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Infeções no Doente Neutropénico e Imunodeprimido

O que é a imunodeficiência? à Comprometimento do SI com maior suscetibilidade a


infeções.

E um doente neutropénico? à É um doente imunodeprimido mas não é sinónimo de


imunodeficiência!

Imunossupressão inata versus adquirida

Há diferentes tipos de disfunções na imunidade inata e adquirida (celular e humoral). De


acordo com o tipo de imunossupressão, os microrganismos responsáveis pela infeção
serão diferentes.

Inata:

• 1ª linha de defesa contra microrganismos;


• Mecanismos de defesa celular e bioquímicos, presentes antes de haver infeção
à resposta rápida;
• Formada por barreiras naturais e resposta imune inata (iniciada após
ultrassagem das barreiras naturais).

Adaptativa:

• Resposta a infeção;
• Requer contacto prévio com um antigénio à resposta lenta;
• Mediada por células (linfócitos) e os seus produtos (anticorpos);
• Exibe memória, isto é, a cada contacto com o antigénio em questão, maior a
intensidade e velocidade da resposta imune.

O doente:

Num doente imunodeprimido/neutropénico, há que ter em conta múltiplos mecanismos


de disfunção de imunidade:

1. Doença de base (neoplasia, VIH);


2. Interrupção da barreira física (dispositivos à cateteres vasculares/algaliação,
intervenções cirúrgicas):
3. Tratamento condicionante de imunossupressão (cirúrgico à esplenectomia,
quimioterapia, imunoterapia[1], corticoterapia);
4. Co-morbilidades (DM, DPOC).

[1]
Por exemplo, 1 mês de tratamento com rituximab, anticorpo anti-CD20, condiciona
um défice de imunidade muito prolongado à depleção de linfócitos B durante pelo
menos 6 meses.

É fundamental ter a ideia de que a maioria dos doentes internados no Serviço de


Hematologia exibem todos estes fatores: têm uma neoplasia hematológica e outras co-
morbilidades (porque são mais velhos), requerem quimioterapia e muitas vezes vêm já
com infeções. A quimioterapia, por sua vez, é também fator contribuinte para a
destruição de barreiras à provoca mucosites importantes.
Suscetibilidade para diferentes tipos de infeção:

Depende do tipo de imunidade que está afetada:

à Muito frequente!

Flora intestinal!

Neutropenia Febril:

• EMERGÊNCIA MÉDICA! Não podemos encarar um episódio febril num


doente neutropénico da mesma forma que encaramos em nós mesmos
(indivíduos saudáveis) à Num doente neutropénico, temos de tratar de
forma emergente, caso contrário, ele morrerá de choque séptico.
• Uma das complicações mais comuns decorrentes do uso de quimioterapia
em doentes oncológicos (apesar da evolução contínua na prevenção de
infeção);
• O risco de infeção bacteriana e fúngica aumenta à medida que diminui a
contagem de neutrófilos;
• Só desde a década de 70 é que se propôs o uso imediato de antibioterapia
empírica de largo espectro, independentemente de já existir ou não
isolamento microbiano prévio, o que permitiu a diminuição da taxa de
mortalidade.

Neutropenia:

Para sabermos agir perante um doente neutropénico e com febre, temos de saber o que
é a neutropenia, que tipos é que existem e qual a gravidade de cada tipo.

Assim, a neutropenia é definida como um valor de neutrófilos < 1000/uL. Apesar de


os valores de referência indicarem como cut-off 1500/uL, este é o valor a partir do qual
o risco de infeção aumenta exponencialmente.
• Neutropenia grave: número absoluto de neutrófilos < 500/uL ou que seja
expectável que diminua abaixo de 500 em 48h;
• Neutropenia profunda: contagem de neutrófilos é < 100/uL;
• Neutropenia funcional: defeitos qualitativos dos neutrófilos circulantes
(função de fagocitose) à ex.: leucemia aguda hiperleucocitária.

O risco de infeções bacterianas aumenta exponencialmente com valores <


100/uL e com uma duração da neutropenia > 7 dias!

Etiologia:

Outro fator fundamental a considerar antes de iniciar o tratamento de um doente com


neutropenia febril é a etiologia, sendo que a maioria das causas identificáveis são
infeções bacterianas (~80% das infeções identificadas são atribuídas a agentes da
flora endógena do doente à intestinal).

No entanto, a maioria não tem documentação etiológica:

• Essencial a realização de hemoculturas seriadas para aumentar a


probabilidade de deteção à permite estreitar o espetro da antibioterapia,
sendo que antibioterapia de largo espetro e muito prolongada aumenta a
pressão seletiva dos microrganismo, que passam a adquirir resistências;
• Infeção clinicamente documentada em 20 a 30% (dos episódios febris) à tubo
digestivo, pulmão e pele;
• Bacteriemia em 10 a 25% dos doentes (a maioria em doentes com neutropenia
profunda e prolongada).

O espetro microbiológico no doente neutropénico tem vindo a alterar ao longo dos


anos à antigamente eram mais frequentes os microrganismos Gram +, devido ao
défice de condições de assepsia nos vários procedimentos invasivos, com
translocação microbiana da pele para a corrente sanguínea à atualmente, com a
crescente utilização de terapêuticas altamente agressivas, há lesão das barreiras
físicas naturais e infeção sobretudo da flora intestinal (Gram -).

Tendo em conta este aspeto, é crucial o conhecimento da epidemiologia local (mais


uma vez, devido à preocupação com o crescente aumento de agentes bacterianos
multirresistentes, que são diferentes de serviço para serviço, ainda que no mesmo
hospital, o que requer formas de tratamento diferentes).
Alterações na prática clínica de forma a reverter esta tendência incluem:

• Introdução de CVCs e outros meios invasivos terapêuticos e de diagnóstico;


• Uso de regimes de antibioterapia empírica com intuito de cobertura de
Pseudomonas aeruginosa: ureidopenicilina (piperacilina/tazobactam);
cefalosporinas de 3ª/4ª geração anti-Pseudomonas (cefepima, ceftazidima);
carbapeneme anti-Pseudomonas (meropeneme, imipeneme/cilastina).
• NÃO utilizar antibioterapia profilática primariamente ativa a agentes Gram
negativos, salvo casos muitíssimo específicos à não se verificou benefício na
mortalidade dos doentes com neutropenia febril e desencadeou um aumento

Estratificação de risco:

Não temos capacidade para internar todos os doentes que surjam com neutropenia
febril. Assim, há que fazer uma estratificação consoante o risco e determinar quais os
candidatos a tratamento oral e/ou ambulatório e candidatos a intervenção
emergente com internamento.

Existem, assim, scores que discriminam neutropenia de baixo e alto risco tendo em
conta a duração e profundidade da neutropenia, o que permite orientar a estratégia
terapêutica de forma individualizada.

O risco depende de múltiplos fatores:

• O doente;
• A doença;
• O tratamento.

O score mais utilizado é o MASCC score (Multinational Association for Supportive Care
in Cancer), que permite orientar a estratégia terapêutica de forma individualizada:

a. Antibiótico empírico: oral vs EV;


b. Internamento vs ambulatório;
c. Duração de antibioterapia.
Assim, consideramos 2 tipos de doentes:

• Alto risco: internados para ABT


endovenosa;
• Baixo risco: tratados em ambulatório
com ABT oral.

Baixo Risco Alto Risco


≥21 <21
MASCC score
Ambulatório Internamento
Expectável durar < 7 Expectável durar > 7
Duração neutropenia
dias[2] dias[3]
Co-morbilidades (DPOC),
Características do Sem co-morbilidades
idade avançada, baixo
doente ativas
estado funcional
1. Hipotensão,
pneumonia, alterações
neurológicas, dor
abdominal, mucosite
Clínica ——
grave[4]

2. Evidência de disfunção
orgânica: hepática/renal
ABT largo espetro oral:
Tratamento beta-lactâmico + ABT largo espetro EV
fluoroquinolona

[2]
Doentes tratados com QT em ambulatório, a neutropenia é transitória (10º dia até 14-
17º dia após o início do ciclo à depois recupera rapidamente).
[3]
Doentes tratados em ambulatório, mas que já passaram por várias linhas de
tratamento, é expectável que a recuperação da neutropénia seja mais demorada.

[4]
Mucosite grave é critério de internamento porque os doentes não absorvem os AB
orais e requerem terapêutica EV.

Ter em conta que esta classificação não é estática! Um doente de baixo risco
pode agravar a sua condição em ambulatório, sendo fundamental re-avaliar
passados 2-3 dias e educar os doentes para que se dirijam ao SU quando não
melhoram durante este período ou quando surgem sinais de alarme:
manutenção da febre, tonturas, hipotensão, alterações neurológicas, etc.

Abordagem do doente de alto risco – É uma emergência hematológica!

Os doentes de alto risco são por definição, na prática, os doentes em aplasia


secundária a quimioterapia intensiva (na leucemia aguda) ou mieloablativa (no
transplante medular).

Nestes doentes é habitual haver diversos episódios de NF. Nesse sentido, é


importante perceber quais os microrganismos isolados nesses episódios para ajustar a
antibioterapia.

1) Avaliação clínica do doente para perceber se existe foco infecioso e entender o


enquadramento (se houve internamentos prévios, quais os agentes isolados em
episódios anteriores)
2) Rastreio sético: colheita de HC (2x), UC/antigenúrias, LBA (normalmente são
pouco eficazes, porque os doentes não conseguem expelir secreções).
3) Instituir IMEDIATAMENTE antibioterapia: normalmente beta-lactâmico de
espectro alargado com cobertura anti-pseudomónica em monoterapia, como por
exemplo, piperacilina/tazobactam, cefepima, ceftazidima. Os aminoglicosidos
também podem ser utilizados em associação com os beta-lactâmicos pelo
sinergismo. Durante as primeiras 48-72h deve usar-se o espectro mais alargado
possível até à passagem a terapêutica dirigida de acordo com o antibiograma. No
caso de suspeita de agente MR, deve iniciar-se terapêutica empírica com colistina
+ tigeciclina (ou amicacina) por um período máximo de 48h, devendo depois
alterar-se para antibiótico dirigido ou descalado.

A segurança do doente é fundamental, por isso é fundamental avaliar a utilização de


fármacos com potencial toxicidade nos doentes, tendo em conta as suas patologias de
base. Devem adotar-se estratégias para evitar risco de infeção cruzada, como utilização
de batas descartáveis que são de uso único para observação de cada doente,
desinfeção das mãos antes e depois de cada doente, utilização de luvas e estetoscópio
por cada doente.

NOTAS:

Os carbapenemes não devem ser utilizados como primeira linha em terapêutica


empírica.
A cobertura para agentes Gram-positivos ad inicio NÃO está indicada. Porém,
se ao fim de uma semana o doente se mantiver febril ou surgir um foco sugestivo de
infeção por Gram positivos (ex: pele, intestino), deve ponderar-se a utilização de
antiobioterapia com cobertura anti-Gram positivo.
Exemplo: Doente inicia terapêutica empírica com cefepima e amicacina. Se
estiver apirético e estável 48h após o início do tratamento, mantém-se apenas a
cefepima. Se ao fim de 7 dias o doente se mantiver estável, apirético, sem foco de
infeção, interrompe-se antibioterapia. Não há necessidade de manter a terapêutica
durante 14 ou 21 dias. Se houver isolamento de agente, a duração da terapêutica vai
depender, nomeadamente se é resistente ou não.
Se ao fim de 3 ou 4 de antibioterapia o doente se mantiver febril, não se altera o
antibiótico. Nestes casos, a partir do 4º dia, deve pesquisar-se ativamente o foco de
infeção e realizar rastreio sético com culturas. Muitas vezes tratam-se de infeções
respiratórias, por isso muitas vezes fazem-se RX ou TC tórax no sentido de identificar
algum foco.

Bases farmacocinéticas da antibioterapia

Os fármacos podem ser:

- dose-dependentes (exemplo: aminoglicosidos: dose única diária, acertada ao


pico sérico – do qual depende eficácia, e atenção que isto é muito importante porque o
doente não tem neutrófilos em circulação - e ao vale – do qual depende a toxicidade,
no caso renal e auditiva):

- tempo-dependentes (b-lactâmicos ou vancomicina: perfusão prolongada ou


contínua);
São necessárias doses mais elevadas no doente em choque sético tem um
volume de distribuição maior. Por outro lado, doentes com lesão renal aguda ou doença
renal crónica com diminuição da TFG não vão eliminar o fármaco tão eficazmente.

Infeções Fúngicas

Caso não se identifiquem agentes bacterianos nas pesquisas consecutivas, deve


pensar-se em infeções fúngicas ou em situações em que a febre se mantém após 5 dias
de antibioterapia.

É um problema quase exclusivo dos neutropénicos profundos, que não se coloca


na maior parte dos imunocomprometidos. Coloca-se nos neutropénicos profundos
porque estes têm aplasias prolongada. Raramente são as primeiras infeções a aparecer
durante a aplasia: habitualmente são os 2º ou 3º episódios de infeção durante a aplasia.
Para além disso, a permanência em meio hospitalar aumenta o risco (no caso das
candidémias está muito associado aos cateteres). No caso do HSAC, mesmo com
pressões positivas, filtros, etc, devido às obras que ocorrem nos edifícios contíguos, há
elevada incidência de aspergilose pulmonar invasiva (foi por isso decidido fazer
profilaxia com voriconazol a todos os doentes com leucemia aguda mieloide que são os
candidatos a quimioterapia aplasiante).

Fungos responsáveis pelas infeções:


• leveduras: candidémia (com eventuais localizações valvulares, endoftálmicas,
hepatoesplénicas). Tratamento: Polienos (anfotericina B), azois (voriconazol),
equinocandinas (caspofungina).
• fungos filamentosos: Aspergillus – no doente neutropénico não se identifica,
por norma, o halo em crescente característico dos aspergilomas, porque não
tem neutrófilos, mas tem infiltrações nodulares subpleurais que podem ser
biopsadas para diagnóstico. Mais raramente Mucor e Fusarium. A localização
mais frequentes é a pulmonar, mas pode ter localização sinusal ou cerebral.
Tratamento: Polienos (anfotericina B), azois (voriconazol).

Sendo o diagnóstico micológico difícil e a mortalidade elevada com instituição tardia de


antifúngico, foram criados critérios consensuais de diagnóstico clínico precoce
(sintomas + imagem + serologia). De notar que não há determinação dos perfis de
resistência aos anti-fúngicos (ou seja, a profilaxia pode não ser eficaz).

NOTA: Ao contrário da profilaxia antibiótica, a profilaxia antifúgica é recomendada.


Profilaxia

• Física:
o a lavagem de mãos é a medida de maior utilidade;
o a filtração do ar reduz a incidência de aspergilose;
o medidas drásticas de prevenção da transmissão cruzada reduzem a
incidência de Pseudomonas, MRSA, de algumas bactérias
multirresistentes;
§ separar as camas dos doentes
§ evitar que os doentes troquem livros ou revistas
§ “isolamento reverso” – os médicos e os acompanhantes
protegem o doente usando máscaras, luvas e batas
§ quartos com pressão positiva
§ cuidados com os alimentos fornecidos (não comer carne mal
passada, produtos lácteos não pasteurizados, etc.)
• Medicamentosa:
o antibacteriana com quinolonas (não consensual – não há nada que
prove que seja uma boa prática): possível redução de bacteriémias a
Gram-negativo, sem impacto claro na mortalidade e com rápida indução
de resistências (incluindo a outras classes);
o antiviral: aciclovir reduz a mucosite bucal neutropénica se serologia
HSV1+;
o antifúngica: anti-Aspergillus em centros com incidência elevada de
aspergilose invasiva.

Há uma profilaxia antibiótica que está indicada em doentes


imunocomprometidos, em particular em doentes com leucemia linfocítica aguda e
doentes a fazer esquemas que incluam corticoides por longos períodos, que é a
administração de trimetroprim/sulfametoxazol (cotrimoxazol) para prevenção de
pneumonias por P. jirovecci.
A utilização de fatores de crescimento é um caso de profilaxia secundária, pois
permite encurtar a duração da aplasia. Por exemplo, um doente em remissão (linfoma)
em ambulatório, que tenha tido um episódio de febre neutropénica no primeiro ciclo de
tratamento, pode realizar filgastrim para evitar que tenha novos episódios de febre
neutropénica nos ciclos subsequentes.

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