voltaria quando Majdan estivesse dentro da clínica
cercado por profissionais e tendo superado pelo menos os
primeiros dias de um novo tratamento.
O escolhido para o acompanhar foi Yusuf e o meu
coração se entristeceu com mais aquela ausência dele.
Capítulo 30
Malika
Yusuf passou uma semana em Nova York, deixando
Majdan internado lá. Ele veio se despedir de mim antes de
viajar.
— Saqr vai cuidar de você na minha ausência.
Observei o rosto com traços de cansaço e tristeza por
tudo o que Majdan estava passando. Segundo Kismet havia
confidenciado comigo, Yusuf estava dormindo na ala do irmão
para cuidar dele à noite até que estivesse internado na clínica.
Majdan não era deixado sozinho nem por um minuto. De
manhã ficava com Farah, à noite com Yusuf. Os filhos dele não
foram afastados do pai. Todos sabiam o quanto eram
importantes demais para ele e Majdan precisava se sentir
amado pela família para superar aquela fase de depressão.
— Não se preocupe comigo, vou ficar bem —
tranquilizei-o. — Cuide do seu irmão, que está precisando de
ajuda agora.
Yusuf ficou me olhando profundamente. Por um minuto
de insanidade, pensei se ele sentia por mim algo mais do que
apenas carinho por uma mulher que havia sofrido muito.
Ele me surpreendeu ao se aproximar e beijar o alto da
minha cabeça. Não tocou em mim em nenhum outro local,
apenas os lábios beijaram os meus cabelos. Foi tão rápido que
nem tive como reagir, mas a emoção de o ter tão perto e de ser
beijada daquela forma me dominou.
— Cuide-se — ele disse com a voz grave ao se afastar.
— Você também — respondi, ainda sem fôlego.
Os dois viajaram horas depois, deixando a família
inteira ansiosa por notícias, que Kismet me repassava assim
que Saqr lhe contava.
— Deu tudo certo nos primeiros dias de Majdan na
nova clínica que ele escolheu. Essa é mais rigorosa e parece
que agora vai dar certo. Yusuf está voltando amanhã.
O meu coração deu um pulo no peito de emoção.
Pensei se ele viria falar comigo quando chegasse, desejando
ardentemente que sim, e Yusuf não me decepcionou. Na tarde
do dia seguinte o meu celular tocou com uma ligação dele.
Atendi me sentindo plena de felicidade.
— Cheguei de viagem agora. Podemos nos ver?
— Ahlan wa sahlan87, Yusuf! Sim, claro. No jardim?
— Sim, em trinta minutos — ele confirmou.
— Estarei lá.
Fui para o jardim bem antes do tempo marcado e ele
também chegou cinco minutos mais cedo. Sorri ao vê-lo
caminhando na minha direção com passadas firmes, tal foi o
prazer de estar novamente com ele. Yusuf usava uma túnica
longa de corte moderno com calças de um tom acinzentado
que ressaltavam o corpo alto e forte. Os meus olhos admiraram
cada pedaço daquele homem único, que tinha um significado
enorme na minha vida.
A certeza de amar Yusuf do fundo do coração caiu
sobre mim com uma força tão grande que até perdi o fôlego.
Por Allah, eu o amo!
Yusuf parou à minha frente. Bem mais alto do que eu,
inclinei a cabeça para trás para que os nossos olhos se
encontrassem. Vi emoção nos dele, junto com a mesma
felicidade que eu estava sentindo. Sorrimos um para o outro,
partilhando aquele sentimento de felicidade com o reencontro.
Notei o quanto a fisionomia dele estava bem mais
relaxada do que quando nos despedimos há uma semana.
— Deu tudo certo com Majdan em Nova York?
— Sim, deu. Agora é rezar para que o tratamento
funcione. Está tudo nas mãos de Allah.
— Ficaremos em oração para isso. E você, como está?
— perguntei, observando-o com atenção. — Sinto que está
mais tranquilo.
— Você tem razão. Estou mais aliviado agora que o
meu irmão está com profissionais tratando dele.
Yusuf fez um gesto para o jardim à nossa frente,
convidando-me para uma caminhada e começamos a andar
lentamente.
— E você, o que fez por esses dias? — ele me
perguntou.
— O de sempre. Trabalhei no ministério, cuidei de Zayn
e senti a sua falta.
Ele me olhou com um meio sorriso nos lábios.
— Também senti a sua.
Sorri também, feliz demais com o retorno dele. O clima
entre nós dois estava menos tenso do que nos últimos meses
antes daquela viagem e rezei para que tudo voltasse ao que
era.
— Trouxe um presente para você.
Pasma, arregalei os olhos com aquela surpresa.
— Um presente para mim?
Ele riu ainda mais.
— Sim, para você.
Enfiou a mão no bolso e tirou de lá o estojo de uma
joalheria famosa. Se eu estava surpresa, fiquei ainda mais ao
ver que se tratava de uma joia.
— Ah, eu não acredito! — exclamei sem reação.
— Abra e veja o que é.
Peguei o estojo e abri, inspirando fundo ao ver a beleza
do colar e dos brincos, cujo design das pedras formavam
pequenas flores iguais às que existiam ali no jardim. Iguais à
que ele havia me dado e que eu guardei nas páginas do meu
livro de orações depois que as pétalas secaram.
— Por Allah, são rosas do deserto! Como eles
conseguiram fazer isso? É lindo, Yusuf. — Senti os meus olhos
úmidos de lágrimas de emoção.
— Gostou mesmo?
Olhei para ele, deixando que visse no meu olhar o
quanto havia amado aquele presente.
— Amei demais. Shukran!
Quis muito completar dizendo “como amo você”, mas
me calei.
Ele se aproximou de mim e senti que ia beijar os meus
cabelos como fez antes de viajar. Deixei que os beijasse,
sentindo o coração aos pulos. Não houve toque físico algum,
exceto dos lábios nos meus cabelos, mas senti o calor do corpo
dele, a energia vibrante que emanava do seu interior e pude
inspirar com mais força o aroma do perfume que ele usava.
— Use no jantar de hoje à noite — ele pediu ao se
afastar de mim.
— Usarei.
E foi exatamente o que fiz. Escolhi uma abaya
castanha sem estampa alguma para sobressair a beleza das
flores que havia no colar. Depois, fiz duas tranças nas laterais
do meu rosto e as prendi na parte de trás dos cabelos, para
destacar os brincos, ansiosa para ver a reação de Yusuf no
jantar.
Assim que entrei na sala com Kismet e Saqr, senti o
olhar dele sobre mim. Ele estava conversando com uma das
irmãs mais velhas, mas pediu licença logo depois e veio falar
comigo. Notei a maneira como admirou o colar no meu
pescoço, mas também parte do meu busto que ficou visível
com abaya de decote mais pronunciado. O olhar voltou rápido
para o meu rosto e ele sorriu, satisfeito.
— Ficou tão perfeito quanto imaginei. Você está linda!
— Usou um tom de voz baixo, para que só eu ouvisse.
— Linda, eu? Sem dúvida que as joias ajudaram.
— As joias ressaltaram o que já existe.
Sem dúvida alguma, aquele foi um dos melhores
jantares em família que já tive em Taj.

Eventualmente, o Ministério da Mulher promovia alguns


eventos beneficentes. Foi em um deles que pude comprovar
que a minha beleza não se comparava à beleza das mulheres
que Yusuf realmente admirava.
Rana Al-Makki era uma mulher tão deslumbrante e
perfeita em todos os aspectos físicos, que eu até entendia que
um homem se apaixonasse perdidamente por ela. Foi uma
sorte eu não estar sozinha naquele evento promovido pelo
ministério, mas com Kismet.
Quem nos apresentou foi Johara, uma prima de Yusuf
que também estava presente. Assim que ela se aproximou de
nós duas, senti a tensão da minha irmã e estranhei aquela
reação.
— Esta é Rana Al-Makki — Johara apresentou depois
dos cumprimentos. — Ela é uma das maiores admiradoras da
minha tia Farah e faz questão de participar de quase todos os
eventos promovidos pelo ministério.
Virei-me para a mulher à minha frente, tão bela quanto
Kismet, só que mais alta.
— Fico muito feliz que apoie o trabalho de Farah.
— Sou amiga íntima da família há anos e nunca deixei
de acompanhar o crescimento dos projetos do ministério.
Ela podia ser amiga íntima da família, mas eu não me
lembrava de ter visto Rana em nenhum dos eventos em Taj.
Pensei se estava cometendo alguma gafe por não me lembrar
da mulher.
— Peço mil desculpas por não me lembrar de já termos
sido apresentadas antes.
— Nunca fomos — Kismet garantiu com firmeza.
Rana olhou para minha irmã e sorriu, mas não vi
espontaneidade naquele sorriso.
— Realmente não fomos. Sou amiga íntima da família
por parte de Yusuf.
De Yusuf?
Não foi preciso que se dissesse mais nada para que eu
entendesse tudo, inclusive a intenção dela ao conseguir ser
apresentada a mim. Rana Al-Makki queria que eu soubesse do
relacionamento dela com o meu noivo.
Fiquei chocada com a ousadia das duas. Ao meu lado,
Kismet inspirou fundo, indignada.
— Ora, tenham a decência de sair do nosso caminho e
não nos dirijam mais a palavra! — Minha irmã olhou para
Johara. — A partir de hoje você não entra em mais nenhum
evento familiar dentro de Taj Almamlaka.
— O quê?! Sou da família — Johara exclamou,
enfrentando Kismet. — Quem você pensa que é?
— Sou três vezes princesa. Aqui, em Qasara e em
Sadiz. Sou a esposa do príncipe herdeiro e mãe do sucessor
de Tamrah. — Kismet foi arrogante como nunca antes na vida,
citando todos os títulos que possuía, inclusive os que havia
adquirido ao se casar com Saqr. — E sabe quem você é? Um
membro invejoso da família que não sabe perder e que não é
mais bem-vindo no palácio. Você acabou de ser excluída do
meu convívio.
Segurei Kismet pelo braço, pedindo calma.
— Não temos que falar nada com elas. Ignore-as. —
Usei o meu tom de voz mais calmo e confiante, ainda que
estivesse devastada por dentro. — Deixe que envenenem uma
à outra, como fazem as cobras.
Rana e Johara olharam para mim, estáticas e
emudecidas, mas realmente as ignorei. Com altivez, afastei-me
delas junto com Kismet, continuando a falar com as pessoas no
evento e tentando não me lembrar da beleza impressionante
daquela mulher. Era um absurdo comparar nós duas no quesito
de beleza física.
Assim que voltamos a ficar sozinhas, minha irmã
desabafou.
— Ainda estou furiosa!
— Não fique. Está óbvio que elas armaram aquilo para
me atingir, mas não deu em nada. Elas não sabem que o
noivado é uma farsa.
Kismet me olhou com atenção.
— Pensei que você estivesse gostando de Yusuf.
— E gosto, mas como um amigo. Você sabe que nunca
vou me casar.
Ela fez uma cara de tristeza, mas não tentou me
convencer do contrário.
— Ainda assim elas foram maldosas. Se você
estivesse mesmo apaixonada por Yusuf, ia ficar arrasada.
E é assim mesmo que estou.
Quando cheguei em casa e fiquei sozinha no meu
quarto, dei vazão à dor que estava sentindo, chorando tudo o
que tinha direito.
Foi ilusão da minha parte acreditar que um dia Yusuf
sentiria algo por mim que não fosse amizade. Estava óbvio que
o tipo de mulher que ele gostava não tinha nada a ver comigo.
Por outro lado, o que eu poderia oferecer a ele? Nada.
Absolutamente nada. Apenas traumas, medos e a
incapacidade de ser uma mulher completa.
Chorei. Chorei muito, mas foi por tudo o que me
roubaram na prisão de Thueban. Quando as lágrimas secaram,
lembrei-me de que havia saído com vida de lá e que deveria
agradecer à Allah por aquilo.
Foi o que fiz na meia hora seguinte, ajoelhada sobre o
tapete de orações.

Se fosse por mim, eu não teria participado do jantar em


família daquela noite, mas precisei disfarçar a minha dor para
Kismet ou ela descobriria o meu amor por Yusuf.
Ignorei-o o tempo todo, sentando-me ao lado da minha
irmã na mesa e me concentrando apenas em terminar logo a
refeição e me recolher.
— Quero aproveitar que estamos reunidos em família
para lhe pedir um favor — Kismet se dirigiu ao Sheik Rashid
durante o jantar daquela noite.
Todos olharam para minha irmã com surpresa, inclusive
eu.
— Peça o que quiser — ele disse de bom humor. —
Estou curioso para saber o que o meu filho não conseguiu
resolver que precise da minha interferência.
— Também estou curioso — Saqr disse, pousando os
talheres e olhando para Kismet, deixando claro para todos que
não sabia do que se tratava.
A minha irmã não pareceu intimidada ao ter os dois
homens fortes de Tamrah aguardando o pedido que ia fazer.
— Quero pedir que Johara não seja mais convidada
para nenhum evento em Taj.
A minha surpresa não teve tamanho. Pensei que
Kismet fosse se esquecer do assunto, mas pelos vistos aquilo
não aconteceu. Fiquei tensa, sem saber o que mais ela
pretendia contar para a família. Não era possível que fosse
falar algo sobre Rana.
Não fui só eu que fiquei tensa na mesa. Um silêncio
pesado caiu sobre todos.
Notei a troca de olhares entre Saqr e o pai. Da minha
parte, dei um beliscão na perna de Kismet por baixo da mesa,
alertando para não falar de Rana.
— E por que eu deveria proibir a entrada de Johara no
palácio? — o sheik perguntou, continuando a comer
tranquilamente.
— Hoje pela manhã, eu e Malika nos encontramos com
Johara no evento beneficente do Ministério da Mulher e ela nos
desrespeitou propositadamente. Ela e uma senhora chamada
Rana Al-Makki.
Eu não acredito que ela falou!
Kismet devia estar mesmo furiosa com Johara. Eu já
sabia que Johara havia passado anos achando que seria a
escolhida de Saqr para ser sua primeira esposa, mas que ele
nunca quis aquele casamento. O que eu não sabia, era que a
raiva da minha irmã fosse tão grande assim.
Senti o choque de Yusuf mal Kismet falou o nome de
Rana, o que só comprovava que os dois eram mesmo
amantes. Não o olhei, permanecendo com o rosto o mais
impassível que consegui e fingindo continuar a comer.
— O que elas fizeram com vocês? — Yusuf perguntou
com um tom de voz severo.
— Prefiro não dizer — Kismet foi dura com ele, mas
havia um leve tom mordaz na resposta que deu, antes de falar
para todos os outros. — Vocês vão ter de acreditar em mim. Na
verdade, em nós duas.
Não havia mais como evitar a situação. Parei de comer
e olhei para o Sheik Rashid, colocando-me ao lado da minha
irmã. Ignorei o olhar preocupado de Yusuf e mantive a
expressão serena.
— Se Johara entrar em algum evento dentro deste
palácio, eu vou embora de Taj com Malika no minuto seguinte,
levando o meu filho junto. — As últimas palavras de Kismet
foram ditas olhando para o marido.
Antes que Saqr e Yusuf dissessem alguma coisa, o
Sheik Rashid se pronunciou com autoridade.
— Está decidido. Johara está banida de Taj Almamlaka
e ponto final. Que a paz continue a reinar na minha família.
Continuemos a jantar.
— Shukran, majestade.
O jantar continuou, mas a comida travava na minha
garganta e era difícil de engolir. Na primeira oportunidade que
Kismet teve de falar a sós comigo quando estávamos reunidos
após o jantar, pediu desculpas.
— Sinto muito ter tocado no assunto, mas era preciso
arrancar um compromisso do sheik antes de Johara apelar,
contando a versão dela dos fatos. Mesmo que Saqr a proibisse
de entrar aqui, se o sheik fosse contra, teríamos de aguentar
aquela cobra em Taj. Agora ele não vai poder voltar atrás de
jeito nenhum e Johara será banida do palácio. Se bem conheço
o sheik, ela será banida de tudo.
— Eu entendo, mas esqueça o assunto de Rana.
Capítulo 31
Yusuf
Fiz um esforço tão grande para me controlar que senti
a tensão endurecer os músculos dos meus ombros. Continuar
a jantar como se nada tivesse acontecido era uma grande
merda, mas foi o que fiz nos minutos seguintes.
O meu olhar era atraído o tempo todo para o rosto de
Malika do outro lado da mesa, mas ela não me olhou
diretamente uma única vez. Aquilo só deixou claro para mim
que Rana havia passado dos limites e falado algo sobre o meu
passado com ela.
Khara! Al’ama!88
Não ia ser só a Johara que seria banida do convívio
com os Al Harbi. Eu mesmo me encarregaria de fechar todas
as portas para Rana, fosse em Tamrah ou no exterior.
Fui obrigado a esperar o jantar terminar para tentar
falar com Malika e descobrir o que havia acontecido. Eu
precisava esclarecer tudo ou corria o risco de perder a mulher
que amava e também a amiga.
Assim que saímos da mesa e fomos para os sofás,
observei-a se sentar ao lado de Kismet. O problema era a
esposa do meu irmão, que estava visivelmente enraivecida
com o que havia acontecido e comigo também. Eu não tirava a
razão dela, mas também não podia deixar que Kismet me
impedisse de falar com Malika.
Aproximei-me de Saqr.
— Preciso falar com Malika para saber o que
aconteceu hoje e não sei qual vai ser a reação da sua esposa.
Notei que ela está chateada.
— Você está sendo diplomático ao dizer que Kismet
está chateada. Ela está furiosa mesmo. — Ele foi direto
comigo. — Já sei que vou ouvir reclamação quando chegarmos
em casa.
— Mesmo estando furiosa, vou chamar Malika para
uma conversa e tem de ser agora.
— Vou tentar ajudar. Espere aqui.
Saqr foi até o sofá onde as duas estavam sentadas e
parou ao lado da esposa. Ela ergueu a cabeça para o olhar e
ele lhe ofereceu a mão, chamando-a. Kismet falou com a irmã,
segurou a mão dele e se levantou, sendo trazida para onde eu
estava. Assim que me viu, ela ficou séria.
— Yusuf precisa conversar a sós com Malika — Saqr
explicou, tentando conciliar a situação.
— Desde que ele tenha cuidado com o que vai falar e
não insista, caso ela não queira.
— Não insistirei — garanti.
— Aproveite e diga depois às suas amantes para
ficarem longe da minha irmã. — Ela foi cortante no comentário.
Não respondi nada, apenas cruzei um olhar com Saqr e
fui ao encontro de Malika, sentando-me no lugar de Kismet ao
lado dela.
— Podemos conversar?
Malika me olhou com surpresa, mas aparentou
tranquilidade.
— Sim, claro.
Apesar da afirmação, senti que não havia o mesmo
calor na resposta dela nem no brilho do olhar. Era justo, mas
não deixava de doer. Pensei se havia perdido o pouco que
tínhamos.
— Quero lhe explicar sobre a Rana.
— Não precisa! — Ela me cortou de imediato. — Eu
entendi tudo. Acho desnecessário explicações sobre o
relacionamento de vocês.
— Não há relacionamento nenhum entre nós dois. Há
meses que terminei tudo com ela. — Fui sincero, esperando
convencê-la da verdade. — Não há motivo algum para Rana
dar a entender que ainda temos algo um com o outro.
Malika comprimiu os lábios com desgosto e baixou a
vista para as mãos no colo.
— Tem noção do quanto é desagradável para mim, e
também inconveniente, manter esta conversa com você sobre
suas amantes?
Ela falou no plural, como se soubesse da existência de
outras. Era claro que não sabia, mas também era óbvio demais
que eu deveria ter outra amante substituindo Rana.
A vontade que tive foi de dizer que se ela, Malika,
aceitasse ser a minha esposa, nunca mais existiriam outras
mulheres na minha vida. Mulheres que não supriam as minhas
necessidades de amor, como eu sabia que ela supriria.
— O que você sente por mim? — perguntei de repente.
Malika me fitou com os olhos muito abertos. Demorou a
responder e fiquei em suspenso, ansioso para ouvir que me
amava.
— Amizade. Considero você um grande amigo —
afirmou, deixando-me arrasado. — O nosso noivado foi um
acordo que fizemos por ser vantajoso para os dois e só aceitei
porque você me garantiu que eu não estaria atrapalhando a
sua vida. Se estou, acho que devemos terminar o noivado.
— Não! — neguei sem vacilar. — Você não está
atrapalhando nada. Peço que continue sendo minha noiva.
— Talvez esteja na hora de acabarmos com essa farsa,
Yusuf. Estamos enganando muita gente com algo sério e Allah
pode nos castigar lá na frente.
— Allah sabe dos nossos motivos. Não vou deixar você
vulnerável diante de Suleiman e de Mubarak.
— Acho que eles nem se lembram mais de mim. Já se
passou muito tempo.
— Eles se esqueceram de você porque sabem que é
minha noiva. A partir do momento em que chegar em Sadiz a
notícia do fim do nosso noivado, vão se lembrar que você
existe e exigir que volte.
Ela inspirou fundo, como se estivesse dividida.
— Não vamos conseguir evitar que isso aconteça um
dia.
— Enquanto pudermos evitar, é o que faremos. Allah
decidirá quando as coisas vão mudar e não será agora. —
Olhei-a com todo o amor que sentia no coração, sem me
importar que descobrisse os meus sentimentos. — Esqueça
tudo o que aconteceu hoje de manhã, Malika. Por favor,
esqueça totalmente. Nada disso é importante para mim. O que
me importa mesmo é que continue sendo minha noiva. Quero
proteger você.
Ela demorou tanto a responder que achei que fosse
negar.
— Continuamos noivos.
O alívio que senti foi tão grande que me recostei contra
o espaldar do sofá. Podia parecer idiotice da minha parte, mas
ter Malika como minha noiva me dava esperanças de um dia
conseguir conquistá-la, de convencê-la a fazer parte da minha
vida como uma esposa, e não apenas uma amiga.
— Vou deixar que Kismet volte para o seu lado agora.
Procurarei você no jardim para acompanhar o seu passeio.
Malika meneou a cabeça em assentimento e me
levantei, fazendo um sinal para Saqr e saindo da sala. Eu não
tinha mais condições de ficar trancado ali dentro.
Fui para a minha casa e peguei o Bugatti, saindo em
alta velocidade de Taj. Peguei as ruas de Jawhara em direção
às vias de menor acesso que levavam ao interior e onde
poderia acelerar sem problemas. Depois de uma hora dirigindo,
parei no meio do nada, desci do carro e gritei bem alto a minha
raiva, extravasando a frustração contra tudo o que estava
acontecendo.
— Eu a quero para mim, Allah! — gritei, desesperado.
Capítulo 32
Sadiz
Mubarak
— Sua Majestade o Rei Suleiman está reagindo bem
ao tratamento da insuficiência cardíaca. Estamos confiantes
que se recuperará, voltando a ser o homem forte de antes e
assumindo novamente às suas atividades no governo, alteza.
Mas eu não quero que ele se recupere e volte a
assumir nada!
— Que Allah seja louvado por esta benção, doutor.
Tenho orado muito para a recuperação do meu pai. Nosso país
precisa dele.
— Sim, é verdade. Nosso rei é um governante sempre
preocupado com o povo e que trouxe crescimento para o país.
Que Allah o abençoe! Estamos todos aliviados com o
prognóstico positivo do tratamento.
— Quando ele poderá voltar para casa? Sinto
saudades e também falta dos sábios conselhos que o meu pai
sempre me deu. Apesar de ter se afastado de suas atividades
quando começou a se sentir mal, ele nunca deixou de me
perguntar como estavam as coisas, de me orientar, de se
preocupar com o nosso povo. Enfim, mesmo doente, era
praticamente ele quem governava Sadiz através de mim.
O médico sorriu, emocionado com a dedicação do meu
pai ao país. Era importante que todos continuassem achando
aquilo para não despertar nenhuma suspeita sobre mim.
Apesar de aquela sagrada doença do coração não ter sido algo
que eu criei, ela veio de encontro aos meus planos e na hora
certa.
— Por enquanto não posso dar uma certeza de quando
Sua Majestade poderá voltar para casa. Tudo depende do
estado dele continuar estável nos próximos dias, mas estamos
muito otimistas.
— Já estou satisfeito com esta esperança, doutor. Allah
abençoará o meu pai com muita saúde.
Conversamos por mais alguns minutos sobre as novas
aquisições de equipamentos médicos para o hospital e depois
me livrei da presença enfadonha dele.
Agora que eu estava no governo, a minha prioridade
não seria o Ministério da Saúde ou da Educação, mas sim o
Ministério da Defesa. Eu pretendia investir na modernização
dos equipamentos militares para fortalecer as forças armadas
do país, que me apoiariam quando eu estivesse definitivamente
no poder após a morte do meu pai.
Sadiz era um país pequeno se comparado a outros da
região e eu sabia que dificilmente teria o poderio militar que
Saqr tão bem implementou em Tamrah, mas nada me impediria
de criar um exército forte que impusesse respeito aos países
vizinhos.
Chegou a minha hora!
Depois de tantos anos de espera, agora Sadiz estava
nas minhas mãos. Eu não ia devolver o poder para o meu pai,
muito menos o perder para o meu tio Abdullah. Eu não ia medir
esforços para colocar o meu tio atrás das grades e dessa vez
não haveria o meu pai para me impedir. Eu só precisava
conseguir o apoio de metade dos membros do conselho dos
anciões para consolidar a minha posição. Se não conseguisse,
pretendia dissolver o conselho e assumir mesmo assim.
Agora, ninguém vai me impedir de nada!
Passei quase a vida inteira me preparando para o
momento que estava vivendo e o gosto da vitória era
inebriante. Faltava apenas ter a mulher que sempre quis ao
meu lado.
Malika continuava noiva de Yusuf Al Harbi, mas era
óbvio para mim há muito tempo que ele não tinha interesse em
se casar com ela. Se tivesse, o casamento já teria acontecido.
Cansei de falar aquilo para o meu pai, tentando forçá-lo a exigir
o retorno de Malika para Sadiz, mas ele sempre dizia não ter
mais interesse nela. Estava mais preocupado em ter um bom
relacionamento com Tamrah, para manter os acordos
comerciais que tínhamos com o país.
— Durante quanto tempo mais seremos vassalos de
Tamrah? — explodi certa vez com ele.
— Cale-se, Mubarak! Nunca fomos vassalos dos Al
Harbi. Você mesmo foi amigo de Majdan durante anos e nunca
se sentiu inferior a ele!
E quem lhe disse que não?
Majdan sempre foi mais respeitado do que eu quando
estudávamos juntos em Londres. As portas passaram a se abrir
com mais facilidade para mim depois que ficamos amigos,
mesmo eu também sendo um príncipe-herdeiro. As mulheres
se derretiam por ele e os homens o invejavam. Para todos,
sempre fui “o amigo de Majdan” e não o Mubarak, príncipe-
herdeiro de Sadiz.
A minha sorte foi Majdan ser do tipo leal, que defendia,
apoiava e ajudava aqueles que considerava como amigos.
Utilizei-me daquela característica dele para o manipular a meu
favor. A única coisa que nunca consegui, foi colocá-lo contra a
família. Majdan amava os pais e os irmãos, mesmo com Saqr
se destacando mais no governo do que ele.
— Fazer uma aliança com um país como Tamrah não é
vassalagem, mas diplomacia e sabedoria — o meu pai
continuou falando a mesma ladainha. — É uma insensatez
grotesca tê-los como inimigos. Eles são ricos, poderosos e
respeitados, não apenas na nossa região, como também
mundialmente. Você acha que vou jogar tudo isso para o alto
por causa de Malika?
Calei-me, não apenas daquela vez, mas em todas as
outras. Contudo, agora que eu estava no poder, ninguém mais
ia me calar. Se era a Malika que eu queria, era ela que eu ia
ter.
O meu momento realmente chegou!
Virei a última página do processo, sem acreditar que o
meu pai havia transferido Malika de Asuid para uma prisão
subterrânea secreta que nem eu mesmo conhecia.
O velho escondeu isso de mim?
Joguei sobre a mesa o processo que o general Murat
havia trazido, olhando depois para o homem sentado à minha
frente. Logicamente que não deixei transparecer a minha
surpresa ao descobrir a existência de Thueban.
— Quero falar com o supervisor prisional que ficou
responsável pela princesa Malika na época em que ela ficou
detida.
Depois de tanto tempo, eu não tinha certeza se o
supervisor era o mesmo homem a quem entreguei Malika na
ocasião, dando ordens para que fosse levada para Asuid. Eu
precisava descobrir se ela escreveu ou não a carta de
confissão e colocar a mão naquele documento. A existência da
carta era um segredo guardado a sete chaves pelo meu pai,
mas que eu pretendia desvendar totalmente.
Aquela carta era fundamental para convencer o
conselho de anciões que o meu tio Abdullah estava realmente
conspirando contra o governo e, assim, conquistar a confiança
deles para que me empossassem no cargo.
Ainda me lembrava claramente da raiva que senti
quando descobri que o meu pai havia dado um jeito de
esconder Malika de mim, receando que eu tirasse a preciosa
virgindade dela e ele perdesse a oportunidade de casá-la com
Al Badawi. Nunca o perdoei por ter me impedido de saciar o
meu desejo por ela. Só de pensar que aquele velhaco do Al
Badawi é que teria o prazer de tirar a virgindade de Malika, eu
me sentia com mais raiva ainda do meu pai.
Olhei para o general Murat, que tentou esconder sem
sucesso a surpresa ao ouvir a minha ordem.
— Está se referindo à Hisham Al Amari?
— Se ele for o homem que ficou responsável pela
minha prima Malika, sim, é esse mesmo. Providencie para que
venha falar comigo.
O homem pigarreou, mexendo-se com inquietação na
cadeira.
— Ele foi destituído de suas funções militares por
insubordinação, alteza. Não é mais um profissional de carreira
das forças armadas.
Franzi a testa, sendo pego totalmente de surpresa com
aquela informação.
— Quem o afastou?
— O superior dele na ocasião, depois de instaurar um
processo disciplinar.
— Quero saber que insubordinação foi essa. Eu me
lembro dele e tenho certeza de que se tratava de um dos
homens de confiança do meu pai.
— Sim, é verdade. Hisham era um excelente
profissional. Não tive acesso ao processo que o destituiu da
patente militar e peço desculpas por isso, alteza. Sei apenas
que teve algo a ver com a princesa Malika.
Aquilo só aumentou a minha vontade de falar com ele.
— Quero o processo disciplinar na minha mesa e o
homem na minha sala o mais rápido possível — ordenei em um
tom que encerrava o assunto.
— Farei isso, alteza.

Hisham Al Amari entrou no meu escritório naquela


mesma tarde, vestido com roupas civis que não escondiam o
físico de militar. Eu o reconheci de imediato. Aparentemente o
homem não deixou de se cuidar, mesmo tendo sido afastado
do exército.
À minha frente sobre a mesa, estava o processo
disciplinar dele que eu havia acabado de ler.
— Quero a sua versão do que aconteceu em Thueban
e que ocasionou o seu afastamento das forças armadas.
Ele era um homem inteligente, fato visível pelo olhar
sagaz, e devia saber que eu já tinha lido o inquérito militar.
Contudo, Hisham não sabia das informações que o superior
dele havia colocado no processo na época e tentaria se
defender às cegas. Eu esperava ouvir a verdade, uma vez que
o inquérito só dizia que ele faltou ao respeito com o seu
superior, sendo expulso por insubordinação, o que achei muito
vago.
— Para contar a minha versão, terei de falar algumas
coisas sobre a princesa Malika Al Kabeer, alteza. Não quero
ser acusado de faltar ao respeito com um membro da família
real.
Aquilo aguçou ainda mais a minha curiosidade.
— Está recebendo uma ordem real para contar a
verdade.
— Assim farei, alteza. — Ele colocou a mão no peito e
se curvou respeitosamente antes de começar. — Contestei o
meu superior na época por não concordar com o abrandamento
da vigilância em torno da princesa Malika. As duas guardas
responsáveis por ela não cumpriam à risca os procedimentos
exigidos em Thueban e estavam sempre discordando dos
meus métodos. A princesa é uma mulher muito inteligente e
manipulou as duas contra mim, inventando mentiras a meu
respeito, a ponto de eu ser chamado a atenção pelo meu
superior. Tudo isso aconteceu semanas antes de ela ser
libertada da prisão, o que já comprova como tudo foi planejado.
A princesa sabia que não conseguiria fugir enquanto eu
estivesse em Thueban, o que era verdade. Garanto que se eu
ainda estivesse no cargo de supervisor prisional naquela
época, ninguém teria conseguido resgatá-la.
Observei-o com atenção e ele não desviou o olhar,
mostrando coragem. Eu gostava daquilo. Hisham era o homem
que eu precisava para trazer Malika de volta.
— Chegou a ver a princesa assinando uma carta de
confissão?
— Sim, alteza. Ela assinou.
Perfeito!
Aquilo era o que eu precisava saber. Agora bastava
forçar o meu pai a me entregar a bendita carta e tudo estava
resolvido.
— Tenho uma missão secreta para você, Hisham Al
Amari. Só poderá conversar sobre ela comigo e com mais
ninguém. Vai trabalhar sozinho também — comuniquei,
notando o brilho de interesse nos olhos dele. — Acha que
consegue?
— Prefiro trabalhar sozinho. — O tom de voz era
confiante. — É só me dizer do que se trata e farei tudo por
vossa alteza.
Aprovei a atitude dele.
— Quero que vá para Tamrah e tente se infiltrar em Taj
Almamlaka. Dê um jeito de se aproximar de Malika e trazê-la
de volta para cá sem deixar rastros.
Se ele ficou surpreso, não o demonstrou. Fiquei com a
impressão de que o homem era uma fortaleza, o que fazia de
Hisham a pessoa ideal para aquela missão.
— Não vai ser fácil me infiltrar no país — ele me
preveniu.
— Vai ser mais fácil do que você imagina, mas darei os
detalhes mais à frente. Por enquanto vá para casa. Pode ser
que demore alguns meses, mas quero que fique de prontidão
para agir a qualquer momento. Terá todas as suas despesas
pagas por mim até que chegue a hora de agir. Avisarei quando
isso acontecer.
Capítulo 33
Tamrah
Malika
No dia em que Zayn completou sete meses de vida,
Saqr e Kismet comunicaram à família durante um jantar que ele
teria um irmãozinho. Quase não acreditei que a minha irmã
estava grávida de novo. Eles realmente tinham um casamento
abençoado!
A família inteira comemorou aquela notícia e Kismet e
eu nos abraçamos com lágrimas nos olhos.
— Hoje à noite vocês vão estar nas minhas orações de
gratidão à Allah, minha irmã. Que sejam eternamente
abençoados.
— Estou tão feliz, Malika. Quero dar à Zayn o mesmo
que nós duas temos. O amor de um irmão ou irmã.
— InshAllah!
Os meses foram passando, um novo ano entrou e
Sabirah foi estudar em Londres, deixando saudades em todos
nós.
Logo depois do Ramadã89 daquele ano, o meu segundo
sobrinho nasceu e foi batizado de Náder, em homenagem ao
lendário avô de Yusuf e Saqr. A felicidade da minha irmã e do
marido era visível no rosto dos dois com a chegada de mais um
filho. Mesmo sendo Saqr um homem muito sério, era possível
ver a alegria, o orgulho e o amor dele com o crescimento de
sua família com Kismet.
Yusuf e eu continuamos a nos ver regularmente, tanto
nas refeições familiares quanto nas caminhadas matinais,
ocasião em que ele aparecia sem avisar e nos fazia
companhia, a mim e à Layla. Eventualmente, ela era
dispensada e caminhávamos sozinhos, mas também havia dias
em que ele fazia questão que a enfermeira estivesse presente.
Quando aquilo acontecia, eu fingia não perceber a mudança,
apenas aceitava com gratidão o que Allah me permitia ter com
ele.
Em Sadiz, parece que haviam se esquecido
completamente de mim, o que eu agradecia diariamente à Allah
em cada uma das minhas cinco orações do dia. A cada Salat90,
uma prece de gratidão.
A família real de Tamrah estava cada dia mais unida e
fortalecida perante o povo. O país crescia, os investimentos
aumentavam e o futuro se tornava cada vez mais promissor.
Foi Kismet quem me deu uma noção exata daquilo
meses mais tarde, quando estávamos passeando com Zayn
pelos jardins privativos da Ala do Falcão, ao comentar comigo
sobre uma viagem que Yusuf faria na semana seguinte.
— Eu não sabia que ele ia viajar.
Tentei não deixar transparecer o quanto fiquei abalada
com aquela notícia. Ele sequer havia comentado alguma coisa
comigo.
— Saqr falou para mim ontem à noite. A Global Harbi
está crescendo muito em Nova York e eles precisam expandir
as instalações e fechar alguns contratos importantes que só
podem ser feitos por eles — ela explicou, empurrando o
carrinho onde Náder dormia e mantendo um olhar atento em
Zayn, que corria mais à frente sob a supervisão da babá. —
Saqr conseguiu resolver muita coisa daqui mesmo de Tamrah,
fazendo videoconferências com os executivos que estão à
frente do projeto lá em Nova York, mas chegou aquele
momento em que é preciso ter um Al Harbi presente na fase
final da negociação. Quem ia era o Saqr, mas como é para
passar meses lá, quem vai é o Yusuf.
Meses?
— Tanto tempo assim? — perguntei, tentando disfarçar
a angústia que estava sentindo.
— Infelizmente, sim, minha irmã. O Yusuf ainda não
contou nada para você?
— Não. Temos nos encontrado muito pouco
ultimamente.
— Ele deve contar por esses dias.
— Não pensei que fosse preciso tanto tempo assim
para fechar um contrato.
— Não é apenas um contrato, mas vários. E também
depende do tipo de negócio. Neste caso em especial, a Global
Harbi fez um investimento muito alto nos Estados Unidos e está
tendo um ótimo retorno agora. Vão ser necessárias várias
reuniões, contatos com empresários, com investidores e
políticos para fechar acordos que serão fundamentais para os
negócios da família. O Sheik Rashid não pode se ausentar
durante tanto tempo assim do país. Saqr não quer me deixar e
aos filhos por meses seguidos, ainda mais com Náder tão
novinho. Eu até sugeri que fôssemos todos juntos com ele, mas
Saqr não quer arriscar. Majdan continua em Nova York, mas
ainda permanece em tratamento, sem entrar em contato com a
família e totalmente isolado do mundo. Ele não tem condições
de assumir a responsabilidade por essa expansão. Jamal ainda
é muito novo e também está terminando os estudos em
Londres. Enfim, tinha de ser o Yusuf.
Oh, Allah! Como vou aguentar isso?
— O Sheik Rashid tem tantos filhos com as outras
esposas. Fora isso, tem uma infinidade de assistentes,
assessores e homens de confiança. Não acredito que não
exista uma outra pessoa que possa ir no lugar de Yusuf.
Incrivelmente, Kismet riu.
— Vê-se logo que a sua especialidade é mesmo o
serviço social, Malika — ela disse com a experiência de quem
estava se formando em Gestão. — Empresários, investidores e
políticos não tratam assuntos desse porte com assistentes,
assessores e homens de confiança. Só querem fechar negócio
com quem tem o poder nas mãos e o Yusuf tem esse poder,
apesar de não ser o príncipe herdeiro. Que outros filhos o
Sheik Rashid tem que inspire a mesma confiança que Saqr e
Yusuf inspiram? Que eu saiba, nenhum.
— Sim, você tem razão. Agora eu entendo.
Ela me jogou um olhar desconfiado.
— Você ficou triste com a viagem dele. Será que está
começando a sentir algo mais sério por ele, como se
apaixonar? Eu ia adorar ver vocês dois juntos, casados e com
uma família tão linda quanto a minha.
Ela nem precisava dizer aquilo, pois era algo que eu
pensava com uma frequência absurda, desejando
ardentemente que pudesse acontecer. Porém, quando me
lembrava da parte sexual, desistia.
— Você sabe que não vou me casar com ninguém, por
que ainda insiste nisso?
— Porque amo você e queria que fosse tão feliz quanto
eu sou, que tivesse filhos, que soubesse o quanto é bom ser
amada por um homem maravilhoso.
— Não preciso de um homem para ser feliz. Tenho o
seu amor, o de Zayn e o de Náder, além das minhas crianças
das casas de acolhimento. Sinto-me realizada quando vejo
mulheres que antes choravam, sorrindo felizes ao receberem a
nossa ajuda. Gosto de ver as crianças brincando e estudando,
cheias de esperança com o mundo, mesmo sendo um mundo
tão complicado para se viver. Acho que há várias maneiras de
ser feliz nesta vida e eu encontrei a minha.
Kismet me abraçou com força pelos ombros, beijando-
me no rosto.
— Você nasceu para este trabalho humanitário, minha
irmã. Sempre teve uma bondade imensa no coração e uma
alma de guerreira para lutar pelos fracos e oprimidos. Tem
eternamente o meu amor.
— Você também tem o meu.
Continuamos passeando, conversando e rindo das
brincadeiras de Zayn.
— Tia Lika, olha! — ele gritou para mim, jogando um
falcão de madeira no ar, como se o animal estivesse alçando
voo. O brinquedo foi parar no chão a poucos metros de
distância dos seus pezinhos.
Kismet e eu rimos muito e corri para pegar o falcão.
— O seu pai vai ficar muito orgulhoso, Zayn.
Ele pulou de felicidade e o passeio continuou.
Mais tarde, sozinha no meu quarto, ajoelhei-me sobre o
tapete de orações e pedi forças à Allah. Engoli a súbita vontade
de chorar e respirei fundo, enchendo-me de coragem para
enfrentar a dura prova que seria ver Yusuf embarcar para uma
viagem de meses fora de Tamrah.

— Pode se encontrar comigo no jardim hoje à tarde? —


Yusuf me perguntou ao telefone, a voz grave causando uma
agitação dentro de mim.
Deve ser para falar sobre a viagem.
Considerando o distanciamento dos últimos tempos, só
podia ser aquilo.
— Sim, posso. Em qual hora?
— Depois da Salat Asr91.
— Estarei lá.
Desliguei com um suspiro de tristeza e resignação.
No horário marcado, desci para o jardim, onde Yusuf já
me aguardava. Admirei o homem de porte atlético que
mantinha um dos ombros encostados no pilar de mármore
enquanto olhava pensativamente para algo que segurava entre
os dedos.
Ele estava tão concentrado que nem notou a minha
aproximação, mas aquele foi o tempo que bastou para eu ver
que era a aliança. Assim que percebeu a minha chega, ele a
colocou de volta no dedo e aprumou o corpo, virando-se
totalmente para mim.
— Salaam Aleikum92, Malika.
— Alaikum As-Salaam93.
Ficamos nos olhando em silêncio por um tempo, até ele
indicar o banco.
— Vamos nos sentar.
Depois que nos sentamos, observei o rosto sério. Se
fosse antes, Yusuf já estaria fazendo algum comentário
descontraído que me faria rir e fiquei com saudades daqueles
tempos.
— É verdade que você vai viajar? — perguntei,
facilitando o início da conversa.
Como esperado, ele foi pego de surpresa.
— Vou perguntar a Adnan se ele está passando a
minha agenda para você sem o meu conhecimento. — Apesar
do rosto sério, o comentário foi feito com bom humor.
— Não foi ele, garanto.
— Sobram a minha mãe ou a sua irmã. Qual delas?
— Kismet me contou.
Não dei grandes detalhes. Eu queria que fosse ele a
me falar da viagem sob a perspectiva que tinha de sua ida à
Nova York.
— Eu ia contar para você, mas os compromissos
tomaram todo o meu tempo. Sempre que eu chegava à noite
em Taj já era tarde demais para procurar você. Também não
quis tratar do assunto por telefone — explicou, mantendo ainda
a mesma fisionomia séria. — Eu não ia viajar sem nos falarmos
antes.
— Então, a viagem está mesmo confirmada?
Preparei-me para o que ia ouvir.
— Sim, está. Vou passar alguns meses em Nova York
tratando dos negócios da Global Harbi e também tentando ver
como Majdan está.
Eu achava que estava preparada para ouvir aquilo,
mas descobri que não. No fundo ainda tinha esperança de que
algo acontecesse e a viagem não fosse mais necessária, ou
que não fosse tão longa.
— Não sabe quanto tempo vai ficar lá?
— Dois ou três meses, talvez mais. Não dá para ser
exato. Tudo depende dos contratos que forem sendo firmados
e da aquisição de algumas empresas que vamos fazer. Tudo
isso vai exigir que eu permaneça na cidade mais tempo do que
o esperado.
Yusuf passou a mão nos cabelos em um gesto de
nervosismo, algo muito raro nele. Senti vontade de eu mesma
fazer aquilo, tocando nos fios e ajudando-o a relaxar.
Não resisti mais e soltei a emoção.
— Vou sentir saudades.
O pomo de adão subiu e desceu quando ele engoliu
em seco.
— Também vou sentir saudades suas, Malika —
admitiu com a voz enrouquecida, a seriedade sendo substituída
por um brilho caloroso no olhar.
Aquele era o Yusuf que eu conhecia e fiquei
emocionada ao ver que ele ainda existia.
— É estranho saber que você não vai estar por perto.
— Podemos nos falar por telefone ou por
videochamada — ele disse com uma certa ansiedade, como se
não quisesse ficar sem contato comigo, o que pelo menos me
consolou. — Tamrah está oito horas à frente de Nova York, mas
damos um jeito de encontrar um horário que seja bom para os
dois.
Aquela possibilidade me deixou feliz e não controlei o
sorriso que veio aos meus lábios.
— Não vai tomar muito do seu tempo?
— Sempre vou ter tempo para você, Malika.
Ele falou com tanta firmeza que enchi o peito de ar
para aguentar a emoção. Depois de tantos meses de um
gradativo distanciamento entre nós, aquela conversa estava
tendo o efeito de um remédio que curava todas as dores.
— Terei de ligar frequentemente para falar com o meu
pai e com Saqr. Se por um acaso você ficar sabendo que liguei
para eles, mas não falei depois com você, não ache que me
esqueci do que estamos combinando agora. O nosso caso é
diferente e ligarei no horário que marcarmos.
Fiquei aliviada que ele ainda quisesse falar comigo
durante o tempo em que estivesse fora.
— Você vai ter um esquema de segurança lá? — Não
disfarcei a preocupação.
— Sempre tenho — tranquilizou-me, e não só com
relação à segurança dele, mas também à minha. — Sei que
você está segura aqui em Tamrah sob os cuidados de Saqr,
mas deixarei Assad encarregado da sua segurança. Para onde
você for, ele vai junto. Assim viajo mais tranquilo.
— Estarei bem. Quero que você se cuide, apenas isso.
Ele ficou me olhando em silêncio por tanto tempo que
pensei que fosse me dizer algo importante, mas me enganei.
Yusuf voltou a ficar sério e vi o momento passar.
— Vou me cuidar e quero que faça o mesmo.
Levantou-se e fiz o mesmo. A conversa tinha
terminado, mas fiquei com a sensação de que muita coisa
havia ficado por dizer.
Seguindo um impulso que veio do coração, peguei uma
das flores da rosa do deserto mais próxima e beijei as pétalas.
Como Yusuf era bem mais alto do que eu, tive que erguer
bastante a cabeça para o olhar na hora de oferecer a flor.
— Que Allah esteja com você nesta viagem, Yusuf.
Ele envolveu a minha mão por completo, pele contra
pele, seu calor se fundindo ao meu. Permanecemos nos
olhando até ele segurar a haste delicada da flor e afastar a mão
da minha.
Bem à minha frente, Yusuf beijou as pétalas no mesmo
local onde eu havia beijado e inspirei profundamente para
aguentar a emoção.
Era uma loucura aquilo, mas me senti beijada!
— Que Allah permaneça com você aqui em Tamrah,
Malika.
Capítulo 34
Nova York
Yusuf
Ao longo do meu relacionamento com Malika passei
por várias fases. Desde a determinação em conquistá-la até a
decisão me afastar o mais que pudesse. Das duas, a do
afastamento era sempre a mais difícil. Na verdade, bem mais
difícil do que pensei a princípio. As minhas decisões oscilavam
de acordo com o comportamento dela. Havia momentos em
que Malika permitia uma aproximação maior entre nós dois e
outros em que recuava, fazendo nosso relacionamento
estagnar na amizade.
O nascimento de Zayn e de Náder colaborou muito
para a minha decisão pelo afastamento. Ver a felicidade de
Saqr com a chegada dos filhos e também poder segurar os
meus sobrinhos nos braços, foram momentos que causaram
uma revolução dentro de mim que eu não esperava. Apesar de
já ter vários sobrinhos, tanto de Majdan quanto das minhas
irmãs mais velhas, eu era muito jovem quando eles nasceram
para haver qualquer abalo na minha personalidade ou na vida
que levava. Contudo, Zayn e Náder causaram um impacto
absurdo no Yusuf que eu era hoje. Com eles nos braços, me vi
querendo ter filhos, o que era algo absurdamente surreal se eu
recuasse no tempo para dois anos atrás, antes mesmo de
pegar pela primeira vez no relatório de investigação sobre a
família de Kismet e descobrir a existência de Malika.
Ela foi a responsável por derrubar todas as minhas
convicções de homem solteiro, de um homem que tão cedo
queria se casar e ter filhos. Aquela mulher, que se dedicava
exclusivamente ao seu trabalho humanitário, que possuía um
humanismo que beirava à abnegação, se transformou no objeto
do meu amor, do meu desejo, da minha paixão. Ela era o meu
tormento pessoal, mas também o meu paraíso na terra.
Eu a queria para mim e não era como uma falsa noiva,
mas como uma verdadeira esposa.
Depois do nascimento dos filhos de Saqr, foram poucas
as vezes em que fui atrás dela para a caminhada matinal.
Mergulhei no trabalho e fiz de tudo para evitar encontrá-la,
fosse em casa, fosse na Global Harbi. Aquela viagem a Nova
York veio na hora certa, mas também me destruiu por dentro.
Nunca fiquei tão dividido na minha vida. O meu coração queria
ficar em Tamrah para cuidar pessoalmente de Malika, mesmo
mantendo um distanciamento, e a minha razão me dizia que
viajar era a melhor solução para curar o amor não
correspondido que sentia por ela.
A minha situação atual é mesmo uma grande merda!
Peguei a minha carteira no bolso do paletó e a abri.
Tirei cuidadosamente de lá a flor que Malika me deu no dia em
que nos despedimos no jardim. Ela já tinha secado, mas não a
joguei fora. Guardei-a comigo, como se fosse um talismã.
A minha família fez um jantar de despedida para mim,
onde todos estiveram reunidos, inclusive a Malika. Aquele foi o
último dia em que a vi, mas o momento que realmente me
marcou foi a conversa no jardim.
Pela milionésima vez, passei o dedo com cuidado
sobre as pétalas secas, lembrando-me dos lábios macios
tocando-as. Ela repetiu o mesmo gesto que eu fazia quando lhe
entregava uma daquelas flores nos nossos passeios.
A impossibilidade de dar vazão ao que o meu coração
pedia, ao desejo que me consumia, ao amor que sentia por ela,
fez com que eu me ressentisse, pela primeira vez na minha
vida, da existência de tantas regras na minha cultura, que me
impediam de abraçar, de beijar e de amar a mulher que eu
queria para mim.
Mesmo sendo minha noiva, não era permitido mais do
que uma conversa entre nós dois, respeitando a distância em
que normalmente ficávamos um do outro. Mesmo sendo o
jardim da Ala do Falcão um espaço privativo, também era
público. Daria para qualquer morador nos ver das janelas, se
quisesse.
Como é que eu conseguiria provar à Malika que
podíamos dar certo juntos, se nem a podia tocar? Eu tinha
certeza de que havia química o suficiente entre nós dois para
nos darmos sexualmente bem. Eu estava disposto a fazer de
tudo para que ela superasse qualquer trauma sexual que
tivesse sofrido na prisão. O problema era que não havia
contato físico e aquela era a única maneira que eu tinha de
mostrar à Malika que o sexo era algo bom quando feito da
maneira correta, quando os dois queriam. A única experiência
que ela tinha era de um estupro e — Allah tivesse piedade de
mim pelo meu desejo de vingança — como eu queria matar
com as minhas próprias mãos o desgraçado que fez aquilo com
ela.
Guardei a flor de volta na carteira, coloquei-a no bolso
e me levantei da cadeira, andando pela sala elegante do meu
escritório na Global Harbi de Nova York. Pela parede de vidro,
vi Manhattan à minha frente, sem conseguir tirar a imagem de
Malika da minha cabeça.
De que adiantava estar quase do outro lado do mundo
se eu não conseguia parar de pensar nela? Valia mais ter
ficado em Tamrah, onde pelo menos poderia vê-la, conversar
com ela, e, talvez, conseguir convencê-la a dar uma chance
para nós dois.
Quem disse que amar era fácil, mentiu!
Uma batida na porta interrompeu os meus
pensamentos e anunciou a entrada do meu assistente pessoal.
— Já está tudo pronto para a ida à clínica, alteza —
Adnan informou.
— Vamos agora.
Peguei o paletó no encosto da cadeira e saímos da
sala. No estacionamento do prédio, dois carros aguardavam.
Entrei no da frente com Adnan, enquanto o de trás nos seguiria
com os seguranças.
Durante todo o percurso, a minha mente estava em
Jawhara. As conversas com Malika por videoconferência
ajudavam a matar um pouco as saudades que sentia dela, mas
não resolviam o meu problema. Nem a distância que aquela
viagem havia proporcionado tinha resolvido, muito menos as
mulheres que levei para a cama me fizeram esquecer de
Malika.
Bastou apenas uma semana em Nova York para eu
decidir que teria uma conversa séria com ela quando voltasse
de viagem. Independentemente do tempo que durasse a minha
permanência ali, eu estava determinado a não esconder mais o
que sentia. A primeira coisa que faria quando chegasse em Taj
Almamlaka seria marcar um encontro para confessar que
estava apaixonado e saber o que ela sentia por mim.
Já havia passado da hora de esclarecer tudo entre nós.
Claro que ela podia me dizer um sonoro “não”, mas nem aquilo
me faria calar. Deixaria para pensar no que fazer quando a
coisa acontecesse.

— Salaam Aleikum94, Majdan!


Abracei o meu irmão com força assim que entrei na
sala da casa que ele ocupava nas dependências da clínica de
desintoxicação.
— Alaikum As-Salaam95, meu irmão.
A emoção do reencontro depois de tanto tempo foi
grande e demoramos a nos separar. Engoli com dificuldade
tamanha foi a emoção. Majdan havia pedido que ninguém da
família viesse visitá-lo até que ele mesmo avisasse que estava
pronto.
Não foi fácil atender ao pedido que fez, principalmente
para a minha mãe e para os filhos dele, mas cumprimos o
prometido e ninguém entrou em contato. Ficamos aguardando
que o próprio Majdan ligasse para avisar que estava pronto
para voltar a conviver com a família.
Eu imaginava o quanto devia ter sido difícil para ele
vencer o vício e controlar a si mesmo durante as crises de
abstinência.
Quando nos afastamos, analisei-o com um olhar crítico.
Fiquei com a nítida impressão de que estava diferente,
realmente mudado. E não era só o corpo mais magro e
musculoso, onde não havia mais a antiga gordura que ele
ganhou depois que se entregou totalmente aos prazeres da
vida mundana. Existia ali também uma mudança interior.
— Você está em ótima forma física! Estou
impressionado.
Majdan riu, mas sem nenhum resquício da arrogância
de outros tempos, quando se achava superior a todos, só por
ser o príncipe herdeiro de Tamrah. Senti nele uma humildade
que não existia antes.
— Graças à Allah e ao excelente trabalho que fazem
aqui.
Fiquei mais impressionado ainda. O Majdan que
conheci jamais ia enaltecer os outros em vez de si mesmo. Em
poucos minutos de conversa, eu já havia notado tantas
diferenças significativas que achei melhor só agradecer à Allah
e não questionar mais nada.
— Sente-se e me conte novidades de Tamrah. Como
estão os meus filhos?
— Eles estão bem. Apesar de sentirem muitas
saudades de você, os três têm o hábito de repetir que é preciso
tempo para que Allah cure o pai.
Majdan se emocionou com o que eu disse. Vi lágrimas
nos olhos dele e engoli duro para me manter firme.
— Allah me abençoou com filhos maravilhosos. Sinto
saudades deles.
— Tenho fotos aqui no celular para mostrar a você.
Naquela clínica, ele não tinha contato algum com o
mundo exterior. Não havia celular, computador ou visitas até
que o paciente estivesse totalmente recuperado e pronto para
enfrentar novamente as tentações do mundo lá fora. Muitos
voltavam depois que recebiam alta, mas havia quem nunca
mais precisasse pisar outra vez naquelas instalações.
Estávamos todos torcendo para que Majdan fosse um daqueles
casos de sucesso, principalmente depois da recaída que teve
com o tratamento da clínica anterior.
Sentei-me ao lado dele e mostrei as fotos dos filhos,
algumas delas tiradas especialmente para que eu mostrasse ao
pai. Hud, Imad e Abia também gravaram um vídeo para ele,
dizendo o quanto o amavam e que estavam aguardando o
retorno dele com muitas saudades.
Quando terminou de assistir, Majdan fechou os olhos e
cobriu o rosto com as mãos, chorando.
— Não fui um bom pai. Fui um péssimo exemplo para
os meus filhos. Para piorar, estou sendo um pai ausente,
internado aqui há tanto tempo.
Abracei-o pelos ombros, dando-lhe apoio, apesar de
me sentir emocionado demais.
— Você pode não ter dado um bom exemplo para eles,
mas foi um bom pai. Sempre amou os seus filhos e se
preocupou com eles. A maior prova é esse vídeo que eles
gravaram.
Majdan me ouviu em silêncio e dei-lhe o tempo que
precisava para se acalmar. Quando ele baixou as mãos e
limpou as lágrimas, sua fisionomia estava séria.
— E a Hayat?
— Continua cumprindo pena no presídio feminino,
sempre pedindo para ver os filhos, mas negamos. Estamos
aguardando o seu retorno à Tamrah para decidirmos isso em
família. Hayat pode esperar.
— Eles não pediram para ver a mãe?
— Não. Se tivessem tocado no assunto, nossa mãe
teria comentado algo.
Ele assentiu com um meneio de cabeça. Respirou
profundamente e só depois voltou a falar comigo.
— Conte como estão as coisas em Tamrah. Sinto-me
em débito com o meu país — admitiu em um tom de muita
responsabilidade. — Você veio dar andamento à expansão da
Global Harbi? Como estão os nossos pais?
Na hora seguinte, coloquei Majdan a par de tudo o que
havia acontecido em Tamrah durante aquele período de
ausência dele.
— O restante das coisas são assuntos políticos, mas
esses acho que você não tem interesse em saber.
— Tenho interesse, sim. Pode contar. Quero saber de
tudo.
Olhei-o, surpreendido com aquele pedido em tom firme.
— Você não quis saber de nada quando voltou do
primeiro tratamento.
— Agora que estou aqui nesta clínica é que noto a
diferença entre os dois tratamentos que fiz. O primeiro não teve
nada a ver com este. Voltei à Tamrah daquela vez
completamente despreparado para enfrentar o mundo. Isso não
quer dizer que hoje eu esteja preparado, mas sinto que possuo
uma força interior que não tinha naquela época — desabafou
com sobriedade. — Estou em dívida com o meu país, com o
meu povo. Conte-me tudo o que eu deveria ter ficado sabendo
na ocasião em que voltei pela primeira vez.
Senti firmeza no discurso de Majdan, que mostrava um
homem bem mais consciente das coisas.
— Para você entender a complexidade do momento
político que estamos vivendo, eu teria de voltar no tempo até a
Cúpula da Coligação Árabe, que foi quando tudo começou —
preveni. — É uma longa história.
— Temos tempo.
Aprovei a atitude dele, sentindo orgulho do meu irmão
depois de anos de convivência.
À medida que eu falava sobre Suleiman e Mubarak,
uma ruga de preocupação se aprofundava na testa de Majdan.
Ele não me interrompeu em nenhum momento, mostrando o
quanto estava interessado no assunto. Diante de tudo o que eu
estava percebendo de positivo nele, decidi que podia contar
parte do que Malika havia me dito a respeito de Mubarak.
— Depois de uma reunião, decidimos que vamos
apenas acompanhar os desdobramentos do momento político
que Sadiz está vivendo. Apesar do que Malika disse, não
temos como ter certeza, muito menos provar que Mubarak
realmente está planejando algo para assumir o poder antes da
hora.
Quando terminei de falar, notei a expressão carrancuda
de Majdan. Ele estava sério como não me lembrava de o ter
visto antes.
— Mubarak seria capaz disso — afirmou com tanta
convicção que fiquei imediatamente tenso.
— Acha mesmo que ele seria capaz? Até a própria
Malika não tem tanta certeza assim. Depois de tudo o que ela
sofreu na prisão, é compreensível que tenha confundido as
coisas ou delirado em algum momento.
— Ela pode ter dúvidas, mas eu não tenho. Conheço o
Mubarak e sei que ele é capaz de planejar um golpe para
assumir o poder — Majdan voltou a afirmar com segurança. —
Ele nunca gostou do pai como nós amamos o nosso. Quantas
vezes eu o vi manipular Suleiman para que lhe fizesse as
vontades, sempre rindo depois da cara do pai. Tenho
consciência de que não tenho moral para condenar tudo o que
ele fez, pois também fiz coisas erradas na época em que
éramos amigos, mas eu conheço um Mubarak que vocês não
conhecem e sei do que ele é capaz.
Trinquei os dentes a ponto de doer, tamanha foi a raiva
que senti ao ouvir aquilo.
— Mubarak falou alguma vez para você sobre a
Malika?
— Várias vezes. Falava sempre das duas primas,
dizendo que eu poderia ficar com a Kismet enquanto ele ficava
com a Malika. Apesar de Kismet ser muito bonita, no início eu
não tinha nenhum interesse especial nela. Só que o Mubarak
insistiu tanto, falou tanto das duas primas casadas com os dois
amigos, que acabei entrando no jogo sem nem sentir. Foi
quase como uma lavagem cerebral que ele fez em mim.
Analisando friamente tudo isso agora, acho que ele sempre
teve uma obsessão pela Malika.
Cerrei os punhos quando a raiva que sentia por
Murabak voltou com força total.
Majdan percebeu e olhou para mim com compreensão.
— Estou vendo que você realmente gosta muito dela —
afirmou.
— Ela é minha noiva! — Nunca afirmei aquilo com
tanta possessividade quanto naquele momento.
Ele soltou um bufado de preocupação.
— Suponho que Mubarak já saiba desse noivado.
— Sim. Eu mesmo comuniquei aos dois durante a
cúpula, quando Suleiman tentou levá-la de volta para Sadiz
com a desculpa de estar negociando o casamento dela com o
Sheik Farid Al Badawi de Omarih.
A carranca de Majdan ficou mais pesada.
— Isso não é nada bom, Yusuf. Não consigo ver o
Mubarak abrir mão de Malika para outro homem, seja Al
Badawi ou você. Nunca o vi desistir de algo que quisesse muito
e sei que considera Malika como propriedade dele.
— É estranho ouvir isso. Malika estava noiva há anos
de um outro primo deles.
— O Dabir? — Majdan riu com desprezo. — Esse vivia
atrás de um cargo político no governo e Mubarak o tinha nas
mãos. O maior opositor dele sempre foi o pai de Malika.
Abdullah e Suleiman nunca se deram bem desde crianças.
Lutaram a vida inteira pelo poder de Sadiz. A última coisa que o
homem ia querer era o filho do seu arqui-inimigo como genro,
mesmo sendo ele um parente.
Aquilo só piorava à medida que a conversa avançava.
— A cada coisa que você diz mais tenho a certeza de
que Mubarak planejou tudo minuciosamente durante anos,
inclusive a suposta conspiração dos familiares contra Suleiman.
Essa é a desculpa perfeita para ele colocar todos na prisão. —
Dei a minha opinião para ele. — Só não entendo por que até
agora ele não prendeu o Abdullah.
— Por causa do conselho dos anciões, que são muito
respeitados, mesmo Sadiz sendo quase uma ditadura de
Suleiman. Os anciões aprovam muito mais o Abdullah do que o
Suleiman. — Ele sorriu com tristeza. — É como se fosse o Saqr
e eu, entende?
Sim, eu entendia e estava surpreso demais com o novo
Majdan diante de mim. Nunca antes tivemos uma conversa tão
madura quanto aquela, discutindo seriamente os problemas
políticos de Tamrah. Ele podia ter levado uma vida louca,
regada a festas, drogas, mulheres e bebidas, mas tinha um
conhecimento profundo do que acontecia na região,
principalmente em Sadiz.
— Quanto tempo mais você ainda fica aqui? Já tem
alguma previsão de quando volta a Tamrah?
Ele suspirou, soltando o ar lentamente.
— Ainda não sei. Há momentos em que me sinto
preparado, em outros não. Já tive duas recaídas desde que
cheguei. Por enquanto é melhor não contar comigo para nada.
— Não tenha pressa. Faça tudo no seu tempo. — Dei
uma palmada de apoio nas costas dele e senti os músculos dos
dorsais bem definidos. — Ei, você está trabalhando bem o seu
corpo.
— Estou tendo aulas de artes marciais. Tive que
participar de algumas atividades oferecidas pela clínica. Eu
aceitei vir para cá justamente por ser a mais rigorosa e hoje
vejo que tomei uma boa decisão. Nas aulas de karatê, aprendi
a importância da disciplina para controlar a raiva e a
agressividade. Enfim, uma série de coisas que me ajudaram a
dominar o instinto.
— Isso aqui parece mais um hotel de luxo do que uma
clínica.
Majdan riu.
— Eles só recebem oito pacientes por vez e cada um
ocupa a sua própria casa aqui dentro. Os profissionais são
excelentes e o ambiente é muito bom, mas nada se compara à
nossa casa e ter a família ao nosso lado.
Gostei que ele citasse a importância da família. No
fundo, era a nossa base.
Capítulo 35
Sadiz
Mubarak
Os meus planos corriam às mil maravilhas. Aquele dia
em especial estava sendo perfeito e me recostei na cadeira
com satisfação, colocando os pés sobre a mesa. Eu havia
acabado de falar com Hisham e autorizado que entrasse em
ação. Agora não faltava muito para eu ter mais um objetivo
alcançado.
Eu sabia que Yusuf ia passar uma boa temporada em
Nova York. Não se falava em outra coisa no mercado financeiro
que não fossem as aquisições que a Global Harbi estava
fazendo nos Estados Unidos, tendo ele à frente.
Tudo estava colaborando para o meu sucesso. O meu
pai doente, Yusuf em Nova York, Malika sozinha em Tamrah e
eu assumindo o governo de Sadiz.
Fui obrigado a esperar meses, quase um ano inteiro,
até conseguir o apoio de dois membros do conselho dos
anciões e mesmo assim não era o suficiente para ter a maioria.
Tudo o que eu queria era acabar com o poder daquele monte
de velhos, mas ainda não era o momento.
Era mesmo uma merda que o meu tio Abdullah tivesse
a velharia nas mãos.
Por enquanto! Apenas por enquanto.
O meu celular tocou sobre a mesa e o olhei com
desinteresse, mas levei um susto tremendo quando vi o
número de Majdan. Depois de tantas tentativas frustradas de
falar com ele, cheguei até a achar que aquele número havia
sido desativado, mas afinal me enganei.
Receber aquela ligação me deixou momentaneamente
paralisado, mas me recuperei rápido.
— Salaam aleikum96, meu amigo — cumprimentei-o,
satisfeito que tivesse me ligado. — Há quanto tempo que não
nos falamos.
— Alaikum As-Salaam97, Mubarak. É verdade, faz um
longo tempo.
— Tentei ligar várias vezes para você, mas o seu
número estava sempre desligado. Fico satisfeito em saber que
ainda é seu e que você está bem.
— Sim, estou bem.
Notei o quanto ele estava sendo econômico nas
palavras e como o tom de voz estava diferente do que eu
conhecia, bem mais sério e compenetrado. Continuei agindo
naturalmente, pois aquela era uma oportunidade única para
reatar a nossa amizade.
— Mas afinal onde você está? Desapareceu de Tamrah
sem avisar para onde ia. Senti a sua falta, meu amigo.
— Resolvi dar uma volta pelo mundo, mas então fiquei
sabendo de algumas coisas e decidi que estava na hora de
falar com você.
O timbre que ele usou continuava sério, sem a antiga
leveza e camaradagem com as quais eu estava acostumado.
Algo havia acontecido com Majdan que o tinha mudado.
— Você está diferente. — Fui sincero, tentando
entender o momento que ele estava passando. — Parece outro
homem.
— Este sou eu, o verdadeiro Majdan. O outro não era
nem metade do que realmente sou. Aquele seu amigo não
existe mais.
— Mesmo sendo um novo homem, ainda somos
amigos. Prezo muito a sua amizade.
— Se preza, então me deixe lhe dar um conselho de
amigo, que, inclusive, é o motivo desta minha ligação. Não faça
absolutamente nada contra a minha família, Mubarak — ele me
surpreendeu com aquele aviso. — Fui seu amigo durante anos,
mas se você ousar agir contra qualquer um deles, garanto que
não vai gostar de me ter como inimigo.
Aquilo era obviamente uma ameaça e apertei o celular
com força contra o ouvido.
— Eu nunca faria nada contra a sua família. Que
motivos eu teria para fazer isso? Tem certeza de que não
tomou nada que alterou o seu estado de consciência?
Costumávamos ficar pedrados anos atrás, mas sempre foi com
produto de qualidade. Acho que o seu fornecedor atual não é
bom.
— Já fui e voltei do inferno várias vezes, mas hoje
estou sóbrio e limpo. Vá se acostumando comigo assim,
porque este sou eu. O outro Majdan não existe mais.
Sem dúvida que ele estava diferente e tentei não me
inquietar com aquela mudança. De amigo leal, Majdan parecia
ter se transformado em um homem perigoso.
— O que importa é que continuamos amigos. Quanto à
sua família, não tenho nada contra nenhum deles. Ao contrário,
hoje também estamos ligados por laços familiares. Kismet está
casada com Saqr. Malika está noiva de Yusuf. Com essas duas
uniões das minhas primas com os seus irmãos, a nossa
amizade só se estreita ainda mais.
— Fico feliz em saber que está satisfeito com o destino
das duas, porque é com os meus irmãos que elas vão
continuar. Deixe a Malika em paz.
A ameaça ainda estava ali e pensei se realmente havia
perdido um grande aliado. Lembrei-me do que o meu pai havia
dito sobre as vantagens de ter uma aliança com um país forte
como Tamrah.
“É uma insensatez grotesca tê-los como inimigos.”
— Há muito tempo que torço pela felicidade de Malika,
meu amigo. O meu pai tinha umas ideias erradas sobre a
condução dos conflitos familiares, mas eu não compartilhava
da mesma opinião. — Resolvi amenizar a tensão falando dos
bons tempos. — E quando você volta dessa viagem ao redor
do mundo? Precisamos nos encontrar um dia desses.
— Ainda não tenho data certa. Quando eu voltar à
Tamrah você vai ficar sabendo.
Ele desligou logo depois e pousei pensativamente o
celular sobre a mesa. Justamente agora que os meus planos
de trazer Malika de volta estavam se concretizando, Majdan
surgia como defensor da família.
Khara!98
Capítulo 36
Tamrah
Malika
— Rashid acabou de ordenar o fechamento da
fronteira com Sadiz, para tentar conter o fluxo de refugiados
que estão vindo para cá — Farah segredou em uma reunião
privada que marcou comigo logo de manhã cedo no majlis dela
em Taj. — Você sabe que de início fui contra, mas já se
passaram meses e a movimentação de refugiados não para de
crescer. Neste momento atual, tenho de concordar com Rashid
que é preciso fazer alguma coisa, nem que seja fechar
temporariamente as fronteiras.
Preocupei-me com aquele fechamento. Desde que
chegaram em Tamrah os primeiros rumores da agitação social
que estava acontecendo em Sadiz, eu não conseguia parar de
pensar no desespero dessas pessoas que estavam se
arriscando tanto para fugir do país e tentar a sorte aqui. Eram
famílias inteiras, muitas com crianças de colo.
— Eu não consigo ficar insensível à essa situação,
Farah. Sei que o Sheik Rashid e Saqr veem tudo pelos olhos
de governantes que precisam proteger o seu próprio povo, mas
existem crianças lá no campo de refugiados. Não podemos
ignorar isso.
Ela franziu a testa e notei o quanto também estava
preocupada com aquele ponto.
— Esta não foi uma decisão fácil para eles tomarem,
Malika. Rashid e Saqr também pensam nas mulheres e
crianças, mas já aceitamos a entrada de mais refugiados do
que esperávamos. Os outros países que têm fronteiras com
Sadiz já fecharam há muito mais tempo do que nós. A meu
pedido, Rashid manteve a decisão de continuar recebendo
quem conseguisse entrar em Tamrah, só que agora não dá
mais e foi por isso que chamei você para esta reunião de
urgência. Sei que está muito engajada no projeto que criamos
para ajudar os refugiados, mas o fluxo de entrada vai parar a
partir de hoje. Vamos concentrar o nosso trabalho em quem já
está aqui, em vez de nos prepararmos para receber mais.
— É difícil para mim aceitar isso e não é por serem o
povo da minha terra, mas porque são seres humanos
necessitados de ajuda.
Ela me lançou um olhar muito sério.
— Eu já lhe disse que aprenda a não se martirizar por
ser incapaz de salvar o mundo inteiro. Ninguém conseguirá
fazer isso, Malika. Você não é a salvadora do mundo, muito
menos eu. Por mais que queiramos fazer isso, é impossível. Já
aceitamos muita gente e essas vão receber cuidados de saúde,
alimentação, um local para morar e até trabalho. Foram essas
as pessoas que Allah designou que estariam sob a nossa
responsabilidade. Não podemos receber a população inteira de
um país vizinho em nosso território.
— Eu entendo e vejo a lógica de tudo isso, mas é cruel
demais saber o que está acontecendo e não poder fazer nada.
Já não é a primeira vez que ouço relatos das mulheres que
chegam, dizendo que os soldados de Sadiz estão usando de
violência quando conseguem pegar algum deles antes de
cruzarem a fronteira. Muitos refugiados estão sendo agredidos
e forçados a voltar. Não podemos fazer nada para impedir
isso?
Ela negou com um meneio de cabeça, reforçando a
negativa com as palavras.
— Não podemos ameaçar a soberania de Sadiz e você
sabe disso. Se um único tiro for disparado por nossos soldados
naquela área da fronteira, estaremos em uma guerra declarada
contra o seu país. É uma situação delicada, que está tirando o
sono de todos nós, principalmente de Rashid e dos meus filhos,
mas é preciso aceitar que existem limites que não podemos
ultrapassar. Sadiz está passando por um sério problema interno
que só o seu tio poderá resolver.
— Kismet já está sabendo disso?
— Saqr vai contar agora de manhã. O meu filho está
cheio de cuidados com Kismet nesta terceira gravidez. Nenhum
dos dois esperava pela chegada de Fhatima, mas Allah decidiu
que era a hora da minha neta vir ao mundo e a vontade de
Allah sempre prevalece sobre a nossa. Deixe que Saqr conte e
depois converse com a sua irmã sobre isso. — Ela me deu um
abraço de consolo. — Somos responsáveis pelas vidas que já
acolhemos e devemos nos concentrar nelas. Vamos tentar nos
conformar com a vontade de Allah para esta situação, minha
querida.
Tentar eu até que tentei, mas não consegui. Todos os
outros projetos do ministério que eu estava acompanhando
foram deixados de lado para que eu pudesse me dedicar
exclusivamente àquele. Diariamente, novas mulheres e
crianças chegavam de Azra, a cidade que ficava na parte da
fronteira usada pelos refugiados para entrar em Tamrah. Todos
os dias, novos detalhes do horror que eles estavam vivendo
chegavam aos meus ouvidos e, claro, eu ficava revoltada com
o meu tio e com Mubarak.
Eu sabia que Farah tinha razão, ainda que fosse difícil
aceitar aquilo.
— Vou me concentrar nas pessoas que já recebemos e
tentar não pensar em quem ficou para trás.
Ela sorriu com carinho, segurando o meu rosto com
ambas as mãos.
— Você tem um coração de ouro e nasceu para esse
trabalho humanitário, mas nunca se esqueça de que só Allah
tem o poder de mudar o curso de uma história, seja a minha, a
sua ou a de qualquer um daqueles refugiados. Tudo já foi
escrito pelas mãos de Allah e só ele pode apagar e reescrever.
Abracei-a, aconchegando-me junto ao peito dela. Farah
era uma mulher excepcional, cuja sabedoria eu admirava e
cujos conselhos eu respeitava.

Naquela tarde, durante a minha conversa habitual com


Yusuf, a primeira coisa que ele comentou foi sobre a decisão
do pai.
— Como está se sentindo com o fechamento das
fronteiras?
Observei-o pela tela do computador, cada dia com mais
saudades dele do que no dia anterior.
— Tive de aceitar a decisão que vocês tomaram e me
conformar em ajudar quem já está aqui.
Eu sabia que o Sheik Rashid e Saqr não tomariam
aquela decisão sem pedir a opinião de Yusuf. Como diretor do
serviço de inteligência de Tamrah, ele era responsável pelas
forças armadas do país tanto quanto o próprio Saqr, que
ocupava o cargo de Ministro da Defesa.
— Minha mãe explicou para você todos os motivos que
nos forçaram a fechar as fronteiras? Não quero que pense que
foi uma decisão fácil, muito menos arbitrária da nossa parte.
— Eu entendi bem, não se preocupe. Farah me
explicou todos os detalhes e sei que este é um assunto
politicamente delicado. Reconheço que fiquei excessivamente
sensibilizada com esta situação em especial por serem
refugiados de Sadiz, o meu povo — admiti, dando um sorriso
conformado. — Pelo menos poderei ajudar quem já está aqui.
Ele cravou um olhar preocupado em mim.
— Não quero que você se arrisque demais com essa
ajuda humanitária, Malika. Temos pessoal suficiente para entrar
em contato direto com os refugiados assim que eles chegam,
sem que você precise participar dessa etapa de triagem que
está sendo feita.
— Eu gosto desse primeiro contato com as mulheres e
as crianças. Quero que se sintam seguras e confortadas por
terem uma das princesas de Sadiz cuidando delas aqui em
Tamrah. Garanto que Kismet estaria vindo comigo para Azra se
não estivesse grávida.
— Não estou falando de você ir para Azra, mas de se
deslocar da casa de acolhimento da cidade para o campo de
refugiados — ele explicou com paciência. — É muito arriscado
ir diretamente para lá, mesmo com nossos soldados
controlando o local.
Não consegui deixar de contrair os lábios ao ouvi-lo.
— Já vi que o Assad é um traidor. Está passando para
você cada passo que dou.
Incrivelmente, Yusuf soltou uma risada, o olhar
suavizando.
— Você agora falou igual à Sabirah. Ela o detesta.
Acabei rindo também, pois ele tinha razão. Sabirah
martirizava o juízo de Assad no quesito rebeldia contra o
sistema de segurança montado por ele para nos proteger.
Kismet era a única que não estava sob a responsabilidade
dele, mas de uma equipe especial que o próprio Saqr havia
escolhido para ela e os filhos.
— Não sei se me sinto ofendida com essa comparação,
Yusuf. Sabirah é uma garota de vinte anos e eu sou uma
mulher adulta de vinte e seis — falei para ele com bom humor.
Yusuf não deixou de rir.
— Daí você já vê que não deveria chamar o Assad de
traidor por me dar informações sobre a sua segurança.
Tive de reconhecer que ele tinha razão.
— Você sabe que gosto muito do Assad e sei o quanto
ele é competente, mas quero fazer o meu trabalho sem
interferências.
Ele ficou sério.
— Só vou interferir quando ver que você está se
colocando em risco e é um risco muito grande deixar a
proteção da casa de acolhimento, onde está montado um forte
esquema de segurança, para ir ao campo de refugiados.
Aquilo era uma contradição da parte dele. O exército de
Tamrah estava controlando a área com mão de ferro.
— E o que pode acontecer de mal comigo em um lugar
cheio de militares? Para cada refugiado, existem dez ou mais
soldados na região, além de tanques de guerra e helicópteros
sobrevoando o local a todo instante.
Yusuf se aproximou mais da câmera, dando ênfase ao
que ia dizer.
— Você já pensou na possibilidade de existirem
agentes secretos de Mubarak infiltrados entre os refugiados?
Um arrepio macabro percorreu o meu corpo e inspirei
fundo diante daquela possibilidade. Fiquei tão aterrorizada, que
a imagem de Yusuf desfocou e eu só conseguia ver à minha
frente o rosto de Hisham, o meu algoz.
Fechei os olhos e oscilei na cadeira.
— Malika! Malika, está me ouvindo? — A voz alta de
Yusuf invadiu o quarto pelo notebook e meneei a cabeça,
atordoada.
Ele praguejou em um tom de voz desesperado.
— Malika, se você não me responder de novo, vou ligar
para alguém ir ao seu quarto agora! Está me ouvindo?
— Estou — sussurrei com a voz engasgada na
garganta.
Esfreguei as mãos no rosto para tentar tirar da minha
mente as lembranças nefastas da prisão.
— Olhe para mim e me diga se está se sentindo bem
— Yusuf pediu com a voz mais calma.
Atendi ao pedido e olhamos um para o outro em
silêncio.
Era em momentos como aquele que eu mais sentia a
falta dele em Tamrah. Yusuf era a única pessoa com quem eu
podia falar o que ia na minha alma. Apesar de Kismet ser uma
irmã que eu amava demais, não queria angustiá-la com os
meus problemas. Eu era a mais velha, a que sempre cuidou
dela, e não ia agora inverter os papéis. Também pesava muito
na minha decisão o fato de ela hoje ter dois filhos pequenos e
ainda estar grávida do terceiro.
Yusuf era o meu confidente, além de tantas outras
coisas na minha vida.
Em Nova York, ele usava roupas ocidentais. Naquele
dia, estava com um terno muito elegante, mas a gravata pendia
folgada no colarinho, como se ele sentisse falta da liberdade
que o thobe proporcionava. O olhar que prendia o meu
continuava profundo, transmitindo uma paz e segurança que
me completava.
— Sente-se melhor agora?
— Sim, estou bem, e peço desculpas pela minha
reação.
— Não peça desculpas. Fui eu quem errei ao falar
sobre isso com você. Este é um assunto que tem preocupado a
mim, aos meus irmãos e ao meu pai. Já estamos alertas com
relação a isso, tentando verificar e registrar todos que entram
por aquela área da fronteira, mas o número de refugiados
cresceu assustadoramente nas últimas semanas e se tornou
difícil manter o controle. Alguns refugiados estão pegando rotas
alternativas para entrar em Tamrah — ele me informou e
recriminei a mim mesma por não ter pensado naquilo tudo. —
Mas não se preocupe. Assad está atento. Só precisamos da
sua colaboração para nos ajudar a protegê-la. Evite ir ao
campo de refugiados. Fique na casa de acolhimento, onde
estará mais segura.
— Sou uma boba mesmo. Em momento algum pensei
que Mubarak pudesse se aproveitar dessa situação para
infiltrar agentes no meio dos refugiados, mas ele é capaz disso.
O rosto de Yusuf voltou a ficar muito sério.
— A decisão de fecharmos toda a fronteira com Sadiz
foi mais por causa disso do que por qualquer outro motivo,
Malika. Agora prometa que não vai mais ao campo de
refugiados.
Eu não queria deixar de ir. Sentia-me mais útil lá do
que na casa de acolhimento, aonde só chegavam para mim os
que já haviam sido selecionados na triagem. Era triste ter de
abrir mão de algo que me fazia tão bem só por causa de
Mubarak.
— Eu prometo.
O alívio de Yusuf foi evidente. Ele soltou um longo
suspiro e se recostou contra o espaldar da cadeira.
— Shukran, Malika. Eu não sei como conseguiria ficar
aqui se você não me prometesse isso — desabafou com o
olhar intenso prendendo o meu.
Capítulo 37
Nova York
Yusuf
O que inicialmente parecia uma solução perfeita para
mim, transformou-se em um problema angustiante durante o
tempo em que fui obrigado a ficar em Nova York. O que eu
sentia por Malika não diminuiu nem ficou melhor de ser
suportado com a distância. A saudade que eu sentia dela era
tanta que até doía no peito. Eu estava mesmo condenado a
sofrer de amor não correspondido.
A enorme distância entre os dois países, que até
pareceu ser a minha libertação, rapidamente se transformou
em uma prisão. Mesmo usando um avião privativo da família
real para fazer a viagem, as treze horas de voo entre Tamrah e
Nova York inviabilizavam as idas e vindas constantes apenas
para ver a minha família — ou ver Malika, que era o que eu
realmente queria.
Fui administrando a situação com mão de ferro,
continuando a falar com ela por videochamada sempre que os
nossos horários coincidiam, além de receber informações que o
Assad me passava.
As reuniões de negócios se sucediam e a expansão da
Global Harbi avançava, mas alguns entraves legais atrasaram
o fechamento de um dos contratos, o que me forçaria a
permanecer mais tempo em Nova York. Quem havia iniciado
aquela expansão da nossa empresa nos Estados Unidos foi
Saqr e eu invejava a paciência dele ao lidar com políticos e
empresários. No meu caso, nasci para a ação. Ver aqueles
homens amarrados a tantas burocracias tirava a minha pouca
paciência.
No dia em que falei aquilo para Saqr em uma reunião
por videoconferência, ele riu muito.
— E quem lhe disse que não tive vontade de pegar um
deles pelo colarinho engomado do paletó e mandar que
tomasse logo uma decisão?
A minha surpresa se transformou em uma risada de
alívio, que ele compartilhou comigo.
— Pensei que fosse só eu que sentisse vontade de
fazer isso. Já nem há mais o que ser analisado naquele
contrato, mas as reuniões se sucedem sobre o mesmo
assunto. Fico me questionando se vale a pena ter um parceiro
comercial assim.
— Valerá quando tomarmos para nós a empresa dele.
É uma questão de tempo até que isso aconteça.
— Eu já estava me sentindo incompetente para esta
missão. É preciso mais paciência e diplomacia do que tenho
nas veias.
— Não se preocupe com isso. Você está se saindo
muito bem.
Eu esperava que sim. Quanto mais rápido tudo fosse
resolvido, mas cedo eu voltaria para Tamrah. E para Malika!
Eu visitava Majdan sempre que podia e era permitido
pela clínica. Nosso relacionamento de irmãos evoluiu bastante
durante aquele meu tempo de estadia em Nova York. Estar
com ele fazia com que não sentisse tanta falta da família.
Depois daquela conversa com Saqr, conformei-me
mais com o ritmo lento das negociações daquele último
contrato. Depois que ele fosse fechado, eu ainda teria muitas
providências para tomar antes de considerar a minha missão
concluída e poder voltar para Tamrah.
Eu estava mais ansioso a cada dia para aquilo
acontecer, ainda mais com as notícias tensas que chegavam
do meu país. A situação dos refugiados era apenas uma delas.
A outra, e mais preocupante, era o agravamento da
instabilidade interna de Sadiz. Nas duas últimas vezes em que
o meu pai ligou para Suleiman, foi Mubarak quem atendeu,
informando que o pai havia se afastado temporariamente de
suas funções no governo sob recomendação médica, para
tratar de um problema de saúde. Segundo ele, relacionado ao
coração.
Aquilo significava que era o Mubarak quem estava à
frente do governo, o que por si só era mais preocupante ainda.
— A melhor decisão que tomamos foi a de fechar a
fronteira — o meu pai desabafou ao lado de Saqr, os dois com
uma expressão severa ao me colocarem a par de tudo. — Com
Mubarak no poder, vai estourar em breve uma guerra civil em
Sadiz.
Fiquei inquieto com aquela situação, querendo estar ao
lado dele e do meu irmão para agir de imediato se fosse
preciso.
— Conheço você e sei que está ansioso para voltar,
mas por enquanto não é necessário — o meu pai me alertou
logo. — Se estourar uma guerra na vizinhança, trarei você de
volta para liderar com Saqr a nossa defesa. O nosso exército já
está de prontidão.
— E quem vai me substituir em Nova York?
Ele trocou um olhar preocupado com Saqr, com quem
já devia ter discutido aquele assunto.
— Com uma guerra acontecendo aqui ao lado, não
posso abrir mão de vocês dois, que são especialistas nesta
área. Decidirei o assunto quando chegar a hora.
Resolvi dar a minha opinião.
— Eu tenho a pessoa ideal, só preciso da sua
autorização para falar com ele, pai.
O meu pai franziu a testa, estranhando que eu
conhecesse alguém à altura e ele não, mas Saqr deu um meio
sorriso de quem havia acabado de matar a charada.
— Quem é essa pessoa?
— O Majdan.
O meu pai não podia estar mais surpreso.
— O Majdan?
— Sim, ele mesmo. Acho que o meu irmão está pronto
para isso, mas tudo depende do senhor me autorizar a falar
com ele e de ele aceitar. Será um príncipe Al Harbi substituindo
outro príncipe Al Harbi e nenhum investidor poderá se ressentir
disso — defendi a minha ideia. — Eu já informei a vocês que
Majdan é outro homem hoje em dia. Quando o virem, vão sentir
facilmente a diferença.
O meu pai ficou pensativo, mas era óbvio que estava
emocionado. Eu imaginava o quanto devia estar esperando
com ansiedade o momento de receber o primogênito de novo
no seio familiar.
Ele olhou para Saqr, que fez um gesto afirmativo com a
cabeça.
— Está autorizado, Yusuf. Faça a proposta ao seu
irmão. Vamos rezar para Allah nos ajudar e ele aceitar.

— Então, o Mubarak finalmente conseguiu se apossar


do governo — Majdan comentou assim que repassei as últimas
notícias da região.
— Tudo indica que sim. É muito estranho que Suleiman
tenha adoecido justamente agora, quando Sadiz está
praticamente com uma guerra civil declarada.
— Afinal, a Malika tinha razão. Não foi um delírio o que
ela ouviu da boca dele.
— Não, não foi. Nosso pai está preocupado com a
escalada da repressão política de Sadiz e com a tensão cada
vez maior na fronteira.
Sentado à minha frente no sofá da sala, com os
antebraços apoiados nas pernas, Majdan permaneceu em um
silêncio pensativo, a fisionomia carregada.
— Mubarak ainda vai precisar da aprovação do
conselho dos anciões para ser empossado, a menos que dê
um golpe de Estado, se autointitulando como novo governante
de Sadiz — disse, por fim.
— Se isso acontecer, ele terá um grande problema
para resolver diante da Coligação Árabe. Não é assim que as
coisas funcionam para a maioria.
— A sede de poder de Mubarak vem de há muito
tempo. Depois que assumir, só sairá de lá morto.
Trocamos um olhar muito sério.
— Que seja assim, então.
— Possivelmente teremos um aliado em Abdullah.
Sabe se ainda está vivo?
— Saqr teve essa preocupação e ligou para o sogro
para conversar sobre os refugiados. Apesar de Abdullah não
ter feito confidências sobre o que está acontecendo no
governo, confirmamos que está vivo. Pelo menos por enquanto.
— Ele também não poderia falar muita coisa. Deve ter
os telefones grampeados.
— Sabemos disso. A intenção era mesmo ter uma
prova de vida.
Majdan me olhou com aprovação.
— Com esse clima de guerra iminente você vai ser
necessário lá. Quando volta?
Havia chegado a hora da proposta e orei para Allah me
ajudar a convencer o meu irmão.
— Voltarei quando você assumir o meu lugar no projeto
de expansão da Global Harbi aqui nos Estados Unidos.
Ele soltou um longo suspiro e se levantou, caminhando
até a parede de vidro da sala, de onde se via o gramado
verdejante do jardim que circundava a casa.
Levantei-me também, aproximando-me dele.
— Sei que você me disse que ainda não estava pronto,
mas a cada vez que nos vemos e que conversamos, mais
certeza eu tenho de que está pronto sim. Você é outro homem
hoje, com uma força de caráter que antes não tinha, ou que
deixou de ter durante a sua trajetória como amigo de Mubarak.
Tudo o que estou fazendo atualmente para a expansão da
Global Harbi, você sabe fazer melhor do que eu.
— Fiz muitas merdas quando era o príncipe herdeiro.
Tomei muitas decisões erradas que decepcionaram o nosso pai
— ele lembrou com o olhar fixo na paisagem.
— Isso é um fato, mas um fato do passado. O
conhecimento, a experiência que o cargo exige e a liderança
você sempre teve. O que faltou foi o discernimento para pensar
e tomar a decisão certa, algo que as drogas lhe roubaram
naquela época. Hoje em dia, sem elas, você é dono da sua
razão, tem controle mental, e poderá seguramente assumir as
últimas negociações da nossa empresa. Allah está lhe dando
uma oportunidade de provar a si mesmo que voltou a ser o
verdadeiro Majdan. Já não vejo a arrogância de outros tempos,
mas a humildade de quem caiu e conseguiu se levantar — falei
com sinceridade, emocionado ao ver lágrimas nos olhos do
meu irmão. — O homem que vejo ao meu lado agora é o irmão
que conheci na infância, é o filho primogênito do Sheik Rashid
Al Harbi e de Farah Al-Jaber, é o pai de Hud, Imad e Abia.
Todos nós amamos você e queremos que volte. A família Al
Harbi está precisando que se junte a nós nessa luta. O nosso
país precisa de você.
Majdan apoiou as mãos no vidro e baixou a cabeça, os
braços tensos, o corpo rígido. Senti a sua luta interior e pedi à
Allah para dar forças ao meu irmão, para o ajudar a acreditar
em si mesmo. Ele precisava daquela oportunidade e eu
esperava que não a desperdiçasse.
Sem que eu contasse com aquilo, Majdan me abraçou.
A surpresa durou apenas um segundo. Logo, eu o abraçava de
volta, tão emocionado quanto ele.
Quando nos separamos, ele tinha uma expressão
determinada no rosto e eu soube da resposta antes que ele a
desse.
— Pode voltar para Tamrah. Eu assumo as
negociações da Global Harbi — afirmou com confiança. — Me
informe tudo o que já fez e o que falta fazer. Quero saber os
detalhes dos investidores e até onde posso ir para atingir os
objetivos da empresa.
— Explicarei tudo e deixarei o meu assistente com
você. Adnan poderá tirar as dúvidas que você venha a ter
quando eu não estiver mais aqui. Ele acompanhou cada passo
das negociações — esclareci, satisfeito com o andamento das
coisas. — Fora o meu assistente, estamos com uma boa
equipe de especialistas trabalhando para nós, além do setor
jurídico da empresa, que está atento a tudo. Você estará bem
assessorado.

Tamrah
Quando o trem de pouso tocou a pista do aeroporto
internacional de Jawhara, o meu coração exultou de felicidade.
Aquela era a minha terra e nenhum outro lugar do mundo era
melhor do que Tamrah. As saudades que senti do meu país
foram devastadoras, muito mais fortes do que durante os anos
em que estudei em Londres. Naquela época, a Malika não
existia na minha vida. Agora existia e estava a alguns minutos
de distância de mim.
Estou de volta ao meu país e disposto a defender com
unhas e dentes cada grão de areia desta terra e a mulher que
amo!
Não tive condições de avisar a ela sobre o meu retorno.
Avisei apenas ao meu pai, à minha mãe e à Saqr, mas pedi que
não contassem à Malika, justificando que queria lhe fazer uma
surpresa. Não era bem assim. Eu queria pegar Malika
desprevenida e ver qual seria a reação dela quando
estivéssemos frente a frente. Ainda tinha esperanças de ela se
entregar, de admitir que sentia algo mais forte por mim e
permitir que me aproximasse.
Que Allah me perdoe, mas vou quebrar todas as regras
que puder para convencer Malika a me dar uma chance de
provar que podemos ser felizes juntos.
Quando entrei no meu Bugatti que já me esperava ao
lado do avião, peguei o celular e liguei para Saqr.
— Já chegou? — ele perguntou com entusiasmo, feliz
com o meu retorno.
— Estou a caminho de Taj. Sabe dizer se Malika está
em casa? Não quero correr o risco de me encontrar com ela
antes de tomar um banho e trocar de roupa.
— Nossa mãe disse que Malika hoje foi trabalhar com
os refugiados na casa de acolhimento de Azra. Ela ainda tentou
dissuadi-la, para que estivesse aqui quando você chegasse,
mas a sua noiva é aquele tipo de mulher que quando quer uma
coisa, dificilmente alguém consegue fazê-la mudar de ideia.
— Igual à sua mulher, talvez.
Saqr riu, parecendo estar de muito bom humor.
— Igualzinha.
— Pode fazer um favor para mim? Quero um
helicóptero pronto para me levar até Azra. Assim proveito para
ver com os meus próprios olhos esta situação dos refugiados e
como estão as coisas na fronteira com Sadiz.
— Vou providenciar isso para você. Seja bem-vindo,
meu irmão. Estávamos com saudades.
— Shukran, Saqr. Eu também estava com saudades da
minha família e do meu país.
Depois de finalizar a conversa, joguei o celular no
banco do passageiro e liguei o som do carro, suspirando
profundamente quando Qsad Einy99 começou a tocar. A letra
daquela música parecia ter sido escrita especialmente para a
minha história com Malika.
Lembrei-me de como fiquei perplexo quando ela me
disse que também gostava da música. Naquela ocasião, eu
ainda não sabia do tamanho do amor que sentiria por aquela
mulher.

“Estamos destinados a ficar juntos.


Mesmo que estejamos longe um do
outro
Com certeza, voltaremos.
Mesmo que haja uma longa distância
entre nós,
Você está na frente dos meus olhos,
Em todos os lugares.

Com certeza, estaremos juntos


novamente.
Estou derretendo de amor e cheio de
paixão.
Eu não posso desistir de você,
Não importa o que aconteça.
Você está diante dos meus olhos,
Em todos os lugares.”
Capítulo 38
Malika
Nassemanas seguintes à minha conversa com Yusuf
sobre o campo de refugiados, tentei não me arrepender da
promessa que fiz de não voltar mais lá. Principalmente quando
ouvia falar dos conflitos causados pelo fechamento da fronteira.
Muitos refugiados, desesperados para saírem de Sadiz,
começaram a enfrentar os militares de Tamrah para entrar no
país. Quando não era aquilo, eram as novas rotas de travessia
que eles criavam pela área desértica, onde muitos morriam de
fome e de sede antes mesmo de chegarem a algum lugar.
Depois que Yusuf viajou para Nova York, passei a
visitar as casas de acolhimento das regiões mais próximas de
Jawhara com a autorização de Farah e agradeci muito a ela por
aquele voto de confiança. Eu já tinha conhecimento de todo o
funcionamento dos projetos criados pelo Ministério da Mulher e
estava cada dia mais apaixonada pelo trabalho que fazia.
O melhor daquelas viagens era a sensação de
liberdade que eu sentia ao dirigir o meu próprio carro, mesmo
sendo seguida de perto por um carro de apoio com dois
seguranças. Um deles era o Assad. Ele havia se transformado
na minha sombra, cumprindo à risca as ordens que Yusuf
deixou antes de viajar para Nova York.
Aquelas pequenas deslocações me ajudaram a
conhecer melhor o país e pude comprovar que ainda havia
muito trabalho a ser feito para que os projetos do Ministério da
Mulher alcançassem os objetivos traçados. O tradicionalismo
permanecia forte em algumas cidades do interior e os direitos
assegurados por lei às mulheres não eram respeitados.
Um dos casos que mais me revoltou foi o de Thara. Ela
tinha vinte e cinco anos e fugiu de casa com a ajuda da mãe
depois que o pai exigiu que fosse circuncidada100 antes do
casamento com um noivo escolhido por ele. Pelo que fiquei
sabendo, desde que ela completou quinze anos que o pai vinha
tentando que passasse pelo ritual da circuncisão. Quem a
protegeu durante aquele tempo todo foi a mãe, que também
havia sido circuncidada aos quinze anos e ainda sofria com os
problemas físicos provenientes da mutilação. A mulher não
queria o mesmo para a única filha que tinha e se arriscou a
desobedecer ao marido para salvá-la, ajudando Thara a fugir.
Infelizmente, a mãe dela não escapou de ser duramente
castigada pelo marido, levando vários golpes na cabeça e
vindo a falecer dias depois.
Na ocasião da morte da mãe, Thara já estava na casa
de acolhimento da cidade, para onde foi pedir ajuda quando
fugiu. Comentei com Farah depois que a existência da casa de
acolhimento foi o que salvou Thara. Em casos como aquele,
sabíamos que ninguém ofereceria ajuda ou abrigo a uma filha
fugindo do pai. Se Thara tivesse sido devolvida para casa,
provavelmente morreria para salvar a honra dos homens da
família.
O caso de Thara chegou às minhas mãos logo no
primeiro dia em que fui visitar a casa de acolhimento de
Rummán, a cidade onde ela morava. Fazia uma semana que
tudo havia acontecido e a diretora da instituição estava
preocupada com a pressão social que o pai da garota vinha
fazendo para tê-la de volta. O homem era um líder religioso
influente na cidade e aparecia quase que diariamente na
instituição exigindo que lhe entregassem a filha de volta.
Fui conversar com Thara e o meu coração se apertou
quando a vi encolhida no canto do quarto. Notei o quanto
estava apavorada, algo que eu entendia muito bem.
Não precisei de muito tempo de conversa para tomar
uma decisão. Liguei para Farah e expliquei tudo, pedindo
autorização para transferir Thara para a casa de acolhimento
de Jawhara, onde ela ficaria sob a custódia do Estado e longe
do pai, dos familiares e dos moradores da cidade. Não havia
futuro para ela em Rummán.
— Está autorizado. Traga-a com você. Resolveremos a
parte legal quando ela estiver aqui.
— Shukran, Farah.
— Você foi o instrumento de Allah para salvar Thara.
Nossa gratidão vai para Ele.
Farah tinha razão e fiquei feliz em poder salvar uma
vida. Da mesma maneira, eu queria ajudar a salvar outras vidas
ao visitar o campo de refugiados. Não era trabalhando dentro
de uma sala luxuosa que eu ia conseguir aquilo. Era entrando
em contato direto com eles no ambiente onde estavam.
Infelizmente, promessa era promessa e eu não ia faltar
com a palavra dada a Yusuf.
Suspirei pela centésima vez, em uma tentativa de não
me sentir tão frustrada. Fechei o sistema onde estavam sendo
armazenadas todas as informações dos refugiados e baixei a
tela do notebook, levantando-me da cadeira. Estava decidida a,
pelo menos, entrar em contato com as mulheres e crianças que
fizeram a travessia da fronteira sozinhas e que agora estavam
sendo recebidas ali na casa de acolhimento.
Cansei de trabalho burocrático!
Eu havia acabado de sair da sala quando o som de
uma explosão ao longe me assustou. Eu nunca tinha ouvido
nada igual e paralisei no meio do corredor, em estado de
choque. Foram os gritos das pessoas lá fora que me tiraram da
paralisia.
Mal dei dois passos para ir ver o que estava
acontecendo, quando uma segunda explosão aconteceu ali
mesmo nos escritórios. O som ensurdeceu os meus ouvidos e
abalou a estrutura do prédio. Fui jogada com violência contra a
parede do corredor e depois escorreguei para o chão, onde
fiquei agachada e encolhida, protegendo a cabeça com os
braços.
Logo depois, veio o som de outra explosão, também
distante de onde eu estava.
Allah, o que é isso?!
O meu coração pulsava no peito à medida que pedaços
do teto caíam à minha volta. Estava olhando ao meu redor à
procura de um lugar para me abrigar, quando um pedaço maior
do teto caiu bem ao meu lado, seguido de outro e mais outro.
Foi mesmo pela graça de Allah que nenhum deles caiu em
cima de mim, mas vários estilhaços me atingiram nos braços e
nas costas.
Quando tudo parou de cair, só ficou a poeira ao meu
redor, que encheu os meus pulmões, fazendo-me tossir.
Encontrei coragem para descobrir a cabeça e tapar o nariz,
analisando tudo à minha volta. Assustei-me ao perceber que a
minha sala já não existia mais, assim como parte do corredor
atrás de mim. Só havia escombros amontoados que impediam
a passagem, nada mais.
Foi o som de gritos do lado de fora do prédio que me
tirou do estado de choque. Por sorte, era hora do almoço e
muitos funcionários do escritório não estavam no prédio, ainda
assim alguém podia estar ferido. Tentei encontrar uma maneira
de sair dali e foi quando percebi que estava presa no corredor,
com destroços à minha frente e às minhas costas.
Respirei fundo para me acalmar, mas a poeira entrou
nos meus pulmões e comecei a tossir. Cobri novamente o nariz
e analisei a situação. Decidi que o melhor caminho para sair
dali talvez fosse voltar à minha sala. Pela lógica, se houve uma
explosão nela, provavelmente a parede não existia mais e eu
poderia ir para fora do prédio.
Com muita dificuldade, comecei a andar sobre aquela
pilha de destroços que havia no chão, a sapatilha delicada que
eu usava sem conseguir proteger os meus pés. Notei que a
minha abaya tinha um rasgão ao lado da perna direita e que eu
havia perdido o hijab em algum momento daquela explosão.
Subi pelos escombros quase engatinhando, com a
esperança de alguém se lembrar que eu estava no escritório da
casa de acolhimento e que precisaria de ajuda para sair de lá.
A comoção continuava do lado de fora, com gritos de homens,
de mulheres e choros de crianças.
Eu já estava quase chegando ao topo dos escombros
quando houve uma terceira explosão em algum lugar próximo,
mas que abalou a frágil estrutura da parte onde eu estava.
Alguns pedaços do teto ruíram, mas Allah me protegeu, porque
foi longe de mim. Fiquei com a impressão de que as outras
duas explosões aconteceram em partes diferentes da casa de
acolhimento.
Por mais incrível que aquilo pudesse parecer,
estávamos sendo atacados.
Mas por quem?
Cheguei no alto dos escombros e empurrei com toda a
força que consegui os pedaços de destroços que estavam lá,
perguntando-me onde estava o Assad que não aparecia atrás
de mim. Senti lágrimas escorrendo pelo meu rosto e comecei a
rezar para que ele não tivesse morrido em uma daquelas
explosões. Na verdade, quantas pessoas não poderiam estar
mortas lá fora?
Quando eu já estava desistindo de conseguir passar
para o outro lado, um pedaço do teto que eu estava
empurrando se deslocou nas pedras menores embaixo dele e
rolou para baixo, deixando uma abertura suficiente para eu
passar. Arranhei-me toda, mas saí viva daquele buraco, caindo
nos destroços do lado oposto.
Levantei-me, olhando horrorizada para o que restou da
minha sala. Uma mistura de choque e medo me dominou, mas
o instinto de sobrevivência falou mais alto. Procurei pela minha
bolsa, atrás do celular que deixei nela, desesperada para pedir
ajuda no palácio.
Isso se o aparelho ainda estiver inteiro!
Foi naquele instante que um alerta soou forte na minha
mente e a desconfiança tomou conta de mim. Era muito
estranho que a primeira bomba tivesse explodido justamente ali
na minha sala e me questionei se eu havia me tornado um alvo
a ser eliminado.
Desisti de procurar a minha bolsa e saí pela parede
destruída. Lá fora, o caos era pior do que dentro dos
escombros. Havia gente correndo para todo lado, em uma
mistura de refugiados, funcionários e militares. Não vi o Assad,
o que me deixou mais preocupada ainda.
E agora, o que faço?
Com receio de acontecer uma quarta explosão em
algum lugar do centro de acolhimento, decidi que ia ajudar a
tirar o máximo de pessoas dali, mas paralisei no minuto
seguinte. Vi um homem a poucos metros de distância que me
lembrou o Hisham. Estava de lado, olhando com atenção o
prédio do escritório onde eu estava, e o perfil era muito
parecido com o dele. Vestia uma roupa igual à dos refugiados,
muito velha e humilde, mas a postura do corpo era a mesma do
encarregado prisional que transformou a minha vida em
Thueban em um inferno pior do que já era.
Comecei a tremer no minuto seguinte, o instinto de
sobrevivência gritando bem alto na minha cabeça para fugir o
mais rápido que pudesse, mas o medo travou as minhas
pernas. Parecia um dos meus pesadelos, em que tentava
correr para fugir dele e não conseguia.
Livrai-me dele, poderoso Allah!
Livrai-me dele, poderoso Allah!
Livrai-me dele, poderoso Allah!
Engoli em seco várias vezes, ordenando ao meu
cérebro que me ajudasse a agir, que me forçasse a correr, a
fugir. Uma náusea enorme subiu pela minha garganta e senti
vontade de vomitar só de imaginar que aquele fosse mesmo o
Hisham. Lembrei-me de imediato do que Yusuf havia dito sobre
Mubarak colocar agentes infiltrados no meio dos refugiados.
Aquela certeza me tirou da paralisia. Subitamente
conseguir correr, correr e correr como nunca tinha feito antes
na vida. Saí tropeçando nos entulhos, chocando-me contra as
pessoas que também corriam de um lado para o outro,
ignorando as lágrimas que escorriam pelo meu rosto, as dores
que sentia no corpo e tudo o mais que existia no mundo ao
meu redor. Eu não fazia a mínima ideia para onde estava indo,
só sabia que ali não podia ficar.
Hisham era o demônio em forma de gente e as
lembranças voltaram com força total. Eu me tremia toda, mas
ainda assim corria, corria e corria, totalmente ensandecida.
— Malika!
Uma voz masculina entrou na minha mente, superando
até a barulheira ao meu redor. Parecia com a de Yusuf e vacilei
nos passos, tropeçando e caindo de cara no chão. Eu sabia
que ele ainda estava em Nova York e aquilo só podia ser o
diabo pregando uma peça comigo, só para me fazer parar e ser
aprisionada novamente por aquele homem.
Levantei-me com a força nascida do desespero e
continuei correndo, sem nem olhar para trás.
— Malika, pare! Sou eu, o Yusuf!
Não parei, mas olhei para trás por um milésimo de
segundo e solucei quando o vi.
Allah misericordioso, é ele mesmo!
Se eu não estivesse delirando, nem enlouquecido de
vez, aquele era mesmo o Yusuf.
Eu não fazia a mínima ideia de como ele havia se
materializado ali em Azra, quando devia estar em Nova York,
mas reconheci o corpo alto e poderoso que corria na minha
direção usando uma farda militar. Os olhos preocupados se
prenderam aos meus e corri como uma louca para ele.
Não pensei em nada, em absolutamente nada quando
me atirei nos braços de Yusuf, que ele abriu para mim,
apertando-me com força contra o peito.
Por um lapso de memória, as regras de distanciamento
físico foram esquecidas e abracei pela primeira vez o homem
que era o meu amigo, o meu protetor, o meu amor.
Fechei os olhos e solucei de felicidade, pendurando-me
no pescoço dele, que me ergueu pela cintura com força, a
ponto de tirar os meus pés do chão.
— Malika, Malika — falou no meu ouvido. — Por Allah,
quase enlouqueço quando vi a sua sala destruída e não a
encontrei lá.
Eu não conseguia falar nem agir, apenas abraçar o
corpo sólido, sentindo pela primeira vez na minha vida como
era bom estar nos braços do homem que eu amava.
Em meio ao caos, encontrei a minha paz.
Capítulo 39
Yusuf
À medida que o helicóptero sobrevoava o campo de
refugiados, eu ficava mais impressionado com o tamanho dele.
Mesmo sabendo que eram muitos os refugiados que já haviam
entrado no país, eu não imaginava que fossem tantos assim.
Ver pessoalmente era muito diferente de ver por imagens ou de
imaginar. Só agora eu entendia a preocupação do meu pai e de
Saqr, assim como a dimensão do problema que tínhamos.
Era uma loucura pensar que Malika quisesse trabalhar
ali dentro, em vez de estar protegida na casa de acolhimento.
No meio daquele mar de gente, podiam ter dezenas, centenas,
até um batalhão inteiro de agentes secretos de Mubarak. Havia
sido uma benção conseguir que ela prometesse não ir mais
para o campo de refugiados.
Tínhamos acabado de dar a volta para um novo voo
sobre o local quando ouvimos o som de uma explosão. Quando
me virei na direção dela, vi que tinha sido bem no centro da
cidade de Azra.
— Mas que merda é essa?! — gritei para ser ouvido
acima do barulho do motor.
— Pode ter sido apenas um botijão de gás — o piloto
respondeu, mas em um tom de quem não acreditava que fosse
aquilo.
Muito menos eu acreditava.
— Rápido! Rápido! — ordenei e ele foi em direção ao
local da explosão.
Peguei o celular para ligar ao Assad, mas já havia uma
ligação dele chegando no mesmo instante.
— Estou sobrevoando o local. O que está
acontecendo? — perguntei com urgência assim que atendi.
— Uma bomba explodiu e estou indo para lá agora.
A resposta veio ofegante, enquanto ele corria para o
local. Contudo, Assad nem terminou de falar e uma segunda
explosão já acontecia.
— Khara! Khara! — xinguei, sentindo a raiva correndo
solta no meu sangue.
Quem ousou fazer isso em Tamrah?
— Assad! Onde está a Malika? — Ele não respondeu e
praguejei mais uma vez. — Em que parte da cidade aconteceu
a explosão, porra? Assad!!
O silêncio do outro lado era algo grave.
— Será que o atingiu? — o piloto considerou a
possibilidade com preocupação.
— Vamos torcer para que não. Encontre um local
seguro próximo das explosões para pousar o mais rápido
possível.
Malika! Preciso encontrar a Malika.
Liguei para Saqr enquanto nos preparávamos para
descer e nem o deixei falar nada quando atendeu.
— Duas bombas explodiram em Azra. Estou indo para
lá agora, mas é preciso enviar reforços.
— Bombas em Tamrah? — ele rugiu, furioso. — Nunca
tivemos atentados à bomba aqui!
— Agora temos!
Como para provar aquilo, uma outra explosão
aconteceu e trinquei os dentes quando vi a nuvem negra de
fumaça subindo ao céu.
— É a terceira em sequência. Esta merda foi bem
planejada. Estou descendo agora.
— Vou enviar reforços!
— É melhor que cerquem a cidade e o campo de
refugiados, para que ninguém saia até verificarmos todos e
pegarmos quem fez isso.
— É o que farei. Chego já.
Eu não duvidava, mas quando ele chegasse, eu já
queria estar com Malika em segurança ao meu lado.
Desliguei e fui para a parte de trás da aeronave,
pegando um dos equipamentos reserva e me preparando para
descer e procurar por Malika. Vesti um colete, pus o capacete,
conferi a minha pistola e depois peguei um fuzil, colocando-o
atravessado no meu peito. Assim que o helicóptero pousou no
estacionamento de um supermercado, desci e comecei a correr
em direção ao foco das explosões.
À medida que eu me aproximava, a raiva ia sendo
substituída por uma angústia no peito ao perceber que as
explosões estavam concentradas em uma única parte da
cidade: a casa de acolhimento onde Malika trabalhava.
Allah, não a tire de mim agora! Nem tivemos a
oportunidade de ficar juntos.
Continuei correndo pelas ruas até chegar ao portão do
prédio principal. Pessoas saíam às pressas, abalroando-se
umas às outras na tentativa de sobreviverem às explosões.
Ultrapassei todas elas e entrei no complexo da casa de
acolhimento.
No pátio, cruzei com vários militares e seguranças
responsáveis pelo local. Apesar do capacete, fui reconhecido
de imediato por aqueles mais próximos de onde eu estava.
— Evacuem o local! Quero todos os civis fora daqui —
gritei para que me ouvissem e apontei para a saída.
— Agora mesmo, senhor! — Um deles respondeu,
enquanto os outros começavam a cumprir as ordens.
— Viu a princesa Malika?
O olhar do homem ficou preocupado.
— Não, senhor.
— Onde está o seu comandante?
O soldado olhou para um ponto atrás de mim. Virei-me
e reconheci o homem que se aproximou correndo.
— Estou aqui, alteza!
— Viu a princesa Malika? — repeti a pergunta que me
afligia.
Ele olhou para o que havia restado do escritório e ficou
mais tenso ainda.
— Não vi, senhor.
— E o Assad?
Eu ainda tinha esperanças de ele ter conseguido de
alguma maneira proteger a Malika.
— A última vez que o vi estava na área onde aconteceu
a segunda explosão, ao lado dos dormitórios.
Eu não podia perder mais tempo! Cada segundo podia
significar a vida dela, caso estivesse ferida ou sendo ameaçada
por alguém.
— Cerquem todo o perímetro da cidade e do campo de
refugiados até que cheguem os reforços. Quem fez isso não
pode escapar! — dei as últimas ordens antes de ir embora. —
Destaque uma equipe para procurar mais artefatos explosivos
enquanto o esquadrão antibomba não chega.
De lá, corri direto para a área do escritório, sentindo o
meu coração acelerado no peito e a adrenalina fluindo rápido
no sangue.
O tempo de serviço militar faz com que um soldado
acabe se acostumando com a guerra e são poucas as coisas
que nos desestruturam. Aguentamos mais do que a maioria
dos homens aguentaria, resistimos mais também. Ainda assim,
eu não estava preparado para ver as salas do escritório
completamente destruídas por uma bomba. Eu conhecia a
estrutura de todas as casas de acolhimento de Tamrah e foi em
completo estado de desespero que vi a parede destruída e
apenas escombros no que antes havia sido a sala da diretoria.
A sala de Malika!
Senti como se aquela bomba tivesse explodido dentro
de mim, destroçando tudo e me deixando aos pedaços. A
mulher que eu amava e a quem eu queria me declarar
apaixonado, não podia ter morrido. Não, não podia!
Não, Allah, ela não morreu!
Entrei pelos escombros, procurando-a.
— Malika! Você está aí? — gritei bem alto para ela me
ouvir. — Malika!
Consegui chegar até o que sobrou do corredor, que
estava bloqueado com os destroços do teto que havia caído.
Notei uma abertura no alto, suficiente para passar uma mulher
magra ou uma criança, mas não um homem do meu tamanho.
— Malika! Sou eu, o Yusuf! — Frustrei-me por não
obter nenhuma resposta. — Há alguém aí?
Khara! Vou matar quem fez isso!
Eu não queria acreditar que aquele silêncio era sinal de
que ela estava sem vida ou inconsciente entre os escombros.
Não, isso não! Ela deve ter saído da sala antes da
explosão. Que seja isso, por misericórdia!
Agarrei-me àquela esperança e apressei-me para o
lado de fora do prédio. Olhei ao redor, odiando ver o meu povo
correndo desesperadamente em busca de abrigo. Entrei na
multidão, tentando identificar Malika no meio de tanta gente. O
meu olhar analisava com atenção as mulheres, mas também os
homens, à procura de algum suspeito dos atentados à bomba.
Eu havia acabado de decidir ir para os dormitórios,
quando os cabelos longos e castanhos de uma mulher que
corria à minha frente chamou a minha atenção. Ela se misturou
entre a multidão e a perdi de vista, mas os cabelos eram muito
parecidos com os de Malika e o meu coração falhou uma
batida. Apressei-me no meio do povo, mas ela corria mais
rápido do que todos os outros e era pequena, desviando-se
melhor das pessoas do que eu, mais alto e encorpado.
Quando o fluxo de gente diminuiu, pude, enfim, dar
vazão à minha força física superior e corri, vencendo
rapidamente a distância que nos separava.
É ela! Por Allah, é a minha Malika!
Ela estava viva e a emoção trouxe lágrimas aos meus
olhos.
— Malika!
Ela tropeçou, caiu no chão e se levantou no mesmo
instante, continuando a correr.
— Malika, pare! Sou eu, o Yusuf!
Ela olhou para trás e foi o tempo suficiente para eu ver
o terror que havia naquele olhar. Era o mesmo de quando
chegou em Tamrah e a raiva me fez blasfemar contra todos os
filhos da puta do mundo. Em uma contradição absurda de
sentimentos, o amor explodiu no meu peito ao estar frente a
frente com a mulher que eu amava, depois de tanto tempo
longe dela.
Tirei o capacete e Malika me reconheceu. Parou, o
rosto refletindo o espanto de me ver ali. Não era assim a
surpresa que pensei fazer para ela com a minha chegada, mas
para mim a emoção foi a mesma, se não maior.
Imaginei várias reações da parte dela, menos a que
realmente aconteceu. Jamais pensei que Malika fosse correr e
se atirar nos meus braços sem nenhum freio, sem limite algum
ou temor pelo contato físico com um homem.
Aquilo era o que eu mais queria há anos, o que mais
sonhei, o que mais desejei em silêncio. O prazer de abraçar
aquela mulher perfeita para mim junto ao peito e sentir o corpo
pequeno e delicado colado ao meu, não tinha comparação com
nada do que já vivi na minha vida.
Abracei-a com força, largando o capacete e tirando-a
do chão.
— Malika, Malika. — Fechei os olhos, extasiado com a
sensação e totalmente esquecido da confusão de pessoas
correndo ao nosso redor. — Por Allah, quase enlouqueço
quando vi a sua sala destruída e não a encontrei lá.
— Consegui sair do que restou do escritório.
Gelei quando ouvi aquilo.
— Você estava mesmo lá quando a bomba explodiu?
Malika respondeu com um aceno afirmativo de cabeça
e só de imaginar o perigo de vida que ela correu, o meu lado
militar entrou em ação. Peguei-a ao colo e levei para longe dos
prédios que formavam o complexo da casa de acolhimento. Até
que todos eles fossem vistoriados pelo esquadrão antibomba,
eram locais de alto risco. Alguém havia colocado três bombas
ali dentro e poderia haver uma quarta em algum lugar. Exceto
se houvesse um atirador do lado de fora para nos abater, a
área externa era a mais segura.
Quando chegamos ao pátio que ficava no centro do
complexo, coloquei-a no chão, mas não a larguei. Ninguém me
faria soltar Malika naquele momento. Com ela junto ao corpo,
analisei a situação ao nosso redor.
Não se viam mais os civis por ali, apenas os militares,
os médicos das ambulâncias estacionadas mais à frente e os
feridos que estavam sendo conduzidos para dentro dos
veículos.
Virei-me para Malika, verificando o estado físico dela.
Exceto o corpo sujo de poeira e de terra, além de alguns
arranhões pelo corpo, ela aparentava estar bem.
— Como se sente? Está ferida?
— Não tenho ferimentos. Estou bem.
Apesar do que disse, não acreditei. Malika podia não
estar ferida, mas certamente não estava bem. Ela tremia,
mesmo agarrada em mim.
— Fique calma, já passou.
Ela fez um gesto de negação com a cabeça, olhando
em volta de onde estávamos, como se procurasse por alguém.
Pensei que fosse por Assad, mas me surpreendi com o que
disse depois.
— Tenho a impressão de ter visto um dos homens do
meu tio aqui.
Enrijeci no instante seguinte.
— Quem?
Malika ergueu os olhos para mim e vi o medo neles.
— O que nos prendeu em Qasara e depois levou para
Thueban.
Instintivamente, estreitei o braço ao redor dela, a minha
raiva crescendo muito mais ao saber daquilo. Se era alguém de
Thueban, podia muito bem ser o homem que eu queria pegar
por ter torturado Malika.
— Quem? — insisti na mesma pergunta.
Eu só precisava de um nome. Malika nunca havia
citado o nome de nenhum homem que tenha participado das
sessões de tortura, muito menos falou comigo a respeito.
Ela demorou tanto a responder que fui obrigado a
forçar uma resposta.
— Quem, Malika? É importante. Este homem é
provavelmente o responsável pelo que aconteceu aqui hoje.
— Sei disso e me sinto culpada por ter trazido este tipo
de situação para vocês.
Khara! Malika tinha que parar de se sentir culpada pela
maldade dos outros!
— Você não é a culpada de nada! De absolutamente
nada do que aconteceu aqui hoje — afirmei, olhando-a muito
diretamente. — Ao contrário. Você tem se dedicado de corpo e
alma ao seu trabalho humanitário, ajudando o meu povo sem
pedir nada em troca. Todos que convivem com você sabem da
sua abnegação com a ajuda que presta aos outros. Que culpa
tem da maldade de homens como Suleiman, de Mubarak e dos
seguidores deles? Nenhuma! Absolutamente nenhuma.
Malika me abraçou pela cintura e fechou os olhos, o
rosto contraído de tensão. Estreitei-a nos braços, amando a
sensação de tê-la daquela maneira junto a mim. Virei-me de
costas para a maioria das pessoas que estavam no pátio
naquele momento, protegendo-a de olhares indiscretos. Apesar
de aquela ser uma situação de risco de vida, estávamos
quebrando regras ao demonstrar intimidade em público.
— Lembre-se de que está protegida aqui em Tamrah,
que está protegida comigo. Mas preciso do nome deste homem
para proteger o meu povo também de novos ataques à bomba.
Já vimos que são capazes de tudo.
— Hisham Al Amari — ela pronunciou o nome com o
rosto pálido, como se só em falar já se sentisse mal. — Ele é o
supervisor prisional de Thueban.
De Thueban? Só pode ser ele!
Enchi o peito de ar lentamente, determinado a
descobrir tudo sobre o homem e caçá-lo até no inferno.
Dei um beijo no alto da cabeça dela.
— Fique tranquila. Vamos pegá-lo.
Malika se afastou de mim, voltando a manter o
distanciamento exigido entre um homem e uma mulher em
público. O olhar que cruzou com o meu estava muito firme.
— Apesar do homem que vi ser muito parecido com
ele, não tenho total certeza se era mesmo, Yusuf.
— Não importa. É uma pista e precisamos de todas
que encontrarmos para procurar os culpados.
Ela assentiu e me orgulhei da maneira como inspirou
fundo e ergueu o queixo com coragem.
— Eu o vi assim que consegui escapar da explosão no
escritório. Estava um caos aqui fora, mas ele chamou a minha
atenção assim que saí. O homem estava de lado, olhando o
prédio destruído. — Ela apontou para o que havia restado do
escritório. — Ele não me viu, concentrado nos destroços.
Usava uma roupa igual à dos refugiados, suja e gasta, mas o
porte físico era totalmente diferente dos corpos magros e
esquálidos da grande maioria deles. Estava sozinho, sem
nenhum outro por perto. Se há mais deles aqui em Tamrah, não
sei. Mas aquele era muito parecido com o Hisham. Se não
delirei, era ele.
Eu entendia a dúvida que ela estava sentindo com
relação à própria capacidade de discernimento quando o
assunto envolvia os traumas que trouxe da prisão, mas eu não
tinha dúvida alguma. A minha intuição dizia que era mesmo ele.
— Ele a viu?
— Até o momento em que me virei para fugir, não.
Depois corri no meio da multidão até você me encontrar.
Olhei para as ruínas do escritório, onde provavelmente
Hisham se encontrava quando cheguei lá à procura de Malika.
Se o homem estava tão interessado no escritório, era porque
sabia que ela trabalhava ali e estava igualmente à procura dela.
Cerrei os punhos ao imaginar que estive tão perto dele
sem saber.
— Você sabe se o Assad está bem? — ela me
perguntou.
— Ainda não sei, mas vou procurar saber.
Antes que pudesse pegar o celular no bolso, o som de
uma esquadrilha de helicópteros de guerra sobrevoando o local
desviou a minha atenção, trazendo os militares que
precisávamos. Entre eles identifiquei o de Saqr com o brasão
da família real na lateral.
— É Saqr com os reforços. Vou providenciar um dos
helicópteros para levar você até o hospital do doutor Fadel. A
doutora Bushra cuidará de você e pedirei à Layla que também
esteja lá.
Ela me olhou com preocupação.
— Sei que este é o seu trabalho, mas tenha cuidado.
Sorri, sentindo-me feliz demais com o nosso
relacionamento para não ter duas vezes mais cuidado com os
riscos.
— Terei, nem se preocupe. Agora vamos.
Capítulo 40
Malika
Fui para o hospital apenas por insistência de Yusuf. Eu
me sentia bem, apesar do corpo dolorido nas partes onde fui
atingida pelos destroços da parede e do teto que ruíram na
hora da explosão. Fiz todos os exames que pediram, mas
suspirei de alívio quando recebi alta.
Previdente, Layla levou uma de minhas abayas para o
hospital, além do hijab, das sandálias e acessórios. Tomei um
banho lá mesmo e depois voltamos para Taj. Ao entrar nos
meus aposentos da Ala do Falcão, encontrei Kismet e Farah
conversando na sala, ambas com a expressão muito séria.
Levantaram-se assim que me viram.
— Malika! — Kismet veio rápido me abraçar,
preocupada. — Que Allah seja louvado por ter protegido você!
— Estou bem, fique calma.
Permanecemos abraçadas em silêncio e toquei na
barriga dela, pensando na minha sobrinha Fhatima.
— E vocês duas, estão bem?
Kismet se afastou, colocando logo a mão sobre a
barriga.
— Estamos bem. Apenas estou preocupada com esse
atentado em Azra. Saqr estava comigo quando o Yusuf ligou e
saiu daqui com cara de quem ia matar alguém. Só me
tranquilizei mesmo quando ele disse que o irmão estava lá
resolvendo tudo. Eu não fazia a mínima ideia de que o Yusuf já
estava em Tamrah.
Ela segurou a minha mão e me levou para o sofá que
partilhava com Farah. A poderosa matriarca da família já se
levantava para me abraçar também.
— Minha querida, como ficamos preocupadas com
você! — ela disse com aquele olhar materno que me fazia
sentir realmente como uma filha. — Deve ter sido horrível o que
você passou.
— Foi assustador! Nunca pensei que veria aquele
cenário de guerra na minha vida.
— Estou tão angustiada pela falta de notícias, ainda
mais com os meus filhos lá. — Farah suspirou pesadamente.
— Sei que Saqr e Yusuf são militares experientes e confio na
competência deles, mas o meu coração de mãe não quer saber
disso.
— Nem o meu de esposa. — Kismet passou a mão no
rosto, aflita. — Queria que Saqr não tivesse ido, mas entendo
que tinha de ir. Sendo quem é, ele jamais ficaria aqui em Taj
esperando notícias.
Segurei a mão dela e de Farah.
— Fiquem tranquilas. Quando saí de lá tudo já estava
sob controle. Não havia mais explosões e o atendimento
médico tinha chegado. Não sei se houve mortes, mas vi feridos
sendo levados para as ambulâncias, que saíam de lá para o
hospital local.
— Estou revoltada com o que aconteceu! Nunca
tivemos isso aqui em Tamrah. — O tom de voz de Farah estava
enraivecido e a testa franzida confirmava as emoções que a
dominavam. — Tenho certeza de que este atentado é obra de
Sadiz. Por favor, entendam que não estou culpando nenhuma
de vocês, apenas analisando friamente o que aconteceu.
Aquele primo odioso de vocês duas está por trás disso.
Troquei um olhar triste com Kismet. Infelizmente,
sabíamos que Farah tinha razão.
— Nós também não temos dúvidas, Farah. Acho que
reconheci um dos militares de Sadiz no meio dos refugiados
que estavam na casa de acolhimento.
As duas arregalaram os olhos, surpreendidas com o
que eu disse.
— Tem certeza, Malika?
— Não tenho total certeza, mas acho que sim, minha
irmã.
— Você falou sobre esse homem com o Yusuf? — Foi
a única preocupação de Farah.
— Sim, falei. Ele está sabendo.
Farah cerrou o punho e comemorou com um gesto bem
masculino, como se estivesse socando alguém. Foi engraçado
e acabamos rindo, Kismet e eu.
— Os meus filhos vão dar conta dele — Farah garantiu
com um sorriso confiante.
Ela se levantou com a fisionomia bem decidida.
— Vou deixar vocês duas agora. Preciso conversar
com Rashid.
Também nos levantamos, dando um abraço triplo no
meio da sala.
— Allah vai nos ajudar a lidar bem com esta situação.
Fiquem tranquilas aqui. — Olhou para mim. — Procure
descansar um pouco. Acho que está precisando.
— Farei isso.
Quando ela saiu e fiquei sozinha com Kismet, olhamos
uma para a outra com desolação.
— Que horror saber que a nossa família está por trás
disso. Uma vergonha! — ela disse, voltando a se sentar.
— Onde estão Zayn e Náder?
— Deixei-as com a babá. Layla foi ao hospital esperar
por você e eu estava agitada demais para ficar com eles dois.
Devem estar brincando no jardim agora.
Segurei-a pela mão e fiz com que se levantasse.
— Vamos para lá. Ficar com Zayn e Náder vai nos
fazer bem. Estou ansiosa demais para conseguir descansar
tranquilamente em uma cama enquanto o Yusuf está no meio
de uma bomba-relógio.
Kismet parou de andar quando falei aquilo.
— Mas você disse que estava tudo sob controle lá.
— E estava quando saí, mas eles ainda precisavam
fazer uma varredura completa no centro de acolhimento para
ter certeza de não ter ficado nenhuma outra bomba escondida
ou sem explodir.
— Não pensei nisso, mas você tem razão.
— Vamos, precisamos nos distrair ou ficaremos aqui
dentro pensando só em desgraça. Allah vai proteger o seu
marido e o meu noivo.
Espantei-me comigo mesma por não dizer “o seu
marido e o Yusuf”. Aquela era a primeira vez que eu me referia
a ele como sendo o meu noivo e gostei da sensação.
Sorri discretamente, sentindo-me corar ao me lembrar
de como me atirei nos braços dele quando o vi em Azra. Que
Allah me perdoasse pelo que senti ao tocar em Yusuf, mas foi
tão bom. Se antes ele já me fazia sentir segura e protegida na
presença dele, agora eu sabia que a sensação era muito mais
forte quando estava entre os seus braços.
— Mamã! Tia Lika! — Zayn gritou quando nos viu,
correndo feliz em nossa direção.
Ele estava com dois anos e era uma força da natureza
em matéria de vivacidade. Mesmo tão pequenino, já se notava
que a personalidade era muito igual à do pai.
Agachei-me para o abraçar e ele não hesitou em se
atirar nos meus braços. Coloquei-o ao colo, recebendo um
beijo no rosto. Náder veio atrás do irmão com seus passinhos
mais curtos e foi parar nos braços de Kismet.
Quando ouvi o som alegre do riso da minha irmã, tive a
certeza de ter tomado a decisão certa ao ir para o jardim. Agora
era só esperar que os homens voltassem para Taj.

Aquilo só aconteceu no final do dia. Apesar de termos


recebido notícias deles através de Farah, que trouxe recados
dos dois para nós, Yusuf e Saqr só voltaram para casa depois
das dez horas da noite. Kismet e eu jantamos juntas, depois
colocamos as crianças para dormir e ficamos no quarto dela,
assistindo ao noticiário da televisão.
O atentado esteve na manchete de todos os jornais,
mas não confirmaram se houve mortos, apenas uma centena
de feridos. Mostrou também a reação de vários líderes
internacionais e também da Coligação Árabe com o que havia
acontecido em Tamrah, todos consternados e condenando atos
terroristas iguais àquele. Da parte de Sadiz, foi divulgado um
comunicado oficial de Mubarak lamentando o ocorrido e
garantindo que puniria os culpados, caso houvesse provas de
serem cidadãos do país.
— Falso e dissimulado! Até me sinto mal em ouvir isso
— Kismet disse com desprezo.
— Dói imaginar o quanto o povo de Sadiz vai sofrer nas
mãos dele. Será pior governante do que tio Suleiman, caso ele
venha a falecer.
A porta da suíte se abriu e olhamos uma para a outra.
Antes que pudéssemos falar alguma coisa, Saqr entrou
exalando autoridade. O rosto vinha carregado, mas a
expressão suavizou ao ver a minha irmã, que se levantou do
sofá e correu para os braços dele.
Ambos se esqueceram completamente de mim ao se
abraçarem com força.
— Estou sujo — ele disse.
— Não me importo! — Kismet respondeu, acariciando-
o no rosto.
Testemunhar o amor deles era enternecedor, mas
também fez com que eu me sentisse uma presença a mais na
suíte. Eles precisavam de privacidade e me levantei,
pigarreando.
— Já vou, Kismet.
Ambos olharam para mim e só então se afastaram.
Saqr me cumprimentou.
— Agradeço muito por ter feito companhia à Kismet.
— Passamos o dia juntas desde que cheguei. Yusuf
veio com você?
— Veio e foi direto tomar um banho. Acho que ele vai
tentar falar com você depois, apesar da hora — ele me
informou.
— Vou aguardar. Shukran.
Dei um beijo em Kismet e saí, indo para o meu quarto,
ansiosa para que Yusuf realmente me procurasse antes de
dormir, como Saqr disse que faria. Eu só esperava que o
cansaço dele não fosse maior do que a vontade de falar
comigo.
Aguardei ansiosamente com o celular ao meu lado,
mas o tempo foi passando e nada de Yusuf. Tentei não ficar
triste, mas não consegui. Acabei por desistir de esperar, indo
trocar de roupa para dormir.
Peguei o celular e me levantei no momento exato em
que o aparelho tocou. Com o coração aos pulos, atendi o
Yusuf.
— Pensei que não ia encontrar você acordada. — O
timbre grave da voz dele acelerou ainda mais os meus
batimentos cardíacos. — Majdan ficou sabendo do que
aconteceu pelo noticiário e me ligou agora. Sei que já é tarde,
mas será que podemos conversar pessoalmente? Não vou
tomar muito do seu tempo.
— Sim, claro que sim. Onde você quer marcar?
— Pode ser aí? — ele me pegou desprevenida com
aquele pedido.
Apesar de ocupar um apartamento grande na Ala do
Falcão com Layla, com direito a uma varanda e um jardim
pequeno e charmoso, eu sabia que não era próprio receber um
homem estando sozinha nos meus aposentos, mesmo sendo o
meu noivo. Layla já havia se recolhido para dormir e eu não ia
acordá-la àquela hora da noite.
— Não sei se seria adequado, ainda mais a esta hora.
— Comentei com Saqr e ele disse que confiava em
mim. Resta saber se você também confia, Malika.
Eu confiava totalmente.
— Confio.
— Então vamos deixar as convenções um pouco de
lado. Hoje você escapou por um triz de um atentado e não
quero dormir sem vê-la. Allah será nossa testemunha.
— Venha, Yusuf. Estou aguardando.
Capítulo 41
Malika
Yusuf não demorou muito a chegar. Usava uma túnica
castanha de corte moderno que ia até os joelhos e calças da
mesma cor. Estava totalmente diferente do militar fardado e
equipado que esteve aquela tarde comigo em Azra. Os cabelos
escuros aparentavam estar ainda ligeiramente úmidos do
banho e o aroma do perfume com Oud encheu os meus
pulmões quando ele se aproximou.
Ele parou à minha frente, alto e imponente, sua
masculinidade me envolvendo de uma maneira diferente das
outras vezes em que estivemos sozinhos. Eu tinha consciência
de que o abraço daquele dia havia mudado muita coisa dentro
de mim, fazendo com que o visse de uma maneira diferente. Se
aquela mudança havia acontecido comigo, provavelmente
também havia acontecido com ele e eu estava ansiosa por
aquela conversa.
Era incrível como um único abraço podia mudar tudo
entre um casal, entre nós.
— Você está bem? — perguntei, preocupada com ele,
apesar de não ver nenhum ferimento aparente.
— Estou bem, e você? — A voz dele soava rouca,
grave, e ressoou no silêncio da noite com uma intensidade que
achei muito diferente do normal.
— Estou bem — sussurrei, meio sem fôlego.
Fiquei sem saber como agir e o olhei em expectativa.
Ele estava com a determinação estampada no rosto e não
duvidei que soubesse muito bem como agir.
— É melhor nos sentarmos — sugeriu.
— Sim, claro — concordei, sentindo-me toda
atrapalhada.
Indiquei o sofá, onde nos sentamos lado a lado.
Depois, cruzei as mãos no colo para disfarçar o nervosismo e
aguardei.
— Vim para conversar sobre nós dois — comunicou
com tanta seriedade que fiquei inquieta.
Estaria insatisfeito com alguma coisa?
— Sobre nós dois? — repeti, apertando uma mão na
outra.
— Sim, Malika. Precisamos conversar sobre o nosso
noivado.
Allah, ele não quer mais!
— Você quer... acabar, é isso? — hesitei na pergunta e
inspirei fundo, mas abordei diretamente a questão, preparando-
me para o pior.
Tudo indicava que o abraço que trocamos em Azra
também havia mudado tudo para ele, mas no sentido contrário
da minha mudança.
— Eu não quero acabar com o nosso noivado. É o
oposto disso e só espero que você queira o mesmo que eu.
— O oposto? — Fiquei em dúvida se estava
entendendo bem.
— Quero que o nosso noivado deixe de ser uma farsa
e se torne algo verdadeiro entre nós dois. — Ele foi direto ao
ponto, sem fazer rodeios de espécie alguma. O olhar era firme
e refletia determinação, intensidade, certeza.
A minha respiração foi ficando ofegante à medida que
sentia a felicidade tomar conta do meu coração. Mesmo com
aquele sentimento inundando o meu peito, eu também havia
passado anos achando que não tinha mais direito àquela
felicidade, ao amor, e precisava ter certeza antes de dar a coisa
como certa.
— Verdadeiro como, Yusuf?
— Os meus sentimentos mudaram há muito tempo,
Malika. Estou apaixonado por você.
Oh, Allah!
Perdi o fôlego, sem acreditar no que estava ouvindo.
Ele está apaixonado por mim. Por mim!
— Apaixonado?
— Sim, completamente apaixonado por você há tanto
tempo que parece uma eternidade.
Fiquei de queixo caído e cobri a boca com as mãos
para esconder o meu espanto quando ele disse “há tanto
tempo que parece uma eternidade”.
— Mas... mas você vivia repetindo que me via como
uma amiga, afastou-se tanto antes de viajar para Nova York.
— Menti. Não a vejo como uma amiga, mas como uma
mulher que me atrai muito — assumiu o que sentia com um
olhar quente que fez um espasmo estranho percorrer o meu
corpo, surpreendendo-me a ponto de ruborizar, envergonhada.
— Menti para não assustar você, para que não se negasse a
ser minha noiva, para não quebrar a sua confiança em mim,
para não perder você. Afastei-me depois, mas foi para não
sofrer mais de amor não correspondido.
Amor!
Aquelas eram as palavras mais lindas que jamais
pensei que fosse ouvir de um homem. Dabir nunca se declarou
daquela maneira, apenas manifestou o desejo de se casar
comigo. Acho que era apenas eu que estava apaixonada por
ele desde menina, mas o mesmo não aconteceu com ele.
Agora, o homem forte e de caráter inquestionável que me
conquistou aos poucos desde que vim morar em Taj e a quem
eu amava em segredo, estava se declarando para mim como
sempre sonhei. Achei que nunca ouviria aquelas palavras.
Achei que o amor nunca seria para mim, mas a vontade de
Allah era outra.
Abençoado seja!
— Yusuf, eu... eu também sinto o mesmo. Amo você há
muito tempo — confessei, assustando-me quando ele caiu
pesadamente contra o espaldar do sofá e deitou a cabeça
sobre o encosto, cobrindo o rosto com as mãos.
Fiquei tão surpreendida com aquela atitude que
demorei a reagir.
— Yusuf, você está bem?
Ele não me respondeu de imediato, permanecendo na
mesma posição.
— Yusuf? — insisti com um sussurro.
— Pensei que você fosse me rejeitar. — A voz dele
saiu abafada pelas mãos, mais enrouquecida do que o normal,
embargada. — Apesar de ter desejado muito ouvir isso, agora
sei que não estava preparado.
Respirei aliviada, a emoção umedecendo os meus
olhos.
— Também nunca pensei que ouviria você me dizendo
isso. Sempre o amei em silêncio.
Yusuf esfregou as mãos no rosto e baixou-as depois,
deixando-me vê-lo. Arquejei diante da força do amor que
brilhava nos olhos dele. Olhos ainda umedecidos de lágrimas e
que me deixaram pasma. Ver um homem forte e resistente
como o Yusuf chorar era tão inacreditável quanto assustador.
— Amo você de uma maneira tão intensa que nem sei
explicar, Malika. É um amor que dói quando estou longe de
você e que me preenche por completo quando estamos juntos.
Jamais imaginei na minha vida que o amor fosse assim ou que
um dia amaria alguém dessa maneira, mas aconteceu e já não
sei mais viver sem ele. Sem você.
Aquele espasmo desconhecido voltou a percorrer o
meu corpo, causando uma sensação estranha, mas muito
prazerosa, que me surpreendeu mais uma vez. Trocamos um
olhar apaixonado que só intensificou o que eu sentia.
— Permita que eu me aproxime de você, Malika — ele
disse gravemente, estendendo para mim as duas mãos com as
palmas abertas. — Segure-as.
Não estávamos mais no meio de uma multidão em
pânico sob o efeito do instinto de sobrevivência, mas sozinhos
na intimidade dos meus aposentos, em uma sala iluminada
apenas por um abajur de chão que jogava uma luz difusa no
ambiente.
Uma insegurança inesperada me fez hesitar.
— Permita-me — ele voltou a pedir.
Engoli em seco e aproximei as minhas mãos das dele,
colocando palma sobre palma. Yusuf as envolveu, nosso calor
se fundindo, o toque de pele contra pele me fazendo fechar os
olhos sem nem perceber. Foi uma reação tão natural que nem
notei que estava me entregando ao prazer. De olhos fechados,
senti quando ele roçou os polegares nas minhas palmas,
acariciou o dorso das minhas mãos, entrelaçou os nossos
dedos, unindo-nos.
— Gosta? Sente-se bem?
Entreabri os olhos.
— Sim, gosto.
Ele se aproximou, sentando-se mais perto de mim.
Mesmo sentados, Yusuf ficava bem mais alto do que eu e
inclinei a cabeça para o olhar.
Ele levou as minhas mãos para o próprio rosto,
cobrindo-as com as dele.
— Toque-me.
Passei os dedos pelas sobrancelhas grossas, pela
testa larga, cruzando o meu olhar com o dele, que brilhava
intensamente. Depois desci pelo rosto, acariciando a barba
cheia, mas bem desenhada, e descobrindo o quanto era macia.
Parei antes de tocar nos lábios.
Yusuf soltou as minhas mãos e levou as dele para o
meu rosto. Ao primeiro toque na minha pele, inspirei fundo com
a sensação. Ele repetiu os mesmos gestos que fiz no rosto
dele, mas não parou quando chegou aos meus lábios. Senti o
polegar roçando no inferior, contornando-o lentamente, os
olhos castanhos acompanhando o movimento das mãos.
Quando ele fez o mesmo com o meu lábio superior, contive a
vontade de os molhar com a língua.
— Faça o mesmo em mim, Malika — pediu
roucamente.
Ele estava tão perto que eu sentia a respiração quente
tocando as minhas faces e comecei a ofegar com aquela
intimidade. Eu não me sentia assustada. Ao contrário, estava
gostando da proximidade dele, de descobrir o prazer de ter
Yusuf tão perto de mim.
Toquei o lábio inferior com o polegar. Estava levemente
úmido e era macio. A minha coragem foi aumentando à medida
que contornava o superior também. Foi naquele momento que
Yusuf me surpreendeu, beijando o meu dedo.
Olhei-o, dando com o olhar profundo dele.
Ainda segurando o meu rosto, aproximou-se de mim,
beijando a minha testa. Os lábios que toquei deslizaram por ela
de um jeito que me fez suspirar, a barba roçando a minha pele.
Fechei os olhos à medida que ele beijava o meu rosto por
inteiro, até chegar próximo aos lábios.
O meu coração acelerou ainda mais, aquela sensação
prazerosa se intensificando, enquanto eu sentia o primeiro
toque dos lábios dele nos meus. Yusuf beijou o de baixo,
depois o de cima, repetindo o gesto cada vez com mais
intimidade.
— Faça o mesmo comigo — murmurou nos meus
lábios. — Me beije.
Beijei. Ele também. Aos poucos nossos lábios foram se
umedecendo e a sensação era maravilhosa como nunca
imaginei. Yusuf me segurou pela nuca, a outra mão erguendo o
meu queixo. Só entendi o que ele queria fazer quando a minha
cabeça ficou na posição ideal para a altura dele. Foi quando
aprofundou o beijo de uma maneira tão inesperadamente
íntima que soltei um gemido de surpresa, mas também de
prazer.
A língua quente tentou entrar pelos meus lábios e
invadir a minha boca, e fiquei sem reação.
— Abra, habibti101 — ele pediu em uma voz
irreconhecível, parecendo muito mais um grunhido rouco.
Abri e me senti degustada como se fosse uma tâmara.
Aquele grunhido rouco dele se repetiu em forma de gemido ao
sorver o meu sabor como se fosse um homem sedento de água
no meio do deserto. As minhas entranhas se contraíram e senti
prazeres desconhecidos. Aquela sensação tão estranhamente
agradável que percorria o meu corpo se intensificou, deixando-
me totalmente entregue.
Beijei-o da mesma maneira como ele fazia comigo.
Precisando de um apoio, segurei-o pelos braços e senti
a carne dura dos músculos contraídos. Aquilo me deixou mais
extasiada do que já estava e apalpei os braços fortes, sentindo-
me deliciada, feminina, protegida. Eram muitas novidades de
uma única vez, mas todas boas, muito boas.
A boca de Yusuf tinha um sabor viciante e fui me
entregando, me entregando cada vez mais. Nossas respirações
ofegantes se fundiam como se fôssemos um só.
Senti o braço musculoso rodear a minha cintura e fui
atraída para mais perto dele, a ponto dos meus seios
encostarem no peito largo. A intimidade foi gritante para mim e
foi naquele momento que vacilei, tentando recuar e me afastar.
— Yusuf!
Ele sentiu e me soltou no instante seguinte,
interrompendo o beijo.
— Perdoe-me, Malika — desculpou-se com rouquidão.
Olhei-o e perdi o fôlego diante do que vi nos olhos dele.
Era desejo, paixão, fogo, arrebatamento. Tudo com uma
intensidade tão grande que me emudeceu, paralisou, chocou.
Bismillah!102 Como vou conseguir lidar com isso?
Yusuf desviou o olhar e se levantou, afastando-se
alguns metros do sofá onde estávamos. Ficou de costas para
mim no canto mais escuro da sala, mas notei a tensão dos
ombros e como passou as mãos várias vezes pelos cabelos e
rosto.
Fiquei sem saber o que fazer, mas senti que ele não
estava bem.
— Yusuf? — chamei-o, levantando-me do sofá.
Ele não se virou, mas fez um gesto com a mão para
que eu aguardasse.
— Fique onde está, por favor. É só um instante.
Voltei a me sentar, observando-o. Ele permaneceu na
mesma posição por mais do que um instante, tão quieto que
desconfiei que estivesse orando à Allah. Sem outra alternativa
além de esperar, fiquei admirando as costas largas, a postura
firme, a masculinidade do corpo alto, pensando no quanto o
amava.
Quando Yusuf se virou e voltou a se sentar no sofá ao
meu lado, manteve a distância que o nosso costume exigia. O
olhar ainda estava intenso, onde eu podia ver o sentimento que
nutria por mim, mas todas as outras emoções haviam
desaparecido.
— Perdoe-me por ter ido tão longe. Não quis
desrespeitar você, apenas perdi o controle e ultrapassei os
limites. Dou a minha palavra que não vai se repetir.
— Eu também ultrapassei os limites. Podia ter parado
você antes, mas não consegui — admiti a minha parcela de
culpa. — Não acho justo que assuma sozinho algo que fizemos
juntos.
Ele meneou a cabeça e sorriu, olhando-me com
admiração.
— Esta é a minha Malika. Sempre defendendo os
outros sem pensar em si mesma.
— Eu sou assim? — comecei a rir também. — Parece
alguém que vai se meter em apuros a vida inteira.
— Eu protejo e cuido de você. — O timbre da voz dele
soou muito sério e a emoção que brilhava nos olhos que me
envolveram foi igual.
Trocamos um olhar apaixonado e me senti feliz como
há muito tempo não me sentia. Era uma felicidade diferente,
única, especial.
— Vou deixar você dormir agora, mas amanhã quero
vê-la de novo. Seja no jardim ou aqui, quero estar com você.
Se fosse no jardim, não teríamos nenhuma
oportunidade de contato físico. Contudo, se fosse ali nos meus
aposentos, sem dúvida que teríamos e o meu coração voltou a
disparar no peito.
Yusuf se levantou e estendeu a mão para mim.
Coloquei a minha na dele e recebi um beijo no dorso, os lábios
que eu havia beijado aquecendo a minha pele.
— Tesbahi al khair103, Malika.
— U inta bkhair104, Yusuf.
Quando ele foi embora, voltei para o meu quarto me
sentindo nas nuvens.
Capítulo 42
Malika
Prisão de Thueban — Sadiz

O meu coração pulsava no peito quando tiraram o


capuz da minha cabeça e pulsou ainda mais quando notei onde
estava. Fui imediatamente levada para o meio de dois ferros
presos ao chão e que iam até o teto da sala. Uma das
mulheres da guarda ficou atrás de mim e a outra à minha
frente.
— Desça a abaya até a cintura! — ordenou com voz
dura.
Pensei em negar, mas aquilo só pioraria a minha
situação. Com as mãos tremendo, fiz o que ela mandou,
ficando só de sutiã da cintura para cima.
— O sutiã também.
— Mas...
— Se não tirar, tiro eu. Será pior.
Baixei a vista e tirei o sutiã, incapaz de olhar para
qualquer uma delas estando tão exposta, mas me consolei por
pelo menos estar seminua na presença de mulheres.
A minha trança foi jogada sobre um dos ombros, caindo
nos meus seios, e tive as mãos algemadas logo depois, uma
em cada um dos ferros. Fiquei com os braços abertos, tendo
apenas uma parede cheia de instrumentos de tortura à minha
frente. Eu me tremia toda e agarrei com força a corrente das
algemas.
Uma porta foi aberta e fechada às minhas costas e
passos pesados ressoaram no piso tosco.
Para o meu completo horror, um homem alto e
truculento parou bem à minha frente, um brilho diabólico no
olhar e um risinho caçoísta nos lábios.
Hisham Al Amari!
Nem que eu quisesse conseguiria esconder o choque,
a vergonha e o nojo que senti ao estar seminua diante do pior
algoz que um ser humano podia ter. Ele desceu lentamente o
olhar até os meus seios, aumentando a minha ânsia de vômito.
— Podem começar.
Ouvi o estalido do chicote antes mesmo que a tira
única cortasse a pele das minhas costas. Aquela era a primeira
das cinco chibatas que eu teria de suportar naquele mês por
decreto real, mas nada me preparou para a dor que senti. Foi
tanta, mas tanta, que perdi a força nas pernas e desabei. Só
não caí de joelhos no chão porque estava com as mãos
algemadas, mas os meus joelhos se dobraram e fiquei
pendurada pelos braços, que suportaram todo o peso do meu
corpo.
Gritei de dor. Parecia que uma faca havia acabado de
cortar a pele das minhas costas de cima a baixo, e o mundo
girou ao meu redor. Não tive tempo de me recuperar da
primeira chicotada e já estava recebendo a segunda, depois a
terceira e tudo escureceu para mim.
Desmaiei e só voltei à consciência quando jogaram um
balde de água no meu rosto. Tossi em busca de ar quando a
água entrou pelo meu nariz, sufocando-me. Ainda nauseada e
muito assustada, abri os olhos e vi que Hisham continuava
calmamente parado à minha frente, com os braços cruzados no
peito e o olhar cruel acompanhando os esforços das duas
mulheres para me manterem consciente.
Quando elas se deram por satisfeitas, voltaram à
posição em que estavam e ouvi novamente o estalido do
chicote, um som que eu provavelmente nunca mais esqueceria
na minha vida.
A mulher devia ter uma pontaria certeira, porque atingia
sempre no mesmo lugar, dilacerando ainda mais a ferida já
aberta.
Aguentei como pude a quarta chicotada, engolindo a
náusea. Quando recebi a quinta, foi chorando de dor e de alívio
por ter acabado a sessão de tortura. Pelo menos foi o que
pensei, até Hisham se aproximar de mim e colocar as duas
mãos nos meus seios.
Fiquei tão horrorizada com aquele gesto que a dor nas
costas passou para um segundo plano. Encontrei forças em
Allah para recuar, afastando-me dele. No entanto, as algemas
não permitiam que eu fosse muito longe e o diabo à minha
frente sabia daquilo.
— Não me toque, seu animal!
Quis gritar aquelas palavras, mas a minha voz saiu em
um sussurro rouco. Hisham apertou os meus seios com mais
força, fazendo-me gemer de dor.
— Peço licença por interromper, senhor, mas gostaria
apenas de lembrar das ordens — uma das mulheres disse em
tom de respeito.
— Sim, claro. As ordens. — Havia ironia e desprezo na
voz dele, mas soltou os meus seios, afastando-se. — Levem-
na!
Elas me soltaram, subiram a minha abaya sobre os
seios, colocaram o capuz na minha cabeça e praticamente me
arrastaram de volta à cela. O tecido da abaya roçando as
feridas nas costas era insuportavelmente doloroso.
— Você se arriscou muito — uma delas cochichou para
a outra.
— Ele ainda vai nos meter em confusão.
Elas não pareciam se importar que eu ouvisse ou então
achavam que estava tão mal que não entenderia nada, mas eu
sabia que se referiam às ordens para ninguém me tocar. E ele
havia tocado! No entanto, eu desconfiava que Hisham se sentia
o Todo-Poderoso de Thueban e não estava muito preocupado
em desobedecer à uma ordem real. Na primeira oportunidade
que tivesse, ele seria capaz de fazer muito pior comigo.
Entramos na cela e caí na minha cama quase
desfalecida.
— Vai receber remédios na próxima refeição.
Dito aquilo, saíram, deixando-me sozinha.
Nunca me senti tão suja quanto naquele momento,
depois do toque das mãos do monstro que comandava
Thueban. Assim que consegui me levantar sem desmaiar de
dor, fui para o banheiro tomar um banho. Quando a água
escorreu pelas feridas nas costas, a dor foi tão excruciante que
desisti. Consegui lavar pelo menos os seios, esfregando-os
várias vezes para tirar qualquer vestígio daquele homem da
minha pele.
Chorando, voltei para a cama e me deitei de bruços,
pensando como é que conseguiria resistir a mais cinquenta e
cinco chicotadas.
Eu não vou sobreviver!

— Princesa, acorde!
Abri os olhos na escuridão do meu quarto, ainda
sentindo a dor nas costas me paralisar.
— Foi só um sonho ruim. Já passou. — Reconheci a
voz de Layla.
Virei o rosto e a vi sentada na beirada da minha cama.
— Não consigo me mexer — sussurrei, sentindo-me
quebrada com as lembranças tão vívidas do pesadelo.
— Consegue, sim. Só está tensa — tranquilizou-me
com a voz suave, mas firme. — Deite-se de bruços, princesa.
Vou fazer uma massagem e vai ver como se sentirá melhor
depois.
Ela me ajudou a mudar de posição e se levantou,
andando pelo quarto. Uma melodia agradável soou e o aroma
do óleo de Oud que ela costumava usar nas massagens se
espalhou pelo ambiente. Fechei os olhos quando Layla
começou a massagear as minhas costas com experiência,
tocando nos pontos certos de tensão que se acumulavam entre
as cicatrizes até me fazer relaxar.
— Quer conversar sobre o pesadelo? Às vezes faz
muito bem à alma.
Ela sempre me perguntava a mesma coisa, mas eu
jamais partilharia os horrores que sofri.
— Não, não quero.
— Sugiro então que esqueça e relaxe. Ontem foi um
dia de muita tensão e é normal que algumas lembranças
venham à tona em forma de pesadelo. O que importa é que
tudo isso é passado e a princesa agora está em segurança.
Relaxe.
Fiz o que ela disse e adormeci sem nem perceber, só
voltando a abrir os olhos quando o amanhecer já invadia o
quarto. Layla dormia na cama reserva ao lado da minha e olhei
com gratidão para a mulher que me ajudava durante as noites
em que os pesadelos voltavam.
Agarrada ao travesseiro, deitei-me em posição fetal e
fiquei olhando a luz do dia à medida que ela afastava a
escuridão.
Consegui sobreviver!
Capítulo 43
Malika
Ajeitei o hijab branco nos cabelos e fui para o vestíbulo
dos cômodos que eu ocupava na Ala do Falcão, onde Layla me
esperava para a caminhada matinal. Para minha surpresa —
uma agradável surpresa —, ela não estava sozinha, mas com o
Yusuf. Ambos conversavam tão concentrados que quase não
notaram a minha aproximação.
Ele foi o primeiro a me ver, a expressão preocupada
cedendo lugar a um sorriso e o meu coração disparou no peito,
feliz.
— Sabah al khair105, Yusuf — cumprimentei-o, um
pouco envergonhada ao me lembrar dos beijos que trocamos.
Nossos olhares se encontraram e ficou muito claro para
mim que ele estava se lembrando do mesmo.
— Sabah al nur106, Malika. Vim acompanhá-la no
passeio de hoje. — Ele se dirigiu à enfermeira. — Pode ir,
Layla.
Ela agradeceu e se retirou, deixando-nos sozinhos.
— Yalla107, Malika. O jardim nos espera — disse com
humor, fazendo-me rir.
Fomos para o jardim externo privativo da ala, onde já
estávamos acostumados a nos encontrar.
— Como foi a sua noite? — ele perguntou de repente.
Em momento algum achei que aquela fosse uma
pergunta casual. Até poderia ser, se eu não o tivesse visto com
Layla, ambos conversando com cara de preocupação.
— Pela pergunta, acho que Layla andou falando
alguma coisa.
Ele não negou.
— Ela comentou comigo que você teve um pesadelo,
mas foi só depois que perguntei se a noite tinha sido tranquila.
Não a culpe por partilhar isso comigo. Layla gosta muito de
você e de Kismet.
— Também gostamos muito dela.
— Posso saber que pesadelo foi esse?
Fora a doutora Bushra, Yusuf era a única pessoa que
sabia de grande parte do que sofri na prisão. Eu já havia
confidenciado muita coisa para ele, mas não sabia até que
ponto conseguiria falar da parte mais podre.
— Momentos dolorosos da prisão, só isso. Eles vão e
vêm na hora que querem. Não consigo prever nem ter controle
sobre eles.
— Normalmente são acionados por um gatilho que
muitas vezes nem sabemos qual é. No seu caso, acredito que
o gatilho tenha sido o atentado ou, mais certo ainda, foi ter visto
alguém parecido com o supervisor prisional entre os
refugiados.
Daquelas duas opções, eu não duvidava que a
segunda havia sido o meu gatilho.
— Eu fico com a segunda opção. E você? — Yusuf
insistiu, parecendo determinado a descobrir, como se assim
conseguisse eliminá-lo de vez e nunca mais eu ter pesadelos.
— Também.
Ele não pareceu surpreso. Era como se só quisesse
confirmar o que já sabia.
— Talvez falar seja melhor para você do que calar,
Malika. Não quer desabafar alguma coisa comigo? Se isso não
resolver o problema, pelo menos vai fazer com que se sinta
melhor.
— Não consigo falar tudo.
— E nem precisa. Fale apenas o que quiser. Posso
ajudar pedindo que me conte tudo o que sabe sobre este
Hisham Al Amari.
— Conseguiu descobrir alguma coisa sobre ele?
Eu tinha certeza de que Yusuf havia pedido uma
investigação sobre o homem, não apenas por ser um forte
suspeito dos atentados, mas também pela ligação com
Thueban.
— Nem precisei fazer uma investigação. Conversei
com Assad sobre o que você me contou e ele me passou todas
as informações que eu precisava — disse, surpreendendo-me.
— Tivemos mesmo muita sorte ao contratar o Assad. Ele tem
sido uma peça fundamental para lidar com os problemas
relacionados à Sadiz.
Falar de Assad me fez ficar preocupada com ele.
— E como ele está? Se feriu muito? Era para eu ter
perguntado ontem à noite, mas me esqueci.
Não precisei dizer o motivo que me fez esquecer de
perguntar por Assad. Recebi um olhar profundo de Yusuf que já
dizia tudo.
— Fique tranquila, Assad só teve ferimentos leves.
Ficou preso em uma parte dos dormitórios com cerca de vinte
pessoas quando a bomba explodiu. Conseguimos resgatar
todos com vida depois de algumas horas, mas ele já estava
liderando um grupo de homens lá dentro para começarem a
tirar os escombros.
— Allah seja louvado!
— Que seja eternamente abençoado. Considerando
que foram três bombas explodindo em sequência, tivemos até
poucas baixas entre os civis. Foram cinco vidas perdidas, uma
delas de um militar.
Fiquei arrasada quando o ouvi.
— Oh, eu não sabia dessas mortes, Yusuf! Não saiu
nada nos noticiários ontem à noite.
— Ainda não tinha sido divulgado o número de mortos.
Saqr e eu só saímos de lá quando o trabalho de busca e
resgate foi concluído. Entre os civis, dois eram funcionários do
centro de acolhimento e os outros dois eram refugiados.
Uma tristeza imensa se abateu sobre mim.
— Nunca pensei que viveria isso na minha vida.
Ele me olhou muito sério.
— Tenho certeza de que também nunca imaginou ser
encarcerada pelo seu tio em uma prisão como Thueban.
Yusuf tinha razão e voltei a suspirar diante da maldade
de alguns homens. Admirei a beleza do jardim, o brilho do sol
iluminando o palácio, a maravilha que era a vida.
— O mundo seria um lugar melhor se não houvesse
tanta maldade no ser humano.
— São minoria, garanto. A grande maioria da
população mundial não é assim. — Ele se aproximou mais e
segurou discretamente a minha mão enquanto caminhávamos
lentamente. — Não fique triste nem perca a esperança no
mundo, Malika. Só Allah sabe, em sua grande sabedoria, o
motivo por trás de tudo.
Ele acariciou a minha mão em um gesto de conforto e
depois entrelaçou os dedos nos meus. Senti uma comunhão
única com ele e suspirei, feliz.
Fizemos parte do percurso em silêncio, apenas
aproveitando a companhia um do outro. Eu havia encontrado o
homem do meu destino e orei em gratidão por aquilo.
— Quase não acreditei quando vi você ontem em Azra.
Por que não me avisou que estava voltando de Nova York?
— Quis pegar você de surpresa e ver a sua reação.
Esperava que deixasse transparecer o que sentia por mim. —
Um meio sorriso curvou os lábios dele. —Acabei descobrindo
da melhor maneira, quando conversamos à noite.
Ele apertou a minha mão em um gesto significativo e o
olhei discretamente, admirando o perfil tão masculinamente
belo. Eu queria ser feliz com Yusuf e tinha noção de que só
superando o passado é que conseguiria. Esperava apenas
alcançar aquela superação.
— Não sei muita coisa sobre Hisham que possa ajudar
— comecei a falar, recebendo um olhar surpreso dele ao me
ver tocar no assunto que parecia ter ficado esquecido. — Fiquei
sabendo que ele era o supervisor prisional assim que cheguei
no quartel-general para onde fui levada após a prisão em
Qasara. Foi para ele que Mubarak deu ordens de me levarem
para Asuid. Passei um tempo lá, que não faço ideia de quanto
foi, e depois me transferiram para Thueban. Hisham sempre
estava acompanhando tudo, fosse em Asuid ou em Thueban.
Não sei se ele era o supervisor prisional de todas as prisões de
Sadiz ou apenas de Thueban, mas entendi que tinha sido
designado como o responsável por mim.
— Assad me contou que Hisham é supervisor apenas
de Thueban, mas é o homem de confiança do seu tio para lidar
com os presos políticos que o governo tem mais interesse —
Yusuf esclareceu. — Pouquíssimas pessoas sabem da
existência daquela prisão. É um projeto secreto de Suleiman e
ele designou o seu homem de maior confiança para comandar
aquilo. Assad já tinha ouvido falar de Thueban, pois os rumores
circulavam entre os oficiais, mas ninguém sabia onde ficava,
exceto quem trabalhava lá. Segundo ele, havia um código de
silêncio que mantinha tudo em segredo. Quem o quebrasse, ia
parar no último andar do subsolo de Thueban e nunca mais
saía de lá.
Estremeci, apesar do sol que me aquecia.
— Se já sofri horrores naquele lugar, nem quero
imaginar o que acontecia no último andar daquele inferno.
Yusuf me surpreendeu ao passar um braço confortador
pelos meus ombros, aconchegando-me na lateral do seu corpo.
— Não podemos!
Ergui o rosto para ele com os olhos arregalados de
espanto.
— Há coisas que só um príncipe pode fazer. Desta vez
vou usufruir do privilégio que tenho e abraçar a minha noiva no
jardim privativo do meu irmão. Aqui não há câmeras de
vigilância. Se alguém nos vir, será o próprio Saqr, a Kismet ou a
Layla. Agora relaxe e esqueça Thueban. Eu não devia nem ter
tocado no assunto.
Relaxei, aproveitando a sensação maravilhosa que era
estar abraçada com ele daquela forma. Continuamos a passear
pelo jardim.
— Você também pode usufruir do privilégio de ser uma
princesa e me abraçar pela cintura, Malika — ele sugeriu em
tom de riso.
Não pude deixar de rir também e ousei quebrar a regra,
passando um braço pela cintura dele. A sensação foi muito boa
e fechei os olhos enquanto caminhávamos abraçados, sentindo
o sol ameno da manhã tocando o meu rosto.
Quando os abri, notei que Yusuf me observava e
trocamos um olhar apaixonado.
— Case-se comigo.
Arquejei ao ser pega desprevenida com o pedido
repentino. A perplexidade foi tanta que até diminuí os passos.
Ele está me pedindo em casamento!
A felicidade explodiu no meu peito quando aquela
certeza entrou no meu cérebro.
— Quero que seja minha esposa. Quero cuidar de
você, quero amar você, quero ter filhos e construir uma família
ao seu lado.
Filhos! Família!
Aquilo significava sexo e o meu corpo gelou na hora.
Ao me entregar ao amor que sentia nos braços dele, esqueci
completamente que amor implicava em sexo entre o casal e eu
não sabia se estava preparada para aquilo.
A bolha do meu sonho estourou com a mesma força
das bombas que explodiram no dia anterior e a imagem odiosa
de Hisham voltou a surgir na minha frente, destruindo tudo.
Pela primeira vez desde que o conheci, analisei Yusuf
sob um ponto de vista diferente do homem protetor, amigo e
honrado com quem me senti em segurança logo no resgate e
por quem me apaixonei pouco tempo depois. Eu precisava vê-
lo como um homem que também sentia desejo sexual como
qualquer outro.
Na noite anterior, eu mesma havia sentido a força que
havia naqueles braços musculosos e não era difícil imaginar
que o restante do corpo fosse igualmente forte, uma máquina
de guerra. Forte, saudável e, sem dúvida alguma, sexualmente
ativo.
À minha mente veio a imagem de Rana, provavelmente
apenas uma das várias amantes belíssimas que Yusuf teve
durante todo aquele tempo em que ficamos falsamente noivos.
Tentei não pensar no fato de que atualmente ele devia ter uma
amante.
Não havia o que questionar da minha parte, uma vez
que o noivado tinha sido apenas um acordo, uma farsa para
manter o meu tio longe de mim. Contudo, agora que surgiu
aquele pedido de casamento, não havia como fugir da
realidade. Uma realidade que caiu de uma única vez na minha
cabeça e que me deixou devastada.
Além daquelas prováveis amantes, havia o contexto
sexual do casamento. Apesar do amor que sentia por Yusuf, eu
não fazia a mínima ideia de qual seria a minha reação na hora
do sexo. E se eu não conseguisse ir até o fim? Continuaríamos
casados por obrigação e ele permaneceria com as amantes?
A minha mente traiçoeira trouxe de volta o horror da
sala de tortura sexual de Thueban, o mais hediondo contato
que tive com o assustador poder que o desejo sexual exercia
sobre os homens.
A lembrança de Hisham com o genital exposto depois
de estuprar Hessa surgiu com força total na minha mente. Sem
que eu pudesse controlar, os demônios que me assombravam
colocaram Yusuf também nu à minha frente, igualmente
excitado. Era como se quisessem me dizer que não havia
diferença entre um e outro quando estavam dominados pelo
instinto sexual.
Não, o Yusuf não é assim!!!
Tentei tirar aquele pensamento da minha mente, mas a
incerteza já estava plantada quando me afastei dele e Yusuf
percebeu.
— Você está se sentindo bem, Malika? Ficou pálida de
repente.
— Eu... eu não sei se conseguirei ser sua esposa por
completo.
Ele ficou sério ao entender o que eu disse.
— Confio que o nosso amor será mais forte do que
qualquer trauma que você tenha. Eu confio nisso!
— Você não entende, Yusuf. Isso são duas coisas
totalmente diferentes para mim. Amo você, mas não sei se
conseguiria ter... a intimidade que um casamento exige.
— Não é uma exigência do casamento. É algo que
surge naturalmente com o aprofundar dos sentimentos, do
amor — ele explicou com paciência.
— Ainda assim há a possibilidade de eu não conseguir
e essa incerteza pode no futuro destruir o sentimento que
temos hoje. Prefiro não aceitar o seu pedido.
Ele inspirou profundamente, as narinas se dilatando e o
peito amplo se expandindo ainda mais diante da minha
negativa.
— Não negue sem pensar com calma no meu pedido.
Você ainda está muito abalada com tudo o que aconteceu
ontem.
Neguei veementemente com a cabeça, a imagem de
Hisham dominando a minha mente.
— Tudo o que aconteceu em Thueban foi tão horrível e
nojento! — desabafei, alterada, afastando-me ainda mais dele.
— Não consigo ver aquilo como algo vindo de Allah e nunca
mais quero me submeter a nada parecido.
As feições de Yusuf endureceram ainda mais.
— O que aconteceu? Se submeter ao quê? —
perguntou de maneira incisiva. — Se não me contar, nunca vou
saber contra o que devo lutar, nem o que devo fazer para que
se sinta segura comigo, muito menos o que “não” devo fazer
para manter você comigo. Estou lutando há anos contra um
inimigo que não posso abater porque não sei nem o que é.
Virei-me de costas para ele, incapaz de falar. A
vergonha e a humilhação que eu sentia eram grandes demais
até para o olhar de frente.
— Um estupro jamais será uma obra de Allah, Malika
— ele sussurrou às minhas costas em um tom de voz mais
controlado. — O que um casal que se ama faz é amor. Amor! E
é isso o que nós dois faremos quando nos casarmos. Aceite o
meu pedido, por favor.
— Não sei se conseguirei.
— Só saberá se tentar. Eu estou disposto a tentar. Se
você não conseguir, prometo que não insistirei até que se sinta
pronta para isso.
Virei-me de frente para ele, ganhando coragem para o
encarar.
— Posso nunca me sentir pronta e não vou prender
você a uma promessa dessas, Yusuf! Não é justo que fique
preso à uma esposa que nunca poderá tocar, uma esposa que
pode nunca conseguir... satisfazê-lo na cama. A sua vida vai
ser um inferno e a minha também. Estaremos nos destruindo.
Destruindo um sentimento lindo que temos hoje.
— Pare de se sacrificar pelos outros pelo menos uma
vez na vida e pense em si mesma. Eu estou disposto a arriscar
tudo o que for preciso para ficar com você. Aceite isso e não
pense em mim. Agarre essa chance de ser feliz.
— Como é que posso não pensar em você? Serei a
responsável pela sua infelicidade se for egoísta o suficiente
para aceitar algo sem levar em consideração as consequências
futuras. — Resolvi ir mais a fundo, mesmo sendo aquele um
assunto que doía em mim. — Sei das suas amantes, mas uma
coisa é aceitar isso sendo uma falsa noiva e outra é aceitar
sendo sua esposa. Vamos supor que eu nunca consiga superar
o trauma que tenho comigo, você vai procurar uma segunda
esposa? Eu jamais vou aceitar que o meu marido tenha outra
esposa além de mim, muito menos amantes.
Ele comprimiu os lábios e um músculo pulsou na
mandíbula barbada.
— Nunca tive a intenção de ter uma segunda esposa.
Será só você.
— E o que vai fazer quando sentir vontade de... de ter
prazer? — obriguei-me a perguntar.
— Satisfaço-me sozinho! Cansei de ir para a cama com
outras mulheres fingindo que elas são você — respondeu com
raiva, chocando-me, e depois soltou um suspiro de
arrependimento. — Peço desculpas pela maneira grosseira
como falei, mas essa é a pura verdade. Estou cansado de ficar
com outras mulheres pensando em você, fantasiando com
você, Malika. Sonho com você há anos, seja me pedindo ajuda,
seja se entregando a mim. Nada do que me disse até agora
mudou a minha decisão de fazer com que seja minha esposa.
Apesar de estar impressionada com o que ele disse,
havia um outro motivo muito forte para não nos casarmos.
— Acho que deveria pensar melhor na sua decisão,
Yusuf. Até quando você acha que o Sheik Rashid vai ficar de
braços cruzados esperando um neto que nunca vai chegar?
Você também quer ter filhos.
Notei logo que atingi o ponto fraco de Yusuf ao falar de
filhos e mordi o canto da boca. Eu sabia que não havia me
enganado com a expressão no rosto dele ao ter Zayn nos
braços.
— Não faça isso com nós dois — ele pediu, fechando
os olhos e senti o conflito que o dilacerava.
— Eu preciso fazer isso e é por nós dois. Se eu me
casar com você, não passarei de uma esposa intocada. Prefiro
no futuro ter ao meu lado um amigo que amo muito do que um
marido amargurado, cujo amor não resistiu à insatisfação.
Ele abriu os olhos e vi o amor brilhando neles.
— Considero você como a minha melhor amiga, mas
este não é o sentimento mais forte que existe dentro de mim. A
amizade é secundária. O principal é o amor. Sinto por você o
que um homem sente por uma mulher por quem está
apaixonado, pela mulher que ama com desespero, pela única
que o satisfaz só com a sua presença. Eu amo você, Malika, e
não vou desistir da mulher que amo.
Inspirei fundo e soltei o ar lentamente ao ouvir aquela
declaração. O meu amor só crescia mais a cada minuto de
conversa e doía ter que renunciar a algo tão lindo. Contudo,
Yusuf nem imaginava o tamanho do trauma que me
atormentava e do problema com o qual teria de lidar.
Em uma cultura onde a virgindade era tão valorizada
por todos os homens, não havia espaço para uma mulher como
eu.
Yusuf se aproximou mais de mim.
— Me ajude a ajudar você, Malika. Tente me contar
alguma das coisas que aconteceram na prisão. Aos poucos
conseguiremos superar isso juntos — falou como se tivesse
lido os meus pensamentos.
Eu nunca teria coragem de contar nada do que
aconteceu comigo, quanto mais tudo, mas havia alguém que
poderia fazer aquilo por mim.
Decidida, resolvi que estava na hora de Yusuf enfrentar
a realidade de se casar com uma mulher como eu. Talvez
então ele visse que a minha decisão de recusar o pedido de
casamento era a mais acertada.
— Posso pedir que converse com a doutora Bushra
sobre isso?
Ele foi pego totalmente de surpresa com aquela
pergunta. Notei que não esperava mesmo que eu sugerisse
uma conversa dele com a médica que me atendeu logo após o
resgate.
— Ela não vai me contar nada se eu perguntar, nem eu
exigiria que o fizesse.
— Vou ligar para ela e autorizar que conte.
Yusuf assentiu com uma expressão que não consegui
decifrar.
— Quando? — perguntou, sem transparecer nada do
que estava sentindo.
— Farei isso hoje mesmo e pedirei que ligue para
marcar com você o melhor horário.
Apesar de a minha voz estar firme, eu me sentia
insegura por dentro. Só esperava que ao saber de tudo, ele
não desistisse até de ser meu amigo.
Capítulo 44
Yusuf
Eu não queria conversar com a doutora Bushra sobre o
que Malika sofreu na prisão. Queria que fosse a própria Malika
a me contar. Na minha concepção, aquela conversa ia nos unir
ainda mais como casal, fortalecendo os laços de confiança e
solidificando o nosso amor.
Acabei por ir ao consultório da médica no hospital
muito mais para atender ao pedido de Malika do que por
vontade própria. Conformei-me, dizendo a mim mesmo que
pelo menos aquilo serviria como motivo para termos uma nova
conversa sobre o assunto.
Sentei-me na cadeira em frente à mesa da doutora
Bushra após os cumprimentos habituais e aguardei.
— Como vossa alteza já sabe, a princesa Malika me
autorizou a partilhar as informações que me forneceu quando
deu entrada no hospital após o resgate. Só queria dizer que
são informações confidenciais, muitas delas nem fazem parte
do dossiê médico que consta no nosso arquivo. Guardei-as
para mim mesma, com o intuito de proteger a princesa.
Eu entendia a atitude da médica, mas achei melhor
esclarecer o que eu achava de tudo aquilo.
— Agradeço que tenha mantido e que continue
mantendo este assunto em sigilo absoluto. A única coisa que
quero ao saber destas informações, é encontrar uma maneira
de ajudar Malika a superar qualquer trauma que ainda tenha
com o que passou na prisão. Sinto que ela não vai superar o
que a aflige enquanto não conversar abertamente comigo. Eu
sei o que acontece nas prisões ao redor do mundo, doutora.
Não foi difícil para mim deduzir que Malika foi vítima de
estupro. Pela reação dela todas as vezes em que toco no
assunto, isso ficou mais do que óbvio, mas saber o que fizeram
com ela não muda nada do que sinto pela minha noiva.
Agradeço muito mais a sua ajuda se puder falar com a Malika e
dizer que se abra comigo. Que seja ela a me contar o que
passou.
A médica fez um gesto de assentimento e
compreensão, ajeitando melhor os óculos sobre o nariz.
— Eu entendo, mas peço que me perdoe por discordar,
alteza. — Ela foi sincera e corajosa ao assumir que não
concordava com o que eu disse. — Apesar de entender os
motivos do príncipe, também entendo os motivos da princesa.
Não me refiro à virgindade, mas do quanto é difícil para uma
mulher que sofreu qualquer tipo de assédio ou abuso sexual ter
que falar sobre o assunto com outra pessoa. Se for com um
homem então, será mais difícil ainda, mesmo ele sendo o seu
noivo. É compreensível demais que a princesa prefira que seja
eu a contar, do que contar ela mesma. Há muita vergonha,
humilhação, medo e desvalorização em causa.
Respirei fundo, o meu instinto protetor se aguçando
cada vez mais a cada palavra que a médica dizia. Pela minha
vontade, eu estaria agora ao lado de Malika para a abraçar
junto ao peito e não mais largar.
— Shukran, doutora. Acho que eu estava precisando
ouvir isso — admiti o meu erro. — A única justificativa que
posso dar é que quero muito ajudar Malika a ultrapassar logo
esta fase. Sei que parece que estou pressionando para que
seja algo rápido, mas a verdade é que já se passaram três
anos desde que ela chegou em Tamrah e sinto que o trauma
ainda persiste. Acho muito tempo para ela ainda não ter
conseguido superá-lo.
— É mais certo eu afirmar que uma mulher nunca vai
superar este tipo de trauma do que dizer o contrário, alteza.
Lógico que há exceções, mas são muito raras e sempre ficará
um resquício do trauma no subconsciente. Não temos como
determinar um tempo certo para ser superado.
Suspirei, sentindo-me derrotado.
— O que me aconselha a fazer para lidar com uma
noiva vítima de estupro?
Recebi um outro olhar de compreensão dela.
— A princesa Malika não foi estuprada da maneira
como o príncipe deve estar pensando — a médica disse,
pegando-me de surpresa com aquela informação. — Permita-
me ser mais explícita e falar de alguns detalhes sexuais,
apesar de saber que este é um assunto que vossa alteza
normalmente conversaria com um médico como o doutor Fadel
e não comigo, uma médica.
Eu já estava quase mandando as convenções à merda,
diante da urgência que sentia em saber o que realmente havia
acontecido com Malika. Algo me dizia que eu ia sair daquela
sala querendo esmurrar a cara de muito filho da puta, a
começar por Suleiman e Mubarak, que a colocaram na prisão.
Apesar de querer acabar com a raça dos dois, quem eu
realmente queria era o homem que a estuprou.
— Fale, doutora — autorizei, controlando a raiva.
— A princesa me contou que foi obrigada a participar
de um ato sexual com um homem na prisão, mas não houve
nenhum tipo de penetração. Para ser mais direta, não foi um
estupro da maneira tradicional como estamos acostumados,
com penetração vaginal ou anal.
Cerrei os punhos ao ouvir aquilo, sem querer imaginar
nenhuma das duas situações citadas pela médica.
— Pude comprovar isso nos exames que ela permitiu
que eu fizesse durante os dias em que ficou internada aqui.
Quando conversamos na primeira consulta, a princesa estava
muito abalada e confusa. Sequer sabia se ainda era virgem, o
que é compreensível, considerando a falta de informações
sexuais que muitas mulheres têm, além do trauma pelo qual ela
passou. Pedi permissão para fazer um exame ginecológico
completo que me desse a certeza das reais condições físicas
que ela tinha quando deu entrada no hospital. Eu precisava
saber se houve algum tipo de contato sexual, pois era preciso
tomar uma série de providências importantes e imediatas, fazer
exames específicos, incluindo o de gravidez, além de
prescrever a medicação certa caso houvesse HIV ou outras
infecções sexualmente transmissíveis. As análises deram
negativas para tudo que fosse de cunho sexual.
Nem que eu quisesse interromper a doutora Bushra
naquele momento, conseguiria. Sentia-me abalado até os
ossos com aquela enxurrada de informações que a médica
estava me dando sobre a mulher que eu amava. Só conseguia
me lembrar da aparência frágil, doentia e assustada de Malika
quando a deixei aos cuidados da doutora Bushra três anos
atrás.
— Depois dos exames que fiz nela, posso afirmar que
a princesa chegou aqui virgem, se considerarmos que
virgindade é a ausência de penetração e a existência do hímen
— a médica continuou, sem fazer a mínima ideia de como eu
me sentia. — Segundo a princesa Malika me contou, foi
preservada por ordens do tio, que a queria virgem para
negociar um casamento futuro. Tanto foi assim, que foram
destacadas duas mulheres guardas prisionais para fazerem a
vigilância dela.
Duas guardas?
Eu não esperava por aquilo. Sempre achei que ela
havia ficado sob a supervisão direta de Hisham.
— E onde se encaixa o homem que abusou dela?
— Não sei como ele conseguiu ter acesso à cela da
princesa. Ela não me contou detalhes sobre isso. Também não
sei se era uma espécie de técnica de tortura psicológica deles,
mas ela me contou que no começo eram apenas toques
íntimos nos seios, nas nádegas e insinuações de estupro.
Nunca houve nenhuma tentativa, até o dia em que ele entrou
na cela e tentou que lhe fizesse sexo oral. — A doutora
meneou a cabeça com tristeza e reprovação, enquanto eu só
queria sair dali e socar até à morte o desgraçado que fez aquilo
com Malika. — Eu estou afirmando que foi sexo oral por
dedução, porque a princesa me disse que não sabia o que ele
queria quando aproximou o genital da boca dela.
Ibn sharmouta!!!108
Furioso, só agora eu entendia as palavras de Malika.
“Tudo o que aconteceu em Thueban foi tão horrível e
nojento. Não consigo ver aquilo como algo vindo de Allah e
nunca mais quero me submeter a nada parecido.”
Os meus músculos até doíam de tão contraídos de
tensão que estavam. Quando saí de casa para aquela
conversa com a médica, nunca pensei que ela seria tão difícil
assim. Achei que ouviria apenas o que já sabia, sem muitos
detalhes, e que depois poderia voltar para casa, dizer à Malika
que já havia conversado com a médica e pedir novamente que
se casasse comigo. Jamais imaginei que ficaria no limite de
perder o controle daquele jeito.
— Perguntei o que aconteceu depois. Ela disse que
lutou para se libertar e conseguiu, mas desmaiou quando foi
golpeada com um soco. Senti orgulho dela quando me contou
isso. Temos uma princesa muito corajosa — a doutora disse
com um olhar de aprovação.
— E o que aconteceu depois? — foi a minha vez
perguntar o que havia acontecido, ansioso para saber o que
mais Malika confidenciou à médica.
— A princesa disse que estava sozinha na cela quando
voltou à consciência e não sabe se ele fez alguma coisa com
ela durante o tempo em que ficou desacordada, daí a dúvida se
ainda era virgem. Perguntei se havia notado sangue entre as
pernas, se sentiu dor ou notou algum tipo de secreção na
região genital e ela disse que não. A única coisa que notou foi
que sentia muitas dores nos hematomas dos braços por causa
da luta e no rosto inchado do soco que levou. Apenas a abaya
estava suja na altura dos seios com “algo pegajoso”. O homem
não chegou a despi-la, a intenção era mesmo o sexo oral.
Deduzi que se masturbou quando ela perdeu a consciência e
foi embora, já que não podia fazer outra coisa com ela sem que
lhe tirasse a virgindade.
Soltei a respiração que estava presa quando ela
finalizou.
— Ele voltou depois?
— Perguntei a mesma coisa e a princesa negou. Disse
que assim que conseguiu falar com as guardas contou o que
tinha acontecido, dizendo que ele tentou estuprá-la e que o tio
ia ficar furioso se aquilo acontecesse. Não havia prova maior
do que o rosto inchado. O homem não voltou. Segundo ela,
nunca mais o viu na prisão até o dia em que foi resgatada e
veio para cá.
— Ela falou algo sobre a identidade desse homem?
— Não, apenas comentou que os homens que
participavam das torturas sexuais estavam sempre
mascarados.
Analisei tudo em silêncio por alguns instantes.
— Por tudo o que me contou agora sobre o que
aconteceu na cela de Malika, fiquei com a impressão de que
ela sabe quem é ele.
— Sim, também fiquei com essa impressão, alteza. Ela
falava como se o conhecesse.
Restava saber se Malika um dia me contaria quem era
ele.
— Apesar da certeza que dei para a princesa de que
continuava virgem, ela me disse que não se sentia mais virgem
depois de tudo o que viu e de todos os abusos que sofreu, o
que é compreensível. Foi por isso que falei no início da nossa
conversa que é muito vergonhoso e humilhante para ela ter de
contar esses detalhes para um homem, mesmo sendo um
noivo que ama. É normal que também sinta um certo receio da
reação que as pessoas vão ter ao saberem do que passou e
qual será a maneira como a vão tratar. Ainda haverá respeito,
principalmente dos homens? Por mais que tente, a mulher
sempre se sente desvalorizada, ainda mais em uma cultura que
valoriza tanto a pureza e a virgindade.
Eu tinha consciência da verdade daquelas palavras,
que me ajudaram a entender melhor os motivos de Malika.
— Shukran, doutora — agradeci, emocionado com a
consideração dela por Malika. — Há mais alguma coisa que eu
precise saber?
— Não, alteza. Já contei tudo o que sei sobre o que a
princesa sofreu na prisão e só espero ter ajudado os dois de
alguma forma.
— Ajudou muito.
Despedi-me dela e saí de lá determinado a falar com
Malika. Entrei no Bugatti e liguei logo para ela, mas a chamada
caiu sem que atendesse. Fiz imediatamente outra ligação,
daquela vez para Layla.
— Liguei para Malika, mas ela não atendeu. Você está
com ela?
— Sim, alteza. A princesa estava com dor de cabeça e
foi descansar. Agora está dormindo.
— Quando ela acordar, peça que me ligue.
— Farei isso.
Frustrado por não poder falar com ela naquele instante,
joguei o celular no banco e liguei o carro, dirigindo
pensativamente pelas ruas de Jawhara.
Desde que soube que Kismet tinha uma irmã que
estava presa, deduzi que ela não escaparia dos abusos
sexuais na prisão. Durante todo aquele tempo que conhecia
Malika, achei que o estupro tivesse acontecido com ela
também e não apenas com a amiga ativista chamada Hessa.
Agora que eu sabia da verdade, fui dominado por uma mistura
de alívio por ela não ter sofrido uma atrocidade daquelas, e de
raiva por ter sido forçada sexualmente de uma outra maneira.
Eu entendia que Malika sentisse vergonha de me
contar aquilo ou que se sentisse insegura com a minha reação,
mas nada do que eu havia acabado de saber mudou o que
sentia por ela.
Achei que não fosse possível amar Malika mais do que
já amava, mas eu estava enganado. O meu amor só aumentou
depois da conversa com a médica.
Capítulo 45
Yusuf
Tentei falar com Malika duas vezes naquele dia e não
consegui. Era sempre a Layla quem me atendia dizendo que
ela continuava dormindo. Na segunda vez, cheguei à conclusão
de que Malika estava evitando falar comigo.
Eu já não aguentava mais andar de um lado para o
outro no meu quarto, incapaz de me concentrar no trabalho ou
em qualquer coisa que fosse. Determinado, saí de lá e fui para
a Ala do Falcão falar com ela.
Quando estava no corredor que conduzia à ala, cruzei
com Saqr que vinha saindo de lá, concentrado no celular.
Cumprimentei-o rapidamente e já ia seguir o meu caminho
quando ele me segurou pelo braço com firmeza.
— Ei, para onde vai com esta cara?
Tentei disfarçar a tensão.
— Vou falar com Malika.
Ele me olhou com atenção e segurou o meu braço com
mais força.
— Não, não vai. Primeiro vai me contar o que está
acontecendo.
— Não se preocupe, está tudo bem.
— Se está tudo bem, por que essa cara antes de falar
com ela?
Suspirei pesadamente e soltei a verdade.
— Estou apenas chateado porque ela está evitando
falar comigo.
— Se ela não quer falar agora, não insista. Dê um
tempo até que Malika esteja pronta para ouvir o que tem a
dizer.
— Você não entende o que está acontecendo.
— Então me explique, porque não vou deixar você
invadir o apartamento dela alterado do jeito que está.
— Não vou invadir!
— Mas vai insistir, o que dá no mesmo. Ou me explica,
ou não vai. Sou seu irmão e quero ajudar se estiver precisando,
mas não se esqueça que ela é irmã de Kismet. Tudo o que
afeta a minha esposa, afeta duas vezes mais a mim e tenho
certeza que você entende como isso funciona. Quem mexe
com a nossa mulher está começando uma guerra.
Respirei fundo para me acalmar, ciente de que ele tinha
razão. Eu seria capaz de matar muita gente por causa de
Malika.
Saqr soltou o meu braço e guardou o celular no bolso,
aguardando que eu dissesse alguma coisa.
— Eu a pedi em casamento hoje de manhã e ela
negou, alegando que não vai conseguir ter uma vida sexual
comigo. É isso!
O meu irmão me olhou com preocupação.
— Você está apaixonado — afirmou com convicção.
— Estou. — Já não havia o que esconder e admiti o
que sentia por ela. — No início achei que fosse só amizade.
Tentei ser apenas um amigo, por saber que ela consideraria
qualquer outro tipo de aproximação como uma ameaça, mas fui
me envolvendo e hoje estou apaixonado.
— Eu avisei na cúpula que o casamento estava fora de
cogitação para Malika. Ela não quer. Agora vai acontecer o que
eu temia, que é você sofrer com esta situação.
— Mas ela também me ama! Malika admitiu isso para
mim ontem à noite, só que hoje de manhã se assustou com o
pedido de casamento. Agora está me evitando.
— Isso significa que a situação só tende a piorar. Além
de você estar sofrendo, ela também está, algo que eu e Kismet
não queríamos que acontecesse.
Dei um soco no ar, enraivecido e frustrado. Tudo o que
eu queria naquele instante era ter na minha frente o homem
que deixou tantos traumas em Malika.
— Eu quero explodir Thueban!
Saqr me olhou com firmeza, mas também com
preocupação.
— Com a graça de Allah ainda faremos isso um dia.
Agora se acalme, meu irmão. Dê tempo para ela. Desconfio
que tudo tenha de acontecer aos poucos com Malika, muito
lentamente. — Ele me abraçou pelos ombros. — Pense com
calma, raciocine. Hoje é o seu segundo dia em Tamrah depois
que voltou de Nova York e olhe como você está? Como vai
conseguir lidar com esta situação nos próximos dias se já está
perdendo o controle agora?
Allah me perdoe, ele tem razão!
Abracei-o, a desistência doendo no meu peito, mesmo
sabendo que o mais certo a se fazer naquele momento era
desistir de falar com ela.
Saqr me conduziu para fora da Ala do Falcão.
— Nosso pai está nos aguardando no majlis para uma
reunião em trinta minutos. Dá tempo para um passeio rápido
pelo jardim para você se acalmar. Não se esqueça que temos
um bombista para deter e um país inteiro para proteger.
Depois de vinte minutos de caminhada ao lado de Saqr,
senti que estava mais calmo. Ele me puxou pela razão e foi a
melhor coisa que podia acontecer. Se eu fizesse muita pressão
sobre Malika, talvez ela se afastasse mais ainda de mim.
Quando entramos no majlis eu já me sentia
completamente controlado. O que estranhei foi ver a cara de
preocupação do nosso pai.
— Tudo bem, pai? — Saqr perguntou ao notar o
mesmo que eu.
— É só bronca em cima de bronca. — Olhou para mim.
— Temos um assunto sério para resolver, mas vamos aguardar
que sua mãe chegue com a Malika.
Com a Malika?
Troquei um olhar com Saqr, os dois sem entender
nada.
— Por que a Malika precisa estar presente? —
perguntei, desconfiado.
— Deixe que ela chegue. Não estou com disposição
para repetir a mesma coisa duas vezes.
Não demorou nem dois minutos para minha mãe entrar
acompanhada por Malika. Percebi a surpresa no rosto dela
quando me viu, mas que foi logo substituída por uma
expressão de normalidade.
Ficamos os dois lado a lado na frente do meu pai.
— Acabei de receber um ofício com uma solicitação
formal de Suleiman exigindo, repito, exigindo, o retorno
imediato de Malika para Sadiz.
Malika soltou um arquejo de susto que fez o meu
instinto de proteção subir ao nível máximo.
— O quê?! — Dei um passo na frente dela. —
Suleiman não pode exigir isso.
— Sim, pode! — o meu pai afirmou de mau humor. —
No documento ele alega, e com razão, que há três anos você
assumiu um noivado com a sobrinha dele e até hoje não
honrou a sua palavra com o casamento, manchando a
reputação da princesa, desrespeitando a família Al Kabeer e
impedindo que ela se casasse com um outro pretendente. É
quase uma exigência para que ela volte.
— Suleiman não havia adoecido? — Saqr citou aquele
detalhe. — É estranho que agora chegue um ofício dele com
essa exigência. Isso deve ser obra de Mubarak.
— Mesmo que seja obra de Mubarak, Suleiman ainda
não morreu e continua sendo o governante máximo de Sadiz.
O documento está assinado por ele — o meu pai esclareceu
em tom autoritário, visivelmente irritado. — A questão aqui não
é a veracidade do documento, pois sabemos que levar Malika
era algo que Suleiman sempre quis fazer. O estranho foi ele
nunca ter exigido o casamento antes, considerando o tempo
que este noivado de vocês dois se prolongou. O costume é
durar no máximo alguns meses e não três anos! Todos nós
sabemos que o noivado perde a validade quando o casamento
não é realizado depois desse tempo, a menos que seja refeito,
mas há um limite para estas renovações. Suleiman tem nas
mãos tudo para invalidar este noivado de vocês. Ou se casam
agora ou teremos dois grandes problemas para resolver com
Sadiz: os refugiados e Malika.
Não era assim que eu queria conseguir que Malika se
casasse comigo. Tudo estava colaborando para transformar o
nosso relacionamento em um verdadeiro caos e eu sentia que
estava chegando no meu limite.
— Então, o que decidem? — a voz autoritária do meu
pai retumbou no majlis.
— E tem que ser agora? — revoltei-me com aquela
exigência. — Não posso antes conversar sozinho com a
Malika?
— O que mais vocês dois precisam conversar sobre o
casamento que não conversaram nos últimos três anos? — o
meu pai rugiu, perdendo a paciência de vez.
— Calma, pai — Saqr pediu. — Podemos discutir o
assunto sem criar um conflito familiar.
— O senhor sabe que passei os últimos meses em
Nova York e que só voltei agora.
— Se tivessem se casado antes, teriam ido juntos para
Nova York como marido e mulher em vez de arrastarem esse
noivado.
Aquilo era tudo o que eu queria que tivesse acontecido
e a frustração que já me acompanhava há anos explodiu com
tudo.
— Malika não sai de Taj e ponto final! — determinei
com seriedade.
— Isso significa que vão se casar? — o meu pai
pressionou. — Sua mãe pode começar a preparar o
casamento?
Al’ama!109 O que vou responder agora?
— Sim, pode. — A voz suave de Malika soou às
minhas costas, deixando-me em choque.
Senti o olhar de Saqr em mim, mas me mantive
encarando firmemente o meu pai, que olhou para Malika e,
claro, suavizou a expressão. A irritação dele era dirigida só a
mim, que coloquei em causa a honra do nome Al Harbi.
— Aceita se casar com o Yusuf? — perguntou em tom
mais brando.
— Sim, senhor. Aceito.
O meu pai voltou a me olhar e nem estranhei que fosse
novamente com autoridade. Ele estava realmente irritado
comigo.
— E você, Yusuf? Aceita se casar com a Malika?
Ela estava sendo forçada a um casamento que não
queria, que já tinha negado, mas que as circunstâncias agora a
obrigavam a aceitar. Eu queria que ela me aceitasse pelos
motivos certos, só que jamais a deixaria desprotegida.
— Aceito.
— As comemorações do casamento começam amanhã
mesmo e vão durar três dias! — Decretou com a autoridade de
um rei e não de um pai. — Não vai ser Suleiman ou Mubarak
que vão desonrar o nome da família Al Harbi. Quando eu
responder a este ofício, vai ser para dizer que Malika já é
esposa do meu filho Yusuf. Farah, prepare tudo para a
cerimônia em caráter de urgência. Saqr, providencie o registro
civil imediatamente, pois é com ele que vou calar a boca dos
governantes de Sadiz.
Capítulo 46
Malika
Eu já tive muitos sonhos com o dia do meu casamento
e também muitos pesadelos que me impediam de realizar
aqueles sonhos, mas nada do que imaginei se parecia com o
que realmente aconteceu: um casamento por decreto real.
Kismet ficou entusiasmada, mesmo sabendo que eu só
estava me casando para não cair novamente nas mãos dos
homens da nossa família.
— A vontade de Allah às vezes é um mistério para nós,
mas é cheia de sabedoria e não devemos duvidar desta
sabedoria — ela disse com um sorriso de felicidade assim que
soube. — Você nunca falou nada para mim, mas sinto que ama
o Yusuf. Eu nunca conversei com o Yusuf sobre isso, mas Saqr
confidenciou comigo que o irmão ama você, e que você sabe
disso. Acho que o motivo do casamento não importa se há
amor entre os dois.
Kismet tinha razão, mas até que ponto só o amor seria
suficiente quando o desejo sexual falasse mais alto em Yusuf?
Incapaz de mudar o que o destino havia traçado,
aceitei a vontade de Allah, participando dos preparativos para o
casamento. Um casamento que, pelo longo tempo de noivado,
era realmente para já ter acontecido, como bem falou o Sheik
Rashid. Eu tinha de reconhecer que me acomodei com o
noivado prolongado, mas foi mesmo pela falta de exigência do
meu tio para o casamento acontecer. Os meses foram
passando e se transformaram em anos sem que ninguém em
Sadiz se lembrasse de questionar sobre o casamento. Cheguei
mesmo a achar que haviam desistido de mim, concentrados na
luta pelo poder e nos problemas internos do país, que só
cresciam com o passar dos anos.
Agora, com aquela doença do meu tio e com Mubarak
assumindo no lugar dele, não demorou para o meu primo se
lembrar de mim. Eu desconfiava que ele estava por trás
daquela exigência muito mais do que o meu tio Suleiman.
No dia anterior à cerimônia, passei pela tradicional
massagem corporal com um creme à base de açafrão, sândalo
e óleo de jasmim. Por causa das minhas cicatrizes nas costas,
pedi que fosse Layla a fazer a massagem.
O ritual de pintura dos pés e das mãos com as
tatuagens de henna para atrair sorte e fertilidade foi um
momento alegre entre as mulheres. Acabei por me divertir mais
do que pensei, principalmente com Sabirah. Apesar de ela
estar cursando Direito em Londres, veio especialmente para o
casamento. Como só as mulheres solteiras podiam aplicar a
henna na noiva, foi ela quem liderou o ritual.
Seguindo o costume da nossa cultura, não vi mais o
Yusuf até o momento em que ficamos diante do sacerdote. Ele
estava lindo com a vestimenta tradicional, mas o rosto
permanecia tão sério quanto no dia em que nos encontramos
no majlis do Sheik Rashid e fomos confrontados com a
exigência do meu tio para que eu retornasse à Sadiz. Yusuf
exalava revolta e raiva naquele dia com a imposição do
casamento e cheguei a vacilar na hora de dizer que podiam dar
andamento à cerimônia.
Na hora, o medo de ser obrigada a voltar para Sadiz
me fez aceitar, mas depois, sozinha no meu quarto, duvidei da
minha decisão. Pela reação negativa de Yusuf diante do pai,
ele provavelmente havia mesmo desistido de se casar comigo
depois da conversa com a doutora Bushra. Quando aceitei o
casamento, nem me lembrei daquele detalhe, mas depois
pensei bem e vi que era uma possibilidade. Uma grande
possibilidade.
Não tive outra opção além de seguir em frente com o
casamento. Era para ser um dia feliz, e até que foi, mas só
durante o tempo em que fiquei com as mulheres. Quando entrei
no local da cerimônia e vi a fisionomia séria de Yusuf, senti logo
um baque no coração. Ficou muito claro para mim que ele não
estava feliz.
Apenas na hora de dizer os votos de casamento foi que
ele se pareceu com o antigo Yusuf que eu conhecia.
— Aceito Malika bint Abdullah bin Zayed Al Kabeer
como minha esposa. Ela permanece para sempre sob os meus
cuidados e a minha proteção.
O olhar estava profundo quando proferiu aquelas
palavras e as mãos apertaram as minhas em um gesto
confortador, como se ele quisesse reforçar o que havia
acabado de dizer.
Fosse o que fosse que estivesse acontecendo dentro
do íntimo dele, não havia mais como voltar atrás. O casamento
estava oficializado e a comemoração de todos os presentes foi
grande. Não pude deixar de sorrir diante da alegria dos
familiares e dos convidados, que atiraram confetes e moedas
depois que o sacerdote nos declarou casados.

Agora que eu era a esposa de Yusuf, teria de morar


com ele em Taj, na Ala do Guepardo. Todas as minhas coisas
já haviam sido transferidas para lá e tentei não deixar
transparecer o quanto fiquei apreensiva com aquela mudança.
Consegui enganar a todo mundo, menos a ele. Yusuf notou o
meu estado de espírito assim que os guardas fecharam as
portas duplas que davam acesso à entrada da suíte real e
ficamos sozinhos.
— Não fique receosa com nada — ele disse, ao me
acompanhar pelo terraço elegantemente decorado que
antecedia aos cômodos. — Terá o seu próprio quarto e
aposentos privativos. Continuará tão segura aqui quanto estava
na ala do meu irmão.
— Também tem acomodações para Layla?
Os últimos dias haviam sido tão emocionalmente
intensos e desgastantes que me esqueci de verificar aquilo. Só
esperava que a enfermeira estivesse ali me aguardando.
— Quando voltarmos da lua de mel, Layla poderá vir
aqui sempre que você quiser, mas se preferir que ela se mude
para cá, é só dizer. Falarei com Saqr para que ela fique à sua
disposição, já que Kismet também tem as babás que a ajudam
com as crianças.
Eu não esperava por aquela resposta, mas depois me
lembrei que estávamos oficialmente em lua de mel, ocasião em
que os noivos ficavam sozinhos para iniciar a vida conjugal.
Farah já havia me informado sobre os planos da lua de
mel. Passaríamos apenas aquela noite em Taj e viajaríamos no
dia seguinte para Intisaar110, onde ela me informou que Yusuf
tinha um palácio. Seria estranho pedir que Layla viesse
naquele mesmo instante. Ainda assim, saber que não teria a
enfermeira comigo caso precisasse dela à noite, deixou-me
duplamente apreensiva.
— Posso então pedir que ela se mude para cá assim
que for aceitável? Pode ser depois da lua de mel.
Yusuf permaneceu com a fisionomia inalterável, mas o
olhar ficou mais sério.
— Verei isso, fique tranquila. Vou mostrar os seus
aposentos.
Acompanhei-o em uma visita rápida pelos cômodos da
ala que lhe pertencia, muito parecida com a de Saqr, só que
com uma decoração menos formal. Fui surpreendida pela
modernidade do local, diferente de tudo o que havia em Taj.
Yusuf me mostrou todas as dependências, exceto o
próprio quarto e os aposentos privativos que usava. Quando
terminou, parou do lado de fora do meu quarto e se despediu
de uma maneira muito formal.
— Tesbahi al khair111, Malika.
— U inta bkhair112, Yusuf — respondi, observando-o se
virar e ir embora, desaparecendo pelos corredores da ala.
Suspirei, entrando no meu quarto e fechando a porta.
Antes de me deitar, ajoelhei-me sobre o tapete de orações.
— Dai-me forças para esta nova vida como esposa de
Yusuf, misericordioso Allah. Que nós dois possamos ser felizes
juntos, apesar de tudo.

Prisão de Thueban — Sadiz


Quando a quinta chicotada foi desferida, gritei de dor.
Chorando e quase perdendo novamente a consciência, pelo
menos me senti aliviada por saber que tinha acabado.
Os golpes do chicote nas minhas costas doeram muito
mais naquela segunda sessão de tortura do que na primeira,
mesmo tendo se passado um mês. Eu desconfiava que a
cicatrização das feridas não havia sido suficiente para aguentar
mais açoites, ou então a minha debilidade física estava
aumentando, o que também era preocupante.
Agarrada às algemas, permaneci de olhos fechados,
sem querer abri-los e ver Hisham parado à minha frente. Igual
à vez anterior, ele estava presente, os olhos nojentos presos
aos meus seios nus.
Fiquei aguardando que as duas guardas me soltassem
e conduzissem de volta à cela antes que ele viesse me tocar
como fez antes, mas o que aconteceu foi muito pior.
— Mais uma! — A voz odiosa ordenou e o meu corpo
tremeu quando o ouvi.
Mais uma chicotada? Eu ia morrer!
Obriguei-me a abrir os olhos e encarar o monstro à
minha frente.
— São só cinco por mês — lembrei a todos eles o que
estava escrito na minha sentença.
Ele deu aquele sorriso zombeteiro que eu abominava.
— Hoje são mais. Continuem!
O chicote estalou pela sexta vez e atingiu as minhas
costas. Desabei, ficando pendurada pelos braços, o metal das
algemas cortando a pele dos meus pulsos. Fechei os olhos,
ofegando de dor.
— Mais uma!
Eu precisava lutar pela minha vida ou aquele animal
conseguiria me matar naquele mesmo dia.
— A desobediência à uma ordem real é punida com a
morte — falei com o resto de forças que ainda tinha. — Matem-
me e levem depois o meu cadáver para o meu tio, para que
todos vocês morram também. Ou duvidam que será isso o que
vai acontecer?
Hisham tirou uma das facas do suporte que ficava na
parede atrás dele e se aproximou de mim.
— Está ficando muito corajosa, “alteza”.
A morte certa que se aproximava de mim me deu
forças para continuar lutando.
— Estou falando a verdade. Se vocês três
desobedecerem à uma ordem de Sua Majestade o Rei
Suleiman, vão morrer pela mão que hoje beijam.
Ele encostou a ponta da faca na minha garganta.
— Ainda não aprendeu que quem manda aqui sou eu?
— Peço licença por interromper mais uma vez, senhor,
mas as ordens que recebi do meu superior foram muito claras.
— Pela voz, reconheci que era a mesma mulher que falou da
vez anterior.
— Cale-se! — ele ordenou antes que ela continuasse.
— Ninguém lá fora está interessado em saber se ela levou
duas chicotadas a mais.
— Você quer é me matar!
— Não, “princesa”. Quero é torturar você. Esta é a
minha especialidade.
Com aquele sorriso odioso no rosto, ele se aproximou
de mim e soube que ia me tocar de novo.
— Mubarak ordenou que ninguém me tocasse! Vocês
três estão desobedecendo a mais uma ordem real. — Incluí as
duas guardas para que fizessem algo contra ele, que o
impedissem de alguma forma.
— Novas ordens podem ter sido dadas, alteza.
Não acreditei naquilo.
— Mubarak jamais autorizaria que você me tocasse
com suas mãos sujas, seu monstro!
No instante seguinte, Hisham desferiu um tapa no meu
rosto com as costas da mão. Aquilo era muito mais um soco do
que uma bofetada e só não caí no chão porque estava
algemada ao ferro. O mundo escureceu e desabei
pesadamente pelos braços.
Voltei à consciência com ele jogando um balde de água
fria no meu rosto, quase me afogando. Permaneci de olhos
fechados e comecei a rezar, incapaz de continuar olhando para
aquele monstro.
“Allah, que a minha morte seja tão rápida que nem
sinta dor.”
— Ela não aguenta mais por hoje, senhor — a mulher
voltou a insistir, preocupada que eu morresse. — Podemos não
conseguir reanimá-la da próxima vez.
Senti a mão nojenta dele apertar o meu seio com força
e gritei de dor. Hisham se aproximou do meu ouvido, o cheiro
asqueroso penetrando nas minhas narinas.
— Ainda ficaremos um dia sozinhos, “princesa” —
sussurrou, soltando um risinho irônico antes de se afastar. —
Levem-na!
Daquela vez as duas mulheres tiveram mesmo que me
carregar até a cela, porque as minhas pernas não me
sustentavam. Quando uma delas ou o tecido da abaya tocavam
as minhas costas, o mundo girava ao meu redor.
Nenhuma das duas falou durante o trajeto. Quando me
colocaram deitada na cama sem o capuz, ainda tive força
suficiente para falar.
— Hisham disse que vai me pegar sozinho. Vocês
sabem que ele vai me estuprar ou matar.
Elas não disseram nada, apenas saíram da cela,
trancando-a. Comecei a soluçar, desesperada.
— Alguém me ajude, por favor!
Capítulo 47
Yusuf
Depois que deixei Malika, fui dar uma volta no jardim
privativo da minha ala, precisando de um pouco de solidão para
estar em paz comigo mesmo. Os últimos dias não foram fáceis.
Além dos problemas causados pelos refugiados, pelo atentado
à bomba e por um bombista não localizado, ainda tive de lidar
com os sentimentos contraditórios e avassaladores do meu
relacionamento com Malika.
Malika, que agora era a minha esposa!
Por Allah, como eu quis que aquilo acontecesse, como
ansiei pelo momento em que ela seria definitivamente minha!
Porém, agora que havia conseguido realizar o que tanto
desejei, o que tanto sonhei, o casamento acontecia para ela
por obrigação, igual como foi o noivado.
Khara113! Que grande khara!
Sentei-me em um dos bancos e afundei a cabeça nas
mãos. Quando era que a minha vida ia voltar aos eixos? Desde
que conheci Malika que nada era como antes. Ela mudou tudo
à minha volta, inclusive a mim mesmo.
Recostei-me no banco e olhei para o céu estrelado da
madrugada, lembrando-me de como ela estava linda vestida de
noiva e do quanto a amava. Eu não havia desistido de
conquistá-la, apenas não sabia ainda como conseguir aquilo.
Só depois de conversar com a doutora Bushra foi que percebi
que desconhecia grande parte do horror que Malika tinha vivido
na prisão, mas eu ainda ia pegar o desgraçado que a
atormentou em Thueban.
Fechei os olhos, orando à Allah que me ajudasse a
conquistar a confiança dela e sermos felizes, mesmo contra
todas as probabilidades.
Fiquei cerca de uma hora no jardim antes de voltar
para dentro. No caminho, passei em frente à porta do quarto de
Malika e parei, prestando atenção para ver se ouvia algum
movimento. O silêncio me deu a certeza de que ela já dormia e
fui para o meu quarto, satisfeito. De nós dois, pelo menos que
ela tivesse paz.
No meu quarto, joguei o celular sobre a mesa de
cabeceira, tirei a roupa e fui tomar um banho antes de dormir.
Aquele havia sido um dia particularmente tenso e a única coisa
que eu queria agora era relaxar um pouco.
Quando me deitei na cama, foi com um suspiro de
alívio, mas me enganei se achava que ia conseguir pegar
rápido no sono. Saber que Malika estava no quarto ao lado me
impedia de adormecer. Durante anos, quis que ela estivesse
exatamente ali, bem pertinho de mim, e não na ala do meu
irmão. Agora que estava, a sensação era doce e amarga ao
mesmo tempo.
Fiquei olhando para o teto, mais alerta do que nunca.
Acho que ouvi o primeiro som estranho quando estava
começando a pegar no sono. Era parecido com o gemido do
vento quando passava entre as frestas de uma janela, algo que
nunca ouvi ali. Voltei a ficar alerta no instante seguinte,
prestando atenção.
O som voltou a se repetir e o identifiquei como sendo
um gemido abafado misturado com choro e me sentei
imediatamente na cama.
É a Malika!
Levantei-me e fui até a porta de comunicação entre os
dois quartos. A primeira coisa que pensei foi que ela tinha
ficado tão infeliz com o casamento a ponto de estar chorando
àquela hora da madrugada em vez de dormindo.
Aquilo era mesmo uma droga!
Dei duas leves batidas na porta, esperando chamar a
atenção dela.
— Malika, você está bem?
Ela não respondeu, mas os gemidos angustiados junto
com o choro continuaram. Bati na porta de novo, daquela vez
mais forte.
— Malika, posso entrar?
— Alguém me ajude, por favor!
Gelei quando a ouvi, aquele pedido de ajuda entrando
na minha mente e me fazendo voltar no tempo até o meu último
dia em Londres, quando ouvi aquela mesma frase nos meus
sonhos e me acordei angustiado, querendo saber de quem era.
Girei a maçaneta da porta sem esperar autorização e
entrei no quarto, pronto para aniquilar quem estivesse
ameaçando Malika. Ela havia se esquecido de apagar a luz do
quarto antes de dormir e esquadrinhei o local com um olhar
treinado. Não havia ninguém ali, apenas ela deitada na cama.
Adivinhei logo o que estava acontecendo e fui para
perto, sentando-me na cama. O meu coração se apertou no
peito ao vê-la em posição fetal sob os lençóis, chorando de
uma maneira tão sofrida que engoli duro para tirar o travo de
emoção da garganta.
Sentado de frente para o seu rosto, toquei-a
suavemente no ombro.
— Malika, acorde. É só um pesadelo.
Ela arquejou de susto e abriu os olhos, fixando-os em
mim. Fiquei impressionado ao ver como estavam vidrados de
horror.
— Calma, Malika. Você está em segurança comigo.
— Yusuf! — exclamou, ofegante, agarrando o meu
braço com força. — Ajude-me.
— Vou ajudar sempre. — Acariciei o rosto de linhas
suaves. — Agora fique calma.
— Não consigo me mexer — disse com desespero, as
lágrimas caindo. — Preciso de Layla.
Preocupei-me com o que ela disse e só então percebi o
quanto permanecia rígida sobre a cama.
— Por que não consegue se mexer? Diga-me para que
eu possa ajudá-la.
Ela chorou ainda mais.
— Layla — voltou a pedir.
— São quase três da madrugada, Malika. Posso
acordar Layla, mas me deixe primeiro tentar ajudar você. Por
que não consegue se mexer?
Ela era saudável, tinha todos os exames em dia e
ninguém nunca havia me dito que Malika tinha algum problema
para mexer o corpo. Nem a própria Layla, a quem Malika tanto
queria chamar, havia me dito algo sobre aquilo.
— Por que não consegue se mexer? — insisti na
pergunta.
— As minhas costas doem muito — sussurrou, as
mãos crispadas no meu braço.
Franzi a testa, cada vez mais preocupado.
— Você toma algum remédio para estas dores? É por
isso que quer que eu chame a Layla?
— Não tomo nada. Ela consegue tirar a dor com
massagens.
Respirei aliviado. Se não havia remédio, não era tão
grave assim.
— Posso fazer isso no lugar dela, se você permitir.
— Tenho cicatrizes — justificou em tom de desculpas.
— Eu sei que tem e não me importo com elas. Sou um
soldado e já vi mais do que cicatrizes. Agora me deixe ajudar
você.
Pensei que ela fosse negar, mas a dor devia ser
mesmo grande, porque Malika aceitou.
— Me ajude.
— Consegue se deitar de bruços?
Ela negou com um movimento de cabeça.
— Eu ajudo.
Apesar de ter chegado em Taj muito magra, Malika
havia ganhado peso e hoje tinha um corpo de formas perfeitas
e exuberantes, mas era também uma mulher pequena. Na ficha
médica que Layla havia me entregado, constava um metro e
cinquenta e sete de altura. Não precisei de esforço algum para
colocá-la de bruços sobre a cama.
— Vou apagar a luz que você deixou acesa.
Ela agarrou a minha mão com força.
— Não apague! Durmo com ela acesa.
Suspirei, entendendo. Malika tinha medo de dormir no
escuro.
— Tudo bem. Vou começar.
A camisola que ela usava era de seda branca e muito
recatada, sem decote algum, cobrindo-a totalmente do pescoço
aos pés. Eu nem ia perder tempo pedindo que a tirasse, pois
sabia que Malika jamais faria aquilo na minha frente, estivesse
sentindo dores horríveis ou não. Comecei a massagear as
costas dela por cima da camisola, mas mesmo tendo apenas
um tecido suave como barreira, senti as rugosidades das
cicatrizes sob os dedos. Eram muitas, bem mais do que pensei
a princípio, e travei uma luta interior enorme para não me
deixar dominar pela raiva à medida que as sentia.
Procurei concentrar a massagem onde achei que ela
estava mais tensa, esperando estar ajudando de alguma
maneira a que ela se sentisse melhor.
— Não me deixe sozinha depois, por favor. Fique
comigo.
— Ficarei. Agora relaxe.
Com o passar do tempo, Malika foi relaxando e logo
dormia tranquilamente. Parei a massagem e acariciei com amor
o cabelo longo que se espalhava pelo travesseiro. Ela havia
sofrido muito, mas muito mesmo. Bem mais do que muitos
homens e, ainda assim, havia sobrevivido. Malika era o melhor
exemplo de uma mulher lutadora e eu a admirava demais por
isso.
Diminuí a intensidade da luz no quarto e me deitei de
lado na cama, ficando de frente para ela, que continuava de
bruços com o rosto virado para mim. Estava linda dormindo
com o rosto relaxado. A boca que eu havia beijado apenas uma
única vez, estava entreaberta, deixando-a com uma aparência
mais frágil ainda.
Para mim, que a amava do fundo da alma, era
impossível não sentir o instinto protetor crescendo forte e
poderoso no meu peito. Aproximei-me mais e passei um braço
pela cintura delgada, aconchegando-a junto a mim o melhor
que pude. Caso ela se acordasse novamente durante a noite,
veria que não estava sozinha.
Se dependesse de mim, Malika nunca mais dormiria
sozinha de novo.
Capítulo 48
Yusuf
Acordei com o raiar do sol, visível pelas frestas da
cortina da varanda que dava para o jardim dos quartos. Malika
havia mudado de posição durante a noite, deitando-se de lado
à minha frente, com as costas coladas no meu peito. Eu ainda
a abraçava pela cintura, mas agora ela segurava o meu braço à
frente do corpo, como se precisasse ter certeza de que não
estava sozinha.
A posição era íntima e aconchegante e fechei os olhos
para aproveitar conscientemente o momento. A sensação era
de completude e inspirei fundo o aroma dos cabelos soltos, que
invadiram os meus pulmões e me inebriaram com o cheiro do
perfume dela.
Ah, Malika! Se você soubesse o quanto a amo!
Se eu já a amava antes daquela madrugada, agora
amava muito mais.
Ela se mexeu, colando-se mais em mim, e
instintivamente afastei o meu quadril para que não houvesse
contato íntimo das nádegas voluptuosos com a minha virilha. A
última coisa que eu queria naquele momento era assustá-la e
quebrar o laço de confiança que nos unia, uma confiança que
havia se fortalecido durante a madrugada.
Fechei os olhos e continuei aproveitando o prazer de
ter Malika nos meus braços. Senti o instante exato em que ela
se acordou cerca de trinta minutos depois. Inicialmente, veio a
leve tensão da surpresa de perceber que estávamos abraçados
na cama dela e que havíamos dormido juntos, mas depois
Malika relaxou visivelmente sobre colchão, aconchegando-se
mais contra mim. A mão que segurava o meu braço apertou-o
mais contra o próprio corpo e o meu coração disparou no peito
ao entender que ela estava gostando de me ter ao seu lado na
cama.
Aquela aceitação foi importante demais para mim, tanto
quanto era para Malika. Partilharmos a mesma cama era um
passo significativo para o nosso casamento.
Apesar de saber que estava me arriscando muito, ousei
ir mais longe. Usei o braço com que a envolvia pela cintura
para atrair o corpo dela, fazendo com que ficasse mais colada
em mim, porém, mantendo a virilha afastada. Como eu era bem
maior do que ela, não havia perigo de contato sexual. Coloquei
o meu outro braço por baixo da cabeça dela, que Malika usou
como travesseiro sem questionar. Inclinei-me sobre o seu
corpo, mantendo-a protegida no casulo dos meus braços.
Aguardei para ver a reação dela e me emocionei ao
comprovar que não se afastou de mim. Ao contrário,
aconchegou-se mais. C0mo eu vestia um pijama completo, não
havia contato pele a pele, exceto pelas nossas mãos.
A nossa noite de núpcias tinha sido diferente de tudo o
que imaginei e nunca me senti tão feliz quanto naquele
momento.
Ficamos na mesma posição por um tempo indefinido,
mas o suficiente para a luminosidade do sol avançar pelo
quarto e competir com a luz da lâmpada ainda acesa.
— Sabah al nur114, Yusuf — ela disse de repente.
— Sabah al nur, Malika.
— Queria agradecer por ter me ajudado ontem à noite.
Shukran.
Virei-a de frente para mim e nos olhamos pela primeira
vez depois dos momentos de maior intimidade que já tivemos
desde que nos conhecíamos. Fixei os olhos amendoados e
fiquei satisfeito ao ver que não refletiam o medo absurdo que vi
de madrugada.
— Não precisa me agradecer. Gostaria apenas de ter
ajudado você há mais tempo. — Aproveitei a oportunidade para
saber mais sobre o que acontecia com ela. — Você sempre
teve esses pesadelos ou começaram depois da prisão?
— Depois.
Era uma resposta simples, mas que confirmava as
minhas suspeitas. Malika ainda tinha as crises pós-traumáticas,
mesmo tendo se passado tanto tempo.
— E a dor nas costas? Você nunca reclamou de nada
quando estava comigo.
— Às vezes me incomodam durante o dia, mas são
muito leves, apenas um desconforto. Layla sempre me ajuda
com as massagens.
Ela estava tentando minimizar a situação.
— A dor que você sentiu de madrugada parecia ser
insuportável e não um leve desconforto. Já fez exames para
saber do que se trata?
Ela sorriu, mas senti que era um sorriso para me
tranquilizar.
— Fiz e está tudo bem comigo, Yusuf. Não se
preocupe.
Achei melhor não insistir ou acabaria deixando Malika
na defensiva, arriscando que se afastasse de mim. Eu não
queria mais nenhum tipo de distanciamento entre nós dois e
decidi que conversaria com Layla depois.
Acariciei o rosto de Malika, dando um beijo em sua
testa.
— Vou para o meu quarto agora e deixar você à
vontade sozinha, mas antes queria pedir que passasse a
dormir comigo daqui para a frente. Em vez de trazer Layla para
dividir o quanto com você, divida a mesma cama comigo e
permita que seja eu a ajudá-la com os pesadelos. — Malika
prendeu a respiração, surpreendida com o meu pedido, mas eu
estava determinado a convencê-la a aceitar. — Confie em mim.
Antes de ter passado a ser o seu marido, eu já era o seu
melhor amigo, o homem que a amava em silêncio, que sempre
a respeitou e protegeu.
Ela baixou a vista ao ouvir as minhas últimas palavras,
depois voltou a me olhar com decisão.
— Você mudou depois da conversa com a doutora
Bushra.
— Eu não mudei, nem o que sinto por você também
mudou. Ao contrário, o meu amor ficou mais forte — declarei-
me com firmeza, observando a surpresa refletida nos olhos
amendoados. — Tentei falar com você no mesmo dia para dizer
exatamente isso, mas você se negou a me atender.
— Não foi isso o que vi no majlis do seu pai, Yusuf.
Você ficou furioso com a obrigação do casamento.
— Claro que fiquei! Era importante para mim que você
aceitasse se casar comigo por amor e não por estar sendo
mais uma vez forçada a se submeter a um compromisso que
não queria por medo de voltar à Sadiz — esclareci,
determinado a não deixar dúvidas sobre os meus sentimentos
por ela. — Nada do que a doutora Bushra me contou diminuiu o
que sinto por você. O meu amor é o mesmo, se não mais forte
do que antes, e jamais faria algo que a magoasse. Queria
apenas ter conversado com você a sós e ter ouvido da sua
boca que aceitava o meu pedido de casamento. Como queria
que eu reagisse ao vê-la sendo forçada a se casar comigo?
— Fui forçada, mas aceitei porque amo você. Eu teria
negado se o noivo fosse qualquer outro homem, Yusuf. — A
voz suave era também firme e a expressão do olhar era um
reflexo das palavras, que me fizeram engolir em seco diante do
amor que vi. — Sei que você nunca me magoaria e que me
ama, mas eu não queria me casar e ser uma esposa que você
nunca poderia tocar como deseja. Mesmo sendo um
casamento imposto pelo seu pai, eu continuaria amando você
para sempre.
Fiquei emudecido de emoção ao ouvi-la falar tão
profundamente do amor que sentia por mim. Senti vontade de
tomar aqueles lábios rosados em um beijo voraz e mostrar para
ela o quanto de prazer podia sentir nos meus braços.
Sem poder realizar o meu desejo, consolei-me em dar
um beijo casto nos lábios dela.
— Ana bhebik115 — declarei-me.
— Ana bhebak116 — ela se declarou também.
Trocamos um olhar apaixonado que me deixou mais
determinado ainda em fazer com que Malika mudasse de ideia
com o tempo, permitindo que houvesse contato físico e sexual
entre nós. O primeiro passo era convencê-la a dividirmos a
mesma cama.
— Podemos dormir juntos todas as noites?
Aguardei a resposta dela com a respiração em
suspenso.
— Sim, podemos.
Soltei o ar que prendia, agradecendo à Allah pela
intervenção.
— Dormiremos no meu quarto. — Ela não contestou e
decidi que já podia ir. — Aguardo você na sala para tomarmos
o café da manhã juntos e nos prepararmos para a viagem. Não
tenha pressa.
Levantei-me e saí do quarto, fechando a porta de
comunicação para lhe dar privacidade. Recostei-me contra ela
e fechei os olhos, inspirando profundamente.
Consegui um primeiro passo.

Aproveitei o tempo que Malika demoraria para se


arrumar e liguei para Layla. Eu não ia aguardar nem mais um
minuto para tirar todas as dúvidas que tinha sobre o que havia
acontecido naquela madrugada.
— Você já tinha me falado dos pesadelos de Malika,
mas nunca me falou das fortes dores que ela sente nas costas.
— Tentei que o meu tom de voz não soasse reprovador. — Já
fizeram todos os exames necessários para descobrir do que se
trata?
— Peço desculpas por nunca ter comentado nada,
alteza. Só não o fiz porque a princesa não tem nenhum
problema de saúde que ocasione estas dores. Se tivesse, eu
teria informado à vossa alteza — ela esclareceu.
Franzi a testa, achando aquilo muito estranho.
— E qual o diagnóstico que encontraram para as dores
que ela sente? Entendo que se há dor, há uma causa que deve
ser investigada.
— A princesa teve a primeira dessas crises quando
ainda estava internada no hospital, logo após o resgate. Teve
um pesadelo e acordou gritando, queixando-se de fortes dores
nas costas. A enfermeira que estava de plantão teve
dificuldades para impedir que ela arrancasse os fios do soro e
dos aparelhos que a monitoravam. De lá para cá, investigamos
a fundo e não encontramos nada. O diagnóstico final que a
doutora Bushra me apresentou foi de dor psicológica,
desencadeada pelas lembranças traumáticas do pesadelo.
Comprimi os lábios, passando a mão na barba.
— Mas Malika me disse que também sente dor e
desconforto nas costas durante o dia, não apenas quando tem
pesadelos. Talvez uma coisa leve à outra.
— Sim, ela já falou isso para mim, mas esta dor leve e
desconfortável tem a ver com a profundidade das lesões na
pele, que tiveram uma má cicatrização e criaram esta sensação
de repuxo entre uma cicatriz e outra. Quando a princesa fica
muito tensa, os nódulos dos músculos causam dor e daí vem o
desconforto, mas não é nada que inspire preocupação. A dor
insuportável que ela diz sentir após os pesadelos sempre foi a
que nos preocupou.
— Então é psicológica?
— É psicológica, mas não quer dizer que não exista,
alteza. A dor pode ocorrer mesmo que a ferida que a causou já
tenha cicatrizado. Seria algo parecido, mas não igual, à dor
fantasma que os amputados sentem, como se o membro que
perdeu ainda existisse e doesse. No caso da princesa, as
lesões do chicote fecharam, mas a dor que ela sentiu ao ser
chicoteada ainda existe, como se a ferida permanecesse aberta
e sangrando.
A comparação com a dor fantasma me esclareceu
melhor a situação de Malika. Amputações entre militares das
forças armadas não era algo tão raro assim de acontecer.
— A princesa realmente sente a dor insuportável da
qual se queixa, mas é a dor que sentiu na ocasião da tortura —
Layla continuou explicando. — A mente a transporta para lá e a
mantém refém daquele momento. Mesmo depois de ser
acordada do pesadelo, ainda vai sentir a mesma dor. É como
se o desconforto ocasional que sentisse nas costas se
transformasse de uma hora para outra em uma dor aguda e
insuportável. Até que consiga relaxar os músculos tensos, a
situação permanece. Normalmente coloco uma música
relaxante, faço as massagens e aplico algumas técnicas de
meditação. Funciona bastante com ela.
— Sim, comprovei isso ontem — comentei, satisfeito
com as informações de Layla. — Já conversamos antes sobre
os pesadelos de Malika e você me disse na ocasião que
existiam gatilhos que os desencadeavam. Este de ontem foi o
primeiro depois de muito tempo ou teve outros antes?
— Ela passou cerca de um ano sem pesadelos como
estes. Voltou a ter depois do atentado à bomba em Azra.
— Shukran, Layla. É o suficiente por hoje. Se eu
precisar de mais alguma coisa, voltarei a ligar.
— Estou à disposição, alteza.
Capítulo 49
Yusuf
— A viagem demora quanto tempo? — Malika
perguntou quando me sentei na direção do SUV.
Liguei-o e começamos a sair de Taj, sendo seguidos
pelos dois carros da escolta que ia fazer a nossa segurança até
Intisaar.
— Quando vou sozinho faço em menos de uma hora,
mas o tempo normal é uma hora e meia. — Senti o olhar
preocupado dela e comecei a rir. — Não se preocupe. Hoje
faremos no tempo normal.
— Não é perigoso ir tão rápido?
— Não, desde que se tenha habilidade na direção e um
carro seguro. A estrada é quase em linha reta e isso facilita
muito.
— De nós dois, já percebi que sou a mais prudente na
direção.
Malika era uma mulher espirituosa, o que me atraía
muito nela. Eu gostava da maneira como me provocava,
deixando vir à tona o lado extrovertido de sua personalidade.
— Se a minha mãe estivesse aqui agora, ia dizer que
alguém tinha que colocar juízo na minha cabeça e que
encontrei a mulher certa para fazer isso — comentei
casualmente.
Senti o olhar de Malika sobre mim, mas fingi estar
concentrado no trânsito.
— Você também acha isso? — perguntou e só então
olhei para ela.
— Acho, e você?
— Pensei que eu tirasse o seu juízo, e não que
colocasse.
Trocamos um olhar e começamos a rir. Definitivamente,
Malika estava de muito bom humor naquele dia.
A viagem demorou bem mais do que uma hora e meia,
um verdadeiro recorde de lentidão para mim. O tempo na
companhia de Malika passava que eu nem sentia. Com ela ao
meu lado, também não sentia pressa alguma de chegar.
Quando os portões de Noor117 se abriram, Malika olhou
com admiração para a estrutura do prédio.
— Eu achava que tinha a aparência de um palácio
tradicional, mas é bem moderno.
— Vivo em um palácio a maior parte do tempo. Quis ter
um lugar diferente e mais moderno para me refugiar de vez em
quando.
— MashAllah118! É lindo, Yusuf!
Surpreendi-me que ela realmente tivesse gostado.
— Gostou mesmo? Fui chamado de excêntrico por
causa de Noor.
— Ah, mas eu adorei.
Desliguei o carro no pátio em frente à entrada principal.
— Uma das coisas que mais gosto de fazer quando
estou aqui é cavalgar na praia.
— Ah, não me diga que tem uma praia e cavalos aqui!
Ninguém me contou isso.
Os olhos amendoados brilhavam de prazer e o sorriso
expansivo tornava as feições dela ainda mais encantadoras.
Lembrei-me que Sadiz era um país no interior do continente,
sem nenhum contato com o mar. Malika possivelmente nunca
tinha visto uma praia.
— Já esteve em alguma praia antes?
— Não, nunca.
— Temos quilômetros de uma praia particular. Também
mandei construir um haras na propriedade e trouxe alguns
cavalos para cá. Você sabe montar?
— Sempre cavalguei na nossa casa de férias em
Sadiz. Kismet me acompanhava e nos divertíamos muito.
— Gostaria de cavalgar comigo na praia?
Ela entreabriu a boca em um gesto de surpresa e
felicidade, o olhar refletindo prazer e emoção.
— Sim, quero muito!
— Então se prepare para montar depois da Salat
Zhur119.
Foi exatamente o que fizemos horas depois e me senti
feliz por proporcionar aqueles momentos relaxantes para
Malika depois de toda a tensão dos últimos dias. Além do
atentado, houve também a pressão do casamento e os
pesadelos da madrugada. Apesar de tudo aquilo, ela agora
sorria em cima de uma égua castanha, que controlava com
habilidade.
Cavalgamos até a praia, que se descortinou à nossa
frente em um imenso mar azul.
— Isso aqui é o paraíso, Yusuf! Que lugar mais lindo.
— E é todo nosso! — Fiz o meu garanhão descer até a
areia e olhei para trás, admirando o porte elegante de Malika
sobre a égua, os seios altos se destacando sob a túnica com
calça que ela usava. — O que está esperando? Yalla120!
Ela veio atrás de mim e logo estávamos galopando na
areia, sentindo no rosto o vento e os respingos de água do mar
que as patas dos cavalos levantavam. Mesmo totalmente
molhados, ríamos enquanto aproveitávamos o momento.
Eu já havia cavalgado naquela praia de Noor muitas
vezes, mas nenhuma delas me deu tanto prazer nem me trouxe
tanta paz quanto aquela. A presença de Malika fazia uma
diferença enorme na minha vida.
A praia terminava em um amontoado de rochas que
impediam a passagem por terra para o outro lado e
interrompemos o galope.
— Vamos caminhar um pouco, assim você tem contato
com o mar e com a areia — sugeri.
Desmontamos e começamos a caminhar lado a lado
pela areia fina, cada um segurando a rédea do seu cavalo.
— Sinto-me tão livre aqui. Tão livre! — ela exclamou
com alegria, os olhos brilhando de felicidade.
Eu imaginava o quanto de liberdade ela devia estar
sentindo naquela praia, ainda mais para alguém que havia
ficado aprisionada entre as quatro paredes de uma cela.
— Esse lugar sempre foi especial para mim.
Só então me virei para Malika e fiquei abalado com o
que vi.
Igual a mim, ela estava molhada da cabeça aos pés. A
túnica bege de tecido leve havia grudado no corpo, tornando-se
transparente e me deixando ver o contorno dos seios fartos,
que se destacavam ainda mais com a cintura fina. Malika usava
um sutiã recatado, mas que não diminuía o apelo erótico do
tamanho dos seios nem os escondiam totalmente. A curva
voluptuosa dos quadris completava a imagem tentadora, que
fez o meu sangue arder de desejo.
Quando a vi pela primeira vez no deserto de Namur,
após a fuga de Thueban, tão magra e desnutrida, jamais pensei
que o corpo dela em condições normais fosse tão
irresistivelmente sedutor.
Sem ter noção alguma do quanto a roupa molhada
revelava do próprio corpo, Malika continuou conversando
normalmente comigo, enquanto eu evitava olhar para qualquer
ponto abaixo do queixo dela ou ficaria visivelmente excitado.
Allah, vou enlouquecer de paixão por essa mulher!
Eu estava tão concentrado em controlar o meu desejo,
que fui pego de surpresa quando ela voltou a montar com
agilidade.
— Yalla121, Yusuf! — chamou-me, fazendo a égua trotar
pela praia.
Fiquei apalermado, observando-a se afastar com o
longo cabelo castanho agitando-se ao sabor do vento. Há muito
tempo que ela havia tirado o hijab e o amarrado na cela, para
que não caísse durante o galope.
Malika se virou para trás quando sentiu a minha falta
ao lado dela, vendo-me ainda parado. Puxou a rédea e parou,
voltando para onde eu estava, os seios balançando no ritmo do
trote da égua. Os cabelos também estavam molhados da água
do mar e assanhados pelo vento da cavalgada, deixando-a
com a aparência de uma amazona selvagem, que o meu lado
guerreiro queria conquistar, dominar e possuir.
Fiz um esforço sobre-humano para não deixar
transparecer o desejo que me consumia quando ela se
aproximou de mim.
— Você não vem? — perguntou com a testa franzida.
— Vou — reagi, montando e indo para perto dela.
Cavalgamos até a saída da praia e seguimos para
casa, tempo em que tentei por tudo controlar o que estava
sentindo. Quando chegamos perto do estábulo, verifiquei se a
túnica dela ainda estava muito úmida e percebi que não havia
outro jeito além de falar o óbvio. Junto com os cabelos soltos e
sensualmente despenteados pelo vento, Malika despertaria o
desejo de qualquer homem. Não havia chance alguma de eu
deixar que ela entrasse pelas dependências da propriedade e
fosse vista pelos funcionários com aquela aparência.
Aproximei o garanhão da égua e segurei a rédea das
mãos de Malika, fazendo-a parar. Ela olhou para mim sem
entender nada.
Apontei para o hijab preso à cela.
— Coloque-o e tente cobrir os seios também.
Ela olhou para baixo e só então se deu conta de como
estava. Instintivamente, cruzou os braços na frente dos seios,
ficando vermelha de vergonha, mas depois começou a
desamarrar o hijab da cela com rapidez.
— Está todo molhado e é muito fino — disse com
aflição, tentando espremer a água. — Não vai dar certo.
— Me dê — pedi, estendendo a mão.
Ela me entregou e espremi eu mesmo, tirando o
máximo de água que pude. Parei quando vi que corria o risco
de rasgar o tecido.
— Tente agora.
Ela pegou, colocando-o com habilidade e cobrindo os
cabelos, mas deixou as duas pontas soltas sobre os seios.
— Consegui?
Fui obrigado a olhar, mas o fiz com o máximo de
discrição. Incrivelmente, apesar de ainda úmido, o tecido do
hijab cobriu adequadamente os seios.
— Conseguiu, fique tranquila.
Entreguei a rédea para ela e continuamos a caminho
do estábulo. Assim que nos aproximamos, mudei a direção
para onde o SUV estava estacionado.
— É melhor que fique logo no carro. Eu levo os cavalos
ao estábulo.
Assim que chegamos ao lado do SUV, segurei a rédea
da égua enquanto Malika desmontava. Tirei a chave do bolso e
lhe entreguei.
— Pode ir me pegar lá?
— Sim, posso.
Malika se aproximou do meu cavalo e pegou a chave,
mas segurou a minha mão junto. Surpreso, fixei os olhos
amendoados e fui atingido por uma avalanche de emoções.
Havia gratidão e confiança na expressão daquele olhar, mas o
sentimento maior era o amor. Um amor profundo que me tocou
mais fundo ainda no coração.
Inclinei-me na sela e beijei a mão delicada. Quando
ergui o corpo, nos envolvemos em um olhar apaixonado.
— Consegue ajustar sozinha o meu banco?
— Consigo.
— Então, vá.
Ela assentiu e foi para carro. Só quando Malika entrou
foi que instiguei o garanhão a seguir para o estábulo, levando a
égua pela rédea.
Quando saí de lá minutos depois, o SUV já estava me
aguardando com Malika ainda na direção. Ela fez um
movimento para se sentar no banco do passageiro, mas neguei
com um gesto de mão, indo eu mesmo para lá. Malika gostava
de dirigir e eu sentia prazer em vê-la feliz.
O leve sorriso que ela deu já foi o suficiente para mim.
Voltamos para a mansão em um clima de cumplicidade e assim
foi o dia inteiro. Quanto mais tempo passávamos juntos em
Noor, mas nos aproximávamos um do outro.
Capítulo 50
Yusuf
Jantamos no terraço privativo da cobertura da suíte,
onde a governanta providenciou um verdadeiro banquete de
recém-casados. Olhamos com gula para tudo aquilo antes de
nos acomodarmos nas almofadas sobre o tapete estendido no
chão.
— O meu estômago até roncou agora — admiti,
inspirando fundo o cheiro apetitoso que emanava dos pratos.
— Eu não ouvi o seu estômago, porque estava
escutando o meu — ela brincou e começamos a nos servir.
Só quando saciamos a fome mais imediata foi que
voltamos a conversar.
— Nunca pensei que fosse sentir tanta fome depois de
um passeio a cavalo — ela comentou, olhando para mim e
rindo muito ao me ver levando mais uma garfada à boca. —
Você também parece esfomeado.
— Não nego — admiti, deliciando-me com o sabor da
comida. — O clima da praia tem esse efeito sobre mim.
Malika riu ainda mais.
— Ah, sei.
— Estou falando a sério.
— Observo você nos jantares em família. Sei que come
sempre bem e muito.
Ela nem percebeu o quanto havia se entregado com
aquele comentário.
— Anda prestando atenção na minha dieta alimentar
desde quando?
Malika fez uma careta engraçada de quem havia sido
pega em flagrante, o que a deixou mais adorável ainda.
— Há tempo suficiente para comprovar a minha teoria.
Não é só a praia que estimula o seu apetite.
Se ela soubesse que a minha fome maior não era de
comida, mas dela, nem teria tocado naquele assunto.
— Sou um homem grande e preciso de grandes
quantidades de comida.
Ela voltou a rir, meneando a cabeça. Peguei o meu
jellab122 e ergui à frente dela.
— Um brinde a nós e ao nosso casamento.
Malika pegou o próprio copo e juntou ao meu,
irradiando uma felicidade que aqueceu o meu peito. Aquele era
um passo promissor. Significava que ela se entregava ao
casamento, sem reservas ou objeções. Agora só faltava se
entregar a mim.
— À nós e ao nosso casamento — ela brindou,
tomando um gole da bebida e me lançando aquele olhar da cor
das tâmaras que retorcia as minhas entranhas de paixão.
Depois que terminamos de jantar, passamos cerca de
duas horas conversando sobre como era a nossa vida antes de
nos conhecermos. Descobri por acaso que Malika dava aulas
de dança do ventre para Kismet e quase não acreditei.
— Em Sadiz a vida de uma mulher é muito restritiva.
Passávamos grande parte do tempo na ala feminina. Não
tínhamos autorização para sair, exceto se um guardião
estivesse ao nosso lado, e nem sempre os meus irmãos
estavam dispostos a isso.
— Imagino que o único momento de liberdade era
quando iam à escola.
— E mesmo assim ficávamos isoladas em classes só
de meninas. Quando estávamos em casa, tínhamos que
encontrar alguma distração além dos estudos e nos
divertíamos muito dançando.
— Dançando? — estranhei. — Davam festas, é isso?
Malika riu, colocando atrás da orelha uma mecha dos
cabelos castanhos soltos soprados pelo vento.
— Não eram festas, mas aulas de dança do ventre. Eu
ensinava à Kismet e nós duas nos divertíamos muito.
A minha cara de incredulidade devia estar muito
cômica, porque Malika caiu na risada.
— Você parece chocado.
— E estou mesmo — admiti, tentando tirar da minha
mente a imagem arrebatadora que devia ser Malika ondulando
aquele corpo com uma dança do ventre. — Você era a
professora de Kismet?
— Isso mesmo.
— E com quem aprendeu a dançar?
Ela fez cara de quem ia contar um segredo e achei
aquilo mais sedutor ainda.
— Burlamos a vigilância da nossa mãe e conseguimos
que uma dançarina de verdade entrasse no palácio para nos
ensinar. Quem conseguiu este feito heroico foi a Aysla, uma de
minhas irmãs mais velhas. As aulas eram muito divertidas e
Nadi, a professora, disse que eu tinha muito talento assim que
me viu repetir os passos que ela ensinava — Malika contou,
sem desconfiar do alvoroço que estava causando nas minhas
fantasias com aquelas confidências. — As aulas eram muito
divertidas, até que a minha mãe descobriu e acabou com tudo.
Aysla levou uma séria reprimenda e ficou sem sair de casa
durante meses. Só voltou a sair no dia do casamento que
arranjaram para ela com um homem de setenta e dois anos.
Aquela era uma atitude esperada da família de Malika,
que nem me surpreendeu.
— Foi um castigo muito duro por algo tão bobo. Jamais
faríamos isso com Sabirah. E olhe que a minha irmã mais nova
é cheia de vontades.
— Também achei um absurdo. Fiquei revoltada na
época e Kismet ficou enojada com o noivo que arranjaram para
Aysla, mas nada pudemos fazer para impedir o casamento.
Ela se calou e o olhar entristeceu, provavelmente se
lembrando do triste destino da irmã mais velha.
— Com o fim das aulas com a dançarina profissional,
você então passou a ser a professora de Kismet — deduzi o
óbvio, querendo que ela voltasse a ficar feliz como estava
antes.
Deu certo, porque Malika sorriu e os olhos voltaram a
brilhar.
— Nós duas nos divertíamos muito. Montamos nossas
próprias roupas e dançávamos até cansar. Imagine você que
fazíamos competição para ver quem aguentava mais tempo.
— E quem ganhava?
— A Kismet, claro! Ela tinha uma resistência
impressionante se comparada com a minha. — Riu de si
mesma e depois olhou para mim com curiosidade. — E você,
tem algo que fazia quando era mais jovem e que gostava
muito?
— Você falou agora como se fôssemos dois idosos
conversando sobre a juventude. — Caí na risada e ela me
acompanhou, rindo até encher os olhos d’água.
— É verdade! Surtei agora. — Limpou o rosto, ainda
rindo. — Mas não fuja da pergunta. O que mais gostava de
fazer?
— Luta, aventura, perigo e ação — contei, achando
graça da expressão de espanto que ela fez. — Acho que sou
culpado por muitos dos cabelos brancos que a minha mãe tem
hoje.
— Quem está chocada agora sou eu. Acho tão
estranho alguém gostar de estar em perigo.
— Não é bem o perigo, mas a adrenalina. Sinto-me
vivo e gosto de vencer desafios, de superar a mim mesmo.
Sempre fui rápido nas competições, acumulando troféus e
medalhas. Acho que o meu avô era mesmo uma espécie de
adivinho. Ele dizia que eu era veloz como um guepardo e o
apelido pegou. Nunca me esqueço da emoção que senti ao
pular de paraquedas pela primeira vez. Foi uma sensação
incrível.
A expressão de Malika era cada vez mais chocada.
— Me solidarizo com Farah. Não gostaria nada de ter
um filho arriscando a vida. Pelo que vejo, você era o filho
rebelde.
— Em parte, sim. Apesar das dores de cabeça que dei
por causa do meu gosto por lutas, esportes radicais e missões
secretas, foi o Majdan quem ficou com o título de filho rebelde.
Ele deu muito mais preocupações do que eu. De nós três, Saqr
sempre foi o mais sério e sensato.
— E o Jamal? Ele passa tão pouco tempo em Taj que
nem tenho uma opinião formada sobre ele.
Sorri ao me lembrar do meu irmão mais novo que
estava terminando os estudos em Londres.
— Jamal é o nerd da família. Calado, inteligente,
focado nos estudos e avesso a festas e diversões. Ele nunca
deu nem vai dar dor de cabeça aos meus pais.
Recostada de lado sobre as almofadas, Malika
sustentava a cabeça em um dos braços, prestando atenção ao
que eu falava. Estava linda e admirei a mulher que agora era a
minha esposa e que eu amava há anos.
— Quando foi mesmo que você prometeu que ia
dançar para mim? — perguntei, fingindo que ela havia
prometido que dançaria.
Malika abriu muito os olhos de surpresa, depois riu,
mas foi um riso envergonhado.
— Você não é apenas um homem que gosta de perigo.
É também perigoso. Eu não prometi que ia dançar.
Ergui os ombros com descaso.
— Eu não me importaria em fazer uma demonstração
de artes marciais para você. Sou faixa preta em karatê.
Malika voltou a rir.
— Fico muito orgulhosa do meu marido, mas não vou
dançar para ele.
Gostei da maneira natural com que ela me chamou de
marido.
Aos poucos chego lá.
— O que preciso fazer para você dançar para mim? —
perguntei, prendendo o olhar dela.
— Não há nada que você possa fazer, Yusuf.
Ficamos nos olhando em silêncio por longos instantes.
Semideitados sobre as almofadas, estávamos perto o suficiente
para eu não resistir à tentação de provar novamente os lábios
de Malika. Segurei o rosto dela com uma mão e me inclinei,
beijando a boca macia com um longo suspiro de prazer. Ela
não se afastou, deixando-se beijar.
O meu desejo era forte, premente, duro, mas o
controlei com firmeza, limitando-me a saborear os lábios da
minha mulher. Minha mulher, minha esposa, minha Malika.
Ela se deitou sobre as almofadas sem nem perceber o
que estava fazendo e ergui o corpo sobre o dela, aprofundando
o beijo. Invadi a boca macia, úmida, deliciosa, imaginando que
fazia o mesmo com o sexo molhado de prazer que eu tanto
desejava tocar, mas não podia. Mantive o meu corpo suspenso
sobre o dela, sem contato físico algum além de nossas bocas.
Só quando ela soltou um gemido de prazer foi que baixei o meu
peito sobre os seios fartos. Era o sinal que eu precisava e não
hesitei em tentar uma intimidade maior.
Malika havia recuado quando fiz o mesmo no primeiro
beijo em Taj e rezei para que daquela vez não fizesse igual.
Ela não fez, mas ficou tensa, o corpo enrijecendo
visivelmente.
— Confie em mim — grunhi nos lábios dela.
Não me afastei como fiz da vez anterior nem interrompi
o beijo. Segui em frente, admirado com a ânsia que sentia de
provar cada vez mais aqueles lábios de sabor único. O que eu
sentia por Malika estava fora até da minha própria
compreensão.
Extasiado, saí beijando cada pedaço do rosto dela. A
boca, as faces rosadas, os olhos com aquela cor que me
encantava, as sobrancelhas arqueadas, a testa lisa. Nada ficou
de fora.
— Beije-me também, Malika. Toque-me — murmurei no
ouvido dela, beijando o lóbulo pequenino de sua orelha e
ficando satisfeito ao ouvir o arquejo de prazer que ela soltou. —
Se acostume com o meu corpo em contato com o seu. Toque
em mim também. Me abrace.
Não tive a certeza se ela ia atender ao meu pedido,
mas Malika não me decepcionou. Foi com hesitação e
insegurança que as mãos pousaram sobre os meus bíceps,
depois deslizaram para os ombros, os braços femininos
envolvendo o meu pescoço e me abraçando, finalmente.
Aquele era o máximo de intimidade que eu já havia conseguido
ter com Malika e estremeci de prazer ao me sentir abraçado
pela primeira vez pela mulher que eu amava há tanto tempo.
Emocionado, aprofundei o beijo, colocando nele todo o
meu amor. Ela sentiu e cedeu, fazendo mais do que apenas me
abraçar. Malika entreabriu mais a boca e correspondeu
intensamente ao beijo, as mãos se afundando nos meus
cabelos com gosto, sentindo os fios com os dedos, acariciando-
me, enlouquecendo-me.
Inspirei fundo, gemi e suguei mais aqueles lábios,
transformando o beijo em algo visceral. Ela aceitou, abriu-se
mais, gemeu também, mostrando um lado ardente e sensual
que me fascinou. Havia um potencial imenso de conexão
sexual entre nós dois a ser explorado e aquela reação positiva
de Malika me abalou mais do que pensei.
Decidido, segurei-a pela cintura para que se
acostumasse com o contato e só depois subi a minha mão até
a borda inferior do sutiã. Parei por ali, analisando a reação
dela, dando-lhe tempo para me fazer parar se não estivesse
gostando. Como nada aconteceu, continuei subindo, até
envolver um dos seios por completo com a mão. Apesar de
grande, ele coube sob a minha palma exatamente como eu
imaginava e fiquei maravilhado.
A sensação durou pouco, apenas alguns segundos,
tempo suficiente para Malika reagir e afastar a minha mão com
força, protegendo o seio com um braço e me empurrando com
o outro.
— Não me toque, seu animal!
Ela rugiu aquilo com um ódio tão grande que percebi
logo que não falava para mim. Os olhos faiscavam com o
mesmo ódio, mas estavam ausentes, pareciam não me ver.
Contraí a mandíbula de raiva ao entender que Malika via à
frente dela o homem que a torturou sexualmente em Thueban e
as palavras da doutora Bushra voltaram à minha mente.
“Eram apenas toques íntimos nos seios, nas nádegas e
insinuações de estupro. Nunca houve nenhuma tentativa, até o
dia em que ele entrou na cela e tentou que lhe fizesse sexo
oral.”
Tenso, afastei-me para o lado, desfazendo totalmente
qualquer contato físico entre nós. De imediato, ela cruzou os
dois braços sobre o peito em um gesto defensivo que apertou o
meu coração.
— Calma, Malika. Não vou mais tocar em você até que
permita — falei em tom firme e o mais tranquilo possível. —
Sou o Yusuf, o homem que ama você, lembra-se disso?
Ela abriu muito os olhos quando voltou à realidade e
cobriu o rosto com as mãos logo depois, soluçando. Era
impossível para mim ver tamanho sofrimento da mulher que eu
amava sem fazer nada, sem poder lhe dar consolo nos meus
braços.
Não consigo ficar só olhando.
— Me perdoe, mas vou tocar em você de novo. Não
me afaste, habibti123 — avisei com carinho, segurando-a pelos
braços e atraindo para o meu peito.
O alívio que senti foi imenso quando ela se deixou
abraçar, apesar de manter os braços cruzados entre nós dois.
— Acalme-se. Já passou, Malika. Você está comigo,
protegida, segura e longe de qualquer ameaça. É a minha
esposa, a mulher que amo, que vou cuidar e proteger sempre.
Ela não respondeu nada, mas foi se acalmando aos
poucos, deixando de soluçar e depois parando completamente
de chorar. Afastei-me para pegar um guardanapo de papel na
mesa do jantar e entregar para ela, que assoou o nariz,
sentando-se e se recompondo.
A minha raiva do homem que a tocou cresceu de
maneira absurda ao ver o rosto devastado pelo choro, o olhar
triste, sem a mesma alegria que ela esbanjou durante o dia
inteiro. Não era daquele jeito que eu queria terminar a nossa
noite e me enraiveci ainda mais.
— Eu errei e peço perdão. Não devia ter tocado em
você sem pedir permissão. O certo seria pelo menos ter
avisado antes, para que não fosse pega de surpresa e se
assustasse desse jeito.
Malika soltou um suspiro profundo e meneou a cabeça
sem olhar para mim.
— Me perdoe também pelo que disse. Não quis chamar
você de animal, Yusuf — desculpou-se, visivelmente
envergonhada.
— Não precisa pedir perdão, eu entendi o que
aconteceu. Não se esqueça que conversei com a doutora
Bushra e sei tudo o que ele fez com você em Thueban.
Malika baixou a cabeça sobre os joelhos dobrados e
cobriu novamente o rosto com as mãos, mas daquela vez não
era para chorar. Era de vergonha, de humilhação, e cerrei os
punhos de raiva.
— Quem é ele?
Fiz a pergunta sem esperança alguma de obter uma
resposta, mas me surpreendi.
— Hisham.
Capítulo 51
Yusuf
Gelei quando ouvi o nome do supervisor prisional que
ela desconfiava ter visto no atentado de Azra.
— Hisham Al Amari? — Quis uma confirmação que não
deixasse dúvida alguma.
— Sim, foi ele.
Apesar de a voz dela ter saído abafada pelas mãos, foi
taxativa. Precisei respirar fundo várias vezes para conter a fúria
assassina que me dominou ao poder, enfim, pegar o homem
que torturou, abusou e quase estuprou Malika.
Olhei-a encolhida e escondendo o rosto de vergonha, e
o meu amor se fortaleceu por aquela mulher pequena em
tamanho, mas enorme em força e resiliência.
— Sei que é difícil para você lidar com o passado, mas
tente não deixar que isso desestabilize o seu presente nem
destrua o seu futuro. Levante a cabeça e sinta orgulho de si
mesma. Eu me orgulho muito da minha esposa.
Malika ainda demorou alguns instantes até levantar a
cabeça e aprumar o corpo. Havia determinação no olhar dela e
realmente me senti orgulhoso da mulher que eu amava.
Agradeci à Allah por ter conseguido aquela reação dela.
— Eu amo você e quero fazer parte da sua vida, quero
construir um futuro com você. Permita que isso aconteça,
Malika. — Ofereci a minha mão com a palma aberta. — Deixe
que haja algum contato físico entre nós dois. Você precisa
substituir essas lembranças dolorosas e ultrajantes por outras
de amor e respeito. Permita que eu me aproxime fisicamente
de você e prove que o sexo é uma obra de Allah quando feito
com amor.
Ela me olhou em dúvida.
— Não sei se vou conseguir. Sinto-me nauseada só de
pensar em me submeter a tudo o que vi acontecer com Hessa.
É nojento, indigno, doloroso e revoltante.
— O que você presenciou foi um estupro, Malika. Não
foi um casal fazendo amor com o consentimento dos dois. Você
se sente mal quando nos beijamos?
Pareceu envergonhada, mas não era a vergonha da
humilhação que sofreu na prisão. Vinha do recato e do pudor
de se lembrar do prazer que partilhamos juntos aos nos beijar.
Aquela era uma resposta mais contundente do que a que ela
deu depois.
— Não. Sinto-me bem quando nos beijamos.
— E quando abraço você junto ao peito em um contato
mais íntimo?
— Na primeira vez estranhei, mas depois que
ultrapassei o receio inicial, gostei bastante. — Jogou um pedido
de desculpas com o olhar e tentou se justificar. — É que os
toques íntimos me trazem más lembranças. Foi por isso que
não quis me casar. Posso nunca conseguir superar o que
aconteceu e destruir algo lindo que existe entre nós dois.
Eu não ia deixar que ela fosse novamente por aquele
caminho e desistisse de viver o nosso amor.
— Você não vai destruir nada, Malika. Vamos ficar cada
vez mais unidos e felizes, como aconteceu hoje. Você precisa
primeiro sentir o meu toque no seu corpo para ver a diferença
do que sentiu na prisão, antes de desistir completamente. —
Estendi novamente a minha mão com a palma aberta para ela.
— Coloque você mesma a minha mão no seio que toquei. Não
será pega de surpresa, mas um gesto consciente seu para ver
a reação do próprio corpo.
Ela lançou um olhar de dúvida para a minha mão.
— E se eu não gostar? — Voltou os olhos para mim
onde havia tristeza. — Posso destruir tudo o que há entre nós
agora mesmo e eu não queria que isso acontecesse.
Toda a minha coragem e gosto pelo perigo não serviu
de nada naquele momento. Tremi por dentro diante do medo de
perder Malika definitivamente.
Busquei forças em Allah. Só Ele poderia salvar o nosso
amor.
— Confio que Allah nos uniu e que é o nosso destino
ficarmos juntos — disse com firmeza para ela. — Confio
também no amor que você sente por mim, Malika. Por favor,
tente.
Ela segurou a minha mão com tanta força que parecia
mais uma náufraga encontrando uma tábua de salvação.
Acariciei o dorso da mão delicada com o polegar, acalmando-a.
Ela fechou os olhos e inspirou fundo com uma ruga no meio da
testa que me preocupou.
— Não feche os olhos. Faça olhando para mim, vendo
que sou eu quem estou aqui ao seu lado.
Malika fez o que pedi, abrindo os olhos. Piscou
algumas vezes e cruzou o olhar com o meu. Fiz um meneio de
aprovação, deixando que visse todo o amor que sentia por ela.
— Deixe que aconteça e apenas sinta que sou eu
quem estou tocando em você. O homem que a ama, o seu
marido, o seu Yusuf.
O que eu disse teve o efeito desejado. Sem desviar os
olhos dos meus, Malika colocou a minha mão sobre o seio que
eu havia tocado, mas permaneceu segurando o meu pulso,
como se estivesse pronta para me afastar a qualquer momento.
Mesmo por cima do tecido leve da abaya que ela usava
e do sutiã, emocionei-me ao tocar a mulher que eu amava. Não
escondi dela o que estava sentindo, ao contrário, abri o meu
coração e expus as emoções que me dominavam. Deixei que
ela visse o quanto era importante para mim — na verdade, para
nós dois — aquele momento de comunhão.
Malika inspirou fundo, fazendo o seio se expandir sob a
minha palma e vi a surpresa no olhar dela.
— Sente-se bem? — A minha voz soou enrouquecida e
engoli em seco.
— Sim — ela respondeu, ofegando.
Usei o polegar para acariciar a parte superior do seio
que enchia a minha mão, arrancando um suspiro de Malika. Vi
o prazer surgindo no olhar dela. Era uma reação positiva e
desci o polegar para baixo, acariciando a região do mamilo.
Ela ofegou profundamente daquela vez, os olhos se
abriram mais, surpresos. A mão que segurava o meu pulso se
apertou ao redor dele, como se ela estivesse se preparando
para me afastar, mas sem o fazer.
Malika estava assustada, mas era com as reações
físicas do próprio corpo e não com lembranças abusivas.
— Não se afaste, apenas sinta. Se não gostar, eu paro.
Mas me deixe mostrar que pode ser bom para você, para mim,
para nós dois.
Ela não disse nada, mas também não me afastou.
Agradeci à Allah por aquela benção e me aproximei, beijando
suavemente os lábios macios, saboreando lentamente a minha
mulher.
Malika entreabriu a boca, permitindo um beijo mais
profundo.
Os pequenos gestos íntimos que eu tinha com ela
possuíam um poder maior sobre mim do que um ato sexual
completo com as outras mulheres. Nunca me vi como um
homem sensível ou romântico, mas era como eu me sentia ao
lado de Malika.
O beijo se aprofundou e ela não opôs resistência ao
que sentia, soltando o meu pulso. Fiquei emocionado com
aquele gesto de confiança, principalmente quando ela envolveu
o meu pescoço com os braços, entregando-se para mim sem
reservas.
O meu desejo cresceu assustadoramente e senti a
excitação exigindo a posse. Se eu já estava endurecendo,
endureci ainda mais quando o mamilo que acariciava enrijeceu
sob o meu dedo. A minha boca até salivou com a necessidade
de o provar e compensei sugando a língua e os lábios de
Malika.
Fiz com que ela voltasse a se recostar contra as
almofadas, deixando que sentisse o meu peito roçar os seios
que agora eu ansiava por ver desnudos, por beijar, por sugar.
Já estávamos ofegando, as respirações se
confundindo, a excitação crescendo. Eu tinha certeza de que
Malika estava tão molhada quanto eu também já me umedecia
de pré-gozo. Tantos dias, meses, anos de desejo reprimido por
ela estavam agora destruindo o meu autocontrole, exigindo a
posse, um orgasmo poderoso dentro dela.
A minha razão pedia calma, mas há muito tempo que
as minhas emoções já tinham tomado as rédeas da situação.
Soltei um grunhido de prazer ao tocar no outro seio
dela, deixando que primeiro se acostumasse, para depois
estimular os dois mamilos. Malika arquejou na minha boca e
contorceu o corpo. Notei o leve movimento que ela fez com o
quadril, arqueando-se, buscando-me sem nem perceber o que
fazia.
Eu queria me encaixar entre as pernas dela, mas
continuava esmagando o meu pau contra as almofadas para
que Malika não o sentisse. Abandonei os lábios carnudos e
beijei o lóbulo da orelha delicada, aspirando o aroma do
perfume que ela usava.
Malika voltou a arquejar, as mãos segurando os meus
cabelos com força.
— Yusuf! — gemeu no meu ouvido, contribuindo para
atiçar cada vez mais o meu desejo.
— Faz o mesmo comigo — grunhi aquele pedido e ela
atendeu, beijando o lóbulo da minha orelha, os lábios quentes e
úmidos me enlouquecendo.
A tensão sexual enrijeceu os meus músculos e me vi a
ponto de gozar contra as almofadas.
Oh, Al’ama124! Eu não acredito que vou fazer isso!
A abstinência sexual a que me impus nos últimos
meses estava agora cobrando um preço alto demais até para
mim mesmo, que sempre me orgulhei do meu autocontrole na
cama. Eu estava parecendo muito mais um adolescente na
puberdade com ejaculação precoce do que um homem adulto
experiente.
Que vergonha!
Sem imaginar o tamanho do meu drama, Malika repetiu
a carícia e um espasmo de prazer contraiu o meu pau. Inspirei
fundo para controlar o desejo e não colocar tudo a perder
justamente quando acabava de conquistar a confiança dela. O
fato de ter permitido que eu tocasse nos seios que me
enfeitiçavam, não queria dizer que estivesse preparada para
uma relação sexual completa.
Segurei o rosto afogueado de Malika e fiz com que
olhasse para mim, decidido a descobrir se podia ir em frente.
— Gostou que eu tocasse em você?
— Gostei.
Não houve hesitação alguma na resposta, o que me
deixou satisfeito.
— Deixaria que o visse?
Ela arregalou os olhos e entreabriu a boca de surpresa,
literalmente pega desprevenida com aquele novo pedido.
— Ver?!
— Sim, ver os seus seios. Gostaria de tocar neles sem
as roupas.
— Eu... eu acho que não conseguiria agora.
A insegurança na voz dela me fez tomar a decisão de
parar. Já havíamos compartilhado muitos momentos de
cumplicidade em menos de vinte e quatro horas de lua de mel
e eu não ia colocar tudo a perder insistindo. O que eu havia
conquistado até agora era valioso demais para ser perdido por
causa da precipitação.
— Se não está preparada para dar esse passo,
aguardaremos que esteja. Temos todo o tempo que quisermos
para nos conhecermos melhor intimamente.
Era preferível encerrar o assunto e ter o prazer de
dormir o restante da noite ao lado dela, do que dar um passo
ousado demais e fazer com que Malika decidisse dormir
sozinha. Ia ser duro para mim se ela preferisse lidar com os
pesadelos que a aterrorizavam do que dormir comigo por já
não confiar mais em mim.
Consultei o relógio e vi que já era bem mais tarde do
que pensei.
— Nem notei que já havia passado da meia-noite.
— Já é tudo isso? — Ela aprumou o corpo nas
almofadas.
— Já e é melhor irmos dormir. — Levantei-me e ofereci
a mão a ela, ajudando-a a se levantar também. — Estamos
cansados da viagem e do passeio a cavalo.
Fomos para dentro do quarto e fechei as portas da
varanda.
— Prefere que deixe a luz acesa?
Malika desviou o olhar, como se só naquele instante
tivesse se lembrado que íamos dormir juntos. Rezei para que
não mudasse de ideia, agindo naturalmente.
Coloquei o celular sobre a mesa do quarto e aguardei
que dissesse algo.
— Não é necessário, já que não dormirei sozinha.
Aquela era a confirmação que eu precisava e decidi
que não ia abusar da sorte. Era melhor deixá-la à vontade no
quarto.
— Vou descer para checar o sistema de segurança
antes de dormir. Tentarei não fazer barulho quando voltar,
assim não acordo você, caso já esteja dormindo.
Ela não comentou nada e fingi descer para checar algo
que não precisava ser checado. Fui direto para o quarto que os
meus pais costumavam usar quando se hospedavam em Noor.
Entrei no banheiro, tirei a roupa em tempo recorde e segurei o
meu pau endurecido com força, masturbando-me de frente
para a parede do box. Apesar de estar cometendo um
makruh125, ainda mais para um homem casado, eu acreditava
que Allah seria misericordioso no meu julgamento.
Com um braço apoiado na parede, movimentei a mão
com rapidez, o prazer me fazendo gemer alto. Eu já estava tão
no limite que não demorei a gozar, pensando em Malika, a
mulher que amava e a única que desejava ardentemente.
Quando ejaculei a última gota, encostei a cabeça no braço até
o coração acelerado voltar a bater normalmente.
Tomei um ghusl janabat e fui atrás de um thobe do meu
pai no closet. Depois que me vesti, passei cerca de trinta
minutos sentado na poltrona em frente à parede de vidro do
quarto, observando o terraço e pensando em tudo o que havia
acontecido naquela noite, no que tinha descoberto sobre o
desgraçado do Hisham e dando o tempo que Malika precisava
para se deitar sem constrangimentos.
Findo aquele tempo, voltei para o meu quarto, entrando
sem fazer barulho. A luz principal estava apagada, mas a
suave claridade que vinha do abajur da minha mesa de
cabeceira permitiu que a visse deitada sob as cobertas.
Satisfeito, fui para o banheiro me arrumar para dormir,
sem ter noção alguma se conseguiria realmente adormecer. Já
havia percebido que Malika estava de costas para o meu lado
da cama, um recado muito claro de que queria distância.
Depois de vestir o pijama, voltei ao quarto e me deitei
silenciosamente ao lado dela. Apesar de aquela não ser a
maneira como realmente gostaria de estar dormindo com
Malika, agradeci à Allah por ter permitido que houvesse
avanços naquela noite e que dividíssemos a mesma cama.
— Yusuf, você podia me abraçar como fez hoje de
manhã?
A voz suave me pegou desprevenido no silêncio do
quarto, mas foi o pedido para a abraçar que verdadeiramente
me surpreendeu. Quando a vi de costas para o meu lado da
cama, achei que estivesse querendo evitar o contato físico.
Virei-me e a envolvi nos meus braços como fiz naquela
manhã em Taj, colando o meu peito nas costas dela e
envolvendo sua cintura com o braço, que a mão delicada
segurou contra o próprio corpo, como se precisasse me tocar, e
não apenas ser tocada, para se sentir segura.
Dei um beijo no cabelo dela.
— Durma tranquila, Malika. Estou aqui para cuidar de
você.
Ela relaxou contra o meu peito e logo adormeceu,
como se estivesse apenas precisando da minha presença no
quarto para conseguir dormir.
Ah, Malika! Se você estivesse dentro do meu coração e
visse o quanto a amo, permitiria que tocasse muito mais em
você.
Capítulo 52
Yusuf
Como de costume, acordei-me no dia seguinte com o
raiar do sol, admirado por ter conseguido adormecer rápido na
noite anterior.
A primeira percepção que tive quando abri os olhos, foi
que Malika havia conseguido dormir a noite inteira sem ter mais
nenhum pesadelo e agradeci à Allah por aquela benção. A
segunda coisa que notei, foi que tínhamos trocado de posição
enquanto dormíamos. Agora, era ela quem me abraçava por
trás pela cintura, o corpo macio totalmente grudado ao meu, as
pernas enroscadas nas minhas.
A sensação era deliciosa, principalmente a pressão dos
seios nas minhas costas. Fechei os olhos, aproveitando aquele
momento de intimidade. Depois da aproximação que tivemos
na noite anterior, eu estava determinado a encontrar
urgentemente uma maneira de convencer Malika a permitir que
tivéssemos uma vida sexual.
Aquela era a segunda vez que dormíamos juntos, mas
eu tinha a impressão de que fazia mais tempo, de tão natural
que era para mim ter Malika em minha cama. Passei quase três
anos desejando que aquilo acontecesse. Agora que a tinha
onde sempre quis que estivesse, não fazia a mínima ideia de
quanto tempo mais aguentaria dormir com ela controlando o
desejo.
Ela ainda dormia e resolvi não a acordar. Com cuidado,
consegui tirar o braço dela da minha cintura e me sentar.
Malika se remexeu, mas continuou dormindo. Observei-a
adormecida, sentindo-me mais apaixonado naquela manhã do
que estive na noite anterior. A cada segundo que passava na
companhia dela, mais me apaixonava, mais a amava.
Levantei-me e fui para o banheiro consultando as horas
no relógio digital sobre a cabeceira. Àquela hora Saqr já estaria
acordado em Taj e eu pretendia conversar com ele sobre como
estavam as buscas à Hisham Al Amari.

Reencontrei Malika no café da manhã e dei o meu


sabah al khair126 para ela com um beijo na boca, que foi
correspondido. Notei o quanto ela estava feliz, bem mais do
que no dia anterior, e quis acreditar que fosse por causa dos
momentos de intimidade que partilhamos após o jantar e ao
dormirmos juntos. Os olhos dela espelhavam uma mistura de
arrebatamento e recato que me seduziam ainda mais.
Durante a refeição, conversamos bastante. Assuntos
não nos faltavam, que iam desde amenidades, como a criação
de cavalos, a assuntos sérios, como o momento político dos
países árabes, principalmente de Sadiz. Malika não era apenas
muito inteligente e culta, mas também divertida, espirituosa e
carismática. Tudo nela me encantava e a nossa cumplicidade
aumentava a cada instante, um ponto forte do nosso
relacionamento que eu valorizava demais.
A rotina do primeiro dia de lua de mel se repetiu
naquele segundo dia também. Fomos cavalgar na praia, mas
daquela vez Malika guardou o hijab no alforje da égua para
evitar que se molhasse, assim poderia se cobrir com ele
quando voltássemos para o estábulo.
De início, deixamos os cavalos andarem a passo lento
perto da água, enquanto apenas aproveitávamos a beleza do
lugar e o prazer de estarmos juntos.
Olhei para Malika montada na égua ao meu lado. Ela
havia escolhido um conjunto de túnica que ia até os joelhos e
calça comprida em tons de verde, uma cor que eu
simplesmente amava e que nela só aumentava a beleza suave.
O tecido da túnica era leve, mas cobria bem o corpo dela. A
minha expectativa era saber como ficaria quando se molhasse
com a água do mar.
Tentei adivinhar como seria o sutiã que ela estava
usando e se, ao ficar molhado, ele me deixaria ver alguma
coisa. Nunca a minha imaginação esteve tão fértil ou foi tão
estimulada quanto estava sendo desde que chegamos em
Noor. Vê-la molhada no dia anterior e ter tocado nos seios que
me tentavam há anos só aumentaram as minhas fantasias com
ela.
Acomodei-me melhor na sela do cavalo, olhando para a
imensidão do mar azul à minha direita.
— Vamos apostar uma corrida até as rochas? — ela
me surpreendeu com aquela sugestão.
Não consegui deixar de rir da ingenuidade dela.
— Não seria justo para você com esta égua. Ela não é
de corrida e não vai alcançar muita velocidade.
— Eu acho que ela aguenta bem. Vamos ou você está
com medo de perder para uma mulher?
Caí na risada, admirando a ousadia dela em me
provocar. Malika era, sem dúvida alguma, uma mulher única.
— Se você insiste, não serei eu a negar. — Aceitei o
desafio. — Temos que escolher o prêmio. Eu já sei o que
quero, e você?
Ela me olhou com curiosidade.
— Confesso que não pensei em prêmios. O que você
vai querer?
— As damas primeiro. Diga qual é o seu prêmio.
Eu só diria o meu depois do dela ou Malika desistiria
antes mesmo de começar.
— Estou desconfiada deste prêmio que você vai pedir
— ela foi direta.
— Fique tranquila. Para receber o meu prêmio não vou
precisar encostar nem um único dedo em você. Agora pense
em algo que você gostaria como prêmio e me diga.
— Quero que me deixe dirigir o seu Bugatti quando
voltarmos à Taj.
Só não gargalhei porque a perplexidade não deixou.
Quem riu da minha cara foi ela, irradiando felicidade.
— Então, vai desistir, soldado? — Provocou-me ainda
mais. — Não acredito que perdeu a coragem diante de uma
simples mulher e de uma pobre égua despreparada para
corridas.
Meneei a cabeça com a ousadia dela, dividido entre a
vontade de rir e de arrancar aquela mulher da sela e enchê-la
de beijos.
— Você é um perigo ambulante, Malika Al Kabeer.
— E não é você que gosta de perigos, Yusuf Al Harbi?
Tentei pegar a rédea da égua para colocar Malika no
meu cavalo, mas ela foi rápida em se afastar, rindo muito.
— Então, há uma aposta em causa ou não? —
perguntou com o desafio brilhando nos olhos amendoados.
— Há — confirmei, decidido. — O meu prêmio é uma
apresentação de dança do ventre.
Ela ficou boquiaberta e daquela vez fui eu quem ri da
cara dela.
— Então, vai desistir, senhora ativista? — Provoquei-a
como ela havia feito comigo. — Não acredito que perdeu a
coragem agora.
— É claro que não desisti!
Ela reagiu de imediato e tentei não demonstrar o
quanto estava satisfeito ao ter a minha dança do ventre
garantida.
— Estou disposto a ser um cavalheiro e lhe dar uma
vantagem na corrida. Contarei até dez antes de ir atrás de
você.
Senti que ela não gostou da vantagem, provavelmente
querendo direitos iguais para provar que podia conseguir
mesmo assim. Acredito que pensou melhor ao se lembrar do
prêmio que pedi, pois concordou.
— Aceito.
Ela se posicionou com a égua e disparou pela areia da
praia rumo ao ponto de chegada, enquanto eu admirava o
corpo que me enlouquecia de desejo montado com elegância.
Ela era uma verdadeira amazona e devia estar acostumada a
apostar corrida, pois se posicionava na sela com a experiência
de quem já havia feito aquilo antes. Eu até conseguia imaginar
Malika e Kismet fazendo o mesmo em Sadiz.
Fiquei tão encantado que me esqueci de contar até
dez. Só me lembrei quando Malika olhou para trás para ver a
distância que eu estava dela. Deve ter se surpreendido ao me
ver parado, mas, mesmo assim, não diminuiu o ritmo da
disparada.
Rindo de mim mesmo por estar tão embasbacado por
aquela mulher, incitei o garanhão e saí galopando atrás dela,
disposto a ter a minha dança do ventre. Como previsto, não
demorei muito para alcançar Malika a meio do caminho para a
linha de chegada. Ela voltou a olhar para trás e me viu quase
emparelhando o garanhão com a égua. Estávamos em um
ponto do percurso que definiria o vencedor, faltando menos da
metade para o ponto final.
A vitória estava praticamente nas minhas mãos e
Malika sabia daquilo. Quando a cabeça do garanhão
emparelhou com a cabeça da égua e ficamos lado a lado, ela
perdeu o controle das rédeas e parou abruptamente o galope,
soltando um grito.
Puxei as rédeas do garanhão no mesmo instante e
parei também, preocupado. Malika havia desmontado e estava
em pé ao lado da égua, mas o animal estava na minha frente e
eu não a conseguia ver.
— Malika?
Desmontei também e corri para onde ela estava.
Antes que eu chegasse perto, Malika voltou a montar
com agilidade na égua e se afastou, deixando-me pasmo. Se
eu achava que era só aquilo que ela ia fazer, enganei-me
tristemente. Malika foi até onde estava o meu garanhão e
segurou as rédeas dele. Em questão de segundos, os três
disparavam em um galope desenfreado para a linha de
chegada.
Fiquei plantado sozinho no meio da praia, olhando-os,
estarrecido.
Eu não acredito que ela fez isso!
Nada mais pude fazer além de ver Malika
comemorando a vitória. Fiquei parado com as mãos na cintura,
vendo-a se aproximar depois com os dois cavalos.
— Não valeu! — gritei assim que ela chegou perto o
bastante para me ouvir.
— E por que não? — questionou com um sorriso. —
Não estipulamos nenhuma regra, exceto a vitória para quem
ultrapassasse primeiro a linha de chegada.
— Você trapaceou, Malika!
Ela desmontou, aproximando-se de mim.
— E você é um mau perdedor, Yusuf. Não tem espírito
esportivo. Olha só a sua cara! Vai assustar os cavalos.
Eu quase não acreditava que ela ainda se atrevia a rir
de mim.
— E você também não está assustada com a minha
cara?
Ela ergueu os ombros fazendo pouco caso daquilo.
— Claro que não estou.
— Pois deveria — avisei, agachando-me e juntando
água do mar nas mãos, que joguei em cima dela.
Malika não conseguiu se desviar a tempo, ficando toda
molhada.
— Oh, olha só o que você fez! — reclamou, indignada.
Cruzei os braços no peito, satisfeito.
— Parece que você também não tem espírito esportivo.
— Yusuf Al Harbi, você é um mau perdedor!
— E você é uma trapaceira.
Ela se abaixou, pegou areia molhada e jogou no meu
peito.
— Ei, pelo menos jogava água — protestei, limpando a
areia da túnica.
— Você é homem, aguenta! — ela riu, divertindo-se.
Abaixei-me e peguei um punhado de areia molhada,
aproximando-me dela com o rosto muito sério. Malika me
olhou, desconfiada.
— Yusuf?
— Direitos iguais para homens e mulheres, lembra-se?
— Você não faria isso comigo.
Observei-a com atenção e não vi medo nos olhos dela,
por isso segui em frente. Ela confiava em mim. E confiava
tanto, que estava me provocando como nunca havia feito
antes.
— Acha que não faria?
Esperta, Malika correu para a égua parada ao lado do
garanhão, querendo fugir à galope, mas aquela corrida quem ia
ganhar era eu. Joguei a areia fora e fui atrás dela, pegando-a
pela cintura e erguendo-a do chão com facilidade.
— Yusuf, pense bem no que vai fazer — ela me
preveniu, mas fingi que não escutei.
Coloquei-a no colo e fui rápido para dentro do mar,
disposto a jogá-la na parte mais rasa. Malika percebeu a minha
intenção e se agarrou ao meu pescoço.
— Eu não sei nadar! — Pelo tom de voz percebi que
era verdade e instintivamente apertei-a mais contra o peito.
— É raso — justifiquei, mas a vontade já tinha
passado, substituída pelo instinto protetor.
Ela se encolheu nos meus braços, segurando-se com
mais força em mim.
— Quase morri afogada na prisão — contou às pressas
para me fazer parar. — Quando desmaiava durante as sessões
de chicotadas, eles me reanimavam jogando baldes de água no
meu rosto. Me tira daqui, Yusuf.
O choque me fez parar e aconcheguei-a mais no meu
peito, começando a sair do mar.
— Me perdoe! Eu não sabia.
— E nem tinha como saber, a menos que eu contasse.
— Foi a resposta lógica dela, mas ainda assim me senti
culpado por ter feito algo que era traumatizante para ela.
— Eu devia ter imaginado. Sei do que acontece nas
prisões.
Malika não comentou nada, apenas continuou agarrada
em mim até voltarmos para a areia da praia.
— Sente-se bem? — perguntei, preocupado.
Ela me olhou e sorriu.
— Sim, estou bem.
Coloquei-a em pé à minha frente, analisando com
atenção cada detalhe do rosto e dos olhos dela, em busca de
algum indício de que não estivesse bem. Não encontrei nada
que indicasse que ela estava escondendo a realidade do que
sentia. À minha frente, vi uma mulher baixinha, com um corpo
estonteante e dona de uma personalidade forte, que era uma
mistura de altruísmo, generosidade, determinação e
autoconfiança. Malika espalhava luz, esperança e fé aonde
chegava e eu me sentia completamente apaixonado por tudo o
que ela era.
— Prepare-se, Malika — avisei com a voz grave.
Ela ergueu mais a cabeça e me olhou com curiosidade.
— Para o quê?
— Para isso.
Envolvi a cintura fina com as duas mãos e a ergui do
chão até que seu rosto ficasse à altura do meu. Ela apoiou
instintivamente as mãos nos meus ombros, mas não parei por
ali. A minha intenção não era apenas ficarmos cara a cara.
Encostei-a por completo junto ao meu corpo, rodeando a
cintura fina firmemente com meus braços. Não ficou nenhuma
parte de Malika sem tocar em mim. Estávamos colados,
grudados, atados um ao outro.
Uma exclamação de surpresa e de susto escapou da
boca tentadora à minha frente quando ela sentiu o meu pau
endurecendo contra a púbis. Naquela posição, Malika ficou na
altura exata e endureci ainda mais ao perceber o quanto nos
encaixávamos na perfeição. Foi impossível não fantasiar com
ela rodeando a minha cintura com as pernas, abrindo-se para
mim e pronta para me receber.
Aquela imagem tão nítida fez com que o meu início de
ereção se transformasse em uma ereção completa, crescendo
contra o corpo dela.
Não falei nada, muito menos ela. Ficamos parados,
colados, com os olhos fixos um no outro. Malika podia ver no
meu olhar o desejo crescendo junto com o membro que a
pressionava e eu podia ver a perplexidade dela ao acompanhar
todo o processo. Não havia medo, apenas surpresa por estar
sentindo-o pela primeira vez e por ter a noção do tamanho do
meu desejo.
Ela foi arregalando os olhos à medida que o meu pau
ficava maior e mais duro, mas não a afastei de mim. Ao
contrário, desci a mão pelas costas dela e pressionei seu
quadril contra ele.
Ela exalou um arquejo e ficou com a respiração
ofegante. Já eu, trinquei os dentes diante da força do desejo
que me dominava e inspirei fundo, só então notando que
estava tão ofegante quanto ela.
— Yusuf.
Malika sussurrou o meu nome de um jeito que me soou
tão sensual que estremeci, pulsando.
Ela abriu mais os olhos e os lábios se entreabriram
também, próximos de mim o suficiente para que eu a beijasse
apaixonadamente no instante seguinte. Malika correspondeu e
nunca um beijo nosso pareceu tão profundo e tão cheio de
significado. Ao me beijar com tamanha paixão, ela estava me
aceitando como um homem por completo, com desejos sexuais
por ela, deixando que a tocasse intimamente, que a amasse.
Emocionei-me a ponto de sentir lágrimas nos olhos e
aquela minha fragilidade me abalou como nunca na minha vida.
Era difícil ver a mim mesmo tão sensível àquele ponto.
Interrompi o beijo e afundei o rosto no pescoço dela para que
não visse o estado deplorável em que eu me encontrava,
enquanto tentava controlar a emoção.
Vendo que não conseguia, coloquei-a de volta na areia
da praia e fui resoluto para dentro do mar. Atirei-me nas águas
e nadei durante o tempo que precisava para me sentir
novamente dono da minha razão, para aplacar o desejo sexual
e para agradecer à Allah por Malika ter me aceitado por
completo.
Quando decidi voltar, ela me esperava na beira da
água. Senti seu olhar me observando à medida que eu me
aproximava.
— Você está bem? — perguntou assim que ficamos
frente a frente.
— Estou, e você? — analisei-a e fiquei com a
impressão de que estava bem, em paz.
— Também estou — garantiu com um sorriso tranquilo
que confirmou a impressão que tive. — Você ficou todo
molhado.
Olhei para a minha túnica e a calça pingando água e
dei de ombros.
— Vamos voltar caminhando pela praia, assim dá
tempo de secar um pouco.
Fui pegar os cavalos e entreguei a rédea da égua para
Malika. Assim que começamos a caminhar, segurei a mão dela,
entrelaçando nossos dedos. Estávamos em comunhão e em
paz.
Capítulo 53
Malika
A lua de mel que tanto receei, transformou-se em um
dos melhores momentos da minha vida. Os passeios a cavalo
na praia só não eram melhores do que as longas conversas
que Yusuf e eu tínhamos depois do jantar. Só que nenhum
daqueles dois momentos se comparava à hora em que nos
deitávamos abraçados na cama para dormir juntos.
Depois de três anos dormindo mal, sendo assombrada
por pesadelos que iam e vinham, descobri que nos braços de
Yusuf o meu sono era tranquilo e profundo. O respeito que ele
tinha por mim era uma das qualidades que eu mais amava
nele. Outro homem árabe já teria me desrespeitado assim que
soubesse de tudo o que passei na prisão e jamais se casaria
comigo como o Yusuf fez. Ele era um homem honrado e com
grande nobreza de caráter. Isso sem falar na paciência que
tinha comigo, uma mulher cheia de traumas e de bloqueios.
Sentia-me segura com ele. Confiava tanto no seu amor
por mim que trapaceei na aposta que fizemos, determinada a
me livrar da dança do ventre. Só não esperava a reação que
ele teve ao me abraçar daquele jeito na praia. Tentei descobrir
o que o deixou tão excitado, mas não consegui. Será que fiz
alguma coisa sem saber?
Depois que ele entrou no mar e foi nadar, analisei a
minha roupa molhada para ver se alguma parte do meu corpo
estava muito visível, mas não havia diferença do dia anterior.
Apesar de a doutora Bushra ter garantido que eu ainda
continuava virgem, deixei de me sentir virgem depois de tudo o
que passei em Thueban. Perdi a inocência com relação ao
sexo ao ser obrigada a ver Hisham nu praticando um ato sexual
cruel, ao ser forçada a presenciar o estupro da minha amiga, a
ter o meu corpo tocado diversas vezes por um monstro e ainda
ser atacada por ele na cela. Eu me sentia violentada, mesmo
tendo saído fisicamente virgem de lá.
Foi o Yusuf quem me mostrou que eu era realmente
uma virgem. Com ele tive o meu primeiro beijo na boca, o meu
primeiro abraço íntimo, a minha primeira experiência de dormir
com um homem. Depois de viver todos aqueles momentos com
ele, foi que percebi o quanto o meu noivado com Dabir não
havia passado de um acordo de casamento para ele. Desde
menina, sempre o vi como o meu príncipe encantado, mas hoje
eu sabia que nunca fui a princesa encantada dele. Dabir era
um noivo gentil e educado, mas jamais chegou a ser um noivo
apaixonado. Em ocasião nenhuma ele tentou segurar a minha
mão, muito menos dar um beijo no meu rosto, quanto mais na
boca.
O meu verdadeiro príncipe encantado era o Yusuf, a
quem eu amava há anos e que agora era também o meu
marido. Depois daquele abraço tão íntimo na praia, eu me
sentia diferente, mais leve e em paz comigo mesma. Pensei
que fosse me sentir mal, que me lembraria do passado, que
teria medo ou repulsa, mas nada daquilo aconteceu. Ao
contrário, depois do que houve me senti livre, como se o
trauma tivesse sido quebrado de vez. A sensação foi
libertadora, trazendo de volta para mim a esperança de
conseguir me entregar à Yusuf, de construir uma família com
ele, de ter filhos.
Eu não sabia se na hora do grande teste conseguiria,
mas queria tentar.
Da praia, fomos deixar os cavalos no estábulo e depois
voltamos para Noor. Mais uma vez ele me deixou dirigir o SUV,
um gesto muito importante para mim e foi quando me lembrei
da aposta.
— A minha vitória foi válida e vou querer o meu prêmio.
Ele parou de verificar as mensagens que tinha no
celular e me olhou com um sorriso de divertimento.
— O mais justo seria dividirmos o prêmio, mas vou
aceitar a minha derrota. Você foi mais esperta do que eu e
mereceu a vitória.
— Mal posso esperar para dirigir o Bugatti.
Naquele final de dia, jantamos novamente no terraço
da suíte, diante de uma mesa cheia de comidas deliciosas.
Cada uma delas parecia ter um sabor especial e fiquei
pensando se a felicidade que estava sentindo contribuía para
aquilo.
— Vou engordar se continuar comendo desse jeito toda
vez que fizermos um passeio a cavalo.
— Seu corpo está ótimo — ele comentou ao tomar um
gole de jellab127 e me observar com um olhar indefinível. —
Gosto dele assim como está agora.
Senti o meu rosto ruborizar com o elogio.
— Shukran, Yusuf. Você também está em excelente
forma física.
— Acha mesmo? O que gosta mais no meu corpo?
Boquiaberta, tentei disfarçar o embaraço com aquela
pergunta, mas não consegui. Ele não parecia estar brincando,
muito menos me provocando. Pensei em uma resposta
diplomática.
— Gosto de tudo.
— Sinto-me lisonjeado que goste de tudo, mas não tem
uma parte especial?
O que mais havia me marcado nele quando o conheci
foram os olhos, a única parte do rosto que a balaclava deixava
ver na hora do resgate. Eu nunca ia me esquecer da sensação
de segurança e confiabilidade que ele me passou através do
olhar.
— Os seus olhos. Eles me marcaram muito quando
você me levou para o helicóptero.
A fisionomia dele ficou grave quando me ouviu.
— Pois saiba que também foram os seus olhos que me
atraíram quando peguei em uma foto sua pela primeira vez —
ele confidenciou. — Foi o que chamou a minha atenção de
imediato em você. Eles são da cor que mais gosto e muito
expressivos.
Fiquei pasma com aquela revelação.
— Você nunca me disse isso.
— Faltou oportunidade. — Ele pousou o copo sobre a
mesa e me olhou com intensidade. — A segunda coisa que me
atraiu muito em você foi o sorriso, mas os cabelos não ficam
atrás. Gosto da cor deles e do comprimento. A sua altura
também é a ideal para mim e o corpo é perfeito na minha
opinião.
Allah seja louvado!
— Nem sei o que dizer.
— Diga que me ama.
Até prendi a respiração quando o ouvi, ainda mais que
a voz dele estava com aquele tom enrouquecido que mexia
muito comigo.
— Ana bhebak128. — Não hesitei em dizer, apaixonada.
Yusuf enfiou os dedos nos meus cabelos e me segurou
pela nuca, juntando a testa na minha.
— Repete — sussurrou quase me beijando.
— Ana bhebak.
Então, ele me beijou, fazendo-me suspirar. O beijo
iniciou leve, suave, mas depois começou a mudar, tornando-se
mais intenso, profundo, sedento. Acariciei a barba mais
aparada que ele passou a usar depois da temporada nos
Estados Unidos. Ela ainda não havia crescido o suficiente para
ficar do tamanho que ele usava antes da viagem, mas ambas o
deixavam atraente aos meus olhos.
Eu estava tão enlevada com o beijo que estranhei
quando Yusuf se afastou, levantando-se e me oferecendo a
mão para me ajudar a ficar de pé. Segurei-a e me levantei
também, surpreendendo-me quando ele me pegou ao colo com
o rosto sério, caminhando com determinação para dentro do
quarto.
O meu coração disparou no peito quando desconfiei
das intenções dele.
— Yusuf.
— Não fique nervosa, Malika — tranquilizou-me ao me
colocar no chão ao lado da cama. — Não vai acontecer nada
que você não queira, mas tem que me deixar chegar mais perto
de você. Permita que me aproxime ou nunca teremos uma
chance de ficarmos realmente juntos como marido e mulher.
Segurou o meu rosto com as duas mãos, inclinando-se
para me beijar suavemente nos lábios. Depois me olhou de
maneira penetrante.
— Vamos tentar, nem que seja um pouco a cada dia.
Vá até onde se sentir bem, mas não desista de nós dois sem
antes dar uma chance. Allah é testemunha da minha intenção
de parar no instante em que você pedir. — Voltou a encostar a
testa na minha e falou com a voz rouca. — Quero fazer amor
com a minha esposa.
Fui envolvida por uma sensação indescritível, como se
o amor fluísse ao nosso redor e me desse a segurança que eu
precisava para dar aquele passo.
— Quero fazer amor com o meu marido — sussurrei e
Yusuf respirou profundamente logo a seguir.
— Malika, Malika — repetiu o meu nome com um olhar
apaixonado. — Você nem imagina o quanto quis ouvir isso nos
últimos anos.
Voltou a me beijar nos lábios, depois no rosto, a barba
macia deslizando pela minha pele até chegar à orelha. Fiquei
na expectativa de sentir aquela carícia outra vez. Yusuf já havia
feito antes e me deixado mole nos braços dele, um prazer
desconhecido se espalhando pelo meu corpo.
Daquela vez a sensação foi idêntica à anterior e perdi o
fôlego, agarrando-me nos braços fortes. Ele me envolveu pela
cintura, erguendo-me do chão e grudando nossos corpos,
igualzinho como havia feito na praia. Abracei-o pelo pescoço,
sentindo o membro enrijecendo e me pressionando. Eu não
fazia a mínima ideia do que sentiria quando o visse nu pela
primeira vez, se me lembraria ou não de Hisham, mas confiava
que o amor de Yusuf e as bençãos de Allah não permitiriam
que aquilo acontecesse.
Estando na mesma altura dele, não precisei erguer a
cabeça para o olhar de frente, podendo ver sem esforço algum
as emoções que seus olhos refletiam.
— Cada gesto meu, cada toque que fizer no seu corpo,
poderá ser evitado se você disser que não quer, mas peço que
se esforce para primeiro sentir e só depois negar. Tente só
dizer que não quer depois de experimentar a sensação.
Assenti com a cabeça, incapaz de falar qualquer coisa.
Eu já sentia o meu coração acelerando no peito e a expectativa
tomar conta de mim.
Yusuf voltou a me colocar no chão e se afastou para
fechar as portas da varanda e cerrar as cortinas. Fiquei parada
onde ele me deixou, segurando com força o tecido da túnica ao
lado do corpo, subitamente nervosa ao vê-lo preparar o quarto
para nós dois. Ele diminuiu a iluminação, deixando acesa
apenas a luminária do canto, um abajur de pé alto que ficava
no chão e emitia uma luz suave no ambiente, permitindo que
nos víssemos, mas que também preservava a intimidade.
Agradeci em silêncio por aquele cuidado.
Sem saber como agir e o que fazer, permaneci onde
estava até ele voltar a se aproximar de mim. Nunca o corpo
alto, encorpado e forte me pareceu tão grande e imponente
quanto naquele momento de incerteza com relação à reação
que teria ao ser tocada e possuída por ele.
Estremeci quando os gritos de dor de Hessa pareceram
explodir nos meus ouvidos, trazidos pela minha mente
traiçoeira. Havia sangue também, muito sangue. Hisham
gritava junto com ela, mas era com um prazer demoníaco,
animal, destruindo à Hessa e a mim também.
Baixei a cabeça e cobri o rosto com as mãos. De olhos
fechados, engoli a náusea com dificuldade, o pavor que senti
naquele dia voltando a me dominar.
Allah, me ajuda a superar o passado e ser feliz com o
homem que amo!
— Segure as minhas mãos e respire fundo, Malika —
Yusuf pediu em um tom de voz suave, mas firme e persuasivo.
— Abra os olhos e veja a realidade à sua volta. Você está
comigo, o homem que a ama. Não se deixe levar para o
passado.
Fiz o que disse, abrindo os olhos e segurando as mãos
dele, agarrando-me nelas com força. Senti a estabilidade que
emanava de Yusuf, a confiança que transmitia para mim. Sem
me largar, ele foi até a cama e se sentou, deixando-me de pé à
sua frente.
— Assim não fico tão alto e nem pareço tão
ameaçador. Agora você é a mais alta de nós dois. — Fez uma
leve brincadeira para me fazer relaxar, acariciando as minhas
mãos.
Teve o efeito desejado, pois realmente me senti melhor.
— Eu estaria mentindo se dissesse que não estou
nervosa e com medo, mesmo querendo muito me entregar a
você.
Recebi um olhar compreensivo, seguido de um beijo
nas minhas mãos.
— Você vai controlar tudo o que acontecer entre nós
dois. Será como se estivesse com as rédeas de um garanhão
puro-sangue nas mãos. Esse garanhão sou eu e farei apenas o
que você mandar. — Ele separou mais as pernas e me atraiu
para o meio delas, continuando a segurar as minhas mãos. —
O que você faria para domar um garanhão arisco e conseguir
montar nele?
Fiquei tão sem fôlego ao vê-lo se comparar com um
garanhão que demorei a responder.
— Eu me aproximaria aos poucos, conversando com
ele.
— Muito bem, está correto isso, mas você não precisa
conversar comigo. O que faria depois?
Só então entendi o que Yusuf queria com aquela
abordagem.
— Eu tentaria tocar nele até conseguir que me
deixasse acariciá-lo. Tentaria quantas vezes fossem
necessárias até ele se acostumar comigo e confiar tanto que...
me deixasse montá-lo um dia.
Espantada, parei de falar, a realidade caindo em cima
de mim. Havia sido exatamente aquilo o que Yusuf tinha feito
comigo ao longo dos anos. Sem fôlego, vi a confirmação da
minha teoria no olhar profundo que prendeu o meu.
— Entendeu agora, Malika? Foi isso o que fiz
pacientemente com você durante anos até hoje estarmos aqui.
Agora, faça o mesmo comigo, mas de uma maneira diferente.
Acostume-se com o meu corpo até conhecê-lo tão intimamente
que não sinta medo de estar perto de mim ou do que eu possa
vir a fazer com você. Não precisamos ir até o fim hoje. Temos
tempo para irmos devagar, nos aprofundando no contato físico
um pouco mais a cada dia. Ganhe confiança, controle o seu
garanhão com pulso firme, cavalgue nele sem medo. Verá que
ele é mais dócil do que aparenta e do que você pensa.
A sabedoria do que ele disse me emocionou.
Yusuf soltou as minhas mãos em um gesto significativo.
Eu estava livre para o tocar se quisesse, sem pressão alguma
da parte dele. O controle estava nas minhas mãos e descobri
que queria segurar as rédeas do meu garanhão.
Capítulo 54
Malika
Passamos vários segundos nos olhando intensamente,
o amor de Yusuf me envolvendo e me dando coragem.
Aproximei-me mais e toquei nos cabelos dele, enfiando
os dedos entre os fios escuros. A luz suave que vinha por trás
de mim deixava parte do rosto dele nas sombras, mas pude ver
como fechou os olhos, deixando-se acariciar. Desci as mãos
pelos traços marcantes das feições tão masculinas, pela barba
bem desenhada e pelos lábios que eu amava beijar. Segui para
o pescoço forte até chegar aos ombros largos, mas o tecido da
túnica impediu que continuasse a sentir a pele quente sob os
meus dedos.
Sem proferir nenhuma palavra, Yusuf suspendeu a
túnica e a tirou do corpo, jogando sobre a cama e me deixando
ver, pela primeira vez, o peitoral bem desenvolvido e os braços
musculosos.
Allah Todo-Poderoso!
As minhas mãos ficaram paralisadas e tive dificuldades
até para engolir, o coração disparando no peito como se fosse
o galope do puro-sangue com o qual ele se comparou.
Hesitei em tocá-lo de novo e Yusuf percebeu.
— Não desista sem tentar. Toque-me, Malika.
Encostei levemente os dedos nos ombros dele,
impressionada com a dureza dos músculos, sentindo o calor e
a textura da pele. Mais confiante, espalmei a mão inteira nos
ombros de Yusuf, deslizando para os braços, cujos músculos
pareciam ainda mais duros e desenvolvidos.
Ele segurou a minha cintura com as duas mãos,
atraindo-me para mais perto e encostando a testa na minha
barriga. Era um gesto íntimo, muito perto dos seios, e que me
pegou de surpresa, deixando-me sem reação. A sensação era
diferente de tudo o que eu já havia sentido com ele, mas não
me desagradou. Ao contrário, gostei do que senti.
Yusuf esfregou o rosto no tecido da minha túnica, as
mãos apertando levemente a minha cintura até envolvê-la por
completo com os braços. Abracei-o também, a posição
permitindo que eu tocasse as costas largas, e foi o que fiz com
um prazer cada vez maior. Fechei os olhos, amando conhecê-
lo mais intimamente.
Yusuf tinha razão. Quanto mais eu o tocava e via as
partes nuas do corpo dele, mais confiante ficava.
Das costas, as minhas mãos voltaram para os cabelos
dele, que beijei com carinho, aninhando-o nos meus braços.
Foi quando ouvi um longo grunhido de prazer escapar da boca
dele, um som que causou um frenesi dentro de mim. Senti um
espasmo nas minhas partes íntimas, uma sensação tão
estranha quanto inesperada. Era prazerosa, igual à que senti
quando ele acariciou pela primeira vez os meus seios.
— Yusuf — sussurrei o nome dele, ofegante.
Ele firmou o braço na minha cintura e se levantou,
erguendo-se da cama em toda sua altura e me levando junto.
Fui suspensa do chão com um único braço e me agarrei nele, o
peito despido colado em mim.
Ele se virou para a cama, onde apoiou um joelho e se
deitou comigo, ficando por cima. Fui beijada com paixão e
correspondi da mesma forma, aproveitando para acariciar o
peito dele de uma maneira muito mais íntima naquela posição.
Encantada, toquei cada pedaço que podia, minhas mãos
apalpando a carne rija das costas, cujos músculos ondulavam à
medida que ele se sustentava sobre mim.
Yusuf deixou os meus lábios e começou a me beijar em
todo o rosto, sem esquecer o lóbulo da orelha, onde arrancou
um suspiro da minha garganta. Desceu depois pelo meu
pescoço, até chegar na altura dos seios e mergulhar o rosto
neles. Prendi a respiração, tensa, mas ele não parou. Por cima
mesmo da minha roupa, ele os beijou e agarrei com força seus
cabelos quando um calor delicioso percorreu o meu corpo.
— Deixe-me vê-los — pediu, levando a mão até a barra
da túnica que eu usava.
Apesar de nervosa, não opus resistência quando ele
começou a levantá-la, subindo-a pelo meu corpo até desnudar
a minha barriga e, finalmente, os seios cobertos pelo sutiã. A
túnica ficou esquecida acima deles quando Yusuf os viu, o
olhar intenso percorrendo cada pedaço que havia acabado de
desnudar.
Senti o meu rosto arder de vergonha ao estar tão
exposta e ver o desejo evidente em sua expressão.
— São mais lindos do que imaginei — ele murmurou,
tocando-os por cima do sutiã.
Inspirei fundo com o calor da mão grande que cobriu
um deles por completo, acariciando-o.
— Yusuf — gemi, extasiada.
— Se quiser eu paro, mas antes que o diga, vou pedir
que não faça agora.
Eu não queria que ele parasse e deixei que me
ajudasse a tirar a túnica pela cabeça. Fiquei deitada só com o
sutiã e a calça comprida. Foi quando tive a primeira experiência
de sentir mais intimamente o toque pele a pele com Yusuf.
Prendendo o meu olhar, ele pressionou o peito nu junto aos
meus seios e não consegui conter um arquejo de prazer com a
sensação inédita para mim.
Ele engoliu o meu arquejo com um beijo, a língua
ousada penetrando na minha boca e acabando de vez com a
minha resistência. Entreguei-me de tal maneira que nem reagi
quando ele desceu a alça do meu sutiã e o empurrou para
baixo, libertando um seio. Quase que imediatamente depois,
senti a boca sedenta se fechar sobre o mamilo, quente, úmida,
delirante.
— Oh! — inspirei fundo quando o meu sexo pulsou no
instante seguinte.
Ele grunhiu, rosnou, gemeu, sugou. Primeiro
suavemente, depois com mais força, parecendo degustar de
mim com prazer. Enquanto isso, eu me contorcia sob os seus
lábios, ora agarrada aos ombros dele, ora aos cabelos.
Nunca pensei, nunca imaginei, nunca acreditei que
seria daquela forma. A experiência que eu tinha com os meus
seios era dolorosa e humilhante, causada pelas mãos
grosseiras de Hisham, mas Yusuf estava me mostrando que
era possível sentir prazer neles com o toque de um homem. Do
meu homem.
Eu estava comprovando que o amor realmente era
mais forte do que tudo e apagava todo o mal. Estava enlevada
com aquela descoberta, extasiada, dominada pelo prazer.
Ofegante, senti a mão dele descer a minha calça pelos
quadris e simplesmente deixei que a tirasse, ficando só de
calcinha e sutiã.
Yusuf abandonou o meu seio e se sustentou sobre mim
o suficiente para poder olhar o meu corpo por inteiro.
— Allah seja louvado! — exclamou com uma voz tão
enrouquecida que parecia estar engasgado.
Apesar do olhar admirado dele, não consegui ter outra
reação que não fosse cobrir os seios com os braços e encolher
as pernas, envergonhada.
— Não sinta vergonha de mim, Malika. Você é mais
linda do que jamais ousei imaginar.
Achei que ele fosse me tocar, mas não foi o que fez. Ao
contrário do que pensei, ele se afastou, mas o olhar
permaneceu preso ao meu corpo deitado. Senti tão fortemente
aquele olhar, que era como se estivesse realmente sendo
tocada.
Com uma expressão determinada, ele baixou a própria
calça pelos quadris, arrancando uma exclamação de surpresa
da minha garganta quando ficou só de cueca, o corpo poderoso
e masculinamente perfeito exibido diante dos meus olhos
pasmos.
Eu havia acabado de descobrir que Yusuf não era lindo
só de rosto ou de personalidade, mas de corpo inteiro. Nunca
pensei que por baixo dos thobes e das túnicas que ele usava
houvesse tamanha beleza masculina. O membro enrijecido
forçava o tecido da cueca azul marinho, quase preta, que não
escondia o volume nem o tamanho dele, bem maior do que o
único que eu já tinha visto antes. Era assustador imaginar
aquilo tudo dentro de mim.
Allah tenha piedade! Se Hessa sofreu tanto com um
menor, como vou aguentar um desse tamanho?
Sentei-me imediatamente na cama, pegando a túnica
jogada ao lado e cobrindo o que pude do meu corpo com ela.
Yusuf percebeu o que eu estava sentindo e se sentou
também, tenso. Notei aquilo pela rigidez do corpo, pelos
músculos contraídos dos braços, pelos punhos que ele só
cerrava na minha frente quando a raiva pelo que passei na
prisão o dominava.
— Eu posso fazer tudo por você, Malika, exceto mudar
o meu corpo para que ele pareça menos ameaçador. Apenas
se lembre do homem que existe nele e que a ama. Você me
controla.
— Eu sei disso, mas... não pensei que fosse tão... —
Desviei o olhar para longe, constrangida. — Acho que não vou
conseguir, Yusuf.
— Não precisamos ir até o fim. Deixe-me mostrar para
você que pode ser bom mesmo assim. Se não gostar do que
vou fazer, eu paro.
Ele estendeu a mão para mim e me lembrei da
aproximação com o garanhão arisco. Era preciso primeiro
conquistar a confiança dele, para depois receber a permissão
de o montar.
Segurei a mão de Yusuf e deixei que me envolvesse
pela cintura e puxasse de volta para os seus braços. O simples
toque nos nossos corpos seminus já foi suficiente para nos
olharmos apaixonadamente, o contato de pele contra pele
estimulando novamente os nossos sentidos. Fechei os olhos
segundos antes de nos beijarmos com ansiedade, como se até
aquele pequeno tempo longe um do outro tivesse sido demais.
Deitamo-nos sobre a cama, estreitamente abraçados.
Gemi quando nossas pernas se enroscaram e quando senti o
membro enrijecido sob a cueca roçar algumas partes do meu
corpo. Onde ele tocava, parecia marcar a minha pele,
despertando a minha curiosidade e, ao mesmo tempo, o meu
receio. Yusuf deixava escapar gemidos que mais pareciam
rosnados sempre que um movimento ou outro causava mais
pressão sobre seu membro.
O beijo se tornou urgente de um momento para o outro,
os meus seios pressionados contra o peito dele, as mãos de
Yusuf percorrendo o meu corpo com desejo crescente. Eu
estava entrando em contato com um turbilhão de emoções
desconhecidas e arrebatadoras além da conta e me sentia
sendo levada sem controle algum para um lugar desconhecido,
mas que me atraía irresistivelmente.
Senti as mãos dele abrirem o meu sutiã e logo os meus
seios livres tocavam o seu peito nu. Delirei com a sensação e
gememos praticamente no mesmo instante.
Por Allah!
O que eu estava sentindo era surpreendentemente
maravilhoso. Eu podia jurar que senti Yusuf estremeceu nos
meus braços, nossos gemidos e respirações se confundindo à
medida que nos beijávamos.
Não demorou para ele espalhar beijos pelo meu corpo,
indo em busca da parte que mais parecia atraí-lo. Quando a
boca envolveu novamente o meu mamilo, arqueei o corpo
contra o dele, mas foi justamente em cima da dureza do seu
membro. Ele gemeu, eu gemi também, e tive o meu outro seio
sugado com a mesma paixão.
De olhos fechados, eu não sabia lidar com tantas
sensações ao mesmo tempo, achando que aquilo era o
máximo que poderia sentir de prazer nos braços dele. Não
demorou muito tempo para eu descobrir que havia me
enganado.
Yusuf acariciou o meu corpo até chegar na minha
calcinha, a mão se insinuando por dentro do tecido rendado e
me deixando tensa. Arquejando de susto, segurei o pulso dele
com força.
— Sinta primeiro, habibti129 — ele me lembrou.
Ainda hesitei, mas depois deixei que fosse em frente, o
meu coração aos pulos no peito. O que eu não esperava era
sentir o dedo dele acariciar uma área do meu sexo que causou
em mim um prazer muito superior ao que estava sentindo nos
seios.
Entre assustada e encantada, voltei a segurar com
força o pulso dele.
— Yusuf!
— Não gostou? Quer que eu pare?
Apesar da pergunta, ele continuou a me acariciar no
mesmo jeito, fazendo a região que tocava aquecer, arder, me
queimar. Nem consegui responder de imediato, totalmente em
êxtase.
— Não pare — arquejei a resposta, adorando o que
estava sentindo.
— Deixa eu tirar sua calcinha — ele pediu, já puxando
a peça pelas minhas pernas.
Nem resisti, ainda atordoada de tanto prazer e
querendo sentir de novo. A sensação de ficar completamente
nua na cama e nos braços dele foi estranha, mas o
arrebatamento com tudo o que estava sentindo era maior do
que a vergonha.
Livre de qualquer empecilho, a mão de Yusuf voltou a
entrar no meio das minhas pernas e me acariciar no mesmo
lugar. A sensação indescritível voltou mais forte ainda diante da
minha expectativa. Eu me sentia molhada, acalorada,
deslumbrada.
Com uma das pernas, ele fez com que eu separasse
mais as minhas próprias pernas. A posição me deu mais prazer
ainda, abrindo espaço para o dedo dele tocar no meu sexo por
completo. Fechei os olhos, arqueando ainda mais o corpo
quando as carícias se expandiram. Gemi alto ao se tornarem
crescentes, até que pararam de repente, deixando-me em
suspenso.
Nem tive tempo de abrir os olhos e ver o porquê de ele
ter parado, quando o choque de sentir a boca de Yusuf no
mesmo lugar me jogou em uma espiral de prazer maior ainda.
— Oh!!
Eu estava chocada com o que ele estava fazendo, mas
nem protestar conseguia, tamanho era o prazer.
Agarrando com força os ombros dele, a única coisa que
consegui pensar com coerência foi que aquilo devia ser algo
abençoado por Allah, para ser tão bom. Não era possível que
fosse um pecado.
Não havia dor alguma, apenas prazer, um prazer
indescritível.
Confiando em Allah e em Yusuf, entreguei-me
totalmente ao que estava sentindo, sem resistir quando ele
abriu mais as minhas pernas. Deixei o prazer correr solto, livre,
sem rédeas, até que alcançou um nível extraordinariamente
alto e explodiu dentro de mim com uma força surpreendente.
Chocada demais e sem ter a mínima noção do que
estava acontecendo comigo, joguei a cabeça para trás e
arquejei alto dentro do quarto, o meu sexo pulsando
deliciosamente sob os carinhos dele.
Ofeguei, gemi, chamei por ele.
— Yusuf!
Quando tudo passou, continuei agarrada aos ombros
largos dele, que me abraçou pela cintura e me aconchegou
melhor junto ao peito, onde me senti protegida, feliz, amada.
Fechei os olhos e adormeci sem nem perceber.
Capítulo 55
Yusuf
Observei Malika adormecida nos meus braços,
emocionado por ter conseguido que ela confiasse em mim, que
me deixasse tocar no seu corpo, que mostrasse o quanto de
prazer podíamos sentir nos braços um do outro. Acompanhar
as emoções se sucedendo no rosto dela, as reações do corpo
delicioso sob as minhas mãos e boca, e a desinibição com que
gozou para mim, foi a melhor experiência sexual da minha vida.
Malika gozou sem saber que estava gozando e
adormeceu sem ter noção do quanto era sensual e expansiva
na cama. Eu estava definitivamente seduzido, encantado,
apaixonado por ela.
O meu pau doía de desejo não satisfeito e ter o corpo
perfeito nos meus braços não ajudava em nada a diminuir a
excitação que ainda sentia. Com cuidado, afastei-me, puxei as
cobertas sobre ela e fui para o banheiro satisfazer sozinho o
meu desejo, esperando que aquela fosse a última vez que
precisaria fazer aquilo.
Tomei um banho depois, vesti uma cueca limpa no
closet e voltei para o quarto. Não era hora ainda de dormir
completamente nu ao lado dela. Apesar de Malika ter permitido
que a despisse por inteiro, permaneci de cueca o tempo todo e
era daquela maneira que ela precisava me ver no dia seguinte.
Diminuí ainda mais a luz do abajur e me deitei ao lado
dela. Estava linda adormecida e nua na minha cama,
realizando um sonho de anos que eu tinha com ela. A
consumação ainda não havia acontecido, mas a intimidade que
partilhamos era um passo importante para que aquilo se
concretizasse na próxima vez.
Foi com muito amor que a trouxe de volta para os meus
braços. Ela suspirou no sono, agarrando-se em mim, tão
pequena de corpo, mas tão grande como mulher.
Suspirei também, sentindo-me realizado e
adormecendo logo depois. Houve uma hora em que me acordei
no meio da madrugada e Malika estava com uma perna entre
as minhas, a púbis encostada no meu quadril e o corpo
completamente jogado sobre o meu. Sonolento, estreitei ainda
mais o abraço e voltei a dormir, sentindo-me feliz como nunca.
Quando me acordei de manhã, continuávamos
enroscados um no outro. Senti que estava sendo observado e
decidi não abrir os olhos de imediato.
Malika já estava acordada e decidi lhe dar tempo para
que se acostumasse com a situação. Ela estava nua nos meus
braços, os seios pressionados no meu peito, as pernas
entrelaçadas nas minhas, o que era muito diferente das outras
vezes em que dormimos juntos, mas vestidos.
Entreabri ligeiramente os olhos e vi que a claridade da
manhã ainda era fraca. Apenas uma tênue luz do alvorecer
vencia o tecido das cortinas e competia com a suave
iluminação do abajur.
Malika não se afastou de mim, apesar da posição
íntima em que estávamos. Ela se mexeu levemente e os seios
roçaram no meu peito de uma maneira irresistivelmente
excitante, mas me forcei a não reagir à sensação. A perna que
estava sobre as minhas se afastou, os seios também, e pensei
que ela ia aproveitar a oportunidade para se levantar e sair
sorrateiramente da cama, mas não foi o que aconteceu.
Ela ficou imóvel por alguns segundos, como se
estivesse me observando para ver se havia me acordado, e
depois foi baixando muito lentamente o lençol que me cobria da
cintura para baixo. Foi quando entendi qual era a intenção dela.
Não sei como consegui controlar a respiração para não
mostrar que estava acordado, sentindo na flor da pele a
expectativa do que ela pretendia fazer. O meu pau começou a
endurecer mesmo contra a minha vontade e foi exatamente
aquilo que Malika viu quando conseguiu baixar o lençol até as
minhas coxas. A cueca já estava se esticando toda, mesmo
sem ele estar totalmente ereto, e Malika devia estar tendo uma
boa visão do que ia encontrar pela frente.
Ela não estava vendo nada do que já não tivesse visto
na noite anterior, mas eu entendia que agora se sentisse livre
para olhar sem a vergonha de se saber observada.
O tempo de análise foi longo para o meu autocontrole.
O fato de ela não desconfiar que eu estava acordado mostrava
o quanto era inocente e desconhecia do corpo de um homem.
A maneira como o meu pau endureceu totalmente de uma hora
para a outra já deixaria evidente para uma mulher mais
experiente que eu estava acordado, e muito acordado.
Tive a sensação de sentir um toque muito leve nele, tão
sutil que até duvidei. Entreabri levemente os olhos a tempo de
ver a mão delicada suspensa sobre o meu pau. Ela o havia
tocado com a pontinha do dedo indicador, como se quisesse
sentir como era. Tentou de novo, só que daquela vez
comprimiu mais o dedo contra a cabeça intumescida e engoli
um grunhido de prazer. Se Malika continuasse testando a
minha dureza daquele jeito, eu não ia aguentar.
Acho que ofeguei involuntariamente, porque ela afastou
rápido a mão e olhou para mim. Fechei os olhos e fiquei o mais
imóvel que consegui.
Malika se movimentou ao meu lado e a seguir se
levantou da cama. Abri os olhos a tempo de vê-la vestida
novamente com a túnica que eu havia tirado do corpo dela na
noite anterior, caminhando silenciosamente para o próprio
banheiro.
Assim que me vi sozinho no quarto, soltei o gemido que
estava preso na garganta e me virei de bruços na cama,
frustrado. Que Allah tivesse piedade de mim até o momento em
que conseguisse consumar o nosso casamento.
Minutos depois, incapaz de continuar deitado na cama,
levantei-me também, abri as cortinas e fui me arrumar.
Voltei ao quarto antes dela e decidi ir para o terraço
esperar que aparecesse. Quando ela surgiu, estava linda,
usando uma abaya florida em tons de azul que ressaltava o
tamanho dos seios, a cintura fina e o arredondado mais amplo
dos quadris. Agora que eu já a tinha visto nua, não precisava
mais ficar imaginando o que havia por baixo das roupas que ela
usava, fato que não me ajudava em nada a controlar o desejo.
Encostado no parapeito do terraço, observei-a se
aproximando. Notei o olhar encabulado, fugidio, como se
estivesse se lembrando da noite anterior e se sentisse
envergonhada.
— Pensei que você ainda estaria dormindo —
comentou meio sem jeito, parando à minha frente.
Ela parecia não saber como agir comigo depois do que
havia acontecido entre nós dois na noite anterior e decidi
mostrar que tudo continuava igual, se não melhor.
Puxei-a pela cintura até que ficássemos grudados um
ao outro e me inclinei para tomar os lábios rosados em um
beijo apaixonado de bom dia. Malika soltou um suspiro,
envolvendo o meu pescoço com os braços e correspondendo
com intensidade. Ficou na ponta dos pés para se encostar em
mim, sem impor restrições ao contato com a minha virilha.
Aquilo atiçou ainda mais o meu desejo. A sensação que eu tive
era de que o intervalo da noite só havia aumentado a vontade
que sentia de possuir definitivamente a minha mulher, de
consumar o casamento, de amar Malika até cansar.
Firmei o braço na cintura fina e a suspendi, tirando-a do
chão, para que sentisse melhor o estado de excitação em que
eu já me encontrava. Anos de desejo reprimido agora exigiam
satisfação e me vi rendido à forte atração que sentia por ela.
Aprofundei o beijo e ela abriu mais a boca saborosa,
aceitando-me. Pressionei o meu pau contra o corpo dela,
deixando bastante evidente o meu grau de excitação e o que
queria fazer naquele exato momento. Ela soltou um gemido de
prazer, afundando os dedos nos meus cabelos, a língua
roçando a minha em um convite irrecusável.
Não hesitei em pegar Malika ao colo e levar de volta
para dentro do quarto. Coloquei-a deitada na cama e fiquei em
pé, começando a me despir. Ela entreabriu os lábios e arquejou
em expectativa, os olhos acompanhando cada movimento que
eu fazia. Fiquei apenas de cueca, duro, teso, excitado,
deixando que me olhasse, que se acostumasse, que me
desejasse.
Coloquei um joelho na cama e ergui a abaya,
acariciando as pernas dela à medida que puxava o tecido.
Malika fechou os olhos de puro prazer, confiante, segura,
ansiosa. Cada mínimo gesto de aceitação dela me emocionava
e devorei com os olhos as coxas roliças, os quadris sensuais, a
calcinha azul rendada que me enlouqueceu, a cintura fina e os
seios deliciosos no sutiã que parecia pequeno para os conter.
Joguei a abaya dela sobre a cama, ansioso para devorar com a
boca tudo o que havia acabado de devorar com os olhos.
— Malika — grunhi apaixonadamente antes de me
deitar sobre ela e beijar a boca que já se abria para mim.
Abraçamo-nos sofregamente, ansiosos para sentir o
contato dos nossos corpos. Eu estava cada vez mais seduzido
pela natureza apaixonada de Malika. Ela havia gozado com
intensidade na noite anterior e estava visivelmente ansiosa por
experimentar o mesmo prazer outra vez. Passei anos querendo
uma oportunidade de contato físico com ela para provar
exatamente aquilo, que combinávamos perfeitamente na cama
e que podíamos ter uma vida sexual completa.
Emitindo gemidinhos excitantes, Malika se esfregava
no meu corpo de uma maneira enlouquecedoramente inocente.
Mesmo sem experiência alguma, tinha mais poder de me
excitar do que qualquer outra jamais teve.
— Me faz sentir aquilo de novo — pediu em um
sussurro envergonhado no meu ouvido.
Endureci ainda mais, ansioso para atender ao pedido.
— Faço quantas vezes você quiser, habibti.
Abri o sutiã dela, quase babando em cima dos seios
fartos que se tornaram objeto da minha obsessão durante
todos aqueles anos em que apenas pude fantasiar com ela.
Quando os libertei, foi para os aprisionar logo depois com os
meus lábios. Suguei os mamilos durinhos que pareciam
implorar por carinhos, saciando parte da minha fome neles.
Com o pau doendo de tão duro, enfiei a mão por dentro
da calcinha rendada. Malika estava toda molhada à minha
espera, macia, suave, tenra. Senti um espasmo de prazer na
virilha só em tocar nela, ansioso para possuir de vez.
Estimulei o clitóris inchado com o dedo, satisfazendo a
vontade de Malika. Ela gemeu, ronronou e arquejou nos meus
braços, acariciando os meus cabelos e se abrindo mais para
mim.
Dei tudo o que ela queria, esperando que daquela vez
permitisse que eu também tivesse tudo dela. Só de imaginar a
sensação de entrar nela, de gozar nela, o meu pau pulsava.
Desci a calcinha rendada pelas pernas bem torneadas
e fui com a boca estimular o clitóris sensível.
— Oh, Yusuf — ela suspirou em êxtase.
Malika nem precisava me pedir para fazer aquilo. Na
noite anterior eu tinha provado pela primeira vez o sabor e o
cheiro dela, achando que estava preparado para aquele
momento tão sonhado. Fui pego de surpresa com a emoção
que senti ao sugar, chupar e sorver o sexo úmido da minha
esposa. O poder que ela tinha sobre mim era até assustador de
tão intenso, mas eu não me importava de ser dominado por ela.
Aquela mulher podia tudo comigo. Tudo.
Fiz com que ela ficasse na borda do orgasmo, mas
sem ir além disso. Eu precisava que Malika desse o grande
passo de se entregar por completo, permitindo que a
penetrasse.
Voltei a sugar os seios dela outra vez, acomodando-me
entre as suas pernas. Sem que notasse, tirei a minha cueca e
passei a estimular o clitóris com o meu pau, roçando-o ao longo
de toda a extensão macia e quente, até a entrada apertada.
Aquele era o primeiro contato de sexo contra sexo e fui
ao céu com o prazer que senti.
— Oh! — ela exclamou, pega de surpresa com a nova
sensação.
— Gosta, habibti? — grunhi no ouvido dela, esperando
ansiosamente que dissesse que sim.
Eu não sabia até quando ia aguentar aquele contato
tão carnal sem perder o controle.
— Sim, muito.
Intensifiquei a fricção, fazendo com que abrisse mais
as pernas.
— Então, sente. Fecha os olhos e apenas sente.
Ela obedeceu, confiante, aceitando que a minha ereção
a tocasse intimamente.
— É tão quente — sussurrou, arrebatada.
Mas um pouco e quem vai gozar sou eu!
Eu não ia aguentar mais. A necessidade da posse se
tornava urgente.
Usei o dedo para estimular novamente o clitóris,
levando-a novamente em direção ao orgasmo, mas também
me posicionei bem na entrada dela, forçando.
— Solte as rédeas do garanhão, Malika. Por favor —
implorei, esperando que entendesse o que eu estava pedindo.
Ela entendeu e ficou tensa quando sentiu a primeira
fisgada de dor junto com o prazer. O garanhão era eu e queria
que me deixasse livre para tirar a virgindade dela.
Malika se agarrou nos meus braços, receosa.
— Vai doer muito, Yusuf?
— Talvez um pouco, mas vou dar o meu melhor para
que não seja demais. — Intensifiquei as carícias com o dedo e
ela voltou a fechar os olhos de prazer. — Sente dor agora?
— Não.
Desci o dedo e o introduzi um pouco mais na carne
macia, tentando alargar a entrada para o meu pau. Fechei os
olhos, ofegante, ao sentir com o dedo o que me esperava lá
dentro.
— E agora? — perguntei em um rosnado ofegante.
— Também não.
Repeti o movimento várias vezes, fazendo o prazer
dela voltar a crescer e iniciei a penetração. Achei que não fosse
conseguir quando a barreira do hímen impediu que o meu pau
entrasse.
Malika enterrou as unhas nos meus ombros, tensa.
— Yusuf!
— Só mais um pouco. Não desista agora, por favor —
grunhi no ouvido dela, ofegando pesadamente. — Confie em
mim. Vai ficar melhor.
Saí e entrei de novo, repetindo o movimento com uma
paciência que não sei onde encontrei, até que o instinto da
posse me fez empurrar com mais força e a resistência do
hímen foi rompida. Contive o rosnado de vitória que subiu pela
minha garganta, para não a assustar, mas a sensação foi tão
indescritivelmente gostosa que grunhi segundos depois.
— Malika, Malika!
Ela prendeu a respiração.
— Yusuf!
— Sente primeiro — pedi, começando a me
movimentar dentro dela. — Dói muito?
— Oh, não!
Allah seja louvado!
Beijei-a com paixão à medida que, sem dúvida alguma,
comecei a cavalgar em cima dela, sem parar a estimulação
com o dedo.
— Vem comigo nesse galope, habibti.
Ela veio e foi um galope desenfreado que nos levou
juntos ao paraíso. De olhos fechados e o corpo arqueado,
Malika tinha a expressão arrebatada de prazer quando gozou.
Da minha parte, nunca pensei que pudesse sentir um prazer
tão grande quanto aquele. Explodiu nas minhas entranhas de
uma maneira tão forte que soltei um rosnado de surpresa
quando os espasmos me fizeram ejacular em sucessivas ondas
de gozo.
O meu corpo estremeceu em cima do dela e me
enterrei fundo no seu interior, sentindo como se, enfim, tivesse
encontrado uma parte de mim que faltava.
Quando aquele turbilhão de sensações passou, deitei-
me ao lado dela, atraindo-a para os meus braços. Ficamos
fortemente abraçados um ao outro por um longo tempo, o amor
que nos unia se fortalecendo ainda mais.
— Doeu muito? Machuquei você?
— Não.
Segurei o rosto dela com as duas mãos, analisando o
seu olhar para ter certeza.
— Gostou, Malika? Acho que perdi o controle no final.
Para o meu desespero, vi lágrimas caindo dos olhos
dela.
— Gostei muito — garantiu com a voz embargada de
emoção. — Nunca ia imaginar que era assim. Doeu no início,
mas depois foi... foi diferente de tudo o que pensei desde que
vi...
Coloquei um dedo sobre os lábios dela, impedindo que
continuasse.
— O que você presenciou foi um estupro. O que um
casal que se ama faz é reverenciar o corpo um do outro
quando se unem em um ato sexual. O que nós dois fizemos foi
amor, Malika.
Ela sorriu com tristeza, agarrada em mim.
— Ele esteve presente em todas as sessões de tortura
que sofri, Yusuf — contou, sem precisar citar o nome de
Hisham para eu saber quem era. — Sempre que terminava, se
aproveitava para me... tocar nos seios. Era como se quisesse
que aqueles momentos ficassem eternamente marcados na
minha mente, não só pela dor física do chicote, mas também
pelo trauma do abuso.
Aquela era a primeira vez que ela falava tão
abertamente do que havia sofrido na prisão e a cena que
descreveu teve um impacto profundo em mim.
Hisham Al Amari ainda vai me prestar contas do que
fez com Malika!
— A doutora Bushra me contou que um homem entrou
na sua cela à noite e tentou estuprar você. Foi o Hisham? —
perguntei com gravidade, esperando que ela não se negasse a
falar sobre aquilo.
— Sim, foi ele — confirmou, apertando-se contra mim.
— Foi ele também que estuprou Hessa na minha frente e
depois... ela se matou com a faca que ele deu.
Ibn el sharmouta!130
Aconcheguei-a mais contra o peito e beijei seus
cabelos, tendo o cuidado de não deixar que ela visse na
expressão do meu rosto o desejo assassino que me dominou.
Cerrei os punhos e fechei os olhos, tenso.
— Isso nunca mais vai acontecer com você, Malika. Eu
juro!
Trouxe-a mais para cima e ficamos face a face, olhos
nos olhos.
— Tente esquecer tudo o que passou e ser feliz com o
que conquistou hoje. Você é uma mulher única, de uma
bondade infinita, de uma força imensa e que amo demais.
Admiro muito a mulher que você é.
Ela sorriu, feliz.
— Ana bhebak131 — declarou-se, enchendo o meu
peito de paz.
— Ana bhebik132 — Abri o coração também,
apaixonado. — Gostou mesmo do que fizemos juntos? Você
chorou.
— O choro foi de alívio. Eu tinha muito medo desse
momento, mas me surpreendi no final.
Beijei-a levemente nos lábios.
— Foi uma boa surpresa? — provoquei em tom de riso.
Ela sorriu de volta, o rosto ruborizando de vergonha.
— Muito boa — confirmou, a mão delicada acariciando
a minha barba e os olhos da cor do Oud causando um estrago
no meu coração quando me olharam com amor. — Habibi
albi133.
— Ana bamoot fiky134, Malika!
Capítulo 56
Yusuf
Tomamos o ghusl janabat135 juntos no meu banheiro,
algo inédito para mim, pois nunca o fiz com outras mulheres. O
ritual do banho era uma das coisas que sempre fiz sozinho, só
que agora não mais. Ter Malika comigo no banheiro foi uma
experiência nova que eu pretendia manter pelo resto da vida.
Ela ficou envergonhada no início, mas foi relaxando
com o passar do tempo, sorrindo de um jeito irresistivelmente
sensual quando comecei a passar as mãos ensaboadas pelo
seu corpo.
— Pode fazer o mesmo comigo — incentivei.
Ela hesitou, mas depois começou a fazer o mesmo e
nos divertimos lavando um ao outro. Foi quando vi que a parte
interna das coxas dela estavam manchadas de sangue da
virgindade perdida.
— É melhor que seja você a se lavar aqui. — Mostrei
para ela.
Malika olhou para baixo e mordeu a ponta do lábio.
Sem olhar para mim nem comentar nada, virou-se de costas
para ter mais privacidade e começou a limpar as coxas,
enquanto eu paralisava completamente ao ver pela primeira
vez as cicatrizes que marcavam as costas dela.
Os longos cabelos molhados até abaixo da cintura se
grudavam na pele, mas não escondiam totalmente os vergões
que o chicote deixou nas costas esguias.
Quando Malika teve o pesadelo e fiz uma massagem
nela, senti as rugosidades das cicatrizes por baixo da camisola,
mas nunca cheguei a vê-las como estava vendo naquele
momento.
Apoiei um ombro na parede do box e inspirei fundo,
incapaz de ver aquilo e não me sentir abalado, enfurecido,
dominado pelo desejo de vingança. Apesar de ter um corpo
voluptuoso e sensual, Malika era pequena, de estrutura
delicada, frágil. Eu não conseguia ver aquelas cicatrizes sem
querer fazer o mesmo com o desgraçado do Hisham e com
todos que estiveram envolvidos com a prisão dela.
Só agora eu entendia a raiva de Saqr quando viu as
cicatrizes nas costas de Kismet.
E eu ainda o aconselhei a não entrar em uma guerra
contra Sadiz por causa de Kismet. Agora, quem quer fazer o
mesmo por causa de Malika sou eu!
Controlando-me a custo, abracei-a na posição em que
ela estava, grudando suas costas no meu peito, as nádegas
macias pressionando a minha virilha. Coloquei os cabelos
castanhos para o lado, observando melhor as marcas. Só
então Malika percebeu que eu tinha visto e me olhou por cima
do ombro.
— Não olhe. São horríveis.
Neguei com um meneio de cabeça.
— Fazem parte de você e eu a amo por inteiro.
Se ela não tivesse acabado de perder a virgindade há
tão pouco tempo e precisasse se recuperar, eu a amaria de
novo ali mesmo no banheiro. O amor que eu sentia por aquela
mulher não tinha limites.

— Recebi algumas informações confidenciais, alteza —


Assad disse quando liguei para saber se havia novidades sobre
Hisham. — Ele foi destituído do cargo de supervisor prisional
de Thueban por ter desobedecido as ordens do rei com relação
à princesa Malika, mas nada aconteceu com ele porque foi
protegido pelo pai.
— Pelo pai? — Fui surpreendido com aquela
informação.
— Isso mesmo, alteza. O pai de Hisham é um dos
generais do exército de Sadiz e foi ele quem impediu que o rei
soubesse do que o filho fez. Como superior imediato de
Hisham, ele o afastou por insubordinação.
— Hisham seria executado se Suleiman soubesse que
não cumpriu com as suas ordens.
— Sem dúvida alguma — Assad concordou comigo. —
A essa altura, tenho certeza de que Hisham já conseguiu sair
do campo de refugiados e chegar até Jawhara. Ele foi um
militar das forças especiais de Sadiz. Escapar do cerco aos
refugiados que montamos depois do atentado não deve ter sido
difícil para ele.
— Seja um militar experiente ou não, vai se foder assim
que o pegarmos — garanti, determinado a colocar Hisham Al
Amari atrás das grades para o resto da vida. — Se surgir
alguma novidade, não hesite em me ligar.
— Farei isso, alteza.
Desliguei, olhando depois para o mar de Intisaar, cujas
águas azuladas eram visíveis do terraço do nosso quarto em
Noor. Malika estava no closet dela, arrumando-se pela segunda
vez naquela manhã. Igual à vez anterior, arrumei-me antes dela
e vim logo ligar para o Assad.
Eu queria colocar as mãos em Hisham! Não havia
como não desejar matá-lo depois de saber tudo o que fez.
Além de ter estado presente nas sessões de tortura de Malika,
de tocá-la, de tentar estuprá-la, ele ainda estuprou Hessa e
forneceu a arma para que ela se matasse. Ver as cicatrizes nas
costas de Malika só reforçou um desejo que eu já existia.
Fora aquilo tudo, o homem ainda estava em Tamrah
atrás de Malika e impondo o terror com ataques bombistas.
Ayreh feek!136

Quando fui obrigado a programar às pressas uma lua


de mel com Malika, achei que sete dias seria muito tempo para
uma noiva que havia sido forçada a se casar. Porém, agora que
a lua de mel estava acabando, eu queria ficar mais dias
sozinho com ela, muitos mais.
Malika estava encantada com o mar e fomos à praia
todos os dias que permanecemos em Noor. Apesar do medo de
entrar na água, ela adorava os passeios que fazíamos a cavalo
ou caminhando abraçados pela areia, ocasião em que
conversávamos bastante ou simplesmente aproveitávamos a
companhia um do outro.
Foi em um desses momentos que me lembrei das
notícias que Saqr havia me dado naquela manhã.
— O pai de Thara continua insistindo em levar a filha.
Ela olhou para mim, atônita.
— Ainda? Pensei que o Sheik Rashid tivesse
conseguido resolver o caso. Foi ele quem lhe disse isso?
— Não, foi o Saqr. Pedi que me mantivesse informado
de tudo, mesmo estando em lua de mel. O meu pai não nos
interromperia, mas Saqr sabe da importância de eu estar a par
de tudo que envolva você.
Malika sorriu e vi o prazer no seu olhar.
— Você me faz sentir mesmo especial quando fala
assim.
Apertei mais o braço em torno dos ombros dela.
— Você não é apenas especial, é também a mulher da
minha vida.
— E você é o homem da minha.
Eu não me cansava de ouvir Malika se declarando para
mim. A emoção parecia ser sempre a da primeira vez, tamanho
foi o meu desejo de ouvir aquilo durante o tempo em que fui me
apaixonando por ela e que era tratado apenas como um amigo.
Soltei a rédea do meu cavalo e fiz com que ela soltasse
a da égua também, pegando-a ao colo sem aviso.
Surpreendida, Malika me abraçou pelo pescoço, rindo e me
olhando com curiosidade quando comecei a andar com passos
decididos para as rochas que havia no fim da praia, onde
tínhamos acabado de chegar.
— Nunca viemos até aqui — ela comentou quando
entrei pelo meio das pedras, a água da praia batendo na altura
dos meus tornozelos. — É lindo!
— É lindo quando a maré está baixa e essas pequenas
piscinas se formam entre as rochas, mas quando a maré sobe,
é muito perigoso vir até aqui. A força das águas pode fazer
uma pessoa bater várias vezes contra as pedras até morrer.
— Ai, que horror! — exclamou, fazendo uma careta de
desagrado que me fez rir.
— Não deixe de apreciar o lugar por causa disso —
coloquei-a com os pés na piscina de águas tépidas, arrancando
um suspiro de prazer dela.
— Estão mornas!
— A quantidade de água que fica retida aqui é menor e
o sol a aquece rápido.
Tirei a túnica sob o olhar atônito dela e joguei sobre a
rocha mais próxima. Sem emitir uma única palavra, tirei a calça
e a cueca, ficando nu e pronto para ela.
— Venha cá, minha gazela. O seu guepardo tem fome.
Boquiaberta, Malika permaneceu me olhando
emudecida, até girar sobre si mesma e olhar ao nosso redor.
— Alguém pode nos ver.
— Só há pedras de todos os lados. Exceto um pássaro
mais ousado ou um peixinho que ficou preso nas piscinas
quando a maré baixou, nenhum outro ser vivo poderá nos ver
aqui. — Estendi a mão para ela, endurecendo ainda mais
diante da perspectiva de possuir a minha mulher nas águas do
mar de Intisaar. — Vem saciar a minha fome, Malika.
Ela me olhou em dúvida e percebi que a vergonha era
maior do que o desejo que eu via em seus olhos.
Aproximei-me, muito sério.
— Eu jamais exporia a nudez da minha mulher para
outros olhos que não os meus.
— Sei disso, Yusuf. O problema sou eu, que não
consigo.
Ajoelhei-me à frente de Malika e enfiei a mão por baixo
da túnica dela, descendo a calça que usava. Ela se segurou
nos meus ombros e me deixou tirar a peça, junto com a
calcinha.
Quando me levantei, notei como agarrou com força o
tecido da túnica, segurando-o firmemente contra o corpo.
— Sinto-me nua.
Joguei as roupas dela sobre as minhas na pedra e
envolvi a cintura fina com um braço, suspendendo-a até ficar à
minha altura. Prendi os olhos amendoados com os meus,
deixando que visse o quanto a amava e desejava.
— Eu fantasio com isso desde que trouxe você à praia
pela primeira vez — confessei roucamente, abrindo o coração
para ela. — Envolve a minha cintura com as pernas.
Malika arregalou os olhos, perplexa.
— Fazer o quê?!
— Isso.
Firmei o braço na cintura esguia e segurei uma das
pernas dela, fazendo com que circulasse a minha cintura.
— Faz o mesmo com a outra perna — orientei,
sentindo-me mais duro do que antes, a situação toda me
excitando mais do que pensei a princípio.
Ela tentou, mas não conseguiu por causa da túnica
justa. Segurei o tecido e o subi acima dos quadris dela,
arrancando um arquejo de Malika, que era uma mistura de
susto, receio e prazer.
— Me envolve! — praticamente exigi, teso de
excitação.
Nossos olhares se cruzaram no momento exato em
que encostei o meu pau ereto no sexo aberto para mim, o olhar
dela em ansiosa expectativa, o meu ardendo de desejo. Apertei
as nádegas cheias com as mãos, prendendo o seu olhar.
Depois, estimulei o clitóris com o dedo, excitando-a.
Malika jogou a cabeça para trás e fechou os olhos,
suspirando.
— Tenho fome de você! — rosnei, beijando-a
sofregamente.
Ela me abraçou com força pelo pescoço e nos
envolvemos em um beijo carnal, urgente, profundo. Devorei a
boca deliciosa, movimentando o dedo na carne macia, a
excitação que crescia nela deixando-a molhada para mim.
— Yusuf — gemeu nos meus lábios, extasiada.
— Desabotoa a túnica e tira o sutiã.
Achei que ela fosse negar, mas o prazer já tinha
vencido a vergonha e ela fez o que pedi. Quando vi os seios
lindos completamente livres, até gemi de prazer antes de
abocanhar um dos mamilos com uma necessidade premente.
— Oh! — ela gemeu também, arqueando-se contra
mim.
Suguei, mordisquei, mamei, fartei-me nos seios da
minha mulher. Foi quando a penetrei de vez, incapaz de resistir
por mais tempo ao apelo erótico do momento. Úmida, quente,
apertada, ela me recebeu por completo, envolvendo o meu pau
com a sua maciez.
— Malika, Malika — grunhi nos seios dela, arrebatado
pela paixão.
Caminhei até a rocha mais próxima, que usei como
apoio para iniciar as estocadas dentro da minha mulher. Impus
um ritmo mais duro do que o normal, mas ela não reclamou,
movimentando-se comigo.
— Meu guepardo. Come a tua gazela — disse de
repente no meu ouvido e surtei de vez com aquilo.
Entrei forte e duro dentro dela, sem freios, sem medida.
O sangue correu loucamente no meu corpo, junto com as
batidas aceleradas do coração. O prazer cresceu em um ritmo
avassalador e explodiu logo depois em um orgasmo possante,
que me fez esquecer do mundo e me concentrar apenas nela,
a mulher que eu amava acima de tudo e que tirava o meu juízo.
Nos meus braços, Malika gozou também, ofegante.
Entrei fundo nela, os últimos espasmos do orgasmo nos
fazendo estremecer juntos sob o sol quente de Intisaar.
— Hayati!137 — grunhi no ouvido dela, apaixonado. —
Minha Malika.
— Ana lak ala toul.138
Segurei-a pela nuca, beijando-a com o maior amor do
mundo. Malika correspondeu, sugando os meus lábios,
mordendo-me, provando-me. Depois, permanecemos
fortemente abraçados um ao outro.
— Fui muito duro?
— Não vou negar que me surpreendi na hora, mas
confesso que depois gostei.
— A culpa foi sua, que mandou o guepardo comer a
gazela. Não fala mais essas coisas no meu ouvido quando
estivermos nos amando ou perco o controle.
Ela deitou a cabeça de lado, curiosa.
— É sério que foi isso?
Não pude deixar de rir com a inocência dela.
— Muito sério.
Malika então baixou a vista e foi quando percebeu o
estado em que a túnica dela se encontrava.
— Acabei ficando nua.
— Engano seu. Ainda está vestida — brinquei.
A túnica estava toda enrolada na cintura dela,
deixando-a completamente nua nos meus braços.
Malika riu muito, aquela risada que enchia o meu peito
de amor, de orgulho e admiração.
— Estou muito bem-vestida, com certeza.
Sentindo-me feliz como nunca antes, ajudei-a a tirar a
túnica pela cabeça e a levei do jeito que estava agarrada em
mim para a parte mais funda da piscina. A água do mar ali não
chegava nem na altura do meu peito, mas eu sabia que poderia
assustar Malika.
— Não se preocupe. Aqui é raso e não me afastarei de
você — tranquilizei-a, sabendo do trauma que tinha com a
água.
Coloquei-a com os pés na areia e submergi ao lado
dela, segurando-a pela cintura. Abri os olhos debaixo d’água,
vendo a beleza da mulher nua à minha frente, com os raios do
sol iluminando o ventre lisinho, onde um dia o meu filho ou filha
cresceria.
Beijei-o por baixo d’água, orando para Allah nos
abençoar com um bebê.
Capítulo 57
Malika
— Gostaria que você trabalhasse aqui em Taj até
Hisham ser preso, sem precisar se deslocar para o Ministério
da Mulher ou para as casas de acolhimento — Yusuf me pediu
assim que regressamos da lua de mel.
Aquilo não tinha lógica nenhuma.
— Essa prisão vai acontecer quando?
— Não sabemos.
— E vou ficar indefinidamente presa dentro de casa por
causa de Hisham, sem poder estar com o meu povo e os
ajudar? Quero ter a liberdade de ir e vir, Yusuf. Se me tirarem
isso, estarei sendo novamente aprisionada, só que em uma
cela de luxo.
Ele passou a mão no rosto, preocupado. Eu sabia que
Yusuf tinha consciência de estar me pedindo algo absurdo, se
considerássemos que o dia da prisão de Hisham era uma
incógnita.
— Agora vamos supor que ele, ou o meu tio, ou seja lá
quem o mandou para cá, tenha desistido diante do fracasso da
missão de me pegar em Azra e Hisham até já tenha voltado
para Sadiz. Vou viver presa em Taj por um tempo indefinido?
— Você tem razão, habibti. Perdoe-me por ter sugerido
algo que tolheria a sua liberdade.
Abracei-o, acariciando o rosto dele para desanuviar o
semblante preocupado.
— Sei que só quer me proteger por me amar demais.
— Beijei-o levemente nos lábios. — Só que fazer apenas o
trabalho burocrático não me deixa realizada. Ainda assim, farei
isso daqui de Taj por mais uma ou duas semanas. Se neste
tempo vocês não conseguirem localizar o Hisham em Tamrah,
voltarei a trabalhar normalmente com a escolta em
acompanhando.
Ele suspirou aliviado, abraçando-me apertado junto ao
peito.
— Amo você demais mesmo! — declarou-se, beijando-
me intensamente.

Nas semanas seguintes, Hisham não foi localizado e


voltei a trabalhar fora de Taj.
O problema com os refugiados obrigou o Sheik Rashid
a criar a Comissão Especial de Refugiados e Exilados139, para
a qual fui convidada a participar. Eu me senti muito honrada
com o convite, mas o trabalho burocrático não me atraía tanto
quanto lidar diretamente com as pessoas. Ainda assim, aceitei.
O importante era ajudar o meu povo de Sadiz, fosse qual fosse
a maneira de fazer aquilo.
Para minha surpresa, consegui uma assistente
inesperada para aquela missão. Certo dia, Thara bateu na
porta da minha sala na casa de acolhimento querendo falar
comigo.
— Peço desculpas por vir aqui, mas gostaria de lhe
falar, alteza.
Sorri para ela, encorajando-a a entrar.
— Fez bem em me procurar, Thara. Sente-se.
Ela fechou a porta e se sentou na cadeira à frente da
minha mesa.
— Sou muito grata por tudo o que a princesa fez por
mim, mas me sinto mal em ser um peso para o governo,
morando aqui sem colaborar com nada. Gostaria de ajudar a
princesa com o trabalho que faz.
Observei-a com atenção, vendo sinceridade no olhar
que me fitava muito diretamente.
No dia em que a conheci na casa de acolhimento de
Rummán, a cidade onde ela morava, Thara não passava de
uma garota assustada com a crueldade do pai e destruída pela
morte da mãe. Ela havia chegado na instituição de Jawhara em
um silêncio preocupante e depois se isolado na sua dor.
Acompanhei de perto cada momento da recuperação dela e
hoje tinha à minha frente uma mulher decidida e confiante,
apesar de desconfiar que muito dos traumas pelos quais
passou continuavam guardados no seu interior, todos
escondidos, mas não curados.
Eu sabia como era aquilo e a compreendia
perfeitamente.
— Será muito bem-vinda no trabalho que
desenvolvemos junto às mulheres e crianças, Thara.
Vi alívio e felicidade no sorriso que ela me deu.
— Shukran, princesa! Shukran.
Daquele dia em diante ela passou a ser o meu braço
direito no trabalho de ajuda às mulheres e crianças refugiadas
de Sadiz, que foram alocadas em um novo prédio da
instituição, aberto especialmente para os refugiados, localizado
ao lado da Mesquita de Janna140. Era para lá que nós duas
íamos quase todos os dias, apesar de ela continuar morando
no prédio central da Casa de Acolhimento Farah Al-Jaber.
Não obstante houvesse um rigoroso sistema de
segurança nos dois prédios, eu tinha o meu próprio esquema
de segurança montado por Yusuf. Achei um exagero, mas
entendia que ele precisasse de tudo aquilo ao meu redor para
se sentir tranquilo.
— Enquanto não pegarmos o Hisham, o seu esquema
de segurança fica reforçado — ele havia dito quando voltamos
da lua de mel e notei a diferença na quantidade de seguranças
que me acompanharam ao trabalho no dia seguinte.
— E se eu me enganei e aquele homem não era ele?
Preocupei-me que eles estivessem se esforçando à toa
por causa de um delírio da minha parte, mas o olhar de Yusuf
não perdeu a seriedade.
— Já cogitamos essa possibilidade, mas depois a
descartamos. Assad tem contatos com alguns oficiais
insatisfeitos com o regime de governo imposto pelo seu tio e
ficou sabendo que Hisham nunca mais foi visto por lá. O seu
esquema de segurança permanece como está.
— Eu entendo e concordo com o reforço, só falei
porque achei um pouco exagerado. Sei que há muito trabalho a
ser feito nas fronteiras e no país inteiro. Me sinto mal em saber
que os homens que estão me protegendo podiam estar
fazendo um trabalho mais importante.
Yusuf me abraçou com força junto ao peito, segurando
o meu rosto para o olhar de frente.
— O trabalho mais importante que eles podem fazer é
manter a minha esposa em segurança. São homens treinados
especialmente para protegerem a família real e se sentem
orgulhosos disso. Temos milhares de outros militares treinados
para a guerra e são eles que estão patrulhando as nossas
fronteiras. Só na fronteira com Sadiz já colocamos um reforço
de vinte mil militares para conter a vaga de refugiados e
controlar rigorosamente a entrada de seja quem for. Dez mil
homens já seriam suficientes para a extensão territorial que
temos com a fronteira do seu país, mas decidimos dobrar o
número para garantir que o ocorrido em Azra não se repita em
mais nenhum outro lugar de Tamrah.
Fiquei triste ao me lembrar do atentado à bomba que
levou cinco vidas e fez dezenas de feridos.
— Ainda não descobriram nada?
— Descobrimos muita coisa, mas ainda não sabemos
se Hisham agiu sozinho ou se tem mais agentes infiltrados. Os
artefatos explosivos foram feitos por um especialista e
colocados em pontos estratégicos do complexo de
acolhimento. O primeiro explodiu no depósito, o segundo foi no
prédio do escritório onde você estava e o último nos
dormitórios, pegando o Assad de surpresa quando estava indo
atrás de você. A primeira explosão foi para atrair os seguranças
e militares para lá, a terceira foi para desviar a atenção da mais
importante, que era a segunda. Ela foi localizada exatamente
na sala da diretoria, ocupada sempre por um membro da
família real. Neste caso, você.
Mesmo estando abraçada a ele, estremeci.
— Você acha que queriam me... matar?
Um músculo se contraiu na mandíbula de Yusuf, cujo
rosto estava severamente fechado.
— Não temos certeza. Eles escolheram o horário do
almoço para detonarem as três bombas. Obviamente sabiam
que o escritório estaria vazio àquela hora, sendo o refeitório e
os dormitórios os locais onde teriam mais pessoas. Terem
colocado uma bomba na sala da diretoria, mesmo com o prédio
estando vazio, me pareceu muito mais um aviso para a família
real, o que é inadmissível que aconteça. Existem outras
maneiras de se mostrar insatisfação com o governo. Nunca
tivemos este tipo de extremismo no nosso país. As poucas
células terroristas que tentaram se instalar em Tamrah vieram
de fora e conseguimos impedir a tempo que se estabelecessem
aqui. Todas foram sumariamente eliminadas antes que
crescessem.
— Mas por que o meu tio ou Mubarak chegariam a
esse ponto?
— Não temos como adivinhar o que se passa na
cabeça deles, mas você sabe demais e eles podem querer
eliminar você por causa disso. Há décadas que Sadiz é uma
bomba-relógio. A luta pelo poder vem desde que o seu pai e
Suleiman eram adolescentes e agora está tomando um
caminho sem volta. A guerra civil está em vias de acontecer e
nem nos surpreendemos com isso.
— Eu achava que sabia tudo o que acontecia na minha
família, mas agora vejo que não sabia era de nada. Jamais
desconfiei que a diferença de opiniões entre o meu pai e o meu
tio terminaria em uma guerra civil no meu país.
— A sede de poder dá nisso — ele disse sabiamente.
— O meu pai e Saqr estão envolvidos em conversações com
os outros líderes da Coligação Árabe para tentar resolver os
conflitos que estão se agravando na região por causa da
instabilidade interna de Sadiz. Com esta guerra civil prestes a
estourar por lá, temos de reforçar a segurança de nossas
fronteiras. Como você sabe, Sadiz é um país pequeno no meio
de outros maiores. Não tem contato com o mar e suas
fronteiras são apenas terrestres com cinco países. É
justamente com os líderes destes outros quatro países que
circundam Sadiz que o meu pai e Saqr estão em conversas
constantes sobre o problema comum que estamos enfrentando
com os refugiados. Infelizmente, a maioria tem vindo para
Tamrah, por achar que temos mais condições de os acolher e
dar uma nova oportunidade de vida.
— Eu não tenho dúvida alguma disso e até entendo a
escolha do meu povo por Tamrah. Além do mais, eles sabem
que duas princesas de Sadiz estão aqui. Sentem-se acolhidos
por mim e por Kismet.
— Só que não podemos receber a população inteira do
seu país, Malika. Do jeito que eu sou, seria capaz de invadir
logo Sadiz e me apropriar do território inteiro, destituindo
Suleiman e Mubarak do poder. Acabava logo com esta merda
de vez!
— Acho que o Sheik Rashid ficaria horrorizado se
ouvisse isso — comentei em tom de riso.
Yusuf relaxou e riu também, passando a mão na barba.
— Garanto que teria o apoio de Saqr. Ele consegue ser
tão diplomático quanto o meu pai, mas tem a vantagem da
experiência militar. Saqr sabe que em dois tempos
dominávamos Sadiz sem grandes baixas de ambos os lados,
preservando os civis.
— E quem colocariam no poder?
Ele riu e parecia se divertir muito com o que estava
pensando. Depois, deu um beijo molhado na minha boca.
— Uma certa princesa rebelde, talvez.
— Quem, eu? — Caí na risada, incapaz de me
imaginar como a Todo-Poderosa de Sadiz, prevenindo-o depois
com bom-humor. — Isso não ia dar certo. A minha equipe de
confiança seria de mulheres e os cargos mais importantes
também seriam delas. Os homens só teriam posições
subordinadas e acho que não iam gostar muito disso.
— E onde ia ficar o slogan dos “direitos iguais para
homens e mulheres”, senhora ativista?
— Eu ia me esquecer dele por uns tempos. Só um
pouquinho. — Rimos muito, estreitamente abraçados na cama.
— Em compensação, Sadiz se transformaria no país mais
avançado, moderno e próspero da região, tirando esta posição
de Tamrah.
Os olhos de Yusuf brilharam, mas era de orgulho.
— Esta é a minha Malika. Uma verdadeira rainha.

Depois da conversa que tive com Yusuf sobre o reforço


no meu esquema de segurança, dei razão a ele e não comentei
mais nada sobre o assunto. Diante da possibilidade de Hisham
continuar em Tamrah, até agradeci a preocupação comigo.
Ter Thara como minha assessora foi uma das melhores
coisas que poderia ter acontecido. Ela passou a estar presente
em quase todas as visitas que eu fazia ao novo centro de
refugiados e estava sempre atenta a tudo, vendo coisas que às
vezes até me escapavam, como aconteceu certo dia em que
estávamos na minha sala do Ministério da Mulher, analisando
um relatório estatístico no meu notebook.
— Eu acho que estes valores estão errados, alteza —
ela disse, apontando com o dedo uma das colunas com os
números do mês anterior. — Se ver no relatório do mês
passado, vai notar que os números não coincidem.
Fui conferir e comprovei que ela tinha razão. Alguém
havia cometido um erro na hora de transferir os valores para a
nova planilha.
— Você está certa, Thara. Há uma divergência aqui.
Vou pedir que corrijam.
Peguei o telefone e falei com o responsável, que pediu
mil desculpas e disse que ia verificar todos os dados
novamente antes de o reenviar para mim.
Quando finalizei a ligação, virei-me para Thara.
— Você tem um olho certeiro para números. Já pensou
em fazer um curso específico?
Ela arregalou os olhos que refletiam incredulidade, mas
também tristeza.
— Eu queria muito, mas não tenho como fazer.
— Claro que tem como fazer. As faculdades de
Jawhara são excelentes. Kismet está se formando agora em
Gestão na Universidade de Negócios de Tamrah141 e já vai
começar a trabalhar em uma das empresas da Global Harbi.
— A Universidade de Negócios de Tamrah é muito
cara! Só os ricos do país estudam nela. Não tenho como pagar
— justificou, o rosto ruborizando de constrangimento e
vergonha.
Ah, como eu a entendia.
— Terá como pagar a partir de hoje com o salário de
assessora que vai receber.
De olhos esbugalhados de surpresa, Thara ficou
olhando para mim sem acreditar no que tinha acabado de ouvir.
— Um... salário? — gaguejou, atordoada. — Mas,
mas... eu me ofereci para ajudar, alteza. Nunca foi com
intenção de receber nada em troca. Já estou muito agradecida
pelas roupas elegantes que me deu para poder acompanhá-la.
— As roupas foram um presente meu para você. O
salário é o reconhecimento pelo excelente trabalho que tem
feito ao meu lado. Você tem muita habilidade com os números
e não vai desperdiçar esse talento. Quero que se forme para
ajudar ainda mais o nosso país a crescer e o nosso povo a ser
feliz.
Com lágrimas nos olhos, Thara segurou a minha mão e
beijou, permanecendo curvada em agradecimento. Ela foi tão
rápida que nem pude evitar aquele gesto que me deixou
constrangida, mas que eu entendia.
— Shukran, alteza! Que Allah a abençoe sempre com
muita felicidade.
Coloquei a mão no ombro dela e fiz com que se
erguesse.
— Que Allah abençoe a todos nós. Agora, erga a
cabeça e vamos trabalhar, porque tem muitas pessoas
precisando da nossa ajuda.
Ela sorriu, feliz. Limpou as lágrimas e voltamos a
analisar juntas os outros relatórios dos refugiados que estavam
no meu notebook.
Duas horas depois, dei por encerrado o trabalho.
— Fim de expediente burocrático por hoje. Amanhã
vamos cair em campo e falar diretamente com as mulheres e
crianças.
— Já percebi que esta é a parte que a princesa mais
gosta.
— É verdade. Gosto muito do contato direto com as
pessoas, de ouvir, de conversar, do olho no olho. Quero que
sejam elas a me dizerem o que sentem, o que precisam, que
desabafem comigo, para que eu possa ajudar o máximo
possível. Mesmo com informações precisas, um relatório é frio
e não me transmite nada. Ainda que conste nele que dez por
cento dos refugiados são mães com crianças de colo, só vou
sentir a realidade do que elas estão passando se ver e falar
com cada uma pessoalmente. — Fechei o notebook e o
coloquei na pasta. — Sei que o trabalho burocrático é
importante, mas aprecio muito mais o contato humano.
Thara me ouviu em silêncio, pensativamente. Parecia
hesitante, mas depois me surpreendeu com o que disse.
— Me desculpe o que vou falar agora, mas é mesmo
num bom sentido. A princesa nem parece uma princesa, de tão
humana e caridosa que é. Não estou desmerecendo os outros
membros da realeza, porque todos são muito preocupados com
o nosso povo, mas nenhum deles é igual. Vossa alteza é
diferente, especial. É como se conseguisse se ver no nosso
lugar e essa visão a tornasse mais próxima de nós, mesmo
sendo uma princesa.
— Ser princesa é apenas uma condição de
nascimento, Thara. A grande verdade é que somos todos
iguais perante Allah. Há quem deturpe a verdade, mas ela é
uma só. — Segurei sua mão com carinho. — Shukran pelo
elogio, querida. Agora vamos. Vou deixar você na casa de
acolhimento.
Estávamos saindo da sala quando Majdan surgiu no
corredor à nossa frente. Ele havia chegado em Tamrah na
semana anterior, depois do tratamento de desintoxicação e de
finalizar as negociações da expansão da Global Harbi em Nova
York.
Majdan estava tão diferente da última vez em que o vi,
que parecia até outro homem. Logicamente que para melhor, o
que só confirmava o quanto a influência negativa de Mubarak
fez mal a ele durante os anos em que foram amigos. Eu
imaginava que não devia ter sido nada fácil para Majdan
conseguir vencer o vício do álcool e das drogas.
Ele estava vestido tradicionalmente com thobe, ghutrah
e agal, sem dúvida saindo de alguma reunião, e aquela era
uma das maiores mudanças ocorridas nele. Depois do sucesso
no tratamento, ele estava empenhado em ajudar o pai e os
irmãos a conduzir o país.
Com o Sheik Rashid e Saqr ocupados com a iminente
guerra civil de Sadiz e suas repercussões na região, os demais
compromissos e obrigações da família real passaram para
Yusuf e Majdan. Até o Jamal estava assumindo funções no
governo, mesmo sendo tão jovem ainda. Atualmente ocupava
um cargo importante no Ministério da Educação, Ciência e
Tecnologia, onde pretendia melhorar o polo universitário e
educativo do país.
— Salaam aleikum142, Majdan — cumprimentei-o.
— Alaikum As-Salaam143, Malika — ele respondeu com
um sorriso discreto, mas genuíno, desviando a atenção depois
para Thara, que estava parada atrás de mim.
Virei-me para ela, apresentando-os.
— Esta é Thara Ayad, minha assessora.
Ela fez uma reverência respeitosa.
— Salaam aleikum, alteza.
— Alaikum As-Salaam — ele respondeu ao
cumprimento analisando-a com um olhar incisivo, franzindo a
testa ao se dirigir a mim. — É a garota Ayad de Rummán?
Ele falou como se Thara fosse uma menina e não uma
mulher de vinte e cinco anos. Havia apenas dois anos de
diferença entre nós duas e eu não me considerava uma garota.
Depois me lembrei que Majdan era o mais velho dos irmãos,
com nove anos a mais do que o Yusuf, que hoje tinha trinta e
três. Para um homem que estava com quarenta e dois anos,
uma mulher de vinte e cinco devia ser mesmo uma garota.
Majdan aguardava uma confirmação da minha parte
quanto à origem de Thara, provavelmente suspeitando se tratar
mesmo da filha do líder religioso de Rummán.
Senti a tensão dela atrás de mim. Infelizmente, Thara
teria de aprender a lidar com os problemas causados pelo pai e
pelos irmãos dela, que eram do conhecimento de muita gente
em Jawhara e não apenas da cúpula da família real.
— Sim, é ela mesma. Thara está trabalhando comigo.
Majdan olhou outra vez para Thara, mas não consegui
decifrar o que estava pensando ou sentindo. Dos homens Al-
Harbi, para mim ele era o mais imprevisível.
— Você está indo para Taj? — ele perguntou, voltando
a me olhar.
— Sim, terminamos por hoje. Antes vou deixar Thara
na casa de acolhimento e depois sigo para casa.
— Vão na paz de Allah — ele se despediu.
— Ma’a salama.144
Capítulo 58
Malika
— Tem presente para mim hoje? — a pequena Zaíra
perguntou, fitando-me com olhos esperançosos.
— Zaíra, não peça coisas à princesa — a mãe
repreendeu amorosamente a filha de sete anos, segurando-a e
colocando no colo. — Perdoe minha filha, alteza.
Dei um sorriso tranquilizador para a mulher sentada à
minha frente.
Estávamos no quarto que ela ocupava com Zaíra
desde que havia conseguido sair de Sadiz e se refugiar em
Tamrah com a única filha, logo após ficar viúva. O marido de
Tamiris havia morrido durante um dos vários conflitos armados
que estavam acontecendo ultimamente no meu país.
Em vez de ela estar me pedindo perdão, deveria ser eu
a fazer aquilo em nome da família real de Sadiz, que estava
lutando pelo poder sem se preocupar com o sofrimento do
povo.
— Não há do que pedir perdão, Tamiris. — Olhei então
para Zaíra. — Claro que eu trouxe um presente para você.
Quer adivinhar o que é?
A menininha conseguiu descer do colo da mãe e parou
à minha frente, saltitando.
— Uma boneca!
Comecei a rir quando ela acertou em cheio. Olhei para
Thara atrás de mim, que sorria ao ver a alegria da menina.
— Será que é uma boneca, Thara?
— Não sei, mas estou curiosa para ver o que tem aqui
dentro — ela disse, entregando-me a caixa que trazia
escondida às costas.
Zaíra pulou ainda mais, batendo palmas.
— Viu, mamã? — A menina correu de volta para a
mãe, que tentava esconder as lágrimas. — Viu que a princesa
trouxe uma boneca para mim?
Tamiris beijou o cabelo da filha, emocionada ao ver a
alegria dela.
— Ainda não sabemos o que é, filha. Vá pegar o seu
presente e agradeça à princesa.
Zaíra voltou para perto de mim, fez uma reverência
muito fofa e agradeceu.
— Shukran, princesa Malika.
O meu coração se encheu de amor por aquele anjinho
e lhe dei um beijo no rosto, entregando o presente dela.
— Abra e vamos ver o que tem aí dentro.
Zaíra pegou a caixa e colocou sobre a cama, abrindo
com mãos rápidas. Assim que viu a boneca, soltou gritinhos de
alegria. Voltou correndo para mim, abraçou-me pelo pescoço
com a espontaneidade das crianças e deu um beijo estalado na
minha bochecha.
— Ela é linda e vai se chamar Malika.
Fiz um gesto para Tamiris quando vi que ela ia
protestar.
— Sinto-me honrada que a sua boneca tenha o meu
nome.
— Será que tem mais uma boneca para a Núria? Ela é
minha amiga e brincamos juntas. Sei que vai ficar triste quando
ver que eu tenho uma boneca e ela não.
— Todas vão receber uma boneca hoje para poderem
brincar juntas, mas vão ter que prometer estudar bastante
quando começarem as aulas.
— Eu prometo por mim e por elas!
Nós três rimos da maneira engraçada com que ela
falou, desanuviando um pouco o clima de emoção dentro do
quarto.
— Muito bem. Você será a líder e ficará responsável
por lembrar a todas que é importante estudar. Agora pegue a
sua boneca Malika e vá com Thara entregar as outras bonecas
para suas amigas.
Ela fez o que pedi, mas antes de sair deu um beijo na
mãe. Fiquei sozinha com Tamiris, com quem eu queria
conversar a sós.
— Como ela reagiu aos primeiros exames médicos?
— Bem melhor do que pensei. O doutor me disse que
as chances de cura deste tipo de leucemia são maiores em
crianças da idade dela. Estou muito esperançosa.
— Allah vai abençoar Zaíra com a cura. Vamos
continuar em oração.
— Hoje tenho muita fé nisso, alteza. Mas não vou
negar que já tinha perdido a fé quando ainda estava em Sadiz,
vendo a minha filha adoecer cada vez mais sem o tratamento
médico adequado. Antes de morrer, o meu marido pediu que eu
tentasse vir para Tamrah em vez de ir para um dos outros
países com quem tínhamos fronteiras. Ele insistia comigo que
as duas princesas de Sadiz não deixariam o seu povo
desamparado, afirmando que só aqui em Tamrah é que Zaíra
conseguiria ficar curada. Eu vim, mesmo com muito medo do
que ia acontecer comigo e com ela, mas hoje vejo que o meu
marido tinha razão. Ele partiu, mas sinto que continua cuidando
de nós duas lá de onde está.
Emocionei-me com o relato que ela fez, ciente da
responsabilidade que eu e Kismet tínhamos com os refugiados
do nosso país.
— Allah protegeu vocês até chegarem aqui. Agora,
também eu protegerei as duas — garanti, dando-lhe força e
amparo. — Não se preocupe com nada mais além de cuidar de
Zaíra. Me manterei informada de cada etapa do tratamento da
leucemia dela, mas se você precisar de alguma coisa antes
que eu venha visitá-las de novo, peça à assistente social ou a
qualquer outra das profissionais da casa de acolhimento que
me procurem. Elas sabem como me localizar.
— Shukran, princesa. Que Allah a abençoe
infinitamente.
— Que Allah abençoe a todos nós.
Despedi-me dela com um abraço, sem me importar
minimamente com o fato de eu ser ou não uma princesa.
Naquele momento, éramos apenas duas mulheres se unindo
para salvar um anjinho chamado Zaíra.

Thara e eu terminamos o nosso trabalho na casa de


acolhimento dos refugiados no final da tarde. Deixamos a ala
dos dormitórios e fomos para o escritório, onde íamos registrar
alguns dados no sistema informático antes de irmos para casa.
— Agora teremos um monte de bonecas chamadas
Malika, Kismet e Thara aqui — comentei, feliz depois de ter
visto todas as crianças brincando alegremente com os seus
brinquedos.
— Eu nunca pensei que um dia teria o meu nome em
tantas bonecas — Thara comentou, emocionada. — Me senti
honrada ao ver o meu nome ao lado do nome de duas
princesas. Senti vontade de chorar várias vezes hoje.
Sorri com carinho para ela.
— Agora você entende melhor por que prefiro este
contato com as pessoas do que ficar presa dentro de uma
sala?
— Eu entendo, mas acho que sou emotiva demais para
isso, alteza. Com certeza eu ia chorar todos os dias.
— E quem lhe disse que eu também não sinto vontade
de chorar? Só que a vontade maior é de lutar por elas, de
ajudar, de fazer com que sorriam e se sintam felizes.
— A princesa tem razão e me sinto realizada por estar
ajudando também.
Thara se adiantou para abrir a porta que dava para a
ala onde ficavam as salas do escritório, mas ela não se abriu.
— Está fechada.
— Alguém deve ter fechado achando que íamos
embora. — Olhei ao redor e vi um dos seguranças da casa de
acolhimento montando guarda na outra ponta do corredor. —
Será que ele tem a chave? Se não tiver, teremos de dar a volta
no pátio para entrar pelo outro lado.
— Vou lá perguntar.
Fiquei aguardando enquanto ela ia falar com o homem.
Os dois tiveram uma conversa rápida e logo Thara estava
voltando.
— Ele disse que não tem a chave, mas sugeriu um
outro caminho por dentro que podemos usar, sem ter que dar a
volta ao pátio inteiro.
— Então vamos por esse caminho — decidi,
caminhando com ela para onde o segurança estava.
Ele deve ter percebido que íamos para lá, porque
começou a andar à nossa frente, guiando-nos pelo corredor até
uma outra porta, que abriu. Thara entrou e o olhei para
agradecer.
Gelei no instante seguinte ao dar com os olhos
zombeteiros de Hisham Al-Amari. Ele estava ligeiramente
diferente, usando uma barba mais longa e abundante, assim
como o cabelo mais comprido de quando o conheci em Sadiz.
Sem mais nenhuma necessidade de se disfarçar,
Hisham aprumou totalmente o corpo ao meu lado ficando com
sua altura normal. Foi quando percebi que ele estava andando
encurvado para parecer mais baixo e dificultar que o
reconhecesse.
Dei um passo para trás e olhei para o corredor de onde
viemos, a única via de fuga. Não cheguei a dar nem um passo,
quanto mais gritar. Agindo rápido, Hisham me agarrou pela
nuca e tapou a minha boca com violência. Antes de ser
arrastada para dentro do que parecia ser um depósito, vi no
início do corredor uma figurinha pequena e delicada com uma
boneca agarrada junto ao peito.
Zaíra saiu correndo, assustada, enquanto eu, mais
assustada ainda, era trancada com Thara junto de um monstro.
— Mas o que está acontecendo? — Thara perguntou,
adiantando-se para me proteger.
Infelizmente, ela não o conhecia como eu e acabou por
receber um bofetão na cara que a jogou ao chão.
— Cale-se ou vai morrer agora! — Hisham rosnou
como o animal que era.
Ajoelhei-me ao lado de Thara, temendo vê-la morta
mesmo, tamanha foi a violência com que caiu. Foi com alívio
que a vi se virar de costas no chão e olhar para o teto,
atordoada, mas viva.
Ele queria a mim e eu precisava salvá-la. Hisham
mataria Thara sem piedade alguma se eu não fizesse nada
para impedir. Eu tinha que dar um jeito de ela ficar para trás ou
aquele animal ainda faria com ela o que fez com Hessa.
— Leve-me, mas não a mate.
— Não está em condições de pedir nada, “princesa”.
Ignorei a ironia com que ele me chamava de princesa e
me levantei do chão, encarando-o.
— Quem não está em condições de fazer nada aqui é
você, Hisham. Como pensa que vai conseguir sair comigo do
prédio com os seguranças lá fora me esperando?
— E quem lhe disse que eu quero sair do prédio com
você?
Um arrepio nefasto percorreu o meu corpo diante do
brilho assassino que vi no olhar dele. Tive a certeza de que
Hisham estava ali para me matar e não para me levar de volta
à Sadiz.
Um nó de medo apertou a minha garganta e o coração
disparou, retumbando no meu peito.
— Se não quer me tirar daqui, o que quer então?
— Me vingar! — Aproximou-se de mim e tive a
sensação de sentir o sopro do diabo no meu rosto. — A missão
que me deram foi de levar você de volta para Sadiz, mas estou
aqui é para me vingar, “princesa”. Quando fui escolhido para
essa missão, vi que Allah estava me dando a oportunidade de
lhe dar uma grande lição. Por sua causa recebi uma
reprimenda, perdi a minha patente e fui afastado do exército.
Você destruiu uma carreira impecável, que sempre foi o meu
maior orgulho.
Ser um carrasco assassino era motivo de orgulho?
Fiquei até nauseada ao ouvir aquilo.
— Você desobedeceu a um decreto real em Thueban e
agora está desobedecendo a outro — ousei lembrá-lo,
preparando-me para ser agredida a qualquer momento. — Se
foi chamado a atenção, não foi culpa minha.
Ele riu com cinismo.
— Será que a princesa vai começar a implorar? —
escarneceu, provocando-me.
— Você não vai conseguir sair daqui, Hisham. Seja
comigo ou sozinho. Vão pegar você.
— Se eu consegui enganar os seguranças a ponto de
entrar como se fosse um deles, também conseguirei enganar
para sair. Sou um especialista, “alteza”. Eles não são páreo
para mim — vangloriou-se com arrogância. — Qual é a
dificuldade em matar um segurança quando ele está saindo de
casa, vestir a farda dele, pegar a sua identificação e vir
trabalhar em uma instituição cheia de mulheres e crianças?
A frieza com que ele falava de matar alguém era
assustadora. Eu não tinha dúvida alguma de que Hisham era
mesmo um especialista.
Tentei pensar em uma maneira de me salvar da morte
certa, mas a única coisa que veio à minha cabeça foi continuar
conversando com ele para ganhar tempo. Eu tinha esperança
de que Zaíra, mesmo sendo uma criança tão pequena,
contasse para alguém o que viu. Talvez Tamiris fosse rápida o
suficiente para avisar um dos seguranças. Eu só precisava que
um deles chegasse ali e que fosse melhor do que Hisham.
Ainda assim, nada garantia que eu sairia viva dali.
— E como vai ficar a sua carreira quando o meu tio e o
meu primo souberem que me matou?
— Quero que eles vão todos para o inferno! — rugiu
com um esgar de desprezo. — Acha mesmo que eles vão
saber que fui eu quem a matei? Só estão preocupados em se
matarem uns aos outros.
Ele havia acabado de confirmar o que ia fazer comigo e
senti as pernas tremerem. Estava mais do que provado que
Hisham era um opressor radical das mulheres e eu passei a
representar para ele a pior ameaça à dura cultura patriarcal de
Sadiz. Sendo uma princesa, as minhas ações estimulariam
muito mais as outras mulheres, motivando-as a lutarem pelos
seus direitos, do que Badra e Hessa algum dia jamais
conseguiriam. Agora eu realmente entendia a importância que
Farah teve na revolução feminina ocorrida em Tamrah. Sem ela
como exemplo, o processo de mudança seria tão lento que
pareceria nem existir.
Olhei para a expressão raivosa de Hisham à minha
frente e uma tristeza imensa se abateu sobre o meu coração.
Ah, Yusuf! Nunca mais vamos nos ver de novo.
Capítulo 59
Yusuf
— Khara!145 — blasfemei ao ouvir o meu celular
tocando justamente quando eu estava dirigindo.
Diminuí a velocidade e peguei o aparelho no painel
central do SUV para ver quem era.
Era o Assad e atendi no mesmo instante usando o alto-
falante.
— Hisham está com Malika, alteza. — A voz grave se
espalhou pelo interior do carro com a notícia que eu jamais quis
ouvir.
— O quê?! — rugi alto, apertando o volante com força.
Senti como se as garras de um animal feroz
estivessem comprimindo o meu coração. Fiquei
momentaneamente sem ar, para só depois respirar fundo e
aliviar a dor no peito.
Malika! Allah, a minha Malika não pode estar nas mãos
dele!
Lembrei-me de tudo o que ela havia passado na prisão,
de todos os traumas que trouxe do inferno onde a colocaram e
dos anos que levei para conseguir tê-la como minha esposa,
minha amante, minha mulher.
Depois de três anos amando Malika em silêncio, será
que o destino havia reservado para mim apenas algumas
semanas de felicidade com ela?
Tenha misericórdia, Allah! Não a leve agora nem
permita que sofra outra vez nas mãos daquele animal.
— Quero os detalhes! — exigi, preparando-me para
entrar em uma guerra contra Hisham.
— Os seguranças da casa de acolhimento das
mulheres refugiadas de Sadiz acabaram de me ligar para dizer
que uma das crianças viu um homem forçando a princesa a
entrar em uma sala. Foram investigar e descobriram que ele
está mantendo a princesa Malika e Thara reféns.
Fiz uma manobra arriscada no trânsito e mudei rápido
de faixa, pegando o caminho da casa de acolhimento.
— Já confirmaram que o homem é mesmo o Hisham?
— Sim, senhor. Um dos seguranças da escolta tentou
negociar a libertação delas quando percebeu que não podia
simplesmente invadir o local. Elas estão trancadas com ele em
um depósito de alimentos.
Eu sentia vontade de gritar de raiva para aliviar a
pressão psicológica que o medo de perder Malika estava
começando a me infligir impiedosamente. Fiz um esforço
descomunal para manter a mente fria e raciocinar como um
militar experiente e não como um homem apaixonado. Hisham
era um especialista em torturas das mais cruéis e sem dúvida
ia usar aquela fragilidade contra mim.
— Estou a caminho — informei, lutando para assumir o
controle das emoções.
— Também estou indo para lá, senhor. Devo chegar em
menos de cinco minutos.
— Que providências já foram tomadas?
— Acionei a equipe de resgate de reféns. As ordens
são para agirem com o máximo de discrição para não criar
alarde dentro da instituição nem chamar a atenção da mídia.
Toda a área em volta do depósito está cercada.
— Você o conhece melhor do que eu, Assad. Me dê a
sua opinião sobre o caso. Hisham sabe que está encurralado e
isso me preocupa.
— Tem razão, alteza. Ele sabe que não vai conseguir
sair de lá sem usar a princesa como escudo. Mesmo que saia,
não terá como ir longe ou se esconder de nós. Será caçado até
o encontrarmos. Também não poderá voltar para Sadiz com um
fracasso desses nas costas.
— É o fim da linha para ele.
— Exatamente. A única coisa que Hisham ainda tem é
a própria vida, mas não sabemos até que ponto isso será
importante para ele ao perder todo o resto. Ainda assim, é a
única coisa que temos para negociar.
— Ele fez alguma exigência?
Assad ficou em silêncio por tempo demais, o que me
deixou mais tenso ainda.
— Fiz uma pergunta. Responda! — chamei-lhe a
atenção em um tom duro e autoritário.
— Ele quer falar pessoalmente com o senhor. Diz que
só negocia com vossa alteza, mas isso é inadmissível.
— Inadmissível é a minha esposa estar nas mãos dele,
Assad!
— Peço perdão por não ter estado ao lado dela para a
proteger, alteza.
— A culpa não é sua! Estava de folga e com todo o
direito.
— Ainda assim me sinto culpado. Peço autorização
para entrar no depósito e falar com Hisham.
— Se ele quer a mim, não vou arriscar mandando outra
pessoa.
— Não posso permitir que entre lá, senhor!
— Ninguém vai me impedir.
— Sinto muito, alteza. Como Ministro da Defesa, o
príncipe herdeiro Saqr já foi avisado e também está a caminho.
Khara!! Kol Khara!
Furioso, desliguei a chamada e acelerei pelas ruas de
Jawhara, disposto a chegar antes de Saqr. Ninguém ia me
impedir de salvar Malika.
Parei o SUV no estacionamento privativo da casa de
acolhimento onde os outros veículos da equipe especial de
resgate já estavam posicionados. Desci do carro e corri para o
depósito de alimentos, agradecendo por estar fardado e não de
thobe. Desde que Hisham se tornou um perigo iminente no
país, passei a sair de Taj sempre fardado, pronto para entrar
em ação a qualquer instante.
Vi os primeiros homens da equipe de resgate que
cercavam o local no momento exato em que Saqr também
surgiu no meu raio de visão. Ele vinha correndo pelos fundos
do prédio tendo ao lado o Majdan.
Khara! Al’ama! Khara!146
Chegamos os três ao mesmo tempo na entrada do
corredor que levava ao depósito.
— Você não vai entrar lá! — Saqr ordenou, colocando-
se à minha frente.
— Não me dê ordens! Ninguém vai me impedir de
chegar até onde Malika está.
— Eu vou impedir — ele falou com autoridade e cerrei
os punhos, preparando-me para tirá-lo da minha frente na
porrada. — Temos uma equipe especializada em resgates que
fará esse trabalho.
— Eles vão levar horas negociando. Enquanto isso, ela
estará sofrendo nas mãos daquele animal.
— Deixe que tentem primeiro.
— Não vou deixar merda nenhuma! Saia da minha
frente, Saqr!
Majdan colocou um braço entre nós dois.
— Acalmem-se! Vamos conversar.
— Não há tempo para conversas! — lembrei-o, sem
desviar o olhar de Saqr e apontando o dedo no peito dele. —
Agora me diga o que faria se estivesse no meu lugar e a sua
mulher estivesse lá dentro com o animal que a torturou na
prisão. Diga-me!
Ele ficou rígido de tensão e tive a minha resposta. Eu o
conhecia.
— É difícil, não é? — Joguei na cara dele. — É mais
fácil estar no seu lugar e me dizer o que devo fazer, do que
estar no meu. Eu sei que ninguém o impediria de entrar
naquele depósito e tentar salvar Kismet. Então, não tente me
impedir!
Ficamos os três em um silêncio pesado, tenso, raivoso.
— Não vou perder o meu irmão — Saqr disse com o
rosto contraído de emoção.
— E eu não vou perder a minha mulher — afirmei
decidido, mas tão emocionado quanto ele.
— Você vai matar a nossa mãe de tristeza — ele me
lembrou da outra mulher da minha vida.
Vacilei, mas o amor por Malika foi mais forte.
— Sei que vou morrer sem a Malika.
Saqr praguejou, impotente.
— Ninguém vai impedir você — Majdan disse de
repente, visivelmente o mais calmo dos três. — Vamos deixar
que tente salvar a sua mulher, mas antes disso, dê pelo menos
dez minutos para a equipe de resgate tentar negociar em seu
lugar. Se não funcionar, você entra.
— Cinco minutos e nada mais.
— É muito pouco tempo — Saqr se opôs novamente.
— É só o que posso dar.
— Mas que merda, Yusuf! — ele explodiu, agarrando-
me pelo braço. — Você sabe que cinco minutos não é nada
para uma negociação.
— Esses cinco minutos vão durar uma vida para mim.
Não me peça mais do que isso. O meu único consolo é saber
que ela não está sozinha lá dentro com Hisham, que pelo
menos tem a Thara com ela.
— A garota Ayad? — Majdan perguntou com o cenho
franzido e o rosto mais sério ainda.
— Assad me disse que as duas estão presas com
Hisham. — Olhei novamente para Saqr. — Cinco minutos.
Com o semblante fechado, ele se virou com
determinação e foi para o depósito, fazendo um gesto com a
mão para a equipe de resgate que aguardava, autorizando o
início das negociações que ele mesmo ia acompanhar.
Majdan se colocou à minha frente, segurando os meus
ombros com firmeza e me olhando fixamente.
— Você tem cinco minutos para se acalmar e entrar
naquele depósito com a mente fria e focada em aniquilar o seu
inimigo. Se entrar carregado de emoções como está agora, vai
ser uma presa fácil para um torturador experiente.
Eu sabia daquilo. Fiz um gesto afirmativo com a
cabeça, respirando fundo.
— Isso mesmo. Você é um lutador de artes marciais e
tem treino mental para se concentrar no que é importante
agora. Não deixe que o adversário quebre a sua disciplina
antes da luta. Independentemente do que veja quando entrar
naquele depósito, esteja focado — orientou-me com sabedoria.
— Allah estará do seu lado. Agora, concentre-se, meu irmão.
Foi o que fiz. Afastei-me dele e me isolei em um canto
do pátio, concentrando-me no que estava por vir. No meu
íntimo, sabia que Hisham não aceitaria negociar com ninguém
mais além de mim. Ele me queria lá dentro e teria à mão todas
as armas para me vencer, tanto físicas, quando psicológicas e
emocionais. Para vencer as armas físicas, eu só contava com
as minhas habilidades de luta, já que entraria desarmado. Para
vencer a pressão psicológica e emocional de ver Malika refém
dele, eu só podia contar com o meu controle mental,
concentração e foco.
Elevei o meu olhar para o alto, admirando o céu azul.
Dai-me forças para suportar o que vou encontrar lá
dentro, Allah! E que eu seja o instrumento da Tua justiça.
Quem veio me avisar que a negociação havia sido um
fracasso foi o Assad. Trazia na mão um colete à prova de bala.
— Hisham permanece irredutível na exigência de só
falar com vossa alteza.
Despi a camisa, coloquei o colete e a vesti de novo.
— Estou pronto!
Caminhei para o depósito ladeado por Majdan e Assad.
Cercado pelos militares da Força Especial de Resgate, Saqr
permanecia com a fisionomia carregada.
— Que Allah o acompanhe, o abençoe e o traga de
volta para nós, meu irmão — ele disse, abraçando-me com
força.
— Shukran, Saqr. Se eu não voltar, peça perdão à
nossa mãe por mim e diga que a amarei sempre.
— Você vai voltar! — ele rugiu no meu ouvido. —
Confio em você, na sua habilidade e experiência militar. Mostre
para ele quem são os Al Harbi.
— Mostrarei.
Virei-me para Assad, a quem fiz sinal para me
acompanhar até a porta.
— Se me ouvir chamar você, arrombe esta porta e
entre sozinho.
— Sim, alteza. Que Allah o acompanhe.
— Allahu akbar.147
Capítulo 60
Yusuf
Posicionei-me ao lado da porta e bati nela duas vezes
com firmeza.
— Sou Yusuf Al Harbi — falei alto para ser ouvido lá
dentro. — Liberte a minha esposa e Thara, e a sua vida será
poupada.
Sons de movimentação vieram do interior do depósito e
uma chave girou na fechadura.
— Entre sozinho e desarmado. — Uma voz de homem
falou do outro lado.
— Quero uma prova de que ela está viva.
O silêncio que se seguiu foi longo demais para a minha
paz de espírito.
— Fale, princesa! — ele ordenou.
— Não entre, Yusuf. Ele vai matar você!
Malika me alertou para algo que eu já sabia. Ouvir a
voz dela me deixou não só aliviado, mas principalmente
emocionado.
— É melhor que entre ou a rebeldia da princesa vai se
acabar agora — Hisham ameaçou.
Segurei na maçaneta e abri a porta, entrando no
depósito. Os meus olhos analisaram rapidamente o local,
situando-me no ambiente. Era amplo e lotado de estantes com
alimentos de um lado. Do outro lado, havia uma área espaçosa
desocupada, onde uma grande mesa de madeira retangular
ocupava um dos cantos. Malika e Thara estavam amarradas
em duas cadeiras, uma de costas para a outra.
Em pé no meio das duas e com uma pistola encostada
na cabeça de Malika, estava o homem que eu queria pegar
desde que soube que foi o algoz dela na prisão. Ele havia se
posicionado atrás das cadeiras, deixando Malika e Thara entre
nós dois, colocando-as como uma barreira que me impedia de
chegar até ele.
— Tranque a porta e mãos para o alto, príncipe.
Notei o tom de desprezo ao me chamar de príncipe, o
que era até bom para mim. Era importante que Hisham me
considerasse apenas um príncipe de Tamrah e não um militar
treinado e faixa preta em artes marciais.
Girei a chave lentamente, evitando gestos bruscos que
o fizessem disparar aquela maldita arma, e ergui as mãos para
o alto. Não me aproximei, esperando que ele se afastasse de
Malika para vir falar comigo.
— Solte as duas. Ficarei no lugar delas — tentei
negociar com um tom calmo e controlado.
Ele riu com ironia e o analisei friamente. Hisham Al
Amari era um homem quase da minha altura, com um corpo
atlético e olhar sagaz, onde brilhava a autoconfiança. Havia
arrogância e insolência na sua postura, o que o tornava um
homem perigoso.
— Até posso soltar a outra mulher, mas a princesa não.
Nós dois temos um relacionamento especial e estávamos com
saudades um do outro.
Com a mão livre, ele segurou a trança que prendia os
cabelos dela, deslizando os dedos pelos fios com intimidade,
tocando propositadamente um dos seios, enquanto Malika
tentava se afastar inutilmente para o lado. Ela foi corajosa e
aguentou o abuso sem demonstrar emoções ou emitir um único
som. Mais uma vez, pensava em mim e não nela. Malika sabia
que só o meu autocontrole poderia nos tirar vivos dali.
Hisham fez o gesto com os olhos presos em mim para
ver a minha reação, começando o jogo da tortura. Permaneci
impassível, forçando-me a não cerrar os punhos de raiva. Eu
não podia avançar para matá-lo com as minhas próprias mãos,
mas vontade não me faltava. Nem precisaria de uma arma para
acabar de vez com a vida daquele desgraçado.
— Então solte a Thara — disse-lhe, tentando desviar a
atenção dele do que fazia com Malika, ao mesmo tempo que
me esforçava para salvar a garota.
Thara segurou a mão de Malika pelas costas.
— Não quero deixar a princesa sozinha.
— Vá, Thara! — Malika pediu.
— Não! Vou ficar.
Hisham se irritou, o que era um perigo com a pistola
ainda apontada para a cabeça de Malika.
— Chega! Ninguém sai daqui — determinou com
impaciência e decidi que estava na hora de conduzir a
conversa de novo para as negociações.
— Diga quais são as suas exigências para nos libertar.
— Não tenho mais exigência alguma.
Era o que o Assad havia dito e também o que eu mais
temia. Após o fracasso da missão e das consequentes perdas
militares que ia ter por causa daquele fracasso, Hisham estava
disposto a encerrar com tudo de uma vez. Não só tirando a
própria vida, mas também a nossa.
— Se nos libertar, você ainda tem uma chance de sair
daqui com vida.
— E também vou ser condecorado por isso — ele disse
com cinismo.
— Se agradou aos seus superiores, eles vão lhe dar
uma segunda chance. — Vendo que ele não ia se afastar de
Malika nem tirar aquela pistola da cabeça dela, aproximei-me
alguns passos muito lentamente. — Seus companheiros
também falharam, não foi só você.
— Trabalho sozinho. Não preciso de incompetentes ao
meu redor — falou com arrogância, esquecendo-se de que a
situação que estava vivendo já era uma amostra da
incompetência dele.
— Colocou sozinho aquelas três bombas em Azra?
Continuei tentando distrair Hisham enquanto me
aproximava mais um passo, atento a cada gesto dele, a cada
expressão do rosto e do olhar sagaz que também me
observava.
Ele voltou a rir com ironia, o que parecia ser uma
característica dele.
— Já vi que vocês estão perdidinhos, sem saber quem
fez aquilo.
— Obviamente que você sabe. — Aproximei-me ainda
mais, ficando perto das cadeiras e dele, na distância ideal para
aproveitar uma oportunidade de o desarmar com um golpe de
krav maga148. — Quantos agentes de Sadiz foram infiltrados
entre os refugiados?
— Sou o único.
Foi a minha vez de rir com ironia.
— Aquele atentado não foi feito por apenas um
homem. Você teria que ser muito bom mesmo, um especialista,
para conseguir agir sozinho ali dentro.
Ele mordeu a isca.
— Eu sou um especialista.
— Então admite que foi você.
Hisham entendeu a minha jogada ao perceber que se
incriminou. Irritado, tirou a arma da cabeça de Malika e a
apontou para a minha cabeça.
— Está se achando muito espertinho, príncipe?
Era a oportunidade que eu queria e já estava
preparado para ela. Apesar de extremamente perigosa, a
posição era a ideal para um golpe de desarmamento. Usando
todo o treinamento militar e de artes marciais que eu tinha149,
fui rápido ao me mover para o lado e sair da linha de disparo,
ao mesmo tempo em que segurava o cano da pistola com a
mão, dando uma chave de articulação no pulso dele, que torci
com violência.
Um tiro foi disparado para o teto no segundo seguinte,
arrancando um grito angustiado de Malika e de Thara. Ignorei
tudo, focado em aplicar imediatamente uma sequência de
golpes rápidos e eficazes em Hisham antes que ele investisse
contra Malika. Apossei-me da pistola no instante seguinte,
enquanto ele caía para trás.
Achei que Hisham seria um adversário mais perigoso
na luta, já que havia sido um militar das forças especiais de
Sadiz, mas me enganei. A especialidade dele era mesmo
torturar civis indefesos e abusar de mulheres.
Com a pistola dele em punho, circundei as cadeiras e
me posicionei de frente para ele, que já se levantava.
— Achou que só porque sou um príncipe não saberia
lutar, ía ibn el sharmouta?150 — rugi, controlando a vontade de
o abater com um tiro no meio da testa.
Contentei-me em dar um Mae Keague151 no rosto dele
e o derrubar desacordado no chão.
— Assad!
Logo a seguir a porta foi arrombada como eu havia
orientado. Assad entrou com a própria pistola em punho e veio
rapidamente para onde eu estava, responsabilizando-se por
Hisham.
As forças especiais e os meus irmãos entraram no
depósito logo depois, mas eu estava mais preocupado em
desamarrar as mãos de Malika. Não me preocupei com Thara,
ao ver que Majdan já estava fazendo o mesmo com ela.
Assim que Malika ficou livre, abracei-a e fui envolvido
fortemente pelo pescoço.
— Yusuf! — ela disse o meu nome em lágrimas. —
Pensei que íamos morrer.
— Calma, habibti. Já passou.
Peguei-a ao colo e levei para um canto do depósito
onde teríamos mais privacidade.
— Você está bem? — perguntei, preocupado,
colocando-a de pé à minha frente e observando-a com
atenção. — Ele machucou você?
— Não, não houve tempo. Os seguranças chegaram
rápido aqui e tenho certeza de que foi por causa de Zaíra. Ela
viu tudo!
Abracei-a, relaxando da tensão.
— Que Allah seja louvado! Zaíra tem a minha eterna
gratidão.
— A minha também. — Malika segurou o meu rosto
com as mãos. — E você está bem? Ficou ferido?
— Estou bem, não se preocupe comigo. Quero que
saia daqui agora e vá para o hospital. Só ficarei realmente
tranquilo depois que você for examinada pela doutora Bushra.
— E você não vem?
— Não. Ainda tenho um assunto para resolver aqui.
Olhei para trás e vi Thara ao lado do meu irmão.
— Majdan, providencie para que as duas sejam
levadas ao hospital — pedi, fazendo um sinal significativo para
Hisham, que ele entendeu perfeitamente.
— Fique tranquilo. Não as deixarei sozinhas até que
estejam em Taj.
Despedi-me de Malika e voltei para o depósito, onde
Saqr e Assad me esperavam junto com alguns dos seguranças.
Hisham continuava desacordado no chão.
— Um balde de água!
Alguém encheu uma bacia na pia do depósito e jogou
na cara de Hisham. Ele voltou à consciência tossindo muito.
— Tragam-me um chicote de tira única e o amarrem!
A mesma corda que ele usou para amarrar as mãos de
Malika e de Thara foi usada para amarrar as dele. Eu não
precisei dar mais nenhuma orientação aos seguranças. Eles o
despiram da camisa e colocaram amarrado de costas diante de
mim.
Testei o chicote que me deram, ficando satisfeito com a
eficácia dele. Posicionei-me e dei a primeira chicotada nas
costas de Hisham. Ele não conseguiu conter o gemido e pensei
na dor que Malika devia ter sentido sendo tão pequena e bem
mais frágil.
Dei a segunda chicotada, a terceira, a quarta e depois
perdi a conta. Foi Saqr quem me interrompeu minutos depois.
— Por hoje é o suficiente, Yusuf.
Larguei o chicote no chão e saí do depósito, ouvindo
Saqr dar ordens para levarem Hisham para a prisão. Entrei no
meu carro e peguei o caminho do hospital, ansioso para ficar
ao lado da minha mulher.
Capítulo 61
Malika
Eu ainda me sentia tremer quando saí do depósito de
alimentos abraçada à Thara e na companhia de Majdan.
Graças à Zaíra, nós duas tivemos alguma chance de sobreviver
àquele ataque de Hisham.
Ela foi o instrumento de Allah para nos salvar!
Assim que pudesse, eu ia abraçar e dar muitos beijos
naquele anjinho, agradecendo por ter salvado as nossas vidas.
Ao nosso lado, Majdan estava muito sério ao dar
ordens para que a ambulância de prontidão se aproximasse da
área de segurança que havia sido montada em torno do
depósito, mas eu não conseguia deixar de me preocupar com o
fato de Yusuf ter permanecido lá dentro.
— Por que ele fez questão de ficar?
Majdan me olhou com gravidade.
— Yusuf tem todos os motivos para dar uma boa lição
em Hisham.
— Eu não quero que ele seja o responsável por tirar a
vida de um homem por minha causa.
— E quantas vidas Hisham já tirou?
Lembrei-me de Hessa, mas, ainda assim, eu não
queria que Yusuf o matasse por minha causa.
— A justiça é de Allah e não nossa.
— É Allah que decide quem vai fazer a justiça em
nome d’Ele.
Calei-me, incapaz de questionar aquilo. Agarrada em
mim, Thara cambaleou e firmei o braço na cintura dela. Majdan
olhou-a com mais atenção e franziu a testa.
— O que aconteceu com o seu rosto?
Thara colocou a mão no rosto, onde um hematoma se
formava do queixo ao lábio inferior. No meio de tanta tensão,
até me esqueci que ela havia ficado ferida com o golpe que
levou.
— Não é nada sério, alteza — ela respondeu.
— Quem decide se é sério ou não sou eu, e eu digo
que é sério. — Majdan mostrou a autoridade marcante dos
homens Al Harbi.
— Hisham bateu no rosto nela — informei, não vendo
motivo para esconder o óbvio.
Ele estreitou o olhar, que ficou frio como gelo, o que por
si só era preocupante em um homem complexo como Majdan.
— Já disse que não é nada sério — Thara insistiu. —
Passei por coisa pior nas mãos do meu pai e dos meus irmãos.
O golpe daquele homem foi apenas mais um dos muitos que já
levei.
Inspirei fundo, revoltada ao ouvir o que ela disse.
— Mas você não tinha que estar acostumada com isso.
É inadmissível o que fizeram. — Não consegui ficar calada. —
Não me arrependo nem um minuto de ter tirado você de
Rummán e trazido para Jawhara.
Com as mãos na cintura e o olhar fixo em Thara, o
mais velho dos irmãos Al Harbi permanecia tensamente parado
ao nosso lado.
— A ambulância chegou, alteza. — Um dos militares
veio avisar.
— Já vamos — ele respondeu, indicando o veículo
para nós duas. — É melhor irmos logo para o hospital.

Não fazia muito tempo que estávamos no hospital


quando Yusuf chegou. Foi a doutora Bushra quem me avisou
da chegada dele quando veio nos dar alta médica no quarto
onde eu estava com Thara, que havia acabado de ser
examinada.
— Vocês duas podem ir para casa. Thara vai precisar
apenas de um analgésico para as dores que ainda vai sentir
nos próximos dias. Caso sinta que não está bem, deve voltar
imediatamente.
— Shukran, doutora — ela agradeceu com humildade.
Só então percebi que Thara não tinha ninguém que
cuidasse dela caso se sentisse mal. Ela continuava morando
na casa de acolhimento, onde existiam profissionais suficientes
para ajudá-la caso precisasse, mas faltava quem dividisse com
ela o mesmo espaço, que estivesse próximo o bastante para
dar apoio imediato.
Foi pensando naquilo que tomei uma decisão. Só
precisava acertar os detalhes com Yusuf.
Encontrei-o com Majdan na sala da suíte, aguardando
a nossa saída. Assim que me viu, levantou-se e veio falar
comigo. O olhar ansioso cruzou com o meu e tudo o que eu
quis naquele momento foi estar sozinha com ele para poder me
atirar nos seus braços. Pela expressão do rosto dele, senti que
queria o mesmo, mas mantivemos a distância que as regras
exigiam e apenas seguramos as mãos um do outro.
— O que a doutora disse? — ele perguntou com a
mesma preocupação de antes. — Você está mesmo bem?
— Estou bem — reafirmei, tranquilizando-o. — A
doutora Bushra me liberou, pedindo apenas que descansasse.
— Então vamos para casa. Estou ansioso para ter você
em Taj e amar a minha mulher.
Até amoleci só em ouvir aquilo.
— Eu também.
Trocamos um olhar apaixonado.
— Yalla, habibti! — ele falou com firmeza, apertando as
minhas mãos em um gesto significativo.
Foi quando me lembrei de Thara, que aguardava mais
à frente ao lado de Majdan.
— Eu não queria que Thara ficasse sozinha na casa de
acolhimento, mesmo sabendo que lá ela terá apoio se precisar
de algo. Eu preferia que Thara ficasse sob os cuidados de
Layla em Taj. Você faria isso por mim?
Yusuf suspirou profundamente, meneando a cabeça
com um olhar intenso.
— Ainda não percebeu que faço tudo por você, Malika?
Se quer que ela fique em Taj por uns dias, eu providencio. Se
quiser que ela more em Taj definitivamente, eu providencio.
Faço o que você quiser.
— Estou tão feliz! Vou conversar com ela para ver se
aceita ficar lá comigo. Tenho certeza de que consigo convencê-
la depois a morar definitivamente em Taj.
— Está resolvido então. Agora vamos. Quero estar
sozinho com você.
Fomos para onde Thara e Majdan nos aguardavam.
Yusuf foi caminhando na frente com o irmão para me deixar
sozinha com Thara e aproveitei para falar com ela.
— Acho melhor que fique comigo em Taj por uns dias
até que se recupere totalmente, em vez de ficar sozinha na
casa de acolhimento. Não quero forçar você a nada, mas ia
ficar muito feliz se aceitasse.
Thara arregalou os olhos e parou de andar, surpresa.
Logo depois cobriu o rosto com as mãos e percebi que estava
chorando. Abracei-a, tão emocionada quanto ela. Foi naquele
instante que percebi que Thara estava se fazendo de forte o
tempo todo, mas não resistiu ao ver que alguém realmente se
preocupava com ela.
— Aceita vir comigo?
Ela assentiu com um gesto de cabeça, incapaz de falar.
— Então vamos. Temos uma enfermeira maravilhosa
que vai estar ao seu lado a noite inteira. Ficará em um dos
quartos da ala do palácio onde moro, protegida e segura.
Por sobre o ombro dela, vi Yusuf e Majdan parados
mais à frente, observando-nos. Cruzei o olhar com o de Yusuf e
ele entendeu que Thara havia aceitado.
Havia amor e admiração nos olhos do meu marido.

Apesar de Yusuf e eu estarmos ansiosos para ficarmos


sozinhos, assim que chegamos em Taj a família inteira nos
aguardava na Ala do Guepardo. Yusuf foi imediatamente
abraçado por Farah e pelo Sheik Rashid, enquanto Kismet
vinha me abraçar com o semblante angustiado.
— Malika! — Apertou-me com força nos braços. —
Senti tanto medo de perder você quando soube que estava
refém daquele homem!
— Foi terrível, mas já passou. Fique calma, minha irmã.
Notei o olhar preocupado de Saqr sobre Kismet,
grávida de Fhatima. Ele conversava com o pai e os irmãos,
mas dividia a atenção com a esposa. Eu o entendia, pois
também me preocupava com a minha irmã.
— Às vezes fico pensando quando é que nós duas
teremos paz — ela sussurrou no meu ouvido para ninguém
mais ouvir e percebi o quanto estava aflita com a nossa
situação.
— Vamos continuar orando para Allah nos proteger.
Agora se acalme, por favor. Eu estou bem e você deve pensar
em Fhatima.
Depois que nos separamos, foi a vez de Farah vir me
abraçar. O amor de mãe que ela dedicava a mim e à Kismet
era um verdadeiro bálsamo em meio à dor causada pela nossa
família de Sadiz.
— Minha querida, que alívio ter você a salvo em casa.
— Beijou-me na testa. — Allah seja louvado por ter protegido
você daquele homem.
— Não foi só a mim que Allah protegeu, mas à Thara
também — lembrei-me dela, que aguardava atrás de mim.
Kismet já estava segurando a mão dela e trazendo-a
para perto de nós duas. Acabamos por nos sentar as quatro
nos sofás, enquanto os homens continuavam conversando de
pé em um canto da sala.
— Thara vai ficar comigo aqui em Taj. — Olhei para
Kismet. — Acha que Layla pode cuidar dela? Thara foi
agredida por Hisham e eu queria que ela ficasse sob
observação.
— Vou falar com Layla agora, não se preocupe. —
Minha irmã analisou Thara e depois sorriu com compreensão.
— Você deve estar exausta e implorando por uma cama.
— Sinto-me envergonhada por dar tanto trabalho —
Thara começou a se desculpar, mas nós três a interrompemos
no mesmo instante.
— Não é trabalho algum. Acho até que você deveria se
mudar aqui para Taj — Farah disse e fiquei aliviada, além de
muito feliz, ao ver que ela pensava o mesmo que eu. — Venho
pensando nisso desde que o seu pai veio aqui reivindicar os
direitos dele sobre você. Acho que chegou a hora.
— Eu concordo totalmente, mas podemos resolver os
detalhes depois. Kismet tem razão quando disse que Thara
deve estar exausta.
— A princesa também precisa descansar — Thara
pensou em mim, preocupada.
Ao ouvir aquilo, Farah assumiu logo a situação,
levantando-se.
— Quero ver as duas descansando agora mesmo. —
Franziu a testa ao olhar para Kismet. — Na verdade, quero ver
as três descansando. Isso é uma ordem.
Contive o riso, levantando-me com o maior prazer.
Tudo o que eu queria era ficar sozinha com Yusuf.
Em questão de minutos Layla já estava com Thara em
um dos quartos de hóspedes da nossa ala. Kismet foi embora
para a Ala do Falcão com o marido e Farah também saiu com o
Sheik Rashid.
Respirei aliviada quando fiquei sozinha com Yusuf.
Olhamos um para o outro e nos abraçamos livremente.
— Malika, Malika — ele grunhiu no meu ouvido, o rosto
afundado nos meus cabelos e os braços me erguendo do chão.
As palavras faltaram, mas também eram
desnecessárias para nós dois. Tive a minha boca devorada em
um beijo ardente, que correspondi com a mesma necessidade.
Yusuf me pegou ao colo e suspirei nos braços dele,
sentindo-me protegida e amada, algo que pensei ter perdido
definitivamente quando reconheci Hisham na porta do depósito.
Fui levada para o nosso quarto, mas não foi lá que
Yusuf me colocou no chão. Fomos para o banheiro, onde
despimos um ao outro trocando beijos e carícias, os olhares se
cruzando com paixão, o prazer percorrendo o meu corpo e o
dele também, uma vez que o membro enrijecido não deixava
dúvidas quanto àquilo.
Tomamos banho juntos da maneira que gostávamos.
Um lavando o outro enquanto nos acariciávamos. Aprendi a
não ter receio de olhar a nudez de Yusuf, conseguindo manter
o que testemunhei em Thueban exatamente onde tinha de
estar: no passado.
Acariciei o corpo do meu marido, admirando o órgão
ereto que me dava tanto prazer e que me levava ao paraíso. Eu
sentia que o amor que nos unia era abençoado por Allah e que
tudo o que fazíamos um com o outro era uma maneira de
reverenciar aquele amor.
Com a mão ainda insegura, acariciei o abdômen reto e
musculoso, descendo suavemente até alcançar o membro
endurecido, que tanto instigou a minha curiosidade depois de
ter dormido nua com Yusuf pela primeira vez. Naquela ocasião,
mesmo sob a cueca, pude sentir o quanto era diferente de tudo
o que eu havia imaginado. Era duro, sem dúvida, mas macio.
Foi quando cogitei a possibilidade de talvez não doer tanto
quanto eu pensava, apesar do de Yusuf ser bem maior do que
o de Hisham, o único que fui obrigada a ver antes. O do meu
marido não me assustava. Ao contrário, me atraía
irresistivelmente, pois tudo nele era bonito e abençoado para
mim.
Pela primeira vez desde que estávamos casados, desci
a mão totalmente e o envolvi com carinho, arrancando um
profundo gemido de surpresa da garganta de Yusuf. Aquele
som gutural de puro prazer me deixou extasiada e ergui o olhar,
vendo a expressão arrebatada de desejo e paixão que havia no
rosto másculo. O corpo grande se encostou pesadamente
contra a parede do box e Yusuf fechou os olhos, inspirando o ar
com força, ofegando, ainda gemendo.
Eu nunca o havia tocado daquele jeito e fiquei
encantada com o que estava provocando nele, mas também
com o que estava sentindo em mim mesma. Uma contração
deliciosa se expandiu dentro de mim e a sensação de ficar
intimamente molhada aumentou. Era sempre assim quando
fazíamos amor.
Ousei acariciar toda a extensão do órgão com
suavidade, voltando para a ponta macia, onde uma secreção o
tornava escorregadio. Surpresa, acariciei-o mais naquela
região e ele pulsou na minha mão.
— Aaah, Malika!
Encantada com o que estava provocando nele, repeti o
movimento várias vezes, excitando-o visivelmente, mas me
excitando também.
Com o rosto refletindo um prazer violento, Yusuf me
agarrou de repente pela cintura e me suspendeu à altura dele,
fazendo-me envolvê-lo com as pernas. Pensei que fôssemos
para a cama, mas a urgência dele era visível quando sugou um
dos meus seios e me penetrou ali mesmo no banheiro,
impetuosamente. O que senti foi tão forte que arquejei alto de
puro prazer, o som ecoando dentro do banheiro.
Fui colocada contra a parede, os braços dele servindo
de apoio para mim. Nem tive tempo de sentir vergonha pela
maneira carnal com que gemi alto, sentindo um prazer enorme
com aquele momento de posse urgente. Uma urgência que era
tanto dele quanto minha.
De repente, o que era bom subiu de nível e se tornou a
melhor das experiências da minha vida. Eu não sabia se aquilo
estava sendo causado pela situação de perigo pela qual
havíamos passado horas atrás ou pela possibilidade de
morrermos, de não nos vermos mais. Sinceramente, pouco me
importava o motivo, apenas o prazer. Nos braços de Yusuf e
sendo possuída com aquela impetuosidade crua e premente,
eu só pensava em alcançar o paraíso com o meu marido, nós
dois juntos, unidos e inseparáveis.
A sensação de o ter dentro de mim era sempre forte e
profunda, mas daquela vez senti lágrimas de gratidão nos
meus olhos por ter sido abençoada com um amor de almas
gêmeas. O meu clímax foi sublime daquela vez e o dele foi algo
impressionante de ser visto. Eu me excitava muito ao ouvir os
sons que Yusuf emitia quando alcançava o ápice dentro de
mim, ao vê-lo perder o controle ao me possuir, ao grunhir,
rosnar, gemer, ofegar. E não foi diferente daquela vez. O prazer
veio junto, foi compartilhado, dividido, complementado, perfeito
e único, como era o nosso amor.
Fui agarrada pelas nádegas com força quando ele deu
as últimas investidas no meu corpo, que arqueei contra o dele,
sugando-o, tirando-lhe as derradeiras gotas de prazer.
Os meus lábios foram arrebatados em um beijo ardente
e apaixonado.
— Hayati!152
— Habibi albi.153
Capítulo 62
Sadiz

Mubarak
Sorri com satisfação quando o meu celular tocou e vi
quem era. Atendi confiante de que agora poderia voltar a
estreitar mais os laços de amizade com Majdan.
Se ele estava me ligando, só podia ser por já ter
voltado de viagem e estar em Tamrah. O meu serviço de
espionagem já havia me informado que foi Majdan quem
assumiu o lugar de Yusuf nas negociações da Global Harbi em
Nova York, o que era ótimo para mim. Aquilo significava que o
meu amigo estava reconquistando aos poucos a antiga posição
de liderança no governo do pai, podendo vir a me favorecer
futuramente.
Eu precisava manter a nossa amizade a qualquer
custo.
— Salaam Aleikum, meu amigo! Que satisfação voltar a
falar com você.
— Alaikum As-Salaam, Mubarak — o cumprimento foi
educado, mas frio. — O que Hisham Al Amari faz em Tamrah?
A pergunta ríspida e direta me pegou desprevenido.
Fiquei alarmado ao vê-lo citar o nome do homem que eu tinha
enviado à Tamrah para trazer Malika de volta. O meu susto
tinha a ver com o fato de já ter mandado Hisham Al Amari
voltar para Sadiz assim que soube do casamento de Malika
com Yusuf. Aquilo foi algo que fiz com a maior raiva do mundo,
mas que tinha de ser feito. Eu não podia sequestrar uma
mulher casada com um dos príncipes de Tamrah, ainda que a
mulher em causa fosse uma prima que eu queria para mim.
O que eu não estava entendendo era como Hisham
agora estava preso, se havia recebido ordens para voltar.
Não era para ninguém ficar sabendo da presença do
ex-militar em Tamrah, muito menos o Sheik Rashid e os seus
filhos.
Que grande merda!
Eu precisava contornar urgentemente aquela situação.
— Hisham Al Amari? Pelo nome não me lembro de
conhecer — respondi com seriedade, decidido a tentar
descobrir o que o filho da puta do homem havia feito de errado
para ser descoberto.
— Ele é um ex-militar do seu exército. Você pode até
não o conhecer pessoalmente, mas algum dos seus generais
conhece e o designou para esse trabalho, atendendo às suas
ordens.
— Não me acuse sem provas, meu amigo. Este
homem está em Tamrah?
— Ele agora está na prisão e eu avisei a você que não
fizesse nada contra a minha família — lembrou-me com uma
voz grave e ameaçadora.
— E não fiz! Dou a minha palavra que não fiz nada —
afirmei categoricamente.
De certa maneira eu estava sendo sincero, afinal,
suspendi a missão que havia destinado a Hisham. O homem
disse que demoraria um pouco para conseguir sair de Tamrah
sem chamar a atenção da força militar que patrulhava as
fronteiras, mas nunca sequer imaginei que ele continuava
tentando pegar Malika.
— Não foi o que ele disse quando tentou matar a
esposa do meu irmão.
Gelei ao ouvir aquilo.
Mas que filho da puta!
— Ele tentou matar a Malika?
— Exatamente isso.
— Você sabe que eu sempre a quis para mim e não
vou negar isso agora, mas nunca mandaria alguém matar a
Malika.
— Mandar que a torturassem na prisão é o mesmo que
mandar matar.
Sentei-me rigidamente na cadeira.
— Ela foi torturada? Eu não sabia disso!
— Imagino que não, assim como não sabia das outras
coisas. — A ironia dele foi dura e severa.
— Estou falando a verdade! Sempre quis Malika para
mim e não ia autorizar que a torturassem. Isso foi obra do meu
pai. Ele mudou Malika de prisão sem me informar nada e deve
ter dado ordens para que a torturassem. Pergunte a ela se não
a enviei para Asuid e dei ordens para que ninguém a tocasse.
Não fui eu quem a transferi para Thueban.
— Então, afinal, você sabe de alguma coisa, já que
conhece Thueban.
— Fiquei sabendo há pouco tempo. Até isso o velho
escondeu de mim — desabafei a verdade com ele. — Afirmo
que não mandei Hisham Al Amari matar Malika em Tamrah.
— Mesmo que ela tivesse se casado com outro?
— Aí é que não faria nada mesmo, ainda mais sendo o
seu irmão o marido dela. Desisti completamente da minha
prima quando soube do casamento.
— Não tente me enganar! Hisham já estava aqui bem
antes do casamento acontecer e você sabe disso, já que o
mandou. Ele foi visto em Azra durante o atentado à bomba e
estou sem acreditar que você também ousou fazer isso com o
meu país.
— Mas que droga, Majdan! Eu não fiz isso!
— E quem fez, porra? — ele gritou do outro lado,
furioso. — Por acaso vai dizer que foi o seu pai, que está
hospitalizado e afastado do governo? Tenha muito cuidado,
Mubarak. Com as provas que temos, podemos esmagar Sadiz
como se fosse um inseto e ter todos os aliados da região a
nosso favor.
Khara! Al’ama!154
— Reafirmo que não ordenei nenhum atentado à
bomba em Tamrah, muito menos que matassem a Malika. Exijo
que esse homem seja extraditado para Sadiz, onde será
sumariamente executado.
Eu seria capaz de matar Hisham com as minhas
próprias mãos! Só agora eu entendia que o afastamento por
insubordinação era justificado.
— Você não está em condições de exigir nada — ele
disse com uma calma preocupante. — Talvez devesse pedir
misericórdia à Allah para que não seja a sua cabeça a rolar.
Majdan desligou logo depois, deixando-me furioso. Eu
quase não acreditava que ia perder um grande aliado por
causa de um ex-militar insubordinado.
Ah, se eu colocasse as mãos em Hisham Al Amari
quem ia implorar por misericórdia seria ele!
Ayreh feek!155
Passei uma mensagem para o celular de Majdan.
“Quando você se acalmar conversamos melhor. Prezo
muito a nossa amizade e jamais agiria contra os Al Harbi.”
Capítulo 63
Tamrah

Yusuf
— Hisham ainda não confessou nada sobre a
existência de outros agentes secretos de Sadiz no país? —
perguntei à Assad, sentado à minha frente no meu escritório da
Global Harbi.
— Absolutamente nada. Continua afirmando que só
trabalha sozinho.
— Desde o atentado de Azra, não aconteceu mais
nada no país depois que Hisham foi preso, mas não consigo
me tranquilizar com isso.
— Sinto o mesmo, mas às vezes fico pensando se isso
não é mal de soldado. Parece que não nos acostumamos com
a calmaria. Ficamos desconfiados com períodos de paz,
sempre à espera de acontecer um conflito qualquer. — Ele riu,
algo raro no homem sempre sério e compenetrado no trabalho.
— Acho que somos aves agourentas da paz.
Relaxei sobre a cadeira, rindo também.
— Você falou tudo. Lutamos pela paz, mas quando ela
chega e dura muito tempo, ficamos desconfiados. Isso não tem
lógica nenhuma. — Observei-o com atenção. — E como se
sente com a solenidade de condecoração acontecendo
amanhã?
Eu o havia indicado para ser condecorado com a
Medalha de Mérito Militar de Tamrah156 pelo trabalho que fez
durante o atentado de Azra. Graças a ele, as centenas de
pessoas que estavam nos dormitórios foram salvas com vida.
— Sinto-me honrado, alteza. Fiz apenas o meu
trabalho, mas agradeço este reconhecimento. — Ele colocou a
mão no peito e fez uma reverência.
— É merecido, garanto. O meu país só teve a ganhar
com a sua vinda para cá, Assad. É vergonhoso o que Sadiz
obriga os seus melhores oficiais a fazerem.
A fisionomia dele ficou carregada ao ouvir falar do seu
país, algo que eu entendia demais. Ainda que não fosse por ver
a tristeza de Malika a cada notícia trágica que vinha de Sadiz,
eu mesmo me revoltava com o sofrimento que os civis estavam
passando lá.
Estávamos conversando sobre a crise política de Sadiz
quando o meu celular tocou sobre a mesa. Sorri ao ver que era
a Sabirah, mas depois fiquei preocupado ao ver que ela estava
me ligando às cinco da manhã de Londres. Desde que o
horário de verão havia acabado na Inglaterra que estávamos
com quatro horas de diferença e estranhei aquela ligação tão
cedo.
— É a Sabirah — comentei, pegando o aparelho.
Assad franziu a testa.
— Ainda é cedo lá.
— Foi o que pensei.
— Quer que eu saia? — ele perguntou querendo me
dar privacidade para falar com ela.
— Por enquanto não. — Algo me dizia que talvez
precisasse dele e atendi logo a ligação. — Acordou cedo hoje,
Sabirah. O que tirou você da cama às cinco da manhã?
Ela riu, mas achei que foi um riso nervoso.
— Você nem me deixou falar e já está pegando no meu
pé, Yusuf.
— Não estou pegando no seu pé, estou apenas
preocupado com uma possível insônia, o que é diferente. Está
tudo bem por aí?
Sabirah suspirou de um jeito que até consegui imaginar
o rosto lindo com uma expressão de tristeza, o que me deixou
mais preocupado ainda.
— Você parece que adivinha o que sinto.
— Tenho uma intuição muito forte para as mulheres da
minha vida. Agora me diga o que a deixou acordada a essa
hora.
— Não sei como explicar.
— Claro que sabe. Não me lembro de uma única vez
em que você ficou calada quando queria falar alguma coisa.
— Você tem razão. — Ela riu e aquele pareceu ser um
riso mais espontâneo. — Estou tendo problemas com uma
pessoa aqui em Londres e não sei como lidar com a situação.
Aquilo era mais incrível ainda. Sabirah era do tipo que
sabia lidar muito bem com pessoas que causavam problemas,
sempre confiante e assertiva.
— Me conte o que está acontecendo.
— Tem um rapaz aqui na faculdade que nunca me
aceitou muito bem por causa das minhas origens árabes. —
Ela começou e já fiquei tenso ao saber que era algo que
envolvia um homem com a minha irmã.
— Você já veio várias vezes para Tamrah de férias e
nunca comentou isso comigo. Falou com a nossa mãe?
— Nunca falei antes porque no início era só uma
antipatia mútua e nada mais. Piorou depois dos atentados à
bomba de Azra. Ele agora vive me chamando de nomes
pejorativos na frente dos meus colegas. Deixei de ser a Sabirah
e passei a ser a bombista, a terrorista, a extremista. Algumas
amigas de curso vieram me dizer que ele criou uma trend em
uma rede social com o meu nome, onde falam mal de todos os
países árabes, dizendo que em Tamrah somos tão terroristas
como qualquer outro. Eu já vinha sentindo alguns olhares
hostis sobre mim, mas não sabia o motivo. Fiquei sabendo
hoje.
A seriedade daquilo me deixou rígido de raiva.
— Falou com o chefe dos seguranças de Londres?
Ela hesitou, mas desabafou depois.
— Ainda não falei, porque existe uma outra situação
que me preocupa nisso tudo, mas que é algo muito de mulher,
sabe? Não me senti confortável para tocar no assunto com ele.
— Pelo menos falou com a nossa mãe sobre essa
parte?
— Também não. Cheguei a ligar para contar, mas ela
estava tão preocupada com os problemas dos refugiados, do
atentado, da guerra iminente em Sadiz, que acabei desistindo.
O papai e Saqr estão mais envolvidos ainda com esses
problemas e é por isso que estou falando com você agora.
Sempre foi o mais próximo de mim, o mais preocupado, e achei
que me entenderia.
— E entendo. Agora me conte tudo.
Levantei-me da cadeira e Assad fez o mesmo, como se
achasse que deveria se retirar da sala. Fiz um gesto para que
se sentasse de novo e caminhei até o outro lado do escritório,
parando em frente à parede de vidro que dava para o centro
financeiro de Jawhara. Algo me dizia que eu seria incapaz de
permanecer calmamente sentado durante aquela conversa.
— Esse rapaz que falei, ele... ele se interessou por mim
no início desse ano. Eu o conheci através de uma colega do
meu curso durante um seminário promovido pela faculdade.
— E você se interessou por ele? — Era importante
saber até que ponto os dois se envolveram um com o outro.
— Não, de jeito nenhum! — ela negou de imediato e
senti sinceridade na minha irmã. — Quero me casar com um
homem árabe, da minha cultura e que eu ame. Só sinto nojo de
Simon.
— Ele desrespeitou você de alguma forma?
— Pelos padrões ingleses, não. Mas pelos nossos, sim
— ela desabafou e apertei com mais força o celular, já
querendo ir a Londres resolver o assunto. — Ele tentou me
beijar à força e fui obrigada a esbofeteá-lo no meio da festa de
aniversário de uma amiga que estuda comigo, tendo várias
pessoas como testemunha. Desde esse dia que ele se tornou o
meu pior inimigo aqui em Londres.
Enrijeci ao entender o que realmente estava
acontecendo.
— Uma pessoa rejeitada pode se transformar em um
inimigo perigoso, Sabirah — falei, lembrando-me de Rana.
— Hoje sei disso e estou sem saber o que fazer. Sinto-
me ameaçada até dentro da faculdade, não só por ele, como
também por outras pessoas preconceituosas, principalmente os
rapazes. Já ouvi piadinhas sobre... sobre as mulheres árabes
serem piores do que... putas por baixo do véu — ela gaguejou,
envergonhada por falar aquilo para mim. — Perdi todo o gosto
de estar aqui em Londres, mas quero pelo menos terminar
esse ano de estudo antes de decidir se finalizo o curso aqui ou
em outro lugar, Yusuf. Só faltam três meses para o fim das
aulas.
— Você vai terminar, Sabirah — afirmei em tom
categórico. — Não vai ser um qualquer que vai tirar isso de
você.
— Ele não é um qualquer. Simon é da nobreza e filho
de um parlamentar da Câmara dos Lordes.
— E você é uma princesa da dinastia Al Harbi, uma das
mais antigas do mundo árabe. Pouco me importa quem ele é.
Quero o nome completo desse Simon e do pai dele. Vou
resolver isso e você vai terminar o seu curso.
— Ah, Yusuf! Se eu soubesse que ia me sentir tão bem
depois de contar tudo para você, teria contado antes.
— Errou em não me contar, mas ainda foi a tempo de
evitar algo pior. Vou reforçar o seu esquema de segurança e
você não vai reclamar de nada desta vez.
— Prometo que não reclamo.
— Vou enviar um profissional para lidar com essa
situação e ficar ao seu lado vinte e quatro horas por dia, até
que você termine as aulas e volte para Tamrah. Este Simon
também vai ter a lição que merece.
— Você podia enviar a Dina? Gostei muito dela na
época em que fez a segurança de Malika.
Pensei na possibilidade, mas depois mudei de ideia.
Para certos casos um homem era melhor, ainda mais quando
havia ameaça sexual envolvida. Sabirah também estava em um
país estrangeiro, diferentemente de Malika, que teve a proteção
de Dina estando em Tamrah e só durante o tempo em que
ainda estava aprendendo a dirigir um carro.
— Você já tem a Najila aí como sua acompanhante.
Dina não é a pessoa ideal para essa situação. — Olhei para o
homem que aguardava sentado em frente à minha mesa. —
Quem vai é o Assad.
— Assad? Não sei quem é.
Só então me lembrei que Sabirah o conhecia como
Hakim Numan.
— Errei o nome. Quem vai é o Hakim.
— O Hakim? — ela repetiu em tom de reclamação. —
Mas justamente ele, Yusuf? Você sabe que não nos damos
bem.
— Você não se dá bem — corrigi, pois sabia que ele
nunca havia reclamado de nada com relação à Sabirah, apesar
de ela ter reclamado muito dele. — Achei ter ouvido você
prometer que não ia reclamar de nada.
— Oh, isso é tão injusto! — Eu conhecia aquele tom de
voz impertinente e gostei de ver que ela não estava mais triste
ou amedrontada.
— Sente-se protegida ao lado dele? Isso é
fundamental. Se disser que não, envio outro, mas quero deixar
bem claro que o importante agora é ter o melhor ao seu lado.
A resposta não veio de imediato, como se ela estivesse
pensando.
— Me sinto — admitiu com franqueza.
— Se for assediada novamente, vai se sentir mais à
vontade para contar o que aconteceu para ele ou para outro
segurança? Lembre-se que pode não conseguir falar comigo
de imediato e o profissional que estiver ao seu lado precisa
saber de tudo na hora exata para poder agir.
— Não tenho nada contra os seguranças daqui de
Londres, mas sinto como se eles fossem pessoas estranhas.
Se eu comparar o Hakim com eles, é claro que vou preferir o
Hakim, que me protegeu quando eu estava em Taj e que
sempre esteve muito próximo da minha família. A Malika o
adora também, confiando cem por cento nele. É claro que vou
preferir falar com o Hakim e não com outro segurança.
— Então está decido. Será ele quem vai resolver esse
assunto. — Voltei para a mesa, sentando-me com Assad à
minha frente. — Você vai se prejudicar muito nas aulas se faltar
durante três dias? É o tempo que ele precisa para se organizar
e chegar em Londres.
— Posso estudar em casa esses dias.
— Ótimo! Fique tranquila e tente dormir novamente. Se
a minha presença for necessária em Londres, irei sem dúvida
alguma.
— Se vier, traz a Malika.
— Não tenha dúvida disso.
Desliguei, olhando com preocupação para Assad, cuja
fisionomia não estava menos preocupada do que a minha.
— Afinal, nem precisamos ser aves agourentas. Os
problemas surgem quando menos esperamos.
— Tem razão, alteza. Pelo pouco que ouvi, posso dizer
que a princesa está em apuros.
Coloquei-o a par de todos os detalhes que Sabirah
havia me contado para que soubesse da gravidade do que teria
de enfrentar em Londres.
— Minha irmã mostrou ser uma verdadeira Al Harbi.
Aguentou o quanto pôde sozinha para não nos preocupar, mas
agora a situação ganhou uma proporção que está acima do
que ela consegue lidar. Se não tivermos cuidado, um problema
diplomático vai se criar entre os dois países, porque não vamos
ficar de braços cruzados diante dessa ofensa a um membro da
família real e à toda uma nação.
— Eles também ofenderam as nossas mulheres e a
nossa cultura como um todo.
— Vou começar resolvendo isso pelos meios
diplomáticos. Temos contatos importantes na Câmara dos
Lordes e este Simon não perde por esperar. — Trocamos um
olhar sério. — Quero que seja você a cuidar da segurança de
Sabirah até que ela termine as aulas e volte para Tamrah. Você
cuidou de Malika durante o tempo em que estive nos Estados
Unidos e confio que fará o mesmo excelente trabalho com a
minha irmã.
— Agradeço a confiança, alteza. Garanto que farei o
mesmo ou melhor.
Capítulo 64
Malika
— Tia Lika! Tia Lika!
Zayn e Náder saíram correndo para me abraçar assim
que me viram entrar na sala de estudos, o local preferido deles.
Era lá que os dois passavam a maior parte do dia, entre
brinquedos educativos, desenhos animados na televisão e
livros que contavam histórias de bichinhos, de príncipes e de
princesas da nossa cultura.
Agachei-me no chão para os abraçar, quase sendo
derrubada com o ímpeto deles ao se atirarem nos meus
braços.
— Fiz um desenho, tia Lika! — Zayn contou, eufórico.
— O meu! — Náder correu logo para pegar o dele e me
mostrar antes do irmão mais velho.
Achei uma graça aquilo e comecei a rir.
Deitada de lado sobre as almofadas no tapete, Kismet
observava tudo com um sorriso nos lábios. O notebook estava
esquecido sobre a mesa de trabalho, como se ela tivesse se
cansado e resolvido se deitar.
— Chego já por aí — avisei-a, indo primeiro dar
atenção aos meus sobrinhos.
A babá trocou um olhar cúmplice comigo quando
entregou à Náder o desenho que ele fez. Quando o caçula me
entregou para ver, Zayn chegou com o dele, colocando por
cima do desenho do irmão.
— Vou ver o de Náder primeiro e depois o seu, já que
foi o segundo a me entregar — expliquei, segurando o riso
quando ele cruzou os bracinhos no peito imitando o pai.
— Ele fez trapaça.
— Não. Ele apenas foi mais rápido na hora de correr
para pegar o desenho e me entregar.
Zayn se conformou e o beijei na bochecha.
Passei cerca de vinte minutos com eles dois até
conseguir me sentar no tapete ao lado de Kismet. As crianças
agora assistiam a um desenho na televisão e o som da
animação enchia a sala, proporcionando alguma privacidade
para a minha conversa com Kismet.
— Eles estão crescendo rápido ou é impressão minha?
Ela riu, olhando com amor para os filhos.
— Penso nisso todos os dias. — Passou a mão sobre a
barriga de grávida. — Fhatima também está crescendo rápido.
Eu sabia que aquela terceira gravidez não havia sido
planejada por Saqr e Kismet e entendia a preocupação
constante dele com a esposa. Ambos decidiram dar uma longa
pausa depois do nascimento de Fhatima, no que eu
concordava.
Ela me olhou com um sorriso nos lábios e um olhar
provocador.
— E você, quando vai engravidar?
A pergunta me pegou desprevenida, para não dizer que
me chocou completamente.
— Eu, grávida?!
Da mesma maneira que eu havia desistido do
casamento depois da prisão, também desisti de ser mãe.
Apesar de ter me casado com Yusuf e de estarmos cada dia
mais felizes e apaixonados um pelo outro, a maternidade era
algo que ficou esquecido.
Kismet riu ainda mais.
— Sim, você! Ou não estão fazendo amor? Achei que
sim, pela maneira apaixonada como se olham e se tocam
sempre que podem, mesmo na nossa frente.
Entre chocada e subitamente insegura, olhei para a
minha barriga.
— Estamos fazendo amor — admiti, sentindo o rosto
enrubescer de vergonha. — Mas isso nem passou pela minha
cabeça.
Kismet soltou uma risada, mas a expressão dos olhos
verdes era de compreensão.
— Sei como é isso. O desejo e a paixão fazem com
que nos esqueçamos de todo o resto, até das consequências.
— Apontou para a própria barriga. — Fhatima é a maior prova
disso. Mesmo com a nossa decisão de darmos um tempo para
uma nova gravidez, fizemos esta princesinha aqui. Você vai
engravidar, com certeza. Se prepare.
Cobri o rosto ardente com as duas mãos, emocionada.
— Se acontecer, será uma benção. Fiquei tão triste
quando pensei que teria de desistir de ser mãe.
Kismet se sentou para me abraçar com o amor de irmã.
— Vocês dois serão abençoados com filhos e você
será uma mãe maravilhosa. Tem a maternidade na alma, minha
irmã.
— InshAllah!157
— Consigo até imaginar nossos filhos crescendo juntos
e nós duas felizes com nossos maridos — Kismet disse,
suspirando com um sorriso radiante. — Um sonho de vida
realizado.
Rimos muito, abraçadas, até o celular dela tocar em
cima da mesa de trabalho, chamando a nossa atenção.
— Vou pegar para você.
Levantei-me e o peguei, levando para ela.
— É Farah — avisei, identificando a ligação.
Kismet pegou e falou rapidamente com a sogra, o rosto
ficando sério. Quando terminou, levantou-se, puxando-me
junto.
— Farah disse que foi chamada para uma reunião de
urgência no majlis do Sheik Rashid e que nós duas temos de
estar presentes também. Ele quer que estejamos as três lá.
— Ela adiantou o assunto?
— Não. Disse que ainda não sabe de nada.
Trocamos um olhar preocupado.
— Que estranho isso. Vou avisar o Yusuf.
— Nem perca o seu tempo. O sheik está com todos os
filhos no majlis.
Parei no ato.
— Então é sério mesmo.
— Não tenho dúvida. Vamos nos despedir das crianças
e ir rápido para lá.
Zayn e Náder choramingaram quando a mãe disse que
ia sair para conversar com o vovô, querendo ir junto. Ela foi
firme ao dizer que poderiam ir em uma outra ocasião, mas não
naquela.
Com habilidade, a babá desviou a atenção deles para o
filme e fomos momentaneamente esquecidas.
Levamos cerca de dez minutos para chegar ao majlis
do Sheik Rashid. A última vez em que entrei nele foi por causa
da exigência do meu tio Suleiman para que eu voltasse à
Sadiz. Naquele dia, aceitei o casamento com Yusuf, que
mostrou ser a melhor decisão da minha vida.
Mas o que vai acontecer hoje?
— A minha intuição me diz que tem algo a ver com a
nossa família — comentei, preocupada. — Parece que tudo de
ruim vem de Sadiz.
— Penso o mesmo — Kismet concordou tensamente.
Os guardas abriram as portas duplas do grande salão
de reuniões do Sheik Rashid e entramos. Lá dentro todos já
estavam sentados nos aguardando, exceto Saqr e Yusuf, que
estavam de pé e vieram nos receber com as fisionomias sérias.
Na verdade, a fisionomia de todos os presentes estava tão
séria que a minha intuição ficou mais forte ainda.
Farah estava sentada ao lado do marido e Majdan
dividia um sofá com Jamal, o mais novo dos irmãos Al Harbi.
O silêncio era tão pesado lá dentro que resolvi não o
quebrar perguntando a Yusuf o que estava acontecendo. Ele
parou à minha frente e segurou a minha mão, levando-me para
um sofá de dois lugares onde pediu que me sentasse. Achei
que ele fosse se sentar comigo, mas ocupou uma poltrona que
havia sido colocada ao meu lado. Quem dividiu o sofá comigo
foi Kismet, trazida pela mão de Saqr. Igual ao irmão, ele
também se sentou em uma poltrona ao lado dela.
Sem outra alternativa além de aguardar, olhei para o
Sheik Rashid em expectativa.
— Aconteceu nesta manhã o que mais temíamos. A
guerra civil acabou de explodir em Sadiz. Agora é oficial.
A informação triste era para todos os presentes, mas
senti que apenas nós duas ainda não sabíamos daquilo. Pela
expressão dos outros, fiquei com a impressão de que foram
informados antes da nossa chegada.
Senti um arrepio percorrer o meu corpo e
imediatamente segurei a mão de Kismet, que a agarrou com
força, compartilhando comigo a angústia de ver nosso país em
uma guerra civil declarada.
Olhei para Yusuf, ainda sem acreditar que aquilo fosse
mesmo verdade.
— Infelizmente é verdade — ele confirmou sem que eu
precisasse formular a pergunta.
— Acabamos de ser informados — Saqr comunicou
para Kismet. — Nosso serviço secreto já vinha monitorando a
situação e hoje nos deu o alerta vermelho. Não vai demorar
para sair nos noticiários.
— Mas o que realmente aconteceu? — perguntei,
olhando diretamente para o Sheik Rashid. — Nosso pai se
opôs abertamente ao governo de tio Suleiman? Ele nunca fez
isso antes.
— Realmente nunca o fez, mas antes era o próprio
irmão quem estava no poder. Agora é um sobrinho que
assumiu arbitrariamente, aproveitando-se da doença do pai.
Apesar de Suleiman ainda estar vivo, foi afastado do governo e
o país está nas mãos de um governante pior do que ele.
Acredito que esta foi a gota d’água que transbordou o copo. O
descontentamento de parte da população já existia há meses e
não foi isso o que fez eclodir a guerra justamente agora. A
grande verdade é que parte do exército se insurgiu contra
Mubarak. Alguns generais fizeram pressão em cima de
Abdullah e ele teve de agir rápido, antes que fossem os
militares a assumirem o poder e destituírem a família real.
Atualmente, o país está dividido em dois lados. No Norte estão
os apoiantes do pai de vocês, que deram um golpe de Estado
liderado por Abdullah — ele explicou, deixando-me abismada
com a coragem do meu pai. — Mubarak se retirou para o Sul
com parte do exército. Foi uma retirada estratégica dele, pois
ficou próximo da fronteira com Omarih, o único país que até
agora se declarou a favor do príncipe herdeiro. Mubarak
conseguiu receber o apoio do Sheik Farid Al Badawi.
Até me senti mal ao ouvir o nome do meu antigo
pretendente a marido, com quem o meu tio Suleiman queria me
forçar a casar. Ao meu lado, Yusuf ficou mais tenso do que já
estava e segurei discretamente a mão dele.
— E o que vai acontecer agora? — Kismet perguntou,
apreensiva, olhando para o marido. — Vão se matar uns aos
outros pelo poder?
— Os bombardeios de Mubarak a bases estratégicas
do exército aliado do seu pai já começaram há poucas horas.
— E como vão ficar os civis? — Preocupei-me com o
nosso povo. — Há informações de civis atingidos pelos
bombardeios?
— Por enquanto os alvos são militares — Yusuf
respondeu ao meu lado. — Mas não sabemos até onde
Mubarak pode chegar.
— Mubarak é capaz de tudo. — A voz grave de Majdan
soou no majlis pela primeira vez. — Ele aguardou por muitos
anos para ter o controle do país nas mãos e não vai desistir
facilmente. Antes de entrarmos nesta reunião, ele me ligou, por
isso cheguei atrasado pai.
Olhei para Majdan, surpreendida com aquela
informação, mesmo sabendo que o meu primo e ele foram
muito amigos no passado.
Pela expressão de surpresa genuína no semblante de
todos os outros presentes, percebi que não era a única a
estranhar aquela ligação.
— Ele ligou para você? — o Sheik Rashid perguntou
com a testa franzida.
— Sim, ligou. Mubarak veio me pedir ajuda para
combater Abdullah. Ele quer o apoio de Tamrah para reassumir
o governo de Sadiz. Alega que Omarih não tem o nosso
poderio militar para acabar de vez com os rebeldes, que é
como chama o lado da família que apoia Abdullah.
Se Tamrah apoiar Mubarak, o meu pai será aniquilado!
Mesmo com tudo o que sofri ao saber que ele nada fez
para me libertar da prisão e do que fez contra Kismet, eu não
queria que aquilo acontecesse com o meu pai, nem com os
meus irmãos ou com o restante da minha família. Isso sem
falar dos aliados dele e do povo de Sadiz que o apoiava. Ia ser
uma carnificina!
Kismet apertou a minha mão com força, provavelmente
pensando o mesmo que eu. Do meu outro lado, Yusuf acariciou
a minha outra mão em um gesto de conforto, como se sentisse
a minha inquietação e quisesse que me acalmasse.
Em meio a tudo aquilo, notei o olhar preocupado que o
Sheik Rashid trocou com Saqr e Yusuf.
Eles sabem de alguma coisa!
A minha suspeita foi confirmada logo depois.
— Saqr também foi procurado com a mesma finalidade,
mas por Abdullah.
Parecia que uma bomba havia acabado de explodir
dentro do majlis. Quem não sabia daquilo ficou boquiaberto e
preocupado. Tamrah estava no meio de uma disputa paralela à
guerra civil de Sadiz.
Kismet se virou para o marido com os olhos
arregalados.
— O meu pai ligou para você?
— Ligou para me pedir o mesmo que Mubarak pediu à
Majdan, o que nos coloca em uma posição delicada no meio
dessa guerra. Desde o começo das tensões internas em Sadiz
que venho dizendo ao meu pai que não deveríamos nos
envolver caso a guerra eclodisse. Ajudar diplomaticamente,
sim. Apoiar militarmente, não. Esta é a minha opinião.
— Que eu compartilho — Yusuf disse ao meu lado.
— Eu também — Jamal se pronunciou pela primeira
vez, participando ativamente das decisões do país.
— Apoio os meus irmãos — Majdan concordou
igualmente. — E foi exatamente isso o que disse à Mubarak.
— Falei algo parecido para Abdullah — Saqr informou.
— É claro que ele citou o fato de ser sogro de dois príncipes Al
Harbi, ressaltando as ligações familiares que unem os dois
países, sem se lembrar do que fez com as filhas. Insistiu que o
nosso apoio vai fazer com que Mubarak abdique mais
rapidamente do poder.
Um silêncio tenso se seguiu ao que ele disse.
— Acho que não precisamos tomar decisões por
enquanto — Farah deu a opinião dela, olhando para o marido.
— Já conversou com os líderes dos outros países da
coligação?
— Várias vezes antes dessa guerra estourar. Os mais
representativos são da mesma opinião de Saqr, por enquanto.
Omarih nos pegou de surpresa com esse apoio imediato, mas
acredito que seja por causa do casamento de Malika com
Yusuf. Al Badawi deve ter achado que Abdullah o rejeitou como
genro em favor do nosso filho e agora quer revidar.
Ou seja, indiretamente a culpa é minha?
— A responsabilidade é inteiramente minha — Yusuf
assumiu de imediato com irritação na voz. — Al Badawi devia
ser homem o bastante para admitir isso a si mesmo, sem
querer revidar em cima de Abdullah. Ele sabe que não pode
fazer nada contra mim ou contra Tamrah e vai atacar alguém
menor.
— Vejo o dedo de Mubarak aí — Majdan disse,
taciturno. — Ele deve ter distorcido os fatos para manipular Al
Badawi.
— Concordo com os meus filhos em não tomarmos
partido de ninguém — Farah deu a opinião final dela, que eu
sabia pesar muito nas decisões do Sheik Rashid. — Vamos nos
concentrar nos refugiados. Se antes já estavam vindo em
grande número, agora vai ser muito pior.
Ele ficou pensativo por um longo tempo, enquanto
todos nós aguardávamos a decisão que ia tomar.
— Saqr fica encarregado de aconselhar Abdullah na
gestão política da guerra, tentando fazer com que ele negocie a
paz com Mubarak. Abdullah é o mais velho e experiente dos
dois, deve partir dele a diplomacia — o sheik decidiu com
autoridade. — Majdan vai fazer o mesmo com Mubarak,
tentando colocar juízo na cabeça dele. Quero que vocês dois
trabalhem juntos para pôr um fim a essa guerra, deixando bem
claro para os envolvidos que não entraremos com apoio militar,
só diplomático.
Não deixei de admirar a sabedoria do Sheik Rashid,
que ia colocar o antigo príncipe herdeiro para trabalhar com o
atual, unindo os irmãos ainda mais. Notei o olhar satisfeito dos
dois, como se tivessem gostado de estarem juntos naquela
missão.
— Quero até aproveitar a oportunidade para falar de
uma conversa que tive com Mubarak sobre Hisham — Majdan
disse, voltando a ficar com o rosto muito sério ao olhar para
mim. — Ele me garantiu que não mandou Hisham matar você,
Malika. Por tudo o que conheço dele, acreditei nisso, assim
como acreditei que não é o responsável pelos atentados à
bomba. Já o tinha avisado quanto a isso e quero crer que
considerou o que eu disse. A única coisa que ele não me
convenceu, foi da sua inocência quanto a ter enviado Hisham
para sequestrar você e levar de volta à Sadiz. Isso eu acredito
que ele realmente fez, mas também acreditei quando me disse
que desistiu de você depois que soube do seu casamento. —
Olhou para todos os familiares presentes. — Lógico que posso
estar enganado com relação às outras coisas em que julgo que
ele seja inocente, mas quis deixar vocês a par dessa conversa.
Espero que ajude de alguma maneira a descobrirmos de vez
tudo o que aconteceu.
— Hisham admitiu que queria se vingar de mim e que
estava desobedecendo às ordens que recebeu. Acredito que o
meu primo realmente não soubesse das verdadeiras intenções
do homem que mandou para cá, só não posso afirmar nada
com relação ao atentado à bomba.
— Hisham continua negando que é o responsável —
Yusuf informou. — Insiste que só trabalha sozinho.
— Temos refugiados demais de Sadiz em Tamrah.
Qualquer um deles pode ser um outro agente infiltrado — Saqr
deduziu, lembrando-nos do que parecia ser o mais certo.
— Não vamos descartar nenhuma possibilidade.
Continuem trabalhando nas duas hipóteses: ter sido Hisham ou
outro agente — O sheik definiu o assunto. — Esse homem é
perigoso demais para acreditarmos no que diz.
— A única coisa boa dessa guerra civil em Sadiz é que
os presos políticos que estavam nas prisões do Norte já foram
libertados e agora se juntam à Abdullah contra Mubarak —
Yusuf me informou com um sorriso, sabendo o quanto o
assunto dos presos políticos era importante para mim.
— Que Allah seja louvado! — exclamei, emocionada.
— É uma pena que foi preciso acontecer uma guerra para que
fossem libertados, mas estou feliz por eles.
— Isso me lembrou de outra coisa interessante — Saqr
falou, atraindo a atenção de todos. — Abdullah me contou que
Mubarak deixou o pai para trás quando fugiu com suas tropas
para o Sul do país. Suleiman foi encontrado acamado no seu
palácio da capital, cercado por servos fiéis que não o
abandonaram. Abdullah foi conversar com o irmão, a quem
parece não querer tão mal quanto pensávamos. Ele disse que
Suleiman admitiu ter enviado a carta exigindo a volta de Malika,
em uma tentativa de forçar vocês dois a se casarem, assim
acabava de vez com o desejo de Mubarak ter a prima de volta.
Ouvi a inspiração profunda de Yusuf ao meu lado, no
mesmo instante em que ele apertou mais a minha mão em um
gesto possessivo. Da minha parte, agradeci intimamente ao
meu tio por aquele raro gesto nobre, que me salvou de cair nas
garras do meu primo ou do sheik decrépito de Omarih.
— Estou surpreso com Suleiman — o Sheik Rashid
disse, rindo. — Ainda me lembro do quanto fiquei furioso
quando li aquela exigência.
— Mubarak vivia pressionando o pai para que
trouxesse Malika de volta, mas Suleiman não tinha mais
interesse nisso — Saqr continuou, surpreendendo-nos cada
vez mais. — Ele contou para Abdullah que houve momentos
em que chegou a desconfiar que o filho estava planejando
tomar o poder dele.
— Ouvindo tudo isso, até duvido que você esteja
falando da minha família — Kismet disse, meneando a cabeça
com incredulidade. — Estou desnorteada com tantas
descobertas ao mesmo tempo. E você, Malika?
— Deduzo de tudo isso que nesta sala está o melhor
dos Al Kabeer. Você e eu — comentei, controlando o riso.
Yusuf e Saqr caíram na risada, sendo acompanhados
pelo restante da família.
Capítulo 65
Malika
A minha amizade com Thara se fortaleceu ainda mais
depois que ficamos reféns de Hisham. Os momentos de tensão
e a perspectiva de uma morte iminente solidificaram o apreço
que tínhamos uma pela outra.
A prisão de Hisham também serviu para trazer paz ao
meu coração e tranquilidade para Yusuf. Ele relaxou
visivelmente ao ter na prisão o responsável pelo meu
sofrimento em Thueban.
Dias depois daquela data fatídica, eu estava
novamente sozinha com Tamiris no quarto que ela ocupava na
casa de acolhimento das mulheres refugiadas de Sadiz, que
agora se chamava Casa de Acolhimento Malika Al Kabeer.
Quando Farah me contou que tinha resolvido mudar o
nome da instituição para me homenagear, eu quase não
acreditei.
— É uma homenagem mais do que justa — ela me
disse na ocasião, abraçando-me com seu costumeiro carinho
de mãe. — Você tem se dedicado àquelas mulheres com uma
abnegação admirável e acho até pouco esta homenagem.
Chorei, emocionada.
— Shukran, Farah. Me sinto tão honrada que nem
tenho palavras para me expressar.
— Não diga nada então, minha querida. Sou eu quem
agradeço à Allah por ter conduzido você à Taj. Nunca vi o meu
filho tão feliz nem o meu povo tão bem assistido como estão
desde que você chegou.
— Sou muito feliz também com ele e com todos vocês.
Aquela era a mais pura verdade. Yusuf me fazia tão
feliz que eu quase não me lembrava mais do período negro da
minha vida em Thueban. Parecia um passado tão longínquo
que só comprovava o quando o amor conseguia curar todas as
feridas e apagar totalmente a tristeza.
E um dos motivos da minha felicidade estava agora à
minha frente. Tamiris acabava de me informar sobre as
condições de saúde de Zaíra.
— Fiquei muito preocupada com as reações da
quimioterapia, mas não foram tão terríveis como eu achava que
seriam, alteza. Zaíra foi forte e ultrapassou bem os sintomas.
Segurei a mão dela com carinho, feliz por tudo estar se
encaminhando bem.
— Falei com a doutora Bushra, que tem acompanhado
o tratamento de Zaíra com o oncologista, e fiquei muito otimista
também. Nossas orações estão alcançando as graças de Allah!
Ela limpou as lágrimas dos olhos, mas sorria,
emocionada.
— Que Allah seja louvado e a princesa abençoada!
Naquele momento, Zaíra chegou da escola que havia
dentro do complexo da casa de acolhimento. Segurava a mão
de Thara, que tinha ido pegá-la na sala de aula para que
Tamiris pudesse conversar comigo.
A menina correu para mim, feliz.
— Princesa Malika!
Ela se jogou nos meus braços e coloquei-a sentada no
colo, recebendo um beijo no rosto, que retribuí com muito amor.
Thara e eu ainda ficamos um bom tempo com elas, antes de
irmos visitar as outras mulheres que estavam na lista do dia.
No final da manhã, estávamos caminhando pelo pátio
em direção ao refeitório quando me senti subitamente mal.
Uma vertigem fez o mundo girar ao meu redor e me segurei
com força no braço de Thara.
Pega de surpresa, ela olhou para mim e parou
imediatamente de andar, amparando-me com firmeza.
— Sente-se bem, princesa? Está tão pálida!
— Tive uma tontura repentina, mas já está passando.
Thara envolveu a minha cintura com um braço e me
levou para um dos bancos que existiam no pátio.
— É melhor ficar sentada até se recuperar desse mal-
estar.
Ela nem precisava dizer aquilo. Sentei-me com um
suspiro de alívio, respirando fundo até me sentir melhor.
— Acho que exagerei no trabalho.
— Perdemos o horário do almoço também. Deve ser
fraqueza de fome — ela deduziu com razão. — Eu mesma
estou com o estômago roncando.
— Vamos almoçar, então. — Fiz menção de me
levantar, mas ela me impediu com um gesto.
— Já se sente bem para caminhar?
— Só vou saber se me levantar.
E foi o que fiz com a ajuda dela. Não senti nenhuma
tontura ou mal-estar e sorri, aliviada.
— Acho que passou. É melhor irmos mesmo almoçar.
Fomos direto para o refeitório, onde nos servimos de
tudo o que tínhamos direito. De repente senti uma fome muito
grande e comi com gosto. Conversamos bastante durante a
refeição, a ponto de me esquecer completamente da
indisposição quando terminamos.
Fomos para o escritório após o almoço, mas não
aguentei trabalhar a tarde inteira.
— Acho que exagerei na comida, Thara — falei,
escondendo mais um bocejo. — Fiquei com sono e só consigo
pensar em descansar.
— Este já é o quinto bocejo em menos de uma hora. —
Ela riu, desligando o notebook. — Vamos para casa. Amanhã
terminamos de lançar as informações no sistema.
Fechamos o escritório e fomos para o estacionamento.
Quando chegamos ao lado do carro e eu já ia abrir a porta para
me sentar na direção, Thara me segurou pelo braço.
— Talvez seja melhor pedir a um dos seguranças para
dirigir o carro, alteza. Sei que o mal-estar passou, mas acho
mais prudente não arriscar.
Pensei bem e vi que ela tinha razão.
— Concordo com você. Vamos chamar um deles.
Ela foi até o veículo dos seguranças que estava
estacionado atrás do meu carro e voltou logo depois com um
deles. O homem se sentou na direção e fomos para o banco de
trás.
Saímos do centro de acolhimento e fui conversando
com Thara sobre o trabalho. Estávamos quase perto da
entrada privativa que levava à Taj quando vimos vários carros
da polícia passando em alta velocidade no sentido contrário,
seguidos por várias ambulâncias.
— Céus, o que será que aconteceu? — Thara
perguntou e olhamos para trás para ver o comboio seguindo
pela longa avenida.
— Isso é tão incomum — comentei, estranhando aquilo
tudo.
Fiquei mais inquieta ainda quando o veículo dos
seguranças que seguia atrás do meu carro nos ultrapassou e
se pôs à frente. No instante seguinte, os dois carros
aumentaram a velocidade rumo à Taj, com o da frente abrindo
caminho.
Virei-me para o segurança.
— O que está acontecendo?
Ele demorou a responder e só então percebi que
estava concentrado em algo que lhe diziam pelo fone de
ouvido. Só depois ele olhou para mim pelo espelho retrovisor
com o rosto mais sério do que o normal.
— Ainda não sabemos, alteza. Mas acabamos de
receber ordens para levá-la o mais rápido possível para o
palácio.
Olhei para Thara, que estava tão chocada quanto eu.
Preocupada, abri a minha bolsa e peguei o celular, ligando para
Yusuf. Ele não atendeu, o que era mais estranho ainda.
Voltei a olhar para o segurança, que me observava pelo
retrovisor.
— O príncipe já sabe que estamos a caminho do
palácio, alteza. Se não atendeu, é porque deve estar muito
ocupado agora — tranquilizou-me.
— Shukran.
Thara segurou a minha mão em um gesto de conforto e
me agarrei a ela.
— Estou preocupada — sussurrei.
— Não há de ser nada muito grave. Alguém no palácio
saberá dizer alguma coisa.
Ela tinha razão e só não liguei para Kismet ou para
Farah porque tínhamos acabado de entrar na longa via
privativa que levava à Taj. Contudo, notei o excesso de
veículos militares que bloqueavam o acesso ao palácio.
— Deixe-nos na Ala do Falcão — orientei o segurança,
que assentiu.
Eu estava decidida a falar pessoalmente com Kismet.
Sem dúvida alguma ela deveria saber o que estava
acontecendo.
Pouco tempo depois, Thara e eu descíamos na entrada
da Ala do Falcão e percorríamos os corredores às pressas.
Encontrei a minha irmã nos aguardando à porta da suíte com a
testa franzida de preocupação.
— Kismet, o que está acontecendo?
Ela me segurou pela mão, cumprimentou Thara e
depois nos levou para dentro.
— Venham, vamos entrar.
Só quando estávamos sentadas na sala foi que ela
voltou a falar.
— Aconteceu um outro atentado à bomba, Malika —
minha irmã disse com o rosto entristecido.
— Eu não acredito! — exclamei, trocando um olhar
horrorizado com Thara. — Mas..., mas quem fez isso? Hisham
já está preso e nunca mais houve nada em Tamrah.
— Pelo jeito o homem mentiu mesmo quando disse
que veio sozinho à Tamrah. O certo é que tem um terrorista
solto lá fora e voltamos a entrar em alerta vermelho.
— Onde foi o atentado dessa vez?
Kismet inspirou fundo antes de responder e uma
sensação desagradável me dominou.
— Infelizmente foi na sua casa de acolhimento.
Senti o meu corpo tremer e a vista escureceu. Ao meu
lado, Thara abafou uma exclamação de susto com as mãos
quando ouviu a notícia.
Ainda sem acreditar naquilo, meneei a cabeça,
sentindo dificuldades em respirar.
— Na minha... casa de acolhimento? — sussurrei,
arrasada e com lágrimas subindo aos olhos. — Mas... eu
estava lá... e deixei tudo bem quando saí.
— Aconteceu alguns minutos depois da sua saída.
Saqr me disse que Yusuf só não enlouqueceu de preocupação
porque já tinha sido informado da sua saída de lá. Os
seguranças estão sempre em comunicação constante e avisam
à central quando vocês estão chegando ou saindo de algum
lugar. Yusuf é informado de imediato.
Olhei para minha irmã com o coração sangrando ao me
lembrar das mulheres e crianças de Sadiz que se encontravam
lá.
— Por Allah, as nossas mulheres e crianças, Kismet! —
solucei, inconsolável.
Ela contraiu os lábios com força, sem conseguir conter
o choro também. Thara já chorava copiosamente.
— Zaíra! Tamiris! — gritei ao me lembrar delas. — As
minhas outras crianças! Oh, eu não vou aguentar isso.
Curvei-me sobre os joelhos, soluçando de angústia e
tristeza. Fui abraçada por Kismet e por Thara, nós três
compartilhando da mesma dor.
— Eu me desesperei quando soube, achando que você
estava lá, mas Saqr me garantiu que não — Kismet contou
entre lágrimas. — Depois me lembrei das crianças e das mães,
todas inocentes. Vieram para cá achando que estariam
protegidas da violência e só encontraram mais violência ainda.
— Eu quero ir para lá! Quero ficar com elas, ajudar.
Devem estar assustadas. — Levantei-me, decidida.
Kismet se levantou também.
— Não, Malika! Não podemos ir. Yusuf e Majdan já
estão à frente de tudo no local do atentado. O Sheik Rashid e
Saqr estão em uma reunião de emergência com os
comandantes das forças armadas. Não temos como ir para lá.
— Eu vou de qualquer jeito!
— É impossível, minha irmã. O palácio está
completamente cercado. Ninguém sai, e só entra quem está
autorizado.
— Eu não vou conseguir ficar de braços cruzados sem
fazer nada.
— Podemos rezar, alteza — Thara disse em um
sussurro sofrido. — Quando não podemos fazer nada, Allah faz
por nós.
Limpei as lágrimas do rosto.
— Sei disso, mas está sendo difícil aceitar essa
situação.
— Ainda não sabemos qual foi a área atingida nem
quantas bombas explodiram. Deixe que Yusuf trabalhe
tranquilo sabendo que você está aqui em segurança. Ele sabe
o quanto a casa de acolhimento é importante para você e vai
fazer de tudo para salvar o máximo de pessoas.
Coloquei as mãos na cabeça, respirando fundo e
fechando os olhos. O mundo voltou a girar ao meu redor e caí
na escuridão segundos depois.
Capítulo 66
Malika
Quando voltei à consciência estava deitada no sofá da
sala de Kismet, com Layla ao meu lado.
— Com se sente, princesa?
— Estou bem.
Tentei me sentar, mas ela me impediu, colocando uma
mão sobre o meu ombro.
— Ainda não, por favor. Aguarde só mais um pouco.
— Ela tem razão, Malika — Kismet disse, aparecendo
na minha linha de visão. — Você ficou pálida de repente e
desmaiou na nossa frente. Por sorte Thara conseguiu segurar
você ou teria sido uma queda feia.
— Foi o choque com o que aconteceu.
— Acho que não foi só isso. A princesa teve uma
vertigem hoje quando estávamos no trabalho — Thara informou
à Layla algo que eu já nem me lembrava mais, de tão
preocupada que fiquei com o novo atentado na minha casa de
acolhimento. — Foi por isso que viemos mais cedo para casa.
— O que sentiu, princesa? — Layla perguntou,
preocupada.
— Foi apenas uma vertigem que passou depois que
me sentei um pouco. Tínhamos passado da hora do almoço e
acho que foi uma fraqueza momentânea.
A expressão do rosto dela suavizou quando terminei de
falar.
— Muito bem. Vou fazer um exame de sangue rápido
para ver se está tudo sob controle.
— Pode fazer. — Olhei para Kismet. — Tem alguma
notícia? Eles ligaram?
— Ainda não, minha irmã. Nem espere que Yusuf ligue
agora. Ele sabe que você está em segurança no palácio e vai
se concentrar só no atentado.
Fechei os olhos e inspirei fundo. Nada mais me restava
além de rezar por Zaíra, Tamiris e todas as outras mulheres,
crianças e funcionários que estavam na casa de acolhimento.
Kismet praticamente me mandou tomar um banho e
trocar de roupa ali mesmo na Ala do Falcão.
— Quero estar em casa quando Yusuf chegar.
— Ele deve saber que estamos juntas, mas passe uma
mensagem avisando que está aqui comigo. Assim que puder
ver o celular, ele vai ler a sua mensagem e virá buscá-la
quando chegar. Não quero que fique sozinha — ela decidiu
com firmeza, olhando depois para Thara. — Faça o mesmo e
fique aqui. O apartamento que Malika ocupava antes do
casamento está à disposição de vocês.
Fomos para lá, tomamos um banho e voltamos depois
para onde Kismet estava com as crianças. Os meus sobrinhos
me ajudaram a relaxar um pouco, apesar de o meu
pensamento estar constantemente indo para Yusuf e a casa de
acolhimento.
As notícias na televisão não falavam de mortos, apenas
de feridos, assegurando que as forças especiais do exército já
tinham tudo sob controle. Eu me sentia revivendo o atentado de
Azra e aquilo me angustiava.
— Não paro de rezar para que estejam todos vivos.
— Eu também — Thara me olhou com tristeza.
— Quem será que está por trás disso? — Kismet
comentou no final da reportagem. — Aquele homem horrível
está preso.
— Essa pergunta não sai da minha cabeça.
— Pode ser alguém que esteja inconformado com a
entrada dos refugiados de Sadiz no país. — Thara deu a
opinião dela. — Nem todo mundo está gostando disso.
— Yusuf comentou comigo que eles estão investigando
todas as possibilidades, sem descartar nenhuma, mesmo as
mais improváveis.
— Se o terrorismo fosse fácil de combater, não existiria
mais no mundo e sabemos que não é bem assim que
acontece. — Kismet tirou as palavras da minha boca. — Até os
países do ocidente são pegos de surpresa com atentados.
Eu já não aguentava mais olhar o meu celular para ver
se Yusuf respondia à minha mensagem. Avisei que estava com
Kismet, mas também pedi que me informasse se as crianças e
mulheres estavam bem, principalmente Zaíra e Tamiris.
Layla veio se juntar a nós três no momento exato em
que o meu celular e o de Kismet tocaram ao mesmo tempo.
Soube no instante seguinte que eram eles.
Peguei o meu e fui para um canto afastado falar com
Yusuf.
— Fique tranquila, não houve mortos. — Foi a primeira
coisa que ele disse. — Zaíra e a mãe estão bem, apesar de
assustadas.
— Que Allah seja louvado! — Comecei a chorar de
puro alívio. — Eu estava tão angustiada.
— Me perdoe por não ter ligado antes para tranquilizar
você. Por favor, não chore, habibti.
— É de alívio e felicidade. — Eu me sentia tremer e me
sentei na poltrona mais próxima. — Eu entendo que você não
tivesse como me ligar antes que tudo estivesse sob controle aí.
Tem alguma previsão de quando vem para casa?
— Ainda não, por isso acho melhor que fique com
Kismet. Eu pego você aí.
Estranhei a demora, considerando que não houve
vítimas mortais.
— Há algum problema?
— Vamos para uma reunião de emergência com os
comandantes da unidade de contraterrorismo.
Tinha toda a lógica, mas um alerta disparou dentro de
mim ao saber daquela reunião.
— Onde colocaram a bomba?
Yusuf não respondeu de imediato e aquela hesitação,
mesmo rápida, foi o suficiente para que eu adivinhasse a
resposta.
— Na sua sala — ele informou em um tom de voz
controlado, mas que não escondeu de mim a raiva que sentia.
— Se você não tivesse vindo para casa antes da hora, estaria
dentro do escritório com Thara quando ela explodiu.
Coloquei as pernas em cima da poltrona e abracei os
joelhos, assustada. Agora já não existia mais nenhuma dúvida
de que o alvo era eu.
— Então alguém quer mesmo me matar?
— Ninguém vai matar você, Malika. Eu não vou deixar!
— ele disse com firmeza, a raiva tornando sua voz
ameaçadora. — Vamos descobrir quem está por trás disso,
fique tranquila.
— Tenha cuidado, Yusuf.
— Terei. Pego você aí quando chegar. — Ele baixou o
tom de voz. — Ana bamoot fiky.158
— Ana bhebak, habibi albi.159

Yusuf chegou tarde, por volta das onze horas da noite.


As crianças já tinham ido dormir há muito tempo, assim como
Thara, que foi embora com Layla logo depois das nove horas.
Fiquei sozinha com Kismet, que adormeceu poucos minutos
antes de Saqr entrar no quarto.
Levantei-me na hora, ansiosa para ver Yusuf.
— Faz tempo que ela dormiu? — ele perguntou, o olhar
preso em Kismet sobre a cama.
— Há uns vinte minutos.
Ele assentiu e notei o cansaço na fisionomia séria.
— Meu irmão está aguardando por você lá fora.
— Shukran, Saqr.
— Tesbahi al khair160, Malika.
— U inta bkhair161.
Saí do quarto e encontrei Yusuf na sala. Ele ainda
estava com o uniforme militar e expressava no rosto o mesmo
cansaço de Saqr. Assim que me viu, veio ao meu encontro e
me atirei nos braços abertos dele. Fui erguida do chão e nos
beijamos com a força da saudade causada pelo atentado.
Foram sete horas de espera, mas que pareceram muito mais.
Beijei-o com avidez, acariciando os cabelos negros, a
barba crescida, os ombros largos, devorando e sendo devorada
pela boca ansiosa.
— Hayati162 — gemeu nos meus lábios.
— Wahashitiny163 — sussurrei de volta, resistindo à
vontade de cruzar as pernas na cintura dele, como me ensinou
a fazer sempre que nos amávamos em pé.
— Vamos para casa. Quero amar a minha mulher.
Ele me colocou no chão e saímos da Ala do Falcão.
— Como ficaram as coisas na casa de acolhimento?
— Está tudo cercado por militares. Cada pedaço foi
vistoriado pela equipe antibombas e nada mais foi encontrado.
Estão todos em segurança lá, não se preocupe.
Assim que chegamos em casa ele tirou as botas e
indicou o banheiro com um gesto de cabeça.
— Vem comigo.
Não hesitei em fazer o que pediu, tão ansiosa quanto
ele para nos amarmos.
— Deixa eu me limpar primeiro.
Ele se livrou do uniforme militar assim que entramos no
banheiro e foi direto para o box. Aguardei em deliciosa
expectativa, admirando o corpo do meu marido, másculo e
perfeito em cada detalhe, principalmente o membro que já
endurecia de excitação.
Yusuf se lavou me observando também, o olhar intenso
e cheio de promessas me deixando ofegante e molhada.
— Tira a roupa para mim — pediu, mas em um tom
exigente.
Ergui a abaya, mas o fiz lentamente, com um rebolado
sensual de quadris da dança do ventre. Senti o olhar dele ficar
mais profundo ao acompanhar o meu movimento, o membro
cada vez mais duro à medida que o tecido erguido deixava à
mostra cada parte do meu corpo. Tirei completamente a abaya
e a joguei ao chão, abrindo depois o sutiã. Na hora de o tirar,
virei as costas para Yusuf, tendo o cuidado de deixar os meus
cabelos cobrindo as cicatrizes, e só então deixei a peça cair ao
chão.
— Tira a calcinha nessa posição e só depois se vira de
frente para mim.
Senti o rosto arder de vergonha, mas fiz o que ele
pediu, inclinando-me para tirar a calcinha, que foi parar em
cima do sutiã. Às minhas costas, Yusuf falou uma palavra
obscena em um tom enrouquecido que me deixou pasma.
Olhei-o por sobre o ombro, a tempo de ver a expressão faminta
com que os olhos escuros devoravam o meu corpo, o membro
completamente duro apontando para cima.
— Vira de frente.
Virei-me, mas antes puxei os cabelos para a frente e
cobri os meus seios com eles.
— Você está me provocando.
— E isso provoca você?
Ele segurou o próprio membro com a mão firme e
começou a movimentá-la em um vaivém que me deixou
chocada, mas também fascinada. Senti o meu rosto ruborizar
ainda mais, os olhos presos naquela cena incrivelmente erótica
para mim.
— O que você acha? — ele perguntou em um desafio.
— Chega aqui, Malika!
Caminhei para ele, incapaz de continuar distante.
Assim que fiquei ao alcance das mãos de Yusuf, fui agarrada
pela cintura e novamente erguida até ficar à altura dele.
Contudo, daquela vez pude envolver as pernas em sua cintura,
ansiosa para o momento da posse.
— Atiçou o guepardo? Agora vai ter de alimentá-lo,
minha gazela — grunhiu no meu ouvido, fazendo-me arquejar
de prazer quando me arrepiei toda.
Tomei a iniciativa e beijei-o com fervor, sugando o lábio
inferior mais carnudo dele, agarrando-o pelos cabelos
molhados do banho. Yusuf perdeu o controle e me penetrou no
instante seguinte, forte, grande e duro, arrancando um gemido
da minha garganta. A boca esfomeada desceu para os meus
seios, sugando-me, excitando-me, drenando as minhas forças.
A sensação que senti foi indescritível. Era como se eu
tivesse o controle sobre ele, mas, ainda assim, houvesse um
animal incontrolável no interior de Yusuf que só fazia o que
queria, ainda que estivesse com uma coleira. Aquele era o lado
rebelde do meu marido, um lado que gostava do perigo,
indomável e dominador, que se encaixava direitinho em mim.
Fui possuída de encontro à parede do box, sentindo a
força dos músculos que ondulavam sob as minhas mãos. O
ritmo era enlouquecedor, assim como o prazer. Yusuf
arquejava, ofegante, em uma imagem que por si só já era
excitante demais de se ver.
Cheguei ao clímax com uma rapidez tão grande que
me surpreendeu e senti que ele veio comigo logo depois. A
intensidade com que os espasmos contraíram as minhas
entranhas foi tão forte que praticamente desfaleci nos braços
dele quando tudo acabou.
Permanecemos estreitamente abraçados, unidos,
ligados. De comum acordo, mas sem emitirmos palavra
alguma, nos beijamos com o amor transbordando no coração.
Depois, voltamos para debaixo do jato de água morna e
terminamos o banho.
Quando nos deitamos para dormir, estávamos tão
exaustos do dia que adormecemos rápido. O primeiro foi o
Yusuf, visivelmente mais cansado do que eu. Ainda o observei
dormindo pesadamente antes de fechar os olhos e dormir
também, mas não sem antes agradecer à Allah por ter me
salvado da morte certa naquele dia.
Capítulo 67
Malika
Igual como aconteceu no atentado anterior, Yusuf me
pediu para trabalhar em casa por uns dias. Eu entendia e
concordava, mas quis deixar a minha posição bem definida.
— Eu fico em casa, mas não será por muito tempo,
você sabe disso. Não posso ficar trancada em Taj a minha vida
inteira com medo de sair para trabalhar.
— Não pretendemos ter um bombista solto em Tamrah
para sempre, Malika. Estamos trabalhando para identificar,
localizar e prender o mais rápido possível quem está fazendo
isso. Hoje vamos interrogar novamente o Hisham.
Desconfiamos que ele sabe de alguma coisa.
— Mas ele continua afirmando que não fez nada.
— Mesmo que não tenha sido ele, acredito que viu
alguma coisa em Azra e saiba quem são.
Segurei-o com firmeza pelo braço.
— Interrogatório sem tortura.
Yusuf hesitou com o rosto muito sério ao ouvir o meu
pedido.
— Não depende só de mim. Hisham também sabe que
se colaborar não vai lhe acontecer nada.
— Ainda assim.
— Tentarei.
Não era a resposta que eu queria, mas já era alguma
coisa.
Yusuf segurou o meu rosto com as duas mãos e beijou
os meus lábios com uma certa rudeza. Era um beijo possessivo
acima de tudo, muito característico dos momentos em que ele
estava sob muita pressão.
— Estarei em reunião a manhã inteira e só poderei
atender ligações após o almoço, mas lerei todas as mensagens
que me enviar. Ligarei assim que puder.
— Estarei trabalhando com Thara aqui mesmo na ala
ou então com Kismet e as crianças.
Satisfeito, ele se despediu e foi embora com passadas
firmes e uma postura decidida no corpo alto, como se estivesse
indo para uma guerra. Suspirei, subitamente cansada.
Voltei a me deitar na cama e adormeci sem nem
perceber. Quando abri os olhos novamente e vi o adiantado
das horas, levantei-me de um pulo para me arrumar. Foi
quando o quarto girou ao meu redor e caí sentada na cama,
sentindo-me nauseada.
Respirei fundo várias vezes até me sentir melhor, mas
fiquei preocupada com aquele mal-estar. Já era a segunda vez
que acontecia em menos de vinte e quatro horas.
Acho que estou mais cansada do que pensei. Devo
estar trabalhando demais.
Voltei a me levantar, mas daquela vez foi lentamente,
testando o meu próprio corpo. Não senti mais nada e fui para o
banheiro com cuidado.
Depois que me aprontei, decidi ligar para Layla. Thara
devia estar à espera da minha ligação para começarmos a
trabalhar, mas antes queria a opinião da enfermeira com
relação àquele mal-estar. Ela já devia estar com o resultado da
análise de sangue que fez no dia anterior e descobriria o que
eu tinha.
— Como se sente, alteza? — Foi a primeira coisa que
ela perguntou.
— É justamente por isso que estou ligando, Layla.
Senti aquela mesma tontura quando me levantei agora de
manhã. Será que a anemia voltou e está mais forte do que
antes? Você já tem o resultado da análise de sangue que fez
ontem?
— Tenho. Posso ir agora aí?
— Sim, venha. Yusuf já saiu e estou sozinha.
Por segurança, resolvi esperar sentada no sofá da sala
até que Layla chegasse. Assim que ela entrou, respirei aliviada.
Com um sorriso tranquilo, a enfermeira se sentou ao
meu lado.
— Você está tão calma que até já me acalmei também.
— Sorri com um certo nervosismo. — A sua presença ao meu
lado também ajuda muito, Layla.
— Obrigada, princesa.
— Antes de mais nada, quero pedir que não fale com
Yusuf sobre o meu mal-estar de ontem, muito menos conte que
desmaiei. Vou pedir o mesmo à minha irmã e à Thara.
Se ele soubesse, ia ficar preocupado e insistir para que
eu não saísse mais de casa, o que era inviável para mim.
— A princesa não vai conseguir esconder do príncipe o
que tem.
Fiquei assustadíssima com o que ela disse.
— Bismillah!164 O que tenho é tão grave assim?
Layla riu com a mesma expressão tranquila no rosto.
— O que tem é algo muito comum de acontecer com as
recém-casadas. Está grávida.
Paralisei com a respiração em suspenso, sem acreditar
no que ela havia dito.
— Grávida?! — perguntei, necessitando urgentemente
de uma confirmação. — Eu estou grávida?
— Sim, a princesa está grávida.
— Tem certeza disso, Layla?
— Tenho. A princesa está grávida do príncipe Yusuf.
Cobri o rosto com as mãos e me curvei sobre as
pernas, chorando de felicidade com a confirmação de que
estava mesmo grávida de Yusuf.
Senti o braço de Layla me envolver com carinho pelos
ombros.
— Parabéns, alteza.
Abracei-a, emocionada.
— Shukran, Layla. Eu ainda estou em choque, mas
muito feliz.
Ela riu, compreensiva.
— Algo me diz que o príncipe também vai ficar em
choque quando souber.
Eu ri e ri muito, sentindo-me feliz como há tempos não
me sentia.
— Sim, ele vai ficar. — Afastei-me, limpando o rosto e
me recompondo. — Não conte nada para ele, por favor. Sei
que recebeu orientações para o informar sobre a minha saúde.
— Não contarei para ninguém. Deve ser a princesa a
dar esta notícia abençoada para todos.
— Preciso tomar algum cuidado? Vou continuar
sentindo náuseas e tonturas? Confesso que me sinto meio
insegura com relação a isso.
— Estes sintomas são normais, mas é claro que
exigem cuidado, principalmente as tonturas. Vou marcar uma
consulta com a ginecologista que acompanha a princesa
Kismet e ela fará os exames pré-natais. Depois, é só seguir as
orientações que ela der. Já comeu alguma coisa hoje?
— Ainda não. Como me senti mal, preferi falar primeiro
com você.
— Vou pedir que lhe tragam uma refeição e preparar
uma dieta para os enjoos matinais.
Enquanto ela providenciava tudo pelo celular, coloquei
a mão sobre a barriga, rindo como uma boba. Sofri muito ao
ser obrigada a renunciar à maternidade e agora quase não
acreditava que o meu sonho de ser mãe ia mesmo se realizar.

— Você está grávida?


A cara de susto de Kismet foi tão engraçada que
comecei a rir.
— Sim, estou. Layla confirmou no exame de sangue
que fez ontem.
— Aaah!!! Que Allah seja louvado por esta benção! —
ela gritou de felicidade, abraçando-me. — Estou tão feliz que
até parece que sou eu e olhe que já estou grávida.
Rimos muito, comemorando a minha gravidez.
— Eu ainda estou sem acreditar. Fico com a sensação
de que não é comigo, de tão incrível que é.
Kismet se afastou, olhando-me amorosamente.
— Mas está feliz?
— Muito! Muito mesmo. Só me sinto meio... sei lá,
despreparada. Fui pega de surpresa.
Ela riu com malícia.
— E o que queria que acontecesse depois de uma lua
de mel ardente em Intisaar?
Fiquei vermelha de vergonha diante da minha irmã
mais nova. Pela lógica, seria eu a ter todas aquelas
experiências antes dela, mas aconteceu o contrário. Hoje, era
ela quem me orientava sobre coisas que eu não sabia, por ter
vivido a situação antes de mim.
— Você acreditaria se eu dissesse que não associei
uma coisa com a outra na hora?
Ela riu ainda mais.
— Sinal de que estava gostando tanto que se
esqueceu das consequências, mas garanto que o Yusuf se
lembrou.
Olhei-a em dúvida.
— Você acha?
— Tenho certeza — ela garantiu sem vacilar. — Mas
pela pergunta já vi que ele ainda não sabe.
— Fiquei sabendo agora e vim logo contar para você.
Yusuf vai passar a manhã inteira em reunião.
Ela ficou séria, perdendo parte da alegria que havia
sentido ao receber a notícia da minha gravidez.
— Saqr também vai passar a manhã fora em reunião
por causa do atentado de ontem. Eu conheço o meu marido e
ele não vai sossegar enquanto não pegar quem fez isso.
— Yusuf está do mesmo jeito. Saiu hoje parecendo que
ia para uma guerra.
— É quase isso, minha irmã. Só que uma guerra contra
o terrorismo.
Ela me segurou pela mão e levou para a antiga sala de
estudos, que Saqr havia transformado em um escritório para a
esposa. Era de lá que Kismet o ajudava a gerir algumas das
empresas da Global Harbi nos últimos meses de gravidez.
Sentamo-nos no sofá de canto, largo e aconchegante,
com almofadas coloridas que alegravam o ambiente.
— Vamos conversar sobre coisas boas, como nomes
para bebês, cuidados na gravidez e como gerir a superproteção
dos maridos estressados com o nosso bem-estar. — Caímos
na gargalhada com o último tópico. — Tenho muita experiência
com tudo isso.
— Yusuf não é como Saqr.
— Ah, não? Pois espere só para ver.
Capítulo 68
Yusuf
Durante as reuniões que tive de manhã, consultei
várias vezes o celular para ver se havia alguma mensagem de
Malika. Se não fosse o fato de saber que ela estava em
segurança dentro de Taj, teria me preocupado com a ausência
de mensagens dela, mesmo sabendo que Malika dificilmente
interromperia uma reunião minha, exceto se fosse urgente.
A reunião com os comandantes da unidade de
contraterrorismo terminou deixando todos os presentes
frustrados, principalmente Majdan e eu. O encarregado de
acompanhar o interrogatório de Hisham chegou no meio da
reunião e nos informou que o prisioneiro mantinha a mesma
versão dos fatos: não foi ele o responsável pelo atentado de
Azra e nem sabia quem era.
Quando nós dois demos tudo por encerrado e voltamos
para casa, a única coisa que eu queria era almoçar com Malika
e aproveitar o máximo de tempo com ela antes de voltar para
as reuniões da tarde, que seria com o nosso pai e com Saqr.
Ambos estavam ocupados em gerir a guerra civil de Sadiz junto
com os outros líderes da Coligação Árabe, enquanto Majdan e
eu trabalhávamos no combate aos terroristas.
Apesar de termos dois atentados à bomba para
investigar, até o momento nenhum grupo havia reivindicado os
ataques.
Despedi-me de Majdan e fui para casa, ansioso para
ficar com Malika. Para minha surpresa, ela não estava na Ala
do Guepardo, o que me deixou imediatamente preocupado. Só
então me lembrei que ela disse que estaria ali ou com Kismet.
Tirei o celular do bolso e liguei para ela.
— Onde você está? — perguntei assim que atendeu.
— Com Kismet?
— Sim, estou com ela e nem vi o tempo passar. Já
terminou a sua reunião?
— Sim, acabei de chegar em casa.
— Vou pedir que sirvam o almoço. Daqui a pouco estou
aí.
— É o tempo que tomo um banho.
Foi exatamente o que fiz, deixando a água morna
relaxar os meus músculos tensos. Não era fácil controlar a
urgência que eu sentia de pegar a pessoa que estava
ameaçando Malika, tentando matar a minha mulher.
O pior de tudo era saber que não conseguiria mantê-la
longe por muito tempo do trabalho com os refugiados. Malika
era dedicada à causa humanitária que havia abraçado como
missão de vida e eu sabia o quanto lhe custava ficar longe das
pessoas que ajudava, como Zaíra e a mãe. Eu admirava
demais aquele lado dela, o humanismo intrínseco que possuía,
a abnegação com que se preocupava com os desfavorecidos e
o quanto enchia de esperança e luz a vida das pessoas com
quem convivia, inclusive eu. Ela era a minha luz e eu jamais a
privaria de fazer o que amava.
Terminei o banho me sentindo mais relaxado e fui me
vestir. Saí do closet no instante em que ela entrou no quarto,
emanando felicidade. Usava uma abaya acastanhada que
combinava com a cor dos olhos amendoados, o tecido leve
ressaltando o tamanho dos seios que me enlouqueciam,
marcando a cintura delgada e a curva mais ampla dos quadris.
Eu já não conseguia mais viver sem Malika ao meu
lado. Ela era o meu tudo e uma urgência premente se apossou
de mim. Assim que ela chegou ao alcance do meu braço,
puxei-a pela cintura e a suspendi do chão, colando os nossos
corpos. Tomei os lábios macios com os meus, saboreando a
minha mulher.
— Senti a sua falta — murmurei no ouvido dela,
inebriando-me com o perfume que usava.
— Eu também, habibi albi165.
— Sinto falta da tranquilidade de Noor e dos passeios a
cavalo na praia de Intisaar com você. Aqui parece que o tempo
é curto para ficarmos juntos.
— Por mim, voltamos para lá na hora em que você
quiser, mas tão cedo poderei andar a cavalo novamente.
Franzi a testa, preocupado. Guiado pelo instinto de
proteção, apertei-a mais nos braços. Malika era uma excelente
amazona e amava andar a cavalo.
— E por que não? Está se sentindo mal ou com algum
problema de saúde que não possa cavalgar?
— Sinto-me muito bem e não tenho nenhum problema
de saúde — ela disse, acariciando os meus cabelos e me
olhando com tanto amor que aqueceu o meu peito. — Estou
grávida.
Fiquei tão desnorteado que vacilei nas pernas. Com
muito cuidado, coloquei-a de volta ao chão, meus pulmões
necessitando de mais oxigênio para me ajudarem a assimilar o
que ela havia dito.
Fechei os olhos e inspirei fundo, tentando controlar a
emoção.
— Repete, Malika.
A minha voz soou irreconhecível até para mim mesmo,
de tão rouca que estava, mas eu precisava urgentemente de
uma confirmação.
— Estou grávida, esperando o nosso bebê.
Por Allah, é verdade mesmo!
Agora não havia mais dúvida e liberei de vez a
emoção. Incapaz de ficar de pé, sentei-me na cama e atraí
Malika para o meio das minhas pernas, afundando o rosto na
barriga lisinha onde já existia um filho nosso crescendo, uma
mistura minha e da mulher que eu amava.
Eu não tinha palavras para falar, apenas emoção que
transbordava do peito. Senti um orgulho masculino
impressionante tomar conta de mim com uma força
assustadora ao assimilar totalmente que Malika estava grávida.
Grávida!
Lágrimas inesperadas encheram os meus olhos e não
havia como as impedir de fluir. A necessidade que eu sentia de
Malika só cresceu e ergui o tecido da abaya, desnudando as
pernas, as coxas e os quadris dela, até chegar à barriga, que
reverenciei com vários beijos.
Ela terminou de tirar a abaya, ficando apenas de
lingerie à minha frente. Tirei a minha roupa também e a segurei
pela cintura, deitando-a na cama ao meu lado.
Uni as nossas testas, beijando-a repetidas vezes no
rosto.
— Você me fez o homem mais feliz do mundo.
— E o meu mundo ficou completo depois que me tornei
sua esposa. Você me ensinou a não ter medo de fazer amor,
me ajudou a superar o passado, e, agora, realizou o meu
sonho de ser mãe. Ana bamoot fik, habibi albi166.
Emudeci completamente. Malika tinha nas mãos o
poder de me calar, de me derrubar sem erguer um único dedo,
de me dominar com um simples olhar. Ela era a gazela que
vencia o guepardo, majestosa como uma rainha.
Só me restou reverenciar aquela mulher com o meu
amor, com o meu corpo, com a minha paixão.
Saboreei os lábios tentadores, sorvi o gosto da boca
deliciosa, devorei os seios volumosos cujos mamilos se
ofereciam para mim, bebi da umidade do sexo rosado que
implorava por carinhos, e transformei seus gemidos em
arquejos de gozo, levando-a comigo às alturas do prazer que
só os amantes realmente apaixonados conseguiam alcançar.
Nosso orgasmo veio junto, como juntos estávamos
destinados a ficar.

— Agora teremos três em uma mesma cama. Vai ficar


sem espaço aqui — brinquei com ela enquanto acariciava a
barriga onde o meu filho crescia.
Tínhamos acabado de nos deitar para dormir e
estávamos enroscados por baixo dos lençóis.
Malika riu ao ouvir o meu comentário.
— Se for um menino tão alto quanto o pai, vai ocupar
mesmo muito espaço. Mas se for uma menina tão baixinha
quanto a mãe, vai sobrar.
Inclinei-me e beijei a barriga dela.
— Seja um príncipe ou uma princesa já amo muito.
Ela acariciou os meus cabelos enquanto eu encostava
o rosto no ventre lisinho e a abraçava pela cintura.
— Você vai querer saber o sexo antes, como Saqr e
Kismet fizeram?
Pensei bem antes de responder.
— Não, eu não quero saber antes. Prefiro ter o prazer
de descobrir a surpresa que Allah nos reservou no dia do parto.
Ele nos abençoou com um bebê que vai nos fazer muito feliz e
isso é o que importa para mim. E você, quer saber antes?
Ergui a cabeça para ver a reação no rosto dela. Malika
sorria, feliz com a minha escolha.
— Também não quero saber.
Trocamos um olhar apaixonado antes que eu a
beijasse nos lábios.
— Vamos escolher um nome de menino e um de
menina e deixar guardados até o dia chegar — sugeri,
deitando-me de costas na cama e trazendo Malika para o meu
peito. — Gosto de Zahara para menina e de Sharif para
menino. E você?
Ela ficou calada e pensativa.
— Gosto muito dos nomes que você escolheu. Por
mim, ficamos com eles.
Fiquei emocionado que ela aceitasse os nomes que
escolhi. Malika era, sem dúvida alguma, a alma que
completava a minha.

Se antes de saber da gravidez de Malika eu já estava


preocupado com as saídas dela de Taj para trabalhar, depois
que fiquei sabendo não conseguia nem pensar naquilo sem me
estressar em grau máximo. Para mim, era inconcebível deixar
que ela voltasse às casas de acolhimento, fosse dos refugiados
de Sadiz ou outra qualquer.
Pela primeira vez na minha vida eu não sabia como
fazer a gestão de algo importante. Eu tinha a sensação de que
lidar com Malika exigia mais diplomacia do que lidar com todos
os líderes da Coligação Árabe de uma vez só.
Malika vinha realizando o trabalho dela à distância,
comunicando-se com as mulheres, crianças e funcionários por
videoconferência. Foi utilizando-se daquele método que ela
conversou assim que pôde com Zaíra e Tamiris, tranquilizando-
se de que as duas estavam bem depois do atentado. Eu sabia
que ela tinha um apego especial pela Zaíra e que
acompanhava de perto o tratamento da leucemia da menina.
Sempre que podia, ela comentava comigo o quanto estava feliz
com o sucesso das sessões de quimioterapia.
No trabalho à distância que fazia a partir de Taj, Malika
conversava com todas as refugiadas que podia, mas eu sentia
a frustração dela com as limitações daquele método de
trabalho.
Semanas depois do atentado, tivemos o nosso primeiro
desentendimento sério por causa daquilo, e como foi difícil
manter a minha posição.
— Hoje volto a trabalhar fora de Taj — ela me disse em
tom firme certa manhã quando eu já estava pronto para ir
trabalhar.
Parei no meio do caminho para a mesa de cabeceira
onde ia pegar o meu celular antes de ir embora.
— Você não vai — neguei de pronto, virando-me para
ela parada atrás de mim.
— Vou.
Ela manteve a decisão que tomou com um olhar
desafiador.
— Não vai. Ainda não é seguro.
— Mas é claro que vou, Yusuf! — afirmou em tom
irritado. — Coloque todos os seguranças que quiser ao meu
redor, mas eu vou voltar ao meu trabalho fora de Taj.
— Por Allah! Você ainda vai me enlouquecer.
— Quem vai enlouquecer sou eu aqui dentro! Se
depender de você, nunca mais saio de Taj. — Apontou um
dedo para o meu peito. — Agora me diga quando poderei voltar
a trabalhar fora do palácio. Já se passaram semanas desde o
atentado e não posso continuar presa dentro de Taj.
Suspirei quando ela disse que estava presa,
preparando-me para uma conversa delicada. Ser tolhida na sua
liberdade de ir e vir para onde quisesse e quando quisesse
poderia ser um gatilho perigoso para Malika, por isso tentei
lidar com a situação da melhor maneira possível.
— Você não está presa. Taj não é uma prisão para
você.
— Se não posso sair de Taj, então o palácio se
transformou em uma prisão. A minha vida não pode se
restringir só a isso!
Segurei-a pela mão e me sentei na cama, colocando-a
em pé entre as minhas pernas, assim ela não ficava tão
dominada pela minha altura.
— Eu sei disso e garanto que a sua vida não vai se
restringir só ao palácio. É tudo transitório e vai passar. Me dê
mais um tempo para avançarmos com a investigação. Até lá,
você e o nosso bebê estarão mais seguros aqui em Taj.
Ao ouvir falar do nosso filho, ela concordou com um
gesto de cabeça, os lábios comprimidos no rosto tenso.
— Não fique triste por causa disso, Malika.
Senti o quanto se esforçou para sorrir com resignação.
— Não estou triste. Você tem razão. Tenho que pensar
no bebê.
Fiz com que se sentasse no meu colo, onde Malika se
aconchegou, abraçando-me com força pelo pescoço. Coloquei
a mão sobre o nosso filho, acariciando a barriga dela.
— Vai dar tudo certo, habibti.
Malika colocou a mão sobre a minha e tomei a boca
rosada em um beijo, que ela correspondeu, relaxando nos
meus braços. Ficamos trocando beijos apaixonados e carícias
até entrar uma mensagem no meu celular.
— Deve ser o Saqr. — Peguei o aparelho para ler a
mensagem dele. — Preciso ir agora. Ele está me esperando
para irmos a uma reunião na Global Harbi. Se precisar de
alguma coisa, me ligue que volto para casa.
— Pode ir, não vou precisar de nada. Está tudo bem
comigo.
Fui trabalhar aliviado por ter conseguido contornar a
situação, mas horas depois a artilharia pesada partiu de uma
ligação da minha mãe.
— Durante quanto tempo mais Malika vai ficar sem
exercer as funções dela como minha assessora, filho? Ela está
grávida e não doente para ficar presa dentro de Taj.
— Ela não está presa em Taj e isso não tem nada a ver
com a gravidez, mãe. Malika está no palácio por causa dos
atentados nas casas de acolhimento.
— Ninguém me disse que ainda havia risco de novos
atentados nas minhas casas de acolhimento. Quem autorizou
que me escondessem isso? — perguntou com um tom de voz
de quem ia cair em cima do meu pai. — Se a situação está tão
séria assim, devíamos evacuar cada uma delas, pois há
centenas de vidas humanas em risco nas casas de
acolhimento, e não apenas a de Malika.
Inspirei profundamente para aguentar a pressão que
ela estava fazendo em cima de mim.
— As casas de acolhimento estão em segurança, sob
vigilância vinte e quatro horas por dia. Ninguém entra nelas
sem passar pela inspeção dos seguranças de plantão. Cada
pessoa é vistoriada, assim como os objetos que traz, para que
nenhum artefato explosivo entre nas dependências. O alvo é
Malika e não as outras pessoas.
— Isso já está comprovado? Há provas de que ela é o
alvo?
Fechei os olhos, enchendo-me de paciência.
— Para mim, sim!
— Ah, então agora entendi. O meu filho está sendo
superprotetor a ponto de não deixar que a esposa saia de casa.
— Falando assim até parece que estou sendo abusivo
e não um marido preocupado com a segurança da esposa que
já sofreu dois atentados.
— Voltamos então ao ponto inicial. Se as casas de
acolhimento não são seguras para Malika, também não são
para quem está lá dentro, sejam vítimas de maus tratos,
refugiados ou funcionários. — Ela endureceu a voz comigo. —
Repense esta situação antes que seja tarde demais, filho.
— Ela está grávida, mãe. É claro que estou
preocupado e talvez superprotetor — admiti.
— Eu entendo o seu lado, mas Malika ama o que faz.
Não tire isso dela.
— Não vou tirar. Jamais faria isso! — Indignei-me que a
minha própria mãe pensasse aquilo de mim.
— Fico mais tranquila em ouvir isso da sua boca.
Espero que a próxima coisa que eu venha a ouvir, seja Malika
me dizendo que vai voltar a trabalhar nas casas de
acolhimento.
Ela se despediu e desligou, deixando-me frustrado,
mas também me fez pensar se eu estava sendo demasiado
protetor com Malika. Pesava sobre mim o amor e a importância
que ela tinha em minha vida, mas também o meu filho que ela
carregava no ventre. Os dois eram fundamentais na minha vida
e eu não estava disposto a arriscar a segurança deles.
Quando cheguei em casa naquele dia, Malika estava
sozinha no escritório que eu havia pedido para montarem para
ela nas nossas dependências. Conversava e ria com Zaíra e
Tamiris, feliz em falar com as duas refugiadas com quem mais
havia criado laços afetivos. Eu rezava para que Zaíra resistisse
ao câncer ou Malika sofreria a perda como se fosse de uma
irmãzinha ou filha.
Ela sorriu para mim e lhe joguei um beijo da porta,
fazendo sinal que a esperava no quarto. Deixei-a à vontade
depois para continuar a conversa, sentindo-me aliviado ao ver
que estava bem. Afinal, a preocupação da minha mãe era
exagerada.
Capítulo 69
Yusuf
— Sente-se bem? — perguntei durante o jantar,
observando-a com atenção. — Os dois.
Ela sorriu, colocando a mão sobre a barriga.
— Sim, estamos bem.
— Sente-se muito presa em casa por não poder ainda
trabalhar fora?
Malika baixou a vista e pareceu pensar antes de
responder, demorando um tempo mais do que o normal para
mastigar a comida.
— Eu estaria mentindo se dissesse que não. Claro que
gosto de ficar em Taj. O palácio é enorme e sei que posso
circular livremente por ele inteiro, mas nunca será a mesma
coisa que sair daqui e ir para onde eu quiser. — Ela me olhou
diretamente. — Eu entendo que você se sinta mais tranquilo
sabendo que estou em segurança, mas às vezes é sufocante
ficar aqui.
Havia um brilho de inquietação nos olhos amendoados
e aquilo deveria ter sido um sinal de alerta para mim, mas a
minha necessidade de mantê-la em segurança até colocar as
mãos nos responsáveis pelos ataques à bomba foi maior.
— Acha que consegue aguentar mais um pouco ou é
mesmo muito difícil?
A resposta também demorou a chegar, mas veio com
um sorriso que achei tranquilo.
— Consigo, sim.
O alívio que senti foi imenso e segurei a mão dela
sobre a mesa.
— Farei de tudo para não ser por muito mais tempo.
— Sei disso.
Malika era uma fortaleza e admirei ainda mais a minha
mulher. Contudo, uma semana inteira se passou sem que a
investigação avançasse. Frustrado até a alma, estourei em
uma reunião com Saqr e Majdan.
— Al’ama!167 — Bati a caneta com força sobre a mesa.
— Será que nunca mais vamos pegar quem fez isso?
Os dois olharam surpresos para mim.
— Não sei se você percebeu, mas é isso o que
estamos tentando fazer — Saqr respondeu com ironia. —
Perder a cabeça agora é que não vai nos levar a lugar nenhum.
Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Já não aguento mais esta indefinição. Qualquer dia
desses Malika pega o carro e sai em alta velocidade de Taj, e
com o apoio da nossa mãe.
Incrivelmente, Saqr soltou uma risada.
— Bem-vindo ao clube dos maridos desesperados.
Majdan se recostou calmamente na cadeira, meneando
a cabeça com divertimento.
— Boa sorte para vocês dois. É muito drama para mim.
— Sei — respondi de mau-humor. — Isso até entrar no
clube também e vir chorando nos pedir ajuda. Já aviso logo que
vou deixar que sofra bastante antes de ajudar.
Ele gargalhou muito, mas muito mesmo, rindo da minha
cara.
— Que sorte a minha, então, que não vou precisar dos
seus conselhos.
Saqr jogou uma bola de papel nele, fazendo-o rir ainda
mais.
— Está pensando que vai ficar solteiro o resto da vida?
— Penso exatamente isso. Já tenho três filhos que me
enchem de orgulho, para que vou me casar de novo? Esposa,
nunca mais. Sofram sozinhos.
— Não sabe o que está perdendo.
Ele voltou a rir.
— Pela cara de vocês dois, sei o quanto estou
ganhando. — Ele olhou para mim quando bufei com irritação.
— Você está com vontade de meter um soco na minha cara.
— Acertou. Por enquanto a mesa me impede.
— Parem vocês dois! — Saqr perdeu a paciência. —
Se a nossa mãe souber que se esmurraram no meio de uma
reunião, vão os dois colocar o rabo entre as pernas de medo.
— E você não colocaria? — Majdan provocou.
— Não nego. — Ele riu. — Prefiro enfrentar um
exército.
Aquilo me fez rir pela primeira vez em muitos dias e
acabamos os três nos divertindo com a nossa situação.
Levantei-me, conformado.
— Alguém quer um qahua168?
Eles se levantaram também e fomos nos servir. De pé
ao meu lado, Majdan me abraçou pelos ombros.
— Calma, meu irmão. Ainda vamos colocar as mãos
neles.
— InshAllah!169
Consegui relaxar por alguns minutos com eles antes de
darmos a reunião por encerrada. Fui para o meu escritório,
onde entrei em contato com Assad para saber como andavam
as coisas em Londres. Já tínhamos conversado várias vezes
desde que ele foi cuidar pessoalmente da segurança de
Sabirah e tudo estava sob controle lá.
Agora não faltava muito tempo para terminarem as
aulas dela e os dois voltarem para Tamrah, onde Sabirah
estaria bem mais protegida.
— Como anda a investigação do novo atentado,
alteza?
— Lenta demais para a minha urgência em resolver
tudo. Sem pista alguma — lamentei, irritado. — E como estão
as coisas em Londres? Minha irmã está bem?
— Sim, ela está bem e tudo continua sob controle.
Senti que ela ficou muito assustada com este segundo
atentado à bomba, mesmo depois de conversar com todos da
família aí em Tamrah.
— É normal que ela se sinta assim. Sabirah é muito
apegada a todos nós — tranquilizei-o. — E você? Está muito
preocupado com os seus familiares em Sadiz, agora que a
guerra civil está instalada no país?
Ele hesitou na hora de responder e fiquei com a
impressão de que não queria falar da própria família.
— Não tenho família, alteza — esclareceu,
surpreendendo-me.
— Não quis me meter na sua vida. Apenas me
preocupei que quisesse trazer alguém para Tamrah, já que a
guerra civil foi declarada.
— Não há ninguém para trazer, mas agradeço a
preocupação.
Achei melhor mudar de assunto, pois era visível a
reserva dele ao falar da família. Nossa conversa não durou
mais do que vinte minutos, tempo suficiente para me inteirar
dos demais detalhes do que acontecia em Londres. Sabirah
estava em horário de aula e fiquei de ligar depois para falar
com ela.
Quando desliguei, passei a mão no rosto, cansado.
Ainda teria mais uma reunião no final da tarde no prédio da
Global Harbi e eu nem sabia como aguentaria participar.
Já ia me levantar quando o telefone tocou sobre a
mesa. Atendi Adnan com um suspiro de resignação.
— A enfermeira Layla gostaria de lhe falar, alteza. Diz
que não vai demorar mais do que cinco minutos.
Só podia ser algo com relação à Malika e autorizei a
entrada.
— Deixe que entre.
Voltei a me sentar, curioso para saber o que ela queria
comigo. Assim que chegou em frente à minha mesa, ela fez
uma reverência e se sentou na cadeira que ofereci.
— Peço desculpas por vir aqui, alteza. Não vou me
demorar.
— Pode me procurar sempre que precisar, Layla.
Aconteceu alguma coisa com Malika?
Em momento algum pensei que o assunto fosse outro.
Layla só me procurava para falar dela.
— Estou com receio que esta permanência forçada da
princesa dentro de Taj dispare algum gatilho nela e que as
crises pós-traumáticas voltem, alteza.
Franzi a testa, preocupado.
— Acha que isso é mesmo possível? Tenho tido o
cuidado de conversar com ela para saber como está se
sentindo com relação a isso e Malika sempre responde que
está tudo bem, apesar da vontade de voltar a trabalhar fora. Ela
também tem agido normalmente comigo, sem nenhum indício
de crise ou ansiedade.
Layla sorriu com uma certa tristeza.
— O príncipe não está presente nos momentos em que
ela quer fazer algo do trabalho que desenvolve junto aos
refugiados e não pode. Até para falar com as pessoas, a
princesa depende de alguém que leve um celular ou um
notebook ao local para que ela possa conversar em
videoconferência. Não há privacidade, as pessoas não se
abrem mais com ela como antes, nem contam o que realmente
estão sentindo. A princesa reclama muito disso, dizendo que
estão se distanciando dela, que ela está se tornando o que não
quer ser, que é uma princesa inacessível. Ela não gosta que a
vejam como uma princesa, mas como uma mulher comum que
entende o que cada uma daquelas mulheres está passando —
Layla explicou, deixando-me tenso com a situação. — Thara
notou o mesmo e veio conversar comigo, preocupada. Ela me
contou que a princesa tem saído abruptamente da sala onde foi
montado o escritório e ido caminhar sozinha no jardim para se
acalmar. Ela tentou acompanhá-la nesses momentos, mas a
princesa insiste que quer ficar sozinha. Thara fica apreensiva,
observando-a de longe e já a viu chorar escondida. Isso não é
bom para uma mulher grávida, que normalmente fica mais
sensível do que antes. Esses gatilhos são perigosos, príncipe.
Nunca me senti tão culpado na vida quanto naquele
momento. Eu sequer havia notado nada de diferente em
Malika, mas desconfiava que ela, mais uma vez, estava
pensando mais em mim do que nela mesma quando fingia
estar tudo bem.
— Obrigado por me alertar sobre isso, Layla. Vou
resolver essa situação.
Eu teria de tomar uma decisão difícil, mas que agora
era inadiável. Depois que montasse um novo esquema de
segurança para Malika, diria a ela que na semana seguinte já
poderia voltar a trabalhar fora de Taj.

— Por Allah, alguém me ajude!


A voz feminina invadiu o meu sono, angustiada,
dolorosamente sofrida. Mesmo adormecido, tive a impressão
de não ser a primeira vez que a ouvia.
Apesar de confuso com aquela sensação tão forte,
senti também uma urgência premente de a ajudar e despertei
de repente, abrindo os olhos no meio da noite. Tomei logo
consciência de que a voz era de Malika. Havia sido ela no
passado, era ela agora.
Acordei ansioso e senti logo a falta dela agarrada ao
meu corpo, como sempre costumávamos dormir. Olhei para o
lado e relaxei quando a vi dormindo afastada e em posição
fetal, as costas viradas para mim. Ergui o corpo sobre o
cotovelo para trazê-la de volta para os meus braços e foi
quando percebi que chorava baixinho. O meu coração disparou
no peito ao entender que ouvi um apelo real dela, que agora se
debatia em um pesadelo.
Fazia tanto tempo que Malika não os tinha que cheguei
a achar que haviam se acabado de vez.
— Malika, acorde — chamei, colocando a mão no
ombro dela. — É só um pesadelo, habibti.
Ao meu toque, ela se sentou na cama tão de repente
que até me assustou. Ofegava ruidosamente, como se sentisse
falta de ar, o corpo rígido, os olhos arregalados fixos à frente.
— Malika você está bem? — Sentei-me tão rápido
quanto ela, ajoelhando-me à sua frente na cama, para que me
visse. — Foi só um pesadelo.
Segurei o rosto dela com as duas mãos, acariciando as
faces suaves. Ela me olhou e percebi o momento exato em que
se conscientizou de que havia tido um pesadelo. Logo depois,
caiu em um choro convulsivo que me deixou desesperado.
— Por Allah, Malika, fique calma. — Abracei-a,
sentando-me com ela ao colo, aconchegada em mim. — Já
passou, habibti. Por favor, não chore.
Apesar do que eu disse, o choro não parava, o corpo
pequeno nos meus braços sendo sacudido pelos soluços.
Preocupei-me com ela, preocupei-me com o bebê, e me
desesperei ainda mais.
— Acabou, Malika. Foi só um pesadelo que já acabou.
Repeti a mesma coisa várias vezes nos minutos
seguintes, esperando que ela se acalmasse, que parasse de
chorar e ficasse bem, mas Malika continuava parecendo estar
com falta de ar. Rezei, pedi, implorei à Allah para me ajudar,
para ajudar a ela, para preservar o nosso filho. Eu não fazia a
mínima ideia se aquela crise o prejudicaria ou não, mas rezava
para que nada de mal acontecesse com nenhum dos dois.
— Me leva... lá para fora... por favor!
Fiquei confuso com aquele pedido desesperado.
— Para fora?
— Terraço.
Só então entendi o que ela queria. Deixei-a na cama e
fui abrir as portas do terraço às pressas. Quando voltei para
dentro, lembrei-me que devia estar frio lá fora e coloquei uma
das mantas em volta do corpo dela, pegando-a ao colo e
levando para o terraço.
Sentei-me com ela em um dos bancos de frente para o
jardim, a luz suave das lanternas que ficavam acesas à noite
iluminando tudo ao nosso redor, com a ajuda do luar.
— Sente frio assim?
— Não.
Sentada no meu colo, ela encostou a cabeça no meu
ombro, a respiração arquejante voltando aos poucos a ficar no
ritmo normal. Olhei para o céu estrelado, segurando a emoção.
Malika sofria e era impossível para mim não sofrer junto com
ela.
— Quer conversar sobre o pesadelo?
— Não agora.
— Tente esquecê-lo então, habibti. — Beijei os cabelos
soltos que caíam pelas costas dela. — Vou cuidar de você a
minha vida inteira.
Ela não comentou nada, mas se acomodou melhor no
meu colo, respirando fundo o ar fresco da madrugada. Ficamos
em silêncio e perdi a noção do tempo, até olhar para ela e ver
que havia pegado no sono novamente. Respirava
tranquilamente contra o meu corpo.
Suspirei, sentindo o meu amor por ela cada vez maior,
mais forte, mais eterno. Com cuidado, levantei-me do banco e
voltei para dentro do quarto, colocando-a na cama. Fechei as
portas da varanda e me deitei ao lado dela, abraçando-a de
novo.
Demorei a pegar no sono outra vez. Só consegui
quando o dia estava quase amanhecendo. Assim que voltei a
abrir os olhos, virei-me para ver como ela estava e dei com
Malika olhando para mim.
Ela sorriu, meio envergonhada.
— Me desculpe pela crise de ontem à noite.
Abracei-a, fazendo com que ficasse deitada de lado e
de frente para mim.
— Você não tem que me pedir desculpas. Acho que
sou eu quem tenho de fazer isso, por ter tirado a sua liberdade
nas últimas semanas depois do atentado. A minha urgência em
proteger você me deixou cego para as outras coisas. Perdoe-
me, habibti. — Coloquei os cabelos longos para trás da orelha
dela, beijando-a na testa. — A partir da próxima semana você
já poderá voltar ao trabalho nas casas de acolhimento.
Malika arregalou os olhos e havia um brilho de
felicidade neles como há tempos eu não via, o que só
aumentou o meu sentimento de culpa.
— Vou poder sair de Taj?
— Sim, vai. — Engoli em seco, custando muito deixá-la
sair tendo um terrorista solto lá fora. — Só peço mais esta
semana para poder montar um novo esquema de segurança
para você.
Ela me abraçou pelo pescoço, apertando-se contra
mim.
— Oh, Yusuf! Como estou feliz.
Trouxe-a para cima do meu corpo e fechei os olhos,
esperando ter tomado a decisão certa.
— Prometa que vai ter muito cuidado e estar atenta a
tudo.
— Prometo! Pode colocar quantos seguranças quiser
ao meu redor, eu não me importo. Só quero ter a minha antiga
vida de volta.
— Vai ter. — Acariciei a barriga dela, tão lisinha que
nem parecia abrigar o nosso filho. — Cuide bem dele.
Malika soltou uma risada, esbanjando felicidade diante
da perspectiva do retorno às atividades que tinha antes do
atentado.
— Ele está bem protegido na minha barriga.
Mas estaria ela protegida lá fora?
Tentei disfarçar a minha preocupação, já
esquematizando mentalmente um rigoroso sistema de
segurança em torno dela.
Capítulo 70
Yusuf
Terminei a última ligação do dia e dei o meu trabalho
por encerrado no escritório da Global Harbi.
Consultei as horas no relógio de pulso. Ainda faltavam
uns trinta minutos para Malika também encerrar o trabalho dela
no Ministério da Mulher e voltarmos juntos para Taj. Como ela
tinha de estar pelo menos uma vez na semana no escritório da
Global Harbi, combinamos que seria nas terças-feiras, assim
ela vinha comigo em vez de dirigir o próprio carro. Criamos
aquela rotina para termos mais tempo juntos, o que também
vinha de encontro aos meus planos de protegê-la o máximo
possível. Podia parecer idiotice da minha parte, mas eu tinha a
sensação de que se eu estivesse ao lado dela, os atentados
terroristas não aconteceriam.
Saí da minha sala e fui para o elevador, descendo até o
oitavo andar, onde ficava o departamento de marketing. O meu
pai estava muito empenhado no novo polo turístico e um
megaprojeto de divulgação a nível mundial estava em
andamento, tudo sob a responsabilidade de Majdan. Eu ia
aproveitar para falar com ele naqueles trinta minutos que
faltavam para pegar Malika no sexto andar.
Só por segurança, conferi mais uma vez se havia
alguma mensagem dela no celular, antes de o guardar no bolso
do thobe.
Eu já estava no meio do caminho que dava para a sala
de Majdan quando uma porta se abriu e um homem de terno e
duas mulheres elegantemente vestidas saíram para o corredor.
Pela aparência vi logo que eram ocidentais, provavelmente
representantes da agência de marketing europeia que
estávamos contratando para o projeto.
Eles estavam entretidos em uma conversa e
começaram a andar na minha frente, obrigando-me a diminuir
os passos. Uma das mulheres notou a minha presença e olhou
para trás. Quase não acreditei quando a reconheci.
Ela arregalou os olhos de surpresa, falou qualquer
coisa para os outros dois e voltou atrás até onde eu estava,
enquanto eles seguiam em frente.
Al’ama!170 Mas o que Emily faz aqui?
— Yusuf! Que surpresa encontrar você aqui.
Não sei como foi que não a reconheci antes. Talvez
tenha sido pelo cabelo ligeiramente mais longo do que na
época em que namoramos em Londres. Agora, ele estava com
um corte reto na altura do queixo dela, bem diferente do estilo
curtinho e repicado que usava antes.
Ela tentou me cumprimentar com dois beijos no rosto,
mas me afastei com a fisionomia muito séria, fazendo um gesto
com a mão para a impedir de se aproximar.
— Aqui em Tamrah um homem e uma mulher não têm
este tipo de proximidade em público.
— Oh, peço desculpas. Me explicaram isso quando
cheguei de viagem com a equipe do meu trabalho, mas acabei
por me esquecer quando vi você.
Tentei não demonstrar o meu desagrado diante da
possibilidade de ela ser uma das contratadas da nossa
empresa.
— Você abandonou a carreira de modelo e está
trabalhando com marketing agora?
Ela riu, jogando-me um olhar de interesse que eu
conhecia muito bem.
— Não, de jeito nenhum. Fui contratada pela agência
de marketing que vocês contrataram. — Riu ainda mais da
maneira como me explicou. — Eles queriam uma modelo que
representasse bem uma turista inglesa de férias em Tamrah e
fui a escolhida. Na hora me lembrei de você, claro, mas nem
imaginava que a empresa que ia me contratar era da sua
família.
Nem eu jamais imaginaria isso.
Mesmo Emily sendo a típica inglesa loura, alta, magra
e de olhos azuis, qualquer outra modelo poderia ter sido
contratada no lugar dela.
— Bom trabalho, então. Seja bem-vinda ao meu país
— fui obrigado a dizer, forçando-me a manter a cortesia e a
hospitalidade da minha terra.
— Estou adorando tudo. Quando namoramos em
Londres e você me falava de Tamrah, nunca pensei que fosse
tão lindo aqui.
Odiei aquela referência ao nosso antigo namoro e bem
no meio de um corredor da Global Harbi. Preocupado, olhei
para trás para ver se havia alguém por perto e fiquei paralisado
de horror. Malika segurava a maçaneta da porta aberta da sala
de onde Emily e o outro casal haviam saído.
Inspirei fundo, extremamente preocupado ao perceber
que ela sem dúvida alguma havia escutado aquela última frase
de Emily, ou até mesmo tudo.
Emily seguiu a direção do meu olhar e sorriu assim que
a viu.
— Princesa Malika, lembra quando falei na reunião que
já conhecia um pouco de Tamrah por causa de um namorado
que tive e que era daqui? — Ela apontou para mim e me senti
como o condenado de um crime sem perdão. — Acho que
conhece o Yusuf.
Não houve tempo de Malika responder, muito menos
para eu reagir. A luz da sala de reuniões se apagou e Malika se
afastou para o lado, deixando Majdan passar. O olhar que
recebi do meu irmão foi uma mistura de pena e preocupação,
mas também foi ele quem me salvou da presença inoportuna
de Emily.
— Não sabia que ainda estava por aqui, senhorita
Emily — ele disse, aproximando-se. — Deixe-me acompanhá-
la até a saída ou ainda vai se perder nos corredores da
empresa.
Ela olhou para mim, como se fosse dizer que eu a
ajudaria a sair da empresa porque já fomos namorados.
— Vá com o meu irmão — dispensei-a.
— Ele é seu irmão? — ela perguntou, ficando vermelha
de vergonha quando percebeu que podia ter cometido uma
gafe. — Peço desculpas, mas é que são tantos príncipes que
estou confusa.
— O príncipe Majdan é meu irmão e a princesa Malika
é minha esposa. — Ignorei o olhar horrorizado que ela lançou
para Malika ao perceber a segunda gafe que havia cometido.
— Aconselho que tenha mais cuidado com as formas de
tratamento que são exigidas para se dirigir a um membro da
família real. Cuidado também com o que fala sobre cada um
deles e como se comporta em Tamrah, se quiser manter o seu
contrato.
Emily corou ainda mais ao perceber finalmente que
Tamrah não era Londres.
— Mil perdões, princesa Malika. — Fez uma reverência
desajeitada para Malika. — Nunca pensei que o príncipe Yusuf
fosse seu marido.
— Acompanhe-me, senhorita Emily — Majdan insistiu
em tom firme, interrompendo o pedido de desculpas dela, que
só estava piorando a situação.
— Sim, claro.
Os dois se afastaram pelo corredor, deixando um
silêncio tenso entre Malika e eu. Aproximei-me dela e abri a
porta da sala de reuniões, disposto a esclarecer tudo naquele
mesmo instante.
— Entre. É só por um minuto.
Ela não se negou, entrando na sala. Acendi a luz e
fechei a porta, ciente da situação delicada na qual Emily havia
me colocado, mesmo sem querer. Eu sabia que ela não tinha
culpa de nada, mas aquilo não melhorava a situação. Malika
devia estar se lembrando de Rana e imaginando que tive uma
fila de amantes durante os anos do nosso falso noivado.
— Namorei com Emily quando ainda estudava em
Londres e terminei tudo com ela ao voltar para Tamrah —
expliquei, olhando-a diretamente para que visse que eu não
tinha nada a esconder. — Ela é coisa do passado.
Malika não comentou nada, apenas me olhou com
seriedade, o que já era um péssimo sinal. Eu sabia que não
havia sido fácil para ela descobrir no meio dos corredores da
Global Harbi que Emily era uma ex-namorada minha. Na
verdade, toda a situação havia sido constrangedora e difícil
para ela, ainda mais estando grávida, o que me preocupava
muito mais.
— Fale alguma coisa, Malika. Não fique assim.
Tentei abraçá-la, mas Malika me surpreendeu ao se
desvencilhar. Não a forcei, mas aquela reação só aumentou o
meu desespero.
— O que quer que eu diga?
O tom de voz dela era frio, algo muito raro em Malika,
que na maioria das vezes era amorosa e meiga no jeito de
falar. A cada instante que passava, a situação parecia piorar e
a minha inquietação crescia.
— Quero que diga que entende a situação, que sabe
que não tenho nada a ver com o fato de ser justamente Emily a
modelo contratada, que não vai deixar que isso interfira no
nosso casamento, que sabe o quanto amo você, só você, só
você.
Foi a vez de Malika suspirar profundamente.
— Sei de tudo isso, mas saber não me faz sentir
melhor. — Meneou a cabeça e fechou os olhos. — Acho que
preciso de um tempo para assimilar tudo isso. Primeiro Rana,
agora Emily. Vão ter outras cruzando o meu caminho?
Nem quis pensar naquilo.
— Calma, Malika. Do jeito que está falando até parece
que traí você e não fiz isso! São mulheres do meu passado, de
antes de assumirmos um para o outro que nos amávamos e de
ficarmos juntos como um casal. Para mim só existe você! —
Fui categórico na última afirmação, para que não restasse
dúvida alguma. — Só você e o nosso filho.
A expressão de tristeza e de desalento dela fez soar
um alarme dentro de mim. Eu não ia deixar que Emily, Rana ou
qualquer outra abalasse o meu casamento. Determinado,
envolvi a cintura dela com os dois braços e a suspendi do chão,
deixando-a face a face comigo.
Malika se segurou nos meus ombros, chateada.
— Me coloque no chão, Yusuf!
— Não, até que me dê um beijo e eu sinta que está
tudo bem entre nós.
— Será que você consegue imaginar a manchete nos
jornais do mundo inteiro? “Ex-amante do príncipe Yusuf Al
Harbi é contratada para fazer comercial que promove Tamrah”
— ela citou com raiva. — E eu, a sua esposa, como fico?
Khara!171. Ela tem razão!
— Se o problema é esse, está resolvido. Vou mandar
que a afastem do comercial.
— Não é só isso! Para você é tudo muito fácil. Só
queria ver se estivesse no meu lugar.
Trinquei os dentes, incapaz sequer de imaginar aquilo.
— Sei que teve um noivo em Sadiz, mas nunca dei
importância a isso.
— E se fosse um amante, teria se importado?
Inspirei profundamente para aguentar a tensão.
— Essa situação está fora de questão. Nem vou pensar
nisso.
Ela se irritou.
— Vocês homens sempre acham que têm mais direitos
do que nós.
Procurei manter a calma ou a aparição de Emily seria
mais catastrófica do que já estava sendo.
— Não acredito que agora vamos entrar em ativismo
político. Não faça isso com o nosso casamento.
— Então respeite o meu direito de precisar de um
tempo e me coloque no chão! — Ela foi dura na resposta.
Ficamos nos encarando seriamente por longos
segundos, até que assenti e a coloquei no chão contra a minha
vontade. Malika ajeitou a abaya e o hijab em tons esverdeados
e abriu a porta, saindo da sala.
Inconformado, apaguei a luz e saí também, indo atrás
dela. Entramos no elevador e fomos até o andar do Ministério
da Mulher, onde ela pegou a bolsa antes de irmos para o
estacionamento.
O caminho até Taj foi feito em silêncio. Assim que
entramos em casa Malika se trancou no escritório dela,
enquanto eu controlava a custo a frustração. Para piorar o que
já estava ruim, Emily provavelmente permaneceria em Tamrah
até o término das gravações.
Fui para o jardim e liguei para Majdan.
— Vocês se entenderam? — Foi a primeira coisa que
ele quis saber.
— Conversamos, mas ela está chateada comigo. O
que é que Malika estava fazendo em uma reunião do
departamento de marketing?
— Decidimos dar um enfoque no trabalho feito pelo
Ministério da Mulher no país, divulgando os projetos em favor
dos direitos das mulheres. Como nossa mãe não pôde estar
presente, Malika a substituiu.
Passei a mão na nuca, massageando os músculos
tensos.
— O destino está sendo cruel comigo. Por que é que
justamente a Emily tinha de ser a modelo contratada para fazer
um comercial do meu país a nível mundial? Se os tabloides
descobrirem que fomos namorados no passado, vão achar que
eu a favoreci ou que ainda somos amantes. Seja o que for, será
humilhante para Malika. Ela tem toda a razão de estar
chateada com tudo isso e comigo.
— Podemos pedir à agência que troque de modelo,
mas depois do que aconteceu hoje, Emily vai saber qual foi o
motivo e pode não gostar. Afinal, ela não planejou nada disso,
foi uma coincidência.
— Uma maldita coincidência! — rosnei, decidido a
resolver aquilo o mais rápido possível. — Vou fazer um acordo
com ela e pagar o dobro do que vai ganhar para que saia da
campanha e fique calada. A agência terá de procurar outra
modelo e ponto final.
— Acho melhor que não seja você a falar com ela. Se
vazar a informação que foi você quem fez isso, será pior. Se
confiar que eu trate do assunto com ela, resolverei tudo hoje
mesmo. Sou o Rei dos Escândalos e sei como lidar com eles.
Soltei um suspiro de alívio.
— Shukran, meu irmão. Faça isso por mim.

Dois dias depois, eu já não aguentava mais respeitar o


tempo que Malika pediu. As noites eram o pior momento, pois
era quando o afastamento se tornava mais evidente e aquilo
me assustava. A cama parecia ter crescido de tamanho, com
Malika no canto dela e eu no meu.
No terceiro dia, a reviravolta aconteceu. Malika
descobriu que Emily não faria mais o comercial, nem estava
mais em Tamrah.
— O que você fez com ela? — perguntou-me assim
que entrei no quarto no final de um cansativo dia de trabalho.
Nem precisei perguntar a quem ela se referia. Pousei
calmamente o celular na mesa de cabeceira e me preparei para
tomar banho sozinho pelo terceiro dia consecutivo.
— Não fiz nada. Ela voltou para Londres com os bolsos
cheios de dinheiro e a boca fechada.
— Oh, vocês homens!
Olhei tensamente para ela, que estava linda com a
abaya sobressaindo os seios maiores da gravidez e as curvas
mais amplas. Eu sentia saudades do beijo dela, do toque
daquelas mãos pequeninas no meu corpo, do perfume e sabor
da minha mulher.
— Vem tomar banho comigo. Sinto a sua falta.
Malika paralisou, pega de surpresa com o meu convite.
Desviou o olhar, depois me olhou de volta e desviou de novo.
— Eu... eu não entendo o que você viu em mim. Rana
é estonteante. Emily é deslumbrante. Eu sou... comum. Nem
chego aos pés delas duas e imagino que as outras devem ter
sido tão ou mais belas ainda.
Tentei não me sentir desanimado com o que ela disse.
Como explicar que a beleza delas atraía por fora, mas era
vazia por dentro? Que nunca amei nenhuma delas como
amava a minha mulher? Que o desejo nascido do amor nunca
acabava, mas o nascido da beleza física tinha a ínfima duração
de um orgasmo e que depois não restava nada?
— O que eu vi em você? Vi o amor mais puro que
existe no mundo. Para mim, você é muito mais linda do que
qualquer outra mulher. Tem a beleza que eu preciso, que me
completa, que me acalma. Quando estou com você não preciso
de aventuras, de perigo ou de ação para estar em paz comigo
mesmo. A minha alma precisa da sua e choro por dentro com
essa separação.
Malika arquejou, olhando seriamente para mim.
Arrisquei me aproximar, lembrando-me dos anos que levei para
conseguir convencê-la a me aceitar como homem, como
marido. Naquela época, ela deixava eu me aproximar, fazer um
carinho, e depois fugia, até o dia em que se entregou de vez.
— Quero a minha mulher de volta — falei roucamente,
tocando uma mecha dos cabelos soltos à frente do rosto dela.
Como Malika não se afastou, segurei-os na altura da
nuca e fiz com que erguesse o rosto para mim. Ficamos nos
olhando intensamente, ofegantes. Vi o desejo no olhar dela e o
meu pau reagiu em expectativa.
— Quero amar você, Malika. Quero que mande o
guepardo que há em mim, comer a gazela que há em você.
Pensei que ela fosse negar, se afastar, me destruir com
mais uma noite de solidão, mas me enganei.
— Devora a tua gazela.
Não esperei mais nada para suspendê-la pela cintura e
tomar a boca macia em um beijo sedento, ávido, voraz. Enfiei a
língua, suguei a dela, mordisquei os lábios, devorei. O desejo
era forte, duro, urgente.
Fui abraçado por ela, fui igualmente mordido, sugado,
devorado. O desejo de Malika se igualava ao meu e puxei a
abaya dela para cima, fazendo com que me envolvesse com as
pernas. Enfiei a mão por baixo do tecido, puxando a calcinha
para o lado e acariciando-a. Estava molhava e gemi ao sentir a
maciez úmida que me esperava.
Ansioso demais, levei-a para a cama, deitando-me por
cima. Nossa urgência era tanta que nem tiramos as roupas
direito. Quase rasguei a abaya dela na pressa de desabotoar
tudo e deixar os seios livres. Quando os vi, mergulhei de
cabeça, sugando e mamando com força, na ânsia de saciar a
minha fome.
— Yusuf, faz mais.
Ela mesma terminou de tirar a abaya por cima da
cabeça, jogou o sutiã para o lado e se livrou da calcinha. Fiz o
mesmo com a minha roupa, ficando totalmente nu e ereto para
ela. Malika segurou o meu pau, acariciando-o, manipulando-o,
levando-me à loucura depois do afastamento dos últimos dias.
— Assim eu não aguento.
Ela mordeu o lóbulo da minha orelha e gemi alto dentro
do quarto. Partiu dela a iniciativa de posicionar o meu pau na
entrada apertada e iniciar a penetração. O restante eu fiz,
rápido, forte, teso.
— Saudade disso — ela gemeu, me enlouquecendo
mais ainda.
Coloquei um braço por baixo de um dos joelhos dela e
a abri mais para mim, estocando no seu interior. Àquela altura,
os nossos gemidos se confundiam dentro do quarto,
competindo com o som alucinante do meu pau se
aprofundando nas entranhas dela.
Estoquei, bati, investi, possuí Malika com ardor, com
desespero, com amor, os seios fartos roçando o meu peito. Ela
gozou, eu gozei logo depois, sentindo os espasmos do
orgasmo sacudirem o meu corpo.
Beijei-a, engolindo seus gemidos de gozo. Enterrei-me
nela. Comi a minha gazela até me saciar completamente.
Capítulo 71
Malika
— O meu marido vem hoje me visitar, alteza. Me
informaram que ele é um dos refugiados autorizados a entrar
no país depois do fechamento das fronteiras e estou muito feliz.
— Que notícia abençoada, Yusra! Agora vocês vão
poder reconstruir juntos a vida aqui em Tamrah.
Ela ergueu as mãos para o alto em gratidão, depois
olhou para mim com um largo sorriso de felicidade no rosto.
Yusra tinha dezenove anos e era casada com um
jornalista de trinta que havia decidido ficar mais um pouco em
Sadiz para fazer a cobertura dos conflitos armados,
determinado a mostrar para o mundo a verdade do que estava
acontecendo com os civis. Ele convenceu a esposa a se
refugiar em Tamrah, prometendo vir atrás dela depois que
terminasse sua última reportagem na capital.
— Ele deve chegar a qualquer momento e mal posso
esperar para estarmos juntos de novo. Sinto tanta saudade do
meu Khoury!
Todas as quartas-feiras, os maridos e outros familiares
homens podiam visitar as mulheres que estavam
temporariamente na casa de acolhimento, até que o governo
conseguisse reagrupar a família em uma residência só deles.
Aquele era um processo lento diante dos milhares de
refugiados que já havíamos recebido. Por enquanto, as
mulheres que estivessem sozinhas com seus filhos, como era o
caso de Tamiris e Zaíra, permaneceriam na instituição.
— Estou muito feliz por vocês dois, Yusra. Como o seu
marido é formado e tem experiência como jornalista, será mais
fácil encontrar uma colocação profissional para ele aqui no
país.
— Que Allah abençoe a princesa por tanta bondade.
— Que Ele abençoe a todos nós. — Virei-me para
Thara, que anotava algumas informações na agenda que trazia
consigo. — Registre a profissão do marido dela para
colocarmos no sistema depois.
— Acabei de fazer isso, alteza.
Uma batida na porta do quarto causou um alvoroço em
Yusra.
— Deve ser ele! — levantou-se para o receber.
Thara e eu cruzamos o olhar com um sorriso no rosto
diante do entusiasmo da garota em ver o marido. Ah, como eu
a entendia!
Yusra abriu a porta e um homem entrou, mas não
houve nenhum abraço apaixonado cheio de saudades. Ao
contrário, ele a empurrou tão violentamente para trás que a
garota caiu no chão perante os meus olhos esbugalhados de
horror.
A porta foi fechada e me levantei da cadeira, sem
acreditar que depois de ouvir tantas maravilhas sobre o marido
dela, afinal o homem fosse um abusador.
— O senhor não pode fazer isso com sua esposa!
— Esse não é o meu Khoury, alteza! — Yusra
sussurrou do chão, engatinhando para longe da porta até se
esconder atrás de mim.
Fiquei momentaneamente paralisada, sem voz, sem
conseguir reagir. Quando abri a boca para gritar por socorro,
ele abriu o casaco e mostrou um cinturão com explosivos atado
ao corpo.
Faltou o ar nos meus pulmões e pensei se desmaiaria
naquele momento.
— Se alguém aqui dentro gritar, o prédio inteiro vai aos
ares — o homem ameaçou.
Estávamos no prédio dos dormitórios, cujos quartos se
encontravam lotados de mulheres e crianças, algumas
recebendo naquele exato momento os seus maridos, os seus
pais ou filhos adultos.
— Não gritem — pedi a elas, tentando controlar uma
situação que me parecia incontrolável. — Como... como
conseguiu entrar aqui com isso?
Ninguém mais entrava nas casas de acolhimento sem
passar por uma rigorosa vistoria. Os veículos também estavam
sendo inspecionados e eu não entendia como agora estava
diante de um bombista.
O homem me olhou com ódio, mas também com
arrogância.
— Arriscamos colocar cada componente separado
dentro dos sacos de farinha dos mantimentos. Só precisei
montar o artefato e garanto que vai explodir no instante em que
eu quiser.
Pela maneira como ele falou, não parecia estar
trabalhando sozinho. Fosse como fosse, naquele momento
estávamos diante de uma tragédia iminente e só consegui
pensar em quantas vidas inocentes seriam ceifadas em
questão de segundos. Pensei no meu filho que nem iria nascer
e rezei fervorosamente pela intervenção de Allah.
— O que você quer?
O olhar duro e frio do homem barbado se fixou em um
ponto atrás de mim. Virei o rosto e vi Thara parada às minhas
costas. Ela estava pálida, rígida, apavorada.
— Chega aqui, Thara! — o homem ordenou, apontando
com o dedo para o chão à frente dele.
Pela maneira como falou e ela obedeceu, ficou óbvio
para mim que se conheciam. Contudo, antes que Thara me
ultrapassasse, segurei-a pelo braço.
— Não. — Impedi que continuasse e me dirigi a ele. —
O que quer com Thara?
— Já se meteu demais em nossas vidas, princesa.
Mantenha-se calada!
— É um dos meus irmãos — Thara conseguiu falar
com uma voz resignada de quem aceitava o próprio destino
trágico. — Mustafa é engenheiro eletrônico.
— Chega de conversa! — ele rugiu, irritado. — Aqui,
Thara!
Ela segurou a minha mão e a soltou do meu braço,
dando um leve aperto de despedida antes de ir para a frente do
irmão. Ainda fiz menção de intervir, mas Yusra me segurou pela
abaya.
— Não vá, princesa — murmurou atrás de mim. — Ele
veio disposto a morrer por uma causa.
Eu sabia que não conseguiria ficar parada sem fazer
nada, ainda mais quando ele esbofeteou Thara com violência.
— Ía kalbi!172 Você envergonhou a família inteira!
Ele foi rápido em aplicar vários golpes no rosto dela, no
estômago e pontapés nas costas quando ela caiu no chão.
Thara se defendia como podia, mas era impossível escapar
daquele massacre.
— Pare, por favor! — implorei, tentando intervir, mas fui
agarrada pelo braço por Yusra. — Você vai matá-la desse jeito.
Ele parou, olhando para nós duas com os olhos
vidrados, parecendo endemoniado.
— Sente-se ali! — Apontou o dedo para Yusra,
indicando a cadeira ao lado da cama.
Ela obedeceu sem opor resistência alguma, mas aquilo
não evitou que levasse um golpe violento na cabeça que a fez
desmaiar depois de ter os pés e as mãos amarrados com uma
fita, que também foi colocada em sua boca. Mustafa era rápido,
mostrando uma habilidade preocupante na imobilização de
uma pessoa. Levou poucos segundos para deixar Yusra
totalmente amarrada e voltar a falar comigo e com Thara.
— Vocês duas vão caminhar calmamente comigo para
fora do prédio. Qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer sinal
suspeito que fizerem para alguém, explodirei tudo ao nosso
redor e morreremos todos juntos.
Foi com um pavor crescente que o vi ligar um
cronômetro no artefato, os números vermelhos começando
com dez minutos e passando a diminuir com uma velocidade
assustadora.
— Esse é o tempo que temos para sair do prédio e
chegar ao nosso destino. — Apontou para um botão vermelho
acima do cronômetro. — Se eu apertar aqui, a explosão é
instantânea.
Senti o quarto rodar e respirei fundo para aguentar a
vertigem, tamanho foi o medo que senti.
— Cubram o rosto inteiro com o hijab e vamos sair
daqui agora. Levante-se, Thara! — exigiu e pensei como ela
conseguiria se levantar depois de ser tão agredida.
Thara se apoiou na cama com esforço evidente e ficou
de pé, sem conseguir esconder no rosto a dor que sentia.
— Deixe a princesa. Ela não tem culpa de nada —
pediu com dificuldade, o lábio superior inchando do primeiro
golpe que levou.
— Ela é a culpada de tudo! A nossa vergonha foi maior
por causa dela! Se tivéssemos pegado você em Rummán já
teríamos lavado a nossa honra há muito tempo.
Segurei a vontade de dizer que Thara era livre para ir
embora de casa e que mulher nenhuma deveria morrer para
lavar a honra de animais como ele, como o pai dele e como
deviam ser todos os homens daquela família.
O tempo passava rápido demais à medida que os
números do cronômetro diminuíam. Mustafa fechou o casaco
no mesmo instante em que coloquei o hijab sobre os cabelos,
cobrindo o rosto também e deixando só os olhos à mostra.
Thara fez o mesmo, tremendo visivelmente.
Fui para perto dela e a segurei com firmeza pelo braço,
dando-lhe apoio para se manter de pé e caminhar ao meu lado.
Saímos do quarto, cuja porta ele trancou, jogando a chave no
primeiro lixeiro que encontrou.
Caminhamos ao lado de Mustafa pelos corredores
apinhados de famílias inteiras confraternizando. Quando
saímos para o pátio, respirei aliviada por ter deixado para trás a
área onde havia mais pessoas.
Eu sabia que existiam câmeras de vigilância
estrategicamente colocadas em todo o complexo e rezei para
que algum dos seguranças desconfiasse que aquelas duas
mulheres ladeando um homem sério éramos nós duas.
E se desconfiarem, o que vai acontecer?
Eu não era militar nem tinha conhecimento algum sobre
bombas, mas acreditava que eles saberiam o que fazer.
Apesar de estar rezando fervorosamente para sermos
descobertos, chegamos ao portão de saída sem chamar a
atenção de ninguém. O sistema de controle de entrada era
rigoroso, mas na saída não havia vistoria física. Os soldados
armados com rifles observavam atentamente quem saía, mas
sem inspecionar ninguém. Passamos por eles misturados no
meio das pessoas.
Quando chegamos do lado de fora, fui dominada por
uma mistura de alívio, por ter evitado uma explosão dentro da
casa de acolhimento, e de medo, por agora estarmos mais
reféns ainda daquele homem.
Ele parou ao lado de um carro estacionado a poucos
metros, onde um outro homem estava na direção.
— É Jihad, o meu outro irmão — Thara gemeu ao meu
lado em um sussurro angustiado.
O estado de choque em que fiquei quando Mustafa
mostrou a bomba dentro do quarto me impediu de ver a
realidade. Só agora que estava sabendo do envolvimento do
segundo irmão de Thara foi que a verdade dos fatos se abateu
sobre mim.
Por Allah! Os bombistas são os irmãos de Thara!
— Entrem! — Mustafa ordenou.
Assim que nos sentamos no banco de trás, ele amarrou
nossos pulsos com uma fita e bateu a porta com força,
sentando-se no banco do passageiro.
— Desarme logo esta bomba! — Jihad ordenou,
nervoso.
Prendi a respiração quando Mustafa abriu
discretamente o casaco e começou a mexer no artefato,
temendo que aquilo explodisse a qualquer momento caso ele
errasse alguma coisa. Acho que até o irmão dele prendeu a
respiração, porque soltou um rosnado de alívio quando a
bomba foi desativada, retirada do corpo de Mustafa e colocada
embaixo do banco do passageiro.
— Por que a trouxe, ía hemar173? — Jihad perguntou se
referindo a mim e ligando o carro. — Complicou a nossa vida.
— Ela só trouxe desgraça para o nosso país. Era para
ter morrido em Azra junto com o povo dela, mas tem tanto
pacto com o diabo que se salvou. Agora temos milhares de
refugiados de Sadiz aqui dentro. Eles vão ter casa, comida e os
empregos que seriam do nosso povo. A culpa é dela e da bruxa
de olhos verdes. As duas enfeitiçaram os nossos príncipes.
Fiquei chocada ao ouvir aquilo. Nunca pensei que
houvesse em Tamrah pessoas que pensassem tão mal de mim
e de Kismet.
Mesmo com as mãos amarradas, Thara segurou as
minhas, chamando a minha atenção. Olhei-a, estarrecida.
— Perdoe-me por tudo isso. Nunca pensei que um dia
eles chegariam a esse ponto — murmurou no meu ouvido,
referindo-se ao que Mustafa disse e indicando-o com um
imperceptível gesto de cabeça. — É um religioso extremista.
Ou seja, o tipo mais perigoso que poderia existir para
uma mulher.
— Vocês duas parem de cochichar aí atrás — ele
gritou, calando-nos.
Ficamos em silêncio, com Jihad dirigindo calado.
Saímos de Jawhara e logo percebi que seguíamos em direção
à Rummán, a cidade de Thara.
— O pai sabe disso? — ela perguntou de repente.
— O pai está de cama. Ficou doente depois da
vergonha que você nos causou. — Foi o Mustafa quem
respondeu. — Ele não sai mais de casa, para não ter que ver
as outras pessoas na rua. Quando eu chegar com o seu corpo
e jogar no meio da praça, todos vão voltar a nos respeitar na
aldeia.
A cena que ele descreveu era nauseante e pensei no
que fariam comigo. Deviam saber que não podiam
simplesmente matar uma princesa e jogar o corpo dela no meio
de uma praça, como pretendiam fazer com Thara.
Olhei para a imensidão de terra árida que ladeava a
longa estrada deserta que levava para o interior do país. Tive a
sensação de voltar no tempo e de estar de novo no carro com
Hussam, Badra e Hessa, cruzando o deserto em busca da
liberdade em Qasara. De nós quatro, apenas eu continuava
viva e pensei se agora havia chegado mesmo o meu fim. Vi-me
sendo enterrada em algum lugar perdido ali mesmo, no meio
do nada, onde nunca me achariam.
A cada minuto que passava, mais eu me afastava da
segurança de Jawhara, de Taj e de Yusuf.
Fechei os olhos e rezei, rezei e rezei, entregando à
Allah o meu destino.
Bendito seja Allah, o mais sábio dos juízes.
Rodamos por mais alguns quilômetros até dois
helicópteros de guerra cruzarem o céu acima de nossas
cabeças. O meu coração disparou no peito com a certeza muito
grande de que Yusuf estava em um deles.
Jihad ficou visivelmente nervoso, mas Mustafa
continuou muito calmo. Eu já havia percebido que ele era o
mais perigoso dos dois.
— Se ela não estivesse aqui, eles não teriam vindo
atrás de nós! — Jihad censurou o irmão.
Mustafa se virou para trás e pensei que aquele seria o
momento em que ele me mataria com uma arma.
— Abaixem-se no banco! — rugiu com raiva.
Coloquei Thara por baixo e cobri o corpo dela com o
meu, protegendo-a. Ficamos encolhidas, mas eu sabia que era
uma tentativa inútil de nos esconder. Nada impediria Yusuf de
parar o carro para ter certeza de que eu estava nele.
Como previ, Jihad foi obrigado a parar o carro quando
um dos helicópteros baixou ao nível do solo bem à nossa frente
e o outro logo atrás. Não havia escapatória, mas como colocar
aquilo na mente doentia de um extremista como Mustafa?
Desobedeci às ordens dele e ergui a cabeça para ver o
que estava acontecendo.
Alguns militares já pulavam da aeronave para o solo
com os rifles apontados para nós. Do helicóptero desceram
mais soldados e ficamos rapidamente cercados. Eles deviam
saber da ameaça de bomba, pois não se aproximaram muito,
mantendo uma distância de segurança.
Voltei a baixar cabeça, encolhendo-me ao lado de
Thara.
— Eles vão conseguir prendê-los — sussurrei, dando-
lhe forças.
— Mas estaremos vivas? — ela perguntou de olhos
fechados, com uma voz fraca e sem esperança alguma.
Preocupei-me com o estado de saúde dela. Thara
havia sido duramente golpeada pelo irmão e eu temia que
estivesse muito mal.
— Já passei por coisas piores nas mãos de Hisham e
sobrevivi. Confiei em Allah e você tem de confiar também.
As hélices pararam de girar lá fora e uma voz soou de
um alto-falante.
— Desçam devagar com as mãos na cabeça!
Jihad foi o primeiro a colocar a mão na maçaneta, mas
o irmão o impediu.
— É o fim, Mustafa. Vamos descer.
— Podemos explodir o carro e matar estas duas
pecadoras.
— Seu idiota! Eu não quero morrer!
Virei a cabeça para os dois e vi Jihad descendo do
carro com as mãos atrás da nuca. Mustafa permaneceu
sentado e não gostei nada da atitude estoica dele.
— Allahu akbar! Allahu akbar! Allahu akbar!174 — ele
começou a repetir de uma maneira assustadoramente
automática e delirante.
Embaixo de mim, Thara soluçou baixinho, entendendo
o mesmo que eu. Nem precisei ver a mão de Mustafa tentando
pegar o cinturão com a bomba embaixo do banco para
entender que ele realmente pretendia explodir o carro.
Aterrorizada, gritei o mais alto que pude.
— Yusuuuuf!!!
Capítulo 72
Yusuf
— Nunca pensei que um dia teríamos terroristas
atuando em Tamrah — Majdan disse com preocupação,
sentado ao meu lado no majlis do meu pai, onde estávamos
todos reunidos discutindo os problemas do país e da região. —
Isso é tão surreal que às vezes me pergunto se está mesmo
acontecendo.
— E eu nunca pensei que chegaria o dia em que veria
Sadiz em uma sangrenta guerra civil, que me obrigasse a
escolher um lado para apoiar e ainda gerir uma crise de
refugiados — o meu pai desabafou logo depois. — Mesmo com
todos os indícios de instabilidade no governo de Suleiman, eu
esperava que o conflito armado fosse evitado.
— Temos dois problemas grandes para resolver. Um
interno e o outro externo — Saqr comentou do meu outro lado
no sofá, tomando mais um gole de qahua175. — Mas me
preocupo muito mais com o que está acontecendo aqui dentro.
— Concordo com Saqr — dei a minha opinião, olhando
diretamente para o meu pai. — Precisamos parar com esses
atentados à bomba o mais rápido possível e só vamos
conseguir isso descobrindo quem está por trás. Nenhum grupo
terrorista de fora reivindicou os ataques e esta é a única coisa
boa da situação. Só nos faltava agora ter um desses grupos
querendo se instalar aqui.
— E não vai ser com a ajuda de Sadiz que vamos
descobrir quem são eles — Saqr completou o meu raciocínio.
— Mubarak jamais vai admitir que infiltrou outros agentes além
de Hisham no meio dos refugiados, mesmo sabendo que já
estamos com o homem preso aqui.
— Não podemos nos esquecer que Mubarak negou
terminantemente saber das intenções de Hisham em matar
Malika. Achei que foi sincero neste ponto — Majdan nos
lembrou.
Olhei para Saqr.
— Se for para acreditar no que Hisham disse até agora,
teremos de descartar a possibilidade de outros agentes de
Sadiz também terem sido infiltrados.
— O que nos coloca de novo no ponto de partida: se
não são homens de Sadiz, quem são?
Ninguém tinha aquela resposta e acabamos por ficar os
quatro calados, pensativos.
— Só sei que querem atingir a Malika e isso me tira do
sério. Está muito óbvia a intenção deles. Os atentados só
acontecem nos escritórios das casas de acolhimento onde ela
trabalha.
— Se partirmos do princípio que eles querem matar a
sua esposa, tem mais lógica que sejam agentes de Sadiz do
que alguém de Tamrah — o meu pai disse, coçando a barba. —
Quem aqui ia querer matar a Malika? Que eu saiba, ela não
tem inimigos no país que a odiassem a esse ponto.
— Talvez seja um ódio relacionado ao trabalho que ela
faz — Saqr comentou.
— Pensei nisso e acho que tem toda a lógica. — Foi a
vez de Majdan concordar com Saqr.
— Isso também já me passou pela cabeça, mas depois
descartei — admiti para eles. — Tudo o que Malika faz a nossa
mãe já fazia e nunca sofreu nenhum tipo de atentado como
esses que aconteceram.
— Mas tem uma diferença aí — Majdan chamou a
nossa atenção. — Malika é de fora, ao contrário da nossa mãe,
que já era de uma família tradicional e respeitada de Tamrah
antes mesmo de se tornar a primeira esposa do nosso pai.
Malika é uma princesa, mas originalmente é uma princesa da
família real de Sadiz, e não do nosso país.
— Mas hoje ela é a minha esposa e uma princesa de
Tamrah — afirmei duramente, sem esconder a raiva. — E que
ninguém diga o contrário!
Saqr também fechou a cara.
— Não admito que ninguém questione o fato de Kismet
e de Malika serem hoje princesas de Tamrah e não de Sadiz.
Como nossas esposas, elas devem ser respeitadas,
reverenciadas e aceitas pelo nosso povo.
— Sabemos disso, mas alguns podem não ver dessa
forma — Majdan insistiu. — Não falo com relação à Kismet,
que não está tão envolvida com os refugiados por causa dos
filhos e da gravidez. Mas o mesmo não acontece com Malika,
que hoje é, sem dúvida alguma, o braço direito e a executora
da nossa mãe no Ministério da Mulher.
Apesar da tensão que só crescia em mim ao ouvir tudo
aquilo, sabia que Majdan tinha razão.
— Se realmente for confirmado se tratar de alguém de
Tamrah, será exemplarmente punido. Não vou deixar que
outros pensem em fazer o mesmo.
Saqr colocou a mão no meu ombro, mostrando o seu
apoio.
— E será!
À nossa frente, o meu pai permanecia com a expressão
carregada e me dirigi a ele.
— O caso mais sério que Malika teve até hoje foi o de
Thara, mas esse o senhor mesmo resolveu, pai.
— Sim, ficou tudo resolvido com o pai dela. Senti que
Salim Ayad no final aceitou bem a situação, mesmo a
contragosto.
— O que nos faz voltar à estaca zero.
— Contem-me direito essa história da garota Ayad —
Majdan pediu de repente. — Só sei que o pai queria a
circuncisão e que ela fugiu, sendo trazida depois para Jawhara
por Malika.
— Eu estava em Nova York na ocasião e não
acompanhei tudo de perto, mas pelo que Malika e Assad me
contaram depois, não foi tudo tão simples assim. Houve uma
verdadeira confusão na casa de acolhimento de Rummán.
Thara estava prometida a um líder local, que queria a
circuncisão dela, assim como o pai. Ela fugiu de casa com a
ajuda da mãe, que acabou pagando por isso com a própria
vida. Depois, o pai, um dos irmãos e o noivo foram atrás de
Thara na casa de acolhimento, exigindo que a devolvessem.
Malika se negou, eles foram embora, mas depois voltaram com
mais homens e fizeram uma manifestação em frente à
instituição. Houve confronto com os seguranças e a situação só
não fugiu ao controle porque havia o reforço de Assad e do
outro segurança que sempre o acompanha. Acabou por ser o
Assad a resolver tudo. Malika conversou com a nossa mãe
sobre o que estava acontecendo e pediu autorização para tirar
Thara da cidade, trazendo-a para Jawhara. O restante você já
sabe.
— Acho essa situação muito séria — Majdan refletiu
sobre o assunto. — Qualquer noivo ficaria furioso ao ver
levarem a sua futura esposa para longe do seu alcance, ainda
mais se considerarmos que a garota Ayad é muito bonita. Eu
não descartaria a possibilidade e o investigaria, junto com o pai
e os irmãos dela. São os únicos que poderiam ter alguma coisa
contra Malika, a menos que tenha ocorrido algum outro conflito
por causa da luta dela a favor das mulheres.
— É comum haver um conflito ou outro, Majdan. Nem
todos os homens aceitam perder o controle sobre suas
mulheres quando elas procuram ajuda nas casas de
acolhimento. Malika conversa muito comigo sobre isso e sei
que já houve outros casos, o que me fez reforçar a segurança
em torno dela. Mas, até onde sei, este caso da Thara foi o mais
sério e que ganhou maior repercussão no país, já que o pai
dela é um líder religioso muito respeitado naquela região.
Tanto, que foi preciso a intervenção do nosso pai para os
ânimos se acalmarem.
O semblante de Majdan ficou carregado de tensão.
— Nunca pensei que o Ministério da Mulher passasse
por esse tipo de dificuldade. Sempre achei que o trabalho da
nossa mãe fosse mais simples. Acho que menosprezei no
passado a complexidade que envolve os direitos das mulheres.
— Não se culpe, Majdan. Tudo isso é mesmo muito
complexo — Saqr o confortou. — Acho que todos os países do
mundo passam por dificuldades ao lidar com a violência contra
as mulheres. Se na nossa cultura é mais ou menos do que na
deles, nunca saberemos. Tudo depende da transparência dos
governos em mostrar os números reais e de realmente
investirem no projeto. Sabemos que muitas mulheres não
denunciam os abusos que sofrem. Se não houver apoio jurídico
e policial que as defendam, elas vão sofrer caladas e
provavelmente morrer caladas. Se não há um local seguro
onde possam se abrigar e pedir ajuda, poucas terão a coragem
de fugir como Thara fez.
— Desde que a mãe de vocês conversou comigo sobre
este projeto das casas de acolhimento, eu preveni Farah que
casos como esse de Thara poderiam acontecer — o meu pai
confidenciou para nós. — Quando começamos, você ainda era
muito jovem Majdan e os seus irmãos eram crianças, não
acompanharam as dificuldades iniciais que passamos. Várias
unidades do interior foram depredadas durante a noite para que
deixassem de funcionar. As funcionárias eram ameaçadas,
mesmo sendo contratadas pelo governo. Nunca pensamos que
seríamos obrigados a colocar seguranças armados para
garantir o funcionamento de algumas destas unidades mais
distantes da capital. Mesmo com toda a estrutura que
montamos, raras foram as mulheres que ousaram pedir ajuda.
Tivemos um duro percurso até aqui, mas Farah nunca desistiu.
Hoje, o projeto é um sucesso e referência para muitos outros
países da região.
— Nossa mãe é uma mulher incrível. — Ergui a minha
xícara de qahua. — Um brinde à Farah Al-Jaber de Tamrah.
Rindo, todos eles fizeram o mesmo e o clima pesado
amenizou um pouco.
— Apesar de existirem diversos outros casos de
homens insatisfeitos com o trabalho de Malika, acho que
Majdan tem razão. Não perdemos nada em investigar esse da
família Ayad — Saqr reforçou a sugestão dele.
Troquei um olhar com o meu pai, que assentiu em
concordância.
— Vou ver isso agora.
Levantei-me e Majdan fez o mesmo.
— Vou com você. Quero me aprofundar mais nesse
assunto.
Saímos juntos do majlis e fomos para o meu escritório
em Taj. Encontrei Adnan trabalhando em sua sala.
— Quero o nome de todos os envolvidos nos últimos
conflitos ocorridos nas casas de acolhimento desde que Malika
passou a trabalhar no Ministério da Mulher. Veja todos os
processos com os quais ela lidou, o resultado final e como está
a situação atualmente.
— Farei isso agora mesmo, alteza.
Entrei na minha sala e liguei o computador. Majdan
puxou uma cadeira para o lado da minha, onde se sentou para
acompanhar a investigação. Acessei o sistema do serviço de
inteligência e digitei o nome do pai de Thara no banco de
dados. A partir dele, chegamos aos irmãos e ao noivo dela.
Não demorou muito para a desconfiança crescer.
— Acho que estamos mesmo diante dos culpados —
comentei, recostando-me na cadeira com a foto de Mustafa
Ayad na tela do computador.
— Um engenheiro eletrônico conseguiria facilmente
construir uma bomba.
— Hoje em dia qualquer um com um mínimo de
conhecimento eletrônico e as orientações certas conseguiria
construir uma bomba, mas não iguais às que explodiram nas
duas casas de acolhimento. O coordenador do grupo
antibomba me passou um relatório sobre a análise dos
artefatos usados e a conclusão é que foi feito por um
profissional.
— Pelo que vi na casa de acolhimento de Malika,
acredito que tenha sido feita por um especialista.
— Temos como descobrir isso — informei, confiante,
voltando a mexer no sistema. — Desde que aconteceu o
primeiro atentado em Azra, estamos usando a tecnologia do
reconhecimento facial para monitorar todas as pessoas que
entram nas casas de acolhimento. Vou colocar a foto dos
homens da família Ayad no sistema e cruzar com o que já
temos, para ver se algum deles consta no banco de dados.
Feito aquilo, acompanhamos o sistema fazer a busca
de um por um, na expectativa de algum ser identificado. O
resultado positivo surgiu para Mustafa Ayad.
Majdan comemorou batendo o punho cerrado na mesa
ao lado do computador.
— Pegamos ele!
Enquanto o meu irmão comemorava, eu não conseguia
desgrudar os olhos das informações adicionais que apareciam
embaixo da foto de Mustafa.
— Por Allah, Majdan! Ele está agora mesmo na casa
de acolhimento onde Malika foi trabalhar hoje.
— Tem certeza? — ele perguntou, preocupado.
— Tenho!
Peguei o telefone e acionei o plano de emergência,
dando ordens para procurarem e prenderem imediatamente
Mustafa Ayad na casa de acolhimento.
— Esqueçam-se que ele foi vistoriado antes de entrar
— falei para o coordenador do plano de emergência. — Ele é
extremamente perigoso e quero a minha esposa protegida
agora! Tirem-na de lá e tragam para Taj. Você tem cinco
minutos para me dar notícias.
— Sim, alteza!
Majdan blasfemou quando desliguei.
— Cinco minutos é pouco tempo. Você tem que parar
com essa mania.
— Eles estão acostumados com a minha pressão.
Tenho urgência.
Fiz logo outra ligação para Malika. Mesmo que eu
pegasse o carro naquele instante para ir até a casa de
acolhimento, não conseguiria ser mais rápido em protegê-la do
que os seguranças que já estavam na instituição. Ela precisava
saber do perigo que corria para procurar proteção junto a eles.
O celular de Malika tocou sem que ela atendesse e
comecei a me impacientar com a espera.
— Vamos manter a calma, Yusuf. Eles vão conseguir
proteger as duas a tempo. — Apesar do que disse, Majdan
parecia estar tão preocupado quanto eu. — Khara! Suspeito
que queiram pegar a irmã deles também.
Bati o celular sobre a mesa com força quando a
segunda ligação que fiz para Malika também não foi atendida.
— Ela não atende! Sinto que descobrimos isso tarde
demais.
— Tente mais uma vez. Ela pode estar ocupada.
Fiz o que me aconselhou, mas algo me dizia que era
perda de tempo e tempo era algo que eu não queria perder.
Muito menos a ela e ao meu filho!
Allah, a minha mulher, o meu filho! Não os tire de mim.
Levantei-me, decidido a entrar em ação de alguma
maneira, mas foi no momento exato em que o meu celular
tocou outra vez. Peguei-o, achando que era ela, mas era o
coordenador da task-force176.
— A princesa não foi localizada, mas encontramos uma
das refugiadas amarradas em um dos quartos. Estava
inconsciente e foi levada para o hospital. Estamos verificando
as imagens das câmeras de vigilância para ter certeza de que
deixaram a instituição e qual a direção que tomaram.
Controlei a vontade de gritar de raiva.
— Façam isso, mas quero agora mesmo que patrulhem
por terra e por ar todo o perímetro até Rummán para os
localizar. Vou pegar um dos helicópteros e participar
pessoalmente.
— Farei isso agora mesmo, alteza.
Guardei o aparelho no bolso, fervendo de raiva.
— Vou com você. — Majdan se levantou com um olhar
decidido.
— Avise a Saqr e ao nosso pai. Vou pegar dois
equipamentos.
Enquanto ele ligava, fui até a sala de apoio e abri o
armário, pegando dois equipamentos militares completos. Levei
para a minha sala e joguei sobre o sofá, começando a colocar
rapidamente o meu.
— Podemos ir sem nos preocuparmos com mais nada
— Majdan informou enquanto se preparava. — Saqr vai tomar
as outras providências.
— Vamos!
Minutos depois já estávamos sobrevoando a cidade,
que eu observava minuciosamente enquanto recebia
informações pelo intercomunicador auricular sobre as buscas
em terra.
— Para a estrada de Rummán! — ordenei ao piloto.
Cruzamos os céus em alta velocidade, os motores
potentes do helicóptero de guerra vencendo os quilômetros da
estrada abaixo de nós. Ao nosso lado, outro helicóptero nos
acompanhava na busca.
Logo vimos um carro sozinho na estrada.
— Verifique o interior.
O copiloto ajustou a câmera do imageador térmico177,
mas a minha intuição já dizia que Malika estava nele.
— Dois homens na frente e duas mulheres atrás. Elas
estão deitadas sobre o banco.
— Interceptação imediata com snipers178 a postos —
passei as ordens pelo intercomunicador. — Mantenham o
perímetro de segurança. Há perigo de explosão.
Aquela última frase era uma realidade que me custou
muito a dizer, mas da qual eu não podia fugir.
O helicóptero com a equipe especial de resgate
avançou até se colocar à frente do veículo, enquanto o nosso
se posicionou atrás. O motorista do carro foi forçado a parar no
meio da pista e observei os militares descerem da aeronave.
Fiz sinal para Majdan e descemos também assim que
os motores foram desligados. Peguei o binóculo para
acompanhar a movimentação dentro do carro.
— Desçam devagar com as mãos na cabeça! — o
comandante ordenou pelo alto-falante.
Os minutos seguintes foram de tensão. Ficamos à
espera da reação deles, que tanto poderia ser a rendição
quanto a explosão de veículo. Nunca o tempo pareceu tão lento
à medida que esperávamos.
Os dois homens pareciam estar discutindo dentro do
carro, o que não era nada bom.
— Snipers de prontidão? — perguntei pelo
intercomunicador.
— Motorista na mira, senhor! — o primeiro respondeu
de imediato do helicóptero parado à frente do carro.
— Passageiro na mira, senhor! — o segundo
respondeu a seguir.
— E as reféns?
— Continuam fora da mira.
Ficamos à espera, até que o motorista abriu a porta e
desceu com as mãos na cabeça. O outro homem permaneceu
imóvel e só podia ser o Mustafa Ayad, visivelmente o mais
perigoso dos dois.
Ao meu lado, Majdan praguejou, mas não perdi o foco
do que acontecia no carro.
— Peço permissão para abater, senhor! — A voz do
atirador soou firme.
— O que ele está fazendo?
— Aposto a minha vida que está rezando antes de
explodir o carro.
Khara!
— Autorizado! — Não vacilei na resposta.
Mal terminei de falar, o grito de Malika reverberou no
silêncio do deserto, causando um aperto no meu peito.
— Yusuuuuf!!!
Apertei o binóculo com força acompanhando o
momento em que o projétil perfurou o vidro dianteiro do carro e
se alojou na testa de Mustafa. No mesmo instante a cabeça do
homem foi projetada para trás com violência, ficando imóvel
depois.
— Alvo abatido, senhor!
Larguei o binóculo, tirei o intercomunicador e corri para
o carro junto com Majdan e os outros soldados. O motorista foi
algemado, mas o que eu queria era tirar logo Malika dali.
Abri a porta e a encontrei encolhida no banco, cobrindo
a cabeça com os braços. Parecia estar protegendo Thara, que
estava deitada embaixo dela.
— Malika!
Ela baixou os braços e olhou para mim, segurando com
força a mão que lhe estendi.
— Yusuf! — Havia alívio na voz dela e um amor imenso
no olhar.
Tirei-a do carro e peguei ao colo, ansioso para colocá-
la a salvo no helicóptero.
— Falta a Thara!
— Não se preocupe, Majdan vai cuidar dela.
Malika virou o rosto para trás, querendo ter a certeza
daquilo.
— Thara está mal, Yusuf. Ele bateu muito nela.
Ouvir aquilo me enfureceu ainda mais.
— Bateu em você também?
— Não, só nela. — Malika apertou mais os braços à
volta do meu pescoço.
— Você está bem? E o nosso filho?
— Estamos bem — ela garantiu e inspirei
profundamente, descomprimindo o aperto que vinha sentindo
no peito. — Tenho muita fé em Allah, mas confesso que
cheguei a pensar que dessa vez não ia mesmo escapar e que
nunca mais nos veríamos. Tem uma bomba desativada
embaixo do banco de Mustafa.
Contraí os lábios ao comprovar que realmente havia
uma bomba com Mustafa e coloquei Malika no helicóptero. Mal
entrei, fui falar com o piloto.
— Informe para eles que tem uma bomba embaixo do
banco do terrorista abatido.
— Sim, senhor.
Voltei para perto dela, que se mantinha atenta à
chegada de Majdan com Thara. A garota estava desacordada
no colo do meu irmão e o ajudei a colocá-la deitada no banco
dos fundos da aeronave. Malika foi logo para perto da amiga,
angustiada.
— Para o hospital! — ordenei ao piloto, esperando que
desse tempo para salvar Thara.
Capítulo 73
Yusuf
Apesar do estado de inconsciência de Thara ter
preocupado a nós três, o prognóstico dado pela equipe médica
do doutor Fadel nos acalmou horas depois. Ela estava muito
machucada dos golpes que levou e precisaria de alguns dias
de internamento para se recuperar.
Malika chorou quando recebeu a notícia diretamente da
doutora Bushra, quando estava pronta para iniciar uma série de
exames para ver como estava o nosso filho.
— Que alívio, doutora! Eu estava tão preocupada com
ela.
— Pode ficar descansada e não se preocupar mais,
alteza. Thara vai precisar ficar internada por alguns dias no
hospital, mas depois poderá voltar ao palácio e retomar
normalmente a sua vida. Aconselho apenas que estejam
atentos a sintomas de estresse pós-traumático nela.
Malika sorriu com tristeza.
— Pode deixar, doutora. Sei bem como é isso e vou
estar atenta.
— Agora vamos ver como está este bebê.
Tenso, fiquei ao lado de Malika durante a
ultrassonografia que ela fez logo depois e que confirmou o
quanto o nosso bebê estava bem e seguro no ventre dela.
Emocionei-me ao ouvir o coraçãozinho batendo com força e em
ritmo constante. Era como se estivesse falando para nós dois
que tudo estava bem lá dentro.
Só quando Malika já estava acomodada na suíte do
hospital aos cuidados de uma enfermeira foi que a deixei para
dar notícias à Majdan, que aguardava na sala.
Ele se levantou do sofá assim que me viu chegar.
— Malika e o bebê estão bem, graças à Allah —
informei, recebendo um abraço emocionado dele.
— E a garota Ayad?
— Está muito machucada, mas vai se recuperar.
Notei o quanto Majdan relaxou com a notícia, ainda que
permanecesse com a fisionomia rígida e muito séria.
Observei-o com atenção agora que o verdadeiro perigo
de vida havia passado. Dentro do helicóptero, cheguei a achar
que ele havia ficado por demais abalado com o estado de
Thara para alguém que aparentemente não se importava muito
com a assessora e amiga de Malika.
Fiquei pensando se aquilo era coisa da minha
imaginação ou não, mas depois deixei o assunto de lado.
Afinal, até eu havia ficado demasiado preocupado com Thara.
Ela era uma boa mulher e não merecia a família que tinha,
assim como Malika e Kismet também não mereciam a família
delas.
Da minha parte, a única coisa que eu queria naquele
momento era levar Malika de volta para Taj e ver a minha
mulher e o meu filho em segurança no palácio, mesmo
sabendo que agora os verdadeiros culpados dos atentados à
bomba em Tamrah estavam definitivamente presos.
Sentei-me no sofá e Majdan fez o mesmo.
— As duas vão ser liberadas ainda hoje?
— Vou levar Malika assim que a médica lhe der alta,
mas o estado de Thara é mais sério e ela precisará ficar
internada alguns dias. Só espero convencer Malika a voltar
comigo para Taj. Desconfio que ela vai me pedir para
permanecer aqui e aguardar que Thara volte à consciência.
Ele ficou pensativo e depois se virou para mim.
— Se quiser, eu fico aqui para saber notícias dela.
Assim que Thara voltar à consciência, aviso.
— Isso pode demorar, meu irmão.
Ele ergueu os ombros em um gesto de pouco caso.
— Fico em um dos quartos assistindo às notícias. Hoje
o mundo vai ficar sabendo que pegamos os terroristas dos dois
ataques à bomba. — Ele riu com um resquício daquela antiga
arrogância que tinha antes. — Ninguém se meta com os Al
Harbi.
Dei um soco de brincadeira no braço dele e depois o
abracei pelos ombros, enquanto ríamos, comemorando aquela
vitória.
— Só sinto por Thara. Ela adora Malika e Kismet e
deve estar arrasada com o que os irmãos fizeram.
— Teremos de descobrir depois quem mais da família
está envolvido — Majdan lembrou.
— Saqr já providenciou que todos fossem presos para
interrogatório. A cidade de Rummán deve estar em polvorosa
hoje com a chegada dos militares.
— Está muito óbvio para mim que os irmãos de Thara
viram na entrada dos refugiados uma oportunidade para
atingirem Malika e colocar a culpa nos rebeldes de Sadiz.
— Nunca pensei que o trabalho de Malika em favor das
mulheres fosse despertar tanto ódio de um grupo de homens
com a mente fechada.
— Thara vai se sentir culpada — Majdan comentou,
chamando-a pelo nome.
Olhei-o, surpreso.
— Esta é a primeira vez que você não chama Thara de
“a garota Ayad”.
Ele pareceu mais surpreso do que eu.
— Nem reparei nisso.
— Mas eu reparei. Malika já tinha comentado comigo
que Thara não entendia por que você era o único que a tratava
assim.
— Ela disse isso para Malika?
— Disse e acho que não gostava muito.
— Demorei a decorar o nome dela. Já o pai, o Salim
Ayad, é um homem difícil de esquecer depois das exigências
que fez para o nosso pai.
— Ele realmente não gostou de ser enfrentado por
Malika em Rummán. Assad foi quem assumiu o confronto, mas
o homem ficou com Malika marcada na mente dele como
sendo a culpada pela suposta vergonha da família. Isso mostra
como nas cidades do interior ainda existe muito trabalho a ser
feito pelo Ministério da Mulher.

Quando entrei com Malika em casa, Saqr e Kismet


estavam nos aguardando e se levantaram do sofá para nos
abraçar.
As duas irmãs se emocionaram, chorando, e troquei
um olhar de entendimento com Saqr. Fizemos com que se
sentassem no sofá e nos sentamos de frente para elas, que
não largaram as mãos uma da outra, mostrando o quanto se
amavam.
— Você e o meu sobrinho estão bem? — Kismet
perguntou à Malika.
— Estamos ótimos, apesar do susto que passamos.
Kismet olhou para Saqr.
— Lembrei-me agora do que passei na gravidez de
Zayn. Foi um susto enorme ficar pendurada naquela corda
achando que ia cair da torre e morrer lá embaixo.
— Nem me lembre disso — Saqr vociferou ao meu
lado. — Sinto a mesma raiva daquele dia.
Observando a situação sob aquele prisma, realmente
as duas tiveram situações de risco na primeira gravidez. Zayn
hoje era um menino forte e saudável e o mesmo aconteceria
com o meu filho.
— Malika está bem e não houve risco para a gravidez,
mas por segurança a doutora Bushra orientou repouso nos
próximos dias — expliquei, olhando com amor para ela, que
sorriu de volta.
— A doutora Bushra é um amor — Kismet elogiou a
médica, olhando depois para a irmã. — Uns dias de descanso
vão lhe fazer muito bem. É o tempo para eles resolverem de
vez a situação.
Aquilo me lembrou da prisão dos Ayad.
— Tudo resolvido em Rummán? — perguntei a Saqr.
— A cidade está cercada por nossas tropas. Até
exagerei, para deixar bem claro ao restante do país que não
vamos admitir que o que aconteceu fique sem punição ou que
se repita. Vidas de pessoas inocentes foram perdidas por
causa do orgulho de homens extremistas, o que é inaceitável.
— Isso sem falar que agiram contra Malika, um
membro da família real.
— Não era só de mim que eles tinham raiva — Malika
explicou, olhando para a irmã. — De Kismet também.
— De mim também? — Kismet estranhou. — Nunca
falei com nenhum deles.
— Mustafa me odiava, mas a raiva dele era contra nós
duas. Na visão dele, só trouxemos desgraça para Tamrah.
Acho que a vinda dos refugiados de Sadiz só piorou a situação.
— Ela olhou para mim e para o meu irmão. — Não sei se há
outras pessoas em Tamrah com a mesma opinião de Mustafa,
mas ele estava revoltado com os benefícios sociais que os
refugiados de Sadiz estavam recebendo. Na cabeça dele, a
culpa era nossa, minha e de Kismet. O homem devia achar que
somos a personificação do pecado, porque disse que
enfeitiçamos vocês dois.
Saqr e eu nos olhamos, abismados, e caímos na
risada. Sem dúvida alguma, fomos enfeitiçados por elas.
— Vocês estão rindo do quê? — Kismet perguntou,
chateada.
— Acho que esta era a única coisa sensata que havia
na cabeça de Mustafa Ayad. — Saqr respondeu de bom humor.
As duas se olharam, boquiabertas.
— Coitadinhos dos príncipes de Tamrah. Duas vítimas
inocentes das princesas de Sadiz — Kismet nos alfinetou,
olhando feio para Saqr.
— E você não sabe do que ele lhe chamou — Malika
disse para a irmã em um tom revoltado. — Mustafa se referiu a
você como “a bruxa de olhos verdes”.
Kismet contraiu o rosto com raiva.
— O quê?! Ele me chamou de bruxa de olhos verdes?
— Ela olhou para o meu irmão com o rosto muito sério. — Eu
sou uma bruxa de olhos verdes, Saqr?
Incrivelmente, ele riu ainda mais, deixando-a perplexa,
e me forcei a segurar o riso.
— Saqr Al Harbi não ria de mim.
A cara das duas estava tão engraçada que não
aguentei e estourei em uma gargalhada junto com o meu
irmão, a tensão de meses de investigação se dissolvendo como
fumaça.
Foi quando os nossos pais entraram na sala e pararam
abruptamente ao nos verem rindo, a expressão preocupada
sendo substituída pela surpresa.
— Viemos às pressas achando que estavam todos em
lágrimas e encontramos vocês dois às gargalhadas? — nossa
mãe perguntou, aproximando-se.
— Quero saber o motivo de tanta alegria depois de um
atentado, de um sequestrador abatido e de uma cidade inteira
cercada pelo exército. — Foi a vez do nosso pai falar com
ironia e ficamos logo sérios.
Malika foi a primeira a reagir.
— Os dois estavam rindo dos nossos novos apelidos.
Kismet é a bruxa de olhos verdes e eu sou a pecadora de
Sadiz.
— Quem apelidou vocês assim? — a minha mãe
perguntou à Malika, sentando-se no meio delas e o meu pai se
sentou entre nós dois, ambos atônitos.
— Os homens da família Ayad.
— Oh, aqueles homens! Que Allah tenha piedade
daquela família.
— Eles vão mesmo precisar da piedade de Allah,
garanto — o meu pai disse e eu conhecia aquele tom
autoritário de governante.
Sem dúvida alguma, a família Ayad ia precisar da
misericórdia de Allah.

Naquela mesma noite, Majdan ligou para avisar que


Thara havia recuperado a consciência e estava bem.
Confirmou também que ela ainda ficaria internada por quatro
dias antes de ser liberada pela equipe médica.
Passado aquele tempo, Thara veio para Taj já
recuperada dos golpes que levou do irmão, para alívio de
Malika.
O que ninguém esperava uma semana depois foi a
pressa de Fhatima em vir ao mundo. Pelas contas da médica,
ainda faltavam cerca de três semanas para o nascimento dela,
mas Kismet começou a sentir as dores do parto bem antes da
hora.
Eu estava no escritório da Global Harbi quando Malika
me ligou para avisar.
— Estou indo com Kismet para a maternidade. Ela
entrou em trabalho de parto.
— Tão cedo? Achei que ainda ia demorar alguns dias.
— Também achávamos, mas não foi o que Allah quis.
— E Saqr?
— Está aqui com ela, preocupadíssimo.
Eu imaginava que sim. A gravidez de Fhatima
aconteceu quando os dois já haviam decidido não ter mais
filhos por um bom tempo. Cansei das vezes em que Saqr
desabafou a preocupação com a saúde de Kismet ao ter três
filhos seguidos. Eu entendia e concordava com ele. Se
acontecesse o mesmo com Malika, sem dúvida que eu estaria
arrancando os cabelos de preocupação, mesmo sabendo que
existiam muitas mulheres que tinham até mais filhos seguidos.
— Me encontro com vocês na maternidade. Avise ao
meu irmão que estarei lá.
— Avisarei.
Quando desligamos, encerrei o meu trabalho e saí da
Global Harbi a caminho da maternidade do hospital do doutor
Fadel. Cheguei bem antes deles e aguardei na sala do andar
reservado para o parto de Kismet.
Quando todos chegaram, notei a fisionomia séria e
preocupada de Saqr. Kismet, Malika e Layla não estavam com
eles, provavelmente já tinham ido direto para a área restrita
onde aconteciam os partos.
Saqr entrou na sala discutindo com a minha mãe.
— Desta vez não adianta tentar me impedir. Vou entrar
e ficar ao lado de Kismet — ele afirmou categoricamente.
Majdan me olhou como quem dizia que não valia a
pena entrar no meio daquela discussão. O meu pai também
não falou nada, sentando-se no sofá e acompanhando tudo
para ver no que ia dar.
— Você tem noção que se passar mal lá dentro pode
prejudicar a sua esposa e a sua filha?
Aquela era a mesma discussão de sempre e já
estávamos acostumados, mas Saqr parecia determinado
daquela vez.
Todos nós sabíamos que o poderoso Sheik Rashid Al
Harbi havia desmaiado dentro da sala de parto ao acompanhar
o nascimento de Majdan, o seu primogênito. Segundo a minha
mãe, a equipe médica teve de socorrer o rei, enquanto ela
praticamente trouxe Majdan ao mundo quase sem assistência.
Se não fosse uma enfermeira ter corrido para a ajudar no meio
do caos que se formou dentro da sala de parto, nosso irmão
teria se virado sozinho ao vir ao mundo.
Quantas vezes rimos em família ouvindo aquela
narrativa da minha mãe e provocamos o Majdan pela maneira
inusitada como havia nascido. Contudo, as brincadeiras eram
só nos momentos de convívio familiar. Ali na maternidade,
aquela história se tornava algo sério quando uma das mulheres
da família estava sofrendo para trazer mais um Al Harbi ao
mundo.
— Eu já disse que não vou desmaiar como o meu pai
fez no nascimento de Majdan. Não vou deixar Kismet sozinha
desta vez.
Ela colocou as mãos nos quadris e bufou.
— Se deixar a sua esposa nervosa ou preocupada,
este parto vai ser mais difícil do que você pensa.
— Quero fazer justamente o contrário. Deixar Kismet
calma e confiante de que tudo vai dar certo.
— Então vá se preparar. Como é o terceiro parto
seguido dela, não deve demorar muito para sua filha nascer.
Saqr soltou um suspiro de alívio quando conseguiu
convencer a minha mãe. Eu só esperava que ele se
mantivesse firme durante o parto e não passasse mal, assim
facilitaria para mim quando chegasse a vez de Malika. Eu ia
lutar com unhas e dentes para estar ao lado dela na sala de
parto.
Saqr saiu da sala e a minha mãe foi atrás, mas antes
lançou um olhar reprovador para o meu pai, como se ele fosse
o culpado de tudo.
— Ela nunca se esqueceu disso, mesmo depois de oito
filhos — ele comentou calmamente.
— Acho que foi por ter acontecido logo no primeiro —
comentei, entendendo também o lado dela. — Eu só espero
que Saqr se aguente bem.
Só ficamos sabendo horas depois, quando ele entrou
na sala com a filha nos braços.
— Conheçam a mais nova princesa de Tamrah —
anunciou, orgulhoso.
Levantamo-nos os três ao mesmo tempo e o rodeamos
para ver Fhatima. Era mais miudinha do que os irmãos, com
um rostinho delicado que mostrava bem os traços de Kismet.
— Desta vez posso afirmar com convicção que ela é
mesmo a cara da mãe.
— Sem dúvida alguma que não tem nenhum traço feio
do pai — Majdan provocou, recebendo um olhar fulminante de
Saqr.
— A feiura deve ser mal dos homens da família — ele
devolveu a provocação.
— Me excluam da feiura de vocês dois — pedi,
segurando o riso.
— Oh, calem-se! — o meu pai rugiu com autoridade,
olhando embevecido para Fhatima. — Isso não é conversa
para se ter na frente de uma princesa.
— É porque nos amamos muito — Majdan abraçou o
meu irmão pelos ombros. — Agora estamos empatados, Saqr.
Ele se referia à quantidade de filhos que ambos tinham
atualmente: dois meninos e uma menina.
— Fique à vontade para desempatar — Saqr cedeu a
vez para Majdan. — Tão cedo quero ver Kismet grávida de
novo. Três seguidos foi demais até para mim.
O meu pai o olhou com curiosidade.
— E então, filho. Desmaiou lá dentro?
Saqr riu e notei o alívio no brilho do olhar dele.
— Enfrentar um leão selvagem de frente parece menos
assustador, mas aguentei bem. Nunca pensei que uma mulher
sofresse tanto para ter filhos.
— Não me assuste nem faça drama desnecessário. —
Fiz cara feia para ele.
— Aconselho que vá se preparando.
O meu pai parabenizou Saqr com palmadinhas nos
ombros.
— Parabéns, filho! Você quebrou um paradigma
instituído pela mãe de vocês. Inicia-se hoje uma nova era para
a família Al Harbi.
— Isso é que é drama — Majdan caçoou, rindo muito.
Caímos todos na risada, felizes e aliviados por tudo ter
dado certo. Fhatima aparentemente veio antes da hora, mas
tive a certeza de que chegou na hora certa.
Capítulo 74
Yusuf
Fiz aniversário de trinta e três anos no mês seguinte,
com direito a uma grande festa promovida por Malika e pela
minha mãe. As duas uniram forças para me convencer a
comemorar em grande estilo e deixei que fizessem o que
queriam. Elas mandavam mesmo em mim e não havia como
lutar contra aquilo.
Saqr me dava palmadinhas solidárias nos ombros e
Majdan apenas meneava a cabeça e ria, divertindo-se com a
minha situação.
— Quem ri por último, ri melhor — falei para ele certo
dia.
— Coincidentemente, sou o último a rir.
Ele seguia me provocando sempre que o assunto era o
quanto Malika me dominava. Na verdade, ela mandava e
desmandava em mim, ainda que eu resistisse.
A minha hora da revanche contra Majdan acontecia
quando nos encontrávamos no tatame da sala de treino de
artes marciais, que ficava na academia de musculação de Taj.
Ele tinha quase a minha altura, mas era mais encorpado. Em
compensação, eu era muito mais rápido e ágil do que ele,
derrubando-o facilmente.
Eu sempre vencia, mas certo dia ele me pegou
desprevenido e me levou ao chão, comemorando bastante a
vitória. Bateu com os punhos fechados no peito como se fosse
um gorila e ergueu os braços para um público imaginário. O
único que assistia era Saqr, cuja risada se espalhou pela sala.
Deitado no chão, não resisti ao teatro que Majdan
estava fazendo e comecei a rir também. Quem diria, anos
atrás, que o meu irmão mais velho estaria se divertindo comigo
e com Saqr, em vez de estar nas festas de Mubarak, regadas a
álcool, drogas e sexo. Allah havia realizado um verdadeiro
milagre nele!
No final da tarde do dia do meu aniversário, muito
antes de a festa começar, Malika me ligou no escritório em Taj
para dizer que eu não entrasse no nosso quarto até que ela
autorizasse, pois estava preparando uma surpresa para mim.
— Se é uma surpresa, claro que não vou entrar, mas
você só atiçou a minha curiosidade para saber o que é.
Ela riu, deliciando-se com o meu interesse.
— Não é nada fenomenal, mas acho que você vai
gostar do meu presente de aniversário. Pelo menos é o que eu
espero.
— Vou amar tudo o que você fizer, seja o que for.
— Mesmo que eu o algeme na cama e faça cócegas
em você até cansar?
Gargalhei com a provocação. Eu detestava que
fizessem cócegas em mim e Malika sabia daquilo.
— Você não faria isso justamente no dia do meu
aniversário.
— Humm, será? — Ela deixou a dúvida no ar. — Fique
tentando adivinhar o que é até a hora chegar. Ma’a salama!179
Desliguei ainda rindo, achando que fosse me esquecer
da tal surpresa que ela estava preparando, mas fiquei mesmo
tentando adivinhar o que era. Na minha cabeça, só vinha a
imagem de uma sessão de massagens na sauna do nosso
banheiro, seguido por um banho revigorante e um orgasmo
poderoso nos braços dela.
Aquilo me deixou previamente excitado, mas depois
achei melhor não fantasiar demais. Se o que ela estava
preparando não tivesse nada a ver com aquilo e fosse algo
muito simples, eu corria o risco de ela ver a decepção no meu
olhar.
Tentei me esquecer da surpresa e voltei ao trabalho.
Consegui me concentrar até o meu celular voltar a tocar sobre
a mesa.
— Pode vir, Yusuf. Mas tem que prometer que vai fazer
tudo o que eu mandar logo na porta da nossa suíte. Você é
muito rebelde e não vai estragar a minha surpresa querendo
ver tudo antes do tempo.
— Estou começando a ficar preocupado, mas prometo
— respondi em tom de riso.
— Vem!
Fui para casa com um sorriso bobo no rosto que só
Malika era capaz de provocar em mim. Assim que cheguei na
entrada da nossa suíte, já ia abrir a porta quando me lembrei
que era uma surpresa.
Pela primeira vez na vida, bati na porta do meu próprio
quarto antes de entrar.
— Só um instante — ela respondeu lá dentro.
Uma pequena fresta da porta foi aberta e os olhos
amendoados me observaram. Lá dentro, tudo estava escuro e
um aroma delicioso de bakhoor180 de Oud181 invadiu os meus
pulmões.
— Feche os olhos e cubra-os com uma das mãos.
Fiz o que ela mandou sem reclamar, mas achei um
exagero, considerando que já havia notado que as cortinas
deviam estar cerradas para tudo estar escuro daquele jeito.
— Me dê a sua outra mão para eu guiar você.
Estendi a mão e ela a segurou, guiando-me para dentro
do hall do nosso quarto. Sem poder enxergar, agucei os meus
outros sentidos para saber a direção para onde ela me levava.
O treinamento militar e de artes marciais foram fundamentais e
logo percebi que ela me levava para o sofá encostado na
parede central do hall.
Achei estranho, pois pensei que ela fosse me levar
direto para o quarto, mas entendi o motivo depois.
— Não abra os olhos, mas pode tirar a mão deles.
Mal tirei a mão e um lenço o substituiu. Fui vendado
por Malika, que havia subido no sofá atrás de mim para ficar da
minha altura.
— Muito espertinha você.
— Uma mulher baixinha precisa de alguns truques para
vencer um homem alto.
Coloquei a mão para trás, tentando segurá-la pelas
pernas, mas Malika percebeu e escapou, rindo.
— Regra fundamental. Você não pode tocar em mim
sem que eu autorize. — Apesar do riso anterior, agora o tom de
voz dela estava sério. — Vai cumprir?
— Vou, mas não se esqueça que hoje é o dia do meu
aniversário. São os meus desejos que devem ser realizados, e
não os seus. Até agora só recebi ordens. Quero os meus
desejos realizados.
— Sinto muito, mas o seu presente não é a lâmpada
mágica de Aladim182 com um gênio para realizar os seus
desejos.
— Não preciso do gênio da lâmpada. Você pode
realizar todos os meus desejos — falei com a voz já
enrouquecendo de excitação, aquele ritual todo começando a
mexer com os meus sentidos.
— Ah, mas esta não é a intenção do meu presente.
A voz dela soou ligeiramente decepcionada e repreendi
a mim mesmo por estar estragando a surpresa dela com as
minhas fantasias e expectativas, algo que eu já havia decidido
não fazer.
— Tenho certeza de que o seu presente será o melhor
e mais especial de todos que já recebi na vida. Será o primeiro
que me dá sendo minha esposa.
— E espero que ele signifique muito para você. — Ela
segurou a minha mão. — Venha, habibi albi183. Preparei o seu
presente com muito amor.
Por mim, eu a agarrava ali mesmo e mostrava o
tamanho do meu amor, mas me submeti ao comando dela e
deixei que me levasse para dentro do nosso quarto. Lá, o
perfume do bakhoor184 estava mais ativo, estimulando os meus
sentidos e a minha imaginação. Era difícil não deixar as
fantasias sexuais correrem soltas, mesmo com tão poucos
estímulos.
— Você agora vai se sentar.
Estranhei, pois tinha certeza de que estávamos no
meio do quarto e ali não havia nenhum lugar para me sentar.
— Aqui no chão?
Ela riu.
— Não. Eu arrastei o sofá da parede até aqui. Ele está
logo atrás de você. Pode se sentar sem medo.
Surpreso e preocupado com a mudança de local do
sofá, toquei-o para ter certeza de que estava ali mesmo antes
de me sentar.
— Você não confiou em mim — ela disse com tristeza
na voz.
— Não é isso. Esse sofá é muito pesado para você
arrastar sozinha, ainda mais estando grávida. Não devia ter
feito isso e é claro que estou preocupado.
— Não fique. Recebi ajuda de quatro mulheres para o
colocar aí e garanto que não me deixaram fazer nada.
Relaxei na hora, rindo ao tentar adivinhar quem seriam
as ajudantes dela.
— Kismet, Sabirah, Thara e Layla?
Sabirah já tinha voltado de Londres na companhia de
Assad e estava muito empenhada em ajudar com os
preparativos do meu aniversário.
— Acertou em cheio — Malika confirmou, mas o som
da voz dela soou longe de mim e virei o rosto para o lado
esquerdo, de onde tinha vindo.
— Estou de olho em você, Yusuf. Não tente ver nada.
— E não posso tentar adivinhar onde você está pela
direção da sua voz?
Malika não respondeu, provavelmente para eu não
saber onde estava e me recriminei pela burrice. Agora ela ia se
esconder de mim.
Uma melodia instrumental romântica soou dentro do
quarto logo depois, tornando toda a experiência por demais
envolvente e única.
— O seu presente começa a partir de agora — ela
disse suavemente atrás de mim e inspirei fundo com a
surpresa.
As mãos delicadas me seguraram pelos ombros,
massageando-os com habilidade.
— Respire fundo, sinta o aroma envolvente do bakhoor,
deixe a música tocar a sua alma — sussurrou na minha nuca,
bem próximo do meu ouvido, a respiração suave causando um
frenesi dentro de mim. — Relaxe, habibi.
Em vez de relaxar fiquei excitado. Malika forçou as
minhas costas contra o encosto do sofá, continuando a
massagear os meus ombros. Apesar de estar de olhos
fechados desde que entrei, o estado de alerta era tanto que eu
sentia como se estivessem abertos, mesmo sem ver nada. A
massagem me ajudou a realmente os fechar, concentrando-me
nos outros sentidos além da visão. O cheiro delicioso do oud, a
música tocando, as mãos da minha esposa em meu corpo.
Ela deslizou as mãos da minha nuca para o queixo,
fazendo-me inclinar a cabeça para trás. Inclinou-se sobre mim
e tomou os meus lábios em um beijo molhado, a posição
diferente atiçando-me. Descobri que ela estava com os longos
cabelos soltos, pois eles caíram ao nosso redor. Segurei-os,
irresistivelmente atraído.
— Não pode me tocar — lembrou, sugando o meu lábio
inferior. — Só eu posso tocar em você.
— São só os cabelos, minha rainha185 — gemi, quase
implorando por permissão.
Em resposta, ela interrompeu o beijo e se afastou,
deixando os cabelos roçarem o meu rosto antes de ir embora.
Suspirei pesadamente, sentindo-os deslizarem pelos dedos até
minhas mãos ficarem vazias.
— Malika — reclamei, mas ela permaneceu em
silêncio.
Tentei adivinhar para onde tinha ido no quarto, mas o
tapete macio impedia que eu a localizasse pelos passos.
Quando ela voltou a falar, estava distante, mas a voz vinha da
minha frente.
— Você não pode se levantar do sofá nem me tocar em
hipótese alguma. Promete?
— Já prometi que ia fazer o que você quisesse. —
Achei desnecessário aquele aviso.
— Ótimo. Agora pode tirar a venda dos olhos.
A surpresa foi tanta com aquela liberação que até
demorei a reagir, mas logo depois estava arrancando às
pressas o lenço dos meus olhos.
Perdi o fôlego com o que vi.
Paralisei, emudeci, enlouqueci.
Malika estava próxima à parede onde antes ficava o
sofá onde eu estava sentado. De costas para mim, ela me
olhava por sobre o ombro.
Os cabelos longos estavam soltos, derramando-se até
abaixo da cintura. Ela não estava nua, mas notei que a única
coisa que a cobria eram vários véus transparentes em tons de
verde, uma cor que eu amava, principalmente nela. Alguns
estavam presos no sutiã de pedrarias e outros à uma faixa nos
quadris voluptuosos. Juntos, formavam uma espécie de vestido
que ia até o chão. Naquela posição de costas, o meu olhar se
fixou nas nádegas cheias que os véus diáfanos não escondiam
totalmente, deixando-me ver a marca de uma diminuta calcinha
preta.
Ela vestia uma roupa de dança do ventre até recatada,
mas que me deixou extasiado, excitado e endurecido só de ver.
— Porra, Malika! — rosnei e instintivamente fiquei de
pé.
— Não pode se levantar! — ela lembrou em tom firme.
Parei, frustrado, voltando a me sentar.
— Eu não acredito no que estou vendo! — Passei a
mão nos olhos e fixei a vista nela outra vez para ter certeza. —
Você vai dançar para mim depois de tanto tempo que pedi?
Ela sorriu, um sorriso que era uma mistura de timidez e
provocação.
— Descubra por si mesmo — falou enigmaticamente,
colocando o indicador sobre os lábios em um pedido de
silêncio. — Vai começar.
Só então percebi que a música estava mudando e me
calei, dominado pela expectativa do que ia ver. O meu coração
já batia aceleradamente no peito enquanto os meus olhos
ávidos apreciavam a beleza do corpo da minha mulher.
Apesar de estar com três meses de gravidez, a barriga
de Malika continuava quase a mesma de sempre, porém, as
formas femininas haviam ganhado contornos mais
arredondados e tentadores.
Ela olhou para a frente e respirou fundo, provavelmente
se concentrando.
Quando tocou os acordes da música que ela ia dançar,
senti um baque no coração assim que a reconheci. Ele falhou
uma batida tamanha foi a emoção. Era Qsad Einy186.
Engoli em seco e pisquei várias vezes os olhos para
conter a súbita umidade das lágrimas.
Fascinado, acompanhei os primeiros movimentos que
ela fez com os quadris ainda de costas para mim, ondulando-os
de um lado para o outro como se fossem as ondas do mar de
Intisaar, indo e vindo ao sabor da música. As mãos também
ondularam ao lado do corpo, subindo aos poucos até chegarem
ao alto de sua cabeça. Tudo era muito lento e sensual,
acompanhando o ritmo dos instrumentos musicais.
Malika só se virou de frente para mim quando o cantor
entoou a primeira estrofe, que ela acompanhou com uma voz
melodiosa, arrebatando-me.

“Estamos destinados a ficar juntos.


Mesmo que estejamos longe um do
outro
Com certeza, voltaremos.
Mesmo que haja uma longa distância
entre nós,
Você está diante dos meus olhos,
em todos os lugares.”

A letra sendo cantada com o amor que havia nos olhos


da cor das tâmaras e do oud me deixou extasiado.
Aquela música era especial demais para mim. Ela
havia marcado muito a minha história com Malika,
principalmente durante os meses em que fui obrigado a ficar
longe dela em Nova York. Como fui idiota naquela época,
achando que a distância seria a solução perfeita para o amor
não correspondido que sentia por ela. No final das contas, só
fortaleceu os meus sentimentos.
Malika continuou cantando enquanto o corpo se movia
tentadoramente à minha frente, as coxas aparecendo entre os
lenços da saia sexy que usava, os seios me atraindo
poderosamente, o arredondado dos quadris exercendo um
domínio completo dos meus sentidos.

“Com certeza, estaremos juntos


novamente.
Estou derretendo de amor e cheio de
paixão.
Eu não posso desistir de você,
não importa o que aconteça.
Você está diante dos meus olhos,
em todos os lugares.”

Totalmente sem fôlego, devorei os seios mal contidos


pelo sutiã de pedrarias, bem maiores e mais rijos da gravidez.
Ela estava muito sensual com aquela roupa, um verdadeiro
pecado. O meu pecado!
Malika dançava olhando para mim, como se soubesse
o quanto aquele olhar era a minha perdição. Ela se virou de
costas e até gemi ao ver o rebolado sinuoso dos quadris que
faziam as nádegas cheias me hipnotizarem. Não só a mim,
mas ao meu pau. Fiquei tão duro que até doeu, de tanto que
ansiava agarrar o meu presente de aniversário naquele exato
momento.
Ela me olhou novamente por cima do ombro, com um
leve sorriso curvando seus lábios, provocante, tentadora,
apaixonada.
— Solte o garanhão, Malika — rugi, ansiando por
libertar o meu desejo.
A música acabou e outra mais rápida e alegre começou
a tocar, com batidas excitantes que pareciam mais os tambores
de um ritual de acasalamento. Malika girou com rapidez para a
frente, fazendo movimentos frenéticos com o corpo que me
enlouqueceram.
— Devo soltar o garanhão ou o guepardo? — Ela
provocou com um sorriso cheio de malícia.
— Os dois ao mesmo tempo. Vou montar em você e
devorar a minha gazela.
Ela deu um giro de cabeça, fazendo os longos cabelos
castanhos voarem no ar com rapidez e caírem sensualmente
nas costas. Era tudo tão desnorteante que eu estava
completamente hipnotizado pelo talento dela com a dança do
ventre.
A música rápida permitia movimentos eletrizantes, de
tal maneira que chegava a ser obsceno, erótico, luxuriante. A
minha capacidade de suportar aquela tortura sexual chegou ao
fim e me levantei, decidido.
Malika parou de dançar no mesmo instante e me olhou,
boquiaberta.
— Você não pode sair do sofá.
— E quem é que vai me impedir? — perguntei, tirando
a túnica.
— Eu!
A minha resposta foi um sorriso de vitória.
— Yusuf! Ainda não terminei! — ela chamou a minha
atenção com firmeza, mas ignorei, continuando a me despir. —
Você prometeu!
— E cumpri a promessa, mas o aniversário é meu e
quero o meu presente agora!
— O presente é a dança! Não gostou?
Livrei-me das sandálias e da calça, ficando só de
cueca.
— Eu amei, mas agora quero o presente dele. —
Apontei para o meu pau completamente duro.
Malika soltou um gritinho e saiu correndo para o
banheiro, querendo me castigar por ter quebrado a promessa,
mas a agarrei em duas passadas, tendo o cuidado de não
pressionar a barriga dela.
— O guepardo é mais rápido do que a gazela.
— Você é um trapaceiro, isso sim! — Apesar do que
disse, ela segurava o riso, sabendo do poder que tinha sobre
mim.
— Olha só quem fala. — Peguei-a no colo e levei para
a cama.
— Não! Sente-se no sofá para eu terminar o que
planejei para o seu aniversário. Você vai gostar.
— Malika, Malika. Não aguento mais esperar.
— Confie em mim.
Coloquei-a de volta ao chão e me sentei no sofá.
— Vou confiar só por mais cinco minutos.
— É pouco tempo!
— É o que posso dar. — Não abri mão de nem mais
um minuto.
Malika trocou a música, diminuiu as luzes e se
posicionou no centro do palco improvisado. Recostei-me contra
o sofá, pensando o que mais ela ia fazer que ainda não havia
feito.
Para minha total estupefação, passou-se muito mais do
que cinco minutos sem que eu conseguisse fazer nada mais
além de babar pela minha esposa. Ela conseguiu me fazer
perder a contagem do tempo ao tirar um por um os véus que
cobriam a roupa que inicialmente achei recatada.
Cada véu foi solto do sutiã e da saia com gestos
precisos e cheios de charme, o que só comprovava o talento
inegável que ela tinha para a dança do ventre. Agora eu
entendia por que a professora que a ensinou ficou
impressionada com o talento de Malika.
A cada véu que caía, o meu pau subia, até que ela
ficou só com o sutiã e a calcinha à minha frente, o mesmo
sorriso sedutor nos lábios.
— Agora tira tudo! — exigi, ofegante.
— Lembre-se que não pode se levantar.
— Tira!
Ela atendeu à minha exigência, movimentando o busto
com volteios sensuais, virando-se de costas e abrindo o sutiã.
Prendi a respiração em expectativa quando a peça foi retirada
e admirei o corpo coberto apenas pela calcinha minúscula que
se perdia no meio das nádegas.
Malika estava linda demais e apertei com força o
espaldar do sofá. Ondulando os quadris, ela foi descendo a
calcinha lentamente e os meus olhos vidrados não perdiam
nenhum movimento, apreciando o corpo que se desnudava
para mim em uma dança dos sete véus.
Ela se agachou para tirar a calcinha e surtei.
Já ia me levantar quando Malika se virou de frente e
caminhou decidida para o sofá, aquele meio sorriso poderoso
nos lábios. Estarrecido com tanta beleza e sensualidade, deixei
que viesse, pensando o que mais faria para mim.
Completamente nua e com o olhar brilhando de desejo,
ela se sentou no meu colo com as pernas abertas e devorei
aquele sorriso com um beijo voraz, sentindo os seios macios
pressionarem o meu peito. Envolvemo-nos em um abraço
apertado, mãos e lábios percorrendo o corpo um do outro.
Desci a mão até o meio das pernas dela, sentindo o quanto
estava molhada de excitação.
Firmei o braço ao redor dela, colando-a em mim, e me
ergui o suficiente para descer minha cueca até os joelhos,
sentando-me de novo com Malika ao colo.
— Monte no seu garanhão.
Ela não hesitou em fazer o que pedi, montando em
cima do meu pau.
Joguei a cabeça para trás sobre o encosto do sofá,
aproveitando a sensação deliciosa de entrar no corpo dela.
Como uma amazona habilidosa, Malika montou em cima de
mim na perfeição, passando da cavalgada ao galope em ritmo
alucinante, enquanto eu sugava um mamilo durinho e
estimulava o clitóris inchado.
Ela não aguentou, eu tampouco. Gozamos juntos
agarrados um ao outro, como se quiséssemos prender aquele
momento para sempre entre nós dois, para que nunca mais se
acabasse.
— Ana bamoot fiky187, Malika.
— Oh, habibi albi. Ana bhebak.188
Malika me beijou novamente, mas daquela vez foi um
beijo onde o amor mandava mais do que o desejo premente de
instantes atrás. Unimos nossas testas, deixando que o coração
voltasse ao ritmo normal.
— Feliz aniversário — ela sussurrou no meu ouvido
com o rosto deitado no meu ombro.
Comecei a rir, sentindo-me feliz como nunca.
— Já estou até querendo fazer aniversário de novo só
para ter outro presente desses.
Ela riu também, acariciando os meus cabelos.
— Então, gostou?
Prendi com os meus aqueles olhos que me
enfeitiçavam.
— Foi o melhor presente de aniversário da minha vida.
Capítulo 75
Seis meses depois

Malika
— Você podia vir aqui? — perguntei à Kismet por
telefone. — Não tenho certeza, mas acho que estou em
trabalho de parto.
— Chego já e não se preocupe que levarei Layla
comigo — ela garantiu, desligando logo depois.
Permaneci deitada no sofá da antessala, pensando se
estava enganada e aquelas dores não eram do parto.
Eu não queria preocupar o Yusuf à toa. Ele estava em
uma reunião com o pai e os irmãos no majlis, discutindo sobre
a guerra em Sadiz, que tudo indicava que seria longa. A
diplomacia não avançava e eventualmente havia bombardeios
de ambos os lados. Yusuf já havia me dito que conflitos como
aquele na maioria das vezes se arrastavam por anos. Eu
conhecia os dois adversários daquela guerra e podia dizer que
seria exatamente aquilo que aconteceria com Sadiz. Nem o
meu pai cederia, nem o Mubarak.
A mesma dor de antes voltou e inspirei fundo para
aguentar, preocupada que não fosse o trabalho de parto, mas
sim um problema qualquer com o meu bebê. Tentei não ficar
ansiosa, pois sabia que aquilo não me ajudaria em nada.
Resolvi colocar em prática as técnicas de relaxamento que
havia adquirido no curso de gestante, até que Kismet e Layla
chegassem.
Não demorou mais do que dez minutos para as duas
entrarem no meu quarto, com Kismet à frente, o corpo esbelto
e elegante salientado pela abaya em tons de vermelho que
usava. Ela tinha voltado rapidamente à antiga forma física
depois do nascimento de Fhatima.
— Será que chegou a hora? — ela comemorou,
sorridente. — A titia aqui está ansiosa.
— Sinto tantas dores que nem consigo sorrir.
Layla se aproximou da cama com um olhar experiente.
— Contou o tempo entre as contrações?
— O que estou sentindo já são as contrações?
A pergunta soou boba até para mim mesma, mas a
verdade é que não tinha certeza.
— Provavelmente são, mas vamos comprovar nos
próximos minutos.
Foi o que fizemos, contando o tempo a cada vez que a
dor voltava.
— Eu aposto no trabalho de parto — Kismet opinou
depois de observar a minha barriga. — Está durinha e muito
baixa. Já rompeu a bolsa?
— Fora essas dores durante a madrugada inteira, não
senti mais nada de diferente.
— É que às vezes ela rompe tão pouco que só saem
gotas e não uma quantidade abundante. Tive os dois casos no
parto dos meus filhos — minha irmã disse com a experiência
de quem já tinha três filhos.
— Fiquei com a calcinha molhada ontem no final da
tarde, mas achei que fosse de urina. Tanto, que fui depois no
banheiro e urinei.
— É comum as gestantes de primeira gravidez não
identificarem bem o momento do rompimento da bolsa quando
isso acontece a conta gotas — Layla esclareceu depois de
contar o tempo. — Agora, deite-se, por favor, princesa. Quero
fazer um exame rápido para comprovar se há dilatação e
auscultar o coração do seu bebê.
Levantei-me do sofá com dificuldade, recebendo a
ajuda de Kismet, enquanto Layla já abria a maleta médica
sobre a mesa e tirava o doppler fetal portátil.
Mal dei dois passos em direção à cama, senti um
líquido quente escorrendo pelas minhas pernas. Olhei para
baixo, admirada, e depois para elas.
— Escorreu algo agora.
— Aí está a confirmação que precisávamos — Kismet
disse, segurando-me com mais força. — Chegou o grande dia.
Fiquei subitamente nervosa e cheia de expectativa.
Apesar de desejar muito a chegada daquele momento, havia
também uma certa insegurança com o desenrolar de todo o
trabalho de parto. Pensei em Yusuf e quis que ele estivesse ali
ao meu lado.
Layla foi rápida nas providências seguintes. Fui
examinada e o coraçãozinho auscultado, que batia forte e
ritmadamente. Fiquei mais tranquila com a presença das duas
ao meu lado.
— Hora de ir para a maternidade, se não quiser ter o
parto em casa.
Arregalei os olhos, surpresa.
— Chegou mesmo a hora? Vai ser hoje?
Ela sorriu com a tranquilidade de sempre. Já Kismet,
bateu palmas de alegria.
— Sim, a princesa já está em trabalho de parto —
Layla confirmou.
Eu já ia pegar o celular para avisar o Yusuf quando
uma nova onda de dor chegou e inspirei fundo para aguentar. A
cada vez que se repetia ela demorava mais a passar e só
agora eu entendia que havia sentido contrações durante a
madrugada inteira sem saber que eram elas.
Naquela manhã, deixei que Yusuf fosse para a reunião
sem contar nada para ele ou com certeza deixaria de ir para
ficar ao meu lado. Se fosse um alarme falso, ele teria perdido
uma reunião importante à toa. Como Yusuf raramente estava
saindo de Taj naquelas últimas semanas de gravidez, achei
melhor primeiro saber de Kismet e de Layla o que era aquilo
que estava sentindo.
Agora já podia contar tudo para ele com a certeza de
que o nosso bebê estava mesmo chegando.
— Me dá o meu celular. Quero avisar o Yusuf — pedi à
Kismet. — Ele quer ficar comigo na sala de parto.
— E faz muito bem. Desde que Yusuf não desmaie e
dê mais trabalho do que ajude, Farah vai aprovar.
— Ele me garantiu que vai aguentar.
— Muito bem — Kismet disse com aprovação,
entregando-me o celular. — Vou avisar à Farah para ela se
preparar também.
Liguei para Yusuf, que atendeu logo no primeiro toque.
— Tudo bem com vocês? — Foi a primeira coisa que
ele me perguntou.
— Está na hora — avisei, ouvindo o som de uma
cadeira sendo arrastada para trás. — Entrei em trabalho de
parto.
— Estou indo para aí agora!
Ele desligou e larguei o celular sobre a cama quando
uma nova contração chegou. Inspirei fundo para aguentar,
enquanto as duas tomavam cada uma as suas providências.
Layla falou com a médica e alertou a maternidade. Kismet
avisou à Farah, que colocou a família inteira de prontidão.
Yusuf chegou minutos depois com uma ruga de
preocupação no meio da testa, que só desapareceu quando
ouviu de Layla que estávamos bem. Sentado ao meu lado na
cama, ele colocou uma mão sobre a minha barriga.
— Está tudo bem mesmo? — Quis uma confirmação
minha.
— Com exceção das dores horríveis das contrações,
sinto-me bem.
Ele olhou para Kismet e Layla.
— O que posso fazer para ajudar?
Elas nem tiveram tempo de responder. Farah entrou no
quarto naquele exato momento e foi ela quem respondeu ao
filho.
— Se não desmaiar nem atrapalhar, já ajuda muito.
— Sem exageros, mãe. Não sou o meu pai.
— Só saberemos disso na hora. — Apesar do tom duro
na voz, ela sorria quando olhou para mim. — E por falar em
hora, até que enfim o novo membro da família vai chegar. Que
Allah seja louvado por esta benção!
Com os quatro ao meu lado, sem dúvida não havia o
que temer. Todas as minhas inseguranças de gestante de
primeira viagem se diluíram com a presença deles ao meu
redor, principalmente a de Yusuf. Ele foi uma força presente,
dando-me a ajuda que eu precisava. Só se afastou de mim na
maternidade para se preparar. Depois, se sentou em um banco
ao meu lado dentro da sala de parto, segurando a minha mão
enquanto eu exauria as minhas forças para trazer o nosso bebê
ao mundo.
Ele me olhava, preocupado, mas não deixava de falar
palavras confortadoras ou de sussurrar no meu ouvido o
quanto me amava.
— Força, habibti. Só um pouco mais e saberemos se
Allah nos abençoou com uma princesa rebelde ou com um
príncipe aventureiro.
Igual a ele, eu estava ansiosa por aquela surpresa, o
meu coração ansiando por ter um ou outro nos meus braços.
— Está quase! — Farah alertou, em pé atrás da
médica.
— Empurre agora, princesa! — Layla orientou, dando
assistência à obstetra. — Força!
Foi o que fiz. Coloquei a minha alma na força de
empurrar, empurrar e empurrar. Se aquilo não fosse o
suficiente, eu não saberia mais o que fazer.
De repente, um choro se fez ouvir dentro da sala de
parto e chorei também ao ouvi-lo. Yusuf e eu nos olhamos, sem
acreditarmos que o nosso milagre havia acontecido. Ele engoliu
em seco e inspirou fundo, a expectativa grande para saber se
seria Zahara ou Sharif.
Farah comemorou o nascimento, Kismet também e
Layla deu um sorriso de aprovação pelo meu esforço. Todas
elas passaram diante dos meus olhos como se fosse um
borrão, porque apenas uma pessoa me interessava ali dentro.
Era a médica com o meu filho nas mãos, que o colocou sobre
os meus seios mal saiu de dentro de mim.
— É um príncipe forte e saudável! Parabéns, altezas!
Abracei-o contra o peito, chorando tanto quanto ele.
Era lindo, mesmo todo coberto das secreções do parto. Assim
que o aconcheguei contra os seios, ele se acalmou um
pouquinho, o rostinho virado para o lado de Yusuf.
Olhei para o meu marido, que permanecia estático, os
olhos vidrados fixos no filho. Ele soltou uma exclamação
emocionada e cobriu o rosto com as duas mãos, meneando a
cabeça como se não acreditasse no que estava acontecendo.
— Não vá desmaiar — Farah avisou.
Ele baixou as mãos, mostrando os olhos
avermelhados, onde as lágrimas brilhavam.
— Não vou — negou com a voz embargada de emoção
e engolindo duro, mas o tom era firme. — Sharif não vai ver o
pai dele desmaiar.
Àquela altura, nosso filho já tinha se acalmado e
apenas resmungava, a mãozinha perto da boca, que abria e
fechava como se quisesse chupar o dedo.
Layla se aproximou e o envolveu com uma toalha,
começando a limpá-lo.
— Pode oferecer o seio a ele, alteza. Mesmo que não
mame, este contato é importante.
— Como faço?
— Vou ajudar.
Com habilidade, ela o posicionou e me emocionei
demais quando a boquinha começou a mamar, Sharif agarrado
ao meu seio. Cruzei o olhar com o de Yusuf, que estava tão
emocionado quanto eu.
Ele se inclinou, beijando-me na testa.
— Você me fez o homem mais feliz do mundo hoje —
murmurou no meu ouvido.
— E você me transformou na mulher mais feliz do
mundo.
Yusuf acariciou os cabelos escuros do filho com um
dedo, deslizando depois para o corpinho enrodilhado sobre
mim, em um primeiro contato físico com ele.
— Olhem os dois para mim — Kismet pediu e bateu
uma foto nossa com o celular, sorrindo depois. — Já tirei várias
e filmei também. Não se preocupem que são todas discretas.
Vocês vão ter a lembrança mais linda da vida de vocês para
guardar.
As nossas lembranças mais lindas estavam muito bem
guardadas dentro de nós dois, mas as fotos e os filmes ficariam
para Sharif e nossos outros filhos verem quando crescessem.
Epílogo

Intisaar — Sete meses depois


Yusuf
Sentado no tapete macio, observei Sharif engatinhar
atrás de Fhatima, que acabava de chegar aonde os irmãos
Zayn e Náder estavam. Os dois garotos nem notaram a
aproximação dela, concentrados em uma competição de
carros.
Fhatima havia aprendido a dar os primeiros passos
sozinha há pouco tempo, agarrando-se aos móveis, deixando
Sharif como único bebê ainda a engatinhar na casa.
Ela bamboleou nas pernas e caiu sentada de bunda no
tapete, mas não chorou nem se deixou desanimar. Levantou-se
outra vez e chegou até onde os irmãos estavam. Sharif não
quis ficar para trás e engatinhou mais rápido atrás dela.
Do outro lado do tapete, Saqr riu quando a filha invadiu
a brincadeira dos irmãos, que reclamaram logo com o pai.
— Deixem sua irmã brincar também — ele disse de
bom humor e os dois se calaram.
Saqr e eu havíamos fechado um cerco em torno deles,
vigiando nossos filhos enquanto conversávamos sobre o
momento político da região. Sadiz continuava em uma guerra
civil sem perspectivas de fim próximo e permanecíamos
apenas acompanhando os acontecimentos, sem nos
envolvermos militarmente. Mubarak permanecia no Sul,
autointitulando-se governante do país, enquanto Abdullah se
preparava para ser empossado pelo conselho dos anciões. Por
incrível que pudesse parecer, não tardaria para Sadiz ter dois
governantes, que continuariam em guerra pelo domínio do
país. Suleiman estava em estado crítico, mas sendo
acompanhado de perto pelo irmão.
No meio da nossa conversa, a porta da sala de jogos
se abriu e Majdan entrou com Hud e Imad, os dois filhos dele.
Abia estava com a avó. Logo atrás entraram o meu pai e
Jamal, o meu irmão mais novo.
Tínhamos todos vindo passar uns dias em Noor para
comemorar o aniversário de Sabirah. Agora que ela estava em
Tamrah, havia passado a trabalhar mais ativamente no
Ministério da Mulher ao lado de Malika e de Thara, as três se
tornando inseparáveis. Quando se juntavam com Kismet, a
conversa nunca mais acabava e era justamente aguardando
por elas que estávamos.
— Vovô, vem ver o carro novo que ganhei do meu pai!
— Zayn chamou assim que percebeu a entrada dele na sala,
erguendo o carrinho para ele ver.
— Mas esse carro é uma verdadeira máquina!
Todos se sentaram no tapete e ficamos conversando.
Jamal se meteu na corrida de carros dos sobrinhos, assim
como Hud e Imad, e a disputa se tornou mais acirrada, com as
crianças gritando alegremente.
Em um determinado momento, Sharif olhou para mim e
choramingou, cansado.
— Me dá ele aí — pedi à Majdan que estava mais perto
do meu filho.
Majdan o pegou e ergueu acima da cabeça, imitando o
som de um avião. O meu filho começou a rir, achando graça,
mas depois esticou os braços na minha direção.
— Ele não quer conversa — Majdan disse, colocando-o
nos meus braços.
Sharif me abraçou assim que o peguei, encostando a
cabeça no meu ombro, com sono. Beijei os cabelos escuros e
me deitei no tapete com ele sobre o peito, acariciando-o nas
costas. Não demorou mais do que cinco minutos para ele
dormir, o rostinho de anjo enternecendo o meu coração.
Sharif era um bebê calmo e deduzimos que havia
puxado à Malika na personalidade, já que fui um pequeno
furacão quando pequeno, segundo a minha mãe.
Foi naquela posição que Malika nos encontrou quando
entrou no salão junto com as outras mulheres. Ela estava linda
usando uma abaya acastanhada da cor dos olhos e com um
sorriso radiante no rosto. Assim que nos viu deitados e Sharif
dormindo, o amor brilhou no seu olhar.
Ela se sentou ao nosso lado, dando um beijo na
cabeça do nosso filho. O meu beijo ficou só na troca de
olhares, já que estávamos na presença da família inteira.
Kismet se sentou ao lado de Saqr, causando um
alvoroço nos filhos. Zayn e Náder abandonaram os carros para
abraçar e beijar a mãe, mas depois voltaram à brincadeira.
Fhatima encontrou um lugar cativo no colo dela e não saiu
mais.
A minha mãe se acomodou ao lado do meu pai. Já
Sabirah e Thara se sentaram perto de Majdan, com Sabirah no
meio dos dois, tendo Abia ao colo.
Ficamos conversando todos juntos, o tempo passando
sem sequer notarmos. Foi Layla quem entrou tempos depois
para avisar que o almoço estava pronto. Ela veio acompanhada
pelas duas babás que cuidavam dos filhos de Saqr e do meu.
Coloquei-o deitado sobre as almofadas ainda adormecido e me
levantei, ajudando Malika a fazer o mesmo.
Aqueles momentos em família eram sagrados para
mim e eu sabia que para os outros também eram. Allah havia
nos abençoado com uma família unida, onde o amor e a
compreensão com as particularidades individuais de cada um
eram o ponto forte.
O almoço transcorreu entre conversas amenas e
assuntos sérios. Quando terminou, voltamos a nos reunir na
sala de jogos com as crianças. Nosso filho permanecia
dormindo e descontraímos junto com os outros.
— Alguém quer andar a cavalo na praia mais tarde? —
perguntei para todos. — Eu vou com Malika.
— Também quero ir! — Kismet foi a primeira a
responder, olhando para Saqr. — Vamos?
— Sim, vamos.
— Vou amanhã — Majdan se comprometeu. —
Chegamos hoje de viagem e prefiro relaxar em casa com os
meus filhos.
Mais ninguém se prontificou a nos acompanhar e
acabamos por ir apenas os quatro, deixando nossos filhos aos
cuidados da família e de Layla.
Malika estava ansiosa para voltar a cavalgar na praia.
Aquela era a primeira vez que ela andava a cavalo depois do
parto e foi com um sorriso largo no rosto que ela montou na
mesma égua da lua de mel. Saqr escolheu uma outra égua
para a Kismet e pegou um garanhão para ele. Montei no meu e
fomos para a praia.
Nós dois íamos na frente e as duas seguiram atrás,
conversando e rindo. Quando chegamos à praia, Kismet soltou
um gritinho de alegria.
— MashAllah189! Que maravilha você tem em Noor,
Yusuf! Malika já tinha me dito que aqui era lindo, mas não
pensei que fosse tanto.
— Noor sempre foi o meu refúgio. — Olhei para Malika.
— Agora é o nosso.
Ela sorriu com o olhar expressivo irradiando amor.
— Vamos apostar uma corrida, Malika? — Kismet
propôs, eufórica.
Malika soltou uma risada, olhando com divertimento
para mim.
— Yalla!190
As duas nos ultrapassaram, descendo rápido para a
praia.
— O que foi que deu nelas? — Saqr perguntou,
acompanhando a esposa com o olhar.
— Malika me contou na lua de mel que as duas eram
acostumadas a apostar corrida quando cavalgavam juntas em
Sadiz. Elas tinham poucas coisas com que se divertir e essa
era uma delas. Entendi que aproveitavam ao máximo sempre
que podiam.
Ficamos observando as duas se posicionarem e darem
a largada, disparando pela areia da praia rumos às pedras no
final. Era o mesmo percurso da corrida que nós dois fizemos na
lua de mel e fiquei pensando se Malika conseguiria vencer da
irmã.
Seguimos atrás delas em um ritmo normal, as duas se
distanciando com rapidez no galope desenfreado da aposta.
Malika podia ser melhor dançarina do ventre do que Kismet,
mas a irmã era melhor do que ela na corrida. A égua de Kismet
ganhou por um corpo de dianteira e ela comemorou bastante.
Ao longe, vimos as duas bater as mãos no ar em um
gesto de camaradagem, mostrando o quanto eram unidas.
— Allah foi misericordioso ao livrar as duas da família
de Sadiz e trazê-las para nós — Saqr comentou ao meu lado,
observando-as.
— Já estava escrito que seria assim — falei com
convicção. — Para nossa sorte, elas estavam destinadas a nós
dois. Sofreram muito para isso acontecer, mas os caminhos de
Allah são cheios de mistérios.
— Você tem razão.
Malika e Kismet começaram a voltar em passo lento ao
nosso encontro, conversando e admirando a paisagem.
Quando se juntaram a nós, seguimos cada um com a nossa
esposa ao lado.
— Já percebi que você só ganha quando faz trapaça —
provoquei Malika.
Ela gargalhou, olhando-me com cara de inocente.
— Olha só! Você descobriu o meu segredo.
Aproveitei que Saqr e Kismet estavam à nossa frente e
aproximei o meu garanhão da égua que Malika montava.
Segurei a rédea da mão dela e parei as duas montarias para
lhe dar um beijo na boca.
— Quero descobrir todos os seus segredos — grunhi
na boca saborosa.
Ela me presenteou com um olhar extremamente
sensual.
— Posso contar um agora. Quer saber?
— Conte! — praticamente exigi.
Ela se virou na montaria e olhou para as pedras atrás
de nós.
— Quero ficar nua naquelas pedras e alcançar o
paraíso nos braços do meu marido.
A expectativa daquele momento causou um frenesi
dentro de mim.
— A maré está subindo agora, mas já temos um
compromisso amanhã de manhã.
Ela sorriu feliz. Aquele sorriso que me conquistou
desde a primeira vez que a vi na foto.

Sharif mamava com sofreguidão, os olhos presos na


mãe e uma mãozinha gorda segurando a dela. Como eu
entendia aquela devoção do meu filho por Malika. Éramos dois
homens apaixonados.
Já era noite e tínhamos nos recolhido para dormir. O
cômodo interligado ao nosso havia sido transformado em um
quarto para Sharif, onde um berço já o aguardava. A babá
eletrônica nos permitiria vigiá-lo durante a noite, sem a
necessidade de ter uma das assistentes de Layla com ele.
Ficávamos com Sharif o máximo de tempo possível, apesar do
nosso trabalho e dos momentos em que precisávamos ficar
sozinhos um com o outro.
— Allah é mesmo magnífico ao fazer com que um bebê
fique tão gordinho só com o leite materno — comentei, sentado
na cama e tendo Malika encostada no meu peito com o nosso
filho.
Malika acariciou a mãozinha dele.
— A sabedoria de Allah é infinita. Este é o milagre da
vida.
Ela se recostou melhor no meu peito e soltou um longo
suspiro de felicidade. Em questão de minutos havia adormecido
com Sharif ao seio. A viagem de manhã e o passeio a cavalo à
tarde haviam sido demais para ela.
Aconcheguei melhor os dois nos meus braços,
permitindo que Sharif continuasse mamando em segurança
enquanto ela dormia. Ele olhou para mim como se tivesse
percebido que a mãe havia adormecido, os olhinhos cheios de
confiança.
— Sim, eu sei. A mamãe dormiu, mas o papai está
aqui.
Sharif ergueu a mãozinha para mim e a segurei,
observando os dois com o coração cheio de amor.
Fechei os olhos e fiz uma oração de gratidão à Allah
por ter me dado uma esposa que era a outra metade da minha
alma e um filho forte e saudável, que era um pedacinho de nós
dois.
Foi com muito cuidado que me afastei para o lado
quando ele começou a cochilar mamando. Coloquei Malika
recostada nos travesseiros e ela suspirou no sono, mas não se
acordou. Sharif abriu os olhos quando o peguei dos braços
dela, soltando a boquinha do seio da mãe, mas não reclamou.
Consegui cobrir Malika com o lençol e saí da cama com
ele apoiado no meu ombro, como aprendi a fazer para que
arrotasse caso precisasse. Fiquei com Sharif nos braços por
alguns minutos antes de o colocar já adormecido no berço,
aproveitando aquele momento só nosso, de pai e filho.
Vê-lo dormindo como um anjo só fazia crescer o
instinto protetor que sentia pelos dois. Malika e Sharif eram a
minha vida.
Deixei a porta de comunicação aberta e voltei para o
nosso quarto, diminuindo as luzes e deitando-me ao lado dela.
Trouxe-a para o meu peito e beijei os cabelos sedosos, antes
de fechar os olhos e adormecer logo depois.
Na manhã seguinte, fomos à praia a cavalo logo
cedinho, depois de Malika amamentar Sharif e o deixarmos aos
cuidados de Layla, que o levaria para ficar junto dos filhos de
Kismet.
Havia um excitante clima de expectativa no ar pelo que
aconteceria entre nós dois quando chegássemos às pedras da
praia privativa de Noor. Da hora em que Malika acordou até o
momento em que os cavalos começaram a galopar em direção
ao nosso refúgio particular, recebi vários olhares significativos,
sorrisos tentadores e toques instigantes. Ela passou a manhã
inteira me provocando discretamente, fazendo o meu desejo
crescer e causando uma agitação dentro de mim igual à da
correnteza do mar. Cada vez mais forte, mais potente, mais
urgente.
Foi naquele estado de excitação que freamos os
cavalos em frente as rochas. Desmontamos e corremos de
mãos dadas para a piscina escondida no meio das pedras
altas, o sol brilhando, a água morna aquecendo as nossas
pernas.
Tiramos nossas roupas em questão de segundos, a
excitação evidente no meu pau endurecido apontando para o
céu azul e no olhar sedutor de Malika, que percorria o meu
corpo com desejo evidente.
Totalmente nus, caímos nos braços um do outro com
avidez, a nudez ao ar livre estimulando mais ainda o prazer que
sentíamos. Ergui o corpo delicioso da minha mulher e ofeguei
de ansiedade quando ela cruzou as pernas ao redor da minha
cintura, abrindo-se para mim.
Seguiu-se um beijo faminto, sedento e profundo de
línguas que se acasalavam, se sugavam, se devoravam de
desejo premente.
— Me ama agora bem forte! — ela gemeu na minha
boca, roçando os seios contra o meu peito provocadoramente.
— Ana lik ya habibi.191
Usei a mesma rocha de sempre para apoiar Malika e
encostei o meu pau na entrada apertada. Tão logo senti o
quanto ela estava molhada, penetrei-a com ímpeto.
— Assim? — rosnei, gemendo de prazer ao entrar
fundo.
— Oh, assim mesmo! — Ela arqueou o corpo, jogando
a cabeça para trás e olhando para o céu azul.
Vi o desejo brilhando nos olhos da cor das tâmaras e
não resisti aos mamilos durinhos à minha frente. Tomei um
deles na boca, sugando e mamando com uma saudade
imensa, de tanto que os deixei apenas para o meu filho. Senti o
sabor do leite, mas não parei. Aquela vez era minha, era dela,
era nossa.
Não parei as estocadas e Malika entrou no mesmo
ritmo, pressionando-se contra o meu pau. Senti as batidas no
interior macio roubando o meu juízo, levando-me com uma
rapidez impressionante para aquele paraíso que ela havia
falado na tarde anterior.
— Mais! — Malika pediu, ofegando.
Ela estava perto de gozar e satisfiz sua vontade,
mesmo sabendo que corria o risco de gozar antes. Suguei o
mamilo mais forte também, mordiscando-o levemente, e ela
estremeceu nos meus braços, as entranhas macias contraindo-
se ao redor do meu pau. Incapaz de aguentar mais tempo, fui
mais rápido ainda e intensifiquei os movimentos, gozando logo
depois.
Contive um palavrão para não a chocar, mas o
orgasmo que tive foi visceral, violento. Derramei-me
profundamente dentro da minha mulher, do meu amor, da
minha vida.
— Malika, Malika — gemi, aproveitando ao máximo os
últimos espasmos do gozo.
Ela acariciou a minha barba, unindo nossas testas,
como gostávamos de fazer. Ficamos naquela posição,
ofegantes, dando leves beijos na boca um do outro.
— Habibi albi192 — ela murmurou entre os meus lábios.
— Hayati.193
Ainda com Malika firme em minha cintura, fui
caminhando para a parte mais funda da piscina, parando
quando a água alcançou a altura ideal para ela.
Só então nos separamos e mergulhei, ficando sempre
próximo e atento. Malika já não tinha tanto receio da água, mas
também não havia superado totalmente o trauma do
afogamento na prisão. Talvez nunca o ultrapassasse por
completo, mas muitas das lembranças amargas já tinham sido
esquecidas e substituídas por outras melhores de amor, de
alegria e de felicidade.
Hoje, a minha vida era completa. Eu tinha comigo a
mulher que desejei durante anos, que consegui conquistar com
paciência e muito amor, que aguardei ardentemente mesmo
quando não sabia ainda que ela existia. A mulher que não
desisti de conquistar nem quando ela se escondia dentro de si
mesma.
Malika não era uma rainha só no nome. Ela era
também a minha rainha. Era a mulher que reinava majestosa
no meu mundo e que transformou a minha vida em uma
verdadeira história de amor. Um amor eterno entre um príncipe
aventureiro e uma princesa rebelde.
MAKTUB! JÁ ESTAVA ESCRITO QUE SERIAM
FELIZES PARA SEMPRE...

FIM

Obrigada pela leitura e não se esqueça de avaliar o livro. Leia


também minhas outras obras na Amazon:

A Única Esposa do Sheik — Livro Único:


https://amzn.to/3lmXIMX

Entre o CEO e o Inferno — Livro Único:


https://amzn.to/2FJKd4L

Sob o Olhar de Iris — Livro Único:


https://amzn.to/3dhNmH4

Um Tempo Para Aceitar — Livro Único:


https://amzn.to/2IAsRuc

Ú
O Desaparecimento de Mary Anne — Livro Único:
https://amzn.to/2JwTL7O

Uma Esperança no Amanhã — Livro Único:


https://amzn.to/34ivV6U

Trilogia Angélica & Lorenzo — Série Linhas do Destino:


Livro 1 — Linhas do Destino: https://amzn.to/37Mek6P
Livro 2 — O Anjo de Loki: https://amzn.to/2tfjx8i
Livro 3 — Dominado Por Um Anjo: https://amzn.to/2vkZia4

Trilogia Daniel & Ana — Série Mensagens de Amor:


Livro 1 — Ao Teu Encontro: https://amzn.to/32JvfqV
Livro 2 — Lutarei Por Você: https://amzn.to/32p0Ugt
Livro 3 — Tudo o Que Sempre Farei Por Você:
https://amzn.to/3eFrcAC

Siga o meu perfil de autora na Amazon para ficar recebendo


notificações a cada lançamento que eu fizer:
https://amzn.to/3q29a0j
Biografia e Redes Sociais
Lettie S.J. é de Recife, mas reside em Portugal desde
2007. Romântica assumida e apaixonada por livros desde
sempre, diz que não escreve apenas os romances, mas que
também respira, vive e sonha com eles. Tem uma predileção
especial pelos históricos e medievais, contudo, começou na
escrita com os contemporâneos. Gosta de abordar temas fortes
em um enredo com suspense, ação e amor. Publicou o primeiro
livro em 2016 no Wattpad, o new adult Linhas do Destino, que
ganhou neste mesmo ano o Prêmio Wattys da plataforma
online, mudando o rumo de sua história e resgatando-a em
uma fase difícil da vida. Afinal, quem disse que livros não
salvam vidas? Em 2017, tornou-se Embaixadora do Wattpad.
Em 2020, ganhou seu segundo Prêmio Wattys com o romance
policial/suspense, O Desaparecimento de Mary Anne.
Atualmente, tem vários e-books publicados na Amazon que a
tornaram uma autora best-seller no ranking dos mais vendidos,
além de ter livros físicos publicados por editoras no Brasil e em
Portugal.
Conheça mais sobre a autora no site lettiesj.com
Instagram: lettie.sj
Página Facebook: lettiesj
Wattpad: @lettiesj
Perfil Autora na Amazon: Lettie S.J.
Canal do Youtube: Lettie S.J.
Skoob: Lettie S.J.
Grupo de leitoras no Facebook: Lettie SJ - Romances

1 Allah ou Alá é Deus no Islã.


2 A Real Academia Militar de Sandhurst fica no Reino Unido e é
conhecida pelos seus alunos famosos, como o Príncipe William,
Duque de Cambridge, e o Príncipe Harry, ambos da família real
britânica. Recebe também muitos alunos de outras famílias reais da
Europa e dos países árabes.
3 Resina rara e perfumada que se forma nos troncos e raízes da
árvore Aquilaria, considerado o mais valioso ingrediente da indústria
de perfumaria de luxo.
4 Sadiz e Qasara são dois países fictícios localizados no Oriente
Médio, criados para o livro.
5 Universidade fictícia criada para o livro.
6 ONG fictícia, criada para o livro.
7 Em uma monarquia árabe, todos os filhos homens recebem o
título de príncipe, mas aquele que é escolhido como sucessor,
recebe um título adicional que o distinguirá dos demais príncipes,
isto de acordo com cada monarquia. No contexto árabe, o título de
Príncipe Herdeiro é dado àquele que, dentre todos os outros
príncipes, será o sucessor que assumirá após a morte do monarca.
8 Prisão fictícia criada para o livro.
9 Veste larga que cobre a mulher da cabeça aos pés, possuindo
apenas uma abertura rendilhada na altura dos olhos que permite
que ela veja o exterior, mas que impede que a vejam.
10 Deus me ajude!
11 Vamos! Anda!; expressão usada para mandar alguém se
apressar, andar logo.
12 Coligação fictícia criada para o livro A Única Esposa do Sheik
com Saqr & Kismet, e para este livro.
13 Insha’Allah ou Inshallah: Deus queira; se Deus quiser.
14 Mercado.
15 Thobe, Kandura ou Dishdasha, é uma túnica longa até o
tornozelo, de mangas compridas, usada pelos homens árabes.
16 Cumprimento tradicional dos árabes: “Que a paz esteja com
você”.
17 Que a paz esteja com você também.
18 Oh, Deus me ajude!
19 Ghutrah, gutra ou keffiyeh, é um lenço quadrado usado
tradicionalmente pelos homens árabes sobre a cabeça e preso com
o agal.
20 Agal, iqal, igal é uma corda preta de duas voltas usada para
prender o ghutrah sobre a cabeça.
21 Vestido longo de mangas compridas que cobre a mulher do
pescoço aos pés, escondendo o corpo inteiro; tradicionalmente de
tecido grosso de cor preta, hoje existem de vários modelos, cores e
tecidos, como a seda; algumas são até bordados com fios de ouro e
pedras preciosas.
22 Ato que é proibido pelo Islã; pecado.
23 Sua puta!
24 Merda!
25 País fictício criado para o livro.
26 Seu louco!
27 Seu burro; seu idiota.
28 Cachorro; palavra considerada uma ofensa grave quando dita
para alguém.
29 Vá comer merda!
30 Prisão subterrânea fictícia criada para o livro.
31 Deus me ajude!
32 Órgão fictício criado para o livro.
33 Palácio fictício da família real de Tamrah, criado especialmente
para os livros dos príncipes da Dinastia de Tamrah.
34 Merda!
35 Véu islâmico, usado para cobrir o cabelo, as orelhas e o pescoço
das mulheres, deixando o rosto inteiro descoberto; atualmente tem
de várias cores e tecidos, mas tradicionalmente era de cor preta.
36 Também conhecida como touca ninja, é um gorro preto,
normalmente de malha de lã misturada com tecidos elásticos, que
se veste de forma ajustada na cabeça até o pescoço. É usada por
militares para resguardar suas identidades em operações
específicas, como o resgate de reféns.
37 Al’ama, ou allaena, é usado no sentido de “droga!”, similar ao
“damn” em inglês. A palavra significa ”cegueira”, mas o uso como
imprecação e xingamento é: “mas que droga”, “que droga”.
38 Oh, Deus me ajude!
39 Droga!
40 Obrigada.
41 Cidade fictícia criada para o livro.
42 Majlis, Majalis, Mejlis. Cômodo usado para encontros diários com
os homens, onde se reúnem para discutir assuntos, trocar notícias,
receber convidados e realizar celebrações, com ou sem refeições.
As mulheres podem ter o seu próprio majlis separado dos homens.
43 Esta cena faz parte do livro A Única Esposa do Sheik com Saqr
& Kismet.
44 Coligação fictícia criada para o livro.
45 MashAllah (Deus quis assim) é uma palavra usada para
expressar admiração, quando se quer elogiar outras pessoas de
maneira sincera. Pode ser comparado com o nosso “Benza-o,
Deus!”.
46 Bom dia.
47 Que a paz esteja com vocês.
48 Que a paz esteja com você também.
49 Os árabes dão muito valor aos cumprimentos e à hospitalidade.
O uso repetido de vários cumprimentos é uma maneira de fazer a
pessoa se sentir bem-vinda. “Sabah al nur” significa “Uma manhã de
luz para você” ou “Tenha uma manhã iluminada”.
50 Seja bem-vinda.
51 Prazer em conhecer.
52 Majlis, Majalis, Mejlis. Cômodo usado para encontros diários com
os homens, onde se reúnem para discutir assuntos, trocar notícias,
receber convidados e realizar celebrações, com ou sem refeições.
As mulheres podem ter o seu próprio majlis separado dos homens.
53 Veste que cobre o corpo todo da mulher, com uma rede na altura
dos olhos que permite a visão dela para fora, mas que não permite
ser vista por ninguém. É tradicionalmente de cor azul ou marrom.
54 Véu preto que cobre todo o rosto da mulher, deixando à mostra
apenas uma abertura estreita onde se pode ver os olhos dela.
55 Grupo empresarial fictício da família real de Tamrah, criado
especialmente para os livros dos príncipes da Dinastia de Tamrah.
56 Obrigada.
57 De nada.
58 Que a paz esteja com vocês.
59 Que a paz esteja com você também.
60 Se Deus quiser!
61 Qsad Einy (Diante dos meus olhos) é uma música de Amr Diab,
escolhida como tema romântico de Yusuf & Malika.
62 Vamos!
63 Boa tarde!
64 Uma tarde de luz!
65 Resina rara e perfumada que se forma nos troncos e raízes da
árvore Aquilaria, considerado o mais valioso ingrediente da indústria
de perfumaria de luxo.
66 “Deus é grande”; esta expressão ficou conhecida de uma
maneira triste e negativa por ser o que os homens-bomba dizem
antes de explodir.
67 Cachorro
68 País fictício criado para o livro.
69 Café.
70 Bom dia.
71 Olá, Yusuf. Uma manhã de luz.
72 Por favor (obs: falando para uma mulher, deve-se usar “min
fadlik”).
73 Merda!
74 Merda!
75 Por favor.
76 Ghutrah, gutra ou keffiyeh, é um lenço quadrado usado
tradicionalmente pelos homens árabes sobre a cabeça e preso com
o agal.
77 Agal, iqal, igal é uma corda preta de duas voltas usada para
prender o ghutrah sobre a cabeça.
78 MashAllah (Deus quis assim) é uma palavra usada para
expressar admiração, quando se quer elogiar outras pessoas de
maneira sincera. Pode ser comparado com o nosso “Benza-o,
Deus!”.
79 Que a paz esteja com vocês.
80 Que a paz esteja com você também.
81 Malika ou Malikah significa “rainha”.
82 Codinome vem do inglês “code name” (nome de código) e é
usado para se esconder o verdadeiro nome de uma pessoa.
83 Rosa do Deserto ou Adenium Arabicum é uma planta nativa da
região da Península Arábica, especialmente da Arábia Saudita e do
Iêmen, cujas flores são sempre rosas, variando do claro para o
escuro.
84 Ghusl é um ritual de banho completo que deve ser tomado em
várias situações diferentes da cultura árabe. O Ghusl Janabat
citado no livro, deve ser tomado após as relações sexuais que
liberem fluidos corporais, como a ejaculação. É chamado de
“lavagem para remoção de impurezas”.
85 Café.
86 Deus queira; se Deus quiser.
87 Seja bem-vindo.
88 Merda! Droga!
89 Nono mês do calendário islâmico em que se pratica o jejum
desde o nascer até o pôr do sol.
90 Salat, Salah ou Salá, é como se chamam as cinco orações
diárias e obrigatórias do Islã.
91 Salat, Salah ou Salá, é como se chamam as cinco orações
diárias e obrigatórias do Islã. Salat Asr é a oração que é realizada
no meio da tarde (entre o meio-dia e o pôr do sol).
92 Que a paz esteja com você.
93 Que a paz esteja com você também.
94 Que a paz esteja com você.
95 Que a paz esteja com você também.
96 Que a paz esteja com você.
97 Que a paz esteja com você também.
98 Merda!
99 Qsad Einy (Diante dos meus olhos) é uma música de Amr Diab,
escolhida como tema romântico de Yusuf & Malika.
100 Circuncisão feminina ou Mutilação Genital Feminina (MGF) é a
remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos, que
ocorre na maioria das vezes entre a infância e os quinze anos.
Tradicionalmente, é feita com lâmina e sem anestesia, em países da
África, Oriente Médio, alguns asiáticos e da América Latina.
101 Habibti significa “meu amor” no feminino (o homem falando
para a mulher). No masculino é habibi (a mulher falando para o
homem).
102 Em nome de Deus!
103 Boa noite; é usado para despedidas antes de dormir, similar ao
inglês “goodnight”; literalmente significa “Que você amanheça
bem”); escrita para se dirigir a uma mulher.
104 E você também (amanheça bem); escrita para se dirigir a um
homem.
105 Bom dia.
106 Uma manhã iluminada (para você).
107 Vamos!
108 Filho da puta!
109 Droga!
110 Cidade fictícia criada para o livro.
111 Boa noite; é usado para despedidas antes de dormir, similar ao
inglês “goodnight”; literalmente significa “Que você amanheça bem”;
escrita para se dirigir a uma mulher.
112 E você também (amanheça bem); escrita para se dirigir a um
homem.
113 Merda!
114 Tenha uma manhã de luz.
115 Eu te amo (grafia: homem falando para mulher).
116 Eu te amo (grafia: mulher falando para homem).
117 Nome fictício do palácio de Yusuf em Intisaar.
118 MashAllah (Deus quis assim) é uma palavra usada para
expressar admiração, quando se quer elogiar outras pessoas de
maneira sincera. Pode ser comparado com o nosso “Benza-o,
Deus!”.
119 Oração do meio-dia.
120 Vamos!
121 Vamos!
122 Bebida típica do Oriente Médio feita de tâmaras, alfarroba,
melaço de uva e água de rosas, podendo ser servido com pinhões e
passas.
123 Meu amor.
124 Oh, droga!
125 A masturbação é um ato reprovado (makruh), mas não é
proibido (haram). Dependendo dos costumes do país árabe, ela é
permitida em algumas situações, apesar de raras.
126 Bom dia.
127 Bebida típica do Oriente Médio feita de tâmaras, alfarroba,
melaço de uva e água de rosas, podendo ser servido com pinhões e
passas.
128 Eu te amo.
129 Meu amor.
130 Filho da puta!
131 Eu te amo (mulher falando para homem).
132 Eu te amo (homem falando para mulher).
133 Amor do meu coração.
134 Eu morro por você, Malika!
135 Banho completo que deve ser tomado após as relações sexuais
que liberem fluidos corporais, como a ejaculação.
136 Foda-se!
137 Minha vida!
138 Serei sua sempre.
139 Comissão fictícia criada para o livro.
140 Mesquita fictícia criada para o livro.
141 Universidade fictícia criada para o livro A Única Esposa do
Sheik com Saqr & Kismet, e para este.
142 Que a paz esteja com você.
143 Que a paz esteja com você também.
144 Adeus; fique com a paz.
145 Merda!
146 Merda! Droga! Merda!
147 “Deus é grande”.
148 Método de combate corpo a corpo criado em Israel e utilizado
pelas Forças Especiais de Defesa de Israel, sendo adotado hoje em
vários países. Os golpes têm o objetivo de ultrapassar qualquer tipo
de situação de violência, de modo rápido e eficaz, mas muitos deles
são letais.
149 ATENÇÃO: é preciso muito treinamento de golpes específicos
de artes marciais e de combate corpo a corpo para se tentar
desarmar um atacante que tem uma pistola apontada para você,
assim como conhecer o funcionamento de armas de fogo; não
tentem se não o possuem.
150 Seu filho da puta.
151 Golpe de ataque do Karatê dado com o pé: chute elevado com
a perna dura.
152 Minha vida!
153 Amor do meu coração.
154 Merda! Droga!
155 Foda-se! Dane-se!
156 Condecoração militar fictícia criada para o livro.
157 Se Deus quiser!
158 Eu morro por você!
159 Eu amo você, amor do meu coração.
160 Boa noite, usado antes de dormir/despedidas; significado literal:
“Que você amanheça bem”.
161 E você também (amanheça bem).
162 Minha vida.
163 Senti sua falta.
164 Deus me ajude!
165 Amor do meu coração.
166 Eu te amo muito, amor do meu coração.
167 Droga!; mas que droga.
168 Café.
169 Se Deus quiser!
170 Droga!
171 Merda!
172 Sua cachorra!
173 Seu idiota.
174 “Deus é grande”; esta expressão ficou conhecida também de
uma maneira triste e negativa por ser o que os homens-bomba
dizem antes de explodir.
175 Café.
176 Força tarefa.
177 Sensor de imagem térmica com câmeras de alta resolução que
permitem a identificação de pessoas através do calor corporal que
emitem.
178 Atiradores de precisão; atiradores de elite.
179 Tchau; fique com a paz.
180 Bakhoor, Bakhur, Bukhoor. Incenso feito de aparas de
madeira embebidas em óleos perfumados de Oud.
181 Resina rara e perfumada que se forma nos troncos e raízes da
árvore Aquilaria, considerado o mais valioso ingrediente da indústria
de perfumaria de luxo.
182 Aladim e a Lâmpada Maravilhosa é um dos contos das Mil e
Uma Noites contadas por Sherazade ao rei da Pérsia.
183 Amor do meu coração.
184 Incenso feito de aparas de madeira embebidas em óleos
perfumados de Oud.
185 Malika ou Malikah significa rainha.
186 Qsad Einy (Diante dos meus olhos) é uma música de Amr Diab,
escolhida como tema romântico de Yusuf & Malika.
187 Eu morro por você; com sentido também de “Eu te amo muito”.
188 Oh, amor do meu coração. Eu te amo.
189 Benza Deus!
190 Vamos!
191 Eu sou sua, meu amor.
192 Amor do meu coração.
193 Minha vida.

Você também pode gostar