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4 Da Perda da Propriedade por Abandono

Também denominado de derrelicção  ou derelição,  o abandono é descrito como


o ato material por meio do qual o proprietário da coisa se desfaz do bem,
porque não quer mais ser seu dono. Em razão do abandono não ser um ato
expresso, a exemplo do que é a renúncia e a alienação, a materialização de tal
instituto é fruto de atos exteriores que demonstram a explícita intenção de
abandonar a coisa. Já se decidiu, inclusive, que o simples desprezo físico pela
coisa, caso não esteja acompanhado de sinais evidentes de abdicar da coisa,
não é suficiente para consubstanciar o abandono. “Em outras palavras, o mero
desuso não importa em abandono; fundamental é a conjugação ao elemento
psíquico, na perquirição do real interesse do titular de se desfazer da
propriedade”[18]. Nesta linha, também, ensina Luciano de Camargo
Penteado[19]:

“Outra forma de perda da propriedade é o abandono. Por esta modalidade


perde-se a propriedade sem que tenha que falar em negócio jurídico. Para sua
configuração basta uma intenção inequívoca de não conservar mais o bem no
patrimônio do abandonante, manifestada por algum ato, mesmo que seja a
perda da posse com intenção de definitividade”.

Além disso, faz-se necessário salientar, como aspecto caracterizador, é que o


abandono constitui negócio jurídico unilateral, tal como a renúncia, estando
adstrito à esfera jurídica do abandonante. No mais, a manifestação da vontade
daquele que abandona é não receptícia, porquanto não está direcionada a outra
pessoa, logo, independe de manifestação da vontade para que o negócio
jurídico possa existir e, por consequência, cumprir o fito a que se propõe. Com
efeito, o proprietário goza da faculdade de usar a coisa sobre a qual recai seu
direito, estando englobada em tal acepção a possibilidade de não-utilizar.

Nessa trilha, faz-se necessário pontuar que o abandono não se presume, ao


contrário, sua demonstração é imprescindível para restar configurado o
instituto do abandono. Um fato que traz bastante interesse concerne à
faculdade consagrada na redação do art. 1.276[20] do Código Civil, diccionando
que o imóvel abandonado será alvo de arrecadação, como se bem vago fosse,
e, transcorrido o período de três anos fixados na legislação, passará a integrar a
propriedade do Município ou do Distrito Federal, se estiver alocado na zona
urbano; entretanto, em estando localizado na zona rural, será arrecadado pela
União.

Imperioso se revela que o dispositivo legal não traz à lume qual o regramento
para aferimento da localização como sendo urbano ou rural, sendo aceito, “por
sintonia com o instituto da usucapião (art. 191 da CF) e da tributação (IPTU ou
ITR), parece-nos ser a localização do imóvel o fato distintivo para determinar a
competência da União ou do Município para o procedimento da
arrecadação”[21]. Assim, guardando congruência com o entalhado,
imprescindível será a análise do Plano Diretor Urbano, a fim de se constatar a
localização do imóvel abandonado, considerando, por exclusão, sua localização
na zona rural, quando então a arrecadação será da União.

Outra celeuma existente, no que tange ao assunto em tela, junge-se ao


momento em que verifica a perda da propriedade imobiliária, em decorrência
do abandono. “Alguns autores defendem a manutenção da propriedade em
nome do abandonante até o momento de sua arrecadação pelo Poder Público,
podendo reivindicá-la quando bem lhe aprouver”[22]. Desta feita, enquanto a
arrecadação não se concretizar, o particular conservará a titularidade, podendo,
inclusive, transmitir a propriedade do bem imóvel a outrem.

Ao lado disso, como bem pontua Washington de Barros Monteiro[23], no que


tange ao processo de abandono, denota-se dois momentos distintos, quais
sejam: há inicialmente a perda da propriedade, em razão do abandono, e,
posteriormente, opera-se a sua arrecadação pelo Estado, momento em que a
coisa, outrora sem dono, se converte em propriedade pública. Logo, segundo o
entendimento explicitado alhures, até que haja a eventual a apropriação do bem
abandonado pelo Poder Público, após o defluxo do lapso fixado em lei, o
imóvel, alvo do abandono, torna-se res nullius.

Vale salientar que o abandono dispensa a formalidade do registro, todavia, a


eficácia da perda da propriedade, em relação à coletividade, só ocorrerá
quando houver alteração no Registro Geral de Imóveis, passando a constar o
nome do novo proprietário. Assim, para que haja eficácia erga omnes é
imprescindível tal formalidade, porquanto, durante o período em que não se
consumar, o abandono não terá eficácia completa, sendo considerado como
proprietário do imóvel aquele que constar dos assentamentos do registro.

Outra questão que merece ser espancada está adstrita à premissa de que, em
razão do decurso do tempo por si só não transferir o imóvel abandonado ao
domínio, sendo necessário, como visto acima, a arrecadação, não há qualquer
óbice que particular possa completar tempo hábil de posse que autorize à
usucapião, utilizando-se da desídia conjunta do abandonante e do Ente Estatal.
A prescrição aquisitiva só será interrompida, após iniciado o procedimento de
arrecadação. “Ou seja, sendo a coisa ainda registrada em nome do particular,
contra ele e os demais litisconsortes a ação será direcionada, eis que ainda não
está a propriedade submetida à regra da imprescritibilidade dos bens
públicos”[24], cuja disposição encontra-se inserta na redação do art. 102 do
Código Civil. Segundo Venosa, “o Estado deve intervir para arrecadar bem
abandonado, se ninguém exerce a posse. Embora em curso o processo de
arrecadação do Estado, pode ocorrer a prescrição aquisitiva pelo
particular”[25].

Ademais, impõe destacar que o caput  do art. 1.276 do Estatuto de 2002 alberga
em sua redação, em ressonância aos dispositivos constitucionais,
notadamente a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade,
a premissa que o imóvel abandonado só será alvo de arrecadação se não
estiver em posse de outrem. Logo, por tal previsão, constata-se não basta tão
somente a demonstração de que o abandonante não mais deseja o bem para
si, porquanto “a posse de terceiros sobre o bem é fator suficiente para
conceder função social à propriedade e determinar a exclusão da pretensão à
titularidade pelo Poder Público”[26]. Neste sentido, já se decidiu:

“Ementa: Apelação Cível. Propriedade e Direitos Reais sobre coisas alheias.


Ação Reivindicatória. Improcedência. Abandono do Imóvel pelos proprietários.
Inexistência de Interesse pela área, a qual inclusive serviu de lixão por longos
anos. Ajuizamento da Ação Dominial quando já consolidada a ocupação por
várias famílias e fulminado, pelo decurso do tempo, o direito de propriedade.
Descaso que gerou invasão sistemática do terreno. Processo de favelização
consolidado. De regra, o proprietário tem direito de reaver a coisa do poder de
quem quer que injustamente a possua. Todavia, o direito de propriedade não é
absoluto, podendo, em situações excepcionais, perecer, como no caso de
evidente abandono por seu titular. Hipótese em que o não-exercício dos
poderes dominiais propiciou a instalação sistemática de diversas famílias
sobre o imóvel, com desmembramento da área em vários lotes e instalação de
luz, água e esgoto, tudo a evidenciar a consolidação do processo de
favelização da área. Situação estabilizada sobre o imóvel que inviabiliza o
acolhimento da pretensão reivindicatória. Precedente do Superior Tribunal de
Justiça. PRELIMINARES REJEITADAS E RECURSO DE APELAÇÃO
DESPROVIDO.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima
Oitava Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70034617597/ Relator:
Desembargador Pedro Celsa Dal Prá/ Julgado em 02.12.2010) (destaque
nosso)

Impõe colocar em destaque, também, que subsiste, a partir do entalhado no


§2º do art. 1.276, uma presunção de absoluta de abandono, quando restar
consubstanciado a conjugação do desuso, por parte do proprietário, e o
inadimplemento os tributos reais. Logo, em subsistindo a inércia do
proprietário em promover o pagamento dos tributos incidentes, aliado ao
abandono do bem, o procedimento de arrecadação, por parte do Ente Estatal
(Município/Distrito Federal ou União) será medida de reafirmação dos preceitos
de socialidade, sem que possa o abandonante manejar oposição, porquanto
restará modelada a presunção absoluta que dá conta o dispositivo supra.
Destarte, verifica-se pela dicção do acimado, repita-se, a valorização do
emprego da propriedade como elemento de potencialização da dignidade do
indivíduo.

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