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Manual do Curso de Licenciatura de Gestão de Recursos Humanos

Manual de Cidadania

ENSINO ONLINE. ENSINO COM FUTURO 2022


Manual do Curso de Licenciatura de Gestão de Recursos
Humanos

Manual de Cidadania

2º ANO : Cidadania
CÓDIGO ISCED1-GI06
TOTAL HORAS/ 2
SEMESTRE
CRÉDITOS (SNATCA) 5
NÚMERO DE TEMAS 8
Direitos de autor (copyright)
Este manual é propriedade da Universidade Aberta ISCED (UnISCED), e contêm reservados
todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução parcial ou total deste manual, sob
quaisquer formas ou por quaisquer meios (electrónicos, mecânico, gravação, fotocópia ou
outros), sem permissão expressa de entidade editora (Universidade Aberta UnISCED).

A não observância do acima estipulado o infractor é passível a aplicação de processos judiciais


em vigor no País.

Universidade Aberta UnISCED


Direcção Académica
Rua Dr. Almeida Lacerda, No 212
Ponta – Gêa
Beira - Moçambique
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Cel: +258 82 3055839
Fax: 23323501
E-mail: direccao@isced.ac.mz
Website: www.unisced.edu.mz
Agradecimentos

A Universidade Aberta UnISCED (UnISCED) e o autor do presente manual agradecem a


colaboração dos seguintes indivíduos e instituições na elaboração deste manual:
Pela Coordenação Direcção Académica do UnISCED
Pelo design Direcção de Qualidade e Avaliação do UnISCED

Financiamento e Logística Instituto Africano de Promoção da Educação a


Distância (IAPED)
Pela Revisão Augusto Cherequejanhe

Elaborado Por: Jorge Samuel Litango, Mestrado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos

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ÍNDICE

TEMA I: CONSIDERAÇÕES GERAIS .................................................................................6


Unidade 1.1. INTRODUÇÃO - Considerações gerais sobre o módulo ......................................6
Unidade 1.2. Objectivos Gerais ................................................................................................. 7
Unidade 1.3. Objectivos Específicos ......................................................................................... 7
Unidade 1.4. Quem deveria estudar este módulo ........................................................................8
Unidade 1.5. Como está Estruturado o Módulo ......................................................................... 8
Unidade 1.6. Habilidades de estudo ......................................................................................... 10
Unidade 1. 7. Tarefas (avaliação e auto-avaliação) ................................................................. 14
TEMA II: NOÇÕES DE ÉTICA E DA CIDADANIA........................................................ 17
Unidade 2.1. Ética .................................................................................................................... 17
Unidade 2.2. Conhecimento da Verdade .................................................................................. 25
Unidade 2.3.1. A Ética Normativa ........................................................................................... 29
Unidade 2. 3.2. A Ética dos Resultados. .................................................................................. 32
Unidade 2.4. Tarefas (avaliação e auto-avaliação) .................................................................. 36
TEMA III: NOÇÕES DA CIDADANIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA......... 39
Unidade 3.1. Fundamentos Históricos e Cidadania ................................................................. 40
Unidade: 3.2. Cidadania e o Retorno das Autoridades Tradicionais em Moçambique. .......... 51
Unidade 3.2.1. Actores no tecido político em Moçambique .....................................................72
Unidade 3.2.2. Ampliando os Espaços de uma rede de Justiça............................................... 74
Unidade 3.3. Exercícios de fixação ...........................................................................................90
TEMA IV: NOÇÕES DE POLÍTICA E SUA DEFINIÇÃO ............................................. 93
Unidade 4.1. Do Conceito de Campo Político em África ........................................................ 93
Unidade 4.2. Processos de liberalização Política, Estado e Autoridades Tradicionais em
África…………………………………………………………………………………………99
Unidade 4.3. Exercícios de Fixação ....................................................................................... 108
TEMA V: CIDADANIA E A DIMENSÃO SOCIAL E CULTURAL ............................ 111
Unidade 5.1. A Natureza da Cidadania Social ....................................................................... 113
Unidade 5.2. Cidadania Social e Mercado ............................................................................. 117
Unidade 5.3. Meios Alternativos de Prover Condições de bem-estar ..................................... 121
Unidade 5.4. Os Limites da Cidadania Social ........................................................................ 126
Unidade 5.5. A Cultura Moçambicana Pós-independência Nacional .................................... 139
Unidade 5.6. Exercício de Auto-Avaliação. ........................................................................... 145
UNIDADE VI: CIDADANIA, A DIMENSÃO SOCIAL E CULTURAL ........................ 147
Unidade 6.1. Pluralização Sócio-Cultural e Direito a Diferença ........................................... 147
Unidade 6.2. Avaliação .......................................................................................................... 162
TEMA VII: A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES E ESPAÇOS DEMOCRÁTICO ..... 164
Unidade 7.1: Democracia Participativa .................................................................................. 164
Unidade 7.2. Gestão Democrática ........................................................................................... 169
Unidade 7.3 Exercício de Aplicação ....................................................................................... 173
TEMA VIII: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA PELA RELAÇÃO MÍDIA E
MOVIMENTO SOCIAIS.
.................................................................................................................................................17
5
Unidade 8.1. A democracia Segundo Atenas .......................................................................... 175
Unidade 8.2. O Tempo dos Heróis Homéricos .......................................................................179
Unidade 8.3. O Governo «dos Melhores» ............................................................................... 181
Unidade 8.4. Democracia e Cidadania .................................................................................... 187
Unidade 8.5. A Cidadania pela Relação Mídia e Movimentos Sociais. ................................. 212
Unidade 8.6. Auto-Avaliação ................................................................................................. 218
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 220
TEMA I: CONSIDERAÇÕES GERAIS

Unidade 1.1: INTRODUÇÃO - Considerações gerais


sobre o módulo
Ao terminar o estudo deste módulo da Cidadania o estudante
deverá ser capaz de:
• Explicar a evolução do conceito da ética e da cidadania
no contexto das mudanças globais contemporâneas:
• Demonstrar conhecimento dos mecanismos de
protecção de direitos humanos:
• Avaliar de forma crítica a importância da ética, direitos
humanos e cidadania;
• Estabelecer a diferença entre a cidadania e a ética.

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Objectivos Gerais

• Estudar sobre a ética e a cidadania na sociedade


moçambicana; De modo, a compreender a necessidade de uma
melhor valorização de seus princípios, como meio para atingir
uma sociedade mais justa e íntegra;
• Fazer um breve percurso histórico da disciplina;
• Contribuir para a criação de ambiente ético na sociedade no
sentido de promover a democracia, a preservação das
conquistas alcançadas, da paz e da justiça social.

Objectivos Específicos

Buscar o entendimento da ética e da cidadania como tendo uma


importância inquestionável para o bom desenvolvimento de
qualquer sociedade, pois:
• Trabalha directamente com a responsabilidade do acto
moral - social tendo em consideração que toda decisão é
um problema teórico - ético;
• Verificar a liberdade ou o determinismo a qual os actos
estão submetidos;
• Compreender a origem e a aplicação da ética e da
cidadania no contexto social;
• Discutir e reflectir sobre a importância e a necessidade
que a ética e a cidadania tem na formação de uma
sociedade sadia.
Quem deveria estudar este módulo
Este Módulo foi concebido para estudantes do 2º ano do curso de
licenciatura do ISCED. Poderá ocorrer, contudo, que haja leitores
que queiram se actualizar e consolidar seus conhecimentos nessa
disciplina, esses serão bem-vindos, não sendo necessário para tal
se inscrever, mas poderá adquirir o manual.

Como está Estruturado o Módulo


Este módulo, para estudantes do 2º ano do curso de
licenciatura, à semelhança dos restantes módulos do ISCED e
está estruturado como se segue:

Páginas introdutórias
• Um índice automático.
• Uma visão geral detalhada dos conteúdos do módulo,
resumindo os aspectos-chave que você precisa conhecer
para melhor estudar. Recomendamos vivamente que leia
esta secção com atenção antes de começar o seu estudo,
como componente de habilidades de estudos.

8
Conteúdo deste módulo
Este módulo está estruturado em Temas. Cada tema, por
sua vez comporta certo número de unidades temáticas ou
simplesmente unidades. Cada unidade temática se
caracteriza por conter uma introdução, objectivos,
conteúdos.
No final de cada unidade temática ou do próprio tema, são
incorporados antes o sumário, exercícios de
autoavaliação, só depois é que aparecem os exercícios de
avaliação.
Os exercícios de avaliação têm as seguintes
características: Puros exercícios teóricos, Práticos e
actividades práticas algumas incluído estudo de caso.

Outros recursos
A equipa dos académicos e pedagogos do ISCED,
pensando em si, num cantinho, recôndito deste nosso vasto
Moçambique e cheio de dúvidas e limitações no seu
processo de aprendizagem, apresenta uma lista de recursos
didácticos adicionais ao seu módulo para você explorar.
Para tal o ISCED disponibiliza na biblioteca do seu centro
de recursos mais material de estudos relacionado com o seu
curso como: Livros e/ou módulos, CD, CD-ROOM, DVD.
Para além deste material físico ou electrónico disponível
na biblioteca, pode ter acesso a Plataforma digital modelo
para alargar mais ainda as possibilidades dos seus estudos.

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Auto-avaliação e tarefas de avaliação
Tarefas de auto-avaliação para este módulo encontram-se
no final de cada unidade temática.
As tarefas de avaliação devem ser semelhantes às de auto-
avaliação. Uma parte das tarefas de avaliação será objecto
dos trabalhos de campo a serem entregues aos
tutores/docentes para efeitos de correcção e
subsequentemente nota. Também constará do exame do fim
do módulo. Pelo que, caro estudante, fazer todos os
exercícios de avaliação é uma grande vantagem.

Comentários e sugestões
Use este espaço para dar sugestões valiosas, sobre
determinados aspectos, quer de natureza científica, quer de
natureza didáctico - Pedagógica, etc., sobre como deveriam
ser ou estar apresentadas. Pode ser que graças as suas
observações que, em gozo de confiança, classificamo-las
de úteis, o próximo módulo venha a ser melhorado.

Ícones de actividade
Ao longo deste manual irá encontrar uma série de ícones nas
margens das folhas. Estes ícones servem para identificar
diferentes partes do processo de aprendizagem. Podem indicar
uma parcela específica de texto, uma nova actividade ou tarefa,
uma mudança de actividade, etc.

Unidade 1.6: Habilidades de estudo


O principal objectivo deste campo é o de ensinar aprender a
aprender. Aprender aprende-se.
Durante a formação e desenvolvimento de competências, para
facilitar a aprendizagem e alcançar melhores resultados, implicará
empenho, dedicação e disciplina no estudo. Isto é, os

10
bons resultados apenas se conseguem com estratégias eficientes e
eficazes. Por isso é importante saber como, onde e quando
estudar. Apresentamos algumas sugestões com as quais
esperamos que caro estudante possa rentabilizar o tempo dedicado
aos estudos, procedendo como se segue:

1º Praticar a leitura. Aprender a Distância exige alto domínio de


leitura.
2º Fazer leitura diagonal aos conteúdos (leitura corrida).
3º Voltar a fazer leitura, desta vez para a compreensão e
assimilação crítica dos conteúdos (ESTUDAR).

4º Fazer seminário (debate em grupos), para comprovar se a sua


aprendizagem confere ou não com a dos colegas e com o padrão. 5º
Fazer TC (Trabalho de Campo), algumas actividades práticas ou
as de estudo de caso se existir.
IMPORTANTE: Em observância ao triângulo modo – espaço
tempo, respectivamente como, onde e quando, estudar como foi
referido no início deste item, antes de organizar os seus momentos
de estudo reflicta sobre o ambiente de estudo que seria ideal para
si: Estudo melhor em casa, biblioteca, café e outro lugar? Estudo
melhor à noite, de manhã, de tarde, fins de semana ao longo da
semana? Estudo melhor com música, num sítio sossegado, num
sítio barulhento!? Preciso de intervalo em cada 30 minutos, em
cada hora, etc.

É impossível estudar numa noite tudo o que devia ter sido


estudado durante um determinado período de tempo; Deveestudar
cada ponto da matéria em profundidade e passar só ao seguinte
quando achar que já domina bem o anterior.

11
Privilegia-se saber bem (com profundidade) o pouco que puder ler
e estudar, que saber tudo superficialmente! Mas a melhor opção é
juntar o útil ao agradável: Saber com profundidade todos
conteúdos de cada tema, no módulo.

Dica importante: não recomendamos estudar seguidamente por


tempo superior a uma hora. Estudar por tempo de uma hora
intercalado por 10 (dez) a 15 (quinze) minutos de descanso
(chama-se descanso à mudança de actividades). Ou seja, que
durante o intervalo não se continuar a tratar dos mesmos assuntos
das actividades obrigatórias.

Uma longa exposição aos estudos ou ao trabalho intelectual


obrigatório, pode conduzir ao efeito contrário: baixar o
rendimento da aprendizagem. Por que o estudante acumula um
elevado volume de trabalho, em termos de estudos, em pouco
tempo, criando interferência entre os conhecimentos, perde
sequência lógica, por fim ao perceber que estuda tanto, mas não
aprende, cai em insegurança, depressão e desespero, por se achar
injustamente incapaz!
Não estude na última da hora; quando se trate de fazer alguma
avaliação. Aprenda a ser estudante de facto (aquele que estuda
sistematicamente), não estudar apenas para responder a questões
de alguma avaliação, mas sim estude para a vida, sobretudo, estude
pensando na sua utilidade como futuro profissional,na área em que
está a se formar.

Organize na sua agenda um horário onde define a que horas e que


matérias deve estudar durante a semana; Face ao tempo livre que
resta, deve decidir como o utilizar produtivamente,

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decidindo quanto tempo será dedicado ao estudo e a outras
actividades.
É importante identificar as ideias principais de um texto, pois será
uma necessidade para o estudo das diversas matérias que
compõem o curso: A colocação de notas nas margens pode ajudar
a estruturar a matéria de modo que seja mais fácil identificar as
partes que está a estudar e Pode escrever conclusões, exemplos,
vantagens, definições, datas, nomes, pode também utilizar a
margem para colocar comentários seus relacionados com o que
está a ler; a melhor altura para sublinhar é imediatamente a seguir
à compreensão do texto e não depois de uma primeira leitura;
Utilizar o dicionário sempre que surja um conceito cujo
significado não conhece ou não lhe é familiar;

Precisa de apoio?

Caro estudante, temos a certeza que por uma ou por outra razão, o
material de estudos impresso, lhe pode suscitar algumas dúvidas
como falta de clareza, alguns erros de concordância, prováveis
erros ortográficos, falta de clareza, fraca visibilidade, página
trocada ou invertidas, etc.). Nestes casos, contacte os serviços de
atendimento e apoio ao estudante do seu Centro de Recursos (CR),
via telefone, SMS, Email, se tiver tempo, escreva mesmo uma
carta participando a preocupação.

Uma das atribuições dos Gestores dos CR e seus assistentes


(Pedagógico e Administrativo), é a de monitorar e garantir a sua
aprendizagem com qualidade e sucesso. Dai a relevância da
comunicação no Ensino a Distância (EAD), onde o recurso as TIC

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se torna incontornável: entre estudantes, estudante – Tutor,
estudante – CR, etc.

As sessões presenciais são um momento em que você caro


estudante, tem a oportunidade de interagir fisicamente com staff
do seu CR, com tutores ou com parte da equipa central do ISCED
indigitada para acompanhar as sua sessões presenciais. Neste
período pode apresentar dúvidas, tratar assuntos de natureza
pedagógico e/ou administrativo.

O estudo em grupo, que está estimado para ocupar cerca de 30%


do tempo de estudos a distância, é muita importância, na medida
em que permite lhe situar, em termos do grau de aprendizagem
com relação aos outros colegas. Desta maneira ficará a saber se
precisa de apoio ou precisa de apoiar aos colegas. Desenvolver
hábito de debater assuntos relacionados com os conteúdos
programáticos, constantes nos diferentes temas e unidade
temática no módulo.

Unidade 1. 7: Tarefas (avaliação e auto-avaliação)


O estudante deve realizar todas as tarefas (exercícios, actividades
e auto-avaliação), contudo nem todas deverão ser entregues, mas
é importante que sejam realizadas. As tarefas devem ser entregues
duas semanas antes das sessões presenciais seguintes.

Para cada tarefa serão estabelecidos prazos de entrega, e o não


cumprimento dos prazos de entrega, implica a não classificação
do estudante. Tenha sempre presente que a nota dos trabalhos de
campo conta e é decisiva para ser admitido ao exame final do
módulo.

14
Os trabalhos devem ser entregues ao Centro de Recursos (CR) e
os mesmos devem ser dirigidos ao tutor/docente.

Podem ser utilizadas diferentes fontes e materiais de pesquisa,


contudo os mesmos devem ser devidamente referenciados,
respeitando os direitos do autor.
O plágio é uma violação do direito intelectual do (s) autor (es).
Uma transcrição à letra de mais de 8 (oito) palavras do testo de
um autor, sem o citar é considerada plágio. A honestidade,
humildade científica e o respeito pelos direitos de autor devem
caracterizar a realização dos trabalhos e seu autor (estudante do
ISCED.

Muitos perguntam: Com é possível avaliar estudantes à distância,


estando eles fisicamente separados e muito distantes do
docente/turor!? Nós dissemos: Sim é muito possível, talvez seja
uma avaliação mais fiável e consistente.

Você será avaliado durante os estudos à distância que contam com


um mínimo de 90% do total de tempo que precisa de estudar os
conteúdos do seu módulo. Quando o tempo de contacto presencial
conta com um máximo de 10%) do total de tempo do módulo. A
avaliação do estudante consta detalhada do regulamenta da de
avaliação.

Os trabalhos de campo por si realizados, durante estudos e


aprendizagem no campo, pesam 25% e servem para a nota de
frequência para ir aos exames.
Os exames são realizados no final de cada módulo e decorrem
durante as sessões presenciais. Os exames pesam no mínimo 75%,
o que adicionado aos 25% da média de frequência,

15
determinam a nota final com a qual o estudante conclui a
cadeira.

A nota de 10 (dez) valores é a nota mínima de conclusão do


módulo.
Neste módulo o estudante deverá realizar pelo menos 2 (dois)
trabalhos e 1 (um) (exame).
Algumas actividades práticas, relatórios e reflexões serão
utilizados como ferramentas de avaliação formativa.

Durante a realização das avaliações, os estudantes devem ter em


consideração a apresentação, a coerência textual, o grau de
cientificidade, a forma de conclusão dos assuntos, as
recomendações, a identificação das referências bibliográficas
utilizadas, o respeito pelos direitos do autor, entre outros.

Os objectivos e critérios de avaliação constam do Regulamento


de Avaliação.
É importante que o aluno tenha ideia da importância de
estudar a Cidadania, pois o estudo dessa ciência fornece
informações de utilidade para a tomada de decisão dentro e
fora de uma empresa.

Ao terminar o estudo deste módulo da Cidadania o estudante


deverá ser capaz de:
• Explicar a evolução do conceito da ética e da cidadania
no contexto das mudanças globais contemporânea:
• Demonstrar conhecimento dos mecanismos de
protecção de direitos humanos:
• Avaliar de forma crítica a importância da ética, direitos
humanos e cidadania;

16
• Estabelecer a diferença entre a cidadania e a ética.

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TEMA II: NOÇÕES DE ÉTICA E DA CIDADANIA

Unidade2.1: Ética
Ao terminar esta unidade, deveras ser capaz de:
• Caracterizar o termo ético e a sua reflexão;
• Definir a ética e moral;
• Identificar as formas éticas mais usadas;
• Analisar a seguinte pressão: pensar a ética è discutir a razão de ser da
escolha de um comportamento em detrimento de outro.

• Estabelecer a diferença entre a ética normativa e a do resultado;


• Explicar o surgimento da ética do resultado e normativa.
• Avaliar o pensamento do Maquiavel tendo em conta a ética normativa.

O termo ético vem ganhando relevância nos espaços de discussão


da sociedade civil. Novos livros, debates e cursos procuram
investigar essa importante dimensão da vida da humana. Pensar
a ética hoje é uma maneira de pesquisar como viver melhor, como
possibilitar às pessoas e à comunidade o máximo de realização.
No entanto, a necessidade do seu discurso revela que não estamos
sabendo nos organizar pessoal socialmente para viver bem. Se
assim fosse, não seria preciso tratar do assunto. A emergência do
tema revela, deste modo, a sua própria crise. Nesse contexto, falar
sobre a ética é sempre um risco, pois ao abordar normas para o
bem viver, prescrevendo regras de condutas, pode-se cair no
moralismo. O outro extremo è a permissividade. Significa
abandonar qualquer referência e viver sem os limites necessários
à preservação da vida em sociedade. Tratar do tema exige o
equilíbrio entre a necessidade de adequação ao grupo para
conviver e a liberdade

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individual de cada indivíduo guiar a sua vida como bem entender.
Discutir a questão ética é, portanto, um desafio.
Vivermos hoje em uma sociedade pluralista, cada vez mais
centrada na satisfação das necessidades individuais de bemestar.
Para alguns, essa pluralidade revela uma crise ética, pois os
valores deixam de ter aplicabilidade universal, dada a velocidade
com que a realidade se modifica. Para outros, vivemos em uma
democracia que permite justamente a expressão de modos
particulares de viver. Esse contexto, a reflexão ética se torna
bastante oportuna, pois ela vai pensar o nosso tempo, nossos
valores e a razão de ser da escolha de nossas condutas que
envolvem, directa ou indirectamente, a colectividade em que
estamos inseridos.

Etimologicamente, o termo ético procede de duas palavras


gregas, traduzidas como êthos e Èthos. Êthos (do grego, com eta
inicial) quer dizer morada habitual, toca, carácter. Essa excepção
do termo designa que a ética é a morada do homem, é o espaço do
mundo que se torna habitável para o homem, seus abrigos
protector, sua casa. Trata-se de um espaço que não é dado ao
homem, mas é por ele construído, incessantemente, através de
normas, costumes e proibições.

Já o outro termo èthos (do grego, com épsilon inicial) significa


costume, uso, maneira de proceder e denota uma constância no
agir, um modo de agir do indivíduo que se contrapõe ao impulso
do desejo. Podemos aproximar esse sentido do termo ao
significado de hábito, disposição adquirida pela repetição
frequente de um acto.

A partir desses dois significados, percebemos duas dimensões


complementares e dialécticas da ética: a dimensão social e a

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dimensão individual. Enquanto a dimensão social, costume, a
ética traduz princípios e normas dos actos que irão influenciar o
ethos como hábito. Diz respeito ao conjunto de regras e normas
destinadas a regular as relações dos indivíduos num determinado
grupo social. Enquanto a dimensão individual, por sua vez diz
respeito ao modo de viver do sujeito ético, cujos hábitos
alimentam o ethos como costume.

Podemos dizer que um costume só existe porque os membros


daquela colectividade agem de modo a mantê-lo. O costume é
resultado dos comportamentos individuais e, simultaneamente,
causa deles, pois é factor determinante das condutas dos
indivíduos. Temos então uma relação dialéctica, em que o
costume é construído pelas acções dos indivíduos, as quais, por
sua vez, também são determinadas pela influência dos costumes.
Quando prioriza a reflexão sobre costume de um grupo, a ética é
definida como a ciência da moral, dos mores, palavra que em
latim significa costumes. Quando prioriza a reflexão sobre os
motivos e valores que levam o sujeito a escolher o que julga
correcto, a ética é definida como reflexão sobre a razão de ser da
escolha de uma conduta em detrimento de outra. Embora passa
enfatizar um dos pólos, a ética exige a investigação sobre ambos,
pois eles se interagem mutuamente.

É muito comum o uso dos termos ética e moral como sinónimos.


No entanto, o estudo da ética diferente do estudo da moral. A
moral é o conjunto de normas ou regras que regulam as relações
dos indivíduos de um determinado grupo social, em um
determinado contexto, isto é, seus costumes, seus padrões de
comportamento.

20
O estudo da ética implica em investigar os fundamentos e
critérios que determinam o que convém. Nesse sentido, a história
das ideias morais pode ser objecto de disciplina como sociologia
ou Antropologia. A História da ética, por sua vez, se assenta numa
história da Filosofia. Pois busca uma justificativa racional da
ideia e das normas adoptadas, ou seja, procura fundamentar a
razão de terminados costumes para uma determinada
colectividade. Pode dizer-se que a ética é teórica, é reflexão, ao
passo que a moral é prática, é uma forma específica de
comportamento humano.

Nesta disciplina, procuramos discutir os fundamentos e critérios


que permitem afirmar que uma conduta seja correcta ou um
costume seja bom. Trata-se, portanto, de uma investigação de
natureza ética. Não procuramos preservar condutas práticas sobre
o que convém. Os costumes e a crise dos costumes são objectos
de nossa análise, cuja leitura e debate deve preparar o estudante
para o exercício da liberdade de escolher os seus próprios
caminhos, mas não há a intenção de prescrever normas de
comportamento.

O propósito da ética, qualquer que seja a sua ênfase, social ou


individual, é estar sempre a serviço da vida em especial, a serviço
da vida humana. Se existe alguma razão que justifique a reflexão
sobre o que é certo e o que é errado, o que faz bem e o que não faz,
essa razão é o ser humano. Do mesmo modo, se pesquisarmos a
origem dos costumes de um grupo, da sua moral, vamos ver que
o seu propósito é a protecção da comunidade contra a sua
dissolução.

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Enfim, a ética é a reflexão que vai orientar, vai dar o sentido em
direcção à realização do ser humano. Pensar a ética é discutir a
razão de ser da escolha de um comportamento em detrimento de
outro. Os critérios que valem em um momento podem não ter
valor em outro, mas a meta é sempre a mesma: ser feliz. Assim,
se a razão de ser da ética é o ser humano, e a finalidade deste é a
felicidade, concluímos que a ética está a serviço da felicidade
humana, do seu bem.

A felicidade pode ser definida como um estado de satisfação


devido à própria situação no mundo. É um estado de graça,
resultante daquilo que realiza o ser humano. A felicidade, como
experiência de plenitude, é a meta de todo ser humana. Ninguém
deixa de sofrer com a infelicidade, nem se resigna em ser
definitivamente infeliz. Com certeza, pode-se suportar e até
abraçar temporariamente o sofrimento, mas com a esperança vir
a alcançar a felicidade.

É possível pensar a felicidade sem conhecer os meios que a


produzem. A obtenção da felicidade é regulada e dependente da
busca do bem ou bens cuja posse proporciona ao sujeito a
realização subjectiva que ecoa em seu ser como uma satisfação
gratificante. Mas é necessário compreender que os caminhos para
se ter uma vida feliz não são a meta, a felicidade.

A boa saúde é um caminho para a felicidade, mas nem por isso


quem tem saúde é necessariamente feliz.
Este texto procura apontar alguns caminhos para a realização da
finalidade da ética: Ser feliz. A obra se inicia, em sua primeira
parte, com a discussão da relação do conceito de verdade com a
ética, buscando no pensamento filosófico, alguns subsídios

22
para fundamentar o nosso propósito. O conceito de verdade é fio
mediador a partir do qual se pretende descrever a ruptura com o
poder ético greco - medieval e consequente crise da ética a partir
da modernidade. Deste modo, é possível compreender a maneira
com que a reflexão ética nos tempos actuais foi abandonando o
carácter normativo e adoptando um discurso mais psicológico,
mais dirigido ao sujeito ético, livre, autónomo e responsável. Esta
obra se apropria deste evento, que chamamos de personalização
da ética, e dirige-se ao sujeito ético, a quem toma decisão, à
pessoa que pensa porque está a fazer da própria vida. Na segunda
parte procura apontar os meios que possibilidade a construção de
vida feliz. Uma vez colocada a problemática ética dentro de um
contexto maior, cabe agora pensá-la a partir do nosso tempo,
investindo saídas e alternativas, ao invés de lamentar a perda de
estatuto de universidade que não norteava a reflexão ética
clássica.Procuramos, assim clarificar os fundamentos necessários
para que o ser humano, com meio à diversidade do nosso tempo,
organize a sua vida com o propósito de ser feliz, ou mais feliz.

O caminho fundamental para a realização da felicidade, finalidade


da ética, é a verdade. A verdade é a exacta coincidência o que se
diz um objecto e o que o objecto é em si mesmo. É o acordo entre
o pensamento e a realidade, é a adequação entre a inteligência e
o ser. Estar de posse da verdade é a apropriar-se do mundo de
forma objectiva realista, livre de ilusões.

Muitos duvidam de possibilidade de se alcançar a verdade. De


facto, não conseguimos ter a posse da verdade toda, isto é não
somos capazes de ter o conhecimento absoluto de toda a

23
realidade. A razão não é capaz de explicar, por exemplo, a nossa
origem no universo.

Existimos no mundo e não sabemos de onde viemos. A verdadea


cerca da nossa origem é mistério. Geralmente as pessoas atribuem
a Deus a origem de todas as coisas. Entenda-se por Deus o
conceito utilizado para designar o princípio primeiro criador de
todos os seres.

Como criador, Deus é o motor de cada movimento que chamamos


vida. No entanto, Deus é imóvel, pois se se movesse,teríamos que
nos perguntar qual o motor que o moveu. Mas se Deus é o criador
de tudo, ele não pode ter nenhum antecedente. Deus é um criador
increado, que não foi criado por nada ou ninguém. Por isso, ele é
um motor imóvel. Gera movimento sem se mover, como a
perfeição estética da obra de arte que, despretensiosamente,
emociona que a contempla.

Como princípio primeiro, Deus é total. Nada de falta, pois tudo


de se origina: é perfeito. Ora, se eu nasci, se eu não criei, urge
concluir que existe, ou pelo menos existiu, um criador. Se
universo e a vida humana nasceram da matéria, como acreditam os
materialistas, estamos dizendo que o Deus, criador de todas as
coisas, increado, total e perfeito, é a matéria. Se o universo e a
vida humana nasceram de um espírito criador, como acreditam os
espiritualistas, estamos dizendo que Deus é um espírito. Mas isso
nós nunca vamos saber. É mistério. Essa verdade nos é
inacessível, mas temos certeza em afirmar que tal proposição é
verdadeira, pois se deus é criador total, o ser humano é criatura,
para de todo, é impossível à parte conhecer o que maior do que si
mesmo.

24
Mesmo se o conhecesse em sua experiência, Deus é indizível,
pois como pode a palavra que é finita, expressar o que por
definição é infinito? Seria como pedir a uma criança que só
domina o conjunto dos números naturais que fizesse operações
com radicais do conjunto dos números radicais. Como
demonstrado a partir desse exemplo, não somos capazes de
apreender a realidade toda, mas este próprio reconhecimento é
uma verdade. Isso significa que, embora não seja possível
conhecer a verdade toda, alguma verdade nos é possível alcançar.

Ao afirmar que a felicidade é a meta da vida humana e que o


caminho para a alcançar é a verdade, estamos propondo que
existem premissas decididamente verdadeiras que constituem a
base para a construção de uma vida feliz. Não podemos negar,
mesmo reconhecendo a limitação da razão, que alguns
apontamentos sobre a realidade são verdadeiros. Se um indivíduo
se atira do vigésimo quinto andar de um edifício, podemos
afirmar, com certeza, que o seu encontro com o chão vai levá-lo á
morte. Do mesmo motor está condenado, podemos dizer que ele
não está de posse da verdade acerca do automóvel que adquiriu.

Fica estabelecido, portanto, que a verdade é o caminho para a


realização da felicidade, meta do ser humano, finalidade da ética.
Ser feliz depende, assim, da aceitação da realidade como ela é. A
aceitação da realidade depende do conhecimento que se pode ter
dela. Torna-se necessário reflectir sobre o que é o conhecimento
e como ele se organizou ao longo do pensamento filosófico, em
busca da verdade. Teremos, assim, condição de relacionar a
compreensão acerca da verdade do conhecimento com a ética,
demonstrando que a afirmação ou a negação da

25
possibilidade do conhecimento verdadeiro determinam diferentes
concepções de ética.

Unidade 2.2: Conhecimento da Verdade


O objectivo de todo conhecimento é a apropriação da verdade.
Conhecer é o acto pelo qual o sujeito representa o objecto.
Quando este representado é feita tal como o objecto é, tem-se um
conhecimento verdadeiro. Quando a representação não coincide
com o que é o objecto é, tem-se um conhecimento falso. O
conhecimento consiste, portanto, na relação de dois elementos
fundamentais, sujeito e objecto, sendo que o primeiro produz
acerca do segundo uma representação. O sujeito pode estar neutro
diante do objecto, mas pode também projectar-se nele de modo a
colocar o que é seu e não dele. O objecto por sua vez, se desdobra
em o que ele é em si, real, e como ele aparece para o sujeito,
fenómeno. O fenómeno pode não ser exactamente o real, pois a
maneira como o sujeito apreende a manifestação do ser pode ser
diferente do ser. Paul Tillich (1987) diria que a representação
verdadeira de um ser “ é o resultado de expectativas desiludidas
em nosso encontro com a realidade” Roberto Pena (2000). O
sofrimento se manifesta no momento em que o sujeito é
surpreendido com alguma realidade de que alguma forma ele não
esperava, e revela que o individuo estava ignorante acerca dessa
realidade. Ao trazer á tona a precariedade de seu conhecimento,
o sujeito está aprendendo, está tomando o seu conhecimento mais
profundo. Tal proposição se mostra muito interessante, porque
ousa sugerir que o sofrimento psíquico é acompanhamento de
alguma ignorância do sujeito que sofre em relação ao tema de dor.

26
Na antiguidade clássica, na cidade grega de Atenas, um filósofo
de apelido Platão (428/427-347 a.C, (seu verdadeiro nome era
Aristóles), usou de uma alegoria para ilustrar as suas ideias.
Vamos nos valer dela para discutir o problema do conhecimento e
sua relação com a verdade e a ética. O Mito da Caverna, como é
chamada, é uma história fictícia, que supunha a existência deuma
habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada
de uma aberta para a luz. Estão lá dentro, desde a infância, alguns
homens, algemados de penas e pescoços de tal maneira que só
lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa
eminência, por detrás dele. Entre a fogueira e os prisioneiros, há
um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um
pequeno muro, no género dos tapumes que os homens colocam
diante do público para mostrarem suas habilidade por cima
deles. Ao longo deste muro, passam homens que transportam
toda espécie de objectos. Uns passam falando, outros seguem
calados.

Nestas condições, os prisioneiros, incapazes de volver o rosto


para trás, vêem somente as sombras dos homens objectos que
passam por detrás deles, sombras essas projectadas pelo fogo na
parede oposta da caverna. Assim, mesmo que fossem capazes de
conversar uns com os outros, os cativos julgaram estar a nomear
objectos reais o que viam diante de si. Se a prisão tivesse também
um eco na parede do fundo, quando algum dos sombra dos
objectos reais.

Supondo que um dos prisioneiros fosse solto das correntes e


pudesse endireitar-se de repente, mover o pescoço, andar a ponto
de sair da caverna e olhar para luz, ele sentiria dor via outrora.
Sentindo os seus olhos doerem, voltar-se-ia para

27
julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lá
de fora. Mas se essa volta à caverna não fosse possível, o
prisioneiro liberto sentiria os olhos doídos e sequer seria capaz de
ver alguma coisa. Precisaria se habituar se quisesse ver o mundo
superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as
sombras, depois disso para as imagens dos homens e dos outros
objectos, reflectidas na água, e por último, para os próprios
objectos.

A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu e o


próprio céu, durante a noite, olhando a luz das estrelas e da lua,
mais facilmente do que fosse o Sol, não já brilho de dia.
Finalmente, seria capaz de contemplar o Sol, não já a sua imagem
na água, ou em qualquer objecto, mas a ele mesmo, no seu lugar.

Quando se lembrasse de sua primitiva habitação e àquelas ilusões


e viver do modo antigo, pois não conseguiria mais achar que o que
se vê de dentro da caverna seja a realidade. Se imaginarmos,
ainda, que o cativo que se libertou tenha voltado à caverna, ele
precisaria então de um tempo para adaptar a vistaà penumbra. Seus
antigos companheiros diriam dele que, por ter subido ao mundo
superior, estragara a vista, e o que não valia a pena tentar a
ascensão. No caso do ex-prisioneiro tentar libertar os outros
prisioneiros para que fossem lá fora ver a vida de verdade, é bem
provável que estes últimos se voltem contra o primeiro e o
considerem enlouquecido ou herege, ou subversivo. Se o Ex -
cativo insistir em levar os companheiros à verdade, é também
provável que seria até mesmo morto.

28
A partir da analogia da caverna, Platão procuro demonstrar que a
verdade é possível de ser conhecida. O conhecimento daverdade
exige que a pessoa se liberte das aparências, do mundo das ilusões
e das sombras e tenha força para vencer as dificuldades do
aprendizado, simbolizadas pela dor nos olhos.

Dessa alegoria, podemos retirar importantes considerações.


Primeira: a pessoa que está iludida acerca da verdade das coisas,
isto é, aquela que está vendo a sombra, aparência, e tomando- a
pela realidade, acedida firmemente que está de posse da verdade.
Isso quer dizer que o juízo que um indivíduo faz da realidade pode
estar equivocado, mas naquele momento é o que considera
verdadeiro. Desta afirmação podemos deduzir uma segunda
consideração: ninguém erra convicto do erro que está cometendo.
A constatação de que o indivíduo errou, embora possa ser
percebida por terceiros imediatamente, só é percebida por ele a
posterior.
Fig. 1- Platão, Percursos da ética Normativa

Fonte: Platão, (1981)

Terceiro: quem conhece a verdade não consegue mais tomar a


aparência pelo real. Uma vez conhecida a verdade, é impossível à
pessoa voltar à ignorância. Se o sujeito sabe que a sombra não é
pessoa voltar à ignorância. Se o sujeito sabe que a sombra não é a
realidade, mas uma projecção dela, não é possível voltar a
acreditar que a sombra é o real. É igual pasta de creme dental:
depois que apertou a bisnaga, é impossível que o creme volte

29
para a embalagem pelo mesmo orifício. Esse princípio é o que
Platão chama ou de homologia entre o conhecimento e a verdade.
Se você conhece o bem é impossível não praticá-lo. E se não o
prático é porque não o conhece.

Unidade 2.3.1: A Ética Normativa


As ideias de Platão levam à formulação de um modelo ético que
podemos chamar de normativo. Ao avaliar se uma conduta é
correcta do ponto de vista ético, ela deve ser avaliada á luz da
ideia de bem, representada, no mito, pelo Sol. A partir do
momento que o Bem é contemplado, as acções humanas são
necessariamente norteadas por sua luz. Antes de tomas uma
decisão, o sujeito se pergunta se a sua conduta está de acordo com
os princípios éticos, entre os quais o mais importante é o bem. Se
assim for, ele está obrigado a agir. Caso contrário, está obrigado
a não tomar aquela decisão. Nesse sentido, o valor se impõe de
modo imperativo, como norma, à conduta humana, mesmo que
ela produza alguma perda ou sacrifício.

Fig. 2- A ética normativa: o princípio ético se impõe como norma


à conduta

CONDUTA
PRINCÍPIOS ÉTICOS (RESULTADO)

Fonte: Roberto Patrus (2006)

A ética normativa: o princípio ético se impõe como norma à conduta,


apesar de eventuais resultados negativos que possa provocar.

30
Em outra obra de Platão, há uma passagem que ilustra de modelo
normativo de ética. Sócrates estava preso e esperava o dia da sua
condenação, quando Críton, nome que dá título ao diálogo, a
visita e propõe um plano de fuga, Sócrates pondera que a decisão
só poderia ser tomada se estivesse de acordo com o princípio da
justiça. Pela boca de Sócrates, Platão diz: Devemos examinar,
antes de mais nada, se é justo ou injusto sair daqui sem a
permissão dos atenienses, pois se é justo devemos tentá- lo, mas
se é injusto, devemos abandonar a ideia (PLATÃO, 1981).

Sócrates acabou por demonstrar que não seria justo sair da prisão
sem o consentimento da lei. Resultado: foi condenado a morte,
obrigado a beber cicuta. No pensamento de Platão, portanto, o
valor ético, como o bem ou justiça, se impõe de modo imperativo
à condenação, mesmo que as consequências desta acção seja de
modo prejudicial. O resultado da acção se torna secundário em
relação à prioridade que é dada à conformidade com os valores
éticos. Nesse sentido, ser ético impõe sacrifícios.

Como podemos perceber, a convicção de que a verdade pode ser


conhecida determina um modelo de ética, que chamamos
normativo. Se eu sei o que é justo, se eu conheço verdadeiramente
a justiça, a acção se impõe de modo imperativo ao meu
comportamento. A pergunta que estejamos agindo
verdadeiramente conforme a justiça? O que é a justiça? Para
Platão, em seu tempo, a possibilidade do conhecimento da justiça
não era posta em dúvida. Reconhecia-se a divergência entre as
opiniões acerca do justo, mas se considerava que o filósofo,
aquele que se liberta das correntes que o pressionavam ao mundo
das aparências, era capaz de ver a verdade e agir de

31
acordo com critério de justiça. Isso significa que apenas os
filósofos tinham o privilégio de serem justos, pois a maioria dos
indivíduos estava presa às ilusões da caverna, incapazes de
distinguir a sombra do objecto que a originou. A certeza era
proporcionada pela razão, ao passo que as dúvidas e a incerteza
eram frutos das opiniões, da discussão sem a fundamentação
racional.

Tal concepção de ética fundamentou uma concepção aristocrática


de política, pois para Platão, só deveria governar aquele que
contemplou a ideia de Bem, ou seja, o filósofo. A sofocracia, ou
governo dos sábios, seria mais eficiente que a democracia, pois
julgamento popular quase sempre deixar-se-ia levar pelas
aparências:
Não acreditas que se disse muito
acertadamente que não devem ser
consideradas todas as opiniões dos
homens, mas algumas apenas, e não as
opiniões dos homens, mas algumas
apenas, e não as de todos os homens, a de
alguns apenas? Um homem que se exercita
no ginásio ouvirá a ofensa ou o louvor do
primeiro passante que dirige o ginásio?
(PLATÃO, 1981).

Hoje, este modelo de ética sofre as mesmas críticas que são feitas
ao conceito clássico de verdade. Do mesmo modo que se duvida
da possibilidade de se alcançar a verdade, duvida-se da
possibilidade de se conhecer valores universais que determinem a
acção do sujeito. Usando da analogia com mito da caverna: o que
garante ao cativo que se libertou das correntes que o que ele esteja
vendo lá fora seja realmente o real? Por que não se

32
dizer que estes objectos e indivíduos também sejam sombras de
uma outra realidade?
Modernamente falando, podem ser objectos falando, pode ser
objectos virtuais projectados por computador ou, ainda clones de
ouros seres. Existe realmente a realidade lá de fora, o mundo das
essências, ou a realidade não é nada mais do que as aparências?

Unidade 2. 3.2: A Ética dos Resultados.


A crise do modelo normativo de ética se origina junto com a
génese do período moderno, cujos eventos que merecem
destaque, para o nosso propósito, são o pensamento de Maquiavel
e a nova maneira de se pensar a possibilidade do conhecimento,
com Descartes e Kant.

Maquiavel contribuiu, com seu pensamento político, para aperda


do referencial ético greco - medieval. Revela-se, em suas ideias,
a quebra da unidade da reflexão sobre o comportamento ético, até
então estabelecida pelo ethos religioso que perpassa toda idade
média. O modelo normativo perde a sua razão de ser, pois o que
importa é o sucesso da acção política. O respeito a valores que se
impõem de forma imperativa à acção humana torna-se empecilho
à acção política eficiente.

Em Platão, existem dois mundos, representados pela caverna


(mundo sensível) e pelo mundo lá de fora (mundo das ideias). Já
em Maquiavel, filósofo italiano do século XVI, a única realidade
é a da nossa existência sensível.
Sendo minha intenção escrever algo útil para
quem por tal se interessa, pareceu me mais
conveniente ir em busca da verdade extraída dos

33
factos e não a imaginação dos mesmos, pois
muitos conceberam Repúblicas e Principados
jamais vistos ou conhecidos como tendo
realmente existido (MAQUIAVEL, 1985).

Considerado pai da moderna ciência política, Maquiavel


estabelece uma radical ruptura entre ética e política. Em verdade
há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que
aquele que abandone o que faz por aquilo que se deveria fazer,
aprenderá antes o caminho de ruína do que o de sua preservação
(MAQUIAVEL, 1985).

Segundo o autor florentino do século XVI, a acção política exige


aprender a não ser bom, sob pena de absoluto fracasso na
condução da coisa pública.
Eis que um homem que queira em todas as
suas palavras fazer profissão de bondades,
perder-se á entre tantos que não são bons.
Donde é necessário, a um príncipe que
queira se manter, aprender apoder não ser
bom e usar ou não da bondade, segundo a
necessidade (MAQUIAVEL, 1985).

Não podemos esquecer que o contexto da Itália renascentista é de


um país em crise, lutando por sua unificação vítima de conflitos
armados interna e externamente. Em Maquiavel, o critério para o
julgamento ético da acção política é o seu resultado. É boa a acção
cujo resultado é satisfação. Ruína é toda coisa cujo resultado é
negativo. Importa o sucesso da acção política, não os meios.

34
Para o Maquiavel, portanto, o campo da ética nos moldes gregos
compreende a vida privada. A vida política exige outros
parâmetros para julgar a acção. Ao eleger o resultado como o
critério para o julgamento da acção política, Maquiavel sugere
um modelo de ética que denominamos de ética dos resultados.
Este modelo abre um grande espaço para o relativismo. Enquanto
o princípio ético é universal, a justiça é sempre justiça, os
resultados da acção dependem do contexto. O bem deixa de ser
um valor absoluto, como na ética normativa, e passa a ser um
conceito que varia de acordo com o tempo e a ocasião.

Vê-se na ordem das coisas que nunca se


procura fugir a um inconveniente sem
incorrer em outro e a prudência consiste
em saber conhecer a natureza desses
inconvenientes e tomar como bom o menos
prejudicial (MAQUIAVIAVEL, 1985).

De acordo com o modelo de Maquiavel, podemos deduzir que


uma mesma acção ser boa (eficaz) em um momento e má
(ineficaz) em um contexto diferente. Essa ideia contradiz o
proposto pelo modelo normativo de ética. Não é possível uma
universalidade dos valores se eles se deslocam para os resultados,
que dependem da realidade, a qual é extremamente dinâmica e
mutável. Temos, assim, o que Maquiavel chamou de variação do
conceito de bem.

Disso depende, ainda a valorização do conceito de bem, porque


se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as
situações se apresentam de modo que a sua orientação seja boa
ele alcança a felicidade; mas se os tempos e as

35
circunstâncias se modificam, ele se arruína, visto não mudado o
seu modo de proceder (MAQUIAVEL, 1985).
No que se convencionou chamar de maquiavelismo, os fins
individuais (os fins individuais (vontade de poder, riqueza, por
exemplo) passam a justificar o uso de meios ilícitos (como o
mentira e corrupção). Assim, compartilhamos com a ideia de
Gomes (1969) de que a máxima “ os fins justificam os meios”
não pode ser considerada fora do contexto da reflexão do
florentino:
Em nenhum momento dos dois livros que
estamos abordando (O príncipe e os
comentários…) Maquiavel sugere que os
homens em outras esferas de suas vidas,
devam abrir mão de seus preceitos morais.
É na esfera da política que Maquiavel ao
vê como estes preceitos podem
aprioristicamente auxiliar no exercício do
poder que se exerce sobre homens em
conflito (GOMES, 1989).

Desse modo, parece-nos apropriado dizer que Maquiavel não era


maquiavélico, nem mentor do maquiavelismo, visto que estas
expressões, como vulgarmente são conhecidas, abrangem o
indivíduo em sua vida privada, o que é chamado de
maquiavelismo é uma realidade presente em relações quotidianas
e que muito contribuem para o que identificamos como crise
ética.

36
CONDUTA
(PRINCÍPIOS ÉTICOS RESULTADOS PARA
A COLECTIVIDADE
Fig. 3- A ética dos resultados de Maquiavel
Fonte: (Gomes, 1989).

A ética dos resultados de Maquiavel: os resultados se impõem à


acção mesmo que seja necessário violar algum princípio ético
para o bem da colectividade, em um contexto de crise.

Enfim, a grande contribuição do pensamento maquiaveliano para


o nosso propósito é o modo como ele relativiza o conceitode bem,
que em Platão era absoluto. Maquiavel trata a ética de modo
profano, dessacralização, e ao fazê-lo, torna-a relativa. Temporal.
Nesse contexto, nenhuma verdade poderia ser estabelecida com
o estatuto de universal. A impossibilidade do conhecimento
definitivo da verdade, ou do bem, determina a concepção de ética
que chamamos de ética dos resultados.

Unidade 2.4:Tarefas (avaliação e auto-avaliação)


Caro estudante, é momento de fazermos uma pausa para resolver
alguns exercícios de fixação.

1. Lê o texto e responde seguinte:


“Vivermos hoje em uma sociedade
pluralista, cada vez mais centrada
na satisfação das necessidades
individuais de bemestar. Para
alguns, essa pluralidade revela uma
crise ética, pois os valores deixam
de ter aplicabilidade

37
universal, dada a velocidade com
que a realidade se modifica.
a) Indique os aspectos que motivaram a implantaçãoda crise
ética;
b) Estabeleça a diferença entre a ética normativa e a ética do
resultado;
c) Em que circunstâncias surge a ética do resultado.
2. O estudo da ética implica em investigar os fundamentos e
critérios que determinam o que convém.
a) Concorda com a firmação? Fundamenta tendo em conta o
termo ético.
3. É na esfera da política que Maquiavel ao vê como estes
preceitos podem aprioristicamente auxiliar no exercício do
poder que se exerce sobre homens em conflito Gomes,(1989).
Desse modo, parece-nos apropriado dizer que Maquiavel não
era maquiavélico, nem mentor do maquiavelismo. Qual é o
significado da expressão sublinhada.
4. Para o Maquiavel, portanto, o campo da ética nos moldes
gregos compreende a vida privada.
a) Identifica os parâmetros da vida política tendo como base ética
normativa.

5. Vivermos hoje em uma sociedade pluralista, cada vez mais


centrada na satisfação das necessidades individuais de bem-
estar.
a) Mencione 3 tipos de necessidades individuais de bem-estar.
6. A crise ética, os valores deixam de ter aplicabilidade
universal, dada a velocidade com que a realidade se modifica.
Identifique as principais causas da crise ética.

38
7. Para outros, vivemos em uma democracia que permite
justamente a expressão de modos particulares de viver.
a) Justifique afirmação acima, tendo em conta o pensamento do
Maquiavel.
8. Razão de ser da ética é o ser humano, e a finalidade deste é a
felicidade, concluímos que a ética está a serviço da felicidade
humana, do seu bem.
9. A felicidade, como experiência de plenitude, é a meta de todo
ser humano.
a) Define a Felicidade.
b) Estabeleça a diferença entre o sofrimento e a felicidade.
c) Identifica os meios que produzem a felicidade.
10. A verdade a cerca da nossa origem é mistério.
a) Concorda com esta? Porquê?
11. Geralmente as pessoas atribuem a Deus a origem de todas
as coisas.
a) Define e caracteriza o Deus.

TEMA III: NOÇÕES DA CIDADANIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

O século XX, marcado pela experiência de duas guerras


mundiais, além da articulação de uma nova ordem mundial,
baseada no aumento de desigualdades económicas e sociais, bem
como também na teoria liberal do Estado, novas questões devem
ser trazidas para a concepção do termo cidadania, passando de
uma visão formal, onde cidadania significa “a

39
condição de membro de um Estado-nação” (LESSA, 1996) a
conceituação chega à noção da cidadania substantiva, “definida
como a posse de um corpo de civis, políticos e especialmente
sociais” (LESSA, 1996, p. 73).

O tema traçado para esta unidade, de uma forma geral, implica na


analisar teoricamente a categoria cidadania, pretendendo
sistematizar o entendimento sobre o significado desta categoriana
sociedade contemporânea, como forma de fazer prevalecer o
princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de todos
em direitos e deveres, demonstrando que a dinâmica das relações
humanas impõe um repensar do significado decidadania.

A questão da cidadania tem se destacado como um debate


relevante para a reflexão nos centros universitários, enquanto
relação social colocada a serviço do reconhecimento e da
efectivação de direitos fundamentais, assim, este tema pretende
contribuir para o debate dos estudantes sobre um dos grandes
problemas de nosso tempo, qual seja, a luta para a efectivação dos
direitos fundamentais da cidadania. Espera-se que o estudo possa
contribuir como subsídio para possíveis pesquisas de carácter
quantitativo e qualitativo que abordem directa ou indirectamente
o tema.

Unidade 3.1: Fundamentos Históricos e Cidadania


Resgatando historicamente a categoria cidadania tem que, na
Grécia antiga (séculos VIII e VII a.C.) chega-se ao conceito por
exclusão, ou seja, o indivíduo é considerado cidadão desde que,
não seja: escravo, mulher, criança. Cidadania não era a relação de
todos e sim de poucos.

40
O status de cidadania, inicialmente, era marcado pelos direitos
civis, onde os contratos conferiam liberdade ao indivíduo para
possuir, mas não garantia a efectividade da posse. Numa
passagem Marshall (1967) coloca que o direito à liberdade de
palavra, por exemplo, não adianta se, devido à falta de educação o
indivíduo não tem nada a dizer, ou seja, apenas com a garantia ou
prescrição do direito, não se tem necessariamente a marca da
cidadania nas relações sociais.

Numa sociedade Feudal a qualidade de cidadão era marca do


poder de participar de determinada comunidade quando o
indivíduo reunia direitos (civis, políticos), servindo então para
distinguir classes na medida de desigualdade, “não havia nenhum
código uniforme de direitos e deveres com os quais todos os
homens, nobres e plebes, livres e servos eram investidos em
virtude de sua participação na sociedade” Marshall (1967), ou
seja, numa sociedade de classes desiguais, não havia um princípio
de igualdade de cidadãos, portanto, ocorria um processo de
desigualdade e de exclusão social, não se garantindo a todos a
cidadania.

Em seus estudos Marshall (1967, p. 63) assinala o


desenvolvimento do sentido da expressão de cidadania até o fim do
século XIX, em três partes: civil, relacionados aos direitos
necessários à liberdade individual, ligados às questões de justiça,
por isso afectos aos tribunais de justiça; político, pertinente a
participação do exercício do poder político, afecto ao parlamento;
e, social, no sentido do mínimo de bem-estar económico e
segurança do direito de participar, ligado aqui ao sistema
educacional e serviços sociais. Inicialmente esses três

41
direitos (civil, político e social) se confundiam porque as
instituições não estavam definidas.

Nos fins do século XIX e início do século XX há “um interesse


crescente pela igualdade como um princípio de justiça social e
uma consciência do facto de que o reconhecimento formal de uma
capacidade igual no que diz respeito a direitos não era suficiente”
Marshall, (1967), mas os direitos sociais surgidos compreendiam
um mínimo e ainda não faziam parte integrante do conceito de
cidadania.

Foi numa dinâmica de avanços e recuos, que os elementos que


compõem a cidadania, foram tomando forma. Chegou um
momento em que “os três elementos distanciaram-se uns dos
outros”Marshall, (1967) tornando-se estranhos, a ponto de poder
se estabelecer a formação de cada um num século diferente: no
século XVIII, os direitos civis, que se estabeleceram de forma
semelhante ao que existe actualmente, consistindo numa
aquisição de direitos; no século XIX, os direitos políticos, que se
seguiram os direitos civis, ampliando-os; e, finalmente os direitos
sociais que somente no século XX, atingiu o mesmo patamar dos
demais direitos.

A cidadania como “modo de viver que brotasse de dentro de


cada indivíduo e não como algo imposto a ele de fora. “Consiste
numa “igualdade humana básica de participação.” Neste aspecto,
Corrêa (2002) propõe a noção moderna da cidadania “enquanto
igualdade humana básica de participação na sociedade,
concretizada através da aquisição de direitos.”

Para Herkenhoff (2001), a “história universal da cidadania é a


história da caminhada dos seres humanos para afirmarem sua

42
dignidade e os direitos inerentes a toda pessoa humana”, assim,
cidadania possui quatro dimensões que podem resumir sua
essência: a dimensão social e económica, no que diz respeita. Às
protecções ao trabalho, ao consumidor, assistência aos
desamparados, face ao projecto económico neo-liberal instalado;
a dimensão educacional, onde “ninguém pode ser excluído dela,
ninguém pode ficar de fora da escola e ao desabrigo das demais
instituições e instrumentos que devem promover a educação do
povo, dimensão existencial, onde “a cidadania é condição para
que alguém possa, realmente, ser “uma pessoa”
Marshall (1967) estabelece que “cidadania é um status concedido
àqueles membros integrais de uma comunidade”. Há uma espécie
de igualdade humana básica associada com o conceito de
participação integral na comunidade, a qual não é inconsistente
com as desigualdades que diferenciam os vários níveis
económicos na sociedade. Em outras palavras, a desigualdade do
sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a
igualdade de cidadania seja reconhecida.

Enquanto cidadania refere-se à relação estabelecida entre os


membros de uma sociedade, tornando-os igual em direitos e
obrigações, mesmo em suas formas iniciais, que a cidadania é
“uma instituição em desenvolvimento”desde a segunda metade
do século XVII, e esse desenvolvimento coincide com o
desenvolvimento do sistema capitalista, que tem como
pressuposto um sistema de desigualdade, por isso, no século XX,
cidadania e sistema de classe capitalista são termos “em guerra”.

43
Cidadania, Correia (2002) está estreitamente ligada à noção de
direitos humanos, e é na luta pela implementação de seus direitos
que o homem se faz cidadão, no eixo que estabelece a igualdade,
o acesso a direitos, a participação no meio social.

A definição teórica dos autores tem proximidade e se


complementam, porém Santos pois sustenta que nas lutas para a
efectivação dos direitos, colocava cidadania - classe social, estão
grupos sociais que:
“Ora são maiores, ora são menores que classes, com contornos
mais ou menos definidos em vista de interesses colectivos por
vezes muito localizados, mas potencialmente universalizáveis.
As formas de opressão e de exclusão contra as quais lutam não
podem, em geral, ser abolidas com a mera concessão de direitos,
como é típico da cidadania; exigem uma reconversão global dos
processos de socialização e de inculcação cultural e dos modelos
de desenvolvimento, ou exigem transformações concretas
imediatas e locais (por exemplo, o encerramento de uma central
nuclear, a construção de uma creche ou de uma escola, a proibição
de publicidade televisiva violenta), exigências que, em ambos os
casos, extravasam da mera concessão de direitos abstractos e
universais.

As lutas que marcaram o longo da história dos homens ocorreram,


em síntese, para ver inscritos os mais diversos direitos, com os
mais diversos enfoques. No estudo deHobsbawm (1995), o autor
identifica que o século XX determinou a bipolaridade das
potências mundiais, e teve como resultado uma revolução social
de âmbito global que veio a determinar mudanças, quais sejam,
as sociedades agrícolas foram substituídas pelas sociedades
industriais, consequência disto ocorre o crescimento das cidades;
o poder económico da

44
população aumentou e, o processo de globalização num modelodo
liberalismo económico passa a mostrar cada Estado, uma
perspectiva global, ignorando suas fronteiras políticas.

Desta revolução social, segue-se também uma revolução cultural,


que mudou a vida do homem alterando os inter-relacionamentos.
Surge uma nova e jovem cultura internacional que teve seu
apogeu em 1968, etransformou-se na imagem de toda a revolução
cultural do século.

Da revolução cultural resultante do século XX, nasce a


necessidade da proclamação dos direitos sociais que
expressam o amadurecimento de novas exigências, segundo
Bobbio (2004), “como os do bem-estar e da igualdade não apenas
formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio
do Estado.”

Chega-se ao século XXI, numa perspectiva para a diminuição do


Estado, e, não obstante as garantias conquistadas ao longo dos
séculos, resta agora, a necessidade de luta para efectivação destes
direitos, para:
“Não se pode por o problema dos direitos do homem abstraindo-
se dos dois grandes problemas de nosso tempo, que são os
problemas da guerra e da miséria, do absurdo contraste entre o
excesso de potência criou as condições para uma guerra
exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes
massas humanas à fome.”

O debate actual remodela a categoria cidadania, que, além de


apontar a necessidade de efectivação dos direitos inscritos

45
também trava a luta para o respeito à identidade cultural. Luta que
deve ter vistas ao multiculturalismo emancipatório, à justiça
multicultural, aos direitos colectivos, às cidadanias plurais, no
dizer de Santos.
Defendendo a ideia de que cidadania deve ocorrer no marco da
emancipação e não da regulação que numa sociedade liberal está
presente a tensão entre a subjectividade individual dos agentes na
sociedade civil e a subjectividade monumental do Estado, onde,
o mecanismo que vem a regular essa tensão é o princípio da
cidadania, de um lado, limitando as funções do Estado e por outro
lado, tornando universais e iguais as particularidades dos sujeitos,
de forma a realizar a regulação social.

A cidadania, resumida em direitos e deveres, desenvolve a


subjectividade, multiplicando as possibilidades de auto
realização, porém, feitas através de direitos e deveres gerais e
abstractos, tornam a reduzir a:
“Individualidade ao que nela é universal, transforma os sujeitos
em unidades iguais e intercambiáveis no interior das
administrações burocráticas públicas e privadas receptáculos de
estratégias de produção, enquanto força de trabalho; de consumo,
enquanto consumidores; e de dominação, enquanto cidadãos da
democracia de massas.” Surge daí a tensão entre a igualdade da
cidadania (reguladora) e diferença da subjectividade, que no
marco da regulação liberal não percebe as diferenças da
sociedade, seja no tocante a propriedade, ou a raça ou ao sexo.

Consequentemente surge a necessidade da cidadania


emancipatória para reconhecer e respeitar as diferenças, as

46
múltiplas culturas, as várias expressões de uma sociedade, o que,
para uma teoria política liberal, ocorre a necessidade da
redefinição de cidadania, estabelecida com base em noções
inclusivas, onde há o respeito às diferentes concepções
alternativas da dignidade da pessoa humana e o reconhecimento
da pluralidade de culturas.

Destacam a diferença entre a cultura num enfoque universal e a


pluralidade de culturas. Sob o foco universal, a cultura seria, para
os Autores, “o repositório do que de melhor foi pensado e
produzido pela humanidade”, baseando-se em “critérios de valor
estéticos, morais ou cognitivos, que definindo-se a si próprios
como universais, elidem a diferença cultural ou a especificidade
histórica dos objectos que classificam”. Em uma concepção
coexistente os autores citam o reconhecimento da “pluralidade de
culturas, definindo-as como totalidades complexas que se
confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de
vida baseados em condições materiais e simbólicas”.
“A defesa da diferença cultural, da identidade colectiva, da
autonomia ou da autodeterminação podem, assim, assumir a
forma de luta pela igualdade de acesso a direitos e recursos, pelo
reconhecimento e exercício efectivo de direitos da
cidadania ou pela exigência de justiça.”
Ou seja, para “nova cidadania” consubstancia-se tanto na
obrigação vertical entre os cidadãos e o Estado e também na
obrigação política horizontal entre cidadãos. E mais, a “nova
cidadania” revaloriza os princípios da comunidade, igualdade,
solidariedade e autonomia e assim, entre o Estado e o mercado,
surge um campo que não é estatal nem mercantil, mas apto a lutar
e exigir do Estado as prestações sociais, reivindicando uma
cidadania social, que segue os caminhos da emancipação,

47
campo este composto pelos movimentos sociais e organizações
sociais que compõem a esfera pública de interesses colectivos.

Uma visão clássica de cidadania muitas vezes ainda não passa do


direito de votar (de forma obrigatória), de pagar imposto, de
respeitar a lei, enfim, sempre práticas impostas. Ainda existem
muitas barreiras culturais para que o país possa dizer-se
plenamente imbuído na efectivação das questões da cidadania,
por que:
“Construir cidadania é também construir novas relações e
consciências. A cidadania é algo que não se aprende com os
livros, mas com a convivência, na vida social e pública. É no
convívio do dia-a-dia que exercitamos a nossa cidadania, através
das relações que estabelecemos com os outros, com a coisa
pública e o próprio meio ambiente. A cidadania deve ser
perpassada por temáticas como a solidariedade, a democracia, os
direitos humanos, a ecologia, a ética.” Apontam que a concepção
moderna de cidadania está vinculada à noção de direitos
humanos, e assim fala-se em “direitos de cidadania”, e, num
Estado Democrático de Direito deve predominar o interesse em
concretizar os direitos humanos, cujo discurso “...surge
estreitamente ligado aos problemas da democracia e da paz”:
“Direitos do homem, democracia e paz são três momentos
necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do
homem reconhecidos e protegidos, não há democracia, sem
democracia não existem condições mínimas para a solução
pacífica dos conflitos.” (BOBBIO 1992).
Aqui reside outra questão que influencia na modelação da
cidadania, enquanto analisada no âmbito internacional, alguns
países do Primeiro Mundo concebem a “ideia de Direitos

48
Humanos apenas para consumo interno”, ou seja, internamente os
Direitos Humanos são reconhecidos, protegidos e respeitados;
externamente, nas relações com países dependentes, o
reconhecimento, a protecção e o respeito é para os interesses
económicos e militares, que podem perfeitamente justificar
violações de direitos humanos, ocorrendo neste caso uma
contradição.

O que se entende por direitos humanos também merece revisão que


saia do eixo ocidental e passe a reconhecer e integrar a
diversidade cultural de modo a permitir a reinvenção dos direitos
humanos como uma linguagem de emancipação. Contra um falto
universalismo baseado na definição dos direitos humanos como
eles são concebidos no Ocidente, como se essa fosse a única
definição possível desses direitos, o autor propõe o diálogo
intercultural entre diferentes concepções da dignidadehumana que
reconheça a incompletude de todas as culturas e a articulação da
tensão, entre as exigências do reconhecimento da diferença e da
afirmação da igualdade, entre direitos individuais e direitos
colectivos.”

Por fim, a regulação social e as lutas emancipatórias são


edificadas num Estado-Nação soberano, que, coexiste com outros
igualmente soberanos, aqui, a leitura dos direitos humanos,
concebidos num prisma local, é colocado sob tensão quando
pensados em termos de globalização.

Em alguns países da Europa, marcado por uma trajectória de lutas


pela democracia, projecta a concepção de um Estado Social
Democrático de Direito, balizado na Constituição da República,
no entanto, necessita efectivá-la, no sentido de fazer prevalecer

49
a cidadania democrática, a prevalência dos direitos humanos
(com fins emancipatórios).

Porém, frente às tensões dialécticas da modernidade,


identificadas para prevalecer as garantias da cidadania, dos
direitos humanos, do princípio da dignidade da pessoa humana,
com vistas a uma política de emancipação, independente dos
vínculos ou subordinações a outros Estados ou as lutas internas
de poder, deve programar políticas públicas necessárias para que
a prática dos direitos sociais possa ser a essência do próprio
conceito de Estado Democrático Social de Direito, e não apenas
prescrições estabelecidas num corpo legislativo.

Nesse diapasão, em especial, importa avaliar como a democracia


constitucional no mundo protege os direitos e garantias
fundamentais de seus jurisdicionados nas suas relações,
especialmente quando os jurisdicionados sejam sujeitos que
precisem ver reconhecidas e respeitadas as suas desigualdades
para assim ter efectivado a garantia da igualdade estabelecida
como princípio fundamental: as pessoas em peculiar condição de
desenvolvimento (crianças e adolescentes), os homossexuais, os
negros, as mulheres, pessoas com problema de pigmentação da
pele enfim, a diversidade e complexidade existentes numa
sociedade.

Cidadania, estabelecida em razão da relação social e tais relações


ocorrendo entre sujeitos sociais com interesses distintos que
postulam a possibilidade de serem diferentes, não pode ser
discutida sem que se tenha o resgate do significado desta
categoria, na perspectiva da convivência do homem e na

50
efectivação da garantia de seus direitos mesmo que desigual na
relação social, para que, possa igualmente participar.

O acesso aos direitos implica no reconhecimento do indivíduo,


em suas múltiplas facetas, sob a óptica do princípio da igualdade,
da justiça social, da dignidade da pessoa humana, não como
manifestação conceitual de um direito natural positivado, mas
sim, como princípio fundamental inserido na vida e na práxis
humana, ou seja, como materialização dos direitos conquistados.

Hoje se entende cidadania não por exclusão como no período da


sociedade antiga, mas por inclusão. E é pela participação integral
numa comunidade que a cidadania se estabelece como a relação
entre seus pares, com efectiva e integral participação, que implica
em direitos e deveres de uns para com outros, por isso, cidadania
faz parte de um processo que envolve a participação de vários
segmentos sociais de uma sociedade como membros integrais
desta. Membros que enfrentam um contexto de relações sociais
excludentes, e em especial na trajectória.

Cidadania é também o reconhecimento do multiculturalismo, em


bases inclusivas, com possibilidade de serem diferentes, e no
respeito pela diferença. Cidadania enquanto direito igual de ser
reconhecido como desigual, pois ao lado do direito à igualdade
também está o direito à diferença, e esses direitos devem ser
assimilados pelo indivíduo de forma a, como propõe Marshall,
importe num comportamento do indivíduo, no modo de vida que
brota de dentro de cada indivíduo e não de fora dele, ou seja, de
participação efectiva na sociedade.
A completar a concepção de cidadania, enquanto relações sociais,
entre pares, também impõem relação entre Estado e

51
Sociedade Civil numa perspectiva de democracia, enfrentando a
desigualdade e a exclusão, postos na produção da vida social, na
luta por direitos, para que essa cidadania se efective e não fique
apenas como prescrição de um Estado intitulado Estado Social
Democrático de Direito.

Unidade: 3.2: Cidadania e o Retorno das Autoridades Tradicionais


emMoçambique
A heterogeneidade cultural de Moçambique reflecte-se nas
diferentes formas de regulação social, traduzindo-se pela
presença de instâncias não oficiais de resolução de conflitos. Esta
unidade procura debater os desafios que Moçambique enfrenta na
construção de um sistema de justiça multicultural e democrático.
As experiências de justiças comunitárias revelam a criatividade e
a vitalidade das outras justiças e a sua decisão de defender a sua
justiça como projecto político. Ao mesmo tempo, a diversidade de
instâncias indicia as disputas e jogos de poder face a um Estado
que reconhece, até certa medida, a presença de outras jurisdições,
constituindo um complexo jogo de integridade. No seu conjunto,
este trabalho revela alguns dos paradoxos das reformas
multiculturais em curso, abrindo campo para uma discussão mais
ampla sobre as formas de cidadania, com ênfase na inclusão,
convivialidade e celebração, e também, da diferença.

Em Moçambique é crescente o interesse pelas autoridades


tradicionais e a sua relação com o Estado, uma situação que não é
única nem exclusiva, por se tratar de um tema central ao debate
político no continente africano. A questão que se coloca não é
sobre se existe ou não uma autoridade política determinada que
actua sobre agrupamentos étnicos, mas sobre

52
o espaço e a construção social deste, e suas futuras implicações.
No caso específico das autoridades tradicionais, e do seu papel na
administração e gestão local, importa compreender as
características desta forma de poder e problematizar se a mesma
constitui uma oposição tradicional ao poder moderno do Estado.
Neste tema a atenção centra-se, numa primeira fase, no percurso
de alguns conceitos em Moçambique; num segundo momento
procura-se analisar o impacto da implantação do Estado colonial
moderno sobre o complexo sociopolítico que se aglomera sob a
designação de autoridades tradicionais, para se procurar
interpretar, numa terceira parte, os dilemas e opções que se
colocaram ao Estado moçambicano após a independência, em
relação a estas autoridades, com ênfase na temática da resolução
de conflitos. Através dos múltiplos sentidos da categoria
tradicional, procura-se investigar como as fronteiras entre poderes
e instituições foram concebidas e continuamente redefinidas por
autoridades coloniais, antropólogos, chefes e elites locais,
procurando identificar, nos diferentes discursos sobre autoridade
e legitimidade, pontos de apoio e referência que têm alimentado e
justificado a diversidade de situações presentes nos nossos dias.

Este pensamento pretende contribuir para as discussões actuais


sobre a questão do poder e dos debates de cidadania, onde a
intrincada rede de processos de regulação social alerta para a
importância das múltiplas instâncias presentes, detentoras de
distintos percursos e densidades históricas, produzindo um
complexo relacionamento com as estruturas formais do Estado.
Olhando para o mosaico de instâncias de poder local presentes e
privilegiando, como espaço de análise, o contexto urbano, esta
unidade discute vários momentos de invenção da autoridade
tradicional. Ou seja, sugere que é difícil, senão mesmo

53
impossível, assumir a autoridade tradicional como uma estrutura
única e homogénea, ao mesmo tempo que chama a atenção para
os impactos que decorrem do facto de se ignorar a presença destas
autoridades.

Nas últimas décadas, a ideia de povos indígenas e autoridades


tradicionais ganhou nova projecção, com dimensões globais. Em
contextos africanos, as concepções de poder tradicional
associadas à noção de legitimidade endógena, apesar de à
superfície sugerirem o retorno ao local são, de facto, discursos
sobre o acesso ao global; ou seja, uma rede de histórias esituações
contextuais que, articuladas em rede, sugerem uma perspectiva
cosmopolita alternativa sobre o mundo (SIMONE, 2001);
MBEMBE, 2002).

Em Moçambique, vários dos estudos sobre as autoridades


tradicionais têm privilegiado, como espaço de análise, contextos
rurais. A justificação para este enfoque parece derivar da
suposição de que quanto mais remota a área de estudo, menos
“contaminadas” e mais autênticas são as formas de poder local
presentes. Esta posição apoia-se na dicotomia moderno -
tradicional, uma das variáveis dicotómicas estruturantes do
Estado contemporâneo, traduzindo-se a geografia da diferença
política numa separação territorial, onde o tradicional surge
associado a contextos rurais como espaços de persistência de
estruturas de poder pré-coloniais. Todavia, nenhuma tradição
pode considerar-se a imagem exacta de uma prática anterior, pois
as tradições são criadas e recriadas pelos próprios processos
históricos. A legitimidade da autoridade tradicional é garantida
por aqueles que governam segundo normas que não as do Estado
moderno; esta última autoridade moderna, racional é definida
como aquela que actua em função das

54
estruturas socialmente sancionadas. Ou seja, como Boaventura de
Sousa Santos (2003) aponta, as representações sociais de tempos
e origens referentes à dicotomia tradicional - moderno são difíceis
de identificar. Qualquer opção reflecte, necessariamente, uma
determinada escolha, introduzindo elementos de distorção na
análise. Consoante as diferenças de poder entre os grupos sociais
que sustentam cada um dos pólos de dicotomia, tanto pode ser o
poder tradicional uma criação do moderno, uma criação do
tradicional.

Esta análise inicia-se com o período colonial, que corresponde a


um momento de distorções graves através do exercício do poder.
Ao não considerar iguais e ao relegar para um lugar de
inferioridade outros sistemas de conhecimento, a administração
colonial moderna em Moçambique impôs gradualmente uma
visão singular da história, onde a ciência e a burocracia modernas
passaram a ter um carácter exclusivo para explicar e organizar o
mundo.
Esta intervenção colonial trouxe consigo novos conflitos que
marcaram a relação entre diferentes experiências, saberes e
culturas. O pensamento moderno ocidental, dicotómico e
hierárquico, estabeleceu uma fractura abissal que dividiu o
mundo em duas partes: o espaço deste lado e o espaço do lado de
lá da linha. Esta divisão assumia que as realidades que ocorriam
no mundo colonial não comportavam as normas, os
conhecimentos que se usavam no “velho mundo”. Criou-se assim
um princípio universal onde os saberes das colónias não possuíam
utilidade alguma. Mais ainda, a zona colonial transformou-se
num saber local, na metonímia das autoridades tradicionais. As
autoridades políticas africanas, cartografadas como um conjunto
homogéneo, foram negligenciadas pelo

55
direito formal, passando as diferentes formas de regulação social
que existiam para além do direito oficial e colonial a ser descritas
como justiça tradicional, exilada do sistema oficial de justiça.

As dinâmicas sociais constitutivas do complexo sistema do


chamado direito tradicional geram-se numa imbricação de
aspectos epistemológicos, culturais, sociais, políticos, nacionais,
transnacionais e experienciais, que forçam a uma análise capaz
de articular as diferentes escalas em acção.

As sociedades africanas contemporâneas assentam sobre regimes


de desenvolvimento construídos durante os vários regimes
coloniais. Alguns destes novos regimes herdaram a propensão
colonial para exercer o poder a partir de uma prática económica e
administrativa extremamente unificadora. Em nome da unidade
nacional, estes governos procuraram transformar a presença dos
múltiplos regimes culturais numa sequência histórica de eventos
e políticas, constitutivos da região. Em contextos como os de
Moçambique, onde o Estado actual é, na sua essência um sistema
heterogéneo de conhecimentos e processos normativos, importa
estudar o desenho das instituições presentes para melhor intervir
socialmente.

A partir da avaliação das rupturas e continuidades entre o Estado


colonial e o Estado moçambicano independente, é importante
compreender as dinâmicas sociais e políticas, propondo uma
perspectiva mais complexa em relação ao sentido do pós-
colonial. Questionando a diferenciação entre o colonial e o pós-
colonial, “a África colonial é muito mais parecida com a África

56
pós-colonial do que qualquer um de nós imagina. E as suas
dinâmicas continuam a moldar a sociedade pós-colonial” (1996).
As relações entre a autoridade colonial e as outras fontes de poder
político, não sendo simétricas, porque marcadas por uma relação
de poder desigual, apontam, de facto, para a presença de diálogos,
mútuas interferências e apropriações, que marcam e estruturam a
especificidade do Moçambique contemporâneo.

Este ponto é extremamente importante, pois o estudo da


multiplicidade de instâncias de poder hoje presentes no tecido
social de Maputo, a exemplo de outros espaços urbanos no país
que aponta para o facto de o colonialismo ter interferido nas
culturas políticas presentes, contribuindo para novas formas
híbridas, para outros contactos e misturas entre culturas políticas.
As múltiplas mutações políticas que Moçambique conheceu ao
longo do último século, o colonialismo, socialismo, neo-
liberalismo, reflectem-se na actual actuação político-
administrativa e reguladora do Estado. A heterogeneidade do
Estado moçambicano, como decorre da actuação de diferentes
formas de regulação social, traduzindo-se numa situação de
pluralismo jurídico.

Os conceitos que atravessam este artigo, tradição, etnicidade,


colonialismo, Estado moderno, obrigam a uma crítica histórica,
para contextualizar os contornos que adquiriram em
Moçambique. Uma leitura atenta das relações existentes entre as
distintas forças e actores envolvidos no campo da gestão local,
numa perspectiva histórica ampla, acentua a necessidade de uma
análise mais sofisticada da questão das autoridades tradicionais,
como um aspecto específico da violenta intervenção da cultura
política colonial, onde a definição e a localização da autoridade
assumem a forma de instrumentos de

57
controlo político. O desdobrar das múltiplas formas sobre as
quais as culturas políticas contemporâneas se têm forjado (querno
período colonial, quer após a independência) deverá ser analisado
de modo a reconhecer quais as funções do Estado colonial que
permanecem no Moçambique actual.

A análise dos discursos e práticas coloniais permite detectar a


ambivalência das dicotomias, como entre o tradicional e o
moderno, entre o eu e o outro, entre o indígena e o colono. A
tendência marcante do período colonial procurou construir uma
estrutura administrativa que justificasse ideologicamente a
intervenção colonial em Moçambique. Se a cidade de Lourenço
Marques era apresentada, nos álbuns como “um canto da Europa
na África do Sul”, este desejo de ser “uma cidade de África que
procura não sentir a África” revela uma cidade contendo várias
divisões, a velha África, a Europa importada, assim como
extensas zonas de diferentes contactos culturais, onde se
incluíam, para além das culturas autóctones, a presença histórica
de comunidades muçulmanas, chinesas, etc. (SANTOS e
MENESES, 2006).

A criação desta figura sociopolítica assentou em trabalhos de


cariz etnográfico, que privilegiavam. Em Moçambique é de
referir, por exemplo, a presença, nos dias de hoje, de autoridades
tradicionais, por exemplo, para o caso do direito costumeiro
africano, são inúmeros os estudos que apontam como a
construção relativamente recente da noção de autoridade
tradicional simbolizou o nascimento do lado africanoda sociedade
face à presença europeia colonizadora, um facto usado para
legitimar e reforçar a necessidade da presença do poder estatal
colonial como forma superior de organização social (SCOTT,
1998).

58
A etnicidade, o direito tradicional e as autoridades tradicionais
representam, de facto, a extinção dos elementos pré-coloniais
intactos africanos. Num contexto de intervenção colonial mais
forte, como é o caso dos espaços urbanos, deveriam ter deixado de
existir ou deveriam transformar-se apenas em elementos em vias
de absorção pelas normas da modernidade. Reconhecendo as
diferenças de poder entre o colonizador e o colonizado, qualquer
análise das dinâmicas dos encontros entre ambos detecta linhas
de influência e de interacção, ou seja, o aparecimento de novos
momentos culturais. Procurando ultrapassar o esquema simplista
das categorias binárias, Cooper (1996) apela a uma leitura
complexa deste encontro colonial, do qual resultou uma vasta
zona de contacto, um espaço de inteligibilidade e interacção entre
colonizadores e colonizados, repleto de momentos de resistência
e de adaptação às intervenções coloniais, dando azo à emergência
de ‘novas’ formas de autoridade e representação.

A noção de nacionalidade, que emerge no panorama europeu em


meados do século XIX, possuía já, meio século volvido, uma
forte estabilidade conceptual. O seu sentido era, já nessa altura,
fortemente determinado pelo direito internacional privado, que
definia a ligação jurídica que une o indivíduo ao Estado. A
questão central que então se colocava aos juristas e parlamentares
era a de determinar os critérios que tornavam possível definir esta
ligação; a partir daqui era possível definir o conjunto de nacionais
sujeitos à soberania do Estado, transformando-se o direito num
elemento de qualificação social dos indivíduos (MAMDANI,
1996).

59
No caso português, a implantação de um sistema colonial
moderno, em finais do século XIX, significou uma mudança
radical da situação jurídica da maioria dos habitantes dos espaços
coloniais ultramarinos africanos, assente na radicalização da
cidadania. A partir de então assistiu-se a uma dissociação entre o
indígena (dotado de identidade étnica, e portanto garantindo
apenas direitos privados, específicos de um dado grupo) e o
cidadão (privilégio dos civilizados, garantido pelo direito público
colonial). Uma análise da separação racionalizada entre cidadão e
indígena é central para compreender a constituição das categorias
coloniais através de um regime muito preciso de direitos e de
obrigações.

No ainda no caso português, a exigência da sua transformação em


potência colonial moderna surgiu intimamente associada à força
de intervenção de um conhecimento dotado de autoridade legal,
e por isso assumido como superior. Esta ideologia rapidamente
se insinuou, garantindo-se a percepção de que tudo devia ser
julgado e validado de acordo com os cânones emanados de
Portugal continental. A transformação do indígena em civilizado
exigia que este passasse a pensar a partir das ideias da sociedade
colonial, usando as referências da metrópole, evitando-se
qualquer questionamento reflexivo sobre o carácter ambíguo da
relação colonial. Tal atitude implicava categorizar a
heterogeneidade, o que deu origem a vários tipos de classificação
étnica dos colonizados. Estes gruposétnicos, que vão proliferando
pelo mapa social de Moçambique, passavam a ser administrados
localmente por entidades reconhecidas pelo Estado colonial
como representantes legítimos dessas populações: as autoridades
gentílicas ou tradicionais. O processo de criação destas
autoridades tradicionais é parte da consagração da separação
entre cidadão

60
e súbdito indígena (nativo, nacional) das colónias. Apesar da
pouca produção académica incidindo sobre a formatação do
sistema colonial português na viragem para o século XX, este
período é matricial para compreender o surgimento de umsistema
de administração indirecta dos indígenas, à imagem do que
acontecia nas colónias vizinhas de Moçambique.

Com a promulgação da Lei do Trabalho portuguesa, em 1899, a


população que vivia nas colónias foi formalmente dividida em
duas classes: a dos indígenas, e a dos não-indígenas ou
civilizados. Os não-indígenas possuíam os direitos de cidadania
vigentes em Portugal e viviam segundo a lei da metrópole; os
indígenas viviam sob as leis locais e sujeitos aos procedimentos
legais próprios de cada colónia (PENVENNE, 1995; MENESES,
2007). A associação de uma lei que regulamentava o acesso ao
trabalho com um critério identitário prendia-se com o facto de a
essência colonial postular a obrigatoriedade do trabalho como
veículo de progresso. A identidade de origem actuava como
metáfora estruturadora do espaço colonial, espaço que integrava,
do ponto de vista jurídico, duas realidades distintas, a dos
colonizadores e a dos indígenas colonizados. O essencialismo das
categorias implantava-se de ambos os lados do espelho. O não
indígena original detinha, teoricamente, todos os privilégios de
cidadania portuguesa; não tinha de solicitar o ingresso no estatuto
de cidadão; nascia cidadão pela força de ser descendente de
colonos.

A instrumentalização do conceito de indígena como elemento


central da política colonial em Moçambique está patente nas
propostas avançadas por Eduardo da Costa, em torno da
organização administrativa das colónias portuguesas.

61
Denunciando o assimila ionismo ingénuo que grassava na época
liberal, este político defendia abertamente a separação de direitos
entre indígenas africanos e cidadãos portugueses:

Na terrível mania assimiladora, no nosso prurido de liberdade e


igualdade civil e política para todos os habitantes sobre os quais
ondeia a bandeira portuguesa, temos ido estendendo,
sucessivamente e sem descanso, as instituições democráticas do
nosso regime político aos sítios mais longínquos das nossas
colónias. Perdendo de vista o fim humanitário e justo dessas
instituições, e guiando-se apenas pela aparência exterior, pela
letra enganosa da sua escrita, têm-se convencido os nossos
legisladores para o ultramar que aplicando a mesma lei a todos os
habitantes de uma colónia se obtinha a desejada igualdade deles
todos perante essa lei.

(EDUARDO DA COSTA 1901). Num espírito muito


característico da época, advogava a necessidade de reconhecer as
diferenças culturais existentes, diferenças que subentendiam um
tratamento desigual no momento de produzir o estatuto legal dos
que habitavam os territórios coloniais ultramarinos. Defendendo
uma perspectiva teleológica do desenvolvimento social, o
pensamento deste político era típico de uma época em que se
entendia a diversidade humana como um reflexo dos diferentes
níveis de civilização alcançados pelas populações. As
interrogações colocadas sobre os sentidos da realidade
multicultural presente no espaço colonial são reflexas de um
sentido anacrónico do tempo, quando a diferença geográfica se
traduzia em sinónimo de retardamento, justificando-se aurgência
da introdução de diferentes estatutos que nomeavam os europeus
como grupo não apenas separado dos indígenas, mas superior a
estes:

62
Pois homens de usos muito diferentes, de instintos muitas vezes
antagónicos, de civilizações muito diversas, podem considerar de
igual modo a lei, que a todos se aplica indistintamente? O que ela
tem, para uns de bem, de moral e de justo, encerra para os outros
de injusto, de imoral e de nocivo, e a igualdade da lei produz a
maior desigualdade possível de condições, perante ela. Por
enquanto, é preciso, nas nossas possessões, a existência de, pelo
menos, dois estatutos civis e políticos: um europeu e outro
indígena. Não quer isto dizer que seja interdito a todos os
indígenas o estatuto europeu, mas isso depende da sua instrução
e dos seus hábitos.

Com a implantação da República em Portugal, o sistema


legislativo ampliou o sistema hierárquico social assente nas
diferenças rácicas, fomentando-se formalmente, a partir de então,
a criação de uma identidade restrita e profundamente
hierarquizada, onde a diversidade cultural era identificada com
um profundo atraso social. Os discursos e as práticas legislativas
coloniais fixaram quem era indígena ou não - indígena, condição
jurídica a que todos tinham de se submeter. Por exemplo, a Lei
Orgânica da Administração Civil das Colónias.

Sempre que nos usos e tradições da raça, tribos ou outros


agrupamentos indígenas subsista a noção ou a prática de
instituições próprias, embora rudimentares, tendentes a deliberar
em comum ou a fazer intervir por outra maneira, a opinião e a
vontade de maioria dos indígenas no governo do agrupamento ou
na administração dos seus interesses colectivos, procurar-se-á
manter e aperfeiçoar tais instituições, orientando-as
gradualmente, a bem do desenvolvimento do território e da
administração geral da colónia.

63
O poder destas autoridades próprias exigia uma clara separação de
direitos entre indígenas (súbditos) e cidadãos (colonizadores). A
identidade de cada um estava fixada nos documentos oficiais,
verdadeiros curricula vitae dos seus detentores: a caderneta
indígena para os negros, naturalizando- o pela sua pertença ao
mapa étnico de Moçambique; para os não - indígenas, o
passaporte ou qualquer outro documento de cidadão, contendo
informações sobre o seu espaço de origem natural de
Moçambique (equivalente a branco de segunda para os nascidos
em Moçambique ou noutros espaços coloniais) ou europeus para
o caso dos portugueses da metrópole.

O Estado Novo veio consolidar as políticas de segregação. No


espaço colonial, a sua implantação inaugura-se com a
promulgação da primeira versão do Estatuto do Indigenato, que
defendia, sem compromissos, a inferioridade jurídica do indígena
(por isso mesmo passível de ser submetido a um regime
disciplinar e repressivo específico) e consagrava o seu estatuto de
não - cidadão. O preâmbulo do Estatuto determinava, de
imediato, os tempos dos direitos, ao estipular que não se atribuem
aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos
relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não
submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, às nossas
leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis,
comerciais e penais, à nossa organização judiciária. Mantemos
para eles uma ordem jurídica própria do estado das suas
faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus
sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando
por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do
seu nível de existência.

64
As várias versões que este estatuto conheceria, até ser abolido em
1961, insistiram sempre na definição, de modo radical, da ideia
de indígena, a quem eram aplicados os “costumes privados das
respectivas sociedades”. Neste sentido, estes estatutos vão insistir
repetidamente na definição legal do indígena, “os indivíduos de
raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo
habitualmente nas colónias, não possuíssem ainda a ilustração e os
hábitos individuais e sociais pressupostospara a integral aplicação
do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. Os
indígenas regiam-se “pelos usos e costumes próprios das
respectivas sociedades”, sendo “a contemporização com os usos
e costumes limitada pela moral, pelos ditames da humanidade e
pelos interesses superiores do livre exercício da soberania
portuguesa”.

Os assimilados, uma terceira categoria presente no espaço


colonial, encontram também expressão nestes estatutos, que
estipulavam em detalhe as condições de acesso à cidadania
portuguesa. Nos termos do Estatuto de 1929, os assimilados eram
os antigos indígenas que haviam adquirido a cidadania
portuguesa, após provarem satisfazer cumulativamente os
requisitos culturais que marcavam um corte radical com a sua
identidade étnica recente: falar correctamente a língua
portuguesa; ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e
os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público
e privado dos cidadãos portugueses, de entre outros.

O direito português actuava no espaço restrito dos colonos


cidadãos. Aos tribunais formais, à administração estatal acediam
os não - indígenas, para resolver os seus problemas, ou os
indígenas, sempre que tivessem conflitos que afectassem a

65
condição do colono. Esta distinção era simples de explicar.
“Quanto ao direito privado indígena, não advém ao Estado
colonizador vantagem alguma, da sua substituição pelo direito
europeu, em geral absolutamente inadaptável às instituições
indígenas da família, da propriedade, do regímen de sucessões,
etc., que tanto convém conservar”. Para este autor, o controlo
sobre justiça penal pelo poder colonial justificava-se por ser
“forçoso que os europeus sejam os únicos a castigar, para
mostrarem que são também os únicos a poder mandar”.

Fig. 4-Salazar e Neutralidade Portuguesa

Fonte: Meneses (2003)

Em 1933, com a promulgação da Carta Orgânica do Império


Colonial, institui-se a protecção dos indígenas como um dever,
não só das autoridades administrativas coloniais, mas também,
uma vez mais e em reforço do estipulado nas disposições
anteriores, dos colonos que, em conjunto, “deveriam velar pela
conservação e desenvolvimento das populações”. Os dois
princípios em destaque, conservação e desenvolvimento,
aparentemente contraditórios, neste contexto específico
traduziam a consagração da perenidade de um estado de
civilização enquadrado num modelo de desenvolvimento
colonial. Estes procedimentos legais simbolizavam o artefacto

66
do poder de Portugal para criar a categoria do indígena,
consagrando legalmente a ruptura entre cidadãos e indígenas,
servidos por sistemas normativos distintos. É este pressuposto
político colonial que suscita o que Boaventura de Sousa Santos
(2007) identifica como sendo a característica estruturante do
pensamento abissal, “a impossibilidade da co-presença dos dois
lados da linha.” Ou seja, os sistemas de regulação social presentes
entre os indígenas em Moçambique penderam a uma localização
geopolítica periférica, conducente a processos de negligência
política e científica, desanexando os conflitos e as instâncias que
os mediavam.

No seguimento das políticas coloniais implementadas nos


territórios portugueses em África, o saber moderno judicial
colonial constituiu-se como um dos principais vectores desta
intervenção, ao reorganizar o espaço da África portuguesa como
anterior ao saber moderno, e portanto, inferior no tempo e nos
saberes que continha. O estádio seguinte deste raciocínio veio
legitimar, de forma óbvia, o estatuto de atraso das estruturas e
formas de organização política destes povos, justificando o
mérito das missões da colonização pela necessidade de
constituição de novos espaços de ordenação política, através da
implantação de uma administração colonial moderna. Mas, se a
primazia do direito ocidental, vector de composição da hierarquia
social colonial, separava os habitantes em cidadãos e indígenas,
tornava-se necessário garantir a presença de corpos legais a quem
estava conferida a tarefa de gerir, na esfera privada, os conflitos
entre indígenas. Neste sentido, e num segundo momento (e a
partir de outras experiências coloniais) Portugal introduziu o
sistema de administração indirecta (indirect rule), onde a figura
da autoridade tradicional surgiu como central. O facto de muitos
destes representantes das

67
autoridades terem sido recrutados de entre as famílias dirigentes
locais permitiu gerir as populações destas regiões ao mesmo
tempo que se garantia a presença de figuras de poder dotadas de
legitimidade local. Doravante, assistir-se-ia paulatinamente ao
cotejo entre as formas modernas de exercer o poder, assumidas
pela essência do Estado colonial, e as formas locais de
administração, agora designadas autoridades gentílicas ou
tradicionais. A figura da autoridade tradicional, simbolizada no
régulo, era hereditária e a sua legitimidade frequentemente
assente numa ligação, nem sempre real, às linhagens pré-
coloniais locais Gonçalves Cota, (1944). Todavia, sempre que os
líderes locais se opuseram, de uma ou de outra forma, às
autoridades coloniais, foram substituídos por personagens mais
cordatas (Meneses 2003, Meneses, 2006).

Em paralelo, outros títulos locais, muitas vezes com conotações


religiosas, continuaram a existir, embora a sua importância
política fosse diminuindo sempre que não se encontrasse
articulada com o regulado.

O sistema de administração indirecta adquiriu forma legal na


gestão colonial de Moçambique com a Reforma Administrativa
Ultramarina de 1929. No contexto desta legislação, o Estado
colonial reconhecia apenas um único régulo para cada uma das
unidades territoriais tradicionais em que cada circunscrição
estava subdividida. Os régulos passaram a ser parte do sistema
colonial, no sentido em que controlavam a cobrança de impostos
aos indígenas, asseguravam o recrutamento de força de trabalho,
assim como resolviam os milandos que afectavam as populações
que tutelavam. O monopólio de poder concedido ao régulo pela
administração portuguesa era uma realidade nova em
Moçambique, onde até então a autoridade política e

68
administrativa se caracterizava pela existência de
complementaridade entre os vários chefes de uma dada região,
nas suas várias formas e hierarquias.

Neste novo sistema administrativo, o Governo colonial criaria


incentivos e insígnias que serviram de estímulo ao
empenhamento de alguns régulos. Em paralelo à ausência de
perícia legítima por parte da administração colonial, fruto do
estudo e conhecimento das populações sob seu governo, as
autoridades tradicionais, neste sistema de administração dualista,
viam a sua legitimidade reforçada pelo recurso crescente, por
parte das próprias populações colonizadas, às instâncias
disponíveis localmente, para a mediação dos seus litígios e outros
aspectos de gestão local Meneses, (2007). Constantemente
renovado, o sentido de autoridade tradicional local foi adquirindo
novos contornos, a que quer a administração colonial, quer a
população local recorriam.

Gradualmente, estes títulos tradicionais foram perdendo parte do


seu conteúdo, e os régulos e seus adjuntos foram sendo
percebidos como parte efectiva do Estado colonial. Porém, e
apesar desta colagem à administração colonial, a duplicidade do
papel dos régulos não deve ser menosprezada.
Aproveitando-se da sua posição privilegiada, estes impuseram
programas de melhoria das condições de vida das suas
populações. Noutras situações, a decisão tomada foi a de
confronto directo com o sistema colonial, ou a fuga para países
vizinhos (BONATE, 2007).

Esta breve afirmação confirma a ideia avançada por vários


investigadores em relação a outros contextos africanos, de que

69
a implantação do Estado moderno em África teria sidoimpossível
sem a presença destas autoridades. Esta forma de administração
pública indirecta marcará profundamente o espaço de
relacionamento afirmado pela imposição da relação colonial.
Actores políticos complexos, as instituições do poder tradicional,
apesar de castigadas pelo Estado colonial, actuaram
simultaneamente como um importante factor de coesão e de
construção identitária.

Em termos de política do Estado colonial, o sistema implantado


em Moçambique garantia a existência de um sistema legal
moderno, oficial, para os cidadãos, para os colonos e
assimilados). Estes últimos eram detentores de um registo de
nascimento e de um bilhete de identidade, podiam registar a posse
de bens em seu nome (por exemplo: terra e outros bens imóveis),
e recorrer aos tribunais judiciais para a resolução de conflitos. Ou
seja, eram defendidos e protegidos pelo Estado colonial. A
identidade civil constituía a identidade do cidadão, do civilizado,
único a deter direitos civis e políticos. Para os indígenas, o
sistema de identidade social tornava o local de nascimento ou a
associação à linhagem de um determinado grupo o mais
fundamental dos direitos. Os seus interesses eram colectivos,
sendo defendidos pelo representante de cada grupo, a autoridade
tradicional, através do direito tradicional. Porque a identidade
indígena era definida pelas ligações ancestrais a uma região, esta,
por seu turno, era definida com base em critérios etno-culturais.
Como resultado, estas autoridades locais, tradicionais, falavam a
linguagem da cultura e não a dos direitos, exclusiva dos cidadãos.
Em suma, o direito moderno regulava as relações entre os não-
indígenas, bem como as relações entre os não-indígenas e os
indígenas. Neste contexto, a desigualdade política emergia em
paralelo com a desigualdade civil, estando

70
ambas assentes no pluralismo legal instituído pela administração
colonial: a lei colonial ou estatal e o direito costumeiros.

O duplo estatuto jurídico presente nas colónias, o dos indígenas e


o dos cidadãos de pleno direito, é revogado em 1961, como
reacção ao eclodir das guerras nacionalistas em Angola, na
Guiné-Bissau e em Moçambique. De forma astuciosa, o decreto
que aboliu o Estatuto justificava a longa presença do sistema de
dupla legalidade política, o cidadão e o súbdito, como um espaço
de exaltação multicultural, expressa pelas pluralidades
normativas dos povos que compunham o espaço do império.

Foi a tradição portuguesa de reconhecer culturas e instituições


políticas tradicionais, de estender a todos os homens as garantias
efectivas, e não aquelas que seriam inúteis na diversidade dos
esquemas políticos, que fez das garantias fundamentais a
expressão da dignidade de todos, e das garantias instrumentais,
estas adaptadas em função de um pluralismo cultural, um sistema
diversificado conforme a estrutura de cada sociedade tradicional.

Com esta reforma, legalmente, todos os habitantes do espaço do


império português passaram a ser considerados cidadãos de uma
sociedade multirracial, fruto da “sábia e oportuna conjugação do
respeito pelos usos e costumes locais e vincado propósito da
assimilação”. Todavia, os preconceitos gerados continuaram a
influenciar de forma determinante as políticas coloniais,
reafirmando a desigualdade entre colonos e colonizados,
conforme os trechos de vários decretos e leis deixam ainda
descortinar.

71
Esta breve questão permite descobrir as ambiguidades e
complexidades associadas à introdução da noção de tradição, a
qual permanece central para a compreensão das dinâmicas sociais
e políticas contemporâneas. Especificamente, a figura das
autoridades tradicionais assume um papel de destaque, pois que
longe de se resumir à figura do régulo, constitui um pólo de
constituição identitária, em torno do qual se articulam vários
actores e se discutem formas de legitimação e produção de poder.
Como num jogo de espelhos, a tradição, longe de ser um produto
apenas da intervenção colonial, foi continuamente interpretada,
reformada e reconstruída quer pelos súbditos, quer pelos
cidadãos.

Unidade 3.2.1: Actores no tecido político em Moçambique

Moçambique conheceu, desde a independência, processos


políticos complexos, que resultaram em mudanças significativas,
incluindo a temática das autoridades tradicionais. Estas várias
transformações políticas contribuíram para a mutação e
complexificação das arenas políticas existentes.

Fig.5-Samora Moisés Machel, um militar moçambicano, líder


revolucionário de inspiração socialista.

72
Fonte: Meneses (2003)

A análise histórica levada a cabo permitiu detectar múltiplas


noções do sentido de autoridade tradicional presentes no quadro
político moçambicano. Todavia, um elemento comum a estas
definições é o facto de estas autoridades manterem
persistentemente um perfil importante na administração local,
especialmente na mediação de conflitos e problemas do
quotidiano. O detentor do título de autoridade tradicional é
normalmente apresentado como sendo aquele que coordena as
actividades do grupo, gerindo as opiniões e procurando consensos
entre o grupo dos seus conselheiros. A persistência destas
autoridades e a sua notoriedade política são explicadas pela
popularidade que a sua intervenção política lhes granjeia nas
áreas sob sua influência.

Um dos maiores desafios que se coloca às modernas sociedades


democráticas é o da incorporação da diferença identitária e
cultural nos preceitos legislativos, para que a constituição reflicta
e afirme, de facto, as identidades e processos normativos de todos
os cidadãos. Em Moçambique, o novo contexto político gerado
pela emancipação política exigia uma nova atitude em relação ao
sentido de cidadania. Era imperativo

73
ultrapassar a categorização hierárquica da diferença, herança da
colonização, ou seja, a ideia de que existem cidadãos de primeirae
segunda classe. Todavia, apesar das mudanças políticas
significativas, no sentido do reconhecimento da realidade
multicultural, que foram tendo lugar em vários países africanos, a
experiência moçambicana merece uma análise mais cuidada. Se
o período colonial foi caracterizado, para a maioria dos
moçambicanos, pela construção de uma referência cidadã assente
na pertença étnica (ou seja, uma pertença identitária colectiva), o
projecto político dominante no país agora independente,
defendido pela Frelimo, exigia a igualdade jurídica de todos os
cidadãos, independentemente (e primordialmente sem relação)
das suas raízes étnicas. “Matar a tribo para construir a nação”,
uma das frases de ordem mais empregue no período
revolucionário, reflectia este objectivo, ou seja, a emergência de
uma identidade nacional desenraizada do passado étnico. Mas a
luta nacionalista tinha sido, também, uma luta cultural, uma luta
pelo reconhecimento do mosaico social que Moçambique
representava, e marcou por isso de forma determinante o debate
sobre a legitimidade das autoridades tradicionais como forma de
representação política no novo contexto gerado pela
independência. O corolário deste debate, a confirmação
constitucional da presença política destas autoridades,
aconteceria apenas em 2004. A tentativa de construção de novas
formas de poder local, longe de substituir as estruturas que
provinham da época colonial, gerou novas instâncias e actores
que, gradualmente, se foram tradicionalizando e aumentando a
heterogeneidade das estruturas políticas a nível local. Procurar
decifrar os sentidos que atravessam a luta pela afirmação da
diversidade na igualdade em Moçambique é objectivo desta
última parte do texto.

74
Unidade 3.2.2: Ampliando os Espaços de uma rede de Justiça
As práticas como o recurso a médicos tradicionais, as cerimónias
de pedido de chuvas e os rituais em Moçambique, a
independência significaram a ruptura com o passado colonial,
incluindo a interferência no campo das práticas de poder. O
escangalhamento do Estado, a criação do Homem novo e a
destruição das ideias tradicionais e práticas obscurantistas foram
alguns dos princípios filosóficos que nortearam a urgência destas
mudanças, incluindo a construção de uma alternativa baseada no
poder popular. A abolição dos sistemas tradicionais de
administração local, considerados pela Frelimo como sendo uma
estrutura feudal incompatível com o poder popular então
instaurado no país, foi uma das peças centrais da política de
administração no país, até ao final do período de violentos
conflitos armados que Moçambique atravessou (inícios da década
de 1990). Não é surpresa que um documento do Conselho de
Ministros, de 1975, afirmasse que a “destruição das estruturas do
passado não é uma tarefa secundária, nem um luxo ideológico. É
uma condição para o triunfo da Revolução”.

Fig.6-Cerimónias de pedido de chuvas


Fonte: Pesquisa do autor, Chicualacuala-Gaza (2015)

75
Consequentemente, nos primeiros anos da revolução
moçambicana, a Frelimo baniu as autoridades tradicionais e
religiosas, numa tentativa de mudar radicalmente a estrutura
governativa herdada da época colonial. As elites locais e as
estruturas de poder associadas à administração colonial foram
fortemente estigmatizadas e as múltiplas práticas que se

reafirmavam como tradicionais banidas da esfera pública, a


exemplo do que tinha acontecido nalguns países vizinhos.

Nos primeiros anos os grupos dinamizadores consistiam em


grupos de oito a dez pessoas, escolhidas, para substituir o vácuo
de poder criado pela abolição da condição de autoridade
tradicional, e a partir das propostas avançadas pela Frelimo
durante a luta armada, constituíram-se, ainda durante o período de
transição, grupos dinamizadores. Esta forma de organização
popular de base, que nunca conheceria uma formatação jurídica
formal, foi tomando corpo em instituições públicas, em fábricas e
em empresas, em escolas e bairros residenciais. Considerados os
embriões de novas formas de poder popular a partir da base, o
acesso a membro do grupo dinamizador estava vedado a todos os
que fossem considerados comprometidos com as instâncias de
poder da época colonial (o que excluía, pelo menos formalmente,
a possibilidade de os régulos poderem participar

76
destas estruturas). Como a Organização da Mulher Moçambicana
(OMM), Conselhos de Produção (mais tarde transformados que
corresponde, grosso modo, ao período socialista.

Os grupos dinamizadores viriam a desempenhar múltiplas


funções, tomando conta de muitos dos encargos anteriormente
realizados pelas autoridades tradicionais: gestão de questões
sociais, mediação de conflitos, policiamento, administração e
regulação. Esperava-se que os grupos dinamizadores, fortemente
partidarizados e ligados a organizações da Frelimo,
introduzissem a nova história política e as prioridades políticas
do novo governo a todos os cidadãos moçambicanos. Na primeira
década da independência, era praticamente impossível falar de
diferenças sociais para além das diferenças óbvias entre
colonizadores e povos oprimidos, entre ricos e pobres, etc.
Referências a outras formas de diferença, fossem de natureza
cultural ou mesmo étnica, eram condenadas como promotoras de
regionalismo e de acções trabalhistas, como ameaças à
integridade da nação.

O Congresso da Frelimo constitui uma afirmação importante


quanto às orientações relativas à administração do território e à
natureza do Estado. Estabelecida a necessidade imperiosa de
combater os resquícios das mentalidades coloniais, as decisões do
congresso incluíam a “necessidade de completar a destruição do
aparelho de Estado colonial-capitalista acelerando a criação de
novos órgãos do Poder estatal a nível do distrito e da localidade”.
Como resultado, procurou-se activamente eliminar a presença das
autoridades tradicionais do mapa político-administrativo.

77
Fig.7-3º Congresso da Frelimo, a 7 de Fev. de 1977
Fonte: (DAVA 2003)..

Estas decisões foram tomadas durante o primeiro encontro


nacional sobre cidades e bairros comunais. Os grupos
dinamizadores eram constituídos por dez membros eleitos pela
assembleia de residentes, na prática este sistema significava que o
partido era o grande defensor do Estado, indicando também.

Porém, a tentativa de penetração do Estado ao nível local


conhecia inúmeros entraves. A Frelimo condicionava a
construção do Estado popular ao escangalhamento do aparato
herdado da época colonial. Como projecto político subentendia-se
a transformação da Frelimo, partido político, em partido- Estado.
Na prática, isto significou um sistema de administração pública
em que o secretário do partido era também um funcionário do
governo. Assim se explica a decisão, tomada em 1979, de
redimensionar os grupos dinamizadores, como forma de reforçar
a presença do partido-Estado a nível local, passando estes a
organizações de massas ao nível de bairros. Apesar de ter sido
decidida a separação entre as funções do partido a nível de base
(células do partido) e as funções dos grupos

78
dinamizadores, a promiscuidade entre os grupos dinamizadores e
as células do partido Frelimo saiu reforçada João Mosca (1979).
Por exemplo, os secretários de bairro (uma figura cada vez mais
relevante a nível local) acumulavam simultaneamente tarefas
políticas (responsável do partido no bairro) e administrativas.

Para a Frelimo, durante o período de revolução socialista, o


Estado deveria ser democrático.
A política governamental em relação ao poder local, durante os
primeiros anos da independência, foi fortemente influenciada por
uma agenda modernista que negligenciava as culturas e tradições
existentes. Empenhada num projecto de modernização radical, a
Frelimo procurou criar uma hierarquia inteiramente nova de
secretários e funcionários eleitos por diversos processos. Os
quadros revolucionários mais instruídos presentes no país
comungavam, quase inevitavelmente, do projecto da Frelimo de
estender o Estado moderno a todo o país, incluindo aos mais
remotos espaços rurais. Por outras palavras, defendiam que todos
os cidadãos moçambicanos eram livres e iguais perante a lei do
Estado moderno. O seu poder advinha-lhes de uma forma de
conhecimento que denegria o tradicionalismo dos chefes locais e
o obscurantismo das culturas tradicionais. Característico da
ideologia dominante da época era o facto de a maioria destes
quadros ignorar muitas das questões que, em termos sociólogos,
lhes eram colocadas pelas populações. Como exemplos, assuntos
ligados à presença de múltiplos sistemas de posse de terra e a sua
compatibilização com o direito formal, ou temas ligados à
definição de identidades culturais múltiplas e ao sentido de
pertença a Moçambique, etc., eram vistos como momentos de
resistência

79
à unidade nacional e ao projecto de libertação, resquícios de um
passado tradicional.

Esta decisão política teve efeitos profundos no país, onde, como


na maioria dos países da África sub-sahariana, o direito
costumeiro se transformara num símbolo da sociedade tradicional
africana, que urgia superar, para alcançar os níveis de
desenvolvimento apresentados pelos países do Primeiro Mundo.
Neste contexto, a opção pelo reconhecimento das diferenças
etno-culturais era considerada uma decisão política errada. Quer
em ambiente urbano, quer rural, a independência correspondeu à
introdução de novos actores locais, inicialmente na figura dos
grupos dinamizadores, e posteriormente na figura dos secretários
de bairro ou ainda dos presidentes de aldeia. Para além destes,
outras estruturas políticas, como já referido, passaram igualmente
a desempenhar papéis de destaque no processo de administração
local, complexificando a natureza heterogénea do Estado
moçambicano.

Porém, as autoridades tradicionais não tinham desaparecido.


Relegadas para um plano secundário, a sua actividade e
intervenção política pública continuava a fazer-se sentir, quer em
ambientes rurais, quer urbanos. Como vários dos estudos
realizados sobre este tema em Moçambique sugerem, em vários
locais as hierarquias tradicionais passaram a integrar as
instituições de poder local. Como vários estudos têm apontado,
estas estruturas de poder não eram universalmente rejeitadas ou
acolhidas, sendo antes consideradas por certos sectores da
população como um recurso a ser utilizado na busca de
segurança, ganhos materiais e ou influência.

80
A aposta da Frelimo na luta anti-obscurantismo deu novas forças à
esfera cultural como discurso crítico e reviveu o legado colonial
como uma espécie de vingança, na medida em que os chefes
tradicionais compararam criticamente as concessões dos
portugueses aos actos pouco medidos da Frelimo. Não é de
admirar que os depoimentos recolhidos pelo país apontem que
muitos chefes tradicionais rapidamente assumiram uma atitudede
desconfiança e posterior distanciamento em relação ao projecto
nacional da Frelimo. Para estes líderes, lutar pela sua autoridade
era sinónimo de uma luta pela sua dignidade, luta esta que
chocava com o projecto de poder popular hegemónico em que a
Frelimo apostava. O recurso a uma crítica tradicionalista não
decorreu de uma simples oposição entre comunidades
tradicionais imutáveis e um Estado modernizador; pelo contrário,
constituiu uma crítica eficaz e historicamente enraizada da
implementação autoritária de políticas centralmente produzidas e
profundamente imperfeitas, uma rejeição não da modernização
per se, mas de uma modernização falhada e coerciva no contexto
de tentativas de afirmar um controlo local sobre processos
centrais à vida das populações.

O contexto político moçambicano de finais da década de 1970, a


partir da perspectiva dos actores locais, passou a ser marcado por
um forte questionamento da moçambicanidade, do sentido de
cidadania, discussão esta assente na noção de autoridade local e
das fontes da sua legitimidade. Gradualmente, quer o secretário,
quer o antigo régulo, foram ganhando, em função dasua actuação
política, legitimidade local, sendo muitos deles reconhecidos
como a autoridade. Na perspectiva dos que recorrem às
autoridades locais para a resolução dos seus problemas, o que está
sob questão é a eficácia desta autoridade. O que garante à tradição,
às normas e costumes e à identidade

81
étnica a sua coerência e poder é o facto de estes assentarem nas
consciências e referências das populações, informando-os da sua
identidade, dos modos como devem actuar. Todavia, como
discursos, as tradições, costumes e etnicidades são continuamente
reinterpretados e reconstruídos como improvisações reguladas e,
como tal, sujeitas a avaliação da sua legitimidade. O Estado
moçambicano foi dedicando cada vez menos atenção à
legitimação da sua autoridade, que deveria estar assente, pelo
menos parcialmente, nas experiências vividas de todos os
cidadãos. Não querendo assumir a diversidade etno - cultural do
país, a política da Frelimo, durante a década de 1980, reproduzia,
involuntariamente, a dicotomia do tempo colonial. As outras
culturas, dos então indígenas, consideradas inferiores pelo Estado
colonial, emergiam de novocomo símbolo de atraso nos discursos
políticos. E este era o desafio que se colocava ao Estado. Cada
vez mais activamente, o adjectivo ‘tradicional’ marcava e
reafirmava o desejo de autonomia, de auto-representação e auto-
preservação, debate este onde o tradicional simbolizava cada vez
mais a nossa cultura e o Estado moderno era associado à
alteridade, ao Estado, sombra persistente da relação dicotómica
entre cidadania e subalternidade.

A ausência de reconhecimento dos objectivos e projecções das


comunidades locais pelo moderno Estado moçambicano constitui
uma das razões que esteve na origem do longo conflitoarmado que
marcou o país por mais de uma década. Com o conflito armado
instalado em todas as regiões do país, a Renamo, em meados dos
anos 80, começou a questionar seriamente a noção então
fortemente defendida pela Frelimo, de que as autoridades
tradicionais eram instituições obscurantistas, vestígios do
passado colonial. Subalternizadas

82
no tempo colonial e depreciadas pela Frelimo após a
independência, as autoridades tradicionais mantinham uma forte
presença no tecido político pelo peso que gozavam junto das
populações que administravam. Com o agudizar da situação da
guerra, e devido à atitude ambígua do governo da Frelimo em
relação às autoridades tradicionais, não foi fácil para estas decidir
sobre a posição a tomar face às partes em conflito. Vários foram os
casos de posicionamento dúbio em relação ao conflito, ou de
desdobramento de autoridade, de forma a evitar que o conflito
afectasse profundamente a zona (Meneses 2003). Em muitos
outros casos, estas autoridades, como aconteceu em vastas
regiões do centro-norte de Moçambique, passaram a apoiar a
Renamo (Geffray, 1991). Gradualmente, e apoiando-se
fortemente nas antigas instituições de poder local, a Renamo foi
reintroduzindo os régulos como agentes do poder local nas áreas
sob o seu controlo. O papel destas autoridades foi fundamental na
mobilização de jovens para integrar as fileiras do exército
guerrilheiro da Renamo. Nas áreas sob o seu controlo foram
reintroduzidos os impostos locais, cabendo também a estas
autoridades a resolução de problemas sociais locais (incluindo a
gestão da terra), nos quais a Renamo normalmente se abstinha de
intervir. Na mesma altura, e com o alastrar da guerra, no interior
da Frelimo cresciam as críticas em relação à política de aberta
hostilidade em relação às autoridades tradicionais, datando da
entrada para a década de 1990 os primeiros estudos patrocinados
pelo governo, com vistaa um conhecimento mais aprofundado da
questão do poder tradicional no país.

Em 1992, o governo da Frelimo e a Renamo assinaram os acordos


de paz, factor decisivo no acesso à estabilidade política e social
no país. Ainda durante as negociações uma das

83
exigências da Renamo, e que seria uma das suas bandeiras de luta
até há bem pouco tempo, foi o reconhecimento efectivo,
constitucional, das autoridades tradicionais (aqui concebidas
apenas como os régulos e os seus subordinados). Todavia, cada
vez mais ciente da força que estas outras autoridades
representavam, no decorrer das primeiras eleições
multipartidárias, em 1996, o então candidato presidencial pela
Frelimo, Joaquim Chissano, defendeu abertamente a presença de
autoridades tradicionais.

Gradualmente, quer a Frelimo, quer a Renamo foram


procurando mais apoio durante os processos eleitorais junto das
autoridades tradicionais. Ambas as partes, tanto os partidos
políticos como as autoridades tradicionais, assumiam o controlo
administrativo apenas como um meio de exercer o controlo
político. As autoridades tradicionais manipulavam alguns
aspectos tradicionais, enquanto marcas legitimadoras da sua
autoridade, mas recorriam crescentemente aos veículos da
modernidade, como os partidos políticos ou projectos de
desenvolvimento, para promover e sedimentar o seu poder. Já
para os grandes partidos moçambicanos, a Renamo e a Frelimo,
as autoridades tradicionais eram e continuam a ser percebidas
como extensões do Estado, de modo a aumentar a sua
competência administrativa e a sua presença a nível local. Estes
são dois dos cinco municípios que a Renamo conquistou pelos
votos em 2003, tendo este partido.

Numa tentativa de fazer face às políticas propostas pela Frelimo, a


Renamo foi introduzindo gradualmente, quer a nível rural, quer
urbano, estruturas político-administrativas partidárias,
semelhantes às desenvolvidas pela Frelimo após a

84
independência; ou seja, um outro espelho dos grupos
dinamizadores. Vários são os municípios onde a Renamo
instituiu estruturas de poder local os delegados, os chefes de alas,
etc. estruturas estas que competem, em termos de procura de
legitimidade de representação, com outras estruturas já existentes
no local incluindo os secretários, o remanescente dos grupos
dinamizadores, etc. Mais ainda, em contextos urbanos, como é o
caso de Angoche e de Nacala, a introdução destas novas
autoridades surgiu em conflito com as autoridades tradicionais
(régulos e cabos de terra) aí presentes, que continuaram a sentir-
se não respeitadas pelas instâncias políticas detentoras do poder.

Paralelamente, o processo de abertura multipartidária tem vindo


a ser amplamente discutido como tendo contribuído para o
alargamento democrático nacional a nível local, com a criação de
autarquias em 43 municípios. Mas este processo de
descentralização trouxe consigo vários problemas, poisconjugava
no seu seio não apenas conflitos partidários, mas também
conflitos entre várias formas de representatividade e legitimidade
política.

Confrontado com a exuberância de estruturas de poder local, o


Conselho de Ministros moçambicano publicou, em 2000, um
decreto que garantia o papel do governo na nomeação dos
administradores locais, assim como reconhecia, pela primeira vez
oficialmente, a diversidade das autoridades presentes no terreno.
Como estipula este decreto, as estruturas do governo têm por
obrigação consultar e cooperar com as autoridades comunitárias
no exercício da administração local. Esta referência a autoridades
comunitárias alargou o âmbito do conceito de liderança a vários
actores sociais, como os “chefes

85
tradicionais, os secretários de bairro ou de aldeia e outros líderes
legitimados como tais pelas respectivas comunidades”. Isto
equivale a colocar, em pé de igualdade, as autoridades
tradicionais no seu sentido mais restrito, os líderes religiosos, os
secretários de grupos dinamizadores, as personalidades notáveis
locais.

Mais recentemente, o diploma ministerial nº 80/2004 procurou


clarificar esta definição, ao estabelecer como autoridade
comunitária “as pessoas que exercem uma certa forma de
autoridade sobre uma determinada comunidade ou grupo social,
tais como, chefes tradicionais, secretários de bairro ou aldeia e
outros líderes legitimados como tais pela respectiva comunidade
ou grupo social”. Estabelece claramente duas categorias centrais
os chefes tradicionais e os secretários de bairro ou aldeia, a que
se juntam “outros líderes legitimados, que exercem algum papel
económico, social religioso ou cultural aceite pelo grupo social a
que pertençam”.

Esta legislação, produzida pelo governo central, pretendeu, de


forma encapotada e engenhosa, integrar a riqueza de instituições
de poder local no sistema de administração local, ao mesmo tempo
que a Frelimo procura capitalizar espaço político com esta
manobra.
Os vários diplomas legais sobre o assunto referem que estão
previstos vários escalões de autoridade.

Neste contexto, o processo de reconhecimento das autoridades


comunitárias não está isento de riscos e problemas. O artigo 10
do decreto nº 15/2000 estabelece o critério de precedência ou
hierarquização das autoridades, cabendo às comunidades, em

86
função das suas normas e princípios, indicar o representante junto
às autoridades administrativas. O decreto-lei nº 80/2004 é mais
preciso e determina os mecanismos de legitimação. Para o caso
dos líderes tradicionais, a sua selecção tem de ser validada “de
acordo com as regras da respectiva comunidade”, já no caso dos
secretários, estes serão escolhidos (e assim legitimados)
“segundo critérios da respectiva comunidade local ou grupo
social”, ou seja, há um elemento de diferença no processo de
selecção destas autoridades comunitárias, o que inclui momentos
de legitimação directa (eleições para secretários) e outras formas
de escolha, que não incluem formas de democracia directa.
Posteriormente, o líder escolhido é reconhecido formalmente por
um representante da administração estatal a nível local.

Nas zonas rurais, onde este decreto tem sido maioritariamente


aplicado, tem-se verificado o reconhecimento primordial dos
antigos régulos e seus adjuntos, e nalguns casos mesmo de
secretários. Outras instituições, comomédicos tradicionais e
líderes religiosos, apenas recentemente têm sido integrados na
complexa estrutura, reconhecidos pelo Estado moçambicano
como instâncias de poder local, sendo porém patente o seu
descontentamento com tal atraso. Presentes no terreno, e
reconhecidos pelas bases sociais como entidades notáveis, as suas
vozes críticas, se bem que problemáticas em vários aspectos, são
uma componente importante na área da deliberação sobre
situações conflituais, envolvendo temas como o acesso à terra,
disputas familiares, casos de feitiçaria, entre outros e de entre as
autoridades reconhecidas, a percentagem de mulheres é bastante
reduzida, como cabos de terra, tinduna, etc.

87
Em termos factuais, o processo de reconhecimento formal das
autoridades comunitárias tinha, em 2003, legitimamenteindicado
cerca de 13.500 líderes em contextos rurais e urbanos. Destes,
cerca de 10,7% também já tinham sido reconhecidos
formalmente pelo Estado. As pesquisas que têm sido
desenvolvidas em Moçambique mostram que as autoridades
tradicionais nem sempre foram populares nos seus territórios
Gonçalves, (2005). Isto explica, em parte, que nos processos de
legitimação comunitária das autoridades locais vários
secretários tenham sido escolhidos para o posto de autoridade
comunitária, especialmente nas regiões do sul e do extremo
norte de Moçambique, onde a força da Frelimo é
particularmente importante. Nestas regiões a maioria das
lideranças comunitárias eleitas e reconhecidas pelo Estado são
secretários: as estatísticas disponíveis para 2003 apontam que
43,5% das autoridades eleitas eram secretários, especialmente
secretários de bairros, nos espaços peri - urbanos. Em finais de
2006, quando o processo de reconhecimento destas autoridades já
estava bem avançado, os dados apontavam para uma imagem
distinta. O número total de autoridades tradicionais legitimadas
tinha atingido o número de 18.950, especialmente face ao
aumento de líderes de escalões inferiores ao régulo, assistindo- se
a uma diminuição significativa da proporção de secretários, que
passou a representar 17,6% do total das autoridades. Estes dados
sugerem que a implantação das novas autoridades não consegue
competir com a pujança de outros actores, cuja legitimidade,
forjada num nexo histórico e cultural, permanece importante. O
processo de reconhecimento das autoridades comunitárias tem
vindo gradualmente a abrir campo para o empoderamento das
comunidades locais, alargando as

88
possibilidades de actuação na busca de soluções para os seus
problemas.

A introdução de eleições autárquicas em várias cidades e vilas no


país aconteceu numa altura em que o paradigma dominante, a
nível do continente, questionava a falência do Estado e apelava a
uma crescente participação da sociedade civil, pela
democratização e descentralização, como solução para reverter
esta situação. No espaço urbano, as autarquias são vistas como o
campo de actuação da sociedade civil; já no mundo rural, as
autoridades tradicionais são entendidas como uma variante
africana da sociedade civil, cujo reconhecimento não apenas
legitima as formas de governação populares, como desafiam o
centralismo opressor da governação da Frelimo Weimer, (1996).
A complexidade de estruturas e actores presentes no espaço
urbano explicam porque a luta pelo reconhecimento das
autoridades comunitárias tem sido tão difícil, reflectida em
complexas disputas institucionais em torno da definição das
esferas de competências e limites de actuação de cada uma destes
actores.

Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, por


exemplo, apesar de os régulos terem começado a ser
gradualmente reconhecidos em espaço urbano, são vistos
principalmente como instâncias de consulta, contrastando com os
secretários de bairro, que são parte integrante da estrutura
administrativa das autarquias. Um outro problema, apontado por
várias autoridades tradicionais, e que reforça o argumento da
heterogeneidade das estruturas de poder local, resulta do facto de
inúmeros actores ‘comunitários’ funcionarem em espaço urbano:
a resolução de problemas associados à feitiçaria é resolvida junto
da AMETRAMO; a cobrança de impostos é da

89
competência de funcionários municipais; parte da resolução de
conflitos acontece pelo recurso a tribunais comunitários;conflitos
de terrenos e a atribuição dos mesmos são da competência dos
secretários de bairro, etc. (MENESES e SANTOS, 2008).

Esta síntese pretende discutir as implicações da introdução das


autoridades tradicionais (vistas aqui no seu sentido mais lato),
mais de três décadas volvidas após o triunfo da luta nacionalista.
Numa situação em que o Estado estava a perder gradualmente a
legitimidade política, recuperar a legitimidade e tornar-se um
Estado autenticamente moçambicano exigiu a recuperação e a
reavaliação de práticas anteriormente consideradas como
tradicionais. Estas, de facto, possuem maior legitimidadepopular
do que os projecções legais do Estado e têm persistido, em parte,
devido ao vácuo de poder estatal em várias regiões.

O reconhecimento formal das autoridades comunitárias por parte


do Estado tem sido um exercício de reinvenção da tradição, de
criação de novos actores, assim como do reviver de crenças e
costumes onde assenta a nossa moçambicanidade, como apontam
vários líderes políticos.
Porém, o reconhecimento da presença de outras autoridades, para
além do formalismo estabelecido pelo Estado moderno
representa um desafio que implica, em simultâneo, outras
referências epistémicas para além da forma tecno - burocrática de
funcionamento do Estado (incluindo a legitimidade pelos
antepassados, etc.), assim como a negação do modelo unitário de
cidadania (através do reconhecimento de privilégios hereditários
e de noções plurais sobre direito e administração local).

90
Exercícios de fixação
1. Resgatando historicamente a categoria cidadania, na Grécia
antiga (séculos VIII e VII a.C.) chega-se ao conceito por
exclusão.
a) Quando é que o indivíduo é considerado cidadão.
b) Cidadania era ou não a relação de todos. Porquê?
2. Explica O status de cidadania, inicialmente concebido.
3. Caracteriza a qualidade do cidadão na sociedade Feudal.
4. “Construir cidadania é também construir novas relações e
consciências.
a) Caracteriza a convivência, na vida social e académica entre
estudantes e docentes no ISCED.
5. Indica três momentos históricos democráticos necessários
para o bem-estar do cidadão.
6. Os direitos humanos nascem do eixo ocidental.
a) Caracteriza a igualdade, entre os direitos individuais e
colectivos.
7. Preenche os passos vazios
8. Em Moçambique é o interesse
pelas

tradicionais e a sua relação com o ,


uma situação que não é única nem , por se tratar
de um tema central ao debate no
.
9. Pensamento contribuir para as discussões
actuais sobre a do poder e dos debates de
, onde a intrincada rede de processos de regulação
social alerta para a importância das múltiplas instâncias
presentes, detentoras de distintos percursos e

91
históricas, produzindo um complexo com as
estruturas formais do .
10. Porquê se diz que o poder local é o mosaico de instâncias
presentes da autoridade tradicional.

12. Nas últimas décadas, a ideia dos povos indígenas e


autoridades tradicionais ganhou nova projecção, com
dimensões globais.
a) Concorda com esta afirmação? Porquê?
13. O Estado Novo do António Salazar veio consolidar as políticas
de segregação de direitos entre indígenas e cidadãos.
a) Explica como Salazar consolidou as políticas de
segregação de direitos entre indígenas e cidadãos.
14. “Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública,
às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos,
civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária.
Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado
das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos
seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir
chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada
vez maior, do seu nível de existência”.
a) Caracteriza Moçambique nos anos de 1929 tendo em conta as
categorias populacionais.

15. “A África colonial é muito mais parecida com a África pós-


colonial.
a) Concorda com esta afirmação? Porquê?
16. Tomando em consideração a ideia do Marshall, numera a 2ª
coluna de acordo com a 1ª para obter correlação verdadeiras
entre os seus termos.
16. Assinala com V as afirmações verdadeiras e F as falsas

92
a) O autor de divisão do conceito da cidadania é Brazão Mazula

b) O conceito de cidadania segundo Rosário a dimensão psicológica “permite ao indivíduo


considerar-se membro da sua cidade, saber quem é e o que deve fazer e, ainda que lugar
ocupa”.

c) Cidadania é tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar económico e


segurança ao direito de participar por completo na herança social e levar a vida de acordo
com os padrões que prevalecem na sociedade.

d) Cidadania é tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar até a melhorias
das condições económico.

e) O contexto da opção pelo reconhecimento das diferenças etnoculturais era considerado


uma decisão política errada.

TEMA IV: NOÇÕES DE POLÍTICA E SUA DEFINIÇÃO

Unidade 4.1: Do Conceito de Campo Político em África Os


países africanos subsaarianos conheceram as usurpações de
numerosas formações sociais e políticas globais, entre as quais o
Estado-nação, no seu crescimento e no seu declínio, que
representava apenas um entre numerosos casos, enquanto era
simultaneamente arrastado para processos globais em vasta
escala. Com efeito, a expansão de uma forma específica de
Estado-nação, simultaneamente liberal e democrático, pelo
menos na sua ideologia política manifesta, afectou igualmente a

93
África subsaariana na última década, e conduziu em muitos
lugares a relações políticas muito complexas entre o Estado e
figuras de poder locais tais como as Autoridades Tradicionais.
Deste modo, neste texto abordaremos uma questão de grande
importância para a compreensão não só das dinâmicas políticas,
mas, e sobretudo, das relações sociopolíticas tecidas na
actualidade entre o Estado e as Autoridades Tradicionais: a dos
fundamentos da legitimidade da dominação, bem como as
competências e estratégias sociopolíticas, dos agentes políticos
em questão. Nesta medida, o campo político é, por excelência, a
plataforma analítica onde melhor se exprimem as legitimações e as
suas pretensões à legitimidade reclamadas pelos agentes políticos
em análise: Estado e Autoridades Tradicionais.

No plano do normativo político, assistimos desde os anos 80 a


sucessivas tentativas de novas codificações das relações políticas
do Estado com as Autoridades Tradicionais, bem como a
diversificadas tentativas de circunscrição, por parte do Estado,das
«novas» funções daquelas e ao ressurgimento, sobretudo nos
Estados onde a repressão das Autoridades Tradicionais foi mais
violenta, das reivindicações dessas mesmas Autoridades
Tradicionais enquanto agentes autoproclamados de
incontornáveis no jogo político local e nacional. No plano da
produção científica, assistimos em paralelo ao redobrar das
análises sobre as Autoridades Tradicionais, para além,
naturalmente, do questionar das análises anteriores, ao recolocar
à reflexão o «lugar» de análise das Autoridades Tradicionais
(DIAS, 2001).

Neste texto, a questão do papel sociopolítico das Autoridades


Tradicionais enquanto intermediárias entre o mundo
«tradicional» e o Estado «moderno» emerge directamente da

94
temática da natureza dos Estados pós-coloniais africanos e da
relação estabelecida por estes com a pretensa «sociedade civil».
Dito de outra forma, a questão das Autoridades Tradicionais
inscreve-se no debate mais vasto do problema do político e da
política na África subsaariana contemporânea.

Neste sentido, refira-se que, no período pós-colonial os Estados


africanos independentes rapidamente adoptaram uma construção
política que reproduzia, em traços gerais, as lógicas e dinâmicas
dos seus precedentes «soberanos» coloniais; porém, aqueles, para
uma efectiva reestruturação, deveriam ter sido capazes de
funcionar dentro de estruturas económicas, sociais e políticas
fundamentalmente diferentes das da metrópole de onde eram
oriundas.
Deste modo, o Estado africano pós-colonial, tornou-se uma
«pálida cópia» do modelo colonial europeu com o qual as
populações africanas, em geral, e as rurais, em particular, não se
conseguiam identificar, e que acabou por resultar num governo
ineficaz e decorrente num despotismo de Estado.
Neste sentido, os governantes africanos, concentrados
exclusivamente na reprodução do seu poder, adoptaram
frequentemente estratégias de governação de tipo neopatrimonial
utilizando as instituições e os recursos públicos em benefício
pessoal, e servindo-se desses meios para alimentar as suas redes de
clientela em detrimento do «bem público». Nesta medida, o
debate sobre a ineficácia do Estado africano pós-colonial
concentrou-se durante os anos 70-80 à volta da questão de saber
se o Estado fora demasiado «autoritário» e/ou
«rígido», ou se pelo contrário, deveria ter sido mais «tolerante»
e/ou «flexível» enquanto gestor de recursos económicos,
políticos e sociais Sandbrook, (1985). A discussão girava

95
sobretudo em torno da posição das comunidades agrárias que
podiam conservar uma certa autonomia, graças ao acesso que
tinham ao meio de produção por excelência em África. Esta visão
era posta em causa por alguns autores que sustentavam
exactamente o oposto: o Estado estaria em condições de exercer
uma pressão política extremamente forte por meio do controle
que detinha sobre a produção, a distribuição e a vendade produtos
agrícolas Cliffe, (1987). No entanto, o ponto de discórdia comum
nesta polémica não deixa de ser o facto de que ocorreu uma crise
no interior do Estado pós-colonial africano. (SKLAR, 1985).

Podemos encetar uma análise mais detalhada afirmando que a


determinado momento inúmeros Estados africanos, no período
pós-colonial, chegaram efectivamente a uma fase de
desagregação política, sem que no entanto a legalidade do Estado
enquanto unidade jurídica fosse posta em causa. É que este último
tinha adquirido esta legitimidade durante os anos das primeiras
independências numa conjuntura política em que na realidade o
Estado empírico estava ainda por se formar.
Neste contexto analítico, são as ideias de Jean-François Bayart,
(1986) sobre esta zona de tensão Estado - «sociedade civil», pelo
papel que as Autoridades Tradicionais podem desempenhar nesta
possível relação de intermediação política. Jean-François Bayart
assinala explicitamente que a relação entre o Estado africano pós-
colonial e a «sociedade civil» é caracterizada por uma dinâmica,
uma complexidade e uma ambivalência próprias, nas quais grupos
sociais dominantes, mas afastados do poder político directo,
como os homens de negócios, os líderes religiosos, e/ou outros
agentes com proeminência política e

96
social «levam a água ao seu moinho» (BUIJTENHUIJS &
RIJNIERSE, 1993).

A presente unidade visa demonstrar, entre outros aspectos, queas


Autoridades Tradicionais fornecem a sua própria contribuição
típica e dão o seu «toque» pessoal a este campo dinâmico de
tensões e pretensões políticas. Típica também, porque as
Autoridades Tradicionais operam a partir de considerações
políticas e cosmológicas inteiramente diferentes de outros grupos
sociais que integram a dita «sociedade civil». As Autoridades
Tradicionais moçambicanas, e de outros países africanos, não se
autodenominam «os guardiães dos nossos costumes» em vão
Rouveroy, (2000). Através desta qualificação social, as
Autoridades Tradicionais desejam demonstrar a sua própria
legitimidade tradicional que lhes permite igualmente tirar algum
proveito no plano dos jogos políticos já definidos ou a definir. Isto
na medida em que mobilizam a partir daí espécies de capital que
colocam em jogo contra os projectos hegemónicos do Estado,
que se materializam através das
«alianças hegemónicas» geridos e executados pelas elites
políticas africanas e as suas redes clientelares. Com efeito, ao
fazer apelo a este papel de «guardião da tradição», as Autoridades
Tradicionais tentam defender-se contra as
«alianças hegemónicas», mas inevitavelmente utilizam-no
também para os seus próprios interesses políticos e locais.

Deste modo, esperamos demonstrar que a margem de manobradas


Autoridades Tradicionais, e particularmente as pretensões das
legitimações reclamadas e as estratégias políticas às quais
recorrem para explorar essa margem de manobra, são bem
maiores que aquelas que os quadros formais, constitucionais e

97
jurídico-administrativos podem perspectivar. Isto não é só válido
para as Autoridades Tradicionais em Moçambique, mas também
para as
Autoridades Tradicionais de outras áreas geográficas de África.
De facto, esta margem de manobra resulta do fosso que se criou
entre um Estado «moderno» organizado burocraticamente que
adquire a sua autoridade política nos quadros formais do direito
constitucional, e o contexto social e político no qual, para a
maioria dos africanos do mundo rural, é uma concepção
ideológica, simbólica e cosmológica do mundo inteiramente
diferente que lhes importa (GU-KONU, 1986).

É precisamente neste contexto político-ideológico «mestiço» que


as Autoridades Tradicionais têm um papel muito importante a
desempenhar, enquanto representantes deste outro mundo,
«tradicional», cosmológico, com a sua própria concepção do
universo, e do qual as Autoridades Tradicionais retiram,
parcialmente, a sua própria legitimidade, a sua credibilidade e o
respeito sociopolítico que lhe é próprio. Nesta medida, o poder
estatal anexa (ou tenta anexar) de bom grado os fundamentos da
legitimidade das Autoridades Tradicionais, enquanto
representantes desse outro universo político - simbólico que não
pode ser estabelecido e descrito por um código compreensível
para o mundo exterior de modo a, por sua vez, reafirmar a sua
legitimidade e autoridade, nivelando desta forma o fosso entre a
lógica burocrática, estrangeira, imposta do exterior, e o mundo
dito «tradicional». Com efeito, devido à sua posição política
central numa visão do mundo que se desenvolveu organicamente
ao longo da história, e que está inscrita nas suas considerações
religiosas, nos seus sistemas de parentesco, nas suas normas, no
seu ciclo agrário, nos seus

98
interditos matrimoniais, nas concepções de magia e de feitiçaria,
etc., as Autoridades Tradicionais representam as forças, por
assim dizer, inacessíveis que a «elite estatal» e os
«burocratas modernos» não deixam de reconhecer e cortejar.

Nesta óptica, as Autoridades Tradicionais sabem assegurar-se de


uma legitimidade peculiar, que explicam com o auxílio da
paráfrase «Nós somos guardiães das nossas tradições», e
comprometem-na perante um Estado que está «ancorado» a uma
organização estatal assente num «modelo» norte - Atlântico
importado (ROUVEROY VAN NIEUWAAL, 2000). É
justamente também com este apelo à «tradição», num dos seus
estudos, que os organismos estatais e os funcionários se
encontram confrontados sempre que entendem implementar
projectos de desenvolvimento, recenseamento, alfabetização ou
de inovações jurídicas ao nível da circunscrição
políticoadministrativa de onde as Autoridades Tradicionais são
oriundas. Para além do mais, como estes exemplos ilustram, as
Autoridades Tradicionais têm o seu lugar na corrente das
Ciências Sociais definida como «óptica do dinamismo cultural».
Como anteriormente foi referido, esta é uma perspectiva que
centra a atenção sobre a dinâmica e a flexibilidade das sociedades
locais «tradicionais» e das instituições que são características
dessas mesmas sociedades. Nesta concepção, aquelas sociedades
não são totalidades imutáveis e estáticas, mas submetidas a um
processo evolutivo constante. Com efeito, elas reagem aos
estímulos do interior e do exterior e adaptam- se
conjunturalmente a eles. Depois de algumas décadas, as
Autoridades Tradicionais permanecem, umas mais do que as
outras, no seu raio de acção política de modos completamente
diferentes, entre o Estado pós-colonial e a sua própria ordem

99
cosmológica, e apresentam sucessos variados, como forma de se
adaptar às exigências e às necessidades políticas daqueles dois
mundos, e de se transformar constantemente. É esta capacidade
de sobrevivência e de adaptação das Autoridades Tradicionais
aos diferentes contextos e conjunturas sociopolíticas que os
diferentes Estados dos países africanos atravessaram e
atravessam que explica, em parte, o actual e renovado interesse
por parte de investigadores africanos e de outros continentes em
constituir este fenómeno social como objecto de estudo
(principal) de várias investigações científicas, (ABBA, 1990;
QUINLAN, 1988).

Unidade 4.2: Processos de liberalização Política, Estado e


Autoridades Tradicionais em África
Actualmente a globalização, nas suas várias dimensões, constitui
uma chave essencial para explicar os diversos fenómenos e
processos mundiais, característicos deste início de século e de
milénio.
As mutações contemporâneas são totais, na medida em que não só
abrangem o domínio territorial, mas também, e simultaneamente,
o religioso, o social, o tecnológico, o geoestratégico, o económico
e, sobretudo, o político. No entanto, as recentes e diversas
transformações que nos últimos anos se têm verificado nos
sistemas económicos e políticos dos diferentes países do
continente africano subsaariano devem ser entendidas a partir da
análise de uma dupla perspectiva, que directa ou indirectamente,
apresentam, hoje, pelo menos pretensamente, extensão planetária
(LOURENÇO, 2006).

Por um lado, a recente passagem à economia de mercado de tipo


liberal, a instauração de regimes políticos civis e de sistemas

100
multipartidários, à semelhança do que se configura à escala de
outros países africanos, o que se tem vindo a delinear em
Moçambique inscreve-se também neste contexto de
entendimento mais alargado de âmbito internacional. Quer isto
dizer que as transformações ocorridas em África, no final da
década de 80 e início da década de 90, no sentido da liberalização
política, entenda-se discursos de democratização política e de
boa governação dos regimes autoritários, nas suas versões
militares e de partido único, enquadram-se na construção de uma
nova ordem global, a que alguns autores designam por Modern
World System (Hopkins & Wallerstein, 1996) e que,
inequivocamente, surge como consequência directa do
desmoronamento do Muro de Berlim, e da dissolução do modelo
bipolar derivado da Guerra Fria (WISEMAN, 1995;
MURTEIRA, 1995).

Por outro lado, esta vaga de transições democráticas, ou se


quisermos, de democratização política em curso, tem lugar
dentro dos quadros políticos particulares que constituem as
trajectórias sociais e históricas dos diferentes Estados africanos.
Com efeito, cada país da África subsaariana, tal como
Moçambique, conhece uma evolução particular no que se refere à
disposição das instituições, das práticas, dos agentes, e das
relações políticas da mudança, em função das estratégias
conjunturais e dos contextos histórico, económico, social e
político, que lhe são específicos (LOURENÇO, 2006).

Com efeito, motivos complexos de interacção sociopolítica têm


como resultado a coexistência de diferentes quadros
institucionais no seio dos quais se proferem por vezes novas
fórmulas políticas, renovados discursos, e a articulação de

101
acções e relações políticas, totalmente diferentes. No interior
deste conjunto dinâmico e interactivo, emergiram novas
instituições, algumas outras, mais antigas, foram
substancialmente transformadas, enquanto que, outras ainda,
simplesmente atrofiaram ou desapareceram Fisiy, (1995). As
Autoridades Tradicionais integram uma dessas instituições que
reivindicaram publicamente e com sucesso a sua notável e
variável capacidade de sobrevivência e de contínua adaptação
política. As Autoridades Tradicionais criam novos espaços no
actual quadro político, tornando-se legítimos intermediários entre
o Estado e as populações rurais, não se baseando exclusivamente
nos lugares políticos que ocupavam outrora e mantendo viva a
sua «memória social» ancestral. As Autoridades Tradicionais
parecem, pois, possuir uma notável vontade e capacidade de se
adaptarem às mudanças sociais e políticas actuais e reclamam
para si um papel de intermediação, crucial para o futuro, em vez
de tentarem efectuar exclusivamente transformações,
interferências e/ou reclamações socioeconómicas e políticas de
somenos importância a nível regional, nacional e local.

Contudo, tendo em linha de conta o contexto global de


reconfiguração política que afecta a África subsaariana
contemporânea, a questão que se coloca, para alguns autores, é a
de saber se as Autoridades Tradicionais constituem
efectivamente uma solução de hipotética alternativa política, e
nesta medida, se lhes é consentido contrabalançar com o poder
político estatal. Se a questão não é nova, ela coloca-se
actualmente com uma insistência política considerável.

A questão é simples, a resposta, em contrapartida, é complexa. A


questão subjacente a este assunto é determinar qual a base

102
fundamental da legitimidade da dominação política das
Autoridades Tradicionais na sociedade rural actual e como é que
ela foi afectada pelas recorrentes experiências de construção da
«nação», e ainda, pelos conceitos ideológicos de democracia,
liberalização, desenvolvimento, direitos humanos (incluindo o
género) e adjudicação.

A resposta a uma questão de âmbito tão geral não será com


certeza unívoca. Isto, não só devido às diferenças regionais do
próprio continente, que são consideráveis, mas também devido à
diversidade das histórias dos governos (pré-coloniais) coloniais e
pós-coloniais, e, ainda, às diversas dinâmicas e processos
políticos dentro dos quais sobreviveram e evoluíram as
instituições políticas que integram as Autoridades Tradicionais.
Por outras palavras, e tal como já tivemos oportunidade de referir,
para compreender como é que as Autoridades Tradicionais
desempenham o papel de mediador que liga opassado, presente e
futuro, é necessário compreender primeiro a correlação entre o
controle que elas exercem sobre as populações rurais e sobre os
recursos de que dispõem: dois elementos oriundos de mundos
políticos conceptualizados de modos diferentes.

No quadro de uma reflexão sobre este contexto, surgiram estudos


cujo centro de interesse são as relações que se estabelecem entre
o «Estado-nação» pós-colonial e as Autoridades Tradicionais em
África, e que tratam em particular dos fundamentos da dominação
política, os quais as Autoridades Tradicionais ainda parecem
estar em condições de reclamar. Estes fundamentos parecem
resumir-se a dois. O primeiro diz respeito à gestão dos recursos
naturais, e mais particularmente à locação da terra, a respeito da
qual as

103
Autoridades Tradicionais mostraram-se, na maioria dos casos,
capazes de defender os seus direitos (privilégios) e os da sua
comunidade rural. O segundo diz respeito ao domínio do ritual e
do simbólico na sociedade «tradicional», no qual as Autoridades
Tradicionais espelham um papel primordial e de autenticidade
inequívoca (LOURENÇO, 2006).

Enquanto árbitros nos litígios e «administradores locais», as


Autoridades Tradicionais exercem sobre as suas populações
rurais uma autoridade ritual e moral que está incrustada nos
atributos e faculdades místicas e sagradas pertencentes às noções
cosmológicas da sua dominação política tradicional. Muitas
Autoridades Tradicionais conseguem forjar elos entre a ordem
cosmológica da sua comunidade local e os mundos da economia
e da política moderna, utilizando com sucesso as estruturas
sociais, políticas e económicas em mutação, de modo a fazerem
parte de uma nova «elite» de empreendedores.

De um ponto de vista de equilíbrio dos poderes, o Estado


africano, e o moçambicano em particular, às vezes esforçam-se
por marginalizar, outras, por cooptar as Autoridades Tradicionais
enquanto simples auxiliares no interior dos seus modelos
burocrático - formais. As Autoridades Tradicionais, por outro
lado, consideram as dinâmicas e lógicas políticoburocráticas do
Estado africano, modeladas de forma diferente pelo regime
colonial, pelo sistema de partido único e, actualmente, pelo
pluralismo político, como um simples sistema contingente,
estrangeiro e imposto.

Neste sentido, a questão que se coloca é: que opções são que as


Autoridades Tradicionais têm para porem em prática a sua

104
própria autoridade política legítima? Esta questão está claramente
ligada às suas prerrogativas sociais na gestão dos recursos
materiais e políticos de que dispõem, e no modo como se efectiva
a sua relação com os agentes políticos do Estado, que asseguram e
promovem a administração das reformas político-
administrativas. Uma análise sobre o modo como elas
desenvolvem novas estratégias para fazer frente às mudanças
políticas, sociais, administrativas ou legais, fornecernos-á
informações sobre a transformação que pode afectar a sua
dominação política nos nossos dias, numa altura em que as
Autoridades Tradicionais estão envolvidas na luta pelo controle
de recursos materiais e de pessoas, tal como alguns dos seus
antepassados já o faziam nas épocas colonial e pré-colonial.

No entanto, hoje, não só o Estado africano, como de igual modo


as Autoridades Tradicionais, têm que enfrentar uma sociedade
que sofre constantemente rápidas transformações políticas
pluriformes e, por vezes, radicais, o que impõe pressões sociais
sem precedentes sobre a resistência acima mencionada.

A rápida taxa de urbanização, o desenvolvimento da escolaridade


e da educação, o crescimento de sectores modernos de emprego
não rural (entre outros aspectos), afectou certamente o «perfil»
dos fundamentos da legitimidade política, não só do Estado
africano, como igualmente das Autoridades Tradicionais, ao
longo de um vasto período detempo.
Com efeito, por exemplo, um aspecto importante da vida
contemporânea em África que devemos ter em atenção é, de
facto, o da rápida urbanização. Embora a maioria da população
africana continue a viver nas regiões rurais, as cidades em África,

105
em coincidência com os processos globais, desenvolvem-se
rápida e desmesuradamente.

Especialmente nas cidades, as Autoridades Tradicionais são


confrontadas com populações imigrantes que não fazem parte do
seu conjunto de tradições sociais, políticas e culturais.
Frequentemente, não há Autoridades Tradicionais reconhecidas
como tal nas grandes cidades, e os novos habitantes parecem
optar pelas migrações das zonas rurais para as cidades,
justamente (nalguns casos, e entre outras razões) a fim de escapar
à dominação das Autoridades Tradicionais das suas aldeias, e
começar uma nova vida enquanto «cidadãos» mais autónomos.

Um outro elemento que exige alguma atenção na análise das


modernas formas de dominação política «tradicional» é a
emergência de novos grupos socioeconómicos igualmente bem
relacionados com os actuais processos de modernização, de
liberalização e democratização política. O desenvolvimento
socioeconómico que ocorre resulta numa estratificação
modificada das sociedades africanas, resultante, por exemplo, da
emergência de novas «classes médias». Tal facto comporta
numerosas implicações para as Autoridades Tradicionais. O
conjunto destes problemas deve ser principalmente reconduzido
para a questão da representação política. Deste modo, uma
questão importante que se levanta é a de se saber de quem, ou se
quiser, de que «estrato social» podem, actualmente, as
Autoridades Tradicionais reivindicar serem verdadeiramente os
representantes. Este aspecto é de uma grande importância, uma
vez que as Autoridades Tradicionais
«rivalizam» activamente com o Estado, a fim de conseguir
conquistar um novo espaço político, e utilizam regularmente a

106
fórmula, não desprovida de ideologia, de que elas são os
«verdadeiros representantes das suas populações sejam elas
quais forem».

Por último, as Autoridades Tradicionais em África estão


similarmente a tornar-se cada vez mais fulcrais no incremento de
campos políticos locais nos quais se criam esquemas complexos
de dominação política, através dos quais não só estes
representantes da estrutura política tradicional se tornam
influentes, como também outros agentes políticos intermediários
ganham proeminência, como por exemplo as ONG, empresas e
igrejas de várias confissões religiosas. Deste modo, quer o
Estado, quer as Autoridades Tradicionais devem, doravante, ter
em conta estes e outros «recém-chegados», pois não lhes escapa
que, por exemplo, as ONG detêm frequentemente, não só em
Moçambique mas um pouco por toda a África, único meio de
acesso a novos recursos sociais, ambientais, económicos,
culturais, de saúde, de educação, de infra-estruturas, e até mesmo,
de mediação de conflitos armados e de processos de paz.

Em suma, muitas das mudanças e das transformações políticas, e


não só, que atravessam o continente africano, ocorrem numa
dimensão definida pela globalização e pela comunicação
(tecnologia), por novos agentes e novos modelos ao nível local e
nacional, e por um novo conjunto de recursos e de espécies de
capital. Desta forma, os complexos padrões das relações
sociopolíticas que se estabelecem entre o Estado e as Autoridades
Tradicionais, e no actual contexto, de igual modo, com outros
agentes nacionais e internacionais, resultaram na coexistência de
diferentes quadros institucionais, os quais

107
articulam diferentes discursos e agendas políticas
(LOURENÇO, 2006).

Como tal, neste contexto de reconfiguração, já não só o Estado


terá de se adaptar a este novo cenário caracterizado por um
ambivalente quadro de fontes alternativas de dominação e de
entidades políticas com «legitimidade dividida», como também a
questão é que a ênfase já não assenta na demissão ou na
dependência das Autoridades Tradicionais de uma «política de
nostalgia» ou, ainda, da «invenção da tradição», mas antes o que
sobressai é que a chefia tradicional africana não pode ser
exclusivamente vista como «tradicional», ou como um resquício
de algo ancestralmente autêntico Nieuwaal, (2000). Em vezdisso,
as Autoridades Tradicionais tendem a converter-se num novo
fenómeno sociopolítico que levanta novas questões, e para
constatarmos tal facto, basta examinarmos a sua aparente
capacidade de negociar e de modificar, à sua maneira, acordos
político -institucionais modernos. A reivindicação das
Autoridades Tradicionais de serem representantes legítimos e
autênticos das suas populações rurais é negociada em troca da
exploração das suas qualidades e capacidades sociais, políticas e
institucionais (por vezes mesmo académicas), das suas ligações
com redes internacionais e das suas hábeis negociações com os
poderes públicos, partidos políticos e burocracias, nos seus
respectivos países.

Exercícios de Fixação
1. Assinala a alternativa correcta, em relação Estado africano
pós-colonial

108
a) O Estado africano pós-colonial, não se tornou uma «pálida
cópia» do modelo colonial europeu porque rapidamente
seguiu um modelo do desenvolvimento americano.
b) A problemática das relações Estado - Autoridades
Tradicionais só a partir dos anos 80 volta a ter a importância
que teve, por exemplo, no período que mediou o fim da
Segunda Guerra Mundial e o início das independências
africanas.
c) As Autoridades Tradicionais não sabem assegurar-se de uma
legitimidade peculiar, que não explica exactamente o auxílio
da paráfrase «Nós somos guardiães das nossas tradições».
d) Estado pós-colonial e a sua própria ordem cosmológica,
apresentam sucessos variados, como forma de se adaptar às
exigências e às necessidades políticas daqueles dois mundos, e
de se transformar constantemente.
2. Explica o desenrolar dos acontecimentos no período
póscolonial dos Estados africanos independentes.
3. O Estado africano pós-colonial, não se tornou uma «pálida
cópia» do modelo colonial europeu.
a) Concorda com esta afirmação? Justifica.
4. Explica os factores que terão contribuído para o Estado
africano pós-colonial melhorar a gestão de recursos
económicos, políticos e sociais durante os anos 70-80.

5. Completa o espaço vazio


a) É também com este apelo à « », num dos
seus estudos, que os estatais e os se
encontram confrontados sempre que entendem
implementar de desenvolvimento,
, ou de inovações ao

109
nível da político administrativa de onde as
Autoridades são .

b) Como foi referido, esta é uma que


centra a atenção sobre a dinâmica e a flexibilidade das
sociedades locais « » e das instituições que
são dessas mesmas .

c) Nesta óptica, as sabem


assegurar-se de uma peculiar, que
com o auxílio da paráfrase «Nós somos
guardiães das nossas tradições», e comprometem-na
perante um Estado que está «ancorado» a uma
estatal assente num «modelo»
importado.

d) Neste sentido, as sobre estruturas políticas


em África mostraram e mostram que esta
instituição é de dar um impulso ao que
descrevemos como óptica do cultural, uma
óptica que toma como ponto de partida o dinamismo e
a característicos das sociedades ditas
.

e) Neste texto, a do papel sociopolítico das


Autoridades Tradicionais enquanto entre o
mundo tradicional e o Estado emerge
directamente da temática da natureza dos Estados
africanos e da relação por estes com
a sociedade civil.

110
TEMA V: CIDADANIA E A DIMENSÃO SOCIAL

O debate sobre a política social na América Latina raramente


focaliza as consequências de determinadas políticas para a
qualidade da cidadania numa democracia. Mas as maneiras
peculiares como essas políticas são postas em prática podem ter o
efeito de fomentar o clientelismo ou a manutenção da autonomia
dos cidadãos. A extensa literatura recente sobre a

111
transição para a democracia na região também tem se ocupado
principalmente dos meios de garantir e consolidar direitos civis e
políticos, deixando de lado a relação entre estes e os direitos e as
obrigações sociais na construção da democracia. Há importantes
excepções a essa lacuna dos estudos. Rei (1996) chama a atenção
para as inevitáveis tensões produzidas nas sociedades
democráticas entre uma concepção social e uma concepção
individual da cidadania, principalmente no que diz respeito às
demandas contraditórias de interesses colectivos e individuais.
Observa o autor que, na América Latina, a cidadania deve ser
capaz de oferecer um fundamento para os dois tipos deconcepção,
embora possa variar a maneira particular como tal fundamento é
construído, de uma sociedade para outra.

A natureza da cidadania social afecta a qualidade da cidadania


civil tanto quanto a da cidadania política. O status adquirido pelos
membros de uma comunidade, pelo costume ou pela lei, em
consequência de seus direitos/obrigações civis, políticos e
sociais, inevitavelmente invadem os limites uns dos outros. Às
vezes, essas invasões fortalecem a cidadania em todos os seus
aspectos; às vezes, privilegiam um aspecto em detrimento de
outro; às vezes enfraquecem-na em toda sua extensão. Uma
cidadania civil fraca pode prejudicar o desenvolvimento da
cidadania política, mesmo quando existe democracia formal.
Jelin (1996) observou que uma efectiva transição para a
democracia deve fazer mais que desarticular as formas
antidemocráticas de exercício do poder; deve mudar as práticas e
crenças das elites e das populações a respeito dos direitos e das
obrigações civis. No mesmo sentido, o desenvolvimento da
cidadania social pode ser usado pelas elites para evitar a extensão
das cidadanias civil e política Mann, (1989). Assim, por seu
impacto sobre a cidadania social, a política social constitui

112
um aspecto importante da cultura da cidadania em qualquer
sociedade, e suas consequências repercutem sobre os direitos
civis e políticos. Examinar essas consequências nos permite obter
um quadro mais completo das implicações de um determinado
grupo de políticas sociais, que a simples investigação da sua
eficácia em relação aos ganhos económicos dos beneficiários.

Esta unidade trata das características que diferenciam a cidadania


social das cidadanias civil e política. Mas cidadania social não
significa a mesma coisa em todas as sociedades. Pode-se dizer que
não existem padrões reconhecidos de cidadania social, no sentido
de um corpo de direitos e obrigações, já que estes tendem a
reflectir os padrões de determinadas sociedades em determinados
níveis de desenvolvimento. Embora seja possível definir, com
pequena margem de discordância, um padrão geral de direitos
políticos e civis, não se encontra o mesmo acordo quando se trata,
por exemplo, de estabelecer o nível de bem-estar social a ser
proporcionado aos cidadãos. Na verdade, conforme observou
Dahrendorf (1994), a importância da cidadania social está
justamente em sua capacidade de se ampliar e se redefinir à
medida que os padrões da sociedade mudam.
A análise das características da cidadania social deve, portanto,
se adequar a contextos específicos. Esta unidade focaliza a
América Latina, onde os desafios são particularmente graves. Se
as cidadanias civis e política são hoje menos questionadas do que
dez anos atrás, o inverso vem se passando com a cidadania social.
A tensão entre interesses colectivos e individuais tem-se
acentuado em consequência das tendências económicas, que
exacerbam as necessidades sociais ao mesmo tempo que

113
diminuem a capacidade do Estado e da comunidade de supri-las. A
ênfase que vem sendo dada actualmente à liberalização dos
mercados e à austeridade fiscal diminui o papel do Estado como
provedor de bem-estar social e provoca, pelo menos de início,
insegurança económica. Processos sociais de longo prazo, como a
urbanização, a migração e a mudança dos padrões de participação
da força de trabalho, provocam uma lenta erosão dos meios
tradicionais de proporcionar segurança social por meio da família
e da comunidade. Além disso, como ocorre na Europa Central e
Oriental, a experiência anterior de cidadania social é muitas vezes
percebida como contrária à democracia e às liberdades
individuais; é o que acontece, por exemplo, quando educação,
assistência médica e habitação são proporcionadas de cima para
baixo e criam dependência em relação às burocracias estatais.

Unidade 5.1: A Natureza da Cidadania Social


Inicio a discussão com uma referência à obra de T.H. Marshall, o
primeiro a estabelecer uma distinção sociológica entre as
cidadanias civil, política e social e, ao mesmo tempo, defendeu
uma interdependência necessária entre os três tipos de cidadania
Marshall, (1964). A cidadania civil é constituída pelos direitos
necessários ao exercício da liberdade individual, como liberdade
de ir e vir e liberdade de contratar (inclusive de firmarcontrato de
trabalho), ou pelo direito de possuir propriedades, e é garantida
pelo sistema legal. A cidadania política é o direito de participar
do poder político tanto directamente, pelo governo, quanto
indirectamente, pelo voto. Faz parte das instituições
representativas dos governos locais e nacional. A cidadania social
é o conjunto de direitos e obrigações que possibilita a
participação igualitária de todos os membros de

114
uma comunidade nos seus padrões básicos de vida. Como
assinalou Marshall (id. ib., p. 78), a cidadania social permite que
as pessoas compartilhem da herança social e tenham acesso à vida
civilizada segundo os padrões prevalecentes na sociedade. As
instituições mais especificamente associadas a ela são, na opinião
de Marshall, o sistema educacional e os serviços de saúde e de
assistência social.

Marshall dá ênfase ao que lhe parecia uma contradição


fundamental do desenvolvimento humano: de um lado, a
igualdade humana essencial, implícita na condição de membro de
pleno direito de uma comunidade, isto é, a cidadania; de outro
lado, a desigualdade social resultante das disparidades de poder e
do funcionamento das economias de mercado. O mercado ao
mesmo tempo depende e reforça os direitos individuais, como os
direitos de propriedade e o direito ao trabalho, e, por isso mesmo,
fornece uma base para a expansão de uma cidadania civil que
torna as pessoas iguais perante a lei, independentemente do seu
status. Mas, por outro lado, o mercado gera disparidades de
riqueza individual, destrói as solidariedades comunitárias
tradicionais que antigamente mitigavam a miséria, e aumenta a
insegurança económica do indivíduo.

A extensão da cidadania política soluciona parte dessas


contradições entre a desigualdade criada pelo mercado e a
igualdade inerente à cidadania. Os desfavorecidos pelo mercado se
utilizam do voto e da organização política para reduzir as
desigualdades económicas, por intermédio, por exemplo, da
criação de impostos redistributivos ou de uma legislação de
protecção ao trabalhador. Contudo, Marshall dizia que as
cidadanias civis e política provavelmente só conseguiriam

115
diminuir a desigualdade de modo eficaz se os membros de uma
comunidade compartilhassem um padrão básico de vida e cultura.
O exercício efectivo dos direitos civis e políticos dos membros de
uma comunidade exige que eles estejam livres da insegurança e
da dependência impostas pela miséria, pela doença e pela
carência de educação e de informação. Na visão de Marshall,
entre esses padrões básicos também se incluiria uma experiência
compartilhada de educação, assistência médica e demais serviços
sociais. A experiência comum visava diminuir as diferenças
marcantes de status que poderiam se revelar no momento em que
as desigualdades de mercado fossem traduzidas em tipos
radicalmente distintos de atendimento médico ou acesso à escola,
entre os ricos e os pobres.

Para Marshall, a cidadania social constitui, então, um meio


poderoso e indispensável de alcançar a integração social diante
das desigualdades criadas pelas economias de mercado. Portanto,
a cidadania social traz benefícios para as economias de mercado.
Criando igualdade de oportunidades e reduzindo as profundas e
permanentes diferenças de qualidade de vida entre os membros da
sociedade, a cidadania social os estimula a aperfeiçoar seus
talentos e a empregar seus melhores esforços, mesmo diante das
disparidades de renda. Na perspectiva de Marshall, a política
social deveria se ocupar primeiramente de fazer o melhor uso
possível das aptidões de todos os membros da sociedade.
Marshall não encarava a política social como um meio de igualar
rendas, ou mesmo de eliminar a pobreza. As políticas sociais não
seriam um subconjunto das políticas económicas. A solução da
pobreza compete à política económica, especialmente às políticas
de emprego, uma opinião que recebeu recentemente o apoio de
Samuel Morley (1995)

116
numa análise da pobreza e da desigualdade na América Latina. É
possível, portanto, extrair do pensamento de Marshall um critério
de avaliação da política social e de sua contribuição para a
cidadania: trata-se de saber se ela contribui ou não paramitigar as
profundas cisões no interior da sociedade pela eliminação das
desigualdades permanentes e auto- reproduzidas, fortalecendo e
ao mesmo tempo prestando assistência aos mais vulneráveis.
Dentro dessa perspectiva, a relação da cidadania social com a
democracia e, daí, com os direitos civis e políticos, é positiva e
relativamente tranquila. Como disse Marshall (1981, p.135), a
cidadania social proporcionada por uma política de bem-estar
torna o capitalismo suficientemente civilizado para coexistir com
a democracia.

Esse modo de entender as relações entre as várias dimensões da


cidadania foi contestado em dois aspectos. Em primeiro lugar, a
extensão da cidadania social por intermédio da provisão estatal
criava conflitos com a ênfase na liberalização do mercado para
incentivar o desenvolvimento económico, conforme o próprio
Marshall reconheceu ao analisar o declínio do welfare state na
Grã-Bretanha em fins da década de 70 e início da de 80. Em
segundo lugar, a provisão de cidadania social pelo Estado
ameaçava as liberdades civis e mesmo as liberdades políticas, por
representar uma interferência directa na vida privada dos
cidadãos e por gerar uma dependência cliente lista que diminuía a
participação dos cidadãos. As próximas sessões examinarão essas
questões, relacionando-as com os dilemas defrontados pela
cidadania social na América Latina.

117
Unidade 5.2: Cidadania Social e Mercado
Esping-Andersen (1990) mostra que, nas democracias capitalistas
avançadas, se desenvolveram três modalidades diferentes de
resolver a contradição entre a cidadania social e o mercado. Ele
distingue três tipos de regime de previdência social no capitalismo
avançado, de acordo com o grau em que a cidadania social reduz
a dependência do indivíduo em relação ao mercado de trabalho,
ou seja, retira do trabalho o carácter de mercadoria. Esses tipos
de regime são: o liberal, o corporativista e o social-democrata. No
tipo liberal, a previdência social é fornecida por mecanismos de
mercado, como a aposentadoria privada e os planos de saúde
particulares, complementados por programas mínimos de
assistência pública destinados aos pobres. No tipo corporativista
há um sistema estratificado, pelo qual o Estado proporciona
diferentes tipos e níveis de benefícios a diferentes categorias
profissionais, reservando-se à família muitas das funções
tradicionais de previdência. Por último, no tipo socialdemocrata
há um sistemauniversalista de provisão estatal, pelo qual todos os
cidadãos fazem jus, individualmente, a um elevado nível de
benefícios.

Esses tipos de regime de bem-estar social são o resultado de


processos históricos opostos, quais sejam o desenvolvimento
orientado para o mercado, dos países anglo-saxões, e o
desenvolvimento centrado no Estado, dos países de capitalismo
tardio da Europa continental. A esses diferentes padrões de
desenvolvimento se associaram diferenças no processo de
formação de classes, resultando em marcantes distinções na
maneira pela qual os países dos três grupos prestam e
administram benefícios de previdência. As coalizões de classe,
favoráveis à prestação pelo Estado ou pelo mercado, são cruciais
na sustentação desses regimes. No modelo liberal, somente um

118
grupo marginalizado se beneficia da previdência pública,
enquanto as demais classes encontram no mercado sua única
fonte de serviços sociais. Nos outros dois modelos, factores
históricos levaram tanto as classes médias quanto a classe
operária a recorrer à previdência pública.

Esping-Andersen afirma que os três regimes não só diferem nas


soluções que oferecem às desigualdades de classe na sociedade
capitalista, como também constituem, por si mesmos, sistemas de
estratificação social, contribuindo directa e indirectamente para
as divisões e coalizões de classe. Assim, o modelo liberal tende a
criar uma underclass estigmatizada que depende da previdência
pública, uma classe média constituída pelos que dependem de
sistemas de pensão, aposentadoria e assistência médica
fornecidos pelo mercado, mas subsidiados pelo Estado, e uma
classe alta que pode adquirir esses serviços no mercado. O
modelo corporativista acentua as diferenças de acesso à
previdência de categorias profissionais, com base em gradações
de status e estilos de vida desses grupos, e conquista a adesão das
classes médias à provisão estatal. O modelo social-democrata se
baseia no compromisso da classe média com um sistema
universalista de provisão estatal não -mercantil, garantido por um
nível elevado de assistência básica e pela possibilidade de
complementá-la com o pagamento de contribuições adicionais.

Os três tipos de regime de previdência social são importantes


factores na transformação das estruturas ocupacionais do final do
século XX e no surgimento de uma economia de serviços, a
chamada economia pós-industrial. Se, inicialmente, a formação
do Estado de bem-estar social correspondia à emergência de uma
classe operária que trabalhava em condições nas quais era

119
importante a intervenção do Estado para lhe garantir protecção no
trabalho, essa classe desapareceu no mundo desenvolvido e foi
substituída por trabalhadores dos sectores de serviços, a maioria
deles ocupam em actividades burocráticas, os empregados de
“cor branca”. Essa nova classe média é numerosa, educada, tem
uma vida mais longa e altas aspirações quanto a seus padrões de
vida e de segurança. Suas demandas são elevadas, e a questão
política então é saber qual dos dois, mercado ou Estado, tem
melhores condições de atender satisfatoriamente a essas
aspirações.

No regime social-democrata de previdência social, que conta com


um amplo welfare state, o Estado e os serviços sociais contribuem
com uma proporção considerável do emprego. No regime liberal,
a criação de emprego também se dá especialmente nos serviços e
nas categorias ligadas a profissões liberais e semi-liberais, mas
esse tipo de emprego é menos dependente do Estado e está mais
concentrado nos serviços ao produtor e no entretenimento pessoal
que no modelo social- democrata. O modelo liberal cria maior
número de empregos nos serviços não - qualificados que o
socialdemocrata, mas o nível do emprego nos serviços sociais
prestados pelo mercado é mais alto. O modelo corporativista é o
que mais depende do emprego industrial. Sua contribuição para a
criação de novos empregos nos ramos de serviços, principalmente
nos serviços sociais, é pequena por causa da ênfase na família
como supridora de condições de bem-estar.

Os três modelos de capitalismo providencial nos fazem lembrar,


então, que existem maneiras alternativas de implementar a
cidadania social, mesmo nas economias avançadas.

120
Não há nenhuma certeza de que continuem sendo criados bons
empregos em número suficiente para satisfazer às aspirações de
mobilidade. Nos Estados Unidos, os rendimentos da maioria da
população estagnaram nos últimos anos e a insegurança no
emprego cresceu muito. Além disso, a mobilidade social vem
dependendo de que as sucessivas ondas de imigração forneçam
mão-de-obra para os postos inferiores de trabalho, enquanto
permitem a um bom número de imigrantes de levas anteriores
ascender na hierarquia ocupacional. Essa forma de mobilidade
somente trouxe resultados parciais para os afro-americanos, e
pode vir a ser totalmente inútil no caso das novas gerações de
migrantes hispânicos (Wilson, 1994).

O tipo corporativista de regime de previdência social depende da


existência de baixos níveis de participação económica e de altos
níveis de produtividade, pois, nesse caso, a intervenção do
mercado não estimula o crescimento do emprego. Assim, o
desemprego é provavelmente muito grande e as transferências do
governo tendem a gerar um desequilíbrio fiscal que impõe um
aumento dos impostos; mas esse aumento da taxação destrói o
fundamento geral da adesão das categorias profissionais de nível
mais alto ao sistema providenciarão. O modelo social-democrata
depende do pleno emprego e da boa vontade de trabalhadores
predominantemente masculinos do sector privado no sentido de
abrir mão de um aumento dos seus salários reais, facilitando com
isso a concordância dos empresários com os altos impostos que
sustentam os níveis de emprego do sector estatal, no qual
predomina a mão-de-obra feminina.

121
Unidade 5.3: Meios Alternativos de Prover Condições de
bemestar Embora os contornos de um novo regime de bem-estar
social já estejam visíveis na América Latina, é preciso analisar mais
profundamente a maneira de colocá-lo em prática. Há muita
controvérsia e uma grande incerteza quanto ao equilíbrio desejável
entre a participação do Estado e a contribuição do mercado e das
associações voluntárias, ou da família e da comunidade. Para
entender essas questões é preciso partir da perspectiva da cidadania,
a fim de pensar a respeito dos dilemas inerentes à provisão de
condições de bem-estar social. Sugiro que esses dilemas sejam
analisados em duas dimensões: de um lado é definida como
responsabilidade da comunidade ou fundamentalmente privada; de
outro, ela toma como base o indivíduo ou o grupo.

Direitos sociais e responsabilidades são por sua própria naturezas


inerentes às relações sociais e têm um carácter colectivo, que é
diferente de direitos e responsabilidades individuais associados à
cidadania civil ou política. A moderna concepção (liberal) da
cidadania civil ou política se baseia no exercício individual de
direitos e obrigações. A propriedade privada é protegida pela lei,
e esse fato é, em última instância, a garantia dos indivíduos contra
a autoridade arbitrária do Estado.O lar das pessoas pode se tornar,
quando necessário, sua torre.

A cidadania social, ao contrário, depende muito mais da


participação da comunidade. O exercício formal ou informal dos
direitos de cidadania social depende da participação activa de
outros, para os quais esses direitos constituem obrigações. Os
direitos sociais são, em larga medida, direitos de receber ajuda
dos outros, e as responsabilidades sociais se referem a dar ajuda

122
aos outros. Saúde e educação, por exemplo, são ao mesmo tempo
direitos sociais individuais e direitos que beneficiam a
comunidade como um todo. Além disso, a cidadania social
depende tanto da qualidade interpessoal dos serviços prestados e
recebidos quanto dos direitos e das responsabilidades formais.

A cidadania social depende, então, da disponibilidade de relações


sociais e de um certo sentimento de identidade e obrigação
comuns. Não é possível agir sozinho para obter serviços que são
basicamente colectivos, tais como condições adequadas de
habitação, atendimento médico ou auxílio em situações de grande
urgência. Esses serviços são prestados pelo Estado, ou então
podem ser obtidos pela associação com outras pessoas que tenham
as mesmas necessidades. Mesmo quando é o Estado que presta o
atendimento, o indivíduo tem melhores condições de manter uma
certa autonomia perante a gestão que procede de cima para baixo
se cooperar com outros na organização de um lado perante o
órgão administrativo. Por essa razão, as organizações
comunitárias e as redes de assistência social estão no cerne da
democracia deliberativa.

É claro que, na ausência dessas relações sociais de apoio, a


cidadania social pode se tornar um meio de controle por parte do
Estado. É aí que a tensão entre a esfera privada e comunal e a
esfera pública se torna mais evidente. A origem da distinção entre
público e privado na cidadania moderna foi o ataque do mercado
às formas tradicionais de provisão de bem-estar social. Como
observaram Fraser & Gordon (1994), as demandas da unidade
familiar por recursos baseados no parentesco e na comunidade
perderam força diante da individualização dos direitos de
propriedade e da liberação da força de trabalho de

123
suas obrigações comunais. O parentesco se tornou, em essência,
uma esfera doméstica ou privada da sociedade.

Nessas circunstâncias, a família se coloca em oposição ao Estado


e o privado se opõe ao público, como esferas concorrentes na
prestação de serviços sociais. O Estado providencia esses
serviços como parte dos direitos dos cidadãos, mas eles podem
ser privatizados em momentos de crise fiscal, porque a família e a
comunidade assumirão as tarefas sociais. O limite entre uma
definição pública ou privada de moral é flutuante, depende da
ideologia dominante e pode ser modificado pela acção política.
Quando o bem-estar é visto como uma questão basicamente
privada, a ser resolvida no âmbito da família e da comunidade
imediata, e não como um assunto pertinente à actividade e à
organização política, se impõe uma barreira permanente à
extensão da cidadania social (TURNER, 1990).

A combinação das dimensões públicas ou privado e


colectivo/individual dá origem a quatro modalidades alternativas
de prover bem-estar social (ver Quadro o quadro a baixo). Esses
resultados sectoriais e suas respectivas políticas determinam o
desenvolvimento da cidadania social, pois as pessoas recorrem a
mecanismos distintos de geração dos serviços que desejam para
si mesmas e para suas famílias. Com o tempo e a variação das
condições propícias, essa actividade pode alterar a concepção
predominante de cidadania.

No primeiro tipo as pessoas enfrentam dificuldades querequerem


uma solução comunitária, e esta é procurada por meio da
cooperação com outros em organizações voluntárias dedicadas a
melhorar a qualidade da habitação, da educação e das demais
comodidades urbanas. Isso corresponde a uma

124
concepção participativa da cidadania, na qual o bem-estar social,
embora definido como responsabilidade pública, é controlado
directamente, isto é, no nível local, por seus beneficiários. No
segundo tipo o fundamento da acção também é a cooperação
baseada na unidade familiar, mas as estratégias são privatizadas,
destinadas a obter condições de bem-estar por intermédio da
assistência mútua na esfera da unidade familiar. Nessa situação,
as pessoas participam politicamente a fim de salvaguardar seus
direitos civis e seus interesses económicos, mas quando o bem-
estar dos membros da unidade familiar é visto como
responsabilidade particular da família, o sentido de cidadania
social se estreita.

Quadro 1-Tipos de cidadania social


Forma de Participação

Definição da responsabilidade Colectiva Individual

Público Associações voluntarias e O Estado e clientelismo das


movimento sociais que burocracias previdenciais
demandam serviços sociais,
habitação, direito e
educação.

Privado Unidade familiar e O mercado e a cidadania


comunidade no manejo de social controlado
estratégia.

Fonte: Pocock, (1995)

125
O terceiro e o quarto tipo se caracterizam por baixa participação da
família ou da comunidade, correspondendo a formas não -
participativas de cidadania. O terceiro tipo é aquele em que os
indivíduos recorrem ao Estado ou a órgãos estatais de grande
poder, e estão em permanente contacto com eles, mas carecem de
apoio social e se sentem impotentes para controlar os termos dessa
relação. O conceito de cidadania tem um conteúdo paternalista,
pelos quais os direitos individuais à protecção social são
reconhecidos, mas estes são definidos de cima. O quarto tipo, no
qual os indivíduos adquirem serviços no mercado, corresponde,
em sua manifestação extrema, a uma negação da cidadania social
como responsabilidade colectiva.

Unidade 5.4: Os Limites da Cidadania Social


Embora reconhecesse a existência de alternativas a um welfare
state centralizado, Marshall tinha poucas dúvidas quanto ao fato de
que o Estado deveria ser o principal responsável pela
implementação de padrões de cidadania social. Seu pensamento
pode ser sintetizado nos seguintes termos: como o funcionamento
do mercado, no âmbito nacional e internacional, gera
desigualdades económicas e sociais, somente uma instituição
nacional e representativa, o Estado democrático, pode agir em
defesa do interesse geral. A mobilidade do trabalho e do capital
dificulta soluções puramente locais. Poderia ainda ser
acrescentado que o Estado nacional tem limites em sua
capacidade de agir em defesa do interesse geral, em virtude da
internacionalização dos mercados e da emergência de blocos
comerciais e mercados comuns. Além disso, a moderna cidadania
social se funda numa infra-estrutura

126
complexa e interdependente de serviços de saúde, educação e
previdência social. Essa infra-estrutura requer uma gestão
competente e uma coordenação de recursos que muito
provavelmente as associações voluntárias ou os mecanismos de
mercado não podem garantir.

Essa concepção do papel do Estado depende, porém, da existência


de uma estrutura institucional que poucas sociedades possuem:
uma burocracia estatal eficiente e desinteressada, uma sociedade
civil forte e o respeito generalizado à lei. Além disso, a escassez
de pessoal treinado e a disseminação do clientelismo tornaram a
história recente da intervenção estatal nas questões sociais na
América Latina tão predatória quanto lenta, para citar uma
expressão de EVANS (1989).

Não é de estranhar, portanto, que o papel do Estado na garantiada


cidadania social venha sendo actualmente tão questionado. Nos
Estados Unidos e na Europa, o Estado é frequentemente visto
como uma fonte ineficiente, demasiado burocrática e
inerentemente autoritária de condições de bemestar social.
Habermas (1995) vê nesse centralismo uma característica
intrínseca da cidadania social, afirmando que os direitos sociais,
como os direitos civis de propriedade privada, contribuem de
modo necessariamente ambíguo para a democracia. Constituem a
base da liberdade individual e da independência social, que
favorecem o exercício efectivo dos direitos políticos. Mas
também geram uma burocracia previdência e um clientelismo que
limitam a independência política, enquanto os direitos de
propriedade privatizam os interesses políticos.

Entretanto, as outras três formas de proporcionar bem-estar


também exigem condições institucionais que podem não ser

127
encontradas na América Latina, e cuja eficácia pode variar de um
país para outro. Isso talvez seja mais evidente no caso do
mercado, apesar de sua crescente importância na manutenção dos
fundos de pensão e na prestação de serviços privados de saúde e
educação. Os limites do mercado na provisão desses serviços
decorrem basicamente da pobreza e da desigualdade de renda. Se
apenas uma pequena parcela da população tem condições de
adquirir serviços sociais no mercado, então estes podem se tornar
factores adicionais de desigualdade, por criar uma pequena
camada privilegiada que monopoliza os melhores recursos de
educação e assistência médica. O fraco desenvolvimento dos
mercados financeiros significa que a intervenção e a supervisão
do governo serão necessariamente maiores nas áreas em que a
presença do mercado vem se tornando mais usual, como no caso
de aposentadorias e pensões.

A mais grave limitação à acção do mercado na provisão de


serviços sociais está na situação do emprego na América Latina.
Mais que nos países de capitalismo avançado, a previdência
social prestada pelo Estado na América Latina se vincula ao
emprego, e não a um direito universal da cidadania. Os benefícios
da previdência social têm sido em grande parte custeados pelas
contribuições das empresas e dos trabalhadores, e não pelo
imposto de renda. Uma consequência disso é a prática, tanto das
empresas quanto dos trabalhadores, de fugir ao ónus das
contribuições previdência, recorrendo ao trabalho sem carteira
assinada. Esses tipos de emprego são mais comum nas actividades
por conta próprias e nas pequenas empresas, cujas despesas
operacionais são oneradas pelos encargos sociais e que correm
menos risco de ser apanhadas. Mas as pesquisas revelam que
até as grandes empresas

128
empregam ilegalmente uma parcela de trabalhadores informais,
não -registados Roberts, (1989). O desenvolvimento económico
desigual, tanto na cidade quanto no campo, aumentou o
contingente de trabalhadores sem carteira, que corresponde a uma
proporção considerável do emprego informal.

A reestruturação económica das duas últimas décadas tem


acentuado essa tendência, contribuindo para aumentar a parcela
da actividade económica realizada fora dos padrões do emprego
estável e da jornada integral. A população economicamente
activa inclui um número cada vez maior de trabalhadores em
tempo parcial e de mão-de-obra informal quenão é protegida pela
legislação do trabalho, além de desempregados. A importância
crescente das formas de trabalho precário se baseia na mudança
tecnológica e no carácter interdependente da economia mundial,
factores que incentivam as empresas a flexibilizar a utilização da
mão-deobra, com a exploração do trabalho por conta própria e de
pequenas empresas, além do emprego informal não-protegido
pela legislação, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países
em desenvolvimento.

A crise que os pobres da América Latina vêm enfrentando é


consequência do declínio das oportunidades de emprego formal
em empresas médias e grandes, inclusive no sector estatal, num
contexto em que o emprego formalizado sempre foi o principal
meio de acesso aos benefícios sociais proporcionados pelo
Estado. As taxas de desemprego urbano cresceram rapidamentena
América Latina durante a crise dos anos 80, chegando à média de
8,9 por cento em 1985, mas caíram para 6,6 por cento por volta de
1987, e foram particularmente graves entre os mais educados e
mais jovens Ilo, (1989). Na ausência de instrumentos

129
públicos de protecção social, como o auxílio-desemprego e a
ajuda às famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, as
pessoas terão de continuar recorrendo às mais diversas fontes
informais de renda para sobreviver.

As consequências da liberalização do mercado também se


fizeram sentir sobre a distribuição da renda entre as famílias. Os
‘anos dourados’ das taxas de crescimento aceleradas, as décadas
de 50, 60 e 70, foram substituídos, nos países desenvolvidos e nos
países em desenvolvimento, por um período de crescimento mais
lento. Embora a taxa de crescimento existente tenha permitido até
recentemente um aumento da renda per capita, o ritmo desse
crescimento tem sido lento, se comparado com o das décadas
anteriores; além disso, a renda tem sido distribuída de modo
desigual.

Pesquisas realizadas no México indicam uma tendência de


diminuição da concentração de renda entre 1977 e 1984, mas logo
em seguida houve um novo aumento (Cortes & Rubalcava, 1991).
A ligeira queda da desigualdade da renda familiar no México no
período mencionado pode ser explicada pelo aumento do número
de pessoas provenientes de famílias pobres que ingressou no
mercado de trabalho. Há limites, porém, para o número de
trabalhadores que as famílias podem colocar no mercado,
principalmente em países nos quais houve anteriormente uma
queda da fertilidade e do tamanho das famílias. Mesmo no
México, o tamanho das famílias caiu rapidamente entre 1980 e
1990, contribuindo para reduzir o contingente de mão-de-obra
liberado pelas unidades familiares. Pesquisas sobre a força de
trabalho urbana no México mostram que as desigualdades de
renda aumentaram sensivelmente entre 1987 e 1994 nas
principais cidades do país, apesar de

130
terem sido anos de crescimento económico (Oliveira, Roberts &
Tardanico, 1996). As pesquisas também revelam que, durante a
crise de 1995, as famílias não conseguiram compensar a redução
da renda real com o aumento da participação de seus membros na
força de trabalho, em parte porque a queda da fertilidade
contribuiu para o declínio do tamanho das famílias. Assim, entre
1993 e 1995, a pobreza das famílias cresceu, registando-se uma
queda de aproximadamente 20 por cento na renda familiar real. O
crescimento da desigualdade de renda nas cidades mexicanas tem
sido acompanhado pela expansão do emprego informal. Nas três
principais áreas metropolitanas do país, 57 por cento da
população economicamente activa estava coberta pela
previdência social em 1987, enquanto apenas 41 por cento dessa
população tinha a mesma cobertura em 1995. Entre os
trabalhadores assalariados, a percentagem de cobertura caiu de 74
por cento para 58 por cento.

Em muitos países da América Latina, uma minoria significativa,


ou a maioria, da população está fora das instituições do mercado
formal; assim, tais instituições não podem constituir mecanismos
eficazes de garantia de um padrão básico de bemestar. Além
disso, não é possível prever se esse numeroso contingente de
trabalhadores que está fora da economia formalapoiará ou não um
regime de previdência social, e isso dificulta a formação de
coalizões estáveis de base ocupacional que assegurem a
permanência de determinado regime.

Família, comunidade e associações voluntárias são, à primeira


vista, instrumentos promissores de desenvolvimento de um
modelo de cidadania social menos centrado no Estado,
especialmente se levarmos em conta as tradições comunitárias de
muitas regiões rurais da América Latina, bem como a forte

131
influência da religião sobre as famílias e as comunidades. De fato,
as relações familiares e comunitárias constituíram bases
fundamentais de apoio para a urbanização durante a fase de
rápido crescimento da região. Mas essas fontes informais de bem-
estar social têm importantes limitações, que precisam ser
identificadas e pesquisadas.

O isolamento social da família impõe restrições significativas à


sua capacidade de suprir condições de bem-estar. Em primeiro
lugar, é preciso que ela funcione como uma unidade coesa. A
ideologia religiosa permite fortalecer esse aspecto, por acentuar o
papel da família como unidade principal de protecção e
assistência. Mesmo nesse caso, porém, a coesão também depende
de a família ser uma unidade económica, como nas famílias
camponesas ou nas empresas familiares, ou de o chefe de família
ganhar um salário que permita que sua esposa se dedique a cuidar
dos filhos e administrar a casa. Esping- Andersen considera essa
combinação de ideologia religiosa e salário familiar como uma
das características do modelo alemão de capitalismo providencial,
que delega à unidade familiar muitas das funções sociais. Em
segundo lugar, é possível que as famílias se baseiem tanto no
conflito de interesses, entre pais efilhos, marido e mulher, quanto
no consenso. Mas as possibilidades de conflito se avolumam
quando os modos tradicionais de dividir responsabilidades e as
ideologias patriarcais são postos em questão pelo funcionamento
do mercado, ou por modelos mais independentes de identidade de
género. Unidades familiares menores, a tendência de os filhos
viverem por conta própria mais cedo, esposas que trabalham fora,
tudo isso fez da família uma unidade menos consensual, à qual
faltam os recursos humanos necessários à provisão do bem-estar
de seus membros.

132
Há muito tempo as pesquisas têm chamado a atenção para o
emprego de estratégias económicas e políticas por parte das
famílias pobres dos centros urbanos na América Latina. Essas
estratégias familiares são comummente usadas pelas famílias
pobres para defender seus interesses económicos, ou para garantir
moradia e demais comodidades do meio urbano. Embora
raramente as estratégias económicas contribuam para a
organização colectiva, como sindicatos ou cooperativas de
produtores, as estratégias voltadas para o acesso a serviços sociais
se tornaram uma base para a construção de importantes
movimentos sociais, embora muitas vezes transitórios e
desorganizados.

Hoje não é tão provável que a mobilidade social seja vista pelas
famílias como uma possibilidade real. Ao contrário, têm-se
acentuado as estratégias de sobrevivência, o que não deixa de ser
uma grande diferença em relação ao período que se estendeu até
meados dos anos 70, quando mudanças estruturais nas economias
urbanas da América Latina permitiram uma significativa
mobilidade ocupacional. Essas estratégias de sobrevivência
frequentemente incluem, até entre os mais pobres, uma tentativa
de manter os níveis de consumo anteriores. Embora a
reestruturação económica torne mais difícil para as famílias
pobres garantir alimento e assistência adequados a seus membros,
ela também põe em questão o estilo de vida e o tipo de economia
de consumo que se desenvolveu na década de 70, mesmo entre os
mais pobres. Além disso, as dificuldades impostas aos pobres
foram acrescidas pela redução do valor real da assistência pública,
quevem acompanhando a reestruturação da economia, quer seja no

133
caso das transferências pagas pelo governo, quer seja na
qualidade dos serviços sociais prestados.

Duas tendências vêm sobressaindo no período recente de


liberalização económica. Entre os pobres, o recurso a estratégias
económicas voltadas para a sobrevivência. Essa tendência exige
consenso entre os membros da unidade familiar, mas, ao mesmo
tempo, torna difícil chegar a esse consenso. As famílias precisam
ganhar mais, porém o esforço necessário para isso tem aumentado
consideravelmente, já que as condições de trabalho se
deterioraram. Porém, a ausência de uma regulação eficiente,
aliada aos baixos níveis de subsistência, indica que o mercado de
trabalho tem condições de absorver um número maior de
trabalhadores, embora com níveis mais baixos de remuneração. A
família em que só uma pessoa ganha salário, que sempre é mais
um ideal que uma realidade, entre os pobres, tem-se tornado uma
forma cada vez mais rara de sobrevivência. O aumento do
emprego informal, já assinalado, trouxe duas consequências: de
um lado, abriu um grande número de oportunidades de trabalho
que representam uma fonte complementar de renda, mas
insuficiente para sustentar uma família; de outro lado, aumentou
substancialmente a participação das mulheres no mercado de
trabalho, inclusive as casadas e com filhos pequenos (GARCIA &
OLIVEIRA, 1994).

Esse fato, combinado com o relativo declínio do valor do salário


individual, observado há pouco, acarretou um aumento do
número de famílias nas quais há dois ou mais assalariados.
Escapar da pobreza depende da existência de duas pessoas que
trabalham e recebem salário na mesma unidade familiar. Essa
mudança na relação das famílias com o mercado de trabalho,

134
aliada ao grande volume do desemprego aberto, reforça as
desvantagens do isolamento social e económico. As famílias
pobres necessitam de fontes cada vez mais diversificadas de
trabalho para seus membros. As famílias chefiadas por mulheres
solteiras são principalmente aquelas em que os filhos têm idade
suficiente para colaborar na renda familiar. Vários estudos
concluem que, recorrendo a essas estratégias, muitas famílias
conseguem evitar uma queda em seus padrões de subsistência
(BENERÍA, 1991).

A importância crescente das questões económicas napreocupação


das famílias tem de certa forma restringido a relevância das
questões sociais, pois comer se tornou uma prioridade das
famílias pobres e as pessoas têm menos tempo para gastar com as
organizações de bairro ou de vizinhança. Gonzalez (1990)
observaram que a crise no México acabou privatizando os
assuntos de interesse das famílias. Além disso, a urbanização
entrou numa fase de consolidação, havendo menos possibilidades
de ocupar terras por invasão e construir moradias por conta
própria. O aluguer se tornou a forma predominante de posse de
uma moradia entre os pobres, mesmo nas áreas de invasão, o que
distanciou ainda mais o interesse pelos problemas da vizinhança
e a capacidade das famílias para resolver seus problemas por
iniciativa própria.

O mercado também teve o efeito de limitar a capacidade das


comunidades locais de oferecer serviços sociais. Nos países de
capitalismo avançado, a ocupação comum deu origem a fortes
laços comunitários dentro das cidades, especialmente nos lugares
em que essa ocupação criou estreita interdependência, como no
caso das regiões mineiras e dos grandes centros mono-industriais.
Interdependência até certo ponto semelhante pode

135
se fundamentar na origem étnica, como ocorre nos guetos étnicos
espalhados pelos Estados Unidos. Mas o desenvolvimento
económico introduz uma divisão económica e social nas
comunidades rurais e urbanas, o que acaba enfraquecendo a
localidade como base de coesão e fonte de serviços sociais. Os
estudos de comunidade na América Latina têm chamado a
atenção, por exemplo, para as desesperadas tentativas individuais
das famílias que, para arranjar um meio deganhar a vida, terminam
por enfraquecer o papel da vizinhança como base de uma
organização colectiva. Interesses externos, como o crime
organizado, os grupos religiosos ou a mídia globalizada,
representam hoje estímulos mais poderosos à divisão e à
individualização que no passado, jogando parentes e vizinhos uns
contra os outros, assim como os jovens contra os membros mais
idosos da comunidade. Zaluar, por exemplo, afirma que
processos desse tipo destruíram a cultura comunitária das favelas
do Rio de Janeiro (ZALUAR, 1996).

Seja como for, o padrão actual de mobilidade espacial na América


Latina impede que a comunidade local se torne uma fonte estável
de provisão de serviços de bem-estar. O processo de
reestruturação económica actualmente em curso tem contribuído
para a grande volatilidade dos mercados de trabalho urbanos,
provocando migrações, já que algumas empresas reduzem a mão-
de-obra para aumentar sua competitividade, enquanto outras
fecham as portas devido à concorrência de produtos importados
mais baratos. A liberalização do comércio internacional produz
efeitos semelhantes na área rural, pois a importação de produtos
alimentícios enfraquece um sector já bastante debilitado.

136
A migração internacional se transformou numa estratégia usual,
principalmente no México e na América Central, devido à
proximidade dos Estados Unidos. Mas outros países da América
do Sul também participam desse movimento em direcção ao
norte; a migração internacional dentro da região é também
bastante significativa, como, por exemplo, entre a Argentina e os
países limítrofes. Os vínculos internacionais criados pela
migração se tornam às vezes fontes mais importantes de acesso ao
bem-estar social que o Estado nacional, ou as relações
comunitárias dentro do país. As remessas de dinheiro se tornaram
um factor importante de desenvolvimento e bem- estar das
comunidades no México e na América Central. Há mais elementos
envolvidos nessas remessas que o fluxo financeiro, pois
frequentemente os emigrantes mantêm profundas ligações com as
comunidades que deixaram para trás, criando com isso vínculos
políticos e económicos. Os empreendimentos transnacionais,
quer sejam de natureza social, económica ou política, refazem o
mapa da cidadania, superando limites nacionais e fortalecendo
laços externos, internacionais, em detrimento dos laços internos,
nacionais.

Finalmente, há a questão da sociedade civil e da actividade


associativa. Essa tem sido uma base sólida de construção da
cidadania social em muitos países e, frequentemente, é fonte de
nova definição de padrões. Exemplo disso é o grande número de
subgrupos voltados para necessidades específicas, que se
colocam fora do âmbito do Estado Balbo, (1987). Uma
multiplicidade de redes informais e de associações voluntárias
vem surgindo, dedicada a suprir necessidades específicas e
proporcionando serviços sociais, ou constituindo foros para a
manifestação de ideias, ou centros de ajuda mútua. A família e
seus integrantes, principalmente as mulheres, são elementos

137
centrais na manutenção dessas actividades. Mas esse sector
depende da existência de um grande número de cidadãos que
tenha tempo e dinheiro suficientes para dedicar à actividade
voluntária. As bases de sustentação da actividade filantrópica ede
ajuda mútua na América Latina são precárias, devido à
fragilidade económica da classe média e das classes
trabalhadoras. A religião oferece uma base mais sólida para tais
iniciativas, como demonstram vários estudos urbanos (MARIZ,
1992).

A fraqueza das tradições nacionais de actividade associativa faz


das organizações voluntárias ligadas a instituições estrangeiras
um valioso tema de pesquisa. As ONGs que mantêm ligações
com o exterior têm-se revelado importantes provedoras de
serviços sociais na América Latina e um forte estímulo para a
organização popular em torno de questões de Weinstein, (1993).
Mas elas têm um impacto ambíguo sobre a cidadania social. A
expressão ONG inclui uma grande diversidade de organizações
leigas e religiosas, políticas e não-políticas. Diferenciam-se por
seu grau de dependência de fundos externos e de pessoal
administrativo estrangeiro. Sua importância na América Latina
também é variável, sendo maior entre os países mais pobres e de
menor população. Há inevitáveis dificuldades na coordenação de
políticas sociais entre organizações tão diversas. Além disso, há
diferenças entre as ONGs cujos serviços são coordenados a partir
do exterior e aquelas que trabalham de comum acordo com a
população local, procurando fortalecer a capacidade de iniciativa
das comunidades. Uma questão muito relevante consiste em saber
se as organizações que mantêm vínculos externos e não precisam
prestar contas de suas actividades contribuem de fato para
desenvolver um sentimento nacional de igualdade de direitos
sociais.

138
Unidade 5.5: A Cultura Moçambicana Pós-independência Nacional

A FRELIMO criou em 1976, uma caricatura a que chamou


Xiconhoca. Esta caricatura representou todo e qualquer inimigo
interno (ideológico). Xiconhoca é uma palavra composta de dois
nomes: Xico e Nhoca: O primeiro nome vem de Xico-Feio, um
indivíduo que pertenceu à PIDE-DGS. Nhoca, em quase todos os
dialectos do País, significa cobra. Bem sabemos qual é o modo
de vida de uma cobra e os truques que usa quando quer atacar
uma pessoa.

Segundo o discurso de Samora Machel em 1980, o Departamento


de Informação e Propaganda-DIP achou necessário criar uma
figura que representasse o nosso inimigo interno. Essa figura é o
Xiconhoca.

Assim o Xiconhoca representa tudo aquilo que nós combatemos.


Podemos dizer que ele tem uma boca de bêbado, uma orelha de
boateiro, mãos de açambarcador e de especulador, olhos de
racista, nariz de tribalista, dentes de regionalista, pés de
confusionista. O Xiconhoca é uma figura que representa todos
estes males deixados pelo colonialismo, e que o povo
moçambicano está a combater.

Xiconhocas são aqueles indivíduos que conduzem viaturas


quando se encontram bêbados, originando graves acidentes; é o
parasita que se recusa a trabalhar, a participar na produção
individual e colectiva.

Existem, no entanto, muitas pessoas que usam a palavra


Xiconhoca por uma simples brincadeira. Tenho amigos que

139
também tem esse hábito, num sentido de piada a gente chama
xiconhoca ou xiconhoquice qualquer atitude admirável.

A população deve estar consciente que o Xiconhoca é um inimigo


do povo, é um indivíduo que tem o mesmo modo de vida do
inimigo, do reaccionário, do inimigo da independência e
soberania moçambicana, é todo o indisciplinado, o corrupto, os
bandidos, assassinos, ladrões, divisionistas, regionalistas,
racistas, etc.Como personagem, ganhou autonomia em relação à
carga ideológica que lhe foi imputada, tornando-se apenas uma
figura popular do género do «Zé Povinho» português ou do
«John Bull» inglês.

Porém, é provável uma nova dinâmica do Xiconhoca1 no futuro.


Mas, caso mantenha o peso ideológico ligado ao contexto
histórico da afirmação da FRELIMO, é natural que venha a
desaparecer pois a sua eficácia ideológica e social será nula,
sobretudo depois das mudanças políticas verificadas na década de
90.

Como caricaturas temos usado Xiconhoca enquanto figura


singular. Se isso é verdade, não deixa de ser também verdade que
existem vários xiconhocas, todos semelhantes, existindo,
inclusivamente, diálogos e acções concertadas entre eles.

Todavia, isso não é mais do que o desdobramento de umamesma


personagem. No entanto, é possível identificar três xiconhocas ou
pelo menos três tipos de xiconhocas, cada um

1
Xiconhoca é o mito anti-Revolução moçambicano publicado na Revista Tempo
entre os anos 1976 e 1980.

140
deles representando determinado modelo de classe e de
comportamento social que a FRELIMO desejava combater.

Esses tipos são:


Xiconhoca Popular, irresponsável e sabotador, o da camisa, de
alças, de chinelos e de bebida alcoólica no bolso.

Figura 8-s três tipos de xiconhocas

Fonte: DIP da FRELIMO (2012).

Xiconhoca Marginal, o corrupto do mundo urbano de cultura


burguesa, o de óculos escuros, calças à boca-de-sino, cinto largo e
sapato de tacão alto.

Xiconhoca Burguês, herdeiro do comportamento colonialista, o


burocrata de fato e de gravata.

O Xiconhoca Popular é desde boateiro, passando por bêbedo,


agitador, criminoso e terminando em especulador. Ele tem todos
ou quase todos os defeitos que o cidadão não deve ter, portanto,
«o povo» ideologicamente sagrado é o mais atingido pelas
críticas, confirmando o que havíamos dito atrás sobre o desajuste
do xiconhoca em relação à de luta de classes. Se no tempo
colonial a esmagadora maioria dos moçambicanos era marginal
em relação à sociedade central marcada por relações

141
de produção assalariada, mas limitadas ao espaço urbano sem
grande peso no total da população, na pós-independência tudo
isso foi alterado de forma qualitativamente significativa, ainda
que sem grande expressão quantitativa na fase inicial.

O Xiconhoca Marginal é o segundo mais caracterizado. É um


pouco diferente do anterior enquanto personagem e enquanto
modelo social possível de crítica pelo poder político. Se o anterior
simboliza o indivíduo popular da sociedade tradicional que está
em transição para a sociedade moderna e ainda não se integrou
nesta última, este o Marginal e o próximo — o Burguês
– são indivíduos já pertencentes a essa sociedade moderna, mas
estão carregados de vícios. Pertencem, assim, a uma sociedade
moderna, mas a uma sociedade moderna com base num modelo
errado – o «ocidental» «o capitalista», isto é, não são cidadãos da
moderna sociedade socialista.

Apenas a título de exemplo da diferença entre o Xiconhoca


Popular e o Xiconhoca Marginal é a curiosa distinção que se faz
entre um e outro na atitude face à vida num apartamento. O
primeiro estraga as casas, portanto, é alguém que não sabe o valor
nem como se vive num andar, pois vem do mundo tradicional e
periférico, o segundo diz a outra pessoa “Não sejas parvo, homem!
Faz como eu que nunca pago a renda! Então as casas não são do
povo?” – portanto, é alguém conhecedor das normas da vida
urbana, embora não as respeite. Certamente, o que se critica na
imagem do Xiconhoca Marginal é sobretudo um tipo de vida
associado ao que se considera ser os vícios da cultura Burguesa.
Na caracterização feita, ele é, entre outras coisas, mulherengo,
drogado, bandido, não liga à política, e quando liga é contra o
poder popular, defende a cultura burguesa.

142
O Xiconhoca Burguês, curiosamente, aquele que era o inimigo de
classe é o único que se distingue do povo, inclusivamente,
despreza o povo e complica a vida do povo. Outro sintoma da
distância entre o potencial inimigo ideológico e a «realidade
real». É importante referir que o Xiconhoca Burguês não é patrão,
mas agente dos patrões, normalmente associados ao estrangeiro.
Há como que um espelho de uma realidade que hoje parece
assente: a debilidade das burguesias africanas no pós-
independências e a sua sobrevivência é graças a ligações
económicas que manteve com o exterior.

A caracterização do Xiconhoca Burguês deixa perceber, além do


que se disse, outros problemas com que o Estado moçambicano se
batia e a forma como se desculpabilizava o poder político.

Problemas relacionados com fuga de quadros de talentos, as


dificuldades com a vinda de cooperantes ou as dificuldades de
funcionamento da máquina administrativa do Estado têm uma
justificação: a acção do inimigo personificado no Xiconhoca
Burguês.

São inegáveis as dificuldades de Moçambique para pôr a


funcionar o aparelho estatal no pós-independência, problemas
esses com que se debateu a generalidade dos países africanos
nessa situação. Porém, é claramente insatisfatória a explicação
ideológica.

Por tudo o que se disse, o grande impacto dos Xiconhocas no


Moçambique recém-independente teve a ver com todo um
contexto, no qual tudo é explicável.

143
Na época, o partido único, a FRELIMO, optou claramente pela
via do socialismo na sua vertente marxista-leninista, e estava
disposto a transformar radicalmente a sociedade a partir de
pressupostos ideológicos. Mas certa ou errada, essa foi uma
opção só compreensível naquele contexto próprio.

Nos espíritos moçambicanos então parecia existir uma crença


contagiosa à qual quase ninguém escapava, que era possível
construir um homem novo, para tal, era preciso que nos quadros
mentais dos cidadãos passasse a predominar um modelo
existencial de pensamento, de cultura, de valores, de actividade
económica, que rompesse com os quadros mentais herdados, quer
do colonialismo, quer da sociedade tradicional. Desse ponto de
vista, tratar-se-ia de um ser ideologicamente fabricado. No intuito
de atingir esse fim, o Xiconhoca foi um entre vários mecanismos
usados, uns de forma consciente, outros talvez não.

Além do Xiconhoca poderíamos buscar outros exemplos. Muita


gente se recorda certamente dos neologismos revolucionários
como a promoção do uso do termo “camarada”-desde o
«camarada» secretário ao «camarada» presidente, em
substituição dos tratamentos de cortesia «burguesa» «senhor»,
“patrão” ou “dona” ou a valorização de uma indumentária que se
definia mais pela recusa masculina do fato e da gravataocidental
do que pela opção decisiva por veste militarista à moda chinesa
ou, genuinamente africana, à moda zairense; ou ainda, através de
uma construção humorística que procura ou ridiculariza o
«homem velho».

144
E não resta dúvida quanto ao profundo significado ideológico
dessas mensagens, desde o ano zero da Revolução moçambicana.
Mas de todas as marcas, a do Xiconhoca foi a que atingiu maior
eficácia e maior impacto nas consciências da jovem Nação
(RIBEIRO, 2004).

Exercício de Auto-Avaliação
1. Assinala com x as afirmações correctas:
a) O debate sobre a política social na América Latina raramente
focaliza as consequências de determinadas políticas para a
qualidade da cidadania numa democracia.
b) A extensa literatura recente sobre a transição para a
democracia na região não se ocupado em consolidar direitos
civis e políticos.
c) África deixou de lado a relação entre os direitos e as
obrigações sociais na construção da democracia.
d) Reis (1996) chama a atenção para as inevitáveis tensões
produzidas nas sociedades democráticas entre uma concepção
social e uma concepção individual da cidadania,
principalmente no que diz respeito às demandas
contraditórias de interesses colectivos e individuais.
2. Qual é a importância da cidadania social para construção de
uma sociedade mais justa.
3. A análise das características da cidadania social deve,
portanto, se adequar a contextos específicos.
a) Identifica as características da cidadania no contexto
actual dos moçambicanos.
4. A cidadania política moçambicana é hoje mais questionada
do que vinte anos atrás.
a) Concorda com esta afirmação? Justifica.

145
5. No contexto de África livre do jugo colonial, quais foram as
razões que contribuíram na insegurança económica.
6. Na época, o partido único, a FRELIMO, optou claramente
pela via do socialismo na sua vertente marxista-leninista.
a) Qual foi o principal impacto ocorrido em Moçambique a nível
económico, político e cultural.
7. A FRELIMO estava disposta a transformar radicalmente a
sociedade a partir de pressupostos ideológicos, mas certa ou
errada, essa foi uma opção só compreensível naquele
contexto próprio.
a) Indica e explica três características ou princípios
ideológicos da Frelimo.
8. A FRELIMO criou em 1976, uma caricatura a que chamou
Xiconhoca. Esta caricatura representou todo e qualquer
inimigo interno (ideológico).
a) Define e caracteriza Xiconhoca.
b) Indica os tipos de xiconhoca que conheces.
c) Considera um estudante faltoso, incumpridor e desencantador
como xiconhoca? Porque?
9. Tendo em conta o isolamento social da família que impõe
restrições significativas à sua capacidade de suprir as
condições de bem-estar.
a) Identifique os principais problemas que afectam as famílias
africanas.
b) Explica o funcionamento de uma unidade familiar.
c) Mencione os principais factores que avolumam o conflito nas
famílias

146
TEMA VI: CIDADANIA E A DIMENSÃO CULTURAL

Unidade 6.1: Pluralização Sócio-Cultural e Direito a


Diferença Nas sociedades complexas de hoje, a vida colectiva
tornou-se, nos diversos países, uma realidade onde as diferenças
se patenteiam aos olhares de todos, em termos de etnia, de cultura
e de religião. As identidades, afirmando-se sob a forma de
minorias, dão origem a relações inter-culturais. A situação torna-
se bem visível quando aparece associada à desqualificação, à
fractura da sociedade. A questão social aparece também
relacionada com processos de fragmentação cultural e religiosa.

Em razão de relativa dificuldade de integração de novos povos, a


imigração põe em causa a concepção tradicional da nação e davida
social, passando a ocupar grande relevo no próprio debate
político. As condutas das minorias imigradas devem conduzir a
uma integração progressiva ou resistir à integração? Algumas
questões fundamentais se levantam, obrigando à formação de
uma cultura democrática.

A formação dos Estados nacionais, na Europa, operou-se sob o


signo da crescente integração e da vontade de erradicação das
diferentes culturais e religiosas. A filosofia das luzes advogava
um universalismo abstracto, postulando referências universais à
razão e ao direito, conducente a um processo de total

147
assimilação. A noção de “progresso” era também acompanhada
de um processo de total assimilação das culturas minoritárias. A
tendência para a actual desintegração social vai em sentido
contrário. Desarticulando-se o espaço público democrático, surge
alguma dificuldade em se viver em comum com a diferença. O
respeito pelos particularismos culturais tem a ver com o direito à
diferença, protegido pelos direitos humanos, aliás consagrados
nos ordenamentos jurídicos dos Estado nomeadamente
ocidentais. E não basta salvaguardar os direitos subjectivos
reclamáveis, importa que eles assumam uma forma colectiva,
permitindo às pessoas e aos grupos a sua afirmação.

Subjacente a essas mudanças, está uma indubitável crise do


Estado. É posta em causa a concepção do Estado nacional dotado
de uma certa homogeneidade étnico-cultural, que estava na base
de unidade nacional, fazendo emergir, em certas regiões,
expressões de nacionalismo mais ou menos exacerbado. A
cidadania deixou de se identificar com a nacionalidade. Os
Estados modernos constituíram-se como Estados nacionais.
Ernest Gellner sustenta que o “princípio nacionalista” postula que
“a unidade nacional e a unidade política devem corresponder uma
à outra”. Tanto Dominique Schnapper como Hbermas constatam
o enfraquecimento dessa figura de Estado. Se identifica nacional
está fundada numa realidade cultural comum, a identidade
política apoia-se na cidadania. Tem-se vindo a desenvolver o que
Jean-Marc Ferry designa por identidade “pós-nacional”, na
sequência do que J. Habermas chama “patriotismo
constitucional”, que tem, por suavez na sua base uma “identidade
pós-nacional”. Com os movimentos migratórios, os regimes
políticos vêem-se, por outro lado, forçados a conciliar
universalismo e particularismo, semelhança e diferença, maiorias
e minorias. As sociedades pós-

148
industriais ou da modernidade tardia perdem a homogeneidade
outrora procurada. A crise do Estado tem a ver com a sua
capacidade de integração social, enfraquecidas assimiláveis.

Nem sempre, os países têm à sua disposição ou se servem dos


meios que tornam possível a recomposição do ligame
sóciopolítico. Há intervenções diferenciadas dos Estados
nacionais do domínio das migrações e da etnicidade. Falar de
grupos étnicos é designar segmentos populacionais portadores de
uma diferença cultural, como cor, religião, língua e modo de vida
próprios. As trajectórias seguidas conferem ao processo
orientações que levantam às democracias de hoje permanentes
desafios. Se a migração é reconhecida como um direito humano,o
mesmo não acontece, normalmente, com a imigração. O mundo
abriu-se aos fluxos de capitais, de tecnologias e de mercadorias,
mas vai-se fechando a movimentos migratórios. A globalização
coexiste com a manutenção da organização política fundada num
certo fechamento dos Estados, baseados no particularismo
convertido em arbitrário cultural.

A solidariedade torna-se apenas interna e aparece limitada pelo


crescente neo-liberalismo. Não é fácil aos Estados deixarem de
ser nacionalistas, por muito que o discurso político diga o
contrário. Não existe sequer um sistema democrático universal. É
óbvio que a destruição de todas as barreiras à imigração levaria a
situações difíceis para o Estado e eventualmente à própria
destruição do tecido social, como ele hoje existe. Mas não se pode
também atender unicamente aos egoísmos nacionais. As políticas
de controlo da imigração pretendem ir ao encontro das
dificuldades sentidas pelas sociedades receptoras, favorecendo-se
apenas, com a permissão de residência, a

149
instalação de um certo número, segunda as convivências de
momento de cada país.

As sociedades pós-nacionais são marcadas, além disso, por um


processo de desintegração e de dualização. Os imigrantes,
concebidos outrora como mera mão-de-obra ou força à
nacionalidade, uma vez reunidas as famílias de origem e
assinalando de forma étnica o espaço, passam a envolver
relegação, estigmatização e atitudes de repulsa. A abertura do
espaço público à diferença social é fonte de inquietação, porque
aquela raramente é neutra, comportando quase sempre uma carga
conflitual e pondo em causa as existentes formas de dominação.
Com a degradação dos bairros periféricos das grandes cidades,
onde essas minorias se têm vindo a instalar, a imigração aparece
como ameaça para a segurança pública. Cresce aí a xenofobia, e
mesmo o racismo invade as representações sociais face ao
“sindroma da invasão”. A desagregação social aparece
indissociável do desemprego, do trabalho precário e da exclusão
social, de que os actores económicos não estão isentos de
responsabilidade. No século XVI, Montaigne comprovava os
modos do proceder da Inquisição aos comportamentos do
canibalismo. A metáfora pode ser, até certo ponto, aplicada às
sociedades de hoje no que concerne a imigração, ao explorarem-se,
com o seu forte pendor neo-liberal, até à exaustão, os imigrantes,
deixando-os exangues, a nova forma de canibalismo da
actualidade. Escreve Montaigne nos seus Ensaios: “Penso que
existe mais barbárie em comer um homem vivo do que comê-lo
morto, em despedaçar, por meio de tormentos e torturas, um
corpo ainda cheio de sentimento, em fazê-lo assar aos bocados,
em fazê-lo morder e triturar pelos cães e pelos porcos (como não
só o lemos, mas o conservamos de fresca memória, não entre

150
inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos e, o que é
pior, sob pretexto de piedade e de religião) do que em assá-lo e
comê-lo depois que ele é trespassado”. Os imigrantes, em muitos
casos, ficam desprotegidos nas mãos de empresários sem
escrúpulo que os exploram sem reconhecimento dos seus direitos,
desde logo o salário igual e prontamente pago.

As atitudes discriminatórias são normalmente acompanhadas de


procedimentos de segregação. Segregar é colocar à distância,
espaços à parte. No mundo urbano, há discriminação e
segregação quando as pessoas são postas fora do contacto e da
interacção. A esta segregação está frequentemente ligada a
estigmatização. Se a diferença seduz, é também portadora de
enorme ambivalência. A diferença, uma vez convertida em
desconhecimento, surge cheia de ameaças, passando a causar
medo. A diferenciação pode apresentar-se sob a forma de
distanciamento social e cultural.

As questões da imigração são frequentemente tratadas como


problemas de etnicização e de exclusão. Em tais meios,
difundem-se com frequência práticas ilícitas que acentuam a
tensão e os conflitos. A imigração pode provocar fenómenos de
rejeição, desde que ameace desestabilizar os modos de vida e
afecte as identidades criadas. Os processos de etnicização
alastram nas sociedades contemporâneas pela via da imigração. A
própria concorrência desencadeada pela crise económica e do
mercado do trabalho suscita inquietação, xenofobia e racismo. O
mundo da integração tende a arcaizar os excluídos como
mecanismo de defesa.

151
As políticas de integração, essas mais do que atender aos
interesses dos grupos imigrantes, procuram minimizar ou mitigar
os feitos perversos criados por eles. O êxito da integração não
depende somente das políticas adoptadas, mas ainda e sobretudo,
das condições de trabalho leva a situações de precaridade e de
marginalidade social. A dualização da sociedade arruína a
dinâmica da integração, criando uma subclasse a que são negados
direitos fundamentais, fazendo crescer as manchas de pobreza.

O mundo da exclusão social, no qual se inclui a imigração,


apresenta também uma dimensão política, que tem a ver com a
integração na nação, e um carácter social, que diz respeito à
organização das diferenças sócio-culturais, em termos de
assimilação versus etnicidade. A integração em si mesma pode
ser valorizada ou rejeitada. É extremamente difícil combinar
particularismo e universalismo. A identidade posta em perigo por
novos estranhos desperta uma reacção defensiva, que inferioriza
as minorias.

Se existe actualmente crise nas sociedades democráticas, é


porque não é assegurada a cidadania para todos. Os espaços de
sociabilidade e de relação devem ser constituídos em lugares de
formação de cidadania, isto é, de responsabilidade e de
participação na vida social. Num estado democrático, há que
reivindicar políticas mais activas contra as discrições de todo o
género.

As mudanças acabadas de referir produzem num contacto entre


culturas de molde a colocar em causa a integridade de cada uma
delas, assim como a sua estabilidade, exigindo recomendações

152
ou ajustamentos constantes. Não se podem pôr em causa os
valores universais da razão e do direito, nem a laicidade do
Estado, mas será também inaceitável angelizar as diferenças ou
balizá-las. Não se pode, certamente, desejar um
multiculturalismo desenfreado, do modo que a sua total
dissolução sob a forma de assimilação. O que se vem chamado
“sociedade multicultural” traduz tanto um modelo de integração
como a existência de grupos culturais e religiosos justapostos.

A democracia é o lugar, por excelência, do universal e da


cidadania. O multiculturalismo, esse tende a levar à formação
arquipélagos distintos, em termos de um “mono culturalismo
plural”, como o designa Amartya Sem, ou de um mono
culturalismo comunidades fechadas. A preservação dos grupos
aumenta a homogeneidade de cada um deles, produzindo esse
“mono culturalismo plural”. Os grupos mais identificáveis
apresentam fronteiras menos porosas.

A ideologia do mono culturalismo põe em causa o princípio


democrático, assente no recalcamento das identidades
particulares e na construção de sujeitos colectivos universais.
Trata-se de uma ideologia ou até mesmo de uma doutrina que
estabelece as condições de integração, respondendo às
necessidades individuais de liberdade e à estabilidade social. A
afirmação individual de dignidade exige o reconhecimento
público das diferenças. O multiculturalismo é uma ideologia que
desempenha a favor da diversidade cultural o que o nacionalismo
operou, em sentido contrário, em defesa de um Estado mono
cultural, na estreia da difusão do individualismo. É um novo
instrumento posto ao serviço de uma nova configuração do
Estado e da Sociedade.

153
A questão do multiculturalismo anda associada, de facto, à
mudança do Estado democrático, procurando promover um
modo de integração política e social. O multiculturalismo surge
como uma concepção da integração que afirma o direito do
Estado democrático a reconhecer a multiplicidade dos grupos
etno-culturais que compõem a sociedade. Tem na usa base uma
perspectiva de assimilação fundada no princípio de uma
indiferenciação nesse reconhecimento.

As modalidades do multiculturalismo pretendem promover uma


integração baseada no respeito pelos direitos das minorias, tendo
como objectivo a pacificação das relações inter-culturais,
minimizando ou erradicando os seus eventuais conflitos. Trata-
se, nesse sentido, de uma política defensiva, aparecendo na
estreia da afirmação dos direitos humanos, postuladores de uma
política do reconhecimento. A política da igual dignidade de todos
constitui um potente motor de promoção da modernidade
democrática. O multiculturalismo opõe-se, desse modo, ao
modelo de integração de feição monista que pretendia uma
completa homogeneização da sociedade, com a negação dos
direitos das minorias. Os grupos étnicos apresentam-se agora
como portadores de direitos culturais.

A tragédia das minorias consiste em que elas não conseguem


converter-se em sujeitos universais, forçadas a existir de forma
reactiva e não pró-activa. O espaço democrático das democracias
actuais não lhes permite o desempenho de um tal papel. Nesta
situação, debatem-se com uma contradição. Porque o que ganham
em equidade perdem em diferença, o campo político do
monoculturalismo converte-se num espaço

154
incerto, ambivalente e ambíguo, cheio de permanentes tensões e
potenciais conflitos. Na sua prática concreta, os diferentes actores
sociais são chamados a não dissociar a afirmação da autonomia
da adesão a valores universais. Mas sempre que a diversidade
cultural produz conflitualidade, virtual ou efectiva, somente a sua
passagem à representação política permite o acesso ao tratamento
das suas demandas. Confinar a cultura particular ao estrito
domínio privado é criar as condições para o recalcamento que se
pode traduzir em ódio e revolta. Mastambém não é fácil encontrar
expressões políticas dessas diferenciações capazes de se
afirmarem no espaço público.

Torna-se, desde então, difícil falar da sociedade multicultural, em


razão dos diferentes posicionamentos em relação à cultura
dominante. Enquanto a primeira geração de imigrantes luta por
aceder à modernidade e à integração na sociedade de
acolhimento, sendo muitas vezes a formação de agrupamentos
étnicos um entrave à individualização necessária a essa mesma
integração, na segunda geração, o esforço vai no sentido de
escapar à estigmatização, mas sem perder a sua especificidade
original, servindo os agrupamentos de meio para tal objectivo. A
segunda geração encontra-se plenamente integrada na
modernidade, do ponto de vista cultural, mas desenvolve uma
lógica contestatária. Trata-se presente o que vem acontecendo nos
bairros populares das grandes cidades de França, nos últimos
tempos.

Não é fácil a combinação da unidade de uma sociedade com a


diversidade das culturas que a possam integrar. O equilíbrio é de
difícil definição e de defesa. A unidade está sempre ameaçada por
um universalismo destruidor dos particularismos ou pela
fragmentação e a queda em sectarismos. Podem, por vezes,

155
actuar mecanismos de assimilação, que conduzem à defesa de
uma cultura herdada e de resistência a uma integração é percebida
e valorizada como uma condição de liberdade individual e de
democracia; ou rejeitada porque associada à destruição da
diversidade. Daí resulta a sua ambivalência.

A defesa do multiculturalismo limita-se, de ordinário, à tolerância


e à aceitação de particularismos limitados, sem se confundir com
o relativismo cultural ou com um universalismo abstracto. As
sociedades foram sempre mais ou menos poliétnicas. Os que, na
actualidade, se opõem ao multiculturalismo chamam a atenção
para o perigo que ele arrasta consigo, enquanto veículo do
comunitarismo, de desagregação social, de sucessivos confrontos
étnicos e religiosos, e do colapso da solidariedade nacional. O
espírito democrático é o factor que permite a diversidade cultural
capaz de promover a vivência em conjunto com as diferenças.
Esse espírito constitui uma exigência tanto da cultura dominante
como dos particularismos culturais. Haverá que saber
compatibilizar universalismo e diferença.

As sociedades actuais estão ameaçadas pela fragmentação


cultural. O “mundo vivido” (lebenswelt) ou “mundo de vida”,
expressão usada por E. Husserl e retomada por A. Schutz e
Habermas, aparece como o contexto da manutenção das
identidades. À medida que as relações com o mundo se
diferenciam, altera-se a compreensão do mesmo mundo onde se
formam as identidades. Cria-se a oposição do mesmo mundo se
formam as identidades. Cria-se a oposição entre as reivindicações
igualitárias participativas e as afirmações identitárias mais ou
menos restritivas, gerando-se uma crise que

156
aumenta a visibilidade da fragmentação cultural. A identidade
dos povos reveste-se de um conteúdo cultural, e o ímpeto das
identidades culturais anda associado à crise das sociedades
nacionais. O indivíduo torna-se pessoa como membro de uma
comunidade cultural. Sem esse contexto, não consegue manter a
sua identidade e a compreensão de si mesmo.

A diferenciação cultural exige uma política da alteridade e do


reconhecimento. A solução não está na criação de um meltingpot,
sendo mais acertado pensar na multiplicação das diversidades que
interpelam continuamente os poderes simbólicos e políticos. A
diversidade cultural encontra-se inserida no próprio coração da
questão social que anima a vida colectiva. A resolução do
problema reside na articulação das identidades de grupos
possuidores de referências comuns solidamente arreigados com
significações universais que conferem à sua nação uma dimensão
global. Dominique Schnapper entende que a resposta às
“interrogações sobre o que pode ou deve ser o multiculturalismo
é simples. Se as especificidades culturais dos grupos particulares
são compatíveis com as exigências da vida social, sob condições
de respeitarem as regras da ordem pública. Esse direito está
inscrito nos próprios princípios do Estado de direito e da
democracia moderna. As liberdades públicas asseguram a
liberdade de associação, a liberdade de praticar livremente a sua
religião ou de utilizar a própria língua. Mas, ao mesmo tempo,
essas especificidades não devem fundar uma identidade política
particular, reconhecida como tal no interior do espaço público. É
esse, aliás, o princípio defendido pelas diversas declarações dos
direitos humanos.

157
Na actualidade, há um confronto com uma, mais ou menos
profunda, crise de significação. A vida e a experiencia humanas
não possuem, em si mesmas, sentido. Este é atribuído por cada
consciência, na sua relação com outros seres e com o mundo. À
sua disposição encontram as pessoas o que Peter L. Berger e
Thomas Luckmann chamam “depósitos históricos de sentido”,
que lhes oferecem orientação social, dispensando-as do encargo de
terem de solucionar a sós os problemas com que deparam.

Tradicionalmente, os depósitos sociais de sentido tendiam para a


monopolização. As instituições acumulavam sentido e punham-
no ao serviço dos indivíduos. Hoje em dia, verifica-se atendência
para uma certa discrepância entre essas reservas comuns e o
sentido constituído subjectivamente. Segundo Novalis, “estamos
fora do tempo das formas geralmente válidas”. Com a dissolução
dos sistemas de valores, formam-se comunidades de vida e de
sentidos particulares. A busca de sentido procede por escolha e
por um modo próprio de estabelecer sociais. A tendência é para a
multiplicação de tais sistemas, em competição entre si,
coexistindo múltiplos universos de valores. Os sistemas
compartilhados, com alcance geral, deixam de ser válidos para
todos.

A pluralização das comunidades de vida pressupõe também a


existência de um mínimo de sentido compartilhando. As
sociedades perdem a sua coerência sem um sistema de valores e
uma reserva de sentido adequados. O problema põe-se quando
essa exigência conduz ao apagamento dos particularismos,
postulando uma comunidade absoluta de sentido.

158
As comunidades de vida e de sentido são fundamentais para a
formação das identidades pessoais, alimentando-as e apoiando-as.
Com os grandes depósitos de sentido, criavam-se identidades
comummente partilhadas. Papel relevante nesse processo,
desempenhava a religião, que fornece o padrão mais importante
de sentido.

Mas, em simultâneo, as comunidades de vida experimentaram


uma enorme necessidade de preservar os seus próprios valores e
tanto mais quanto mais também desaparece o que Alfred Schutz
designa por “o mundo que se dá por suposto”. A tese defendida
por Charles Taylor é a de que “a identidade é parcialmente
formada pelo reconhecimento ou pela sua falta”. Perante o não
reconhecimento os imigrantes tendem a interiorizar a “imagem
da sua própria inferioridade”. O reconhecimento aparece como
uma “necessidade humana vital”. Na base de tal exigência,
encontra-se a dignidade de todo o ser humano. Através de um
processo dialógico, se cria aidentidade, face a “outros dadores de
sentido”. O homem sem identidade própria sente-se paralisado e
ameaçado. A identidade é indispensável a toda a existência social.
Atribuindo- se a todos uma idêntica dignidade igualizam-se aos
seus direitos e atributos.

As reservas em relação ao conceito de multiculturalismo, em


virtude do seu carácter ideológico, não impedem de reconhecer
que as sociedades de hoje são plurais, tornando-se necessário
clarificar o conceito de pluralismo. Por este conceito, em termos
religiosos, Marcel Gauchet não concebe “a simples resignação à
existência de facto de pessoas que não pensam” como outras,
entende antes “a integração pelo crente do facto da existência

159
legítima de outras crenças na sua relação à própria crença”.
Haverá que distinguir o pluralismo “como dado e como regra da
sociedade” e o “pluralismo na cabeça dos crentes”.

O que acontece é que “cada um admite a liberdade de outro, mas


não mantém menos para si um estilo de convicção que exclui a
consideração de que outras convicções são possíveis. É toda a
diferença entre tolerância como princípio político e o pluralismo
como princípio intelectual. Esta relativização íntima da crença é
o produto característico do nosso século, o fruto da penetração do
espírito democrático no próprio interior do espírito de fé. A
metamorfose das convicções em identidades religiosas constitui
o seu resultado”. No pluralismo, continua a haver uma escolha do
crer em função da validade intrínseca reconhecida ao objecto da
crença. O pluralismo implica normalmente a conversão das
convicções em meras preferências. Numa sociedade pluralista
coexistem diferentes concepções de vida e do mundo.

A crença mobiliza subjectivamente as pessoas. A tradição e a


memória colectiva adquirem, nesse processo, enorme
importância, A tradição vale na medida em que constitui cada um
na sua própria identidade e a comunidade passa a ser tanto mais
de cada um, quanto mais ela existe ao lado de outras. Sustenta
Marcel Gauchet que “a metamorfose das crenças em identidades
é o preço do pluralismo levado até ao fim, até ao ponto onde toda
a ambição universalista e conquistadora perdeo seu sentido, onde
nenhum proselitismo tem mais sentido”. É, no entanto, da própria
natureza da comunidade crente o não viver fechada sobre si
mesma, visando sempre a sua expressão pública, porque a
identidade exige o reconhecimento.

160
As migrações, ao mesmo tempo que contribuem para o
crescimento do pluralismo cultural das sociedades
contemporâneas, fazem aumentar a consciência da diferença.
Mas não se pode definir o pluralismo como um estado em que,
numa mesma sociedade, coexistem pessoas que levam as vidas de
diferentes maneiras. Isso ocorreu em quase todas as épocas. No
passado, essas distintas formas de vida estavam vinculadas a um
sistema comum de valores, com uma permanente interacção entre
as comunidades existentes e especialmente situadas. Era a
situação dos judeus.

A diversidade étnico-cultural não é uma realidade nova, nova será


a ideia de uma regulação, por parte do Estado, de uma tal
variedade sócio-cultural. A coexistência de múltiplos quadros de
referências culturais foge ao imaginário do estado nacional,
criando as condições para o crescimento da pluralização
identitária. O Estado-nação era indiferente a tal problema,
afirmando-se nele as pertenças mas não as identidades.

O pluralismo moderno surge quando os diferentes grupos e


comunidades não conhecem separação geográfica, tornandose
inevitáveis os eventuais conflitos de valores e de visões
diferentes. Os indivíduos e as comunidades vivem em conjunto e
estabelecem entre si relações mútuas, mas orientando cada uma a
sua existência por valores diferentes. Os sistemas de valores e as
reservas de sentido perdem o seu carácter de património comum,
deixando de ser omni-compreensivos e vinculantes para todos.

Há, no entanto, que distinguir entre pluralismo concertado, isto é,


requerido em sede legal pela tolerância das diferenças, e

161
pluralismo existente de facto. O pluralismo aparece ou imposto
pela natureza das coisas ou produzido pela vontade. Determinado
pela lei, pode coexistir com uma situação de predomínio de uma
Igreja ou de uma cultura, acabando-se, na prática, por apenas se
tolerarem as diferenças, concebendo-se alguns direitos. As
relações de dominação produzem sempre desigualdades entre os
grupos portadores de valores ou de crenças. A tendência será para
uma tolerância selectiva. A intolerância tende a revelar-se
sobretudo em relação a pessoas ou grupos que perturbam a ordem
existente, diminuindo em relação aos que se caracterizam
somente por diferenças culturais.

Avaliação

Caro estudante depois de uma longa leitura certamente que foi assimilada a
matéria, para tal, responda as questões que se seguem.

1. Após a uma leitura sobre esta lição que está em volta da


cidadania, a dimensão social e cultural.
a) Quais foram os factores que levam as sociedades
complexas de hoje, a vida colectiva tornar uma realidade
onde as diferenças se patenteiam aos olhares de todos.
b) em termos de etnia, de cultura e de religião, as identidades,
afirmam-se sob a forma de minorias, porquê?
2. As condutas das minorias imigradas não devem conduzir a
uma integração progressiva ou resistir à integração.
a) Concorda com esta afirmação?
3.A democracia é o lugar, por excelência, universal e da
cidadania.

162
a) Define o multiculturalismo e monoculturalismo plural”.
4.Não é fácil a combinação da unidade de uma sociedade com a
diversidade das culturas que a possam integrar.
a) Explica porquê se diz que a defesa de uma cultura herdada e de
resistência a uma integração, é percebida e valorizada como
uma condição de liberdade individual e de democracia.

163
TEMA VII: A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES E ESPAÇOS DEMOCRÁTICO

Unidade 7.1: Democracia Participativa


A democracia participativa é uma forma de exercício do poder,
baseada na participação dos cidadãos nas tomadas de decisão
política.

Atravessamos grande parte do século XX, acreditando que a


forma Representativa era um modelo ideal para os cidadãos, que
assegura a liberdade e igualdade de todos, que isso seria o
verdadeiro conceito de democracia, mas passados quase cem
anos, chega-se ao fim do século XX e acredita-se numa crise
existente nesse modelo de Democracia. Os representantes já não
conseguem mais identificar e atender demandas da sociedade. A
população tem-se organizado melhor em torno de infinitas
questões, e conquistando melhor o espaço público e essa
população tem cobrado de maneira mais efectiva de seus
representantes. As exigências vêm se tornando mais complexas e
fica evidente a necessidade da participação em conjunto entre
representantes e representados.

O conceito de democracia sofre então uma nova reviravolta em


sua trajectória. É preciso considerar que a democracia
representativa já não responde mais as demandas da sociedade e a
democracia directa parece impossível. E como síntese para a
resposta dessa crise começa a se formar o conceito de democracia
participativa, tendo características da forma semi- directa, por
não considerar seus representantes, mas aproximando os
representados na arena política. E conforme alguns teóricos
afirmam que a democracia participativa se configura entre a
directa e representativa.

164
Por democracia participativa podemos entender um conjunto de
experiências e mecanismos que tem como finalidade estimular a
participação directa dos cidadãos na vida política através de
canais de discussão e decisão. A democracia participativa
preserva a realidade do Estado (e a Democracia Representativa).
Todavia, ela busca superar a dicotomia entre representantes e
representados recuperando o velho ideal da democracia grega: a
participação activa e efectiva dos cidadãos na vida pública
(SELL, 2006).

O mecanismo institucional da democracia representativa temse


mostrado significativamente limitados: “os velhos e tradicionais
mecanismos e instituições têm-se revelado muitas vezes
insuficientes, embora necessários, para garantir a existência de
um regime político efectivamente democrático” (Ricardo
Rodrigues apud ANDRADE, 2003). Com isso, novos e modernos
instrumentos de controle e participação no poder devem ser
permanentemente colocados em prática democrática em junção
com a sociedade actual. Esses mecanismos têm que ser criados
para o complemento e não reformulação das instituições
representativas, mas que englobem na dinâmica política a
realidade da sociedade civil que está cada vez mais organizada
em suas entidades e associações, dando a prática democrática
uma realização mais dinâmica, efectiva e real.

A democracia participativa, ou semidirecta, é aquela que partindo


de uma democracia representativa, utiliza-se de mecanismo que
proporcionam ao povo um engajamento nas questões políticas,
legitimando questões de relevância para a comunidade como um
todo através de uma participação directa, seja pelo plebiscito,
referendo, iniciativa popular, audiência

165
pública, orçamento participativo, consultas ou por qualquer outra
forma que manifeste a acção popular. Nesse modelo de maior
participação democrática, as organizações da sociedade civil
tornam-se interlocutores políticos legítimos e influentes,
adquirem maior visibilidade sobretudo com o processo de
democratização (AVRITZE & REIS, 1995) e, de certa forma,
podemos dizer que a democracia participativa só poderá ser
realizada quando os cidadãos abandonarem um certo
individualismo e tiverem um maior senso de colectividade.

Segundo Dias (2001) a qualidade da democracia pode ser medida


pelo nível de participação política encontrada em cada sociedade
que permite ao cidadão comum inserir-se nos processos de
formulação, decisão e implementação de Políticas Públicas, e
desta forma, “quanto mais directo for o exercício do poder
político, mais acentuada será a capacidade democrática das
instituições políticas, cujas decisões estarão mais próximas de
traduzir a genuína vontade popular” Vigilo, (2004). E Jumária
Fonseca destaca o papel das administrações municipais para o
êxito de um modelo de democracia mais participativa.
Para que as experiências de democracia participativa obtenham
êxito, as administrações municipais têm papel fundamental,
através da criação de canais de interconexão que viabilizem a
integração entre governo e dos diversos segmentos da sociedade,
especialmente a população de menor renda. De tal maneira, que
possam ser partícipes das diversas fases do processo de
planificação e de deliberação das Políticas Públicas a serem
implementadas nas cidades.

Fazendo com que o “direito de ser cidadão” esteja além do


momento das eleições, dando-lhes condições de colaborar na
construção do espaço público e efectivando a ideia de soberania

166
popular, segundo a qual, “todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos (Democracia
Representativa), ou directamente (tendência para a democracia
participativa) ” (FONSECA, 2009).

O problema é que “apesar de serem encontrados no sistema


jurídico Americano, novos canais que viabilizam a integração
entre representantes e representados de forma mais efectiva, o que
se percebe, é que o exercício da cidadania está delimitado ao
direito de votar e ser votado”. Falta em nosso país uma cultura
cívica que altere o modus operandi do sistema vigente. Falta
também vontade política, seja por parte do Poder Executivo (por
medo de partilhar parte do poder constituído), seja por parte do
Poder Legislativo (de ver diminuído seu papel na elaboração e
aprovação de leis), criando “um distanciamento entre governo e
sociedade que é próprio do regime representativo”.

Mas a crise da democracia contemporânea envolve factores que


vão além da representação e da apatia política.

Carole Pateman, (1992) afirma que desde o início do século XX


muitos teóricos políticos levantaram sérias dúvidas sobre a
possibilidade de se colocar em prática um regime democrático no
sentido literal do termo (governo do povo por meio da máxima
participação do povo). E Bobbio (2000) indica pelo menos três
factores a partir dos quais um projecto democrático tem-se
tornado difícil de se concretizar nas sociedades contemporâneas:
1. Especialidade;
2. a burocracia e;

167
3. a lentidão do processo.
O primeiro obstáculo diz respeito ao aumento da necessidade de
competências técnicas que exigem especialistas para a solução de
problemas públicos, com o desenvolvimento de uma economia
regulada e planificada. A necessidade do especialista
impossibilita que a solução possa vir a ser encontrada pelo
cidadão comum. Não se aplica mais a hipótese democrática de
que todos podem decidir a respeito de tudo. O segundo obstáculo
refere-se ao crescimento da burocracia, um aparato de poder
ordenado hierarquicamente de cima para baixo, em direcção,
portanto, completamente oposta ao sistema de poder burocrático.
Apesar de terem características contraditórias, o desenvolvimento
da burocracia é, em parte, decorrente do desenvolvimento da
democracia. O terceiro obstáculo traduz uma tensão intrínseca à
própria democracia. À medida que o processo de democratização
evoluiu promovendo a emancipação da sociedade civil, aumentou
a quantidade de demandas dirigidas ao Estado gerando a
necessidade de fazer opções que resultam em descontentamento
pelo não- atendimento ou pelo atendimento não-satisfatório.
Existe, como agravante, o facto de que os procedimentos de
resposta do sistema político são lentos relativamente à rapidez
com que novas demandas são dirigidas ao governo (BOBBIO,
2000; NASSUNO, 2006).

Mas a crise da democracia contemporânea, longe de diminuir sua


validade, aumenta ainda mais a importância da participação da
sociedade civil em um projecto de consolidação do Estado
Democrático de Direito.
Unidade

168
Unidade 7.2. Gestão Democrática
Actualmente se fala muito em gestão democrática como uma
forma de articular a participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas
e implementação de Políticas Públicas que devem ser elaboradas
com a participação da sociedade civil em geral, obedecendo o
preceito da democracia participativa que considera a participação
directa da sociedade na formulação de políticas públicas e nos
actos da Administração Pública.

Por gestão democrática podemos entender uma relação que se


estabelece entre Governo e Sociedade, entre a Administração
Pública e a população, construída com base na Democracia
Participativa e na cidadania, assegurando o Controlo Social,
valorizando o papel da sociedade civil como co-gestora da coisa
pública, colocando em prática o princípio basilar da Democracia
(governo do povo) e Constitucional de soberania popular.

Uma outra forma de pensar um modelo de gestão democrática é


através de um processo de planificação participativa onde há um
maior envolvimento da sociedade na discussão de diferentes
problemas, como problemas ambientais, urbanos e saúde etc.

Na planificação participativa, cada participante traz uma nova


contribuição para o processo de discussão. Neste sentido há uma
grande diversidade de ideias, metas, tarefas, habilidades e
representações (onde os participantes representam distintos
sectores da sociedade: público, privado, científico, etc.), o que
possibilita que os problemas sejam analisados sob diferentes
pontos de vista. Neste sistema podem-se observar as seguintes
características: i) diversidade de participantes e interesses; ii)

169
aumento na interacção entre os participantes e entre eles e os
instrumentos de suporte a decisão; iii) alteração no método e
processo de planificação, já que neste caso o processo de
planificação está intimamente associado ao contexto político da
cidade (MAGAGNIN, 2008).

É importante ressaltar que este novo conceito de planificação


público marcado pela participação popular exige a participação
dos movimentos sociais que, bem antes do processo de
redemocratização e sobretudo por ocasião da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987 que promulgou a constituição
federal de 1988 vem desempenhando um papel fundamental para
consolidação do Estado Democrático de Direito.

Na Assembleia Nacional Constituinte, propostas de


fortalecimento do poder de influência dos actores sociais foram
apresentadas através das chamadas “iniciativas populares”,
levando, com a sua aprovação, a um aumento da influência dos
actores sociais em diversas instituições (RAICHELIS 1998).

Quadro 2- Regra da participação popular


Autoritarismo Tecnocracia Democracia Cidadania

Informar Consultar Discutir Participar

Manipulação Informação Delegação Participação


Fonte: Nobre, (1999)

O resultado é um processo mais democrático, mesmo que leve um


tempo maior de duração, já que é preciso compartilhar com uma
determinada comunidade os diferentes problemas e possíveis
soluções que desafiam a gestão pública. A planificada
participativa pode não ser o mais indicado para tratar de

170
problemas públicos, sobretudo em caso de problemas técnicos
mais complexos, devendo-se adoptar um misto de planificação
tradicional e participativa: “aplanificada participativa é
apropriada quando os problemas estão claramente definidos”
(MAGAGNIN, 2008).

O processo de uma planificada participativa pode ser dividido em


três fases, o início, onde há o envolvimento dos diversos
segmentos e definição das regras a serem adoptadas; a
planificação, ou seja, o trabalho em conjunto para traçar as acções
necessárias a fim de alcançar os objectivos propostos; e por fim a
implementação e o monitoramento (MAGAGNIN, 2008).

Quadro 3-Fases de um processo de planifica participativo


Início de Processo

Planeamento

Implementação e Monitoramento
Fonte: MAGAGNIN, (2008)

De acordo com Renata Magagnin (2007) o processo de


participação popular pode ser passivo ou activo, dependendo “do
processo adoptado pelos planificadores para a participação dos
cidadãos no processo de tomada de decisão” (MAGAGNIN,
2008) e, citando J. N. Pretty (de acordo com o quadro abaixo),
Renata Magagnin mostra que as formas de participação popular
“partem de níveis de participação mais passiva ou manipulada
(nível 1) para uma participação mais activa ou com alto nível de
mobilização (nível7) ” (apud MAGAGNIN, 2008).

Quadro 4- Grau de envolvimento popular no processo de


tomada de decisão

171
Formas de Participação Descrição

Participação Simulada Neste tipo de Participação, embora a comunidade tenha


representantes junto aos órgãos oficiais, elas não possuem o
direito a voto.

Participação Passiva Neste caso, o processo de decisão é unilateral. Todas as decisões


serão tomadas pela administração (decisores) e a comunidade
apenas informada do que está sendo discutido ou planeado pelos
técnicos.

Participação por Consulta A participação neste caso é realizada através de consultas


realizadas junto á população ou por questionários. A definição
dos problemas, o controle de informações e a análise ficam a
cargo dos decisores - técnicos. Neste processo não há
participação popular direita no processo de tomada de decisão.

Participação através de O processo participativo é estimulado através do recebimento de


Incentivo Materiais algum bem (dinheiro ou alimento) pela contribuição á pesquisa.
Entretanto no caso do término do benefício o processo de
participação também sofre perdas.

Participação Funcional O envolvimento popular, neste caso, é realizado com técnicos.


Os problemas são discutidos através de grupos que definirão os
objectivos do projecto. Entretanto, a decisão final é realizada
apenas pelos técnicos.

Participação Interactiva Este é o processo participativo mais activo, ou seja, a população


interage em todo o processo de tomada de decisão, desde a fase
de análise, desenvolvimento dos planos de acção até a definição
final do projecto.

172
Participação através da Através da iniciativa da comunidade o processo de discussão
Mobilização da sobre os problemas urbanos pode ser realizado com a parceria de
ONGs e órgãos governamentais; mas a característica deste
Comunidade processo é a iniciativa da comunidade em resolver seus
problemas.

Fonte: (PRETTY apud MAGAGNIN, 2008, p. 21)

É preciso considerar que a participação da sociedade tem sido


facilitada hoje em função das novas tecnologias de informação e
comunicação (TIC) sobretudo a internet, dando origem ao
conceito de CiberDemocracia. A internet hoje faz parte do
quotidiano de uma parcela significativa da população de várias
maneiras e permite a divulgação e o acesso a uma grande
quantidade de informação, em várias áreas e nas mais diferentes
esferas de poder: executivo, legislativo, judiciário, em nível geral,
legislativa e municipal. A utilização da internet como ferramenta
democrática possibilita que um número maior de cidadãos possa
discutir os problemas da sociedade e isso independente do local
onde ele esteja.

Exercício de Aplicação
Caro estudante, faça a verificação das competências adquiridas
resolvendo os seguintes exercícios:
2. A democracia participativa é uma forma de exercício dopoder,
baseada na participação dos cidadãos na tomada de decisão
política.
a) Estabelece a diferença entre a Democracia participativa e a
Representativa.
3. O fim do século XX acredita-se numa crise existente no
modelo de Democracia Representativa.

173
a) Mencione 3 factores responsáveis pela crise desse modelo
democrático.
b) O mecanismo institucional da democracia representativa
tem-se mostrado significativamente limitado. Porquê?
Justifica.
4. Por gestão democrática pode-se entender uma relação que
estabelece entre Governo e Sociedade.
a) Qual é o papel da Administração Pública e população na
Democracia Participativa.
b) Indica três tipos de poder existente no mundo.
4. Em 1994 Moçambique realizou pela primeira vez as primeiras
eleições gerais pluripartidárias.
a) Qual é o modelo das eleições gerais utilizadas em
Moçambique.
5. O processo de uma planificada participativa pode ser
dividido em três fases.
a) Concorda com afirmação? Justifica tendo em conta uma das
passagens do MAGAGNIN.

174
TEMA VIII: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA PELA RELAÇÃO MÍDIA E MOVIMENTO
SOCIAIS.

Unidade 8.1. A democracia Segundo Atenas


Fig.9- Mapa da Grécia Antiga

Fonte: Arquivo Histórico (1985)

A invasão e tentativa de conquista da Grécia pelos Persas veio


modificar substancialmente as relações políticas e sociais na
Hélade. Por um lado, o papel desempenhado por Atenas na defesa
e o incremento dado à sua força naval, que sob a orientação de
Temístocles será a arma-chave da vitória contra os Persas,
estabelecerão as bases de um império comercial e marítimo que,
nos meados do século V, se estenderá a todo o Mediterrâneo. Por
outro, em matéria da política interna, os homens do partido
aristocrático, acusados de favoráveis a um entendimento pacífico
com o Grande Rei da Pérsia (o que é discutível, pois no decurso
da guerra assiste-se a uma «união sagrada» que conta com o
regresso de muitos exilados, todos unidos na luta contra o
estrangeiro), perdem posições, consolidando-se as estruturas
democráticas, criadas pelo reformador Clístenes.

175
Ao mesmo tempo, Atenas torna-se, por razões de segurança e
política externa, campeã da ideologia democrática, fomentando
revoltas e apoiando os partidos afins noutras cidades dominadas
por constituições aristocráticas. Esta utilização da «ideologia»
política como arma de expansão imperial é também um
fenómeno, senão novo, pelo menos original no seu emprego
sistemático. Assim, a Grécia começa a bipolarizar-se
politicamente entre duas cidades principais: Atenas, uma
democracia imperial, comercial e marítima; Esperta, uma
aristocracia militar e continental. A contenda terminará com a
Guerra do Peloponesco (431-404 a. C.), luta geopolítica e
também com a ideológica, em que Atenas acabará vencida por
uma coligação de interesses que o seu expansionismo acabou por
fomentar.

Entretanto, nos meados do século V na cena política de Atenas


democrática, surge como figura dominante Péricles, outro
Alcménida, parente de Clístenes. Era a seguinte a organização
política da Cidade, na época daquele que ficará na História como
personagem-chave do século de ouro, também chamado
«século de Péricles».

«no tempo de Péricles, a soberania (poder legislativo) pertencia à


Ecclesia; esta assembleia de cidadãos livres, em idade militar,
contava teoricamente 20 mil membros, pagos por presença, e
reunia-se pelo menos quarenta vezes ao ano. (O total efectivos
era menos elevado. Um dos raros números exactos o que
possuímos é de 3616 volantes. Em ocasiões mais importantes, a
assembleia podia ter entre cinco e seis mil homens.) Quanto ao
poder executivo, era delegado no Concelho dos 500, todos os
anos eleito pela Ecclesia, e cujos membros exerciam funções em
grupos de cinquenta, cada cinco dias. Por sua vez o Concelho

176
delegava poderes em comissões especializadas: Justiça, Guerra,
Finanças, Educação, Religião, Estaleiros, Contas. Os membros
das comissões eram tirados à sorte. O conjunto destas comissões
abrangia 1200 a 1400 membros, o que pressupunha uma
alternância sucessiva. O mesmo espírito democrático encontrava-
se nos Tribunais de Justiça, cada um compreendendo cerca de
500 membros de Ecclesia, constituindo uma espécie de júri. Em
320 mil habitantes, 20 mil cidadãos gozavam de plenos direitos
políticos. As mulheres, os menores, os estrangeiros e os escravos
não tinham direito de voto».

Esta era, em traços gerais, a organização de democracia ateniense


no século de oiro. Uma interrogação surge perante a quantidade
de titulares de cargos e a pouca duração do seu exercício: como
funcionava o sistema? Tal questão não se encontra
completamente esclarecida, mas os testemunhos coevos, pelo
menos para o tempo de Péricles, indicam que os atenienses
tinham entregue a este «tratados, exército, poder, paz, finanças,
enfim, toda a sua felicidade». E Tucídides comentará: «o governo
tinha o nome de democracia mas, na realidade era governo de um
só homem, Péricles, o primeiro dos cidadãos».

De facto, a própria complexidade dos mecanismos eleitorais, o


número extraordinário de detentores de cargos públicos, a pouca
duração do seu exercício, devem ter dado como resultado que,
mantendo-se a legitimidade e soberania no conjunto dos
cidadãos, Péricles acabasse por ser o primeiro deles, o detentor do
poder real do Estado. Aqui se evidencia um fenómeno mito
importante para a Ciência Política: a distinção entre poder legal,

177
cuja sede e forma se encontrarem estatuídas na Constituição e
Leis Fundamentais, e poder real, que consiste no controlo e
exercício efectivos do mando, tal qual se passa na realidade.

A democracia ateniense, por outro lado, revela algumas


limitações consubstancias: se no plano interno assegurou uma
integração progressiva dos cidadãos no Estado, como as suas
congéneres modernas, registou fracassos em matéria de política
colonial, de política externa e na guerra. Depois da queda de
Péricles, cujo paternalismo autoritário e capacidade de persuasão
(como todos os grandes líderes democráticos era um excelente
orador, como se pode ver no discursos memoráveis como a
Oração pelos Mortos) tinham conduzido e centralizado os
negócios públicos, acentuaram-se no interior da Cidade os
conflitos tradicionais entre pobres e ricos, ao mesmo tempo quese
revelava a dificuldade de manter a submissão das cidades
satélites, tanto mais que o democratismo tem dificuldade nas
relações imperiais, contradição que só é resolvida, como o foi
pelos atenienses, em nome de uma medida em política externa e
outra medida em política interna, como relata Tucídides, no
célebre episódio do «Diálogo de Mitilene» e da repressão que se
lhe seguiu. Durante a Guerra do Peloponeso, a ilha de Lesbos, ao
largo da costa da Ásia Menor, revoltou-se contra Atenas, em 428
a.C. no ano seguinte foi submetida pelos Atenienses e estes
decidiram castigá-la, massacrando parte da população e
escravizando e restante. No «Diálogo de Mitinene» os
representantes da cidade tentam com ideias de justiça e de
equilíbrio, a que os Atenienses contrapõem a razão de Estado
(arbitrária) do vencedor.

Em 404 a.C. o general espartano Lisandro força à capitulação de


Atenas: as muralhas da cidade são demolidas, a frota é entregue

178
ao vencedor, o império marítimo termina. O esplendor cultural
manter-se-á e reflorescerá mesmo com a «geração de derrota», na
qual figuram, além de Sócrates, Xenofonte (425-355), Platão
(428-347) e Aristóteles (384-322). Mas a chama olímpica do
poder político, do império, perderse-á para sempre, para os
atenienses um povo conquistador do Norte vai retomá-la os
Macedónios.

Unidade 8.2. O Tempo dos Heróis Homéricos


Quando se abordaram as concepções políticas vigentes nas
monarquias egípcias, babilónicas e a formação do poder nas
aristocracias militares indo-europeias, limitou-se a nossa análisea
uma descrição de instituições que têm usado lógica na própria
ordem natural das coisas e nos equilíbrios, usos e costumes
sociais, tais como são aceites nas comunidades em questão.

Tratámos, pois, de prática política, isto é, do modo de aquisição,


conversação e exercício do poder político e da sua justificação,
religiosa ou mítica, uma vez estabelecido. Mas não parece ter
existido nestas sociedades uma reflexão sobre o valor e justiça
das normas vigentes, sobre a sua razão ou fins últimos. A
coincidência entre poder espiritual e temporal quanto à
legitimidade e titularidade do exercício eliminava tais problemas.
Numa teocracia, a lei do Estado tem categoria de verdade
revelada (religiosa), os súbditos são fiéis e os dissidentes
sacrilégios, sobre os quais recairão, não só castigos corporais
como penas além-túmulo.

A originalidade política da civilização grega é não só apresentar


no plano das instituições e concepções uma variedade de formas
políticas e um ciclo complexo de evolução e transformação de

179
regimes, como oferecer, através dos seus pensadores, quer uma
reflexão racional e ponderada sobre o valor dos «fins últimos da
acção política» (Filosofia Política), quer uma análise descrita e
sistemática das formas políticas vigentes, bem como uma
tentativa da sua classificação e estudo segundo critérios gerais,
isto é, uma investigação científica da Política.

À Grécia se fica assim a dever não só a terminologia que hoje


utilizamos (Monarquia, Aristocracia, Oligarquia, Democracia,
Anarquia, são vocábulos de raiz grega, como quase todos
vocábulos políticos, com excepção de Ditadura, que é romano),
como as primeiras formulações teóricas dos grandes problemas
respeitantes à legitimidade, conquista, exercício e fins do poder
político.

Uma concepção política tem sempre, na sua origem, uma


concepção do homem e do mundo. Tal como o deus-rei do Egipto
era a força providencial num universo mítico, assim também a
fórmula que sintetizava a educação dos medopersas, «montar a
cavalo, atirar ao arco, dizer a verdade», é a expressão de uma
aristocracia guerreira e conquistadora, cuja existência se baseia
nas leis simples da força, do risco e da lealdade pessoal.

Ora é com os gregos que esta fórmula atinge a sua perfeição mais
consciente com uma coincidência entra em crise. Quer dizer: o
esforço tenderá permanentemente, em todas as vicissitudes, a
transmitir à organização política da Cidade, da polis, as
concepções filosóficas sobre o homem e o seu destino. Ao tempo,
para os gregos, os humanos são entendidos como sendo da mesma
espécie dos deuses, sendo a diferença entre uns e outros
quantitativa e não qualitativa. Na cosmovisão grega, os deuses
são semelhantes aos homens, ainda que

180
imortais, e têm as suas paixões, participam nas suas lutas, tomam
partido nas suas guerras e amores. A lei humana deverá, assim, ser
espelho da lei divina, do mesmo que aos lagos (razão) de Deus,
corresponde o nóos (inteligência) do homem, que Heraclito
consubstancia na dike (justiça, lei eterna).

Unidade 8.3. O Governo «dos Melhores»


Quando falamos da Grécia arcaica, referimo-nos nos àquele
mundo de que nos ficou notícia sobretudo nos poemas homéricos,
na Ilíada e na Odisseia que, para além do seu significado literário
e documental sobre a vida quotidiana, os costumes e valores
dominantes, nos apresentam um quadro político-social bastante
consistente.

Dos episódios da guerra e conquista de Tróia, do perfil e actuação


dos personagens, pode-se concluir que a sua sociedade é
aristocrática, dominada por uma moral agónica (competitiva), em
que o bom conselho e os feitos guerreiros ilustram a areté
(virtude) dos chefes nobres.

Como escreve Rodriguez Adrados, «acção guerreira e acção


política aparecem aqui indissoluvelmente unidas sob o conceito
de excelência ou virtude (areté) e é-nos dito que ambas fazem o
homem famoso e que tal é o seu objectivo». Por outro lado,
«também se deduz que a areté está ligada às grandes famílias
aristocráticas: os bens terras, rebanhos transmitem-se por herança
e não existem, praticamente, outros meios de enriquecimento por
não haver moeda nem quase desenvolvimento comercial».

181
Deste modo é natural que a aristocracia etimologicamente
governo dos melhores, e de qualquer modo a oligarquia è
governo de alguns, poucos tenham sido os primiticos modos de
organização política na Grécia, onde a vida política decorria, em
termos de unidade territorial, à volta de cidades-estado
independentes, sendo também vital, do ponto de vista da
distinção social e jurídica, a existência de homens livres, pessoas
jurídicas com mais ou menos direitos, mas considerados cidadãos
e escravos, cujo estatuto é de objectos, pertença dos primeiros,
dualidade que aliás é característica de todas as civilizações da
Antiguidade e deriva, essencialmente, da estruturação da
economia em bases servis, fruto dos resultados da guerra e da
conquista inicial.

É este regime aristocrático que encontramos na Atenas de meados


do século VIII a.C. até princípios do século VII, expresso em
assembleias de notáveis, como o Conselho dos Nove e o
Areópago, onde se concentram os poderes políticos e as funções
judiciais, sendo os seus titulares escolhidos em função da nobreza
de nome, da chefia de clãs, do poder e riqueza. Estes aristocratas
citadinos, descendentes da antiga nobreza
«homérica», estabelecem o seu governo na base de um direito
próprio, assente na posse das terras e no exercício exclusivo de
missões guerreiras, defesa da colectividade. O seu poder
reforçava e limitava-se com normas religiosas e laços de
consanguinidade.

Este poder aristocrático era consolidado também por


elementos também por elementos religiosos, pois ricos, senhores
de armas e cavalos, triunfadores nas competições desportivas ou
jogos, seres superiores, próximos dos deuses, de

182
uma natureza intermédia entre estes e o resto dos mortais. E
também os oráculos ou centros religiosos onde se
interpretavam os sinais e a vontade dos deuses contribuíram,
nesta fase, para manter sem fracturas a sociedade estabelecida.

Entretanto as condições mudam. Por um lado, com a expansão


marítima e comercial e o estabelecimento de colónias paraoriente
e ocidente da península Balcânica, há uma translação do poder
económico: novas classes, mercadores, artífices, funcionários que
ascendem à propriedade e á riqueza. Por outro, modifica-se a arte
da guerra: esta perde o carácter de enfrentamento de pequenos
grupos de cavaleiros, cobertos de pesadas armaduras, que se
batiam em duelo quase singular. A necessidade de aumentar os
contingentes, o avento da infantaria como a arma decisiva, o
princípio de combate em formação, obrigam a alargar o
recrutamento a outros grupos sociais. E desaparecido o dever
exclusivo da prestação do serviço militar de uma classe social é
natural que começasse não só a pôr em causa o seu privilégio,
como se quebrasse um dos pressupostos mágicos e práticos da
dominação, que separava quem usava armas e delas se sabia
servir, de quem as não tinha. Daqui que o século VI a.C. seja
teatro, em toda Grécia, de lutas sociais que opõem as antigas
classes dominantes a estas novas camadas emergentes. E que a luta
política assuma aspectos mais ou menos constantes e dê origem,
por vezes, a novos acordos de poder, baseados na conciliação e
negociação, através de leis reformadoras impostas por um chefe
ou legislador que se ergue como árbitro entre as facções. Este
parece ser, por exemplo, o caso de Sólon em Atenas (640-558),
arconte entre 594 e 592 a.
C. que, combatendo simultaneamente os excessos dos notáveis

183
e da plebe, procurou realizar o ideal grego da moderação baseada
na justiça.

Sólon, que Aristóteles «era pelo nascimento e fama, dos


principais da cidade mas, pela fortuna, homem de classe média»,
instituiu um regime «moderado», repartindo os cidadãos em
classes censitárias, abrindo o Areópago a todos os antigos
arcontes, aristocratas ou não, criando o Concelho dos 400, cuja
função era preparar as sessões da Ecclesia, assembleiapopular. Do
sentido e resultado da sua acção ele próprio deixou o balanço
nestas palavras: «Beneficiei o povo, sem diminuir nem acrescentar
os seus direitos. Quanto aos ricos e poderosos, procurei que não
sofressem nenhuma indignidade. Fiquei de pé, cobrindo ambas as
partes com um forte escudo e não deixei que nenhuma vencesse
injustamente. Fiz tal pela força da lei e soubeconjugar a força com
o direito. Se outro que não tivesse tomado o ceptro, um homem
perverso e ávido, não teria sido capaz de aguentar o povo. Usando
todas as energias bati-me em todas as frentes, como o lobo que se
volta sobre si mesmo, no meio do círculo dos cães».

Este trecho de Sólon resume, nos primórdios da História Política,


um conceito fundamental de civilização e a base do Estado como
organização política da sociedade, o poder arbitral. Quando os
modernos proclamarem que o Estado é «o lugar geométrico dos
conflitos político-sociais» não farão mais do que repetir o que o
legislador de Atenas exprimia com a imagem do escudo
«cobrindo ambas as partas», colocando cada uma em seu lugar,
impondo o sentido da medida e a justiça (a dike) segundo o
princípio da razão (logos), que aproxima os homens dos deuses.

184
Mas este sentido da medida, do equilíbrio da Eunomia (a justa
ordem), nem sempre triunfa na política na luta política. Este
legislador prudente que concilie o direito e a força, esta impõe as
suas regras. Então aparece a tirania, figura que, segunda Platão e
Aristóteles, representa a forma degenerada ou corrompida do
governa de um só, a monarquia.

O tirano é, para os clássicos, aquele homem que toma o poder sem


qualquer título de legitimidade, senão o da chefia ou adulação de
uma facção e que pela violência submete a outra ou as outras.
Regra geral os tiranos surgem assimilados aos demagogos que
são os políticos que cultivam as paixões ou vícios das massas -,
explorando os instintos mais baixos das plebes em troca de apoio
para os seus fins.

A análise dos casos de tirania, frequentes nas cidades gregas nos


séculos VI e VII e também nas colónias do Mediterrâneo
Ocidental, revela um facto curioso, de resto comum a todos os
períodos conturbados ou revolucionários que os homens que
tomam conta do poder, lutando contra a aristocracia, procedem,
na maior parte dos casos, desta mesma
aristocracia.

Isto aconteceu em Atenas no século VI a. C. quando Pisístrato,


chefe dos «pobres» da montanha (diakrioi), conseguiu por
artifícios (feriu-se a si mesmo, segundo Aristóteles) uma guarda
pessoal dada pelo povo e com ela ocupou pela força a Acrópole.
A aliança dos dois outros partidos, o das «gentes da costa»
(paraloi) e os da planície (pedíeis) expulsou-o daí. Mais uma vez
com artifícios voltou ao poder, foi expulso para regressar em 546

185
com uma força mercenária, tomou o poder e exerceu-o até à
morte. Sucedeu-lhe o seu filho Hípias.

Pisístrato governou Atenas por mais de três decénios, ainda que


intermitentes; aliado pelo casamento com uma família de
notáveis, os Alcménidas, usou o poder soberano para levar a cabo
uma política de desenvolvimento económico e protecção às artes
e às letras. Os seus filhos, Hípias (527 – 510 a. C.) e Hiparco (527
– 514 a. C.), que lhe sucederam e governaram conjuntamente,
seguiam essa mesma orientação, a ponto de o último ficar
conhecido como o «amigo das musas».

Os tiranos serão, por sua vez, derrubados por uma conspiração, à


testa da qual se encontra outro Alcménida, Clístenes na História
como o fundador da democracia moderna, igualitária, com base
no lema «um homem, um voto».

Abolindo as unidades sociais anteriores, consagradas pelas leis de


Sólon e fundadas em vínculos familiares tradicionais (clãs,
fratrias, organização tribal), Clístenes instituiu uma célula básica
para efeitos políticos ou eleitorais: os demos, circunscrição
administração ad hoc, em número de dez; ao mesmo tempo
alargou o direito de cidadania a muitos metecos ou estrangeiros,
que passaram a poder intervir nas assembleias populares,
reduzindo proporcionalmente o poder aos órgãos moderadores de
composição aristocrática.

Como medida destinada a defender a jovem democracia ateniense


contra os seus inimigos potenciais, Clístenes parece ter instituído
o ostracismo. Trata-se de um instituto preventivo ou repressivo,
que consiste no poder na Ecclesia de, mediante

186
proposta, banir por dez anos dos limites da Polis qualquer
cidadão considerado susceptível de ser perigoso para a liberdade
dos outros. A utilização demagógica e o abuso desta faculdade
em situações de manipulação levou a que alguns dos mais ilustres
atenienses, como Arestides ou Cimon, fossem suas vítimas.

Unidade 8.4. Democracia e Cidadania


A democracia, ao mesmo tempo que afirma por toda a parte como
triunfante, apresenta graves indícios de incerteza. Se é pouco
defrontada, a respeito das suas ideias, aparecendo como um valor
por todos exaltados, coexiste com alguma perplexidade em
relação às formas da sua realização. Ao mesmo tempo que se
impõe como ideário, fragiliza se no seu funcionamento.
Configura se como regime, mas tende a entrar em crise como
forma de convivência política.

A democracia serve para designar tantos regimes políticos como


tipo de relação social vivenciada em sociedade. Através dos
tempos, vem constituindo um problema e uma solução para a
instituição de uma comunidade de cidadãos.
Nomeadamente a democracia representativa tem sido
considerada ora como conforme ora em ruptura com o espírito
democrático. Enquanto uns, como Karl Popper e Josepf
Schumpeter, pensam que ela se deve contentar com uma
definição mínima, negativa ou procedimento, outros reivindicam
o seu conteúdo substantivo, em termos de efectivas participação.

Tem-se vindo a alargar o espaço da sociedade civil, onde as


pessoas aspiram a conduzir a sua própria existência em

187
autonomia. Mas o domínio de um mesmo destino partilhado em
sociedade, como comunidade de semelhantes, se não se assevera
possível sem níveis suficientes de autonomia pessoal, também
parece não ser viável sem exercício de um adequado poder
regulador, que esteja acima dos interesses e dos conflitos
particulares. Uma profunda contradição está em vias de
atravessar as sociedades contemporâneas: a aspiração ao
pluralismo social e cultural e a descentralização política anda
associada á procura de um governo central que exprima uma
vontade comum eficaz, capaz de harmonizar as aspirações de
todos. Procura se, ao mesmo tempo, mais democracia e mais
estado. E em tal encruzilhada tensional, se encontra também o
poder político, enleado nas suas ambivalências e alienado entre a
sua tendência secular para a concertação e para o monismo, e as
exigências de sociedade civil para a autonomia e para o
pluralismo.

Dessa contradição, resultam conflitos, alguns dos quais se


consubstanciam em termos de legitimidade e de representação,
quer da vida social, quer das próprias instituições públicas. O
fosso existente entre a democracia social e a democracia política
não tem sido colmatado, de forma a poderem criar condições para
o desenvolvimento de uma democracia mais viva e mais
participativa, actuada por uma cidadania activa. A natureza e o
alcance do tecido associativo corporizam o exercício da cidadania
a prática democrática. A implementação da sua vivência arrasta
consigo um novo e mais profundo questionamento sobre o estado
republicano, o qual continua a resistir a libertar-se de algumas
inclinações de carácter constrangedor das liberdades individuais
e colectivas. A democracia debate-se com estas antinomias e
confronta-se com algumas contradições.

188
A crise da política desenvolvida pelas democracias
representativas levanta questões que não deixam, de facto, de
criar alguma procuração, impõe-se a necessidade de repensar a
arquitectura dos estados, a redefinição dos limites das soberanias,
as modalidades da legitimidade e os procedimentos da
representação e da expressão colectividade. Confortam-se, em
tais questões, os princípios da vontade e da razão, ou da vontade
geral e dos direitos humanos, direitos que oferecem o conteúdo
fundamental á noção da cidadania. Os conceitos de democracia e
de democratização estão, na sua representação, a ser sujeitos a
uma contínua mudança. Pensava-se, desde o século XIX, que as
classes trabalhadoras unicamente seriam capazes se assumir a
cidadania mediante á aquisição de competências que os capitais
humanos e profissionais poderiam assegurar. A democracia
postulava homens livres e autónomos. A prática democrática era
concebida á imagem e ao gosto das camadas sociais possidentes.
Ora, o que as sociedades de hoje ainda oferecem é o espectáculo,
por um lado, de uma acumulação ilimitada do capital económico
com a correspondente crescente privação relativa de largos
segmentos da população e, por outro, uma situação de
generalizada desvalorização dos capitais escolares, ao tornarem
se mais extensivos a todos, e de um maior refinamento de alguns
capitais profissionais em razão em passagem da sociedade do
trabalho á sociedade do conhecimento. A realização da liberdade
e da igualdade deixou de ser um objectivo central, porque se a
impor limites ao imperialismo do mercado, mercantilizado que
foram todos os bens sociais e até mesmo culturais. Não parece ir
mais no sentido do nivelamento das condições sócias, mas antes
da direcção da monopolização das vantagens do dinheiro, do
poder e da educação. A democracia

189
de abundância sonhada pelo estado social vem cedendo o lugar a
um certo retorno das desigualdades seculares, acrescidas de novas
diferenciações configuradas sob a forma de exclusão social.
Parece ter se chegado ao fim do objectivo da democraciado bem-
estar e ter desaparecido o desejo de democratização.

As vastas aglomerações urbanas vêem crescer deste modo, no seu


interior ou á sua volta, a miséria, o sofrimento, a solidão e mesmo
o desespero, expressão de uma forte ausência de cidadania e de
vivência de democracia. Dá se, em simultâneo, uma certa
destruição do tecido social em que se tece a vida cívica, como o
declínio acentuado, e, especial, das classes média, em razão de
factores de varia ordem. A meritocracia constitui- se em
verdadeira farsa da democracia, porque não faz mais do que
fortalecer os que já usufruem de privilégios. As actuais
sociedades aderem facilmente á teodiceia da boa fortuna, na
expressão weberiana, esquecendo a cada vez mais extensas
manchas populacionais a quem tal imagem não se adapta ou vêem
nela uma retorça sem consequências. Não se prende, com isso,
minimizar ou desvalorizar a exigência de qualidade e de
excelência, e de participação que tenha na sua base a garantia
«, de direitos subjectivos reclamáveis.

Diminui e dilui-se em tal contexto, o sentimento ligado á ética da


responsabilidade e impõe se o cosmopolitismo. Nunca talvez
como hoje, o sucesso se encontra do lado da mobilidade, da
criação de relações múltiplas em espaços variados, sem vínculos
de proxémia. Com certa erosão da democracia, perdem-se as
relações de interconhecimentos na proximidade e tende a ser
posta de lado a perspectiva que apelava para uma relativa
igualdade de condições sociais. O desaparecimento do carácter
nacional da economia produz uma classe de homens

190
cosmopolitas, que se consideram cidadãos de mundo, com um
cosmopolitismo ilusório que não é enformado por uma prática
concreta de cidadania. Vive-se dissociado do meio que se insere.
As novas elites das profissões intelectuais e dos quadros
superiores investe fortemente nessa mobilidade social e
geográfica, livres de compromissos imediatos.

O progresso do individualismo desagregou as unidades de base


sociais que serviam de pontyo de apoio á prática democrática,
destruindo os espaços sociais onde se possa desenrolar o agir
comunicacional. Os centros comercias estão em vias de substituir
as unidades de residência de outrora, no que concerne os espaços
de proximidade e de diálogo. A mudança das formasde associação
acentua a deterioração do debate público. Em quemedida os meios
de comunicação social ajudam ou dificultam activação deste
debate é uma questão que se levante às actuais democracias. A
entrada na era da informação não significa que as pessoas sejam
bem informadas disponham de informações mais fiáveis e
completa do que no passado. De qualquer modo, elas são
excluídas no debate público e não sentem as necessidades de se
apropriarem do saber indispensável ao exercício da cidadania
plena activa. A democracia funciona na sua formalidade, embora
tendencialmente esvaziada, na prática, de grande parte do seu
conteúdo substantivo. Vem-se, por isso, crescentemente sentido
grande apetência pelos movimentos de cidadania onde se
desenvolve a subpolítica, ao arrepio da política institucional,
tradicionalmente, nas mãos dos partidos políticos, sinal evidente
do ajustamento do sistema político às novas condições existências
das populações.

O questionamento sobre o futuro da democracia aparece, em


resultados de tal situação, de forma bastante recorrente na

191
análise sociológica. As sociedades defrontam se na actualidade
com problemas de não fácil solução. A actividade política tende
assumir um carácter de irrealidade. Ao mesmo tempo que os
profissionais vivem dissociados dos que os rodeiam, parece
aumentar o espaço que separa os cidadãos entre si, caídos numa
cidadania passiva, distanciados dos que detêm o poder político. A
democracia definida como governo do povo pelo povo, continua
a ser uma mera utopia, longe de modelo a que o sonhohumano tem
aspirado para além do desfasamento entre os políticos e a
população, nem sempre é clara a superação dos pobres,
nomeadamente entre o executivo e o legislativo, e entre este o
judicial, assim como entre estes órgãos do estado e as diversas
corporações da sociedade civil, nomeadamente económicas e
desportivas. O poder judicial encontra se de forma ordinária, em
relativo estado de stress, incapaz de responder, em tempo útil, as
múltiplas solicitações que lhe feitas, com consequências graves
para o funcionamento de toda a vidacolectiva.

As observações que possam a ser feitas acerca de funcionamento


da democracia, nas sociedades actuais, adquirem maior ou menor
pertinácia de harmonia com os modelos de estado considerados
como quadro de referência para o exercício de poder político.
Dois modelos de democracia podem ser postos em contraste, asua
concepção política-liberal-sem confundir com liberalismo ou
neoliberalismo ma sua usual significação económica e a sua
significação republicana. Uma e outra acepção estão na base das
diferenciações da democracia ocidentais. Cada uma dessas
concepções apresenta a sua própria visão de cidadão, a sua
maneira de perceber os direitos humanos e a sua forma de

192
entender a formação de vontade política. A concepção liberal, no
sentido estritamente político, tem como função programar o
estado no interesse da sociedade, realizando assim os desígnios
colectivos, enquanto a agregação dos desejos individuais. A
concepção republicana, essa não reduz a política, a uma tal função
de mediação; ela é, ao contrário, constitutiva do processo de
socialização no seu conjunto. A política é concebidacomo a forma
reflexiva de um contexto de vida ética. Na visão republicana, a
arquitectura liberal dos estados da sociedade sofre, na verdade,
uma profunda transformação. O estado, além da sua função de
regulação, enquanto responsável pela criação de um quadro
jurídico que permita o bom funcionamento da vida económico e
social em defesa dos interesses de cada um, como preconiza o
modelo liberal, possui um poder soberano, com a prevalência de
vontade colectiva sobre os direitos subjectivos reclamáveis dos
indivíduos. Neste caso, a solidariedade aparece como terceira
fonte da integração social, para além da regulação estatal e da
regulação descentralizada do mercado. A sociedade civil e o
espaço público político adquirem aqui uma significação
estratégica.

A configuração da democracia correlaciona-se directamente com


a forma de estado e com a maior ou menor desaquação da
representação existente. O que evidencia empírica vem
mostrando é que o tecido social deixou de se apresentar de
harmonia com o modelo republicano formado segundo a teoriado
contrato social e da visão monista da população. A sociedade
perdeu essas características. Como resultado de tal
transformação, em simultâneo com a tendência para o reforço da
vontade nas sociedades democráticas ocidentais, constituídas sob
forma de regime republicanos realizadores de princípio da
soberania popular e nacional, esta e corso um certo

193
enfraquecimento do liame político. O individualismo conduz a
uma concentração nos interesses particulares, em detrimento do
cidadão e das suas ideias. Os deveres do cidadão são confundidos
com os direitos do consumidor. As democracias, nomeadamente
ocidentais, parecem ser mais ameadas, apesar de tudo, pela
cidadania passivas pela indiferença política do que pela
intolerância. As pessoas tendem a pensar mais não seus direitos e
a cuidar pouco dos direitos dos outros, o mesmo será dizer das
suas responsabilidades.
Se na concepção liberal prevalece a razão a vontade e o respeito
pelos direitos humanos, com tendência para a dominação do
modelo do mercado, no modelo republicano, não é o mercado,
mas a conversação que tem valor de paradigma, isto é, o contrato
social e, por isso, as estruturas de comunicação pública orientadas
para o entendimento e o consenso. O modelo republicano mantém
o sentido democrático de um auto-organização da sociedade
pelos cidadãos unidos na comunicação. As desvantagens residem
em que, esse modelo é demasiado idealista e faz depender o
processo democrático da virtude dos cidadãos orientados para a
salvação pública, virtudes essas contraditórias pela prática social.
O descontrolo actua da actividade económica, sujeita
exclusivamente às leis do mercado sem regulação do poder
político, monstra-o á evidencia. Tal modelo envolve questões
éticas e ideológicas fortes. J.J. Rousseau, defensor do modelo
republicano, recebeu esta ideia do cidadão virtuoso de
Montesquieu, segundo o qual, a honra faz mover todas as partes
do corpo político; ela liga-as pela sua acção; e acontece que cada
um conduz-se para o bem comum, crendo se para os seus
interesses particulares, enforma a perspectiva de Montesquieu,
uma visão da virtude política, isto é, da virtude da própria vida do
povo, virtude que conduz a coesão do estado enquanto, amor da
república, e não a virtude

194
moral. Rousseau louva-o por ter formulado essa teoria, mas não
aceita o seu optimismo: eis porque um autor célebre deu a virtude
por princípio á república, porque todas essas condições não
poderiam subsistir sem a virtude; mas a não ter feito as distinções
necessárias, esse belo génio careceu muitas vezes dejusteza, por
vezes de clareza, e não viu que a autoridade soberana sendo por
toda a parte a mesma, o mesmo princípio deve ter lugar em todo
o estado bem constituído, mais ou menos, é verdade, sob a forma
de governo. Montesquieu tinha em vista a democracia antiga,
concepção que leva a elabora uma tal teoria de virtude. Rousseau
considera as condições de uma democracia representativa, já que,
de democracia direita, pensa que nunca existiu verdadeira
democracia, e não existira jamais. Hegel acaba por retomar e
aceitar essa maneira critica, considerando que a virtude política é
insuficiente, porque a sociedade moderna é complexa do que a
cidade antiga. O que opõe Hegel a Montesquieu é a necessidade
de uma constituição.

O modelo liberal, esse assenta em outros princípios e postula


diferentes exigências. O direito instaurado pela política, para ser
legítimo, deve estar sempre de acordo com princípios morais para
poder ter uma pretensão a validade universal, isso nem sempre é
tido em conta no modelo republicano. O novo tipo de sociedade
vê-se incapaz de se desenvolver um sentimento de obrigação
cívica. Se há, ouça disposição para subordinar o interesse
individual á vontade comum, contrariando a vontade republicana,
também vontade poderá tenderpara o não respeitos dos direitos
fundamentais. O clamor populacional que, por toda parte da
Europa se levanta, disso uma prova insofismável. Na
incapacidade aparece na razão direita a proximidade das questões
em causa. Pode sentir se mais com o

195
próximo do que com o distante. Objecto de permanente
questionamento se torna o estado e a sociedade civil.

Valorizando a comunicação no processo político. Habermas


propõe um modelo que supere tanto a concepção liberal como a
republicana e consiste numa política deliberativa, tal modelo
posiciona se de modo diferente em relação a concepção
republicana, que considera estado como uma comunidade ética, e
em relação a concepção liberal, que considera estado como
guardiã da sociedade económica, ele tende a política como um
processo de formação democrática da opinião e da vontade, que
passa por eleições gerais e pelo trabalho de parlamento. Se, na
concepção republicana, a sociedade encara o seu centro de estado,
a democracia é sinónimo de autoorganização política da
sociedade. Por sua vez, na concepção liberal, a formação
democrática da vontade não tem por função a não ser legitimar o
exercício do poder político. Na concepção republicana, a
formação tem, mais do que a tarefa de simples legitimação, a
função de constituir a sociedade enquanto comunidade política.

Só que na perspectiva habermasiana, o processo discursivo


limita-se ás eleições e ao trabalhar parlamentar. Apenas ai se
desenvolvem os processos discursivos, não se estendendo á
sociedade civil. Reconhece, em simultâneo, que existem estados
de direito mesmo onde o poder governamental não foi ainda
democratizado. Habermas, com aquela limitação, parece assumir
a concepção formal institucional apenas nas instâncias oficiais da
actividade política, deixando de lado a sub - política.

O problema consiste no encontro no liame interno entre direitos


humanos e a soberania popular. Princípio da soberania implica

196
a participação dos indivíduos e autonomia pública dos cidadãos.
Ora, existe uma clara tensão entre soberania do povo e direitos
humanos. Neste particular, se opõem, em especial, os modelos
liberais e republicanas. Na entender de Habermas, a autonomia
privada e autonomia publica pressupõem se reciprocamente, se,
que os direitos do homem ou a soberania popular possam ter
pretensão ao primado. De qualquer modo princípio da soberania
popular requer a garantia dos direitos fundamentais sem os quais
nenhum direito legitima pode existir. O processo democrático
deve assegurar as duas autonomias, autonomia privada dos
cidadãos iguais em direitos e autonomia cívica. Na verdade, é
traço geral da tradição liberal o explicar o estado de direito pelo
antagonismo entre um direito que outorga liberdades individuais
e um poder político que realiza desígnios colectivos. Trata se de
uma posição que, nas sociedades ocidentais, se procurou sempre
reequilibrar. O liberalismo político, próprio de um estado de
direitos democráticos, parte do princípio de que as formas de
vidas individuais tem se protegidas das intromissões do poder do
estado, gozando os cidadãos de uma autonomia pública e de uma
auto determinação pessoal, devendo a primeira ser um meio de
realização desta última. Em democracia, é necessário que os
cidadãos possuam a capacidade e a possibilidade de exercer os
seus direitos, em termos de tanta liberdade subjectivas como de
liberdade pública. O que acontece é que, com a crescente crise do
estado social, a inserção na vida económica e social passa, cada
vez mais, a fonte essencial de status social e da cidadania.
Encontram se, por isso, actualmente privados de exercício da
cidadania todos os que estão em estado de pobreza e de exclusão
social. Não gozam ainda de cidadania plena outros segmentos de
população, como os idosos que vivem em estado de privação
relativa. Em razão destas antinomias, muitas das

197
dimensões da cidadania, se soa formalmente reconhecidas, não
são suficientemente garantidas em todo o espaço nacional e
europeu. Cada uma das concepções de estado acabadas de referir
da origem a formas específicas da cidadania e a configurações
próprias da democracia. A qualidade da prática democrática
depende da vivência da cidadania plena e activa. As sociedades
actuais têm vindo a passar de uma concepção monista da
soberania, mais de acordo com o modelo republicano, a uma
visão pluralista, que apela mais ao modelo liberal na base da
arquitectura do estado republicano, esta uma concepção de estado
monista da vontade colectiva. O povo era entendido, como uma
unidade, um corpo, a que se conferia a ideia de soberania. A
vontade geral era dotada de um carácter substantivo. Essa
concepção da soberania popular participativa de uma visão
monista da política, formada a partir de um único princípio, o
voto, a vontade geral exprime se no desse jogo.

A acepção monista veicula a ideia de unidade, compreendida


como uniformidade, pelo menos enquanto situação normal e
desejável da expressão social. A soberania do povo pode, na
verdade, ser entendida sob uma forma monista ou sob um modelo
pluralista. Se, no passado, ela adoptou a configuração monista, na
actualidade tende a exprimir de modo pluralista. Háuma crescente
pluralização do puder social e político, tornando- o
tendencialmente mais participativo. Á concepção pluralista da
cidadania, deram estar associados outras maneiras de manifestar
a vontade popular, com o normal uso da palavra, as publica
tomada de posições, as condutas colectivas e os novos
movimentos sociais. Ao lado da cidadania política, desenvolvem-
se outras modalidades de cidadania, como a cidadania social e a
cidadania cultural. Diversos registos da cidadania, como a
cidadania, complementares uns dos outros,

198
entram em acção. A concepção pluralista do povo traduz-se no
incremento a sob política, a que corresponder expressões de
representação.

As duas concepções da política produzem modalidades diferentes


de ver a cidadania. Á concepção monista da soberania popular,
corresponde uma forma específica de cidadania, a cidadania
política. O conceito da cidadania encontra a sua origem matricial
no estado-nação voto aparece aí como o único modo de expressão
da vontade popular. A cidadania política anda formalmente ligada
ao ritual eleitoral.

Mas a delimitação das formas e do alcance do estado resulta


igualmente de circunstâncias históricas que tem a ver com os
direitos humanos e os princípios do estado de direito. A própria
formação do estado gera minorias nacionais. Existe uma
associação interna entre estado de direito e democracia, que,
explica o carácter indivisível dos direitos fundamentais liberais e
dos direitos políticos. Mas essa é uma questão de princípio e não
de facto. A associação é claramente rota em algumas situações,
da maneira mais extremada, mediante étnicas, todos os estados-
nação são multiculturais, estando sujeitos a processos benignos
ou mais nefastos de segregação.

Segundo a concepção libera, o estatuto da cidadania é definido


pelos direitos subjectivos que os indivíduos possuem, quer em
relação ao estado quer em relação a outros cidadãos. As pessoas
encontram se libertas de qualquer constrangimento exterior que
seja espúrio. Os cidadãos estão então seguros de que o poder de
estado é exercido no interesse dos membros da sociedade.

199
Para a concepção republicana libera, o estatuto da cidadania deixa
de ser definido pelas liberdades que podem reivindicadas por cada
pessoa privada. Desde então, os direitos cívicos, em primeiro
lugar os direitos de participação e de expressão política, são, ao
contrário, liberdades positivas. Os direitos humanos não
garantem, neste caso os indivíduos contra as incursões
confrangedor as vidas do exterior. De harmonia com esta visão, a
existência do estado não é legitimada e, primeiro lugar pela
protecção dos direitos subjectivos iguais, mais pela garantia de
um processo inclusivo de formação de opinião e da vontade, no
decurso do qual os cidadãos livrem e iguais se entendem sobre os
objectivos e as normas que são do interesse comum a todos. Pede-
se assim ao cidadão republicano mais do que agir simplesmente
em função dos interesses que os de cadaum. Se, no modelo liberal,
a ordem jurídica é construída a partir dos direitos subjectivos, no
modelo republicano, o primado é conferido ao seu conteúdo de
direito positivo, imposto pela vontade geral.

O republicanismo que remonta a Aristóteles, privilegia a


autonomia publica dos cidadãos em relação as liberdades
subjectivas dos indivíduos. A sociedade, na perspectiva de
Rousseau, autor que se inclina a favor da versão republicana, é
entendida como comunidade mais ou menos homogénea, no
suposto que a autonomia moral dos indivíduos aparece recoberta
na autonomia política da vontade unida de todos. O liberalismo,
que remonta o John Locke, esse insiste no perigo que constituem
as maiorias tirânicas, afirmando o primado dos direitos do
homem. Se E. Kant, que assume de preferência a versão liberal,
procurava a coerência da soberania popular e dosdireitos humanos
na subordinação daquela a estes, Rousseau

200
procede de forma inversa, limitando os direitos humanos á
soberania da vontade geral.

A cidadania define-se como um conjunto de direitos e deveres no


interior de uma dada comunidade. O cidadão começou por ser o
homem sufragem, como homem abstracto, simples elementos de
uma unidade nacional, dotado da capacidade de votar, o núcleo
central da democracia, enquanto participação na vida da
comunidade verdadeira substância da cidadania, desaparecia por
detrás de número. A abstracção tornava-se uma exigência do
imperativo democrático. A esta concepção abstracta do
liberalismo, se opõe Karl Marx, com a sua noção do homem real e
realizado.

Numa situação de estreita relação entre estado, a economia e a


sociedade, era possível uma extensão do alcance da cidadania. A
formação do estado-nação arrastou consigo a necessidade
desenvolver uma actividade económica que permitisse a
população usufruir da suficiência de bens, tornando-se possível
num estado social. O poder político tinha capacidade para
controlar o sector económico. A noção de cidadania, para além
do seu registo político, passou a conter outras dimensões,
estendendo-se as questões sociais e culturais. Na actualidade a
noção de cidadania abarca um conjunto extenso de direitos, sem se
restringir á mera participação política. São direitos de cidadania
os referentes, entre outros, á habitação, á educação, á saúde, assim
como a cultura que esta na base de identidade de cada um.

A unificação europeia levanta assim alguns desafios á vivência


da democracia e á extensão da cidadania. O problema está em
saber se será possível o desenvolvimento e a garantia de uma

201
efectiva cidadania europeia, sem afirmação de uma Europa
social, com políticas sociais uniformizadas que ultrapassem o
princípio formal subsidiariedade, consagrados em diversos
tratados. Até que supere essa cláusula, a cidadania europeia
continuara a ser uma declaração do princípio, sem o seu total
reconhecimento de facto. O que se verifica é o avanço de uma
Europa económica á custa da Europa social. Nunca haverá uma
Europa social, sem uma Europa política que tarda em aparecer,
porque não surge uma arquitectura política que a suporte.

A prática democrática aparece ainda, de qualquer modo, bem


limitada á categoria de nação e não se vê que, a curto prazo, se
estenda a um espaço mais vasto. Não é possível a vivência da
democracia sem estado democrático que garanta os direitos
humanos e de um projecto político que dinamize a cidadania
activa. A Europa debate se por sua vez, com um grande dilema,
sentindo nisso uma alguma contradição: sonha com espaço
público unificado, mas encontra mas encontra dificuldade em
criar um espaço político público que lhe corresponda e os
mecanismos próprios da prática democrática.

A agravar a situação, está o facto de que o conceito de cidadania


tende assumir uma certa polissemia, dificultando a sua
significação precisa. Não será possível defini-la sem, ao mesmo
tempo, ter em conta a natureza e o alcance dos direitos humanos.

Retomando os dois modelos de estado, verifica-se que a


concepção liberal entende os direitos humanos como a expressão
de auto determinação moral e a soberania de direitos humanos
como a expressão de uma realização ética de si,

202
estabelecendo se entre direitos humanos e soberania do povo,
uma relação mais concorrencial do que de complementaridade
recíproca. Pode haver certa tensão entre o império das leis
fundadas os direitos humanos e auto organização espontânea de
uma comunidade que se da si mesma as próprias leis através da
vontade soberana do povo. Os liberais esconjuram o perigo de
uma tirania da maioria, de que falava Alexis de Tocqueville, e
postulam os direitos humanos. Assumem uma concepção que
contrasta com adoptada pelo estado republicano.

Se, de harmonia com a concepção liberal, os direitos humanos se


impõem como algo inscrito na natureza das coisas, na concepção
republicana, é a vontade da colectividade que édeterminante, não
se reconhecendo nada que corresponda ao seu projecto do
colectivo da vida. E.Kant e Rousseau personificam estas duais
visões.

E.Kant propõe uma visão liberal de autonomia política. O


princípio universal dos direitos resulta da aplicação moral á vida
social. O homem, em razão da sua humanidade, dispõe do direito
á liberdades subjectivas. Os direitos privados subjectivos são
inalienáveis, não podendo o homem abdicar deles, mesmo que
quisesse. Em tal perspectiva, a vontade unida e concordante dos
cidadãos é limitada por direitos humanos, moralmente fundados.
Haverá, por isso, uma dependência da soberania popular dos
direitos humanos que lhe impõem uma limitação. Será necessário
que a autonomia política se exprima em coerência interna com
eles. O contrato social ocupa, ao contrário, na visão de Rousseau,
um lugar central que não possuiem Kant. O pensador francês parte
da constituição da autonomia civil para assegurar uma coerência
interna entre a soberania popular e os direitos humanos. No
entender de

203
Habermas, pois que a vontade soberana do povo não pode
exprimir-se a não ser na língua das leis universais e abstractas,
esse direito a iguais liberdades subjectivas que Kant punha como
preliminar enquanto direito fundado para todo o homem a tomar
a parte na formação da vontade política, é desde o partido inscrito
nela. Consequentemente, em Rousseau o exercício da autonomia
política não esta mais sob reserva de direitos inatos, entrando o
conteúdo normativo dos direitos humanos no modo de realização
da soberania popular. O pensamento de Rousseau é ambivalente,
radicando nele o individualismo liberal e a tendência para o
totalitarismo expresso na vontade geral. Aparece na origem tanto
do estado liberal, inspirado nos direitos do homem, como do
estado republicano, assente no contrato social e, dai, na vontade
geral. Acaba. Porem, por privilegiar a vontade unida dos cidadãos,
vontade que produz as regra que garantem as liberdades
subjectivas iguais para todos. A soberania popular assegurara,
desse modo, a substância dos direitos originais do homem, tais
como concebidos por E.Kant.

Se E.Kant é tributário da tradição liberal, Rousseau está ligado á


tradição republicana. É, por isso, este último concebe a
autonomia como realização de uma forma de vida escolhida pelo
povo, transformando os indivíduos em cidadãos dedicados ao
bem comum e, por isso, em elementos de uma comunidade ética.
Rompe assim com os interesses particulares, ao assumir uma
concepção republicana da comunidade.

A democracia moderna encarna a ideia liberal de defesa da


autonomia do indivíduo. Os indivíduos devem dispor dos meios
indispensáveis ao exercício dos seus direitos, possuindo as
capacidades intelectuais necessárias á participação na vida

204
política. Em democracia, o sistema dos direitos não só não é cego
á desigualdade das condições sociais de vida, mas não o é mais
às diferenças culturais. Uma teoria dos direitos não pode ser
indiferente de cultura. Os sujeitos de direitos tornam-se
indivíduos graças á socialização. Desde então, uma teoria do
direito bem compreendido requer precisamente uma política de
reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo,
compreendido nos contextos de vida que formam a sua
identidade. A autonomia privada dos cidadãos iguais em direitos
passa a ser assegurada mediante a aceitação da sua autonomia
cívica.

Observam-se, na então, neste particular, alguns contrastes. A


leitura liberal do sistema dos direitos humanos confunde o
universalismo e direitos fundamentais com o nivelamento,
abstracto das diferenças, quer se trate das diferenças culturais,
quer das diferenças sócias. Mas os diversos contextos
socioculturais não poderão deixar de ser considerados, se quiser
realizar o sistema de direitos de forma democrática. A concepção
republicana acentua estes elementos, partindo do contrato social,
delimitando assim o conteúdo e a extensão dos direitos. Aparece,
desde então, claro que o desenvolvimento de orientação contraria
a outra.

Se a cidadania socioeconómica e cultural conhece restrições e


limites no espaço europeu, isso acontece igualmente em relação á
cidadania política.

A desinstitucionalização da vida social, que vem alastrando pelo


mundo ocidental, atinge de modo particular, alguma instituições
dotadas de um carácter representativo, como sejam os sindicatos
e os partidos políticos. As organizações laborais

205
deixaram de abarcar todos ou a maioria dos trabalhadores, ao
mesmo tempo que vêem esgotar-se progressivamente a sua
capacidade de mobilização e de reivindicação. São frequentes, na
actualidade, as movimentações de trabalhadores á margem dos
sindicatos, ao mesmo tempo que se desenvolvem p poder o
crescente dos movimentos sociais e das frequentes acções de
cidadania.

Dada a vitalidade do eleitorado, também os partidos políticos


falam, cada vez mais, em nome do aparelho partidário, cada vez
menos, em nome dos eleitores que lhe dão apoio e dos cidadãos
dão em geral. A cultura política nãos e estende de forma
homogénea nem território para pelo território nacional, muito
menos, pelo espaço europeu. A saciedade eleitoral vem
fornecendo modelos do comportamento político, tendo em conta
as diversas clivagens, antigas e novas, criadas nas sociedades
modernas, cujo impacto tende a divergir de sociedade para
sociedade.
As sociedades em processo de desinstitucionalização não podem
passar em instituições sociais, que sejam quadros normativos de
acção capazes de desenvolver uma cultura de cidadania activa.

A família vem perdendo a sua capacidade de normativa social.


Temos uma família que tende cair progressivamente em estados de
desintegração generalizada, deixando de exercer a sua tradicional
função de socialização dos seres humanos, privando a escola deste
suporte. Está em causa a formação do homem para o tipo de
sociedade que esta em vias de ser constituído.

206
A escola perde a sua capacidade de normativa social. Temos uma
escola que continua a educar para uma sociedade que já não
existe, usando porventura, modelos e conhecimentos que não são
nem adequados. Estão em causa programas e conteúdos
ministrados.

As igrejas perdem a sua capacidade normativa social. Temos uma


igreja que continua agarrada a certos procedimentos vindo do
passado, sem auscultar sentir o pulsar da vida do homem de hoje,
com os seus sonhos e as suas esperanças, mas também com as
suas decepções e as suas misérias. Esta em causa a conversão dos
sinais do tempo em referências de sentido e conduta.

O poder de estado perde a sua normativa e de integração social e


política. Temos um poder político que, convencido de que é
democrático, vai-se distanciando cada vês mais do povo, em
encontrar formas de entender aos problemas imensos com que as
populações se confrontem, parecendo posicionar-se mesmo, por
vezes, contra elas. Estão em causa formas de cidadania e de
segurança no exercício dessa cidadania.

O neoliberalista priva, em particular, o estado da capacidade de


regulação da economia, permitido a criação de profundas
clivagens sociais e, e o desenvolvimento da extensas manchas de
pobreza e de exclusão sócia. Sem uma institucionalização
adequada da vida social, a cidadania torna se frágil e não encontra
espaço para a sua conveniente realização.
O desenvolvimento ocorrido na época contemporânea, tem
conduzido, por outro lado, a uma situação em que soberania se
dilui. Há tendência de dar sentido á vida política, com a

207
reafirmação da soberania. Esta, promovida a nível do estado e das
relações internacionais, é, cada vez mais, dotada de alcance
limitado, na medida em que essas relações são transnacionais
num espaço geopolítico mais alargado. A globalização, neste
aspecto, não será também mais do que uma certa ilusão. Poderá,
na verdade, pergunta-se se será possível pensar apolítica europeia
de acordo com os critérios da democracia nacional. Não é fácil
transpor para o nível europeu, e muito mais mundial, os
procedimentos de governo das democracias representativas, com
a criação de uma democracia com essa mesma extensão. O
problema consiste em saber como democratizar as organizações
internacionais. Na Europa, um enorme défice democrático. As
decisões cruciais são tomadas por elites políticas e por elites
burocráticas. Faltam as instituições políticas que ofereçam aos
cidadãos as oportunidades de participação e de controlo político.
Está-se ainda longe de uma arquitectura política da Europa, sendo
difícil saber como poderá funcionar ai a democracia. O que se
poderá afirmar com algum fundamento é os procedimentos e
legitimidade em uso nas sociedades ocidentais poderão não ser
exequíveis em níveis políticos supra-nacionais, onde se
reconhece que o procedimento não lógicos sufrágio parece que
ser substituído por um outro mais lógico, como sejam os direitos
humanos.

Considerando a união europeia, a cidadania política continua a


manter se essencialmente no registo nacional. Os mecanismos de
eleição actuam dentro do espaço dentro estado-nação, com
excepção da capacidade que tem eleitores estrangeiros residentes
em cada país de poderem eventualmente candidatarem se a cargos
em âmbito local.

208
A cidadania política estendida ao espaço europeu é, neste aspecto
limitada, a algumas eleições, especialmente autárquicas. As
próprias eleições para o parlamento europeu mantêm a matriz
nacional. Não existe ainda um espaço publico político europeu,
nem muito menos mundializado, que permita eleições que lhe
sejam adequadas. A participação no sufrágio eleitoral tem sido,
ao mesmo tempo, o símbolo e o instrumento de vivência da
cidadania política, sendo ela que revela o sentido da democracia
moderna.

As únicas eleições que transcendem o espaço nacional como


quadram em que se processam, mais como espaço em que se vem
exprimir os seus resultados-são as que realizam para o parlamento
europeu. Mas tal instância da união, para além do seu relativo
pouco peso político, padece, ainda assim, de algum défice de
representatividade e de democraticidade. Se o federalismo
intergovernamental se tornar a arquitectura política europeus,
para a qual aponta alguns dos tratados, será indispensáveis duas
câmaras. Enquanto uma, o parlamento, terápor função representar
os cidadãos europeus, a outra, um eventual senado, representará
aos estados nacionais. Os deputados do parlamento europeu
tendem a representar mais povo e até governo ou estado, ou por
razões ideológicas concretos segmentos populacionais, do que o
povo europeu constituído pela população de toda a união.

Uma cidadania política extensiva á Europa unida terá


necessariamente de passar constituição de partidos políticos
europeus e não exclusivamente por partidos políticos europeus e
não exclusivamente por partidos pela constituição de partidos
políticos europeus e não exclusivamente por partidos nacionais.

209
As famílias partidárias a nível do parlamento europeu são
formadas artificialmente por agressão mais ou menos ideológica.
Falta á sociedade civil europeia um sistema de partidos que
representa os interesses transnacionais susceptível de promover a
formação democrática da vontade, a exemplo do que sucede com
os partidos a nível nacional. Enquanto a Europapolítica continuar
a ser um desiderato, sem uma arquitectura que lhe confira
coerência e democraticidade, a cidadania política não terá nela
verdadeira expressão, em termos do si conteúdo e da sua
extensão.
A tendência que vem notando nas sociedades de hoje é para a
noção da cidadania de mundo seja usada por uma elite por uma
elite crescentemente transnacional ou por uma elite cultural
comuns semelhante ideário. Estas elites são portadoras de
ideológicas políticas que procura m superar os limites dos
estados-nação, perdendo o contacto direito com as preocupações
do cidadão comum. Movem-se numa outra esfera.

Poderá se perguntar em que medida a cidadania pode encontrar


espaço a nível europeu e a nível global. Estes definem a
amplitude da própria cidadania.

A visão republicana constitui os indivíduos sem cidadãos


conscientes da sua pertença a uma comunidade de semelhantes.
Nessa perspectiva, só a consciência de pertença ao mesmo povo
converte os súbditos em cidadãos de uma única comunidade
política, sentindo se responsáveis uns pelos outros. O espaço dos
direitos civis, sociais, políticos e culturais aparecem configurados
sob a forma de pertença a um povo definido culturalmente. O
estado - nação consegue, deste modo,

210
realizar a cidadania democrática e a integração social,
conjugando a liberdade privada dos cidadãos, enquanto membros
da sociedade civil, com a sua autonomia política.

A cidadania é definida, em tal perspectiva, em termos jurídicos.


O estado nacional institucionalizou a ideia republicana da
actuação consciente da sociedade sobre si mesma. Há
actualmente uma tendência para a superação do estado nacional,
todavia o desaparecimento desse parece arrastar também consigo
o fim da autonomia do cidadão. Segundo Habermas, se não só o
estado nacional chegou ao seu fim, mas com ele a forma de
socialização política, os cidadãos serão atirados para um mundo
de redes anónimas em que terão de decidir segundo as suas
próprias preferências entre opções criadas em termos sistémicos.
Neste mundo pós-político, as empresas transnacionais
convertem-se em modelo de conduta. Fora da comunidade de
solidariedade estatal, é fácil aos cidadãos individuais perderem o
sentido da reciprocidade.

Face aos inúmeros perigos globais com que se confirma hoje a


humanidade, acção num plano supranacional. Isso conduz a
transformações muito profundas.

Criando uma situação nova na Europa, em que o próximo impulso


para a integração social pós-nacional não depende do substrato
de um povo europeu, mas da rede comunicativas de uma esfera
publica política de amplitude europeu inscrita numa cultura
política comum, suporte de uma sociedade civil com grupos de
interesses, organizações não estatais, iniciativas e movimentos de
cidadãos, e assumida por foros em que os partidos políticos
podem referir se imediatamente às decisões

211
das instituições europeias, para além dos agrupamentos
fraccionais, para se convertem num sistema de partidos europeus.
Essas mudanças, essas mudanças, ao mesmo tempo que criam um
espaço público político supranacional, são susceptíveis de
desenvolver a passagem dos direitos humanos aos direitos de
cidadania, com garantia e protecção institucionais.

Unidade 8.5.A Cidadania pela Relação Mídia e Movimentos


Sociais. Mas se essa é uma condução necessária, não será bastante.
A igualdade na sua pura formalidade, não confere necessariamente
o seu respeito e a sua garantia. Não será sequer a igualdade que
cria o direito á cidadania, é, ao contrário,
a cidadania que confere a exigência de igualdade. Se fosse a
igualdade o factor primeiro e determinante, dificilmente haveria
cidadania, na medida em que as sociedades tendem para as
desigualdades. Se os homens gozam de igualdade da natureza,
sofrem de uma desigualdade de conduções políticas, económicas,
sociais e culturais. A desigualdade é transversal a todas as
sociedades. Torna-se difícil concluir a desigualdade universal dos
homens para afirmação universal dos mesmos direitos. Essa
conclusão faz passar de uma questão de natureza a uma situação
existencial que universalmente contradiz essa mesma natureza. A
cidadania nasce de um ordenamento jurídico que reconhece. Daí
resulta a necessidade da existência de um direito democrático
cosmopolita para o funcionamento da democracia e para a garantia
da cidadania em espaços alargados que extravasem os limites
estreitos do estado-nação. Neste particular, com alguns dilemas se
conforta mas democracias actuais.

212
Consequentemente, o desenvolvimento de uma cidadania
supranacional levanta enormes desafios. Por um lado, a matriz da
cidadania é o estado-nação de ponto de vista do seu conteúdo,
define-se pelo reconhecimento e pela defesa dos direitos
humanos. A matriz cultural dos direitos humanos é, por sua vez,
a cultura nacional iluminista do ocidente, que se não levanta
problemas no interior do espaço europeu o mesmo não sucede a
nível mundial. Nesta última situação, existe um eventual conflito
entre direitos humanos e globalização, na medida em que a
presença de culturas diferentes nem sempre coexiste em
harmonia.

A concepção dos direitos humanos está relacionada com a visão


democrática. O poder não tem razão de existência a não ser
quando respeita os direitos fundamentais do homem. É verdade
que a prática democrática obedece ao princípio das morais, mas é
igualdade certo que estas são instáveis, influenciáveis e falíveis,
porque a nacionalidade não se encontra necessariamente do lado
da vontade geral, a validade do princípio democrático terá de se
conter dentro dos limites dos direitos humanos, para que esse
princípio, para além de democrático, corresponda á justiça. A
democracia está subordinada ao respeito por certas direitos
naturais, devendo dar-se lhes o primado sobre a democracia
maioritária, de forma a evitar a tentação da tirania da maioria. A
autoridade terá de agir nesse quadro.

Para haver um espaço mais aberto para afirmação da cidadania


social no contexto europeu. Enquanto expressa da emancipação
dos indivíduos, a cidadania apresenta movimentos em sentido
contrário, de autonomia e de participação. Os diversos trados

213
vêm constituindo garantia de circulação, de trabalho e de outros
cuidados concedidos a todas pessoa cidadãs de cada um dos
integrantes.

Observa-se, na entanto, o desenvolvimento, por vez, talvez de


uma solidariedade de humanidade do que de cidadania. A
primeira implica uma mera consciência da responsabilidade
humana comum. A solidariedade de cidadania obriga realizar
uma certa igualdade de oportunidades, com uma relativa
aproximação dos níveis de vida. Ora, sucede que a construção da
Europa económica é acompanhada da destruição da Europa
social. Em diversos tratados prevalece o princípio da
subsidiariedade. Não existem políticas sociais comuns a toda
comunidade. A solidariedade de cidadania é bem mais exigente e
dispendiosa. Se afirma, em termos formais, a solidariedade da
cidadania, retira-se lhe depois o seu conteúdo material na sua
aplicação diferenciadas pelos diversos estados. Onde a cidadania
social e económica continua a ter algum material real é no espaço
nacional. A nível europeu, o processo encontra-se somente em
vias de realização, não sendo ainda uma aquisição estabelecida
em todas as suas valências. A cidadania europeia consagrada nos
tratados é simples reconhecimento formal de uma cidadania
nacional cujo conteúdo continua ainda com grande indefinição no
espaço mais alargado.

Se a tendência, no que concerne os direitos humanos e a


cidadania, vai no sentido da universalização, a sua aplicação
exige um contexto público adequado que lhes de consagração
jurídica. Não existe estado de direito em sentido próprio sem
democracia. Desde John Locke, se vem impondo uma concepção
do direito segundo a qual o ordenamento jurídico tem em conta,ao
mesmo tempo, o seu carácter positivo constrangedor e a

214
garantia de liberdades individuais. Esta dualidade é constitutiva
da concepção do direito moderno. É daí que resulta o carácter
potencialmente universal da cidadania. A democracia moderna
prolonga tradição liberada defesa da autonomia individual. Os
princípios democráticos da cidadania apontam para as suas
dimensões universal e para a faculdade que possui cada um de
poder exercer as suas liberdades fundamentais, em qualquer
espaço em que se encontre.

A comunidade de cidadania pensada, segundo o modelo dos


estados-nação, de forma homogénea, aparece por toda a parte
como heterogéneo. A polis era, para Aristóteles, a expressão de
uma realidade social e cultural, enquanto comunidade de
cidadãos organizados na política. Os pensadores romanos
passaram a definir os cidadãos jurídicos, dando fundamento á
ideia da abertura potência da cidadania e da sua vocação
universal.
O cosmopolitismo, que se vem desenvolvendo nas sociedades
ocidentais, tende a alimentar a ideia uma cidadania do mundo,
fundada no direito natural. A expressão de cidadania de mundo,
corrente em alguns ambientes, possui todavia um puro carácter
retórico. Anda associada a um cosmopolitismo que não
enformado por uma prática de cidadania, que pressupõe um
enquadramento de direitos subjectivos reclamáveis num concreto
espaço político.

Para que o conceito da cidadania do mundo seja dotado de um


carácter substantivo, será indispensável, que na sua base, esteja o
reconhecimento e garantia dos direitos humanos universais. Ora,
isso não sucede actualmente de forma uniforme, nem no

215
espaço europeu nem subjacente a cultura ocidental, que nem
sempre encontra aceitação no quadro de outras culturais.

Em si mesmo, os direitos não apresentam idêntica pertinência nos


diversos meios sócias e culturais. Se toma como exemplo a
legislação laboral, verifica-se que ela apresenta modalidades bem
diferentes no ocidente, em África e no extremo oriente. O direito
ao trabalho, assim como outros direitos, não é entendido
univocamente nesses diversos contextos. Se isso é verdade, difícil
será apelar para a cidadania, quando se prende exigir o seu
cumprimento. Tais direitos possuem uma significação e um
alcance próprios apenas no interior de uma comunidade política,
de harmonia com a sua própria cultura e o quadro doe seu
ordenamento jurídico.

Se, na união europeia, os direitos da cidadania são na actualidade


formalmente reconhecidos, só aparecem garantidos na medidas
em que estados-nação convergem na elaboração de legislação que
lhes passa dar, em toda a parte, igual fundamento e aplicação. A
cidadania europeia, mas do que um estado realmente vivido,
constitui, em grande parte, um processo. Foram criadas
instituições destinadas a regulamentar o seu exercício. Subsiste,
no entanto, o princípio da subsidiariedade, que limita o seu
cumprimento em situação de relativa de igualdade, não só ao
nível da cidadania socioeconómica, como ainda da cidadania
política e cultura. A situação é mais gravosa em regiões do
mundo. Compete, neste caso, a cada estado providenciar, a nível
internacionalizara do espaço europeu no sentido de proteger os
seus próprios cidadãos. É se um cidadão de um estado ou um
conjunto de estados associados.

216
Sempre que um dos estados da Europa não tem relação
diplomática com estado em que seja necessária intervir a favor de
um cidadão, esse papel está confiado a outro estado europeu que
tenha possibilidade que esteja em condições de o fazer.

A vivência da cidadania e da democracia pressupõe algumas


condições de base. O quadro indispensável ao seu respeitoparecer
ser constituído, antes de mais, pela paz.

Norberto estabelece a seguinte relação: direitos do homem,


democracia e paz são momentos necessários do mesmo
movimento histórico: sem direitos de homem reconhecidos e
protegidos, não há democracia, sem democracia, não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.
Mas se a paz é necessária, só por si não possui força suficiente
para promover a cidadania. Esta poderá continuar esquecida ou
ignorada sem a garantia dos direitos humanos no quadro de um
ordenamento jurídico que os proteja. A democracia e a sociedade
dos cidadãos no gozo dos seus direitos, subjectivos e positivos, na
prática da cidadania, pressupondo a passagem da cidadania
passiva a uma cidadania activa.
A crescente extensão dos direitos humanos reconfigura as novas
modalidades de vivência da cidadania activa. Esta, por sua vez,
define a qualidade da democracia. O conteúdo dos direitos
humanos e o espaço da cidadania dependem, todavia, do modelo
e estado e da força do ordenamento jurídico que limitaou amplia
o exercício da cidadania, quer no âmbito nacional, quer a nível
supra-nacional.

Auto-Avaliação
1. O que entende por moral?

217
2. O que entende por comportamento?
3. O que e ética?
4. Qual a diferença entre ética e moral?
5. Qual a diferença entre ética e comportamento?
6. O que entende por cidadania?
7. Como pode ser classificada a cidadania.
8. Como se denomina aquela que não faz uso ético?
9. Porque o sentido de ética chegou a falência na modernidade?
10. Como estudante do nível superior, qual é o conceito de
felicidade.
11. Explique a ética segundo o padrão.
12. A invasão e tentativa de conquista da Grécia pelos Persas
veio modificar substancialmente as relações políticas e
sociais na Hélade.
a) Descreve o papel desempenhado por Atenas na defesa e o
incremento dado à sua força. naval, Temístocles e
Clístenes.
b) Qual foi o modelo Democrático estabelecido na Grécia
antiga.
c) Situa no tempo a Democracia ateniense.
13. A família vem perdendo a sua capacidade de normativa
social.
a) Define a cidadania.
b) Que tipo de sociedade está em via de ser constituído.
14. A vivência da cidadania e da democracia pressupõe algumas
condições de base.
c) Mencione as condições de base acima referida.
15. O desenvolvimento de uma cidadania supranacional levanta
enormes desafios.

218
a) Que tipo de matriz da cidadania é o estado-nação de ponto de
vista do seu conteúdo.

219
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