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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2022.0000945400

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº


1014713-73.2018.8.26.0602, da Comarca de Sorocaba, em que são apelantes LUIZ
FRANCISCO ROLDÃO SANCHES e IVONE ALCOLÉA SANCHES, são apelados
ANTONIO APARECIDO GOMES e GUIDO CUSSIOL NETO.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 1ª Câmara Reservada de


Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:
Deram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que
integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores FORTES


BARBOSA (Presidente), JANE FRANCO MARTINS E J. B. FRANCO DE
GODOI.

São Paulo, 18 de novembro de 2022.

FORTES BARBOSA
Relator(a)
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Apelação Cível 1014713-73.2018.8.26.0602

Apelantes: Luiz Francisco Roldão Sanches e


outra

Apelados: Antonio Aparecido Gomes e outro

Voto nº 18.522 JV

EMENTA
Ação de exigir contas Primeira fase Sociedade de
propósito específico constituída para a implantação e venda
do empreendimento imobiliário denominado “Loteamento
Fazenda Jequitibá” Decreto de improcedência fundado na
ausência de comprovação da existência do vínculo legal ou
negocial gerado pela administração de bens ou interesses
alheios Vínculo societário pretérito mantido pelas as
partes Demonstração, também, da manutenção de liame
posterior à retirada dos autores da sociedade de propósito
específico, dado o teor de instrumento particular exibido
Interpretação do art. 550, §1º do CPC/2015 - Alegações das
partes e documentos trazidos aos autos indicativos da
necessidade da produção de prova oral, para o
esclarecimento adequado da conjuntura fática, ausente
enquadramento junto ao art. 355, I do diploma processual
vigente Cerceamento da produção de provas caracterizado
- Sentença anulada Recurso provido.

Cuida-se de recurso de apelação


interposto contra sentença proferida pelo r.
Juízo de Direito da 4ª Vara Cível da Comarca de
Sorocaba, que, em primeira fase, julgou
improcedente ação de exigir contas, condenando
os autores ao pagamento de custas, despesas
processuais e de honorários advocatícios
sucumbenciais, estes fixados em 20% (vinte por

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cento) do valor da causa (fls. 446/455).

Os autores recorrem, almejando a


inversão do julgado. Requerem, preliminarmente,
a concessão da gratuidade processual e arguem a
nulidade da sentença em razão do julgamento
antecipado da lide. No tocante ao mérito
recursal, sustentam fazer jus à prestação de
contas postulada, a qual é originada, segundo o
proposto, do teor de “Instrumento Particular de
Constituição de Sociedade de Fato”, que fora
firmado em 12 de dezembro de 2013. Pedem a
anulação ou, subsidiariamente, a reforma da
sentença (fls. 460/483).

Em contrarrazões, os recorridos
impugnaram o pedido de concessão da gratuidade
processual formulado pelos recorrentes e
requereram o desprovimento do recurso (fls.
559/567).

Foi indeferido o pedido de concessão


dos benefícios da Justiça gratuita e determinado
o recolhimento das custas de preparo recursal
(fls. 645/649), o que foi atendido pelos
apelantes (fls. 652/655).

Não houve oposição ao julgamento


virtual.

É o relatório.

Na petição inicial da presente ação de


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exigir de contas promovida por Luiz Francisco


Roldão Sanches e Ivone Alcoléa Sanches em face
de Antônio Aparecido Gomes e Guido Cussiol Neto,
é postulada a apresentação de contas das
despesas havidas e receitas auferidas com a
implantação e venda do empreendimento
imobiliário denominado “Loteamento Fazenda
Jequitibá”.

Os autores alegam que no início de


2004, um grupo de empresários se reuniu para
constituir um empreendimento imobiliário, pois a
"Família Arcuri" detinha uma gleba de terras e a
empresa CBV Empreendimentos Imobiliários possuía
o capital necessário para a implantação do
negócio, além de uma parcela do total da gleba.
Aduzem que a CBV Empreendimentos Imobiliários,
na sequência, desistiu de continuar no negócio,
cedendo seus direitos de participação, da
seguinte forma: a) 28,224% (vinte e oito por
cento e duzentos e vinte e quatro centésimos)
para Francisco Roldão Sanches, Paulo Henrique
Roldão Sanches e Ivone Alcolea Sanches ("Família
Sanches”) e 28,224% (vinte e oito por cento e
duzentos e vinte e quatro centésimos) dividido
entre os requeridos Guido Cussiol Neto e Antônio
Aparecido Gomes, tendo estes constituído uma
pessoa jurídica para implantar o empreendimento
imobiliário, atualmente conhecido como
“Loteamento Fazenda Jequitibá”. Sustentam que,
nos primeiros anos do empreendimento, os

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envolvidos apenas trabalharam com levantamentos


e projeções, iniciando a execução do projeto no
ano de 2011, formalizado por Instrumento
Particular de Contrato de Parceria, ficando
estabelecido que, de um lado, a "Família Arcuri”
(proprietários originários das glebas) iria
contribuir com um imóvel; e de outro, "Família
Sanches" e os réus rateariam as despesas de
implantação do empreendimento, para que, quando
finalizado, vendessem os lotes, divididos os
lucros entre os integrantes da parceria. Dizem
que, assim, ficou estabelecido que a "Família
Arcuri" (proprietários originários da gleba)
teriam direito a 40% (quarenta por cento) dos
resultados líquidos das vendas, enquanto os
parceiros investidores ("Família Sanches” e os
requeridos) teriam direito aos outros 60%
(sessenta por cento), nos termos da Cláusula 7ª
do referido Instrumento Particular do Contrato
de Parceria (itens 7.1 e 7.2). Afirmam que, para
facilitar a gestão e a implementação do
empreendimento, os sócios denominados “parceiros
investidores” constituíram uma Sociedade de
Propósito Específico (SPE), denominada Fazenda
Jequi S.P.E. Ltda, cujo capital foi atribuído da
seguinte forma: a) 50% (cinquenta por cento)
pertencente à "Família Sanches", sendo 20%
(vinte por cento) de Ivone Alcolea Sanches, 15%
(quinze por cento) de Paulo Henrique Roldão
Sanches, e 15% (quinze por cento) de Francisco
Roldão Sanches; b) 50% (cinquenta por cento)
pertencente aos requeridos, sendo 25% (vinte e
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cinco por cento) do requerido Guido Cussiol Neto


e os outros 25% (vinte e cinco por cento)
restantes do requerido Antônio Aparecido Gomes.
Alegam que a gestão do empreendimento sempre foi
executada diretamente pelos réus, os quais
efetuavam o levantamento dos custos,
estabeleciam prioridades, acompanhavam a
execução de obras e administravam as vendas,
enquanto aos integrantes da "Família Sanches"
cabia o aporte de valores, conforme lhes era
solicitado, sempre respeitando os seus
percentuais de participação, no sentido de dar
continuidade no empreendimento. Apontam que, no
mês de junho de 2013, um dos integrantes da
“Família Sanches" (Paulo Henrique Roldão
Sanches) alienou sua participação ao réu Antônio
Aparecido Gomes, o qual, por sua vez, repassou
sua participação para o nome da empresa Gomes &
Gomes Ltda, tendo, na sequência, outros
integrantes da "Família Sanches" (Francisco
Roldão Sanches e Ivone Alcolea Sanches, ora
requerentes) se retirado da sociedade,
repassando suas participações para os réus.

Destacam que, mesmo ausentes,


constituíram uma sociedade de fato com os
requeridos, no sentido de resguardar os seus
direitos referentes ao rateio dos resultados do
empreendimento, tal qual o estabelecido no
Instrumento Particular do Contrato de Parceria
firmado no ano de 2011. Expõe que, desta forma,

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a divisão dos resultados líquidos das vendas do


empreendimento permaneceria a mesma, sendo 15%
(quinze por cento) pertencente ao autor
Francisco e 20% (vinte por cento) à autora
IVONE, dos 60% (sessenta por cento) que
competiam aos investidores, isto é, 21% (vinte e
um por cento) do total do resultado do
empreendimento. Dizem que, com a sua retirada, a
administração do empreendimento ficou
“agravada”, sobretudo no que tange à prestação
de contas, pois os réus nunca apresentaram as
planilhas de gastos com a implantação do
loteamento ou de receitas de venda, mas somente
com relatórios genéricos. Requerem, ao final, a
exibição de contas do empreendimento “Loteamento
Fazenda Jequitibá”, administrado pela Fazenda
Jequi SPE Ltda., com os comprovantes dos gastos
havidos com sua implantação, bem como as
receitas oriundas das vendas de lotes (fls.
01/08).

Citados (fls. 87/88), os réus


apresentaram contestação (fls. 89/97), na qual,
preliminarmente, impugnaram o valor da causa,
entendendo o montante de R$ 4.021.830,83 (quatro
milhões, vinte e um mil, oitocentos e trinta
reais e oitenta e três centavos) como correto, e
sustentaram a necessidade de extinção da ação,
dada a existência de cláusula compromissória no
contrato de parceria celebrado (Cláusula 13), na
qual ficou estabelecido que qualquer

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controvérsia seria dirimida pela Câmara Arbitral


de Sorocaba e Região (TAS). Alegaram, também, a
ausência de pressuposto processual, uma vez que
a questão debatida nos autos já teria sido
objeto de outro processo (de nº
0000543-16.2018.8.26.0602). No tocante ao
mérito, sustentaram a inexistência do dever de
prestarem contas, porquanto os autores não
produziram prova documental no sentido de terem
os réus, de alguma forma, gerido ou administrado
o empreendimento, que está registrado em nome da
Ibi Aran Empreendimentos Imobiliários Ltda, sem
qualquer referência à Fazenda Jequi SPE Ltda.
Alegaram que os autores se retiraram da
sociedade com a devida comunicação à Junta
Comercial do Estado de São Paulo, a qual foi
efetuada em 20 de dezembro de 2013, tendo
permanecido Paulo Henrique Roldão Sanches como
sócio administrador até 6 de abril de 2016,
ocasião em que, após a entrega do empreendimento
e a emissão do Termo de Verificação e
Recebimento das Obras pela Prefeitura Municipal
de Sorocaba, ocorreu a retirada do referido
sócio e admissão de Gomes & Gomes Ltda,
representada por Antonio Aparecido Gomes, razão
pela qual não haveria como, perante os réus,
exigir a prestação de contas relativas ao
período em que os autores participaram das
atividades do empreendimento, mesmo porque
exerciam a administração por intermédio do sócio
Paulo. Argumentaram, por último, que os autores
não apresentaram qualquer comprovante de
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transferência bancária ou mesmo outra


demonstração de gastos e investimentos
vinculados com o empreendimento, restando
ausente a prova de fato constitutivo de seu
direito. Pedem a improcedência da ação.

Houve réplica (fls. 149/164) e,


instadas as partes a especificarem as provas
desejadas (fls. 165), os autores pugnaram pela
produção de prova oral (fls. 167), enquanto os
réus postularam o julgamento antecipado da lide
(fls. 168/169).

Foi proferida decisão determinativa da


apresentação de alegações finais (fls. 176), não
tendo sido conhecido recurso interposto pelos
autores e por via do qual foi almejada sua
reforma e o deferimento da produção de prova
oral (AI 2248819-86.2019.8.26.0000) (fls.
333/337).

As partes apresentaram alegações finais


(fls. 178/183 e 228/329), sobrevindo decisão
determinativa da correção do valor da causa para
o valor de R$ 4.021.830,83 (quatro milhões,
vinte e um mil, oitocentos e trinta reais e
oitenta e três centavos) (fls. 343), sendo,
então, dado provimento a novo agravo de
instrumento (de nº 2295797-87.202.8.26.0000, j.
04/03/2021, desta relatoria), mantida a
atribuição efetuada na petição inicial (fls.
418/426). E, a sentença atacada julgou
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improcedente a ação, postulando os autores,


irresignados, sua reforma.

Apreciado o pleito recursal, cabe


transcrever, de início, por oportuno, trecho
extraído da fundamentação adotada na sentença
recorrida, que ensejou o reconhecimento da
improcedência da ação, “in verbis”:

“No caso em apreço, os autores eram


sócios dos requeridos na empresa
denominada Fazenda Jequi S.P.E. Ltda. e
teriam se retirado oficialmente da
sociedade em 20/12/2013, conforme se
verifica na ficha cadastral apresentada
às fls. 141/143. No referido documento,
nota-se que tanto a autora IVONE ALCOLEA
SANCHES, como LUIZ FRANCISCO ROLDÃO
SANCHES, figuravam como sócios e
administradores da referida empresa.
Desta forma, a administração da sociedade
era exercida pelos autores em conjunto
com os réus.

Por outro lado, no 'Instrumento


Particular de Constituição de Sociedade
de Fato', encartado pelos próprios
autores (fls. 52/54), estes expressamente
declaram que, 'embora ausentes do quadro
societário, o Sr. Luis Francisco Roldão
Sanches e a Sra. Ivone Alcolea Sanches,
em comum acordo com os sócios Guido
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Cuciol Neto e Antonio Aparecido Gomes,


mantêm suas participações societárias,
nas mesmas proporções que possuíam no
contrato social, quais seja, 15% (quinze
por cento) e 20% (vinte por cento)
respectivamente, criando por força deste
instrumento uma sociedade de fato'.

A aduzida empresa, uma Sociedade de


Propósito Específico (S.P.E), teria sido
criada com o escopo de facilitar a gestão
e implementação do empreendimento
denominado Loteamento Fazenda Jequitibá
e, com a saída dos autores da sociedade,
haveria problemas quanto à prestação de
contas com os gastos e receitas de
vendas.

Por outro lado, os autores alegam


que suas obrigações na sociedade se
restringiam ao rateio de despesas de
implantação do empreendimento, para
posterior divisão dos lucros, ou seja,
'preocupavam-se basicamente em aportar
dinheiro, conforme lhes era requerido...'
(fls. 04).

Pois bem.

De início, parece pouco crível que,


em um loteamento de grandes proporções,
como o que se apresenta nos autos, os
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autores tenham apresentado, tão somente,


poucos depósitos, efetuados na conta
bancária de terceira empresa, denominada
Gomes e Gomes Ltda. (fls. 161/163), cujos
valores são ínfimos perante a obra
pretendida, basta verificar que a cessão
de 15% das cotas sociais pertencentes a
Paulo Henrique Roldão Sanches, se deu
pelo montante de R$ 2.852.400,00 (dois
milhões, oitocentos e cinquenta e dois
mil e quatrocentos reais).

Outrossim, em breve consulta à


matrícula do imóvel em que se promoveria
o loteamento Fazenda Jequitibá, é certo
que consta somente a empresa IBI ARAN
EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA., como
proprietária da área responsável pelo
loteamento denominado 'ECORESIDENCIAL
FAZENDA JEQUITIBÁ' (fls. 111/140). Desta
forma, não há como sequer asseverar que a
empresa criada pelos litigantes estaria
administrando o empreendimento e, via de
consequência, que caberia aos réus o
dever de prestar as contas devidas pela
formação de estrutura e venda dos lotes.

Nessa toada, não há sequer um único


documento que firmasse o início das
obras, sob a responsabilidade dos réus,
um portifólio apresentado, que indicasse
o início da venda de lotes, pela
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sociedade constituída, ou mesmo um recibo


de pagamento específico, visando
comprovar o dispêndio de qualquer valor
em face do empreendimento, pelos autores.

Cumpre observar, o procedimento


especial da prestação de contas exige que
o interessado instrua a petição inicial
com os documentos que comprovem a
existência do vínculo legal ou negocial
gerado pela administração de bens ou
interesses alheios (CPC, art. 550, § 1º),
o que não ocorreu nos autos.

Não há razão, assim, a determinar a


intervenção judicial.

Não há como firmar que os corréus


dispõem das informações e dos documentos
necessários à prestação de contas. Ou
seja, não há como deles exigi-las.

In concreto, se, mormente houve


descumprimento contratual ou prejuízo
decorrente da sociedade, e for apurada má
gestão, desvio de recursos, deslisura em
relação às ações administrativas, caberá
aos autores, via ação autônoma, buscar o
ressarcimento dos prejuízos sofridos.”

Na espécie, extrai-se da prova


documental acostada aos autos (fls. 11/44 e

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141/143), bem como das alegações das partes, que


os autores, em 29 de agosto de 2011,
constituíram em conjunto com os réus, a
sociedade denominada Fazenda Jequi S.P.E Ltda,
tendo a promoção de “loteamento de imóveis
próprios” como objeto social, ocasião em que
todos os sócios assumiram a administração
conjunta, conforme mencionado na ficha cadastral
expedida pela Junta Comercial do Estado de São
Paulo (JUCESP).

A referida sociedade tinha o propósito,


conforme mencionado pelas partes, de facilitar a
gestão e a implementação do empreendimento
imobiliário denominado atualmente por
“Loteamento Fazenda Jequitibá”.

Ao depois, no mês de dezembro de 2013,


os autores se retiraram da sociedade (fls.
141/143) e, em conjunto com os réus, em 12 de
dezembro do mesmo ano, firmaram um “Instrumento
Particular de Constituição de Sociedade de Fato”
(fls. 52/54), contendo as seguintes disposições:

“2) Em decorrência de motivos


particulares, o Sr. Luis Francisco Roldão
Sanches, a Sra. Ivone Alcoléa Sanches
retiraram-se da sociedade, juntamente com
o sócio Paulo Henrique Roldão Sanches,
passando a sociedade a ter como únicos
sócios, os Srs. Guido Cuciol Neto e
Antonio Aparecido Gomes.
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3) Embora ausente do quadro


societário, o Sr. Luis Francisco Roldão
Sanches e a Sra. Ivone Alcolea Sanches,
em comum acordo com os sócios Guido
Cuciol Neto e Antonio Aparecido Gomes,
mantem suas participações societárias,
nas mesmas proporções que possuíam no
contrato social, quais sejam 15% (quinze
por cento) e 20% (vinte por cento)
respectivamente, criando por força deste
instrumento uma sociedade de fato. (sic)”

Os réus, em sede de contestação, afora


as questões preliminares arguidas, alegaram a
inexistência do dever de prestar as contas
exigidas, porquanto os autores “não juntaram aos
autos sequer uma prova documental de que os
requeridos, de alguma forma, geriram ou
administraram o empreendimento” . Aduziram,
ainda, que foi constituída sociedade de fato,
pois “não quiseram se expor aos riscos do
negócio que se apresentava, e por estarem
passando por dificuldades, utilizaram o
expediente para se ocultar de seus credores e de
demandas”. Sustentaram que a certidão do
registro imobiliário exibida por eles mesmos
demonstra que o “loteamento foi registrado em
nome da empresa Aran Empreendimentos
Imobiliários Ltda, sem qualquer referência à
indigitada Fazenda Jequi SPE Ltda” . Argumentaram
que, apesar de terem os autores se retirado da

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sociedade em 20 de dezembro de 2013, o sócio


Paulo Henrique Roldão Sanches permaneceu, ainda,
como sócio administrador e, somente em 6 de
abril de 2016, retirou-se da sociedade, tendo
tal circunstância ocorrido “justamente para que
a família Sanches pudesse acompanhar as
atividades de facilitação ao empreendimento,
notadamente de captação de recursos financeiros
e realização de despesas para viabilizar à
empreendedora a realização do empreendimento” .

A improcedência decretada, então,


derivou do acolhimento da tese apresentada pelos
demandados, a partir do reconhecimento de que os
autores não se desvencilharam do ônus processual
de “comprovar a existência do vínculo legal ou
negocial gerado pela administração de bens ou
interesses alheios (CPC, art. 550, § 1º)” .

Foi aplicada a regra geral atinente ao


ônus da prova, tal qual inscrita no artigo 373,
inciso I do diploma processual vigente, conforme
o exposto no seguinte trecho da sentença
recorrida:

“Nessa toada, não há sequer um único


documento que firmasse o início das
obras, sob a responsabilidade dos réus,
um portifólio apresentado, que indicasse
o início da venda de lotes, pela
sociedade constituída, ou mesmo um recibo
de pagamento específico, visando
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comprovar o dispêndio de qualquer valor


em face do empreendimento, pelos
autores.”

A prova da mencionada do “ existência


vínculo legal ou negocial gerado pela
administração de bens ou interesses alheios” ,
todavia, que foi apontada na sentença como
exigível em razão do artigo 550, §1º, do CPC de
2015, observada a demonstração de liame
existente entre as partes, inclusive com a
manutenção de vínculo societário pretérito e a
assunção de obrigações em “Instrumento
Particular de Constituição de Sociedade de Fato”
(fls. 52/54), não se fazia indispensável à
propositura da demanda.

O texto do artigo 550, §1º do CPC de


2015, em sua parcela final, utiliza a expressão
“se existirem”, indicativa de não ser
estritamente imprescindível a disponibilização
de documentos junto da petição inicial para que
seja deferido o pedido veiculado numa ação de
exigir as contas, tendo sido adotada uma
interpretação equivocada em primeira instância,
o que redundou, também, num decreto de
improcedência precipitado e equivocado.

Na realidade, o ônus reconhecido na


origem não é atribuído ao autor da ação de
exigir contas, pois “ basta que ele identifique a
obrigação de onde se origina o dever de prestar
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contas e as razões detalhadas pelas quais as


contas são exigidas, instruindo sua demanda com
a prova dessa necessidade, se existir (art. 550,
§1º, do CPC), para que se tenha como suficiente
a indicação da causa de pedir ” (Luiz Guilherme
Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel
Mitidiero, Curso de Processo Civil, 6ª ed, RT,
São Paulo, Vol. 3º [Tutela dos Direitos Mediante
Procedimentos Diferenciados], 2021, pp. 158-9).

A manutenção de um liame entre as


partes, tal como o acima referenciado, foi
demonstrada, tendo sido proposta a presente ação
de exigir contas, em 24 de abril de 2018,
formulado pedido tendente a que “ os requeridos
prestem as devidas contas (artigo 551, NCPC),
referente ao empreendimento denominado
Loteamento Fazenda Jequitibá, administrado pela
empresa Fazenda Jequi S.P.E. Ltda, com os
comprovantes dos gastos havidos com a
implantação do empreendimento, bem como as
receitas de vendas dos lotes, ou apresente
contestação no prazo legal de 15 (quinze) dias ”
(fls. 07).

A narração constante da petição


inicial, portanto, definiu a causa de pedir com
precisão e, instadas as partes a especificarem
as provas que pretendiam produzir, os autores
requereram a produção da prova oral, que foi
indeferida, concedendo-se prazo para as partes
apresentarem alegações finais.
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A decisão foi, conforme já mencionado,


objeto do Agravo de Instrumento
2248819-86.2019.8.26.0000 (fls. 333/337), mas
que não foi conhecido por falta de enquadramento
em qualquer dos incisos ou no parágrafo único do
artigo 1.015 do diploma processual, sendo
consignado, então, em decisão monocrática, que o
indeferimento da prova oral requerida não
possibilitava o reexame, ainda que adotada a
“taxatividade mitigada” preconizada pela
jurisprudência do E. Superior Tribunal de
Justiça, inviabilizada a utilização do
entendimento firmado nos Recursos Especiais
1696396-MT e 1704520-MT, julgados sob os ritos
dos repetitivos.

O indeferimento da prova oral,


portanto, remete à necessidade de arguição na
forma do artigo 1.009, parágrafo único do
próprio diploma processual, o que foi
concretizado mediante a interposição deste
apelo.

E, além disso, até mesmo os argumentos


apresentados em contestação indicam que o
esclarecimento das questões controvertidas
depende da realização de atos instrutórios,
considerando que a negativa da prestação das
contas foi justificada pela permanência, no
quadro de sócios da Fazenda Jequi S.P.E. Ltda,
de um familiar dos autores após sua retirada,
cabendo seja reproduzido o seguinte trecho
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daquela peça processual:

“Assim, considerando a empresa


Fazenda Jequi S.P.E LTDA, e a
administração compartilhada até o ano de
2016, não se faz pertinente a pretensão
dos autores quanto a exigência de contas
em face de Antônio Aparecido Gomes e
Guido Cussiol Neto, uma vez que a pessoa
de Paulo Henrique Roldão Sanches se
encontrava como sócio administrador até a
data de 06/04/2016, contrariando a tese
então alegada pelos autores de que a
'Família Sanches' desconhecia os
numerários do empreendimento.

E que nem se considere qualquer


alegação no sentido contrário, pois em
que pese o instrumento de cessão entre
Paulo Henrique Roldão Sanches e Antonio
Aparecido Gomes estar datado em
13/06/2013 (fls.45-50), em consonância
com a teoria da aparência são
considerados válidos os atos praticados
em nome da sociedade por aquele que
aparenta ter poderes para tanto, e
efetivamente os tinha até a alteração
perante a JUCESP.

Nesse sentido, considerando que a


retirada do sócio administrador Paulo
Henrique Roldão Sanches somente foi
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levada a registro na Jucesp em


06/04/2016, razão não assiste a pretensão
da exigência de contas, eis que a
'Família Sanches', representada pelo
sócio administrador Paulo Henrique Roldão
Sanches, possuía o acesso às contas até a
data de sua saída” (fls. 96).

Ora, ainda que tenha permanecido um


familiar dos autores na sociedade como sócio
administrador, isso não afasta o direito a uma
prestação de contas, tendo em vista que o
vínculo subsistente com os autores por força de
instrumento firmado após a retirada era pessoal,
emergindo das justificativas apresentadas pelos
próprios réus mais um elemento apto a
contraindicar o julgamento antecipado da lide,
descaracterizando o enquadramento junto ao
artigo 355, inciso I do diploma processual, não
se mostrando adequado o sentenciamento imediato
do feito.

Identifica-se, nitidamente, a
possibilidade de produção de prova oral para
obter elementos atinentes à comprovação dos
fatos constitutivos do direito alegado, havendo,
por conseguinte, de ser acolhida a questão
preliminar suscitada, reconhecida a nulidade da
sentença como decorrência do cerceamento da
produção de provas, tendo sido vulnerado o
princípio da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV
da Constituição da República), o que implica na
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necessidade de anular a sentença proferida.

Não havia, nas circunstâncias


examinadas, motivo adequado para que a prova
oral não fosse produzida, pois ela condiz com as
alegações das partes. Persiste, a partir de
colisão das afirmações pelas partes, efetiva uma
incerteza acerca da conformação dos fatos
submetidos à cognição judicial, a qual precisar
ser dirimida adequadamente, com a realização de
atos instrutórios, o que precisa ser remediado,
mediante a designação de audiência.

Dá-se, por isso, nos termos acima,


provimento ao apelo, anulada a sentença.

Fortes Barbosa

Relator

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