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Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas

(casos práticos resolvidos)

1. A associação recreativa A mantém em funcionamento um campo de tiro aos


pratos num ponto situado a cerca de 75 metros de uma zona habitacional.

Tal actividade está licenciada pela Câmara Municipal respectiva.

Apesar disso, B, morador vizinho, intentou acção judicial contra A, fundado no


artigo 70º do Código Civil, provando que a referida actividade:

- se desenvolve especialmente nas noites de sexta-feira para sábado, para além


das 24 horas;

- que o ruído causado lhe impede o sono e lhe causa um “estado de nervos”
permanente;

- que os estilhaços dos pratos voam chocam contra

. a sua habitação;

. o seu automóvel, estacionado no parqueamento situado entre a dita


habitação e o campo de tiro em causa;

. diversos transeuntes, incluindo o próprio B.

a) Individualize e caracterize os direitos que B está a invocar para fundar a acção


que intentou.

Tópicos de resolução:

B está a invocar, pelo menos, direitos subjectivos de duas naturezas distintas:


- direitos de personalidade e, designadamente, os direitos à saúde, ao descanso
e ao sono;

- direitos de propriedade sobre a sua habitação e o seu automóvel.

Todos são direitos subjectivos de carácter absoluto, isto é, existem e valem


independentemente de relação jurídica ou, o que é o mesmo, valem por si, sem
necessidade de qualquer situação jurídica simétrica que os sustentem.

Os primeiros, contudo, são direitos de natureza pessoal (talvez até


pessoalíssima), na medida em que não só são desprovidos de valor de troca, como são
também, regra geral, inalienáveis e irrenunciáveis.

Os segundos são o protótipo dos direitos subjectivos patrimoniais e, quase por


definição, são direitos disponíveis.

b) O fundamento legal da acção seria suficiente para todos os direitos que


identificou na alínea anterior?

Tópicos de resolução:

Supondo que B fundamentou a acção interposta apenas na disposição contida


no artigo 70º do Cód.Civil, isso seria base mínima suficiente para os pedidos relativos
à protecção dos direitos de personalidade assinalados. Não serviria, porém, para
fundar os pedidos relativos à protecção dos direitos de propriedade envolvidos dado
que o disposto no referido artigo 70º não os abrange. Para estes, a disposição que
basicamente B deveria invocar seria a que está contida no artigo 1346º do Cód.Civil.

Evidentemente, se B estiver também a pedir a reparação de danos


eventualmente já sofridos, deveria fundamentar o pedido correspondente no disposto no
artigo 483º/n.º 1 do Cód.Civil, tanto no que concerne aos direitos de personalidade,
como no que respeita aos direitos de propriedade.

c) Suponha que, muito antes de ter surgido o litígio entre B e A, ambos tinham
acordado que, a troco da doação de um automóvel, aquele aceitava que o campo de tiro
pudesse funcionar a qualquer hora do dia ou da noite. E, isto ficou reduzido a escrito.
Mas, agora, como intentou a acção acima identificada, B pretende desfazer o dito
acordo.

i. Poderá? Com que consequências?

Tópicos de resolução:

A primeira questão que se coloca consiste em saber se seria sequer admissível


que B pudesse contratar aquilo que contratou. Como se disse atrás, se os direitos de
personalidade são direitos indisponíveis, isso quer dizer, entre outras coisas, que são
irrenunciáveis e intransmissíveis.

Todavia, nos termos do artigo 81º do Cód.Civil, admite-se que o titular de


direitos de personalidade possa, licitamente, autorizar terceiros à prática de actos dos
quais resulte ou possa resultar ofensa a algum dos referidos direitos. Do ponto de vista
do titular atingido diz-se então que este sofre uma limitação voluntária, isto é,
consentida, a algum direito de personalidade. Consentimento que legitima a actuação
daqueles terceiros.

Ao contrário do consentimento a que se reporta o artigo 340º do Cód.Civil, na


hipótese do artigo 81º do Cód.Civil não está em causa apenas reputar tolerada a
ingerência de terceiro sobre certo direito do lesado, mas trata-se, diversamente, de
atribuir a terceiro o direito deste actuar ainda que daí possa resultar ofensa a direitos
de personalidade daquele que consentiu. Por isso se diz que na situação prevista pelo
artigo 81º do Cód.Civil o consentimento é autorizante.

A chave para decidir, porém, se tal consentimento autoriza efectivamente, ou


seja, se o próprio consentimento é lícito, está em saber se foi ou não emitido em
contrariedade aos princípios de ordem pública (interna).

A remissão para a ordem pública é sempre problemática por causa da sua


indeterminação. Mas crê-se que, neste âmbito, a ideia-chave há-de ser
aproximadamente a seguinte: o consentimento será lícito sempre que não se afigure
inadmissível do ponto de vista da moral social dominante (v.g. é admissível que se
celebre um contrato para a prestação do serviço de lavagem de janelas num arranha-
céus com cem andares mas já é inaceitável que alguém celebre um contrato pelo qual
se obrigue a sujeitar-se a actos de tortura, ainda que leve).

Aplicando à hipótese, isto permite concluir que nada obstaculizará a validade


do acordo celebrado entre A e B. Pelo que, por conseguinte, o consentimento conferido
por B para A manter em funcionamento o campo de tiro concede a este o direito de o
fazer.

Sucede que, no entanto, como estão em causa direitos de importância


transcendental, concede-se àquele que autorizou a ingerência de terceiro nos seus bens
de personalidade o poder de resolver unilateralmente o contrato que fundamenta o
referido direito de terceiro.

Assim, na hipótese, B poderia, a todo o tempo e arbitrariamente, resolver o


acordo celebrado com A, não podendo, por isso, o funcionamento do campo de tiro
permanecer com base no contrato anteriormente celebrado entre ambos.

Resta uma questão: como se diz no artigo 81º do Cód.Civil, o exercício do poder
de resolução unilateral conferido ao titular do direito de personalidade que se auto-
limitou acarreta a obrigação de compensar o terceiro que beneficiava do direito de
ingerência pela frustração das expectativas deste. Embora cientificamente esta
obrigação de compensação não tenha (ainda) obtido uma suficiente determinação,
afigura-se que não pode estar em causa uma pura obrigação de indemnização (nos
termos gerais do artigos 562º e segs., Cód.Civil), até porque isso poderia facilmente
inviabilizar, na prática, a vantagem que se pretendeu atribuir ao titular do direito de
personalidade. Justificar-se-á, no máximo, que o titular do direito de personalidade
responda pelos danos directamente emergentes da resolução do consentimento que
anteriormente havia proferido.

ii. Suponha que B era inabilitado? Poderia sequer ter celebrado o acordo
em questão?

Tópicos de resolução:

A inabilitação provoca uma incapacidade de exercício.


Por comparação tanto com a menoridade como com a interdição, a inabilitação
é, no entanto, uma incapacidade de exercício com um âmbito menor.

Por um lado, regra geral, porque o inabilitado pode actuar pessoalmente, ou


seja, é ele quem juridicamente actua por norma. Sucede é que, nessa actuação, deve ser
assistido por um curador, cuja função consiste em autorizar/não autorizar os actos do
inabilitado (artigo 153º/n.º 1, Cód.Civil). Por isso se diz que o inabilitado apenas não
pode actuar livremente. Só a título excepcional a inabilitação acarretará impedimento
para a actuação pessoal do inabilitado – mas é necessário, para tal, que a decisão
judicial que decrete a inabilitação atribua ao curador poderes de representação do
inabilitado (artigo 154º, Cód.Civil).

Por outro lado, porque a assistência do curador apenas se deverá reportar aos
actos de natureza patrimonial praticados pelo inabilitado. É o que se pode inferir a
partir do disposto nos artigos 152º/in fine e 153º/n.º 1 do Cód.Civil.

É verdade que atendendo ao disposto no artigo 153º/n.º 1/in fine do Cód.Civil,


poder-se-á pensar, ainda que a título excepcional, na extensão da inabilitação a
actuações de natureza pessoal. Mas, em geral, não poderá afectar actuações fundadas
no exercício de direitos de personalidade. Tratando-se de direitos pessoalíssimos não
faz sequer sentido que o seu exercício/não exercício possa ficar dependente do
consentimento de terceiro (assistente legal) quando justamente se parte do pressuposto
da aptidão do inabilitado para a actuação pessoal. Por outras palavras, em geral, o
inabilitado não é inabilitado para o exercício de direitos pessoais, maxime, direitos de
personalidade.

Como, no caso concreto, a celebração do contrato em causa implica para B


uma autolimitação (de certos) dos seus direitos de personalidade, B poderia celebrá-lo
pessoal e livremente porque, como se frisou, quanto a esses direitos não sofre de
incapacidade de exercício.

2. Em 5/Maio/2011, A comprou a B os pêssegos produzidos pelo seu pomar, por


€ 2.000.
Uma vez que os pêssegos da faixa Este do pomar não se encontravam ainda
maduros, convencionaram que A apenas colheria os pêssegos dessa faixa dois meses
após a celebração do contrato, altura em que estaria concluída a respectiva maturação,
procedendo à colheita dos restantes, já devidamente maduros na data da compra, logo
no dia seguinte à conclusão do contrato.

No dia 6/Maio/2011, A procedeu à colheita dos frutos maduros (cerca de


metade), altura em que pagou a totalidade do preço.

a) Qual o objecto do contrato em apreço? Justifique.

Tópicos de resolução:

Em qualquer caso, a compra e venda incide sobre coisa objectivamente futura,


uma vez que, tanto os frutos maduros, como os que estão prontos a ser colhidos, ainda
não foram separados das respectivas árvores. Até lá continuam a ser partes integrantes
do prédio ao qual as árvores que os produzem estão ligadas. E são, por isso, coisas
imóveis [artigo 204º, n.º 1, alínea c)]. Assim, somente com a separação das árvores a
que estavam presos, tais frutos passariam a ser coisas presentes.

b) Enquanto não procede à colheita, qual a situação jurídica de A? Justifique.

Tópicos de resolução:

Em qualquer negócio sobre coisa futura, o adquirente é titular de uma


expectativa jurídica. Por outras palavras:

i) está à espera da aquisição de um direito – no caso, a propriedade sobre os


frutos – que há-de eventualmente concretizar-se no futuro – na hipótese, quando os
frutos poderem ser separados das árvores a que pertencem e o forem, de facto: por isto,
é expectativa;

ii) tal esperança é jurídica na medida em que recebe tutela do Direito, por si
própria, independentemente da sua materialização (ou seja, quer os frutos sejam
colhidos, quer não); esta tutela extrai-se dos artigos 272º e 273º, na medida em que
qualquer negócio sobre coisa futura fica sujeito implicitamente sujeito a condição
suspensiva.
3. a. Descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Grande sob o
n.o 00425/220988 da freguesia do Pico da Pedra, concelho da Ribeira Grande, encontra-
se registada a aquisição, a favor de A, de um prédio rústico situado ao Pico de Água,
Cerrados da Eira, com 174,40 ares de terra.

b. No prédio referido em a., a EDP instalou duas linhas de transporte de energia


eléctrica com 60 kV cada, concretamente a linha "CT do Caldeirão - SE da Lagoa" e a
linha "SE de Milhafres - SE da Lagoa".

c. Tais linhas assentam numa torre, passando por cima daquele prédio numa
extensão superior a 100 metros e numa largura de 20 metros.

d. A DRE concedeu licença de exploração daquelas linhas.

e. É tecnicamente inviável para a EDP remover do prédio mencionado em a. a


torre referida em c. e as linhas aéreas que suporta, quer alterando o seu trajecto, quer
inserindo-as subterraneamente.

f. O território da Região Autónoma dos Açores caracteriza-se por elevada


sismicidade, sendo frequentes precipitações intensas e ventos fortes; em caso de sismo,
existe o risco de as linhas referidas em b. caírem sobre a casa construída por A.

g. As instalações referidas em b. e c. impedem que os filhos de A brinquem no


prédio referido em a. com papagaios ou quaisquer outros brinquedos que possam tocar
nas linhas.

h. Desde a instalação das estruturas referidas em b. e c., funcionários da EDP ou


outras pessoas ao seu serviço por mais de vinte vezes entraram no prédio referido em a.

i. Em caso de chuva ou ventos fortes, ou de muita carga nas linhas e por força de
efeitos de indução causados por esses factores, aquelas emitem um ruído semelhante ao
de um curto-circuito.
a) Suponha que A intenta acção contra EDP pedindo o desvio das linhas de alta
tensão em causa. Que fundamentos poderia invocar para o efeito?

Tópicos de resolução:

“A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de


ofensa à sua personalidade física ou moral”.

“… A pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências


adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da
ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida” (artigo 70º).

Os direitos aqui em causa e cuja violação, ou perigo de violação, estaria em


consideração seriam fundamentalmente os de personalidade do proprietário
do prédio e os da sua família. Designadamente:

- à vida (artigo 24º, Constituição);

- à integridade física (artigo 25º, Constituição);

- à saúde (artigo 64º, Constituição);

- eventualmente, à privacidade (artigo 26º, Constituição).

Fora deste âmbito, o direito de propriedade sobre o referido imóvel estaria


igualmente condicionado mas, em princípio, licitamente (em virtude de ter
sido dada autorização pela DRE para instalação dos cabos de alta tensão).
Por isso, a menos que se verificassem algumas das hipóteses dos artigos
1346º ou 1347º, o respectivo titular não se poderia opor esta via.

b) Tendo em conta o que se diz no ponto 5., que solução lhe pareceria mais
ajustada?

Tópicos de resolução:

Trata-se de um caso de colisão de direitos (artigo 335º): entre direitos de


personalidade, de um lado, e o direito à livre iniciativa económica, do outro
(artigo 61º, Constituição).
São direitos de espécie ou qualidade diferente. Ora, tem-se entendido que os
direitos de personalidade, por serem os mais importantes de todos,
prevalecem sempre, em caso de conflito no exercício, perante os demais.
Portanto, quaisquer que fossem os argumentos invocados pela EDP, os
cabos de alta tensão não poderiam permanecer no local.

4. a. C é uma pessoa colectiva de utilidade pública composta por indivíduos,


nacionais ou estrangeiros, e pessoas colectivas sem fins lucrativos.

b. Na revista Propriedade Urbana (n.º 394), órgão oficioso da ré, foi publicada
convocatória da assembleia geral para se reunir no dia 4 de Julho, pelas 16 horas na sua
sede social sita em Lisboa. 

c. Sendo a seguinte a ordem de trabalhos:

“I - Apreciar, aprovar ou modificar o Relatório, Balanço e Contas e Parecer do


Conselho Fiscal relativos ao exercício findo de 31 de Dezembro de 2001;

II - Eleição para os órgãos sociais para o período de Julho de 2002 a 30 de Junho


de 2005;

III – Outros assuntos”.

d. Da acta da assembleia geral em questão, consta que, dos 309 sócios


inscritos, votaram 231, havendo 78 abstenções ou ausências devido ao adiantado da
hora, e que a lista A obteve 7 votos a favor e a lista B 224 votos.

e. Nos votos a favor da lista A incluíam-se 50 por procuração.

f. Para efectuar a eleição, a mesa da assembleia ordenou aos presentes que quem
votasse a favor de cada uma das listas ficasse sentado e quem votasse contra se
levantasse.

a) Os associados referidos no ponto e. poderiam ter votado por procuração?

Tópicos de resolução:
A qualidade de associado é pessoal, mas nem todos os direitos com ela
conexionados são estritamente pessoais.

Nestes termos:

- a qualidade de associado é intransmissível; o que significa, sobretudo, que


cessa pela sua morte (ou extinção, se o associado for outra pessoa
colectiva);

- os direitos pessoais ligados a tal qualidade não podem ser exercidos


através de representante.

Num caso e noutro, porém, admite-se que os estatutos disponham


diversamente. Portanto, no caso concreto, tudo dependeria daquilo que os
estatutos estabelecessem.

b) A convocatória poderia ter sido feita nos termos descritos no ponto b.?

Tópicos de resolução:

A assembleia geral pode ser convocada por um de dois meios: ou por aviso
postal, nos termos do n.º 1; ou por publicação do respectivo aviso através do
sítio www.mj.gov.pt/publicacoes. Como isso não sucedeu no caso concreto, a
convocação foi irregularmente efectuada. O vício apenas ficaria sanado se
todos os associados comparecessem e nenhum deles se deduzisse oposição à
realização da assembleia (o que não parece ter sucedido).

c) De acordo com o que se diz no ponto d., os quóruns constitutivo e deliberativo


estariam verificados?

Tópicos de resolução:

O quorum constitutivo das assembleias gerais deve ser formado, no mínimo,


em primeira convocatória, por metade do conjunto de associados. Para uma
segunda convocatória (a realizar, por exemplo, horas, dias ou semanas
depois), a lei já não estabelece quorum mínimo obrigatório. Cabe entender,
por conseguinte, que, em tal circunstancialismo, qualquer número é
admissível desde que esteja presente uma pluralidade de associados. A
menos, como é natural, que os estatutos prevejam diferentemente.

O quorum exigido para a generalidade das deliberações é o correspondente


à maioria absoluta dos associados presentes. Contudo, quer a promoção de
alterações estatutárias, quer as deliberações relativas à dissolução ou
prorrogação da associação, dependem de aprovação por maiorias
qualificadas: três quartos dos associados presentes, na primeira hipótese;
três quartos de todos os associados, nas restantes duas. Como não é o caso
da hipótese, funcionaria a regra geral do n.º 2 do artigo 175º.

d) A votação mencionada no ponto f. poder-se-ia ter processado nos termos


relatados?

Tópicos de resolução:

Os estatutos são soberanos em matéria de organização e funcionamento das


associação.. O que significa, por exemplo, que é possível a designação por
processo não eleitoral (v.g., nomeação por terceiro ou por algum associado
em particular), por cooptação ou por escolha (eleitoral ou não) promovida
por outro órgão, etc. Tudo dependerá, até, do número de órgãos que exista e
das respectivas competências. Admite-se, por conseguinte, se assim estiver
previsto nos estatutos da associação C, que a votação se processasse nos
termos relatados.

5. A vendeu a B, por € 50.000, um camião no qual, antes da entrega ao


comprador, ainda deveria ser instalada a carroçaria e a báscula.

Se, antes de tal entrega ser efectuada, o camião ficasse destruído por um
incêndio, B deveria, não obstante isso, pagar o respectivo preço?

Tópicos de resolução:
Segundo o critério corrente, a coisa futura pode sê-lo objectivamente (por
ainda não existir de todo ou por ainda não existir enquanto coisa) ou
subjectivamente (quando, pertencendo a terceiro, as partes a consideram,
para certo efeito – negocial, portanto – susceptível de vir a pertencer a uma
delas – cf., por exemplo, o disposto no artigo 893º). O camião, no caso
concreto, cabe na primeira espécie de coisa futura, uma vez que somente se
tornaria coisa presente no instante em que nele fosse instalada a carroçaria
e a báscula: até isso suceder, não era coisa por ainda estar incompleto.
Os direitos sobre coisas futuras somente se transmitem quando (e se) ela se
tornar presente (artigo 408º, n.º 2). Portanto, o camião ainda pertencia a A
no instante em que foi destruído pelo incêndio. Logo, res perit domino: ou
seja, a coisa perece contra o seu dono (o A) e não contra quem (ainda) o
não é. B não se encontrava, por isso, obrigado a pagar o preço.

6. O médico pessoal de A diagnosticou-lhe uma doença rara, altamente


contagiosa. O tratamento revelou-se infrutífero, vindo aquele a falecer passados dois
meses. Sendo A pessoa com alguma notoriedade, o facto acabou por ser do
conhecimento do jornal “O Sensacional”. Um primo afastado de A, tendo conhecimento
de que o jornal se preparava para publicar a notícia correspondente, pretende actuar
judicialmente de modo a impedir a divulgação.

a) A referida notícia poderia ser publicada sem necessidade de consentimento?

Tópicos de resolução:

Os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal e


constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo
81º). Essa protecção estende-se para além da morte do titular. Embora a
personalidade jurídica das pessoas cesse com a morte, algumas das suas
vertentes, como é o caso da honra e consideração, destacam-se e são
protegidas para além do decesso. A máxima segundo a qual “mors omnia
iura solvit” não pode deixar de ser reconhecida. Isso não impede, todavia,
que a protecção da personalidade de pessoa falecida possa permanecer após
a sua morte.
A controvérsia reside na forma como se explica e constrói esta tutela “post
mortem”. Uma coisa é certa: contradiz o ponto de partida (resultante do n.º
1 do artigo 68º) sustentar a continuação da personalidade depois da morte,
ainda que tal afirmação opere apenas para efeitos ligados à titularidade de
direitos de personalidade. O mesmo se diga, mutatis mutandis, relativamente
àquela tese que sustenta a translação destes direitos, por via mortis causa,
para as pessoas identificadas pelo n.º 2 da presente disposição. Verificar-se-
ia, de novo, uma dissonância, agora entre o carácter pessoalíssimo destes
direitos e a sua alegada transmissibilidade, o que não só contrariaria as
regras gerais, como, especificamente nestas circunstâncias, defrontaria as
disposições contidas nos artigos 2024º e 2025º, n.º 1. Assim, como se vai
tornando doutrina dominante, outro remédio não resta a não ser aquele que
passa por asseverar que os direitos de personalidade do “de cuius” se
extinguem com a sua morte, nascendo embora, nesse instante, um direito das
pessoas enumeradas pelo n.º 2 deste artigo à “preservação da memória” da
pessoa falecida entre os vivos (também criminalmente tutelado através do
disposto no artigo 185º do Código Penal).

b) O primo de A teria legitimidade para se opor e/ou para dar o consentimento


eventualmente necessário?

Tópicos de resolução:

Aspecto difícil é o que se relaciona com a determinação dos titulares deste


direito “à memória” e, consequentemente, com a concretização dos
legitimados, quer para o possível pedido de indemnização civil, quer para
promoção do procedimento a que se referem os artigos 1474º e 1475º do
Código de Processo Civil, quer para, por fim e eventualmente, darem o
consentimento capaz de excluir a ilicitude da agressão perpetrada. Tais
legitimados serão certamente as pessoas descritas pelo n.º 2. Mas em
conjunção, em solidariedade ou sucessivamente, na falta ou impedimento
das anteriores?
A primeira hipótese deve ser liminarmente excluída pelas óbvias
dificuldades de ordem prática que a solução contrária determinaria. Trata-
se, de facto, de um conjunto demasiadamente numeroso de pessoas para que
a obtenção da unanimidade fosse geralmente exequível.
Na jurisprudência é relativamente vulgar considerar-se que a referida
legitimidade tem natureza solidária (cf., por exemplo, o acórdão da Relação
de Coimbra de 03/05/2005, Proc. n.º 4145/05: “1. O legislador ao usar no
n.º 2 do art. 71º do Código Civil a expressão “providências previstas no n.º
2 do artigo anterior” pretende significar todas as acções de tutela previstas
nesse n.º 2 do art. 70º, incluindo a acção indemnizatória, e não apenas as
acções exercitáveis mediante o processo especial previsto nos arts. 1474º e
1475º do Código de Processo Civil. 2. Tais meios de tutela da personalidade
de pessoa já falecida são exercitáveis, em solidariedade activa, por qualquer
das pessoas indicadas no n.º 2 do art. 71º do Código Civil”). Este
entendimento levanta, todavia, dificuldades de outra natureza. Parece
evidente que na enumeração legal se partiu do nível de maior proximidade
com o defunto – o cônjuge sobrevivo – para o mais distante – herdeiros que
se situem para além do 3º grau da linha colateral. Ora, suponha-se que o
dito cônjuge não pretende reagir; não obstante isso, poderá actuar, por
exemplo, o primo-direito ou o sobrinho-neto (no fundo, contra a vontade
daquele)? A afirmativa afigura-se carente de sentido.
Não resta assim outra hipótese a não ser que passa por sustentar que a
legitimidade em causa é concedida recorrendo a uma ordenação sucessiva:
na falta ou impedimento da pessoa anteriormente designada, devolve-se à
subsequente o direito de actuar para protecção da “memória” da pessoa
falecida. Aliás, a adopção do entendimento descrito em segundo lugar, pode
determinar o surgimento de uma desarmonia interna em função do que se
preceitua nos artigos 76º, n.º 2, e 79º, nº 2: de facto, se, no âmbito destas
disposições, a permissão para que se produza a intromissão de terceiro deve
ser dada pelas “pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem
nele indicada”, é conjecturável a hipótese em que a pessoa com legitimidade
para dar o consentimento em causa entenda que a memória do de cuius não
foi ofendida, mas aquele a quem tal poder não caiba se reconheça
idoneidade, não obstante, para requerer as providências identificadas no
artigo 70º! E não se vislumbra razão que leve a atribuir carácter
excepcional ao disposto nos referidos artigos 76º, n.º 2, e 79º, nº 2; ao invés,
cabe aplicá-los, por analogia, sempre que se torne indispensável a obtenção
de consentimento para a intromissão (lícita) em bens da personalidade
integrados na memória de pessoa falecida.
Em conclusão, o primo poderia ser chamado, pelo menos a título de
herdeiro a dar o referido consentimento, caso não houvesse mais ninguém
com legitimidade para o efeito.

c) Suponha que A tinha deixado um documento escrito por si assinado


declarando que se viesse a padecer de tal doença pretendia não ser tratado. Os médicos
que o assistissem deveriam dar execução à sua vontade?

Tópicos de resolução:

Poderia existir um testamento vital feito por A.


Mas para isso seria necessário que:
1 – a respectiva forma tivesse sido observada (documento assinado perante
notário ou modelo próprio do RENTEV igualmente assinado – artigo 3º, n.ºs
1 e 2, Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho)
2 – que se tratasse de uma das hipóteses em que a lei (excepcionalmente) o
admite (artigo 2º, n.º 2, Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho).
Se assim tivesse sucedido, e tendo em vista o respeito pela vontade do
declarante, da celebração do testamento vital resultam sobretudo proibições
de agir impostas à “equipa responsável pela prestação de cuidados de
saúde” (artigo 6º, n.º 1, Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho). Trata-se
precisamente de uma hipótese em que, através de acto jurídico particular, se
podem instituir adstrições contra quem nele não participou.
Inexistindo testamento vital, os médicos que assistissem A poderiam levar
em conta as suas instruções, mas não se encontravam obrigados a dar-lhe
execução.

7. A instalou uma casa pré-fabricada (conjunto de módulos fincados ao solo,


forrados, cobertos e concluídos com instalação eléctrica, de água e de saneamento) num
terreno que lhe pertencia.
a) A pretende agora locá-la a favor de B. Para o efeito deveria celebrar contrato
de arrendamento ou de aluguer (artigo 1023º CC)?

Tópicos de resolução:

O arrendamento incide sobre imóveis e o aluguer sobre móveis. Uma casa –


ainda que pré-fabricada – uma vez instalada no chão, imobiliza-se e,
portanto, torna-se imóvel. Dá origem a um prédio urbano, nos termos do
artigo 204º, n.º 3. Assim sendo, o contrato a celebrar seria o de
arrendamento urbano.

b) A locação da casa abrangeria o respectivo mobiliário?

Tópicos de resolução:
O mobiliário de uma casa, tomado como um todo, é uma universalidade de
facto (artigo 206º). Quando considerado em relação à habitação que serve
ou ornamenta, é uma coisa acessória (artigo 210º).
As coisas acessórias apenas acompanham juridicamente a coisa principal
quando assim seja convencionado (artigo 210º, n.º 2). Logo, no caso, tudo
dependeria do que fosse acordado. Mas, em princípio, o mobiliário da casa
não seria abrangido pelo respectivo arrendamento.

c) B instalou um painel solar para aquecimento de águas sanitárias. Entretanto, o


contrato de locação caducou. Deverá A indemnizá-lo pela despesa que B fez para o
colocar?

Tópicos de resolução:

A noção de benfeitoria (artigo 216º) apela imediatamente à ideia de


melhoramento. E, por arrastamento, à ideia de acessoriedade – o
melhoramento incorpora-se na coisa melhorada por ser um acessório desta.
Só haverá, então, união de coisas submetida ao regime das benfeitorias,
quando e enquanto se puder distinguir, de entre elas, a principal e a
acessória (sendo esta a benfeitoria).
A distinção entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias opera por
exclusão de partes. Quer isto dizer que somente se apreciará o eventual
aumento de valor que a realização da benfeitoria acarrete se ela não for
indispensável à conservação da coisa. E apenas quando a benfeitoria não
tenha em vista nem a conservação da coisa, nem determine o respectivo
aumento de valor, se poderá inferir a sua natureza voluptuária.
Por outro lado, o regime que se estabelece para as benfeitorias, o qual, no
essencial, resulta do disposto nos artigos 1273º e 1275º, pressupõe que o
benfeitorizante seja pessoa diferente do dono da coisa objecto da
benfeitoria. É que o referido regime regula, sobretudo, o exercício do ius
tollendi por parte do benfeitorizante e, simetricamente, o seu direito a
eventual indemnização ou compensação fundado nas benfeitorias realizadas.
Em princípio, o referido painel solar é benfeitoria útil. Assim sendo, B goza,
antes do mais, do ius tollendi; não podendo exercê-lo, tem direito a ser
compensado nos termos do enriquecimento sem causa (cf., em especial, o
artigo 479º). Constitui entendimento comum, no entanto, aquele segundo o
qual o possuidor pode, em todo o caso, exercer o ius tollendi desde que
remedeie o prejuízo provocado pelo levantamento da benfeitoria.

Os direitos conferidos ao B independem da sua boa ou da má fé.

8. Por morte do avô, A, com 16 anos de idade, feitos em 01/01/2009, recebeu


algumas jóias de certo valor a que acresceram outros bens móveis por ele adquiridos
com trabalhos ocasionais de electricista.

Em certa altura, B, alegando que em virtude dos trabalhos feitos por A sofreu
graves prejuízos no sistema eléctrico de sua casa, exigiu deste a correspondente
indemnização, ameaçando-o com a penhora daqueles bens.

Com medo da situação, A emigrou clandestinamente para o Canadá, em


01/06/2009, sem nunca mais dar notícias.

Em Julho de 2011, o pai de A requereu a instalação da curadoria definitiva, o que


foi indeferido.
Este ano, A regressou e verificou, surpreendido, que o pai vendera as referidas
jóias.

a) Para pagamento da indemnização, poderia B penhorar tanto as jóias como os


restantes bens?

Tópicos de resolução:

Ao admitir-se que o menor não emancipado possa, em certos casos, actuar


validamente (artigo 127º, n.º 1, CC), torna-se de imediato indispensável
determinar quais os bens que respondem pelas obrigações assumidas no
exercício da profissão ou a ela relativos. Excepcionando o princípio geral
decorrente do disposto na primeira parte do artigo 601º CC, instituiu-se no
artigo 127º, n.º 2, CC, uma regra especial segundo a qual, por tais obrigações
“só respondem os bens de que o menor tiver a livre disposição” [ou seja,
fundamentalmente, aqueles que se integrarem na previsão da alínea a) do n.º 1
do artigo 127º].

b) A poderia recuperar as tais jóias vendidas?

Tópicos de resolução:

Se a venda das jóias foi feita depois de A ter completado os 18 anos, ela seria
nula por ilegitimidade do pai e por ser, por isso, venda de bens alheios (artigo
892º CC); caso contrário, o pai ainda seria representante do A e a respectiva
validade dependeria de ter sido obtida a competente autorização judicial
[1889º, n.º 1, alínea a), e 1893º, n.º 1, CC].

c) O tribunal procedeu devidamente ao não decretar a curadoria definitiva?

Tópicos de resolução:

Entre Janeiro/09 e Janeiro/11, embora A se encontrasse desaparecido


(ausente), tinha representante legal (o pai). Só a partir desta última data é que
deixou de o ter; consequentemente, em 2013 apenas decorreram dois anos e
alguns meses sem representante; portanto, inexiste fundamento para instalar a
curadoria definitiva (artigo 99º CC).
8. A e B são casados.

B está grávida de oito meses.

A, ao conduzir o automóvel da empresa de que é administrador, sofreu um


embate lateral de um veículo conduzido por C. Deste facto resultou a morte de A.

B demandou C e a respectiva companhia seguradora, nos termos do artigo 496º


do Código Civil, pedindo uma indemnização por danos morais no montante de €
500.000,00.

A acção foi instaurada, já depois do nascimento do filho, em nome próprio e em


nome deste (correspondendo, assim, a pretensão de € 250.000,00 a cada um).

a) O Tribunal deveria conceder a referida indemnização tanto a B como ao filho?

Tópicos de resolução:

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 66º CC a “personalidade adquire-


se no momento do nascimento completo e com vida”. De acordo com a doutrina
dominante, o filho de B e de A ainda não seria pessoa no instante em que este
último faleceu. Como é no momento em que o facto danoso sucede que se
identificam os lesados, o referido filho não podia ter direito à indemnização
porque, nesse instante, não era pessoa.

Ao invés, tendo em conta o fenómeno que se convencionou designar como


revolução ecográfica, é hoje perfeitamente viável, do ponto de vista técnico,
demonstrar a existência de vida intra-uterina e, portanto, é possível provar a
existência de uma figura humana in utero, assim como se pode nela demonstrar
a produção de sensações, de dor, de sofrimento, etc. Assim sendo, a disposição
segundo a qual o “nascimento completo e com vida” marca o início da
personalidade contradiz os dados científicos, mas também a rectidão que deve
subjazer à realização do Direito. Nesta perspectiva, o nascituro é pessoa –
desde o momento da concepção – e poderia, por isso, ser titular daquele direito
à indemnização.

b) A e B haviam em tempos concedido à revista “Snob” o direito de publicação


exclusiva da última ecografia do seu filho. Com a morte do marido, B pretende evitar
que tal suceda. Haverá maneira de o conseguir?

Tópicos de resolução:

Entendendo-se que a personalidade começa com a concepção, estaria aqui em


causa o direito à imagem do nascituro. Os pais, como representantes (artigo
124º CC), poderiam consentir na sua utilização por terceiro ao abrigo do
disposto no artigo 81º CC. Como daqui resulta expressamente, a autorização
(que está implícita) conferida à revista “Snob” para publicar a dita ecografia
“é sempre revogável, ainda que com obrigação de indemnizar os prejuízos
causados às legítimas expectativas da outra parte”.

Mesmo adoptando-se o entendimento segundo qual a personalidade jurídica se


adquire com o nascimento “completo e com vida”, o exercício do poder
paternal pelos pais implica, em relação ao filho menor (ou, em geral, incapaz –
artigo 144º), o cumprimento do dever de representação uma vez que ele se
constitui no momento da concepção (artigo 1878ºº, n.º 1).

9. A e B são filhos de C. Este vendeu à sociedade “Frames, Ldª.”, cujos únicos


sócios são A e a sua mulher D (casados em comunhão geral), o prédio urbano sito na
Travessa dos Anjos, n.º 2, Lisboa, por € 300.000.

B intentou acção contra A, D e C, pedindo a anulação do contrato com


fundamento na falta do seu consentimento para o efeito nos termos do artigo 877º.

a) Teria B alicerces para a sua pretensão?

Tópicos de resolução:
A sociedade “Frames, Ldª.” é, para todos os efeitos, uma pessoa juridicamente
distinta dos seus sócios; logo, uma venda que lhe seja feita, considera-se
realizada a seu favor e não em benefício de A e de D. Por isso, nesta medida, B
não seria chamado a dar o seu consentimento pois não está em causa uma
venda de pai a filho.

Pode suceder, todavia, que a referida sociedade esteja a ser exclusivamente


utilizada para defraudar os interesses de B (designadamente, no que respeita à
sua legítima). Assim, provando-se que C pretendia verdadeiramente beneficiar o
filho A, em detrimento de B, com a atribuição daquele prédio, poder-se-ia
conjecturar uma hipótese de desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade. Seria necessário que B demonstrasse, no entanto, através de alguns
indícios (v.g.: o valor de mercado do prédio foi muito inferior ao preço
efectivamente pago?; quem pagou esse preço – A ou a sociedade?; quem utiliza
o imóvel – A ou a sociedade?; etc.), ser essa a intenção das partes; o que não
resulta claramente da hipótese apresentada.

Fazendo-se prova dos aludidos indícios, a desconsideração da personalidade da


sociedade acarretaria entender que, para o efeito pretendido por B, tudo se
deveria passar como se ela inexistisse, e, portanto, a situação deveria ser
encarada como se a venda tivesse sido directamente feita por C a A e a D. Aí, a
falta de consentimento de B determinaria a respectiva anulabilidade nos termos
do artigo 877º CC.

b) Como caracteriza o direito de (B) pedir a referida anulação?

Tópicos de resolução:

O direito de anular é sempre de natureza potestativa, dado que o respectivo


titular pode produzir um efeito jurídico – a extinção dos efeitos do acto jurídico
anulável – apenas através da declaração da sua vontade nesse sentido, cabendo
a outra pessoa suportá-lo. Como se trata de efeito de carácter exclusivamente
jurídico, os intervenientes no acto jurídico em causa sujeitam-se assim à
anulação.
Claro que, no caso concreto, este direito de anulação somente existiria desde
que existissem fundamentos para se proceder à desconsideração da
personalidade colectiva da sociedade “Frames, Ldª.”.

10. A faleceu vítima de neoplasia da mama.

A respectiva seguradora questionou em juízo, após a morte, a validade do


contrato de seguro com ela celebrado dois meses antes do falecimento em virtude de
entender que a informação relativa ao seu estado de saúde lhe havia sido
intencionalmente sonegada.

Para o efeito requereu a notificação do Instituto Português de Oncologia para


juntar os registos clínicos de A.

B, cônjuge sobrevivo, opôs-se a que tal informação fosse fornecida invocando o


direito à intimidade privada de A.

a) Quid Juris?

Tópicos de resolução:

- a morte extingue a personalidade (artigo 68º, n.º 1)

- os direitos de personalidade (como direitos pessoais) cessam com a morte do


seu titular

- permanece, contudo, a “memória” da pessoa falecida (artigo 71º)

- esta abrange os dados pessoais mais íntimos e, portanto, necessariamente os


dados de saúde

- em princípio, a sua divulgação não pode fazer-se, por isso, sem consentimento
de alguma das pessoas enumeradas pelo artigo 71º
b) Suponha que B tinha 17 anos. Poderia, por si, dar o devido consentimento, se
ele fosse necessário, e poderia intervir em juízo?

Tópicos de resolução:

- a menoridade limita a capacidade de exercício (artigo 123º)

- o menor com 16 anos ou mais pode casar, embora dependa, até aos 18, de
consentimento para o efeito ou do seu suprimento (artigo 1604º)

- mesmo que este não tivesse sido concedido, o menor emancipa-se de qualquer
maneira embora com as restrições do artigo 1649º

- estas não atingem a concessão de consentimento para efeitos do artigo 71º

- logo, B poderia dá-lo pessoal e livremente

11. A, proprietário do terreno x, concedeu a B, sociedade agrícola, direito de


superfície (artigo 1524º, Cód.Civil) para esta aí instalar durante vinte anos um posto de
abastecimento de combustível, mediante o pagamento da quantia anual de € 55.000,00.

Diga se:

a) O negócio estaria sujeito a celebração por escritura pública ou por


documento autenticado?

Tópicos de resolução:

- o direito de superfície incide necessariamente sobre imóveis (artigo 1524º)

- os direito inerentes a imóveis [artigo 204º, n.º 1, d)], de que o direito de


superfície é exemplo, equiparam-se a coisas imóveis

- logo, à constituição do direito de superfície por negócio jurídico estende-se o


disposto no artigo 875º
b) A sociedade B poderia ter celebrado o negócio constitutivo do direito de
superfície para o fim pretendido?

Tópicos de resolução:

- a capacidade de gozo das pessoas colectivas é, para uns, específica porque


restrita (aos seus fins) e, para outros, é genérica

- para quem entenda que ela é genérica, a sociedade B poderia ter celebrado o
negócio constitutivo do direito de superfície para usar o terreno para instalar
um posto de abastecimento de combustível, não obstante a sua exploração se
encontrar fora dos seus fins

- para quem, ao contrário, entenda que ela é específica, a sociedade B estaria


fora do âmbito da sua capacidade de gozo, pelo que, nos termos do artigo 294º,
o referido negócio seria nulo

12. A deu de arrendamento a B uma quinta composta por casa, jardim e terreno
agrícola.

Ficou convencionado que quando A eventualmente vendesse a quinta o


arrendamento caducava de imediato.

No terreno agrícola, B plantou 450 novas videiras e instalou um armazém pré-


fabricado para guardar a maquinaria agrícola.

a) Se A chegasse a vender a referida quinta, B teria direito a ser compensado


pelo valor das videiras e do armazém?

Tópicos de resolução:

- a plantação das videiras e instalação do armazém configuram-se como


benfeitorias (artigo 216º)

- não sendo indispensáveis à conservação da quinta, aumentavam-lhe o valor;


seriam, por isso, benfeitorias úteis
- nos termos do n.º 2 do artigo 1273º, B teria direito a levantá-las se possível;
caso contrário, teria direito a ser compensado segundo as regras do
enriquecimento sem causa

b) Quem comprasse teria direito à entrega do referido armazém?

Tópicos de resolução:

- se o armazém não pudesse ser ou, de todo o modo, não fosse retirado, passaria
a integrar a quinta e, portanto, quem a comprasse adquiriria o conjunto
(armazém incluído)

- caso contrário, seria uma simples coisa acessória e como tal, nos termos do
artigo 210º, nº 2, somente integraria a compra se assim fosse acordado

13. Suponha que uma certa associação cultural adoptou a denominação


“Juventude Unida” (JU) com emblema próprio. Posteriormente, outra associação,
constituída na mesma freguesia com idênticos fins, adoptou a denominação “Jovens
Unidos” (JU).

a) Terá a primeira algum fundamento para se opor à utilização desta designação


pela segunda?

Tópicos de resolução:

- as pessoas colectivas não têm nome mas devem ter uma designação (cf v.g.
167º)

- os direitos de personalidade são característicos da personalidade singular

- todavia, de acordo como o n.º 2 do artigo 12º da Constituição, às pessoas


colectivas podem pertencer também os direitos fundamentais (vertente
constitucional dos direitos de personalidade) que forem compatíveis com a sua
natureza

- um desses direitos é o direito ao nome


- de acordo com o artigo 72º “toda a pessoa tem direito a usar o seu nome,
completo ou abreviado, e a opor-se a que outrem o use ilicitamente para sua
identificação ou outros fins”

- em princípio, o problema nem sequer se deveria colocar na medida em que o


Registo Nacional de Pessoas Colectivas deveria prevenir este conflito

- mas, não tendo actuado devidamente, restaria, averiguar se a “Jovens


Unidos” estaria a fazer um uso ilícito da sigla JU

b) Que qualificações poderão caber ao direito para o qual a primeira pretende


obter protecção?

Tópicos de resolução:

- o direito ao nome é um direito de personalidade


- portanto é:
absoluto, na medida em que não depende de outra posição jurídica que
simetricamente o sustente
pessoal, na medida em que não está dotado de um valor de troca
indisponível, na medida em que não pode ser transmitido nem
renunciado

14. A foi nomeado procurador por B, com poderes para vender lotes de terreno
para construção pertencentes ao segundo. A vendeu-os quase todos a uma sua filha, a
preços bastante inferiores aos correntes no mercado. A filha compradora tinha
conhecimento deste facto.

As diversas compras e vendas seriam vinculativas para B?

Tópicos de resolução:

- o caso é de abuso de representação (269º)


- ao contrário do que sucede na representação sem poderes, no abuso de o
procurador dispõe dos poderes representativos que põe em actuação. Sucede,
no entanto, que, ao exercê-los, ultrapassa aquela que é a vontade do
representado (manifestada v.g. por directrizes ou instruções) tal como ele a
conhece ou devia conhecer – apurado este circunstancialismo inexistem
também, no fundo, certos poderes representativos; só que isso não resulta
formalmente da procuração.

- a filha de A conhecia que os imóveis estavam a ser vendidos a preços


inferiores aos de mercado, mas não é garantido que também soubesse que o pai
estava a actuar contra as instruções recebidas – por isso, das duas, uma:

- ou a filha conhecia ou devia conhecer o abuso, caso em que se segue o regime


da representação sem poderes e, portanto, o negócio celebrado é, em princípio,
ineficaz, a menos que o representado o ratifique;

- ou acontece o inverso, hipótese em que o negócio celebrado pelo procurador


vincula o representado (incorrendo aquele, eventualmente, em responsabilidade
civil pelos possíveis danos causados).

15. A foi vítima de meningite quando tinha três anos de idade, ficando surdo-
mudo. Não teve acesso a uma escola da especialidade, sempre necessitou do auxílio de
uma terceira pessoa para sobreviver e satisfazer as mais elementares necessidades e só é
compreendido pelos familiares mais próximos.

a) Haveria fundamento suficiente para o interditar?

Tópicos de resolução:
- Sujeitam-se a interdição todos aqueles que sofram de anomalia psíquica,
surdez-mudez ou cegueira susceptíveis de afectar gravemente a respectiva
capacidade de discernimento. Por outras palavras, não basta que as
referidas deficiências físicas ou psíquicas atinjam certa pessoa; é sobretudo
necessário que das mesmas resulte uma elevada incapacidade para gerir a
sua própria pessoa e património
- de harmonia, aliás, com o que se extrai do disposto nos artigos 26º, n.º 1 e
n.º 4, e 18º da Constituição, a interdição deve decretar-se apenas em
hipóteses extraordinárias, nas quais a pessoa visada se encontre numa
situação de inaptidão natural de tal forma incapacitante que o seu agir
jurídico se revele prática e inteiramente impossível
- ora, se A era pelo menos compreendido pelos seus familiares, não era
seguro que o seu discernimento estivesse inteiramente afectado e, portanto,
não é seguro que pudesse ser interditado

b) Suponha que, antes de chegar aos 18 anos, os pais intentaram acção para
obter a interdição de A. Tendo ele atingido a maioridade sem que aquela
tivesse transitado em julgado, o irmão conseguiu convencê-lo a doar-lhe um
conjunto de jóias que havia recebido por sucessão do avô.
i) A doação será válida?
ii) Quem poderá eventualmente invalidá-la?

Tópicos de resolução:

- conforme resulta do disposto no n.º 2 do artigo 138º e do artigo 156º, a


interdição ou a inabilitação “podem ser requeridas e decretadas dentro do
ano anterior à maioridade, para produzirem os seus efeitos a partir do dia
em que o menor se torne maior”.
- pode suceder, porém, que instaurada uma das competentes acções antes de
o interditando ou inabilitando ter atingido a maioridade, ela não tenha
ainda sido decidida (e, portanto, a interdição ou a inabilitação não tenham
ainda sido decretadas) no instante em que aquela ocorre – para evitar então
eventuais intervalos entre capacidade e incapacidade, determina-se o
prolongamento da inabilidade por menoridade para além da maioridade até
que a referida acção transite em julgado.
- significa isto, neste circunstancialismo, que o maior, ao completar os
dezoito anos de idade, continua a ser considerado menor para todos os
efeitos. Permanece, portanto, incapaz de exercício – daí que os respectivos
representantes legais mantenham os correspondentes poderes até que a
acção de interdição ou de inabilitação seja definitivamente julgada
- ao contrário da hipótese prevista no artigo 149º (que, por conseguinte, tem
aplicação sempre que a acção de interdição ou de inabilitação seja
instaurada contra quem, nesse instante, seja capaz de exercício), os actos
praticados pelo maior submetido ao regime deste artigo 131º são
imediatamente anuláveis, a requerimento dos respectivos representantes
legais, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 125º
(independentemente, aliás, de a interdição ou a inabilitação acabarem por
ser definitivamente decretadas e também independentemente de o acto em
causa ter lesado o incapaz)
c) Suponha que o tribunal entendia inexistirem fundamentos para interditar
tendo, por isso, optado por decretar a inabilitação de A. As consequências
sobre a doação seriam as mesmas?
Tópicos de resolução:
- no mesmo circunstancialismo (o do 131º) importa apenas que a acção de
inabilitação ainda não haja transitado em julgado no instante em o
inabilitando praticou o acto sem a competente capacidade
- continua a aplicar-se, portanto, o 125º e os seus representantes legais
poderiam por isso anular a doação nos termos do seu n.º 1, alínea a)

16. A faleceu vítima de neoplasia da mama.

A respectiva seguradora questionou em juízo, após a morte, a validade do


contrato de seguro com ela celebrado dois meses antes do falecimento em virtude de
entender que a informação relativa ao seu estado de saúde lhe havia sido
intencionalmente sonegada.

Para o efeito requereu a notificação do Instituto Português de Oncologia para


juntar os registos clínicos de A.

B, cônjuge sobrevivo, opôs-se a que tal informação fosse fornecida invocando o


direito à intimidade privada de A.

b) Quid Juris?
Tópicos de correcção:

- a morte extingue a personalidade (artigo 68º, n.º 1)

- os direitos de personalidade (como direitos pessoais) cessam com a morte do


seu titular

- permanece, contudo, a “memória” da pessoa falecida (artigo 71º)

- esta abrange os dados pessoais mais íntimos e, portanto, necessariamente os


dados de saúde

- em princípio, a sua divulgação não pode fazer-se, por isso, sem consentimento
de alguma das pessoas enumeradas pelo artigo 71º

b) Suponha que B tinha 17 anos. Poderia, por si, dar o devido consentimento, se
ele fosse necessário, e poderia intervir em juízo?

Tópicos de correcção:

- a menoridade limita a capacidade de exercício (artigo 123º)

- o menor com 16 anos ou mais pode casar, embora dependa, até aos 18, de
consentimento para o efeito ou do seu suprimento (artigo 1604º)

- mesmo que este não tivesse sido concedido, o menor emancipa-se de qualquer
maneira embora com as restrições do artigo 1649º

- estas não atingem a concessão de consentimento para efeitos do artigo 71º

- logo, B poderia dá-lo pessoal e livremente

17. A, proprietário do terreno x, concedeu a B, sociedade agrícola, direito de


superfície (artigo 1524º, Cód.Civil) para esta aí instalar durante vinte anos um posto de
abastecimento de combustível, mediante o pagamento da quantia anual de € 55.000,00.
Diga se:
a) O negócio estaria sujeito a celebração por escritura pública ou por
documento autenticado?

Tópicos de correcção:

- o direito de superfície incide necessariamente sobre imóveis (artigo 1524º)


- os direito inerentes a imóveis [artigo 204º, n.º 1, d)], de que o direito de
superfície é exemplo, equiparam-se a coisas imóveis
- logo, à constituição do direito de superfície por negócio jurídico estende-se o
disposto no artigo 875º
b) A sociedade B poderia ter celebrado o negócio constitutivo do direito de
superfície para o fim pretendido?

Tópicos de correcção:

- a capacidade de gozo das pessoas colectivas é, para uns, específica porque


restrita (aos seus fins) e, para outros, é genérica
- para quem entenda que ela é genérica, a sociedade B poderia ter celebrado o
negócio constitutivo do direito de superfície para usar o terreno para instalar um posto
de abastecimento de combustível, não obstante a sua exploração se encontrar fora dos
seus fins
- para quem, ao contrário, entenda que ela é específica, a sociedade B estaria
fora do âmbito da sua capacidade de gozo, pelo que, nos termos do artigo 294º, o
referido negócio seria nulo

18. A deu de arrendamento a B uma quinta composta por casa, jardim e terreno
agrícola.
Ficou convencionado que quando A eventualmente vendesse a quinta o
arrendamento caducava de imediato.
No terreno agrícola, B plantou 450 novas videiras e instalou um armazém pré-
fabricado para guardar a maquinaria agrícola.

a) Se A chegasse a vender a referida quinta, B teria direito a ser compensado


pelo valor das videiras e do armazém?
Tópicos de correcção:

- a plantação das videiras e instalação do armazém configuram-se como


benfeitorias (artigo 216º)

- não sendo indispensáveis à conservação da quinta, aumentavam-lhe o valor;


seriam, por isso, benfeitorias úteis

- nos termos do n.º 2 do artigo 1273º, B teria direito a levantá-las se possível;


caso contrário, teria direito a ser compensado segundo as regras do enriquecimento
sem causa

b) Quem comprasse teria direito à entrega do referido armazém?

Tópicos de correcção:

- se o armazém não pudesse ser ou, de todo o modo, não fosse retirado, passaria
a integrar a quinta e, portanto, quem a comprasse adquiriria o conjunto
(armazém incluído)

- caso contrário, seria uma simples coisa acessória e como tal, nos termos do
artigo 210º, nº 2, somente integraria a compra se assim fosse acordado

19. A, B e C, irmãos de D, intentaram (em 14/06/2016) acção de inabilitação por


anomalia psíquica contra este último, alegando para o efeito, em síntese, que:
– D padece de psicose maníaco depressiva grave e doença bipolar:
– D se encontra reformado por força da sua doença mental, não exercendo
qualquer atividade empresarial ou de mera gestão corrente há mais de vinte anos,
encontrando-se desde há muitos anos sob medicação, com períodos de internamento, e
com a progressiva deterioração das capacidades intelectuais e cognitivas;
– D desde sempre vem praticando atos de benemerência, em períodos de crise
psíquica, doando: um terreno com 7.000 m² ao Clube de Rugby; a sua quota-parte da
sociedade “EE, Lda.”; dinheiro aos sobrinhos; apartamentos aos sobrinhos-netos; um
jipe a cada um dos seus funcionários (em número de 150 a 200 unidades), tendo para
tanto celebrado (em 02/03/2016) os respectivos contratos-promessa.
a) Haveria fundamento para interditar ou para inabilitar D?
Tópicos de correcção:
Sujeitam-se a interdição todos aqueles que sofram de anomalia psíquica,
surdez-mudez ou cegueira susceptíveis de afectar gravemente a respectiva
capacidade de discernimento. Por outras palavras, não basta que as
referidas deficiências físicas ou psíquicas atinjam certa pessoa; é sobretudo
necessário que das mesmas resulte uma elevada incapacidade para gerir a
sua própria pessoa e património. "A expressão «anomalia psíquica», usada
nos preceitos dos artigos 138, n.º 1, e 152, ambos do Código Civil, abrange
não só as deficiências de intelecto, de entendimento ou discernimento, como
as deficiências da vontade e da própria afectividade ou sensibilidade; e para
servirem de fundamento a interdição, devem ser duradouras ou habituais, e
não meramente acidentais ou transitórias. Quando estas anomalias
psíquicas, embora de carácter permanente, não sejam de tal ordem que
tornem o indivíduo delas portador inapto para a prática de todos os
negócios não será interdito mas inabilitado".
De harmonia com o que se extrai do disposto nos artigos 26º, n.º 1 e n.º 4, e
18º da Constituição, que a interdição se deve decretar apenas em hipóteses
extraordinárias, nas quais a pessoa visada se encontre numa situação de
inaptidão natural de tal forma incapacitante que o seu agir jurídico se
revele prática e inteiramente impossível.
No caso, dado que a inaptidão se revela sobretudo para as actuações sobre
o património, afigurava-se mais adequada a inabilitação. O caso parecia
ser de “habitual prodigalidade” (artigo 152º).
b) Independentemente de a inabilitação/interdição chegar a ser efectivamente
decretada, haveria fundamento para, de imediato, invalidar os contratos-
promessa de compra dos jipes? Quem teria legitimidade para o efeito?
Tópicos de correcção:
Dado que D não estava interditado nem inabilitado, a anulação dos
referidos contratos apenas poderia eventualmente operar com fundamento
em incapacidade acidental (artigo 257º).
A incapacidade acidental equivale à chamada incapacidade natural:
inaptidão para, no caso concreto, “entender ou querer” (artigo 488º).
Irreleva a causa, bem como a sua duração, permanência ou intermitência,
desde que o entendimento do declarante se encontre diminuído no instante
em que manifesta a sua vontade.
Não basta, todavia, a verificação da incapacidade natural para que o
negócio eventualmente celebrado se torne anulável. Exige-se ainda que ela
seja conhecida do declaratário ou, ao menos, dele cognoscível.
Se estes dois pressupostos estivessem preenchidos a anulação procederia.
Teria legitimidade para a pedir o próprio D nos termos gerais do artigo
287º.
c) A existir, como qualifica (enquanto situação jurídica) o correspondente
direito de invalidação?
Tópicos de correcção:
As situações jurídicas podem ser activas ou passivas. No primeiro caso, o
sujeito beneficia de um poder; no segundo, fica adstrito a uma vinculação.
As situações activas admitem, pelo menos, quatro modalidades: direito
subjectivo, direito potestativo; direito-dever; expectativa jurídica.
O direito é potestativo quando permita ao respectivo titular desencadear
efeitos meramente jurídicos sobre a esfera jurídica alheia. Nessa medida é
inviolável.
O direito de invalidação é sempre um direito potestativo: direito de produzir
efeitos jurídicos na esfera jurídica alheia sem necessidade de colaboração
do seu titular. Este, por isso, sujeita-se, no caso, à destruição dos contratos-
promessa.

20. A sociedade “A, Ld.ª” foi constituída para a execução de obras públicas e
particulares, de qualquer natureza.
A sociedade “B, Ld.ª” foi constituída para o exercício de actividades de
engenharia, materiais, equipamentos e obras. É proprietária de um conjunto fabril
constituído por seis pavilhões, estando dois por concluir, com a área de 30.000 m².
C, credor da “A, Ld.ª”, instaurou contra esta execução para pagamento de
quantia certa tendo em vista haver a importância de € 810.446,953, acrescida de juros
de mora, à taxa de 16,5%. Para o efeito, apresentou um documento através do qual D,
na qualidade de presidente do Conselho de Administração da “B, Ld.ª”, declarava que
em nome dela constituía, a favor de C, hipoteca voluntária sobre o mencionado prédio
para segurança e garantia do bom pagamento daquela quantia devida pela “A, Ld.ª”.
a) A sociedade “B, Ld.ª” poderia ter dado o referido prédio em hipoteca?
Tópicos de correcção:
O problema é de capacidade de gozo da pessoa colectiva.
Literalmente, no artigo 160º consagrou-se o chamado princípio da
especialidade do fim, produto das concepções mais tradicionais atinentes à
capacidade de gozo das pessoas colectivas. De acordo com ele, as pessoas
colectivas, podendo ser titulares apenas dos direitos e deveres mais
estreitamente relacionados com o seu fim, estão legitimadas exclusivamente
para actuações intra vires. Fora deste âmbito, a pessoa colectiva é incapaz
de gozo e, portanto, como sempre sucede em semelhantes circunstâncias, e
dado que as normas que definem a capacidade de gozo das pessoas têm
natureza injuntiva, daí resulta que praticando uma pessoa colectiva um acto
fora dos seus fins este será nulo por força do que se dispõe no artigo 294º.
O n.º 1 do artigo 160º, ainda assim, para além de lhes reconhecer os direitos
e deveres “necessários” à prossecução dos seus fins, alargou o campo da
capacidade de gozo das pessoas colectivas àqueles outros que se mostrem
simplesmente “convenientes” para o mesmo efeito, o que só por si permite
aplanar muitos dos problemas suscitados pela ultra vires theory. Na
verdade, levando esta à letra, ela implica que o sujeito sobre quem recai o
risco de actuação ultra vires seja aquele que se relacionar com a pessoa
colectiva e não ela própria. O que dá origem a um resultado carente de
sentido na medida em que não existe ninguém melhor do que a própria
pessoa colectiva para aquilatar se, em concreto, está a agir ultra vires ou
intra vires (até por esta conclusão pressupor, muitas vezes, a realização de
qualificações que somente a posteriori são executáveis). Esta conclusão
permite, porém, e ao mesmo tempo, sustentar, a contrario, que sempre que
ao terceiro seja exigível o conhecimento relativo à conformidade de tal
actuação, sobre ele devem recair as consequências do obrar ultra vires.
Foram justamente constatações desta ordem que levaram à inclusão no n.º 4
do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais de uma regra segundo a
qual “as cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à
sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não
limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade
no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos”.
O que se afigura perfeitamente transponível, ao menos, para todas as
pessoas colectivas de Direito Privado, e acarreta conceber a disposição
contida no n.º 1 do presente artigo em moldes distintos dos (mais) usuais.
De facto, exceptuando os direitos e deveres identificados pelo seu n.º 2, deve
entender-se que as pessoas colectivas têm capacidade de gozo para tudo o
resto. O que significa que ela é genérica.
Assim, para quem entenda deste modo, o acto de constituição da hipoteca
por parte da “B, Ld.ª” seria perfeitamente válido. Para quem adopte o
princípio da especialidade, a conclusão seria a exactamente inversa.
b) Actuando na qualidade de presidente do Conselho de Administração da “B,
Ld.ª”, D é seu representante legal, voluntário ou orgânico?
Tópicos de correcção:
Distingue-se a representação propriamente dita (seja a voluntária, seja a
legal) daquela outra que aqui se prevê.
Na primeira, pressupõe-se a existência de duas pessoas: o substituto – isto
é, o representante – e o substituído – ou seja, o representado. O primeiro
actua juridicamente em nome do segundo e, por isso, nessa medida, “o
negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos
limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera
jurídica deste último” (artigo 258º).
Na segunda – tradicionalmente designada como representação orgânica –
não se considera haver, juridicamente, duas pessoas, mas apenas uma: de
facto, o titular de algum órgão externo da pessoa colectiva, enquanto estiver
a actuar como tal, é a pessoa colectiva e não um mero substituto da mesma.
Como a pessoa colectiva não tem existência fáctica, os seus representantes
orgânicos, enquanto estiverem nessas vestes, são a própria pessoa colectiva
e não simples medianeiros (como sucede com o representante legal ou com
o procurador). É nesta qualidade que D interveio.
Do que antecede transcorre, por exemplo, que os actos praticados pelos
titulares dos órgãos representativos, nessa qualidade, são imputáveis à
própria pessoa colectiva a título de autora, independentemente da respectiva
licitude. Ao passo que os actos de representantes legais ou voluntários são
actos da sua autoria e não da dos correspondentes representados.
c) A hipoteca deveria constituir-se por escritura pública ou por documento
autenticado? Ou valeria qualquer outra espécie de documento?
Tópicos de correcção:
Há uma regra (não escrita) segundo a qual a celebração de negócios
jurídicos sobre imóveis supõe a realização de escritura pública ou
documento autenticado. Só assim não será quando a lei imponha qualquer
outra forma.
Ora, assim sendo, como o objecto da hipoteca era formado, neste caso
concreto, por um “conjunto fabril constituído por seis pavilhões… com a
área de 30.000 m²”, e não havendo regra especial, a sua válida constituição
suponha a celebração do correspondente contrato por escritura pública ou
por documento autenticado.

21. A fez a doação de um pequeno palácio à sociedade de advogados x. Antes de


proceder à entrega do mesmo, realizou nele diversos melhoramentos e disponibilizou-se
para, sempre que necessário, ajudar na conservação do edifício. A sociedade tem uma
direcção composta por três elementos, que são os mesmos desde há vinte anos e que são
também os únicos três sócios.

a) Por causa de desavenças antigas com o filho de A, um daqueles três sócios


disparou dois tiros de caçadeira sobre o primeiro, facto que lhe causou
inúmeros ferimentos e traumatismos. Poderá A revogar a doação com
fundamento no disposto nos artigos 974º, 2034º e 2166º?

Tópicos de correcção:

A revogação da doação com fundamento no disposto nos artigos 974º, 2034º e


2166º pressupõe a chamada ingratidão do donatário. No caso, o donatário é a
sociedade e não cada um dos respectivos sócios. Ora, não foi a sociedade que
atentou contra vida de A.
Se, todavia, se conseguisse demonstrar que entre estes e aquela há confusão de
modo a considerar que entre todos não há distinção, poderia eventualmente
provar-se a necessidade de a personalidade da sociedade dever ser
desconsiderada.

Se assim fosse, tudo se passaria como se a doação houvesse sido efectuada


directamente aos sócios e não há sociedade. Pelo que o regime contido nos
referidos artigos poderia ser estendido pelo menos àquele dos sócios que
houvesse cometido a tentativa de homicídio.

b) Suponha que, antes da doação, A já tinha vendido a B o mobiliário da casa de


banho, obra de um artista famoso, embora este ainda o não tivesse
transportado para sua casa. A quem pertenceria tal mobiliário (a B ou à
sociedade de advogados)?

Tópicos de correcção:

O mobiliário da casa de banho tanto pode ser considerado parte integrante do


edifício como sua coisa acessória. Depende de saber se ele se encontrava
incorporado nos termos do artigo 204, n.º 3, ou não.

Se não estivesse, não acompanharia a coisa principal (artigo 210º).

Se estivesse, seria necessário saber, antes do mais, se quando o palácio foi


doado o referido mobiliário já havia sido retirado da casa de banho (ainda que,
porventura, permanecesse guardado no edifício). Nesta hipótese, pertenceria ao
respectivo comprador e não à sociedade donatária. Na hipótese inversa,
acompanharia a doação, pelo que, portanto, pertenceria à donatária. Perante o
comprador, o vendedor responderia então pelo incumprimento contratual.

22. A, com 16 anos de idade, sem consentimento dos pais, casou com M.

Passados dois meses, A prometeu vender a C uma motorizada, que o seu


padrinho F lhe havia dado como presente de casamento.
A morreu, ainda com 17 anos, e C veio agora exigir a celebração do contrato de
compra e venda. B, pai de A, que tivera conhecimento daquele acto logo que ele fora
feito, opõe-se a tal.

Quid juris?

Tópicos de correcção:

- Com 16 anos, a poderia casar [1601º/a/a contrario], mas dependeria para o


efeito de “autorização dos pais ou do tutor” a não que ela fosse “suprida pelo
conservador do registo civil” [1604º/a]. Não se sabe se este suprimento
ocorreu.

- A falta de autorização, quando não suprida, conserva a incapacidade de A até


à maioridade em relação “à administração de bens (i) que leve para o casal ou
(ii) que posteriormente lhe advenham por título gratuito até à maioridade”
(1649º). Não se sabe quando é que a motorizada foi doada a A, mas, por uma
via ou por outra, a sua administração permaneceria sob o domínio da
representação dos respectivos pais.

- A não vendeu, apenas prometeu vender. Mas, por força do disposto no artigo
123º, como o menor sofre de uma incapacidade genérica de exercício, A não
teria aptidão nem para a venda, nem para a promessa de venda.

- O pai de a disporia do “prazo de um ano a contar do conhecimento” da


promessa de compra e venda para anular [125º/n.º1/a)]. Por isso, em princípio,
ele já teria decorrido quando C veio pretender a execução da promessa.

- Sucede, porém, que, quando o C exigiu o cumprimento, o pai de A já não


actuava na qualidade de representante legal, mas antes na qualidade de
herdeiro (legitimário) [125º/n.º1/c)]. Por isso, o prazo de caducidade que
funcionaria contra ele seria de “um ano a contar da morte” de A, desde que ela
tivesse ocorrido antes de passar um ano sobre a data em que obteria a
maioridade ou a emancipação. O que poderia ser o caso, embora não se saiba
com exactidão quando é que A faleceu.
23. Recentemente, o jornal “Esférico” publicou a seguinte notícia: “O Sport
Clube de Alfarelos deve sete milhões de euros à Administração Fiscal e não paga os
salários dos respectivos jogadores há mais de dez meses”. A notícia foi amplamente
divulgada nas redes sociais. Apesar de diversas iniciativas para contrariar a informação
divulgada, o clube perdeu patrocínios e viu recusado um financiamento para a
reabilitação do seu estádio.

a) Poderá o Sport Clube da Parede reagir de algum modo? Por quê?

Tópicos de correcção:

“As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
compatíveis com a sua natureza” (artigo 12.º/n.º 2, Constituição). Significa isto,
entre outras coisas, que os direitos de personalidade, embora primacialmente
concebidos para o ser humano, são extensíveis às pessoas colectivas na medida
da analogia.

É perfeitamente pensável, por isso, como resulta do artigo 484.º CC, que uma
associação desportiva tenha o direito ao bom nome e reputação. E que, logo,
possa reagir contra a sua eventual violação.

É ilícito “afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom


nome de qualquer pessoa” (484º).

É particularmente evidente a solução sempre que em causa estejam factos ou


qualidades inexistentes ou inverídicas – falsas, em geral. Nem carece de
justificação.

Já tratando-se de factos ou qualidades verdadeiras, a ilicitude da sua afirmação


ou difusão não é segura. A divulgação da verdade não pode considerar-se ilícita
só porque se ofende a pessoa visada; mas, ao invés, só por estar em causa a
verdade, não pode extrair-se daí automaticamente a justificação para qualquer
ofensa.
No caso concreto, não se sabe se a informação divulgada pelo “Esférico” era
verdadeira. Em qualquer caso, para que tal divulgação se encontrasse
legitimada, haveria de dar-se no respeito por três condições elementares
extraíveis da fórmula contida no n.º 2 do artigo 80.º do Cód.Civil:

(i) Primeira: que a violação do “bom nome e da reputação” alheia se fundasse


em alguma causa justificativa (tipicamente, a relevância pública);

(ii) Segunda: executando o princípio da proporcionalidade, que o meio ou o


instrumento utilizado para o efeito não envolvesse uma ofensa excessiva a tais
direitos (justifica-se v.g. que uma obrigação fiscal incumprida por um membro
do Governo seja anunciada nos meios de comunicação social, mas já não que
idêntico género de dívida seja levada ao conhecimento público pelos mesmos
meios se em causa estiver um qualquer particular, ainda que se trate de pessoa
com alguma notoriedade pública);

(iii) Terceira: que não houvesse, da parte de quem faz a afirmação ou difusão, a
intenção de difamar, ultrajar, vexar ou humilhar (actual malice) a pessoa visada
– isto é, portanto, que inexistisse dolo.

O não preenchimento (cumulativo) destas exigências gera a ilicitude da conduta


pela qual se afirmem ou difundam factos, ainda que verídicos, passíveis de
prejudicar o bom nome ou a reputação da pessoa visada. A regra geral tira-se,
pois, no sentido da sua antijuridicidade.

No caso, a segunda condição não estaria verificada. Pelo que, portanto, a


divulgação da referida notícia pelo “Esférico” seria ilícita e determinaria
responsabilidade civil por danos causados, nos termos gerais dos artigos 70º,
483º, n.º 1 e 496º.

b) Suponha que o jornal “Esférico” tinha previamente questionado o clube


sobre a veracidade daquelas alegações e que este, não só as tinha
confirmado, como tinha consentido na divulgação. Os seus directores,
contudo, acabaram por recuar e comunicaram isso mesmo ao jornal. Este,
ainda assim, fez a publicação. Quid juris?
Tópicos de correcção:

De harmonia com a máxima “volenti non fit iniuria”, admite-se que o titular de
algum direito de personalidade possa dar consentimento a que uma conduta
alheia susceptível de o lesar, efectivamente sobrevenha, legitimando assim,
através da auto-limitação permitida, o comportamento de quem produzir uma
intromissão na sua esfera jurídica (81º).

Na hipótese do artigo 81º, o consentimento para a auto-limitação resulta de um


contrato celebrado entre quem a autoriza e quem a causa. Como qualquer
contrato, sujeita-se à regra pacta sunt servanda. De onde decorre que a parte
que beneficia do consentimento tem o direito de exigir que a outra suporte os
efeitos jurídicos e factuais associados à sua execução.

Atendendo, contudo, ao facto de estar em causa matéria dotada de importância


transcendente, como é aquela que respeita à tutela da personalidade humana,
abriu-se uma importante excepção à regra contida no n.º 1 do artigo 406º: o
consentimento em causa é sempre (não admitindo, pois, cláusula em sentido
inverso) livremente revogável. Significando isto, portanto, que o titular do
direito de personalidade auto-limitado pode, a todo o tempo e arbitrariamente,
pôr termo ao consentimento antes concedido.

O comportamento do “Esférico” não se encontra, portanto, legitimado por


consentimento do Sport Clube de Alfarelos.

24. A, proprietário do apartamento x deu-o de arrendamento a B.

Passados meses, a canalização da cozinha e das casas de banho sofreu um


colapso geral que inviabilizou a sua utilização. A recusou repará-la. Por isso, B fez os
necessários consertos por sua conta. Com fundamento na realização de obras não
autorizadas, A moveu acção de despejo.

Com fundamento na realização de obras não autorizadas, A moveu acção de


despejo contra B.
Poderá B obstar à sua procedência? Com que fundamento?

Tópicos de correcção:

Pode suceder que o exercício de um direito subjectivo, não obstante estar


formalmente legitimado, lese outrem intoleravelmente: o uso de um direito
degenera em abuso punível, quando é manifesto o ânimo de querer lesar os
outros.

Nuclearmente está-lhe subjacente a seguinte ideia: o exercício de um direito


subjectivo não se pode desenvolver num determinado sentido sempre que tal
colida com determinados vectores fundamentais da ordem jurídica. Excepto se a
própria lei, explicita ou implicitamente, autorizar o exercício em causa numa
dada direcção, que, não fora tal permissão, infringiria os referidos vectores.

Nos termos amplíssimos em que está formulado, há abuso de direito (334º)


sempre que se superem manifestamente:

- as regras derivadas da boa fé (objectiva) ou

- os limites decorrentes dos bons costumes ou,

- por fim, as restrições derivadas da finalidade económica ou social que


presidiu à atribuição ou reconhecimento do direito subjectivo em causa.

Acentua-se, por óbvias razões de certeza na realização da qualificação, que


somente a ultrapassagem grave ou muito desproporcionada dos referidos limites
autorizará o decretamento da proibição de exercício do direito no sentido
pretendido. Como ainda assim, porém, se erguem sérias dificuldades na
aplicação, a doutrina tem despendido um esforço considerável na identificação
e concretização de tipos de exercício abusivo: exceptio doli; venire contra
factum proprium; inalegabilidades formais; supressio; surrectio; desequilíbrio
no exercício; tu quoque.

No caso concreto, muito provavelmente existiria “venire contra factum


proprium” (exercício em contradição): A recusa fazer as obras que se encontra
obrigado a realizar e é por causa disso que B se vê forçado fazê-las. E depois,
por tal razão, A pretende o seu despejo!

Tipicamente, a consequência do exercício abusivo consiste na imposição da


respectiva proibição. Ou, por outras palavras, o exercente não perde a
titularidade do seu direito em virtude de o ter utilizado abusivamente; apenas
fica impossibilitado de o exercitar seguindo o rumo desejado. Portanto, se B
alegasse e provasse venire contra factum proprium impediria a procedência do
despejo. Ainda que o não fizesse, todavia, tem-se entendido que o abuso de
direito é matéria de conhecimento oficioso.

25. Através de escritura pública datada de 17.04.2015, B vendeu a sua casa de


habitação a C.

Por sentença de 25.06.2016, B foi declarado interdito, com efeito retroactivo a


11.01.2015, dado que, desde esta altura (dia em que faleceu a sua mulher), se
encontrava totalmente incapacitado para gerir o seu património familiar, em virtude de
profundas deficiências intelectuais e volitivas traduzidas numa atitude de abulia e
desinteresse. A foi nomeado seu tutor.

A acção de interdição foi levada a registo civil em 03.05.2015.

Entretanto, em 12.05.2015, C deu a referida casa de arrendamento a D.

a) Haveria fundamento para invalidar a referida compra e venda?

Tópicos de correcção:

Tendo a acção de interdição sido inscrita no registo civil em 03.05.2015, isso


significa que nessa altura B ainda não se encontrava interditado para actuar
juridicamente. Muito menos em data anterior. Por isso, em princípio, apenas se
poderia atacar a validade da compra e venda celebrada em 17.04.2015 caso se
provasse a sua incapacidade acidental nos termos gerais do artigo 257.º CC.
A incapacidade acidental equivale à chamada incapacidade natural: inaptidão
para, no caso concreto, “entender ou querer” (artigo 488.º CC). Irreleva a
causa, bem como a sua duração, permanência ou intermitência, desde que o
entendimento do declarante se encontre diminuído no instante em que manifesta
a sua vontade.

Não basta, todavia, a verificação da inaptidão natural para que o negócio


eventualmente celebrado se torne anulável. Exige-se ainda que ela seja
conhecida do declaratário ou, ao menos, dele cognoscível.

Pode, contudo, suscitar-se uma sub-hipótese: a de a acção de interdição já ter


sido proposta em 17.04.2015, mas a sua inscrição no registo não ter
imediatamente ocorrido. Aí tornar-se-ia relevante saber se, não obstante a falta
de registo, C conheceria já a respectiva interposição (má-fé). Em caso
afirmativo, poder-se-ia aplicar logo o disposto no artigo 149.º CC (por via dos
seus artigos 147.º e 1920.º-C). Ainda que isso não impedisse o recurso ao citado
257.º se assim fosse considerado conveniente pelo interessado.

Em todo o caso, a retroacção “ordenada” pelo tribunal (a 11.01.2015) teria


carácter meramente factual. Não pode ultrapassar a data que resulta da
aplicação do 150.º, salva a má-fé do C.

b) Quem teria o direito de a anular?

Tópicos de correcção:

A resposta depende daquela que se houver dado na alínea anterior.

Se a anulação da compra e venda se fundasse na incapacidade acidental, só o


próprio (B) teria legitimidade para a requerer.

Se, porventura, ela se justificasse no disposto no artigo 149.º CC, esperar-se-ia


pelo trânsito em julgado da acção de interdição. Nessa altura, haveria um
representante (tutor) nomeado e seria a este que, nos termos dos artigos 139.º e
125.º/n.º1/a), se concederia legitimidade para o mesmo efeito.
c) No pressuposto de ser anulada, a quem pertenceriam as rendas pagas por D
desde 12.05.2015?

Tópicos de correcção:

Independentemente do que suceder ao arrendamento após a eventual anulação


da compra e venda de que C beneficiou, os efeitos por ele produzidos são facto
consumado. Ou seja, D utilizou durante um certo tempo (ao menos, até à
destruição da compra e venda) e, portanto, a remuneração correspondente deve
subsistir. A questão é saber a quem ela será devida.

Se a anulação – com qualquer fundamento – proceder, o imóvel considera-se


nunca ter deixado de pertencer a B (289.º CC). Pelo que as rendas pagas no
referido período intermédio devem ser entregues ao legítimo proprietário do
locado: ou seja, a B.

d) Como qualifica a situação de C ante a eventual anulação?

Tópicos de correcção:

O direito de anular (um qualquer acto jurídico) é potestativo: consiste no poder


de desencadear efeitos puramente jurídicos sobre a esfera jurídica alheia,
independentemente da colaboração de quem os sofre. Este encontra-se, ante o
exercício daquele, numa situação de sujeição. É esta, portanto, a situação de C.

26. Mediante escritura pública lavrada por C, seu instituidor, constitui-se a


Fundação XYZ em 2001.

No início de Novembro de 2016, B editou e distribuiu gratuitamente pelo


público do concelho de Bragança um escrito denominado “Boletim Informativo de S.
Torcato” com os seguintes dizeres na respetiva capa:

“O «roubo do século» e seus autores – Fundação XYZ recebe e utiliza terrenos avaliados em €
3.000.000 e, em contrapartida, não honra compromissos assumidos no acto de instituição;

Presidente da Direcção acusado de desencadear, em proveito próprio, actos indignos de uso e


abuso de poder na mira de milhões para enriquecimento do seu património”.
a) Entendendo que tais afirmações eram totalmente falsas, a Fundação XYZ
instaurou acção contra B exigindo-lhe uma compensação por danos morais
no montante de € 900.000. Teria fundamento para tanto?

Tópicos de correcção:

“As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
compatíveis com a sua natureza” (artigo 12.º/n.º2, Constituição). Significa isto,
entre outras coisas, que os direitos de personalidade, embora primacialmente
concebidos para o ser humano, são extensíveis às pessoas colectivas na medida
da analogia.

É perfeitamente pensável, por isso, como resulta do artigo 484.º CC, que uma
fundação tenha o direito ao bom nome e reputação. E que, logo, possa reagir
contra a sua eventual violação.

O comportamento de B é susceptível de traduzir tal violação, muito


particularmente se as afirmações contidas no aludido “Boletim Informativo de
S. Torcato” forem falsas. O mesmo, em princípio, se forem verdadeiras, dado
que o método utilizado é o mais ofensivo possível (quando a regra, para
legitimar intrusões na reputação alheia é justamente a inversa).

Assim, nos termos dos artigos 70.º e 496.º CC, a Fundação XYZ poderia
pretender a mencionada compensação.

b) O advogado que patrocinou o processo transigiu por € 700.000 a título de


indemnização, apesar de ter recebido indicações para não aceitar qualquer
montante inferior ao pedido. Quid Juris?

Tópicos de correcção:

No pressuposto de o referido advogado ter poderes para transigir, o que sucede


é a desobediência a instruções conferidas pelo mandante. O caso será, portanto,
de abuso de representação (artigo 269.º CC).
Ao contrário do que sucede na representação sem poderes, no abuso de
representação o procurador dispõe dos poderes representativos que põe em
actuação. Sucede, no entanto, que, ao exercê-los, ultrapassa aquela que é a
vontade do representado (manifestada v.g. por directrizes ou indicações) tal
como ele a conhece ou devia conhecer. Apurado este circunstancialismo
inexistem também, no fundo, certos poderes representativos; só que isso não
resulta formalmente da procuração.

Nesta medida se explica o regime instituído. Assim, das duas, uma:

– ou a contraparte conhecia ou devia conhecer o abuso, caso em que se segue o


regime da representação sem poderes (268.º CC) e, portanto, o negócio
celebrado é, em princípio, ineficaz, a menos que o representado o ratifique;

– ou acontece o inverso, hipótese em que o negócio celebrado pelo procurador


vincula o representado (incorrendo aquele, eventualmente, em responsabilidade
civil pelos possíveis danos causados).

c) Quando a Fundação XYZ foi constituída, os seus estatutos instituíram um


Conselho Consultivo composto por oito membros e com competência para
emitir parecer sobre as respectivas contas anuais. Quid Juris?

Tópicos de correcção:

O Cód.Civil apenas exige número ímpar de titulares para a Direcção e para o


Conselho Fiscal (artigo 162.º). O Conselho Consultivo da Fundação XYZ
poderia, portanto, ser composto por oito titulares, pois assim resulta dos seus
estatutos.

Também nada impede que o Conselho Consultivo dê parecer sobre as contas


anuais, se, outra vez, assim estabelecem os estatutos. Acontece é que tal não
pode substituir o parecer do Conselho Fiscal, porque este é o órgão próprio
para o efeito. Caso contrário, então o aludido Conselho Consultivo é que seria
verdadeiramente o órgão de fiscalização. Nesse caso, não poderia ser
constituído por um número par de titulares.

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